Michael Cimino (1939-2016), um realizador entre o Céu e o Inferno
Um dos grandes líricos do cinema americano, teve Óscares por O Caçador, mas tem o seu nome impresso com as letras gigantes de uma catástrofe: As Portas do Céu (Heaven's Gate, 1980). (...)

Michael Cimino (1939-2016), um realizador entre o Céu e o Inferno
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um dos grandes líricos do cinema americano, teve Óscares por O Caçador, mas tem o seu nome impresso com as letras gigantes de uma catástrofe: As Portas do Céu (Heaven's Gate, 1980).
TEXTO: Morreu Michael Cimino, vencedor de um Óscar de Melhor Realizador por O Caçador. Ou teria sido o homem que, com As Portas do Céu, ajudou a fechar com estrondo os 70s e a acabar com o sonho da Nova Hollywood? Teria 77 anos - a sua idade e alguns factos da vida são incertos, mantidos numa zona de mistério ou ocultados pelo próprio. O anúncio foi feito no sábado, no Twitter, pelo director do Festival de Cannes Thierry Fremaux: “Michael Cimino morreu, em paz, rodeado dos seus e das mulheres que amava. Nós também o amávamos. ” Eric Weissmann, amigo e ex-advogado do realizador, confirmaria a morte. Mas segundo o The New York Times, que o cita, o corpo terá sido encontrado na sua casa de Los Angeles, sábado, pela polícia, que foi contactada por amigos do realizador quando não o conseguiram contactar por telefone. A causa da morte, segundo Weissmann, está ainda por determinar. Apesar do sucesso com O Caçador (1978), história de amigos operários da Pennsylvania e das suas perdas com a experiência da Guerra no Vietname (nomeações para nove Óscares, vencedor de cinco, entre os quais o de melhor filme, "batendo" O Regresso dos Heróis, de Hal Ashby, visto como adversário ideológico), Cimino levaria à falência o estúdio da United Artists com As Portas do Céu (Heaven's Gate, 1980): filme "maldito", um dos fracassos de bilheteira de maiores consequências para o cinema americano. Não terá sido, na verdade, "apesar de. . . ". Uma coisa, o sucesso de O Caçador, levou à outra: com a indústria a seus pés, teve carta branca, e 12 milhões de dólares, para entregar até ao Natal de 1979 o seu filme sobre o conflito sanguinário, nas terras do Wyoming dos anos 1890, entre barões do gado e colónias de imigrantes, entre a lei e o vigilitantismo. Entregou-o quase um ano depois, 40 milhões de dólares depois, mas quando o filme chegou às salas já estava desapossado da sua possibilidade de ser "um filme". Já se tornara media event. E foi como se as salas o expelissem. Todo o espectáculo da rodagem, os adiamentos da estreia, os comentários sobre as excentricidades de Cimino, que queria ter o nome no genérico do tamanho do título do filme (e assim ficou com o nome pegado à dimensão desse desastre), foram antecipando com ironias amargas e slogans espirituosos (To Hell with Heaven’s Gate; Apocalypse Next) aquilo que se seguiu. Eclipsaram-se os 70O desastre anunciado confirmava-se: uma semana em exibição numa sala de Nova Iorque, a crítica a ditar o "unqualified disaster" (Vincent Canby no The New York Times. . . ) desta versão original de 219 minutos (seria retirada, para segunda distribuição em versão mais curta, que só tornaria a comunicação emocional ainda mais difícil) e o filme a ser apontado por todos, e entre eles muitos que não o tinham visto, como exemplar da megalomania dos tempos em que Hollywood estivera à mercê dos "autores". Cimino ajudou a ditar com esse fracasso o fim de uma era, o fim dos sonhos da geração dos movie brats, foi isso que lhe aconteceu. Podia ter acontecido com Coppola (Do Fundo do Coração, 1981), com William Friedkin (Sorcerer, 1977), com Spielberg (1941, Ano Louco em Hollywood, 1979), com Peter Bogdanovich (They All Laugued, 1991), que tiveram os seus fracassos dolorosos. Mas, independentemente do efeito deles na vida dos seus autores (a Zoetrope de Coppola, por exemplo, faliu. . . ), o grande estrondo aconteceu com Cimino e aconteceu a Cimino. As Portas do Céu parecia trazer, em si, aliás, uma premonição. Como se recebesse e abraçasse a catástrofe. Tudo começa, se se lembram, na Harvard do século XIX, com dois amigos, James Averill (Kris Kristofferson) e William Irvine (John Hurt), no rodopio de valsas de Strauss e de entrega de diplomas à elite estudantil de que fazem parte. É então que a personagem de Hurt diz: "Os anos 1870 acabaram!". Há-de haver um corte, e o prólogo em Harvard, momento de ideais e de esperança, dará lugar à impotência, ao niilismo… sentimentos inescapáveis face à personagem de Kris Kristofferson, que vemos agora no comboio a caminho do Wyoming 20 anos depois da sua formação em Harvard, impregnado de malaise. (Está tudo nessa passagem, como no "corte" que nos transportava de forma abrupta da Pensilvânia para o Vietname em O Caçador — as elipses que essas obras contêm são feridas no tecido dos filmes, a alastrar, a consumi-los). Pois bem, Heaven's Gate e o seu fracasso alastraram, e acabaram por dizer: "Os anos 1970 acabaram!". É verdade: pouco tempo depois, duas semanas apenas, da estreia começava a era Reagan. Deixaria de haver tolerância para visões lúgubres de uma América fundada não sobre um qualquer abraço fraterno mas sobre o genocídio, a guerra de classes e o racismo. Em 2012, por alturas da edição em DVD do filme, em cópia que restaurava a versão original, Kris Kristofferson dizia ao The New York Times que a visão de Heaven's Gate sobre o capitalismo americano esteve na origem de um verdadeiro “assassinato político". Kristofferson lembrava-se de que o attorney general de Reagan, William French Smith, mandou recados aos chefes dos estúdios de Hollywood: "Não deveria haver mais filmes com uma visão negativa da história da América". E no documentário Final Cut: The Making and Unmaking of Heaven's Gate explicita: tudo não foi mais do que uma estratégia dos "poderes instituídos" para acabar com uma forma de fazer cinema. Eclipsaram-se os anos 70 (uma década depois do “we blew it” de Easy Rider, pronunciado em 1969). Desapareceu a Nova Hollywood, substituída pelas corporações (mas não desapareceram os filmes que ultrapassam orçamentos. . . ). E Cimino foi definhando com O Ano do Dragão (1985), O Siciliano (1987), Desperate Hours (1990) e The Sunchaser (1996), com rasgões de beleza mas quase sempre tolhido. "Não tem graça ser famoso pelas piores razões: torna-se uma ocupação esquisita", dizia, em 2012, no Festival de Veneza, antes de o director Alberto Barbera lhe entregar o Prémio Persol que reconhecia "uma das mais intensas e originais vozes do cinema americano". Nessa altura, procedia-se a uma revisão de Heaven's Gate. Que nos últimos anos tem sido descoberto enquanto filme, para além de media event, já que esteve sempre como que inacessível, impossibilitado de, nas coisas belíssimas que tem e nas suas dificuldades - a problemática coabitação entre o monumental e o íntimo -, poder dar a ouvir, enfim, a vibração trágica do seu trio: Averill (Kristofferson)/Ella (Isabelle Huppert)/ Nathan (Cristopher Walken) - e como todo ele é uma deflagração de fragilidade, Chris Walken…Lirismo e destruiçãoTudo começara antes, como se disse. Naqueles anos de euforia, em que Hollywood descobria um wonder boy. Os anos de O Caçador. O ressentimento desenvolvia-se nessa altura: na muito emotiva e electrizante noite desses Óscares, Jane Fonda, premiada como melhor actriz por Coming Home, confrontava o realizador nos bastidores por ter feito um filme "racista, a versão do Pentágono da guerra" do Vietname. (Mas parece que nem tinha visto o filme). Duas sequências provocavam a divisão (porque, acredite-se ou não, houve quem o considerasse o melhor filme anti-guerra desde A Grande Ilusão, de Jean Renoir): a da roleta russa, no Vietname, a suposta prova do racismo do realizador, e a do hino americano, em "casa", a suposta evidência do seu paroquial patriotismo. Fora do Dorothy Chandler Pavillion, Os Veteranos do Vietname contra a Guerra faziam piquete. O facto de ter sido John Wayne — última aparição pública, já minado pelo cancro — a entregar o Óscar de melhor filme a O Caçador, parecia autorizar todas as leituras de uma simbólica passagem de testemunho. Até porque se começava a explorar supostas incongruências biográficas do realizador (a sua idade, a veracidade do seu currículo académico e do que ele tinha apresentado como "esforço de guerra". . . ). Wayne era, ele próprio, autor de um pedaço de propaganda bélica, Os Boinas Verdes (1968), e tinha sido convidado por Cimino para uma primeira projecção do filme. No final da qual teria exclamado: "Isto vai mostrar a alguns filhos da puta como se vive na América". O "boneco" estava feito. Cimino ia desautorizando leituras políticas do filme, reafirmando que não era sobre uma guerra justa ou injusta, era um filme sobre as experiências de pessoas que conheceu, um canto, um lamento, sobre "gente vulgar deste país que viajou das suas casas para o coração das trevas e voltou". Mas não o ouviam, e a sua personalidade trazia anti-corpos ao discurso. Conservador? Sim, tal como John Ford - um dos seus cineastas de cabeceira - quando cantava a América. A crítica Pauline Kael referiu-se assim a The Deer Hunter e tocou no essencial: "Um filme tacanho com grandeza dentro. . . uma obra espantosa. . . com uma visão extasiada da vida normal — a poesia do banal. " (Se John Ford está na alma de O Caçador, Sam Peckinpah, outro dos heróis de Cimino, está no horizonte de As Portas do Céu, mas se calhar cada filme do cineasta vive sempre no caminho entre esses dois gigantes líricos, e do caminho do idealismo para a destruição). Michael Cimino nasceu em Nova Iorque, descendente de italianos. Estudou em Yale, mas as suas habilitações académicas foram alvo de "dúvidas", fazendo-se sempre da personagem uma figura "suspeita" de se ficcionar. O que ajudou à "guerra", por exemplo, quando se tratou de atacar a "veracidade" de O Caçador. Fez anúncios de televisão. Iniciou a carreira em Los Angeles como argumentista—- no seu currículo, O Cosmonauta Perdido (1972) e o segundo filme da série Dirty Harry, Magnum Force (1973). Antes de O Caçador realizou A Última Golpada/Thunderbolt and Lightfoot (1974), com Clint Eastwood, com quem assinou o argumento. Já aí estava a paisagem americana como reservatório mitológico que faz a sua cobrança, em tragédia, a quem lá entra, a quem a atravessa. Raramente dava entrevistas, e durante os anos que seguiram ao desastre de As Portas do Céu recusou-as. Em 2001 publicou o seu primeiro romance, Big Jane. Nesse ano, o Ministro da Cultura francês distinguiu-o com a medalha de Chevalier des Arts et des Lettres. Megalómano? Foi um dos grandes do cinema americano e uma das suas grandes "baixas". Em 2010, aceitou viajar com um historiador e crítico de cinema francês, Jean Baptiste Thoret, pelos "lugares" dos seus filmes — o Colorado com as suas primeiras neves, os céus imensos do Montana, o Wyoming. Teve a sua catedral, tal como John Ford teve Monument Valley. Resultou num livro esta longa conversa sobre a perda, sobre os ideais que tombam, sobre os "novos" sacrificados pelos "velhos". Veja-se esta passagem e o que ela pode encerrar: "No final, é sempre a mesma coisa, a traição dos idealismos de juventude pelos mais velhos: os velhos acabam por ganhar, em todas as guerras, em todos os países, em todos os períodos da história. E os velhos justificam isso contando tretas: os jovens desencadeando as catástrofes e eles ficando para limpar a casa". É um comovente road book, Michael Cimino, Les Voix Perdues de l'Amérique (Flammarion, 2013). A dele já se tinha perdido, nunca se reencontrou. No final do seu Dicionário Biográfico de Cinema, David Thomnson terminava a sua entrada sobre o realizador: "Cimino é um monstro e enquanto ele viver temos de estar preparados para lhe ceder terreno, ou abatê-lo. "Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vasco Câmara sobre As Portas do Céu: What one loves about life are the things that fadeMichael Cimino não acha graça a "ser famoso pelas piores razões"
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra lei cultura homem racismo mulheres corpo assassinato racista
"A boa notícia é que, no longo prazo, todos tendemos para a igualdade. A má notícia é que o longo prazo demora 300 anos"
O que pode um apelido contar-nos sobre mobilidade social? Muito, conclui o economista escocês Gregory Clark, que vem a Lisboa falar sobre os resultados desconcertantes do estudo de centenas de milhões de apelidos ao longo de cinco séculos (...)

