Comecemos pelas 912 cadeiras da Rua Augusta
Podem não mexer em nada, mas tenham a simpatia de não insistir na falsidade de que é impossível melhorar o centro histórico de Lisboa. (...)

Comecemos pelas 912 cadeiras da Rua Augusta
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Podem não mexer em nada, mas tenham a simpatia de não insistir na falsidade de que é impossível melhorar o centro histórico de Lisboa.
TEXTO: 14x4=56. 10x4=40. 10x4=40. Caminho devagar e conto ao mesmo tempo, não tem nada que saber. 16x4=64. 16x4=64. Algumas são iguais. Anoto no telefone e avanço. Estou a descer a Rua Augusta a partir do Rossio em direcção ao rio. Quando chego ao cruzamento com a Rua de Santa Justa já contei 264. Continuo a andar. 22x4=88. 24x4=96. 6x4=24. 6x4=24. 20x4=80. 12x4=48. 8x4=32. Ao passar pela H&M, já vou em 656. O Tejo continua distante. Retomo a contagem: 20x4=80. 13x4=52. A primeira clareira, e quase a única, é no Millennium BCP, do lado esquerdo. O passeio está vazio, podemos caminhar sem pedir licença nem bater em obstáculos. Vou em 788. Registo a conta, levanto os olhos do ecrã e a meio metro está um homem enorme e quase nu mascarado de índio americano. Já o tinha visto há umas semanas, mas voltou a surpreender-me. Os homens-estátua costumam ser mais sensatos e tendem a escolher personagens com roupa. A concorrência deve estar feroz. Falta pouco, mas ainda vejo mais algumas ao fundo. Atravesso a Rua da Conceição, sempre a andar para sul, e conto as últimas: 12x4=48. 19x4=76. Acabou. Estou à porta do MUDE, o Museu do Design e da Moda, já se vê o rio, não há espaço para mais. Decidi contar as cadeiras da Rua Augusta, no centro da Baixa de Lisboa, para dar esperança aos lisboetas. Aqui está: são 912 cadeiras. É muita cadeira num passeio só, para mais numa rua à qual ainda chamamos “pedonal”, do tempo em que celebrávamos as ruas conquistadas aos carros. Agora, são as cadeiras que conquistam as ruas. Venha o diabo e escolha. Há mais cadeiras na Rua Augusta do que no Teatro da Trindade (495), no grande auditório da Culturgest (612), no Teatro Municipal de São Luiz (730) e no São Carlos (844). Até o Dona Maria II tem quase o mesmo número de cadeiras (tem só mais 36 do que a Rua Augusta). Mas calma, não há razão para desesperar. Podemos olhar para as 912 cadeiras da Rua Augusta e ver boas notícias. Pelo menos duas. A primeira é que as cadeiras podem ser retiradas — não é preciso todas — mal o bom senso regresse à cidade. A outra coisa boa é que o 912 dá-nos mais um argumento para responder aos que, encolhendo os ombros, dizem que a transformação de Lisboa é inexorável e temos de aceitar o crescimento do turismo como quem engole óleo de fígado de bacalhau em colheres de sopa. Todos os dias alguém diz que “não há alternativa”, que “a cidade” não é um laboratório comunista, que não se pode controlar o capitalismo nem a autarquia pode intrometer-se nas decisões dos privados. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não é verdade. A cidade pode — e deve — impor o bom senso no espaço público. Não sei se foi a Junta de Santa Maria Maior que autorizou estas 912 cadeiras ou se as decisões são anteriores à transferência de poderes da Câmara Municipal de Lisboa para as freguesias. Sei que o vírus das cadeiras está a alastrar-se a todas as ruas do centro histórico. Até o novo café Nicolau Lisboa, que há um ano era tão cool e desprendido, se tornou numa fábrica de meter cadeiras na rua e enterrar corta-ventos na calçada. Em todas as esquinas há um homem — às vezes são vários — a impingir menus. Há uns meses vi seis destes homens aos gritos. Estavam a disputar uma esquina dos Correeiros. Dizem que é território dos carteiristas do eléctrico 28 e do restaurante que muda de nome quando é apanhado a cobrar 500 euros por uns petiscos. Têm ar de seguranças do Urban e de empregados de retrosaria — as aparências iludem. Também ouço com frequência perguntarem por que razão Lisboa haveria de ser a excepção, quando os centros históricos europeus só têm ricos e turistas. Hoje não vou argumentar sobre isso, mas apenas dizer o óbvio: com ruas cheias de cadeiras, música e o lixo das esplanadas no chão, ninguém vai querer andar por aqui. Nem comprar casa para viver, nem escritório para trabalhar. Quem são os “ricos” que querem viver neste circo pobre?Se querem começar por algum lado, porque não pelas 912 cadeiras da Rua Augusta? Com metade das cadeiras, os restaurantes continuariam a ter lucro, os turistas continuariam a poder almoçar e os residentes e trabalhadores da Baixa talvez voltassem a usá-la. A outra opção é não mexer em nada. Nesse caso tenham a simpatia de não insistir na falsidade de que é impossível melhorar as coisas.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens homem circo