"A boa notícia é que, no longo prazo, todos tendemos para a igualdade. A má notícia é que o longo prazo demora 300 anos"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.02
DATA: 2018-07-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que pode um apelido contar-nos sobre mobilidade social? Muito, conclui o economista escocês Gregory Clark, que vem a Lisboa falar sobre os resultados desconcertantes do estudo de centenas de milhões de apelidos ao longo de cinco séculos
TEXTO: Há pessoas que conseguem passar do 1% mais baixo da sociedade para o 1% mais alto, mas é raro e, em geral, os movimentos sociais desenrolam-se muito lentamente, concluiu Gregory Clark, professor de Economia na Universidade de Davis, Califórnia, e autor da premiada investigação sobre a história da mobilidade social The Son Also Rises – Surnames and the History of Social Mobility, livro editado pela Princeton. Pelo menos, a mudança é muito mais lenta do que acreditamos, defende o autor. O livro é a base de um debate — e de uma controvérsia — que não tem respostas a preto e branco. Com uma equipa de oito investigadores de vários continentes, Clark estudou a mobilidade social usando um método original: os apelidos. Como é que uma família percorreu a escada social ao longo de séculos? Depois de analisar centenas de milhões de apelidos, a conclusão, desconcertante, é que pouco ou nada parece provocar mudanças sociais e ajudar as pessoas das classes baixas a ascender às altas. Nem as revoluções, nem a democracia, nem o acesso à educação. Quem está em baixo, em baixo fica. Seguindo uma "espécie de memória dos seus antepassados", entranhada em cada um de nós. No próximo sábado, Clark participa na conferência anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que este ano pergunta "Em que pé está a igualdade?". Como nasceu a ideia que levou a este projecto e a uma investigação tão pouco convencional?A ideia nasceu de uma conversa com um jornalista do New York Times. Falávamos do diferencial de fertilidade [que designa as diferenças em termos de fertilidade nos subgrupos de uma população] no período pré-Revolução Industrial, e foi ele quem sugeriu que eu talvez pudesse analisar os apelidos e a sua frequência como factor de medição das questões ligadas aos diferentes parâmetros da fertilidade. Essa ideia interessou-me, e vim a descobrir que há imensa informação disponível sobre a distribuição dos apelidos e a maneira como estes estão ligados às diferentes classes sociais ao longo do tempo. Acabei por perceber que é possível medir muito para trás, até à Idade Média, o fenómeno da mobilidade social nas diferentes sociedades, apenas olhando para o estatuto que os apelidos tiveram durante esse período. Portanto, não posso ficar com todos os créditos pela originalidade da ideia. Aliás, esta ideia de rastrear a mobilidade social através dos apelidos já tinha sido usada num livro anterior, na verdade por uma pessoa conhecida nos Estados Unidos por ser um escritor racista. Chamava-se Nathaniel Weyl e era um antigo comunista que se tornou de extrema-direita, e que foi testemunha contra Alger Hiss [alto funcionário do governo americano acusado de espionagem] no julgamento por perjúrio em 1950. E é de facto uma ideia interessante e com muitas ramificações, e que pode ser usada para diferentes investigações. Quantos milhões de apelidos analisaram?Centenas de milhões. Só em Inglaterra, tínhamos dados sobre a distribuição dos apelidos que remontavam a 1540. Analisámos também apelidos na China, e estamos agora a investigar na Rússia, na Hungria… é um trabalho em constante evolução, porque muitas pessoas contactam-me com informação nova de diferentes países. O último trabalho que publicámos foi uma pesquisa sobre a mobilidade social na Austrália, em que obtivemos dados de 1870 até ao presente. E foi um trabalho muito interessante, porque através dos apelidos conseguimos demonstrar como as taxas de mobilidade social na Austrália não diferiram nesse período das da Inglaterra, que era o país de onde vinha a maior parte da população. O facto de ser um país novo, com novas instituições e um ambiente diferente, não influenciou em nada a capacidade de mobilidade social. As famílias que se distinguiam na Austrália do século XVIII continuam hoje a mandar os filhos para a universidade com uma frequência muito maior do que a média. O que aconteceu aos descendentes dos condenados ingleses enviados para a Austrália?A coisa mais interessante e surpreendente deste estudo foi ter a possibilidade muito rara de analisar os nomes de pessoas condenadas pela justiça. Descobrimos que essas pessoas nunca foram uma sub-classe, e têm até um desempenho, desde o século XIX, ligeiramente acima da média dos colonos brancos. Creio que a explicação residirá no facto de muitos dos condenados já não serem originalmente de classes baixas e terem cometido crimes de pequena importância. Usando o mesmo parâmetro da educação superior dos filhos, os descendentes dos colonos condenados apresentam números iguais ou superiores à média dos colonos livres, nos quais se incluíam, por exemplo, os funcionários administrativos e os soldados. O que encontrou na Rússia?É uma pesquisa muito interessante. A Rússia passou por grandes mudanças estruturais, como a Revolução de 1917 ou a restauração do capitalismo, mas através da informação que nos foi disponibilizada pela Universidade Estatal de Moscovo, uma das maiores instituições de ensino do país, pudemos perceber que, surpreendentemente, a revolução teve um impacto muito diminuto na distribuição dos nomes e apelidos que pertenciam tradicionalmente à elite. Nesses incluíam-se, por exemplo, os apelidos acabados em -sky e também apelidos de origem alemã, normalmente de famílias judias da Alemanha de leste. Por outro lado, é possível discernir que os nomes mais comuns na Rússia, como os acabados em -in ou em -ov, continuam ao longo do tempo, independentemente da revolução, a apresentar resultados mais modestos nas estruturas subjacentes à organização social, nomeadamente no acesso ao ensino superior. Na Rússia, as universidades são obrigadas a publicar a lista de todos os alunos e as suas notas de acesso, o que nos dá uma fonte muito segura para este tipo de estudos. E a análise da distribuição dos apelidos nessas listas de acesso mostra que os nomes que já eram comuns na Rússia do século XIX continuaram ao longo do tempo a ter uma menor presença nos lugares cimeiros das notas dos alunos, o que parece indicar que as classes inferiores continuaram a ter as mesmas dificuldades na capacidade de mobilidade social, não obstante uma enorme revolução socialista. O que conclui a partir daí?A principal conclusão que se pode tirar do estudo da evolução social dos apelidos é que é muito difícil, em qualquer sociedade, uma alteração radical do estatuto social. Quanto mais alargado o período de estudo, mais probabilidades há de observarmos alterações mais significativas, mas estes processos de mudanças sociais são lentos e surpreendentemente impermeáveis a momentos de agitação social ou de mudanças de regime, e não parece haver nada que afecte estas velocidades de mobilidade social. A mobilidade social pouco se tem alterado nos últimos séculos, tanto nas classes altas como nas baixas?Sim, nos casos estudados até agora não temos verificado qualquer aumento da capacidade de mobilidade social. O único estudo que revelou resultados um pouco diferentes foi o caso do estado indiano de Bengala Ocidental, onde os números relativos à mobilidade social são ainda mais baixos do que nos outros. E isso está relacionado com a questão dos casamentos muito próximos e muito organizados entre determinadas classes. E o que se verifica na Índia é que as pessoas das castas mais baixas têm imensas dificuldades para mudar de estatuto, não obstante o governo investir balúrdios na sua escolarização e reservar lugares nas universidades para as pessoas das castas mais baixas. O que acontece é que, ironicamente, há muitos que se aproveitam do apelido para ocuparem esses lugares, embora na verdade não sejam pertencentes a essas castas. Mas chegam efectivamente a existir casos em que não há qualquer vislumbre de mobilidade social, tão fechados dentro dos seus grupos são os casamentos. Um bom exemplo é o dos cristãos coptas, no Egipto, que mantêm o estatuto de classe alta há mais de mil anos, e que só casam entre si, não se misturando com a população que os rodeia. Assim, uma sociedade aberta, que promove o casamento entre imigrantes e pobres e ricos, etc. , terá à partida mais mobilidade social. Pelo contrário, as sociedades onde imperam divisões religiosas ou raciais têm tendência para uma maior cristalização dos estratos sociais. Estamos presos no estrato social em que nascemos?Claro que não é uma situação estática e podemos sempre observar movimentos, até porque as pessoas das classes mais baixas tentam sempre subir de estrato social, mas são processos muito lentos. Se olharmos para os apelidos das famílias que na Inglaterra do século XIX faziam parte da verdadeira elite, podemos ver que ainda hoje os seus filhos têm uma maior probabilidade de ingressarem na universidade ou de arranjarem melhores empregos. A boa notícia destes estudos é mostrarem que, no longo prazo, todos tendemos para a igualdade; a má notícia é que o longo prazo parece demorar cerca de 300 anos. Isso acontece em todos os países que estudaram?Sim, as pessoas podem passar centenas de anos até que as famílias que vêm de estratos mais baixos consigam ter a mesma probabilidade das outras em ascender a posições sociais de maior importância. E isto aplica-se a todos os períodos estudados. O que está a dizer significa que o acesso à educação não teve impacto e não ajudou a reduzir as desigualdades. Se olharmos para o caso inglês, podemos ver que nem a mudança de um paradigma em que não havia apoio estatal à educação para outro em que existem imensos apoios à educação parece ter influência na mobilidade social ou nas perspectivas de subida de classe. O mesmo acontece relativamente ao direito de voto: a evolução para um sistema em que todos os cidadãos são chamados a participar na vida política não teve qualquer efeito em termos da facilidade de alterações nos estratos sociais. Isto faz pensar que são coisas muito enraizadas na própria estrutura das sociedades. Estamos agora a desenvolver um novo trabalho, focado nos indivíduos em vez de nos apelidos [recuando na sua árvore genealógica]. Começámos por Inglaterra, e até agora já conseguimos estabelecer as linhagens de cerca de 300 mil pessoas ao longo de 250 anos. Temos acesso a todas as relações de parentesco e aos correspondentes estatutos sociais, e podemos assim estudar melhor o que aconteceu a todas estas famílias ao longo dos anos. Como selecionou essas famílias?Apoiámo-nos no estudo dos apelidos mais raros e, em Inglaterra, há muitos apelidos raros. Outra das coisas que tornam o estudo do caso inglês mais fácil é que os ingleses são muito excêntricos, e há no país imensa gente que se dedica ao estudo dos apelidos. Há até uma organização, a Guild of One-Name Studies, que tem uma publicação na qual escrevemos um artigo a pedir aos seus membros que nos enviassem mais dados. Descobrimos pessoas que há 25 anos se dedicam a estudar a história do seu apelido e a localizar todas as pessoas do mundo com o mesmo apelido. Agora até usam testes de ADN para fazer esse mapeamento, porque se há uma origem comum das pessoas com o mesmo apelido raro, então todos os homens dessa linhagem devem ter o mesmo cromossoma Y. Falei com uma pessoa que se dedicava ao estudo do nome Argall, um apelido raro da zona da Cornualha, que descobrira que todos os homens que eram filhos biológicos da família Argall tinham o mesmo cromossoma Y, o que mostra que, nessa família, durante 300 ou 400 anos não houve infidelidade!Há alguma vantagem em estudar pessoas em vez de apelidos?A nossa base de dados tem 170 mil pessoas e as análises a essa informação já produziram descobertas muito interessantes. Os dados parecem sugerir que a herança genética é uma das principais razões para a fixação dos estatutos sociais. O que levanta diversas questões: se são os genes que interessam e não as circunstâncias familiares, então o tamanho das famílias devia ser irrelevante para o sucesso na vida de cada um. Na Inglaterra do século XIX, encontramos diversas famílias com apenas um filho, mas também famílias com 17 filhos. E ao compararmos esses extremos, descobrimos que em quase todos os casos o número de filhos não é relevante para o nível de educação ou de sucesso que eles alcançam. Há uma teoria económica vigente que defende que uma das razões para termos, hoje, sociedades com maiores rendimentos é precisamente o facto de termos menos filhos, podendo assim providenciar-lhe uma melhor educação e torná-los melhores “agentes económicos”. Ora no século XIX em Inglaterra não havia controlo de natalidade, e portanto o tamanho das famílias era bastante aleatório, mas as estatísticas sobre o efeito que isso teve no sucesso das pessoas mostram variações muito pequenas. O factor decisivo é então o talento inato, mais do que o dinheiro ou a educação?Essas características são de alguma forma herdadas dos pais. Talvez seja algo que está relacionado com uma cultura ou um ethos familiar. Outra coisa que podemos analisar é o efeito da ordem de nascença dos filhos, e quanto a isso muitos psicólogos defendem que os filhos mais velhos têm uma significativa vantagem sobre os mais novos, por não terem de dividir a atenção dos pais durante os primeiros anos de vida. Eu sei que isso acontece, até pela minha experiência pessoal como pai de três filhos. Mas cheguei à conclusão, quando tivemos o terceiro, que todo esse esforço extra com o primeiro não fez grande diferença [risos]. É engraçado, porque os meus pais eram ambos o 9. º de 12 filhos, por isso este assunto sempre me interessou. Lembro-me de perguntar à minha avó se me podia contar alguma coisa sobre o meu pai quando era pequeno e ela respondeu: “Não. ” [risos] Ela falava muito sobre o filho mais velho, a quem era muito apegada, mas quando se chega ao 9. º já não há a mesma interacção, o mesmo impacto. As nossas descobertas apontam para que, pelo menos na Inglaterra do século XIX, isso tenha muito pouca importância no sucesso pessoal. E de forma muito clara. A natureza é mais forte do que o berço?A informação que analisámos aponta esmagadoramente para que assim seja. Para dar outro exemplo: se eu quisesse tentar prever o sucesso que os seus filhos irão ter na vida, muita informação relevante estaria em si e no seu marido, mas também nos vossos pais e irmãos. Quantos mais membros da família pudesse observar, mais acertada seria a minha previsão. E embora haja quem veja nisto o reconhecimento da importância da cultura, dos recursos, da rede de contactos e do ambiente de uma família como um todo, o que verificámos foi que, se compararmos casos em que os avós já morreram quando um neto nasce com outros em que ainda estão vivos, ou casos em que os avós vivem perto dos pais com outros em que vivem a 50 ou mais quilómetros de distância, os números mostram que em qualquer dessas situações a importância que os avós assumem para a percentagem de acerto da previsão sobre o futuro dos netos é a mesma. Simplificando: para o nosso estudo, os avós servem apenas de fonte de informação do estatuto genético subjacente aos pais, ou seja, completam a informação para que se determine se estamos perante uma linhagem “alta” ou, ao invés, uma linhagem “baixa” que por alguma razão teve sorte e conseguiu subir na vida, e se essa sorte se prolongará nas gerações futuras. O interessante desta base de dados alargada é podermos fazer este tipo de experiências e cruzamentos para encontrarmos pontos de contacto entre as diferentes gerações. Como olha para as excepções, milionários selfmade como Oprah Winfrey ou Ralph Lauren?O interessante sobre as excepções é que, estatisticamente, só uma ínfima parte dessas pessoas que conseguiram alcançar posições muito altas na sociedade vieram dos últimos 10% da pirâmide social. Normalmente, partem de posições já muito perto do topo. Se olharmos para Bill Gates, por exemplo, o seu pai já estava no percentil 1% da distribuição de rendimentos. Referia-me aos que vêm mesmo de baixo, como o CEO da Starbucks…São fenómenos raros. O padrão mais comum é a ascensão social ser feita por pessoas que já estão perto desse estatuto. Essa podia ser até uma possível pesquisa a fazer com a nossa base de dados: tentar perceber quem são e de onde vêm as pessoas que conseguem essas transições maiores em termos de riqueza e ocupação profissional, parâmetros que ainda não analisámos. Um dos parâmetros que usámos em Inglaterra foi o acesso às Universidades de Oxford e Cambridge, que são muito elitistas. O que observámos foi que é muito raro que uma família que nunca tenha tido um membro nessas universidades acabe por meter lá alguém, independentemente de demonstrar alguma ascensão social nesse período. Por outro lado, há famílias cuja probabilidade de terem um membro em Oxford ou em Cambridge se mantém quase inalteradamente alta ao longo do tempo. O que quero dizer é que na sociedade, embora haja pessoas que conseguem passar do 1% mais baixo para o 1% mais alto, os números mostram que em geral esses movimentos sociais se desenrolam muito lentamente. Quão mais lentas são essas mudanças?Os estudos convencionais costumam considerar que há muita mobilidade social, no sentido em que é normal na nossa sociedade existirem pais que são operários e que têm filhos que são professores. A nossa pesquisa tenta olhar para a história mais alargada destas famílias e observamos que quando essas mudanças se dão, tanto para cima como para baixo, as gerações seguintes têm tendência a voltar para a posição original na pirâmide social. A diferença entre os estudos convencionais e o estudo dos apelidos é que os primeiros olham apenas para a mobilidade social no decurso de uma geração, enquanto os nossos estudos analisam o comportamento de múltiplas gerações. Os dados apontam para que as pessoas tenham entranhada uma espécie de memória dos seus antepassados, mesmo que nunca os tenham conhecido. Daí a convicção de que para poder fazer uma previsão sobre o futuro dos seus filhos, seria muito importante ter dados sobre os avós e demais família. O interessante acerca desta perspectiva é a ideia de que, embora a única verdadeira interacção que os filhos tenham seja com os pais, eles estão de certa forma inscritos numa rede social mais alargada. Não pode ser a projecção dos antepassados, despertando a vontade de seguir ou contrariar as suas pisadas?É muito difícil dizer. Pode funcionar como uma espécie de transmissão cultural familiar, ou seja, as pessoas que os antepassados foram pode levar a que os pais tenham determinadas expectativas e modelos para os filhos, ou pode realmente ter a ver com os genes. É muito difícil poder tirar esse tipo de conclusões a partir da nossa pesquisa. O que eu posso afirmar a partir dos dados que analisámos em Inglaterra, é que os recursos que os filhos recebem dos pais tendem a ter uma importância muito menor do que o que se costuma pensar. Quer seja o dinheiro que os pais têm, o tempo que passam com os filhos ou a qualidade da escola em que os conseguem matricular, todos esses factores parecem ter um papel muito mais reduzido do que o que costumamos assumir. De uma certa forma, é uma visão que torna o mundo mais justo, porque quer dizer que os chavões tipo “tens pais ricos e foste para uma boa escola, tens a vida garantida” não funcionam. Pelo menos, é o que temos vindo a descobrir. Vai provocar uma debandada das escolas privadas![risos] Isto é bastante controverso e nós sentimo-lo até ao candidatarmo-nos a financiamento para estas investigações. É muito difícil arranjar financiamento, porque as pessoas dizem-nos que não estão interessadas no estudo da genética, que não querem saber o quão difícil é mudar a vida das pessoas, estão interessadas é em como mudar a vida das pessoas. Este tipo de estudos das ciências sociais assenta quase sempre em como mudar o mundo e há até um preconceito inerente a estas áreas que leva a que seja sempre muito mais fácil publicar estudos que sugerem maiores mudanças na mobilidade social do que o contrário. Propõe uma visão quase fatalista. Prefiro ter uma visão optimista sobre o assunto. Por exemplo, no sul da Europa há hoje uma crise de natalidade. Uma das razões para essa crise é o incrível peso da responsabilidade que recai sobre os pais. Sentem que se não derem aos filhos todas as condições, se não estiverem sempre a prestar-lhes atenção ou a impedi-los de verem demasiada televisão ou não os inscreverem na melhor escola possível, isso trará consequências negativas. Por isso parece-me até libertador podermos pensar que os filhos são o que são e que há sempre muita aleatoriedade e retirarmos um pouco a responsabilidade aos pais de tentarem moldar o futuro dos filhos. Se quiserem, tenham mais filhos! A própria genética prevê que os filhos sejam bastante diferentes entre si, por isso há que aproveitar os filhos e não sentir esse peso. E se olharmos para os nossos avós, eles não tinham essa preocupação de monitorizar os filhos a cada instante, é um conceito recente. Aqui na Califórnia, por exemplo, os pais até sentem a responsabilidade de verem os filhos a jogar futebol, de assistirem enquanto os filhos brincam. E parece-me que também é uma visão mais justa do mundo porque evita essa presunção de que são os pais e o seu estatuto que definem o futuro dos filhos, que abrem portas ou arranjam oportunidades. Os dados a que temos acesso mostram, em certos momentos, sociedades abertas e em que existe uma certa possibilidade de mobilidade social a curto-prazo. No mínimo, esta ideia de imutabilidade frustra, e baralha, políticos de todo o mundo. [risos] Se esta teoria de que a herança genética do talento é um factor relevante se provar correcta, a maior consequência em termos de mobilidade social está relacionada com o casamento, porque quer dizer que se uma pessoa se casar com alguém de “capacidade aleatória” haverá maior possibilidades de ocorrer mobilidade social. Explicando de outra forma, pensar assim quer dizer que uma pessoa que tenha um diploma universitário tem uma maior probabilidade de casar com alguém que não tem um, porque é isso que ditam as estatísticas. Mas o que observamos hoje é que quem possui uma licenciatura casa quase sempre com alguém do mesmo estatuto. E o que notamos a nível genético é que quanto mais próximo em termos de estatuto social for um casamento, maior será a marca desse estatuto nos filhos desse casamento. Por outro lado, se pensarmos num “acasalamento aleatório”, a correlação dos estatutos sociais a longo prazo será muito diferente. O que estou a tentar dizer é que uma das características importantes de qualquer sociedade é a diversidade dos casamentos. E quanto menor for essa diversidade, menor será também a mobilidade social. Um dado interessante é que hoje essa diversidade é muito pequena. Uma das razões é a maior facilidade em encontrar alguém dentro dos mesmos parâmetros sociais e educacionais, porque no século XIX as discrepâncias a nível educativo eram imensamente maiores: basta dizer que as mulheres não frequentavam as universidades. Na verdade, dada a actual proximidade dos casamentos a nível social, e a cada vez maior facilidade em escolher exactamente o tipo de parceiro que é parecido connosco, teme-se que a mobilidade social possa começar a ser negativa, porque há uma tendência muito grande para a estagnação. Esta “proximidade de acasalamento” está ligada também a maiores desigualdades, porque os filhos das elites e os filhos dos pobres estarão sempre muito mais condicionados pela sua posição social. A nossa pesquisa identificou fenómenos ligados a isto também na Inglaterra do século XIX onde, não obstante as maiores diferenças e contrastes em termos educativos, já se notava uma tendência para os homens mais cultos casarem com as irmãs de outros homens cultos. É um mito que no século XIX era fácil a mulheres bonitas de classes baixas conseguirem casar com um homem de uma classe superior. Creio que uma das principais razões para a mobilidade social ser tão difícil é exactamente este padrão consolidado de casamentos. Uma outra conclusão que retirámos da nossa pesquisa, e que parece ser transversal a todas as sociedades, é que, no caso das pessoas que estão no 1% mais baixo da sociedade, os seus filhos têm sempre tendência a melhorar. Não se vislumbram provas de grilhetas que prendam as pessoas à pobreza mais extrema. E isso é incrível. E os que na geração seguinte vão ocupar esses lugares da base da pirâmide estão normalmente em melhor situação na geração anterior. Assim, vemos que as classes sociais mais baixas se vão renovando de geração para geração. E isso é muito estranho se pensarmos em termos dos recursos que os pais dão aos filhos, mas faz muito mais sentido se o encararmos como uma questão genética. Voltando à educação: o facto de a democratização do acesso à educação ser historicamente tão recente não distorce os vossos resultados? São 100 anos nos 500 que estudou. Os dados apontam para que, em Inglaterra, a introdução do ensino universal em 1910 não tenha tido um grande impacto em termos de mobilidade social, porque tendencialmente as famílias mais pobres eram também as que mais ficavam pela escolaridade mínima. A abertura do acesso ao ensino não fez com que de repente muito mais crianças tivessem acesso a posições superiores na hierarquia social. Normalmente deixavam a escola aos 14 ou 15 anos. Mas há casos, até anteriores, de escalada social de famílias de classes muito baixas, que conseguem chegar a empregados de balcão ou funcionários públicos, e daí a advogados ou equivalente. Mas essas histórias de sucesso não apagam o facto de que, mesmo com a escola pública, muito poucas famílias pobres conseguiam tirar partido dessa oportunidade. E essa descoberta foi surpreendente, porque também achávamos, à partida, que a democratização do ensino, primeiro da escola e depois das universidades, teria tido reflexos na capacidade de mobilidade social. Em Inglaterra houve períodos em que o Estado investiu fortemente na educação, mas não vemos resultados disso no que toca à mobilidade social. A análise centrou-se nas famílias de classes superiores. Isso não coloca também problemas em relação às extrapolações?Essas são as famílias que têm registos melhores e mais completos. Mas em Inglaterra, por exemplo, também é possível estudar os apelidos das famílias das classes mais baixas, e os padrões de mobilidade social parecem ser os mesmos. À medida que recuamos, os apelidos das famílias mais pobres não são muito difíceis de seguir?Absolutamente. Aliás, na Suécia, outra das sociedades sobre as quais dispomos de informação, as pessoas comuns nem tinham apelidos até ao início do século XX. Felizmente em Inglaterra os apelidos tornaram-se habituais a partir do século XIV e portanto é-nos possível localizar os apelidos ao longo da História, mesmo os das pessoas comuns. Para outros casos não é tão fácil, claro. Um outro exemplo é o do Chile, que também investigámos, e onde os habitantes nativos, os Mapuches, tinham apelidos muito distintos e fáceis de detectar nos arquivos. Mas é muito mais simples rastrear os apelidos das elites. Uma das críticas que o livro tem recebido é exactamente a de supostamente só mostrar a imobilidade do topo da sociedade, mas posso dizer-lhe que quando se analisa o outro lado, os resultados são bastante simétricos. Se no caso da Suécia houve dificuldade em rastrear os apelidos das famílias mais pobres, como é possível fazer deduções sobre a mobilidade social no país desde 1700?As pessoas mais pobres tinham apelidos, mas eram patronímicos. Sven, filho de Anderson, era Sven Anderson, mas o seu filho Gunnar seria Gunnar Svenson. O que podemos fazer é usar estes apelidos terminados em –son como um grupo e compará-lo com os apelidos das famílias aristocratas ou dos licenciados. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas isso não faz com que só registemos a mobilidade social, ou falta dela, das elites da Suécia? Como podemos perceber o que aconteceu às famílias mais pobres?Efectivamente, o que examinámos na Suécia entre 1700 e 1900 foi principalmente a mobilidade descendente das elites – mas isso também nos ajuda a compreender a mobilidade ascendente das classes mais baixas. Os operários não conseguem subir na pirâmide social se as elites não mostrarem o movimento contrário. Quanto mais persistente for o estatuto da elite, mais persistente será o estatuto das classes inferiores. Já pensou em alargar o estudo ao continente africano?É muito difícil, porque a informação é muito escassa. Mas descobrimos uma curiosidade relativa a África, que é que nos Estados Unidos são as elites quem tem mais propensão para manter os seus apelidos de origem africana. Portanto, não parece haver algum tipo de conotação racial relativa ao estatuto social. Em Inglaterra, aliás, os apelidos africanos estão também muito presentes nas elites actuais. Isso tem a ver com a própria natureza das migrações e das políticas subjacentes, porque nos dias de hoje nos emigrantes de África para os Estados Unidos ou para a Inglaterra já encontramos enfermeiros, médicos e engenheiros. A educação superior é até muitas vezes o que lhes permite entrar nesses países. E nos Estados Unidos é possível discernir entre os apelidos africanos de origem inglesa, que eram os dos escravos, e os apelidos africanos recentes. O ex-Presidente Obama, por exemplo, é um homem de ascendência africana cujo pai emigrou para os Estados Unidos, e é uma pessoa que encaixa perfeitamente no perfil desse grupo, que tem efectivamente um estatuto social médio bastante elevado. A entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
O novo West Side Story na Broadway vai ser de Anne Teresa de Keersmaeker
Criadora belga junta-se ao encenador Ivo van Hove para uma nova abordagem ao "clássico" que é a coreografia original de Jerome Robbins para apresentar em 2019 em Nova Iorque. (...)

O novo West Side Story na Broadway vai ser de Anne Teresa de Keersmaeker
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Criadora belga junta-se ao encenador Ivo van Hove para uma nova abordagem ao "clássico" que é a coreografia original de Jerome Robbins para apresentar em 2019 em Nova Iorque.