Milhares votaram para Ricardo ir numa expedição ao Árctico. E aí vai ele
Arqueólogo, escuteiro e com gosto pela aventura: Ricardo Carvalho vai representar Portugal num trenó pelo Circulo Polar Árctico. Foi ele um dos dez mais votados no concurso online Fjällräven Polar. (...)

Milhares votaram para Ricardo ir numa expedição ao Árctico. E aí vai ele
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Arqueólogo, escuteiro e com gosto pela aventura: Ricardo Carvalho vai representar Portugal num trenó pelo Circulo Polar Árctico. Foi ele um dos dez mais votados no concurso online Fjällräven Polar.
TEXTO: Ricardo Carvalho ainda não se sentou para pensar na viagem que o espera em Abril. Só isso pode explicar que, quando lhe perguntámos quais as dificuldades que espera enfrentar no Círculo Polar Árctico, responda o seguinte: “Para dizer a verdade, não tenho receios. ” Pausa. “Só que me faltem umas meias quentinhas. ”Durante seis dias, o arqueólogo de 33 anos vai deslizar por 300 quilómetros de deserto gelado, passando pela Noruega e Suécia num trenó puxado por seis cães treinados. “Pois, se calhar ainda não pensei muito bem nisto”, ri-se, agora à gargalhada, o terceiro português a vencer o concurso online aberto a candidatos de todo o mundo. Não vai sozinho, é certo: Ricardo é uma das 20 “pessoas comuns” — leia-se, que tal como ele nunca fizeram nada assim — a participar na expedição Fjällräven Polar. Criado há mais de 20 anos, o desafio promove uma marca de roupa sueca de aventura passando uma mensagem simples: pessoas sem preparação específica conseguem sobreviver em condições inóspitas, salvaguardando que com elas levem o equipamento apropriado (fornecido pela organização, “meias quentinhas” incluídas). Escuteiro desde pequeno, em Vila Real, e alpinista amador, Ricardo já participou “em muitas actividades nas montanhas e na neve”. “Este é um desafio à minha medida”, atira. Mas, reconhece, “uma coisa são os Picos da Europa, outra é o Circulo Polar Árctico”. Apresentou-se no concurso de votação online como “mestre em cozinha selvagem”, garantindo ainda que “constrói o melhor abrigo” e que “está sempre feliz”: capacidades necessárias para quem vai ter de tratar dos cães, preparar a comida e montar acampamentos. “Ajudarei sempre os outros quando houver necessidade”, prometeu. Até 14 de Dezembro, dia em que os 20 vencedores (metade eleitos por votos do público, os outros pelo júri do concurso) foram anunciados, reuniu 17. 916 votos. Vai ser ele o representante da região mediterrânica entre 8 e 13 de Abril — em primeiro lugar global ficou Babz Sage, da Índia, com 82. 715 votos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nos últimos dias de concurso, quando chegou a maior parte do apoio, o arqueólogo quase não dormiu. “Estava fixado em vencer, mas não estava à espera”, confessa. Logo no início foi bloqueado do Facebook, culpa do spam que teve de fazer para pedir votos e, no fim, ia-se “vendo grego” para ganhar. Diz que faz parte da tradição portuguesa do concurso: ser ultrapassado, quase no último minuto, pela Grécia. Tanto Mónica Roldão Almeida, no ano passado, como Pedro Alves, em 2012, perderam contra um candidato grego, mas foram depois resgatados pelo júri, relembra. Foi a Mónica, bióloga, que recorreu a pedir conselhos para a campanha de angariação de votos que durou mais de um mês. Agora, os dois vão começar a falar da expedição. Ricardo Carvalho diz já ter começado o treino físico. O “espírito de aventura” e a “vontade de arriscar” já tinha. “É isso que preciso. Depois nada de mal se vai passar. " Pausa outra vez. "Espero eu. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cães
Os monumentais vinhos de João Póvoa, um “ourives” da Bairrada
Este texto é sobre os vinhos Kompassus. É sobre grandes vinhos portugueses feitos numa adega humilíssima com uvas de vinhas sem a imponência paisagística das encostas do Douro, por exemplo. (...)