TEXTO: O regresso à Broadway de West Side Story, o emblemático musical de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, vai fazer-se pela mão de dois belgas, a coreógrafa Anne Teresa de Keersmaeker e o encenador Ivo van Hove. Só sobe a um palco ainda não identificado dentro de ano e meio, mas já é dado como certo que seja uma abordagem muito diferente da que Jerome Robbins eternizou na sua primeira encenação de 1957 e à qual as várias “revivals” desde então têm ido beber. Os Jets e os Sharks, Tony e Maria, avatares de Romeu e Julieta e Montéquios e Capuletos dos anos 1950 de Nova Iorque, voltam à Broadway em Dezembro de 2019, como anunciou o produtor Scott Rudin há uma semana. Será a primeira vez que De Keersmaeker e Van Hove colaboram. O retorno à morada dramatúrgica do Upper West Side foi uma ideia do próprio encenador e a mesma publicação regista que o seu propósito é descolar West Side Story da sua matriz coreográfica, que muito elogiam. Afinal, “é um clássico em si mesmo” e a coreográfica é outro “clássico”, diz a coreógrafa à Hollywood Reporter. Jerome Robbins estabeleceu uma base cheia de rua e Anne Teresa De Keersmaeker, que classifica este como o “projecto ideal” para a juntar a Ivo van Hove, quer explorar o lado físico com o “desafio de oferecer uma nova leitura”, sobre a qual, como é expectável, ainda pouco quer revelar. Mas garante: “Não temos qualquer intenção de fazer algo que é contra Jerome Robbins”, mas sim uma “versão alternativa”. “Queremos trazê-la para o século XXI”. Maria é de Porto Rico e um beijo com um americano fá-lo ver quão maravilhoso pode ser um som. Tony acaba de conhecer essa rapariga chamada Maria e o resto é história, de gangues, racismo, imigração - como canta Anita, a sua frustração por vezes fá-la desejar que a terra natal a que devota o coração se afunde no oceano - e amores desavindos, uma jazida que continua rica, explorada nos palcos em 1964, 1980 e 2009 na Broadway, e 2008 no West End. Na próxima temporada estará então no teatro e, quem sabe, terá concorrência cinematográfica – Steven Spielberg e Tony Kushner estão a trabalhar, ainda sem data, num remake da história de Arthur Laurents que Robert Wise e Robbins levaram ao cinema em 1961 para vencer o Óscar de Melhor Filme. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas para já, West Side Story será mesmo da Broadway e dos belgas. Uma coreógrafa que tem no seu trabalho uma forte pesquisa de relação entre corpo e música e que em 2012, ano em que foi Artista na Cidade de Lisboa, teve direito a retrospectiva em Portugal, e um encenador de origem flamenga que montou com David Bowie o seu canto de cisne teatral, o musical Lazarus, e já foi premiado por The Crucible, também na Broadway. Anne Teresa de Keersmaeker e Ivo van Hove vão começar as suas antestreias a 10 de Dezembro do próximo ano mas a estreia oficial está agendada para 6 de Fevereiro. A ideia é que “artistas de renome do presente tenham uma oportunidade de fazer algo de novo a partir das grandes obras do passado”, como disse Rudin à revista Hollywood Reporter. O trio Sondheim, Bernstein (1918-1990) e Robbins (1918–1998) está na origem de um dos clássicos do teatro, e também do cinema, do século XX e os primeiros – ou seus familiares – saudaram este regresso a West Side Story por uma nova equipa. Mas como assinalou o New York Times, nem a família nem a Fundação Jerome Robbins se pronunciaram ainda publicamente sobre este retorno e sua premissa “alternativa” do seu trabalho.
REFERÊNCIAS:
“Tenho de saber quem sou. E quem sou é uma coisa interminável”
Acabada de chegar do Rio de Janeiro, onde viveu quatro anos, Alexandra Lucas Coelho preparava-se para concluir o seu grande romance sobre o Brasil, Deus Dará, quando uma ideia obsessiva se lhe meteu no caminho: a história de uma mulher que quer matar um homem. (...)

“Tenho de saber quem sou. E quem sou é uma coisa interminável”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.12
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Acabada de chegar do Rio de Janeiro, onde viveu quatro anos, Alexandra Lucas Coelho preparava-se para concluir o seu grande romance sobre o Brasil, Deus Dará, quando uma ideia obsessiva se lhe meteu no caminho: a história de uma mulher que quer matar um homem.
TEXTO: Viajou pelo Médio Oriente, o Afeganistão e o México, viveu em Jerusalém e no Rio de Janeiro, e depois num minúsculo quintal no Alentejo. Escreveu quatro livros de viagem, um romance de amor, outro de fúria, está a meio de um terceiro, onde o pré-apocalipse no Brasil é contado numa língua imaginária, atlântica. É uma escritora que vem do futuro, a correr para o passado, em expansão por várias vidas, tão suas como a própria morte. Em movimento, de um lugar para o outro e da realidade para a ficção, embora não goste da palavra ficção, nem de verosimilhança. Prefere a verdade, mesmo inventada. Uma conversa com Alexandra Lucas Coelho. Assim nasceu, em dois meses, O Meu Amante de Domingo, publicado em Portugal pela Tinta da China e já com tradução prevista, pelo menos, em francês, pelo grupo editorial Éditions du Seuil. Falámos com Alexandra Lucas Coelho em Lisboa, ao chegar da Sérvia, depois de meses no Alentejo, e antes de partir de novo para o Brasil e Gaza. Porque não paras?Em primeiro lugar, porque posso. Não tenho filhos, nem ninguém que dependa de mim. E em segundo lugar porque quero. Sendo ateia e não acreditando noutra vida, sempre pensei que seria bom ter várias vidas nesta. Não quero encerrar-me numa possibilidade. Atrai-te a ideia de recomeço?Atrai-me a ideia de estar em movimento. Não necessariamente geográfico. Estar em movimento é um processo de expansão. Revejo-me muito na lógica do movimento antropofágico brasileiro, que vem dos índios. Comer o outro é uma forma de nos expandirmos. Por isso sempre me afligiu todo o processo que nos tenta reduzir, que nos tenta encaixar. Sempre vivi muito contra todos esses mecanismos que a sociedade naturalmente tenta impor aos indivíduos. Quando sentes que a missão está cumprida, partes para outro projecto. Não é estratégico, é muito pulsional. Porque não estou a tentar chegar a lado nenhum. Não me interessa o desfecho, mas o processo. Tenho horror a essa ideia, da sociedade capitalista, de que se vai ascendendo. Tenho horror à ideia de carreira. O poder nunca me interessou. Interessa-me a expansão. Das minhas possibilidades. Lendo o que escreves, percebe-se que as viagens e os acontecimentos não se sucedem por acaso, mas de acordo com uma lógica, como se uma coisa levasse a outra. É um mapa que vou construindo. Não vejo isto como uma sequência errática, talvez porque sempre soube exactamente o que queria fazer. Queria sair para o mundo e escrever. Isso determinou toda a forma como eu vivi. São duas pulsões tão fortes, que organizam tudo o resto. Nunca me senti perdida. O jornalismo foi uma etapa nesse percurso?O jornalismo foi uma forma de fazer isso, que agora se prolonga nos livros. Para mim, não se trata de uma interrupção. Mas implica um olhar diferente sobre as coisas e os lugares?Sim, mas porque se exige aos jornalistas que sejam diferentes das outras pessoas? Todos os escritores escrevem com tudo aquilo que são. O seu passado, a sua história. Mas as pessoas acham estranho que os jornalistas ponham no que escrevem algo da sua experiência jornalística. Porque se há-de estranhar que eu escreva sobre Gaza, se Gaza faz parte da minha vida, da minha biografia?Essas experiências passam agora por um processo de transfiguração?Para mim, o que sempre distinguiu o jornalismo da literatura é a liberdade. O jornalismo tem uma série de regras. O que se passa agora é que não tenho de obedecer a regra nenhuma. Estive recentemente, para escrever um conto, com total liberdade, nos Balcãs, uma zona que tinha visitado como repórter. Usei algumas técnicas da reportagem, como a forma como me oriento nos lugares, como procuro as pessoas. Mas depois não conversei com elas como se estivesse a fazer uma reportagem. Não estavas tão preocupada em recolher informações factuais?O texto que escrevi é a fusão que me interessa fazer. Tem elementos totalmente inventados, personagens que não existem, tem personagens do meu passado pessoal, alterados e misturados com a história, tem elementos da minha vida como repórter, e tem personagens reais. Isso tudo misturado chama-se ficção. Não gosto da palavra ficção, porque é demasiado redutora. Prefiro dizer: isto é um texto inteiramente livre, onde posso usar os elementos que me apetecer. Neste caso é um conto, podia ser um romance. A fronteira é sempre a liberdade. E o pacto que eu estabeleço com o leitor é esse. Nunca se percebe muito bem o que é da minha história e o que não é. Mas trata-se sempre de um trabalho de autobiografia. É o ponto de confluência em que a biografia se cruza com o lugar e se cruza com a História. Na reportagem, o elemento autobiográfico é muito reduzido, existe apenas no nosso olhar. Como leitor, a minha impressão é de que no anterior romance, E a Noite Roda, há uma ligação com a realidade evidente, e neste último, O Meu Amante de Domingo, a ligação é mais apagada. Este é o momento da transição para uma nova fase?Não vejo isso como uma transição. É um processo, em que certos elementos podem estar mais ou menos presentes. Os livros interligam-se. Eu estava a escrever um sobre o Brasil, mas ele resistia. Até que tive a ideia de escrever uma novela de sacanagem, em que uma mulher ia ter vários amantes, porque queria matar um homem. Isto começou a incrustar-se de tal forma, que telefonei à minha editora e disse: vou parar o romance e escrever outra coisa. O romance do Brasil tinha 200 páginas escritas, e tenciono escrever mais 200 ou 300. Vai ser parcialmente anterior a este e parcialmente posterior. E há uma ligação entre os dois. Eu queria na verdade construir uma ligação entre todos. Uma continuidade?Em O Meu Amante de Domingo a narradora corresponde-se com uma portuguesa que está a fazer pesquisa no Rio de Janeiro e que é amiga de um músico brasileiro de ascendência sírio-libanesa, que tinha decidido ir montar um centro cultural na Síria, o Karim. É o mesmo Karim que, em E a Noite Roda, é o anfitrião da narradora, quando ela se instala em Damasco, na casa de um brasileiro. No romance do Brasil, ele teria voltado, por causa da guerra. Dois irmãos dele são protagonistas do livro, e a sua casa no Rio de Janeiro é o centro do livro. Esse Karim tem alguma relação com a realidade?É totalmente inventado. Como nasceu O Meu Amante de Domingo?Nasceu da circunstância de eu estar numa casa, no meio do Alentejo, que era uma cozinha que se prolongava num quintal cercado por um muro. Vinha do Rio de Janeiro, uma cidade onde tudo me puxa para fora, para um lugar onde tudo me puxa para dentro. Este livro resultou disso. E do impacto, e da fúria que se foi gerando com a minha chegada a Portugal. A forma como a narradora fala reflecte esse estado de espírito?Algumas pessoas disseram que esta mulher tem uma linguagem desbragada, que significa que ela não domina aquilo que quer dizer. Ora eu acho que ela domina o que quer dizer. Por isso usa aquela linguagem. Acho que se fosse um homem ninguém diria que usa uma linguagem desbragada. Uma coisa são as consequências que teve, outra é a tua motivação. Sim, quero falar da minha motivação. No sexo confluem algumas das coisas mais poderosas sobre as quais alguém pode querer escrever. Tudo se projecta ali de alguma maneira. A vida e a morte, o espectro todo entre o prazer e a dor, todas as cambiantes de fracasso, dominação, violência, amor, entrega, recusa, medo, todos os fantasmas que se podem projectar. O sexo tem um poder metafórico enorme. E o uso de palavrões, habitual no Porto, refere-se a um universo alegórico em que todas as circunstancias da vida são traduzidas para situações sexuais, que significam relações de poder. Esta mulher usa palavrões porque é uma mulher do norte e é uma mulher em estado de fúria. Os palavrões estão ligados à fúria?Estão ligados à fúria e à pulsão de matar que atravessa o livro. De vingança. Matar, mas como pulsão de revolta. E de vitalidade. Porque é disso que se trata. Todo o processo deste livro é um processo de como ficar vivo. É uma mulher de 50 anos que quer matar, como forma de se manter forte, de sobreviver ao que lhe está a acontecer. Nisso, ela é mais do que si própria?Interessou-me criar uma narradora ligeiramente mais velha do que eu, mas na mesma faixa etária. Estas mulheres fazem parte da minha vida. A minha vida também é isto. E eu quero escrever sobre aquilo que está à minha volta, que me move e me motiva. Acho normal que tendo eu 47 anos queira escrever sobre esse facto. Temeste que isso não fosse compreendido?A 30 de Setembro acabei de escrever o livro e enviei-o para a Tinta da China. Mas mal o mandei decidi que não queria publicá-lo. Porquê?Estava exausta. Foi um processo fisicamente tão violento, eu trabalhei 12 horas por dia, li o texto vezes sem conta, eu já não podia com esta mulher. Só pensava: está péssimo e eu não o vou publicar. Foi violento fazer emergir isto tudo. Mesmo os diálogos. Para mim, a zona mais violenta do livro é o diálogo dela com o futuro Nobel. Eu nunca tinha escrito diálogos assim. Não sei muito bem de onde é que estas coisas vêm. De onde vem essa energia?A maior parte desse diálogo foi escrito logo exactamente assim. Saí de casa para ir fazer ginástica, veio-me uma frase à cabeça, voltei para o computador e escrevi 5 mil caracteres. Escrita automatica. Sim. Quase não trabalhei esse texto. A crítica foi positiva. Esses diálogos funcionaram, as pessoas identificaram-se. A questão do sexo foi pouco abordada pela crítica. Como se houvesse uma espécie de desconforto ou pudor. Por ser uma mulher a falar de sexo, com palavrões?Talvez o uso da expressão linguagem desbragada tenha a ver com isso. Uma mulher é suposto ser contida. Mas esta personagem representa uma mulher desobediente. Claro, não aceita esse lugar. E eu sinto que, ao contrário do que me aconteceu como repórter, em que não tenho memória de ter sido preterida ou tratada de forma incorrecta por ser mulher… Pelo contrário, em algumas situações isso foi até uma vantagem, nalgumas zonas do mundo, como por exemplo o Afeganistão, ao contrário do que possa parecer. Nunca tive nenhum director que me dissesse, não podes ir para a guerra do Iraque porque és mulher. Como escritora está a ser diferente?É uma conjugação de duas coisas: eu ter um percurso de quase 30 anos como jornalista, e ser mulher. A conjugação destas duas coisas permitiu por exemplo que o senhor secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, na entrega do prémio APE, depois de ter feito na cerimónia declarações que confundem o Estado com o Governo, etc, me ter dito à parte que o meu discurso era primário. Não acredito que ele o fizesse se eu fosse um homem e não fosse jornalista. Porquê?Acho que ele o fez com o menosprezo de quem não leva a sério a pessoa que tem à sua frente, por eu ser uma repórter que começou há pouco tempo a publicar romances, e por eu ser mulher. A conjugação destas duas coisas faz com que, na hierarquia que imagino que presida ao comportamento do senhor secretário de Estado, ele me tenha tratado daquela forma. Não acredito que o tivesse feito com Mário de Carvalho, ou Lobo Antunes, se algum deles tivesse proferido um discurso crítico em relação ao Governo, ou ao Presidente da República, como eu fiz. Ele chegou ali, disse aquela série de disparates inacreditáveis, que noutras condições poderiam ter levado muito boa gente a questionar como é que um secretário de estado confunde Estado com governo, e afirma que um escritor que recebe um prémio de uma associação que também tem um fundo do Estado, deveria mostrar-se agradecido àquele Governo. A gravidade disto é extrema. É esse sentimento que está neste livro? A forma como sentes que as mulheres são tratadas, como o país é tratado. Esta fúria também é essa?Também é essa. Aquilo que aconteceu na cerimónia do prémio da APE esteve no meu espírito certamente quando escrevi este livro. O comportamento daquele governante, a sobranceria, o disparate, a arrogância daquele comportamento, e a falta de consequência pública e política daquele comportamento. E se eu quiser interpretar isso de uma forma lata percebo que aconteceu comigo porque mil outras coisas mais graves estavam a acontecer em Portugal. E não há espaço para noticiar tudo. O quadro era tão grave, que isto não era suficientemente grave para ter sido um caso. Há 10 anos teria sido impossível esta história não ter sido tratada por nenhum jornal. Mas nessa altura a situação do país não era o que é hoje, nem os jornalistas ganhavam o que ganham, nem tinham para fazer o que hoje têm. Hoje, quem está nas redacções trabalha 12 horas por dia e ganha 600 euros por mês, quando ganha. Também está no livro esse sentimento de injustiça e de impotência? As pessoas não se revoltarem, a passividade?A passividade, claro. Este episódio lamentável do prémio da APE aconteceu no dia 11 de Abril. Eu voltei do Brasil em Março. A cronologia é esta. Vinha de uma cidade como o Rio de Janeiro, e de repente estava ali num quintal com pouco mais de um metro quadrado, com um muro à volta. E a ver o que é hoje uma pequena cidade alentejana. Como o silêncio que eu lá buscava corresponde à desertificação de quem sempre foi dali e tem de ir para fora para arranjar trabalho. O fracasso que representa. O livro é o resultado de tudo isso. Mas há no livro uma certa proposta de redenção. Onde vês isso?Na revolta desta mulher. Não é necessariamente uma redenção. O que esta mulher diz é: eu fico viva. Eu posso dizer que não. E quero morrer. Há uma frase neste último filme de Godard, que creio que vem da Antígona - “Estou aqui para dizer ‘Não’ e para morrer”. A afirmação da vida passa por isso, por ter direito à nossa própria morte. Isto é muito importante para mim, que não sou crente. Se não vou delegar nada num deus, tenho de acreditar que a responsabilidade é toda minha, a força é minha, eu sou comandante de mim própria. Por isso me aborrece tanto que alguém me tente arrumar numa gaveta, me diga: tu és repórter, deixa-te estar aí quietinha. Ninguém me vem dizer que eu tenho de ficar ali quietinha. Porque desde criança que ninguém me vem dizer isso. É uma coisa vital para mim. Não me venham dizer para ficar ali quietinha, porque eu não vou ficar ali quietinha. Tens um problema com a autoridade. Exactamente, tenho um problema com a autoridade. Não quero mandar em ninguém, e não quero que ninguém mande em mim. Esta personagem parece representar uma revolta contra a autoridade. A própria ideia de vingança significa afirmação da sua vontade. Tenho horror à ideia de ficar no lugar. Como assim, tens de ficar no teu lugar? Eu tenho é de saber quem sou. E quem eu sou é uma coisa interminável. O poder sobre mim própria deve ser absoluto. É o único poder que me interessa. E isso está em causa?Está em causa permanentemente. Está em causa perante a Segurança Social, que me penhora a conta bancária sem me perguntar nada, perante o meu banco, perante os patrões com quem as pessoas têm de lidar ao longo da vida, todos os sistemas hierárquicos, todas as tentativas de dominação, as nossas relações, tudo. Mas ninguém é totalmente autónomo. Não, ninguém é. É uma luta constante, contra não só tudo aquilo que me tenta fragilizar exteriormente, seja o Estado, seja a polícia, sejam as autoridades, mas também em relação às minhas próprias vulnerabilidades e fraquezas. É um duelo constante. Mas é possível vencer. Sim, é possível. Quando eu achar que não é possível, dou um tiro na cabeça. E eu quero ter o direito de dar um tiro na cabeça. Em última análise, a morte é nossa. A morte é nossa. A vida é minha e a morte é minha. Sempre que te atiram para um lugar de vazio, te tentam reduzir, ao teu lugar, ao teu papel, ao teu caminho, tudo isso são pequenas mortes. Mas depois é preciso construir um colectivo, uma comunidade, porque vivemos todos juntos. Uma ideia de política. Este livro é político porque contém uma afirmação de força, de não-submissão. Há a responsabilidade de tentar construir alguma coisa. Sim, como se articula a liberdade do indivíduo, essa autonomia que eu defendo, com outra coisa em que também acredito - a dádiva que temos de ter em relação aos outros, porque vivemos com os outros. Eu não sou uma eremita. Quando foste para o Brasil, levavas uma grande expectativa em relação à força e entusiasmo colectivo daquele país. Depois houve uma desilusão?Não houve nenhuma desilusão. Apenas um processo de conhecer melhor o país onde estava. Primeiro há o impacto brutal daquela natureza. Aquilo tudo atravessa-nos. E a minha atitude era essa: eu queria deixar-me trespassar. A língua, a natureza, aquela energia. Eu queria sofrer o impacto de tudo aquilo. Fisicamente e não só. E queria ver o efeito que isso teria em mim. Para onde me atiraria. O que resultaria do meu encontro com aquele lugar. Sempre senti que foi uma grande sorte eu ter ido para o Brasil depois dos 40 anos. Não fui directamente, saí de Portugal, dei uma volta ao mundo e fui para o Brasil. E isso libertou-me daquela atitude dos portugueses que oscila entre a subserviência e a arrogância. O problema clássico da relação do ex-colonizador com o ex-colonizado. Exactamente. Ou fica todo o tempo a pedir desculpa, ou mantém uma postura sobranceira. Ter corrido o mundo libertou-te disso, por teres conhecido outras ex-colónias?Sim, eu andei a cobrir o colonialismo dos outros. Isso libertou-me para enfrentar a minha própria história. Para ser dura, ou irónica, quando tiver de ser. O Brasil foi absolutamente libertador para mim. Acho que não teria escrito O Meu Amante de Domingo se não tivesse vivido no Brasil. Libertou-te de que forma?A vida pode ser tão dura no Brasil… Claro que pode ser muito dura em muitos lugares do mundo, mas em talvez nenhum outro lugar eu tenha sentido como a vida pode ser dura, mesmo assim, haver alegria. E como essa alegria triunfa o tempo todo sobre a tristeza. A alegria no Brasil é o resultado de quem conheceu o fundo do fundo. É uma alegria que vem da tristeza, que a venceu. Por isso é uma alegria libertadora?Sim, eu passei a estar-me nas tintas para o que as pessoas achassem. Foi mais fácil começar a dizer “Eu”. E projectou-me para a nossa própria História, deu-me uma dimensão dessa História muito diferente, como uma outra possibilidade. Fez-te olhar a identidade portuguesa de forma diferente?Fez-me ver, como nunca, como a identidade está em movimento. E como ela é constantemente alterada. Isto é uma ideia que eu trouxe do México, na verdade. O México foi uma viagem decisiva para mim. É o México que me ajuda a decidir ir para o Brasil. Porquê?Esse encontro do colonizador com o Novo Mundo, com o índio, aquilo a Le Clezio chama o encontro do ouro com a magia. Foi uma viagem absolutamente mágica na minha vida. Foi nesse momento, em Maio de 2010, que eu decidi ir para o Brasil. Porque queria esse encontro, mas transportado para a nossa própria História, não a dos espanhóis. Não tinhas sentido isso noutras viagens, por exemplo no Médio Oriente?Não de uma forma tão física, tão carnal. O corpo no Médio Oriente não existe da mesma maneira. No México eu tive essa sensação. É como se, a certa altura, eu entregasse o próprio corpo. Deixo o meu corpo ali, seja o que for. No Brasil isso concretizou-se de uma forma muito poderosa. Isso devia-se apenas à surpresa que o Brasil foi para ti, ou também à mudança que o próprio Brasil experimentava?É a confluência de todas essas coisas, daquilo que eu trazia, do que aconteceu, do impacto que aquele território teve na minha biografia e na nossa História de portugueses. Nas crónicas via-se que estavas muito atenta ao que mudava no Brasil. Foi isso que eu achei quase mágico. Eu cheguei ao Brasil em 2010, numa altura em que o país se encontrava numa espécie de pujança todopoderosa. Os preços dispararam, tudo entrou numa loucura de consumo brutal. Uma euforia total. Simultaneamente eu estava a aterrar naquilo que podia ser uma terceira via do mundo (quando cheguei à praça Tahrir, no Cairo, os miúdos falavam-me do Lula). O Brasil parecia ser essa possibilidade de uma terceira via, entre os capitalismo e o socialismo, uma espécie de lugar novo que se podia construir à esquerda, mas na verdade eu aterrei numa das sociedades mais capitalistas do mundo. Aquilo era o auge de um capitalismo. Aquele capitalismo. Mas não deixava de ser desenvolvimento. Aqueles 40 milhões que emergiram da pobreza emergiram à custa de um brutal incentivo ao consumo, que depois não se reflectia em avanços na Educação, Saúde, etc. Nesse momento eu senti que havia uma atmosfera pré-apocalíptica. Para ti isso foi uma possibilidade de utopia que falhou?Tornou-se um prisma para ler o mundo. Simultaneamente, o Brasil está completamente voltado para dentro, e é um lugar à parte do mundo. Quem está lá não tem relação nenhuma, leitura nenhuma. Foi muito surpreendente perceber como o Rio de Janeiro, sendo uma cidade gigantesca, é tão provinciana. O Brasil é completamente autónomo, é como se fosse um grande quintal à parte do mundo. Isso é muito exaltante e ao mesmo tempo desesperante. Mas uma das coisas boas do Brasil é que nos rimos daquilo tudo, toda a gente se ri junta. Riem de si próprios. Sim, e isso também é uma boa aprendizagem. Talvez eu tenha perdido aí algum dramatismo. É a ausência de culpa?Sim, eu acho que o Brasil tem um efeito psicanalítico muito interessante na nossa mentalidade de portugueses. Eu, que tenho uma costela bastante melancólica e ansiosa, acho que o Brasil teve um grande efeito terapêutico. O que queres dizer com ver o mundo através do prisma Brasil?Por um lado havia uma autonomia quase infantil, que é fascinante para quem chega. Mas de repente fica-se naquela coisa que é o mundo-Brasil. Deus é brasileiro, há apenas o Brasil e o Universo. À medida que o tempo passa e tudo sedimenta, eu passei a olhar o mundo através do Brasil. Foi aí que eu comecei a sentir aquele clima pré-apocalíptico. O Brasil poderá ser precursor de algumas coisas que vão acontecer a nível global?Não é ser precursor, é uma coisa mais subterrânea. É mais ser antecessor. É como uma lupa. O Brasil deu-me chaves para eu conseguir olhar para determinadas realidades. A viagem que fiz à Amazónia teve para mim esse efeito muito decisivo. É impossível voltar da Amazónia e continuar a olhar para o mundo da mesma forma. O Eduardo Viveros de Castro, um antropólogo muito importante para mim, tem uma visão de fim do mundo próximo. De falência total do planeta. Estamos a correr para isso. O que se vê com essa lupa é o fim do capitalismo?A única coisa que posso dizer é que há um clima pré-apocalíptico e que isso vem da consciência da relação da Natureza com os homens. O Rio é uma cidade completamente à mercê da Natureza. A casa onde eu morava ficava no Cosme Velho, um bairro que na verdade está no meio da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo. No jardim da minha casa havia macacos maiores do que eu, apareceu uma cobra na casa de banho, havia tucanos, árvores gigantescas, quando cai chuva é como se se abatesse uma catarata sobre nós. Temos a sensação de que a selva a todo o momento nos vai engolir, e que estamos a lutar com ela, mas somos ínfimos, porque tudo aquilo é muito mais forte, aquelas raízes, aquelas frutas, aquelas folhas, aquelas cores, aqueles cheiros, aqueles sons. Tudo aquilo é mais forte do que nós. Eu não vivia num apartamento num 5º andar no Leblon, protegido por grades. Eu estava no meio da floresta. Essa sensação de vulnerabilidade estende-se também à organização colectiva, ao sistema político?Sim, o absurdo que é estarmos a pensar que controlamos alguma coisa. Quando vemos as extensões gigantescas de terra que são ocupadas por plantações na Amazónia, os erros gigantescos que estão a ser cometidos…Por outro lado há o facto de 40 milhões de pessoas terem saído da pobreza, nos últimos anos. Esse clima de pré-apocalipse não será relativo? Não depende da perspectiva em que nos colocamos?Claro, as coisas não são preto e branco. Mas os perigos para o planeta não têm nada de relativo. Estamos a falar de coisas bastante objectivas. Para quem tinha fome era um pouco indiferente os perigos para o planeta. Uma forma pessimista de olhar para isto é: com o incentivo ao consumo, a esquerda, ao elevar 40 milhões da pobreza, neutralizou a revolta desses 40 milhões. Que pensarão essas pessoas se alguém lhes for dizer que foi um erro melhorar as suas condições de vida, porque agora perderam a vontade de se revoltarem?Não estou a fazer juízos. As coisas são assim. De facto houve 40 milhões de pessoas que sairam da pobreza, e isso é bom, ponto final. Não tem ‘mas’. Por outro lado, estamos a falar de um país com problemas terríveis de racismo, abusos policiais, violência extrema, onde 70 por cento dos jovens mortos são negros. Um país onde há uma guerra urbana, entre a polícia e os morros, e onde uma esmagadora maioria da população continua a ser sujeita ao que foram séculos de colonialismo, escravatura, repressão racial, ditadura. Tudo isso existe na vida do Brasil de hoje. E tudo isso se tornou pesado para ti pessoalmente? Foi por isso que regressaste?Não, o meu regresso deveu-se, antes de mais, à impossibilidade de viver lá, porque é demasiado caro. A partir do momento em que eu decidi viver com pouco dinheiro e escrever livros, que foi a decisão que eu tomei ao sair da redacção do Público, passou a ser impossível viver no Rio, que se tornou obscenamente caro. Terias ficado, se não fossem os motivos económicos?Talvez. Eu olho para o meu tempo no Brasil sem qualquer mágoa, e é maravilhoso poder voltar. Muitas pessoas importantes para mim estão lá. O Brasil foi, e continua a ser, parte da minha vida. Mas uma coisa que eu senti nos últimos meses que morei no Brasil, é que estava a tornar-se difícil escrever o livro lá. É muito difícil estar lá a viver e a escrever ao mesmo tempo sobre a cidade. Isso foi uma das razões que me fizeram pensar: agora preciso de me afastar. O livro é sobre o Brasil, ou é apenas passado lá?O livro passa-se todo no Rio de Janeiro. Chama-se Deus Dará, tem sete protagonistas, muito diferentes uns dos outros. Um deles é o Karim. Passa-se em sete dias seguidos da semana, embora de anos diferentes, de 2012 a 2014. A acção vai alternando entre eles, em vários pontos da cidade, que é no fundo a principal personagem. Dois dos protagonistas são portugueses. O livro começou a ser escrito antes das manifestações rebentarem no Brasil, e eu alterei-o muito por causa disso. É atravessado por um clima de pré-apocalipse. É escrito a pensar em leitores portugueses ou brasileiros?Não penso nisso. O livro tem várias linguagens. É também uma tentativa de trabalhar o português em várias zonas. Há personagens portuguesas e brasileiras, e há o narrador. A narração é feita na terceira pessoa. Os vários protagonistas têm vários sotaques, porque uns são da favela, outros da burguesia. Mas isto não pretende ser o romance de uma carioca, que eu não sou. Há-de ser exactamente aquilo que é: o romance de uma portuguesa que viveu no Rio de Janeiro, e que está a escrever um livro, com um narrador e sete personagens. Mas de uma portuguesa que se tenta aproximar o mais possível. Nas crónicas que escreveste para o PÚBLICO desde que foste para o Brasil usaste formas de português do Brasil, o que não é comum. Há algum statement nessa opção?Ainda hoje escrevi “autocarro”, porque estava a falar da Serra da Estrela. Se estou a falar do Rio de Janeiro, escrevo “Ônibus”, porque isso permite ver o autocarro no Rio de Janeiro. É uma forma de o transportar para lá. Eu encarei as crónicas como uma possibilidade de experiência da minha própria relação com a língua. Mas o facto de passares a escrever à brasileira…Eu não passei a escrever à brasileira. Escrevia naturalmente. Era uma tentativa de pensar aquilo que eu incorporei naturalmente. O vestígio, a marca que ficou naturalmente na minha língua. Isso ultrapassa a dimensão da língua, significa que também alargamos a nossa identidade? E que devemos abraçar isso?