Os monumentais vinhos de João Póvoa, um “ourives” da Bairrada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Este texto é sobre os vinhos Kompassus. É sobre grandes vinhos portugueses feitos numa adega humilíssima com uvas de vinhas sem a imponência paisagística das encostas do Douro, por exemplo.
TEXTO: São vinhas de aparência simples como tantas outras, mas com uma enorme riqueza intrínseca, fruto de uma conjugação perfeita entre videiras, solo e clima. Se fosse na Borgonha, estaríamos a falar de “Grand Cru”, designação atribuída apenas às melhores parcelas. Como é na Bairrada, são vinhas sem qualquer selo, como quaisquer outras, apesar de ano após ano, invariavelmente, originarem vinhos admiráveis, ricos e duradouros. A história dos vinhos Kompassus é também a história de João Póvoa, médico oftalmologista em Coimbra e desde criança ligado à vitivinicultura. Como os chefes que baseiam a sua cozinha nas memórias familiares, também João Póvoa faz hoje vinhos a partir das vivências na adega com o avô materno e o pai e na vinha com a mãe. Já se sabe como é: em jovens, os filhos são muitas vezes os maiores críticos dos pais; mais tarde, acabam a imitá-los e, por vezes, a sofrer as mesmíssimas penas (não é o caso). Também acontece muitas vezes os pais não acreditarem nos filhos e arrependerem-se mais tarde. Numa certa vindima, João “driblou” o progenitor e fez um vinho às escondidas. Era um rosado. Nesse tempo, as uvas iam inteiras directamente para uma lagareta. Entre a vinha e a adega, muitos bagos rebentavam e quando a dorna era despejada já levava muito líquido. Sem o pai saber, João foi desviando um pouco da “lágrima” inicial das várias dornas de uvas até encher uma barrica de 150 litros, que deixou fermentar de forma espontânea. Em jovem, João Póvoa chegou a trabalhar durante as férias na Adega de Cantanhede e gostava especialmente dos rosés que ali se faziam com os mostos pouco prensados. O seu vinho era inspirado nesses rosados. Quando, mais tarde, o pai descobriu o vinho, criticou o filho por ter feito uma “água-pé”. Mas, nas suas costas, era esse palhete que gostava de beber. Em 2017, João Póvoa voltou a fazer um vinho idêntico, mas agora com as lágrimas das várias prensas de Baga que foi fazendo para espumante. Vai chamar-lhe João Póvoa Colecção Privada. É um rosé austero, tenso e fresquíssimo. Uma delícia. No ano anterior, já tinha feito um outro vinho nostálgico, emulando uma criação do pai. Um branco de Maria Gomes e Bical em lagar. O mosto só era sangrado ao fim de quatro a cinco dias, quando a “manta” já estava mesmo em cima e a fermentação entrava na fase exponencial. A fermentação ao ar livre queimava os aromas de fruta mas extraía mais matéria das películas. Estes vinhos de curtimenta ficavam com uma textura mais rica e duravam muito mais tempo. Este branco de 2016 vai chamar-se “Gene”, em tributo à herança familiar de João Póvoa. Quem já o provou, como eu, pode atestar que se trata de um branco admirável. Já está engarrafado, mas ainda vai ficar mais algum tempo em adega. Antes, João Póvoa vai lançar um Gene tinto, de 2007, um vinho que incorpora ensinamentos e técnicas de três gerações. Trata-se de um Baga denso, extraído, fresco mas ainda com bastante tanino (o vinho estagiou 24 meses em barricas novas). Promete durar décadas, mas será difícil que algum dia atinja o nível do emocionante Kompassus Baga Colecção Privada 1991. Simplesmente porque vinhos