Óbvio. Pois se temos essa possibilidade. Como fala o narrador do teu livro?Escreve num híbrido, que não é uma coisa nem outra. É a fala de um português que foi para o Brasil?Não, o narrador não é português. É um misto, entre uma coisa e outra?É um narrador masculino, mas não é claro o que ele é. Ele diz que escreve numa espécie de língua atlântica. Na verdade aquilo é a língua que eu ouço na minha cabeça. É a língua portuguesa no melhor das suas possibilidades?O narrador escreve exactamente como lhe apetece. Tem essa liberdade. É o verdadeiro narrador omnisciente. E o Karim? Nasceu antes ou depois de teres ido viver para o Brasil?Não sei. Ele nasceu em E a Noite Roda, mas quando comecei a pensar no Deus Dará decidi logo que ele seria um dos protagonistas. E a Noite Roda foi começado em Portugal, mas terminado no Brasil. Eu queria escrever um romance que acontecesse no Rio, porque queria tratar a experiência de lá ter vivido quatro anos. Como o Karim era uma personagem carioca, construí o romance a partir dele. Mas quando comecei a escrever E a Noite Roda eu já sabia que ia para o Brasil. A criação do Karim está associada à ideia de que eu ia para o Brasil, embora eu ainda não morasse lá. E vais conseguir escrever sobre o Rio não estando lá?Na verdade, tudo o que escrevi deste livro, escrevi-o em 40 dias que estive isolada na casa de uma amiga, em Minas Gerais. Escrevi pouquíssimo no Rio. Procuras o silêncio para trabalhar, mas não aguentas mais de dois meses, e procuras de novo o ruído, onde as coisas acontecem, depois de novo o silêncio para escrever sobre elas. Sim, eu funciono por imersões. Foi assim com os romances que escrevi até agora. De repente fechava-me durante três semanas e escrevia intensamente. Mas agora será uma experiência diferente, porque a imersão passa a ser um continuum. Não sei bem como vou gerir isso. O método das imersões funciona para um repórter, que se recolhe de vez em quando para escrever. Para um escritor é difícil escrever intensamente e continuar a viver intensamente. A imersão funciona bem em períodos curtos. Quando começa a ser muito longa, a vida não pode ficar congelada. É preciso misturar a vida nisso. O que queres fazer a partir de agora?Tenho vários livros na cabeça. Depois deste, sobre o Rio de Janeiro, que quero publicar no Outono, vou escrever uma peça de teatro sobre a Síria. Depois um romance passado nos anos 80, sobre a minha adolescência nos Olivais. Será também uma fantasia musical, porque é contado através da música que eu ouvi nos anos 80. Haverá outro romance que tem a ver com a minha infância, os meus avós paternos e a minha relação com a Serra das Estrela e as Penhas Douradas. Será mais interior ainda e mais para trás ainda. Isto é um processo da frente para trás. Porque vais nessa direcção?Isto relaciona-se com a minha convicção de que tudo é biografia. Vamos entrando na biografia cada vez mais. Mas não é linear. Antes disso ainda haverá um romance sobre Gaza. E uma espécie de documentário em livro sobre os imigrantes portugueses no Brasil, embora para isso eu precisasse de um apoio. O que não me vejo mais a escrever é livros de viagens. Já não faz sentido para mim. Mas a realidade está sempre presente em tudo o que escreves. Isso continuará a ser uma marca?Nenhum destes livros, mesmo o da minha infância, que vai atravessar o Estado Novo, pode deixar de ter um elo contemporâneo. Terão sempre um laço com o presente. Não serão romances históricos. Porquê?Porque eu não busco a verosimilhança, mas a verdade. Não me interessa criar um artifício, uma ilusão, uma verosimilhança. Por isso não gosto da palavra “ficção”. Não estou a ver-me a criar ali uma bolha, nos anos 80, sem haver este arco que instale a distância e crie a perspectiva. Se a distância existe em mim, eu quero que essa distância esteja lá também. Porque eu quero lidar com isso mesmo, com o meu olhar sobre essa distância. Eu escrevo sobre os outros e com os outros, mas em última análise escrevo sobre mim. No sentido em que não posso ter a arrogância de escrever sobre mais ninguém. Veja o programa de Minha Língua, Minha Pátria, evento que vai reunir escritores portugueses e brasileiros em São Paulo
REFERÊNCIAS:
Isto é o Haiti
A Baixa de Port-au-Prince é uma das zonas mais perigosas do mundo para um estrangeiro. O povo está zangado. Irritado. Tem fome e diz-se traído. Cinco anos depois do sismo, milhões de pessoas continuam abandonadas. Reportagem de Luis Pedro Nunes e Alfredo Cunha (...)

Isto é o Haiti
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Baixa de Port-au-Prince é uma das zonas mais perigosas do mundo para um estrangeiro. O povo está zangado. Irritado. Tem fome e diz-se traído. Cinco anos depois do sismo, milhões de pessoas continuam abandonadas. Reportagem de Luis Pedro Nunes e Alfredo Cunha
TEXTO: É esta capacidade absurda de espantar que torna a realidade imbatível perante a ficção. Que nos obriga a estar atentos e de espírito aberto para vos poder contar o que está para além do óbvio. E reparem que o “óbvio” aqui era a mais ignóbil das misérias e das desolações: seres humanos largados para viver numa encosta onde nem as pedras se seguram. O inesperado era este momento de discussão filosófica sobre a natureza das revoluções naquele penico do diabo. Há que perceber onde estamos. É gigantesco o pedaço de montanha raspada e semidesértica a 45 minutos de Port-au-Prince que se chega pela estrada mais perigosa e violenta do país, a infame N9. Foi ali, na agora baptizada Canaan 1, que foram recolocados uns cinco mil dos desalojados do sismo de há cinco anos que devastou grande parte da capital do Haiti e fez mais de 200 mil mortos (no total das cinco zonas Cannan, serão 300 mil realojados). O terramoto de 2010 fez, nas contas de então, um milhão e meio de desalojados numa nação que tem a mesma população que Portugal. Estes são os que sobram, pelos vistos. Foram enxotados da cidade para este canto. Quando se chega, tem-se alguma dificuldade em acordar o cérebro para o que ali se passa. O silêncio. A desolação. As barracas espalhadas pela calvície da montanha. O aspecto abandonado. O desprezo e descrença com que somos olhados. Só mais de uma hora depois, Pierre, um ex-motorista da capital, deixa cair a sua história. E sai em golfadas. Ex-emigrante nos EUA. Vida sofrida em Port-au-Prince até ao grande sismo. Exilado para ali. Deram-lhe 20 metros quadrados de terra seca numa encosta íngreme. Não há água. Electricidade. Nem escola para os miúdos. Muito menos emprego. Não perguntem como sobrevive. Ultrapassa sempre a nossa compreensão. “Só queria estar perto do centro da cidade, onde poderia roubar qualquer coisa para dar aos meus filhos. Aqui nem isso há. ” Na cidade, a maioria sobrevive com menos de um euro por dia. Estes estão nas dobras esquecidas do inferno. É aí, numa das saídas, que me cruzo com Leonel. Universitário de 23 anos ali desterrado agarrado ao sonho de fazer algo de bom pelo Haiti. E falamos de Voltaire. Nada bate o absurdo da realidade. Os demónios do inverosímil dançam naquelas encostas e rodopiam ao vento daquele dia que promete chuva. Rolamos pelo centro e as imagens que existiam da devastação do sismo — estas coisas agora medem-se em bombas atómicas — foram cauterizadas. Nada foi reconstruído. O Palácio, o Governo, tribunais. O Estado. O país ruiu. Mas a sua des-existência cicatrizou. Os desalojados já não estão por ali. O que dá a sensação de ter sido “resolvido”. Toda a zona baixa e onde o olhar alcança nas encostas das montanhas que rodeiam a cidade fazem de Port-au-Prince um extraordinário e abominável bairro de lata, um vomitado de pobreza naquele alguidar que podia ser uma baía idílica. É possível imaginar algo pior do que estar aqui onde as pessoas se atropelam sob o lixo, esgotos como larvas em carne podre? Bastou seguir na N9 até Cannan e falar com Pierre. E depois levar um estalo de Voltaire pelo cândido. Leonel: loucura, hein? O cheiro intenso a pneu queimado e a gasolina rasca que se sente sempre e me bloqueia as vias respiratórias deve estar a alucinar-me. Fixemo-nos numa imagem de quotidiano na mais movimentada avenida de Port-au-Prince. É o típico cenário de boulevard africana muito movimentada, cheia de pessoas que vão à sua vida, outras que vendem, outras cheias de pressa, outras sem pressa nenhuma numa amálgama de gente viva, outras com ar perdido, destroços, lixo e poças de água podre. O trânsito é caótico no som e nas cores, mas parado por estar estrangulado algures. A avenida tem o nome do herói libertador do país que foi Jacques Dessalines, um negro que em 1802, e por inspiração da Revolução Francesa, derrotou os próprios franceses fazendo do Haiti a primeira nação escrava a libertar-se nas Américas. Autoproclamou-se imperador e foi assassinado em 1806. Cá fora, as pessoas continuam normalmente em negócios típicos de rame-rame de pobreza e parecem ignorar-nos. Não na cabeça do nosso motorista, um latagão maduro da quase inexistente classe média de Port-au-Prince e que nunca pára por aquelas bandas. Não para o segurança armado que nos foi imposto para andar por ali e contrai os músculos do peito e respira fundo para libertar a adrenalina. Dentro do jipe, a ansiedade deles sente-se. Querem sair da zona rapidamente. O facto de o trânsito estar parado cria-lhes um stress que os faz discutir em crioulo. Não há pontos de fuga para o nosso carro caso seja atacado — tal como descrevem os relatos nos jornais sobre os raptos naquela área. A pistola sai da cintura e está debaixo da perna. Cada vez que se ouve o disparar da máquina fotográfica, o segurança a meu lado (um polícia civil) sente que é uma provocação para quem está lá fora. É isto o Haiti. Algo de trágico. Que vive uma situação mórbida e exaurida. Mas que se sabe que pode explodir para algo muito pior a qualquer momento. E tinham razão para estar nervosos? Sim. Se lermos os relatos de aviso das embaixadas em Port-au-Prince. É uma cidade perigosa, uma das capitais mundiais do rapto. Aquela avenida costuma ser o local ideal para ataques. Aliás, não se vê nenhum carro “bom” ou qualquer branco por ali. Passam-se dias sem que se veja um caucasiano sem que seja num lobby de hotel. Desde o sismo que as prisões ruíram e os criminosos se juntaram numa comunidade, a Cité Soley. Não muito longe desta avenida. Lá passamos. Uns miúdos com aspecto de gangues de Nova Iorque metem-se connosco. Esta é a favela mais perigosa do mundo, segundo a ONU. Soldados brasileiros das Nações Unidas montaram quartel com caveirões (dos que sobem as favelas do Rio) apontadas para lá. As ruas estão desertas. O nosso motorista acelera. Pena o tempo ser pouco. Dias depois, temos uma “dica” para entrar e falar com os “bosses”, mas já não vamos a tempo. Continuemos a rodar. A Baixa de Port-au-Prince já não tem deslocados do sismo, apenas taipais vermelhos a cobrir o que não vai ser reconstruído do sismo de há cinco anos: o palácio presidencial, a catedral, a assembleia. É como se o Estado tivesse sido amputado e agora os cotos sarados. As marcas da sua existência apagadas. Sim, já não há deslocados. Sabemos onde os despejaram, não sabemos?Voltemos ao tal caos que agora já faz algum sentido. Mulheres a cozinhar na rua para venda, homens a passar com um colchão que é um bem precioso, outros com madeira, uma mulher que grita que não quer ser fotografada, muitos “tac-tac” coloridos que agradecem a Jesus a protecção, gente de cara fechada, um homem que passa com uma shot-gun ao peito, pois deve ser segurança algures e todas as lojas têm um ou dois guardas fortemente armados. E o motorista que está cada vez mais nervoso. Temos de ir, temos de ir. Saco do bloco para anotar um apontamento e o segurança manda guardar à bruta. “Non, aqui não, aqui não. Pas photo! Pas photo!” Voltaremos mais vezes à Jean Jacques Dessalines Blv. Será quase sempre assim. Nós a querer sair para trabalhar. Segurança a não deixar. Só o presidente da AMI a manter a calma. Não se estará a exagerar? “Se ficasses aí sozinho, estarias morto e nu aí para trás em menos de uma hora”, diz com ar tranquilo. Relaxem. A maior parte do tempo, o armário estará entretido a trocar mensagens no iPhone e a meter-se com as miúdas nas caixas abertas dos transportes e a fazer sorrisinhos malandros. Eu vi. É o Haiti. É um vislumbre sobre o que se passa na alma colectiva do povo haitiano. Tétrico. Belo. Trágico. Ama-se. Detesta-se. Não se é indiferente. Os haitianos são orgulhosos e violentos. Posso dizer isso? Sim, dizia-me Max Beauvoir, líder supremo do vudu do Haiti, religião que independentemente de se dizer católica ou não é adoptada interiormente pela maioria dos haitianos. “Um povo escravo que se liberta de uns colonos brutais como foram os franceses não pode reger-se pela moral cristã do mal e do bem. Matar, quando se tratou de matar o colono, não podia colocar-se em termos de ser errado. ” O sismo de 2010 é apenas mais um episódio de uma história trágica. E que parece caminhar para uma nova tragédia. Quando se fala dos problemas que atingem o Haiti, não se ouve falar do sismo ou da falta de emprego. Ouve-se, invariavelmente, “os políticos”. O Haiti tem 150 partidos políticos. Tentar perceber a política é, no mínimo, tão absurdo como tentar aventurar-se pela Blvd Jacques Dessalines. A popularidade do Presidente eleito, o cantor Michel Martelim, que tanto prometeu, está pelas horas da amargura. As manifestações violentas repetem-se. Mesmo com todos os recursos constitucionais para evitar um regresso às ditaduras, este é um país que tende para a autocracia, segundo as análises feitas pelas intelligence e que as Foreign Policy publicam. Para mais, os financiadores e o mundo querem saber onde param os 10 mil milhões de ajuda que foram lançados para o Haiti após o sismo. Aparentemente, a taxa de desvio terá sido de 40%, o que nem é considerado muito para estes casos em que o caos é total e o nível de corrupção muito elevado. Falta é ter a noção do grau de devastação que o tal sismo de grau 7 provocou num país já destruído: em 35 segundos, quatro mil escolas ruíram. Mais de 25% dos funcionários públicos morreram. À noite, há duas TV do Haiti que estão a transmitir em directo o Carnaval da praça principal, lá onde deveria existir o palácio e o poder executivo e o judicial. Não se percebe nada do que a multidão faz. Mostram gente em caos a movimentar-se de um lado para o outro. Como se se tratasse de uma saída de um jogo de futebol. Horas disto. Comentários em crioulo que não entendemos. Não se passa nada, a não ser gente a andar de um lado para o outro. O Carnaval verdadeiro tem turistas americanos que “adoram esta loucura”. Deduzo que tem verdadeiros batalhões a fazer segurança. E de certeza que dizem algo como o que li no meu Facebook: “As gentes do Caribe são muito alegres e felizes. ” Garanto que não é verdade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU EUA
No bairro da Jamaica sobem-se escadas às apalpadelas
Moradores de quatro bairros na área metropolitana de Lisboa uniram-se para exigir direito à “habitação condigna”. IHRU diz que Prohabita tem verbas para autarquias fazerem realojamentos, mas não revela quanto (...)

No bairro da Jamaica sobem-se escadas às apalpadelas
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Moradores de quatro bairros na área metropolitana de Lisboa uniram-se para exigir direito à “habitação condigna”. IHRU diz que Prohabita tem verbas para autarquias fazerem realojamentos, mas não revela quanto
TEXTO: Aurora Coxi quer fazer um convite ao presidente da Câmara Municipal do Seixal e ao presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU): “Venham passar uma semana numa das casas do bairro da Jamaica”, diz em frente a um dos blocos de “prédios” onde um café serve de ponto de encontro, jovens vendem desodorizantes e mulheres cortam pedaços de jaca de São Tomé. “É para terem a noção do porquê estarmos desesperados. Só conseguem sentir esta realidade na pele se fizerem essa troca. Ficavam um dia e fugiam!”, ironiza. Aos 26 anos, Aurora Coxi tem o filho mais novo, de sete meses, ao colo. Mãe solteira, partilha casa há pouco tempo com a irmã, nos prédios em frente aos blocos do Jamaica – ou bairro do Vale de Chícharos – no Fogueteiro. Aurora saiu dali depois de anos a viver num apartamento com vários problemas de humidade, e onde continuam a viver parte da família e amigos. A falta de condições das casas, como o excesso de humidade, infiltrações nas paredes e no chão e a ausência de ventilação, já provocaram problemas de saúde a crianças e adultos. Entra-se num dos apartamentos e o ar pesado, a humidade, chegam imediatamente ao corpo. Por isso Aurora, e moradores de quatro bairros da área metropolitana de Lisboa – o Jamaica, no Seixal, o Bairro 6 de Maio, na Amadora, o Bairro da Torre e Quinta da Fonte em Loures – assinaram uma carta que enviaram a várias entidades, incluindo ao presidente da República, para exigir o direito a uma “habitação condigna”, como prevê a Constituição e como as Nações Unidas vincaram sobre Portugal numa visita recente. A ideia é alargar a bairros com as mesmas problemáticas em todo o país, explicou uma das entidades que apoia, a Habita. Apesar de terem características diferentes, os bairros que se juntaram sob o chapéu Assembleia de Moradores dos Bairros querem “ser realojados com respeito", nuns casos, e querem que as casas sejam reabilitadas, noutros. Exigem também participar no processo de reavaliação do Programa Especial de Realojamento (PER) de 1993, que tinha como objectivo erradicar as barracas das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. “Não queremos ser realojados em novos guetos, distantes dos centros urbanos e afastados dos nossos lugares de trabalho”, dizem. Por isso, foram ao IHRU esta semana. Luís Gonçalves, vogal do Conselho Directivo daquele instituto que esteve na reunião, disse ao PÚBLICO que há verbas do programa Prohabita, disponíveis para apoiar as câmaras em projectos de realojamento, mas o processo tem que ser desencadeado pelas próprias. Qual o valor dessas verbas, não especificou. Já a autarquia do Seixal, que considera as condições em que vivem as pessoas no Jamaica de “absolutamente inqualificáveis para o século XXI”, diz, através do gabinete de comunicação, que concebeu um novo modelo de realojamento social baseado na aquisição de casas, pelos próprios, sem recurso a novas construções. Mas “o realojamento social é uma competência do Estado Central, sendo que a autarquia há vários anos que tem procurado que os governos desenvolvam políticas de realojamento, mas sem sucesso”. A câmara está “em condições de avançar com custos partilhados entre os vários intervenientes – as famílias, os proprietários dos terrenos ilegalmente ocupados, o Estado Central” e a própria autarquia. Entretanto, os moradores do Jamaica vão improvisando. Há uma dezena de cafés, vários estão uns ao lado dos outros. “Isto é o Chiado”, brinca Aurora, ao passar pelo “quarteirão” onde se grelha comida nos pátios. Os nove blocos de tijolo vermelho são o esqueleto de uma obra que parou nos anos 1980, por falência do empreiteiro. Diz a autarquia (PCP) que os terrenos foram vendidos pela Caixa Geral de Depósitos à empresa Urbangol, que tem um projecto de urbanização para aquela zona. O complexo seria ocupado no início da década de 1990 por famílias de imigrantes, a maioria africanos das ex-colónias, que chegavam e iam construindo as suas casas, obtendo água e electricidade através de puxadas, e criando uma rede de esgotos improvisada. Neste momento, vivem 215 famílias no bairro, e segundo a Câmara Municipal do Seixal (CMS) nenhuma delas pertence aos 47 agregados registados no PER de 1993 -esses agregados já estão todos realojados, afirmam. Depois, mais famílias foram chegando. Nesta altura do ano anoitece por volta das 20h30, mas no Inverno fica tudo às escuras pelas 18h. Ficar tudo escuro significa não ver o degrau da escada seguinte, correr o risco de pôr o pé no sítio errado e ir parar a outro andar. Os degraus de cimento são de altura irregular. Não há corrimões. Alguns dos nove blocos têm as caixas de elevador a descoberto. Subir é ir às apalpadelas: pode-se chegar ao topo e no lugar do terraço haver outro apartamento, casa sobre casa. Mesmo assim, às escuras, crianças sobem com destreza o andar do bloco 10, à frente da mãe. Sem luz na via pública em frente aos prédios, tornando a zona ainda menos visível, o medo da associação de moradores é que a EDP corte a electricidade em todo o bairro. Durante anos, o Jamaica usou electricidade através de puxadas. Há pouco mais de um ano, a CMS e a Associação (de moradores) para o Desenvolvimento Social de Vale de Chícharos chegaram a um acordo com a EDP, que instalou um contador por bloco. A única solução para um local onde não se podem fazer licenças de habitação era ter uma instalação eléctrica como se fosse para uma obra, diz a empresa ao PÚBLICO através do gabinete de comunicação da EDP distribuição. Por sua vez, a câmara, que não concorda com esta solução, pôs contadores que possibilitam a leitura individual de cada habitação. Cabia à associação cobrar às famílias, mas a sua presidente, Dirce Noronha, 39 anos, viu-se numa situação da qual hoje se arrepende: muitos moradores desconfiavam, não pagavam, até porque diziam que nem direito a factura tinham. Depois bastava uma casa não pagar para o bloco todo ficar em dívida, e assim o aviso de corte se estender a todos. Desde Junho que todos deixaram de pagar. O caso agora está em tribunal, mas a EDP diz que, por enquanto, não está agendado um corte total. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Fomos transformados em escudos humanos”, diz Salimo Mendes, vice-presidente da associação. Dirce Noronha conta que foram tempos difíceis. “Não podia sair, as pessoas ameaçavam”. Enquanto caminha pelo Jamaica, vai mostrando alguns problemas como o esgoto e o lixo. “As pessoas têm que ter também brio e consciência, nem tudo é responsabilidade da câmara”, desabafa. Cai a noite no Jamaica. As janelas dos prédios vermelhos são os únicos pontos de luz. Os candeeiros públicos à volta estão desligados. A EDP diz ao PÙBLICO que desconhecia o corte, e que o iria resolver em breve.
REFERÊNCIAS:
Partidos PCP
Nos Países Baixos
Fiquei a pensar na falta que nos faz um museu das descobertas e semelhante ausência de complexos em relação a um passado, que foi o que foi, sem que possamos interferir. (...)

Nos Países Baixos
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fiquei a pensar na falta que nos faz um museu das descobertas e semelhante ausência de complexos em relação a um passado, que foi o que foi, sem que possamos interferir.
TEXTO: Um português em turismo nos Países Baixos não pode deixar de dar uma volta de barco pelo labirinto dos canais de Amesterdão, ligados ao rio Amstel. Farid, o “capitão-guia” da minha embarcação, era euroafricano, de pai holandês e mãe marroquina. Ao passar perto da réplica do navio da Companhia das Índias Orientais (a VOC), que é a atracção maior do Museu Marítimo Nacional, falou, com indiscutível orgulho, da “idade de ouro” da Holanda, na primeira metade do século XVII, quando continuou o caminho da globalização que tinha sido iniciado pelos portugueses. E despachou o tema da escravatura, comentando que foi uma página negra de uma história muito rica. Nós temos em Almada uma reconstrução do último navio da carreira da Índia, mas fiquei a pensar na falta que nos faz um museu das descobertas e semelhante ausência de complexos em relação a um passado, que foi o que foi, sem que possamos interferir. Marcas da primitiva globalização estão por todo o lado na grande metrópole holandesa, seja na toponímia (por exemplo, a Praça de Suriname), seja na restauração (por exemplo, a gastronomia indonésia). O viajante luso não podia deixar de visitar a Sinagoga Portuguesa de Amesterdão. Foi mandada construir em 1670 pela comunidade sefardita portuguesa na que é hoje a Mr. Visserplein (Praça do Sr. Visser, um juiz que defendeu os judeus na Segunda Guerra Mundial). Perto, na Sint Antoniesbreesstraat (Rua Larga de Santo António), fica a Huis de Pinto, a casa de Isaac de Pinto (1717-1787), um rico judeu português, accionista da VOC, economista e filósofo. Karl Marx, que está a fazer 200 anos, cita Pinto no Capital para criticar o liberalismo económico. Não se pode falar dos judeus holandeses sem nomear o filósofo Bento de Espinosa (1632-1677), que era filho de um mercador expulso de Portugal pela intolerância religiosa. Espinosa nasceu e viveu em Amesterdão, mas foi banido da Sinagoga Portuguesa em 1656, tendo de abandonar a cidade. O chérem que sofreu é a punição máxima da religião judaica, mas, de início, nada fazia prever a heresia. Aprendeu o cânone hebraico, preparando-se para ser rabi. Conheceu aos 14 anos o Padre António Vieira, quando este visitou a comunidade portuguesa de Amesterdão. O abandono da tradição religiosa familiar deveu-se à sedução pelas ideias de Descartes (quando Espinosa nasceu, Descartes vivia em Amesterdão). Não admira, portanto, que na sua Ética a moral seja tratada no estilo da geometria cartesiana. Além de filosofar, Espinosa polia lentes para telescópios e microscópios, numa terra que viu nascer esses instrumentos. Morreu de doença pulmonar associada à poeira do vidro e está sepultado em Haia, que o homenageou com uma estátua no centro histórico. Ramalho Ortigão escreveu em A Holanda: “Quem nos dissesse no século XVI que o obscuro e desprezível judeu, pai de Espinosa, ao emigrar de Lisboa nos arrebatava uma riqueza comparável à dos imensos territórios do país brasileiro teria o ar de um utopista em delírio”. Mas foi mesmo assim: “Espinosa, tornado holandês pela intolerância do nosso despotismo católico, funda no país a que o rejeitámos as bases de um novo critério que põe a Holanda à frente de todo o grande movimento filosófico do mundo moderno. ”Sobre o Brasil: no coração de Haia está a casa de João Maurício de Nassau (1604-1679), de cognome “O Brasileiro” por ter sido governador de Pernambuco, a “Nova Holanda”. Ao serviço da Companhia das Índias Ocidentais (a WIC), edificou o Recife à maneira holandesa. Foi ele que, depois de ter tentado tomar a Bahia, enfrentou uma poderosa armada luso-hispânica em 1639. Em 1640 Vieira pregou na Bahia o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, onde ameaçava deixar Deus se ele deixasse os portugueses. Como é sabido, Deus não deixou os portugueses. Em 1641 foi celebrado um primeiro tratado de paz em Haia entre a Holanda e Portugal, que conduziria a outro, ainda em Haia, vinte anos depois, pelo que João Maurício não tardou a regressar a casa. Hoje o turista pode ir, na capital holandesa, à Mauritshuis, que alberga um belo museu. É lá que pode ver a obra maior de Vermeer, Rapariga com o Brinco de Pérola, de 1665. A rapariga, cujo brinco resultou de duas breves mas geniais pinceladas, vale por si só uma visita à Holanda.
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu
Sistema de ensino perdeu quase 90 mil alunos em 12 anos
Em mais de uma década, as taxas de retenção passaram para metade. São os dados mais recentes que traçam o perfil do aluno. E que mostram ainda que o número de matriculados, do pré-escolar ao superior, não era tão baixo havia pelo menos 12 anos. (...)

Sistema de ensino perdeu quase 90 mil alunos em 12 anos
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em mais de uma década, as taxas de retenção passaram para metade. São os dados mais recentes que traçam o perfil do aluno. E que mostram ainda que o número de matriculados, do pré-escolar ao superior, não era tão baixo havia pelo menos 12 anos.
TEXTO: As instituições de ensino do Continente perderam 89. 815 alunos, do pré-escolar ao ensino superior, entre 2005/2006 e 2016/2017. O número de inscritos no último ano lectivo (cerca de um milhão e 920 mil) nunca tinha sido tão baixo durante o período analisado. Os dados são do Perfil do Aluno 2016/2017, publicado este mês pela Direcção-Geral das Estatísticas da Educação e da Ciência (DGEEC), que compila informação sobre todos os tipos de cursos, incluindo os de formação de adultos. A redução não foi igual em todos os níveis de ensino. Só o básico perdeu 130 mil alunos, quando se compara os matriculados há 12 anos com os que estavam no sistema em 2017. Porquê? “É o efeito demográfico”, explica Paulo Peixoto, investigador do Observatório das Políticas de Educação e Formação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O decréscimo da taxa de natalidade reflecte-se nestes números. O fenómeno poderia ser atenuado “se Portugal estivesse a acolher muita imigração com crianças nesse nível de ensino”, comenta o especialista. “Mas isso não está a acontecer. ”Já no secundário deu-se a alteração inversa. O número de estudantes que frequentavam o 10. º, 11. º e 12. º anos aumentou 16%. Passou-se de 326. 182 inscritos em 2005/2006 para 378. 548. Neste caso, Paulo Peixoto explica que o decréscimo da natalidade é compensado pela introdução, a partir de 2012/13, da escolaridade obrigatória até aos 18 anos. No período analisado pela DGEEC, as taxas de retenção passaram para metade. A diminuição foi mais acentuada no ensino secundário. Em meados dos anos 2000, 30, 6% dos estudantes do 10. º ao 12. º ano desistiam ou ficavam retidos. Em 2015/2016, eram 14, 9%. Quanto aos que concluíram estes níveis de ensino, registou-se um aumento de 17, 6% no básico e de 45% no secundário. De acordo com este relatório, os rapazes estão em maioria em todos os níveis de ensino. Com uma excepção: o ensino superior. Aí, as raparigas representam 53, 5% dos quase 356 mil matriculados. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As escolas públicas continuam a receber a maioria dos alunos. O ensino privado assume um papel mais preponderante no pré-escolar (47, 7% dos estudantes matriculados) e no secundário (21, 4%). No 1. º ciclo estão no privado apenas 12, 6% dos alunos do sistema de ensino. Quanto aos alunos de outras nacionalidades, o Brasil domina. Dos 26. 491 brasileiros matriculados nas escolas portuguesas, quase metade estavam no ensino superior. Esse rácio é ainda maior para os estudantes angolanos, espanhóis, italianos, alemães, moçambicanos, polacos e holandeses. Em 2016/2017, havia quase dois milhões de estudantes matriculados. Desses, cerca de 5% (102. 814) tinham mais de 30 anos e quase 60% estavam no ensino superior. Entre os alunos com mais de 50 anos, o número de inscritos no básico (7415) estava muito próximo daqueles matriculados no ensino superior (7774).
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave imigração educação
Manifesto de Breivik revela planeamento ao pormenor e um homem xenófobo e violento
A polícia norueguesa confirmou que o suspeito pelos ataques de Oslo e Utoya que causaram 93 mortos publicou um longo manifesto de mais de 1500 páginas horas antes da matança. O extenso documento (misto de manifesto político, diário e manual de instruções) revela planeamento ao ínfimo pormenor feito ao longo de anos por um homem anti-islâmico, xenófobo e violento. No dia dos ataques, Anders Behring Breivik escreveu no documento em inglês intitulado "2083 - A European Declaration of Independence": "Acredito que esta vai ser a minha última entrada". (...)

Manifesto de Breivik revela planeamento ao pormenor e um homem xenófobo e violento
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.2
DATA: 2011-07-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: A polícia norueguesa confirmou que o suspeito pelos ataques de Oslo e Utoya que causaram 93 mortos publicou um longo manifesto de mais de 1500 páginas horas antes da matança. O extenso documento (misto de manifesto político, diário e manual de instruções) revela planeamento ao ínfimo pormenor feito ao longo de anos por um homem anti-islâmico, xenófobo e violento. No dia dos ataques, Anders Behring Breivik escreveu no documento em inglês intitulado "2083 - A European Declaration of Independence": "Acredito que esta vai ser a minha última entrada".
TEXTO: Segundo o diário norueguês VG, partes do manifesto político do documento foram copiadas de um texto do terrorista americano Ted Kaczynski, conhecido por Unabomber, responsável pela morte de três pessoas entre 1978 e 1995 e que enviava engenhos explosivos por correio. "Grandes fragmentos do recém divulgado "2083 - A European Declaration of Independence", supostamente escrito por Breivik, foram copiados", escreve o VG que cita o site de debate document. no. Segundo este forum, em algumas passagens Breivik adaptou termos de Kaczynski por palavras que estavam mais próximas do seu ideário extremista. O document. no aponta como exemplo o termo "esquerdismo" utilizado pelo Unabomber e que o suspeito dos atentados de Oslo substitui por "multiculturalismo" e "marxismo cultural". As forças de segurança norueguesas estão a analisar ao pormenor o documento que declara abertamente "guerra de sangue" aos imigrantes marxistas e que fala em lançar uma cruzada contra o "marxismo cultural". Segundo a polícia, a redacção do texto terá começado no Outono de 2009. No manifesto, Anders Behring Breivik aponta o terrorismo como o melhor "método para despertar as massas" e declara-se preparado para que o apontem como "o pior monstro desde a II Guerra Mundial". No final do documento aparecem várias fotografias do suspeito dos atentados. Nessas imagens aparece o mesmo homem que tem sido identificado pelos media como o alegado autor dos atentados e que surge armado com uma arma sofisticada, com mira telescópica, e envergando um fato anti-radiações. Eis alguns dos pontos do documento alegadamente escrito por Anders Behring Breivik, num resumo preparado pela CNN:- O autor descreve-se como um “Cavaleiro Justiceiro - Comandante dos Cavaleiros Templários Europeus” e um dos vários líderes do movimento nacional e pan-europeu de resistência patriótica;- Antecipa uma guerra civil na Europa em três etapas, a última das quais terminaria em 2083 (daí o título do documento) com a execução dos “marxistas culturais” e com a deportação dos muçulmanos;- A primeira etapa dessa guerra civil, que decorreria até 2030, teria como características a guerra declarada e a progressiva consolidação das forças conservadoras;- Entre 2030 e 2070, o autor prevê “formas mais avançadas de resistência das forças conservadoras e a preparação de um golpe de Estado pan-Europeu;- A etapa final - em que o autor estima que os países europeus terão uma média de entre 30 e 50 por cento de população muçulmana - irá centrar-se na “execução do multiculturalismo e do Marxismo cultural”, bem como dos “traidores”, na deportação dos muçulmanos e na “implementação da agenda política e cultural conservadora” em todo o Continente Europeu;- O autor diz que, pessoalmente, tem sido atacado repetidamente por muçulmanos: “‘Só vivi oito assaltos, tentativas de assalto e múltiplas ameaças. Nunca fui roubado ou espancado severamente por muçulmanos (um nariz partido foi o mais grave que me ocorreu) mas conheço mais de 20 pessoas que o foram. Conheço pelo menos duas raparigas que foram violadas por muçulmanos e tenho conhecimento de mais dois casos. Uma rapariga foi cortada na cara por muçulmanos”. - Radovan Karadzic - o sérvio-bósnio acusado de genocídio - é nomeado pelo autor como uma das pessoas que ele gostaria de conhecer, negando que este seja “um assassino e um racista” e dizendo, ao invés, que “pelos seus esforços de tentar livrar a Sérvia do Islão ele deveria ser considerado e recordado como um honrado cruzado e um herói de guerra europeu”;- O autor diz que se sentiu compelido à acção depois de o governo norueguês ter participado nos bombardeamentos de 1999 contra Belgrado durante a guerra do Kosovo, tendo por alvo o inimigo errado - “os nossos irmãos sérvios que queriam expulsar o Islão deportando os muçulmanos albaneses de volta para a Albânia”.
REFERÊNCIAS:
Partidos PAN
"Não vejo diferença entre Anders Breivik e a Al-Qaeda"
Arquitectonicamente, o bairro de Groenland não muda muito do resto de Oslo. Os prédios, não muito altos, são novos e antigos e continuam a paisagem de quem vem do centro. Mudam os nomes de restaurantes a anunciar kebabs, as lojas e as roupas que vendem, os supermercados com os enormes sacos de arroz basmati, caril e pasta de rosas. E muda também a população que de dia se espalha pelo resto da cidade. (...)

"Não vejo diferença entre Anders Breivik e a Al-Qaeda"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-07-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Arquitectonicamente, o bairro de Groenland não muda muito do resto de Oslo. Os prédios, não muito altos, são novos e antigos e continuam a paisagem de quem vem do centro. Mudam os nomes de restaurantes a anunciar kebabs, as lojas e as roupas que vendem, os supermercados com os enormes sacos de arroz basmati, caril e pasta de rosas. E muda também a população que de dia se espalha pelo resto da cidade.
TEXTO: Groenland é o bairro com maior concentração de muçulmanos de Oslo, com raízes no Paquistão, Irão, Somália, Iraque, Marrocos, Turquia ou Sérvia. É também onde vêm morar alguns dos novos imigrantes que não têm parado de chegar nos últimos anos. Por isso não espanta que na zona de paragem dos transportes públicos haja barraquinhas a tentar vender cartões com chamadas internacionais mais baratas. As estimativas apontam para entre 100 a 150 mil muçulmanos numa Noruega de 4, 8 milhões de habitantes, mas alguns crêem que o número anda perto dos 200 mil. A comunidade mais antiga começou a chegar do Paquistão nos anos 1970. Foram os muçulmanos o alvo de Anders Behring Breivik, o terrorista que há uma semana matou 76 pessoas, 68 deles jovens a sangue-frio na ilha de Utoya - e todos ligados ao Partido Trabalhista no Governo. O alvo, não porque o terrorista tivesse tentado primeiro colocar aqui uma bomba, mas porque, no seu manifesto e naquilo que depois diria no tribunal, Breivik expressou claramente que o objectivo era causar o máximo dano possível ao Partido Trabalhista pela "importação em massa" de muçulmanos. Breivik define-se como o mensageiro de uma cruzada para salvar a Europa, purificá-la. Breivik pode não ter disparado aqui, mas o seu ódio contra os muçulmanos consegue ser mortífero. A explosão da bomba no edifício governamental ouviu-se neste bairro, a cerca de um quilómetro. Farhigo Diini, norueguesa que veio da Somália há 19 anos, sentada na cadeira da loja de uma amiga, nem acreditava. Primeiro achou que fosse um atentado ligado à Al-Qaeda. "É aquilo que estou habituada a ver. " Ela, como muitos muçulmanos, respiraram de alívio quando souberam que o terrorista era um norueguês não muçulmano. "As pessoas perceberam que não são apenas os muçulmanos que fazem ataques terroristas. " Exactamente isto vamos ouvir mais vezes no nosso percurso por Groenland, onde é difícil encontrar quem queira falar - sobretudo mulheres, que ou dizem não falar inglês, ou recusam ser entrevistadas. Farhigo Diini chorou de alívio primeiro e depois pelo que aconteceu à "Noruega", de que fala como sendo diferente do resto do mundo. Depois do 11 de Setembro, as coisas mudaram para os muçulmanos: são parados nos aeroportos, pela polícia, e olhados como se fossem "criminosos", mas aqui é diferente, diz. Quando chegou, teve direito a todos os benefícios sociais. É tratada como outro norueguês qualquer, diz. A Noruega tem uma alta taxa de integração - quase não há diferenças de participação no mercado de trabalho e na educação dos descendentes de imigrantes, segundo o Directório de Integração e Diversidade. Há, por isso, uma Noruega multicultural que funciona, considera Thomas Hylland Eriksen, professor de Antropologia da Universidade de Oslo que se dedica há anos ao multiculturalismo. Na Noruega, a população muçulmana, de várias origens, muitos seculares, está bem estabelecida: "As coisas vão bem a nível de trabalho, em questões de direitos de mulheres. " Nas comunidades imigrantes ou com raízes imigrantes, há uma "enorme mobilidade social, maior do que a tendência geral" - e os muçulmanos não são excepção. "O que é pena é que isso não é notado pela sociedade, que tem tendência a olhar apenas para os aspectos problemáticos. " O lado cruel
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos concentração tribunal educação comunidade social mulheres