como este só se fazem uma vez na vida. Um tinto ao nível dos melhores do mundo. Parece perfeito, mas o Baga 1991 nasceu e evoluiu literalmente aos tombos, como costuma acontecer com as grandes criações. Foi o primeiro vinho que João Póvoa produziu sozinho a partir de uvas de uma vinha muito velha que já arrancou. Dessa década, guarda ainda outros vinhos memoráveis, como os 1994, 1995 e 1997. O último clássico da fase Quinta de Baixo data de 2003. O 1991 não é um Baga puro. Na vinha havia também algumas videiras de Moreto e de outras castas antigas. Na Bairrada sempre foi tradição lotar a Baga com uvas de variedades mais mansas, como a Moreto ou a Bastardo, por exemplo. O vinho foi feito num lagar aberto na velha adega da mãe e com cachos por desengaçar. Começou por estagiar numa cuba de cimento e passou depois dois anos num tonel antigo, já fora de uso, que João Póvoa tinha herdado do avô e que ele próprio recuperou e limpou durante as férias de Natal. Era um vinho tão denso que entupiu o filtro de placas da Quinta das Bágeiras onde foi filtrado antes de ser engarrafado. O vinho era vendido pelo Pingo Doce. Na altura, passou despercebido. Em 2007, por motivo de doença, João Póvoa decidiu vender a marca Quinta de Baixo, as instalações e as vinhas mais novas a uns investidores de Águeda (que revenderam tudo em 2012 à Niepoort). Ficou apenas com algumas vinhas de argilo-calcário em Cordinhã e Ourentã (Cantanhede), um dos grandes spots da Bairrada, e com a marca Kompassus, que havia registado quando decidiu fazer uma vinha à moda antiga, de compasso apertado e com uma densidade de plantação mais alta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os primeiros vinhos com a nova chancela chegaram ao mercado em 2008, mas foi só a partir de 2012, já com o apoio enológico e comercial de Anselmo Mendes, que o projecto descolou (foi a conselho de Anselmo Mendes que João Póvoa plantou alguns talhões de Tinto Cão e de Alvarinho em terrenos de argilo-calcário expostos a sul; os primeiros vinhos, sobretudo o Alvarinho, deixam água na boca). Foi um pouco antes de Anselmo ter chegado que João Póvoa “descobriu” na velha adega uma palete de garrafas por rotular do Quinta de Baixo 1991. O vinho tinha passado vários anos quase ao abandono, à chuva e ao calor. Alguns trabalhadores achavam que era um vinho sem importância e foram-se servindo. Quando João Póvoa se mentalizou da relíquia que tinha li, sobravam apenas cerca de 250 garrafas. Uma boa parte vendeu-as, já com o rótulo Kompassus, a 500 euros, um preço superior ao Barca Velha. Agora guarda apenas umas quantas para consumo pessoal. Não sei se a Comissão Vitivinícola da Bairrada comprou algumas. Devia fazê-lo, porque este é o tipo de vinha que a região devia mostrar ao país e ao mundo, como testemunho do enorme potencial da Baga e da própria Bairrada. Luís Pato tem toda a razão quando diz que os tintos de Baga deviam ser a “ourivesaria” da Bairrada, produzidos em pequena escala e vendidos a preços mais altos.
REFERÊNCIAS:
No Muito Bey há todos os dias pequeno-almoço libanês
O restaurante libanês da Rua da Moeda, em Lisboa, passa a abrir às 8h30 e tem uma série de propostas, salgadas e doces, para começar o dia como se estivéssemos no Líbano. (...)

No Muito Bey há todos os dias pequeno-almoço libanês
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O restaurante libanês da Rua da Moeda, em Lisboa, passa a abrir às 8h30 e tem uma série de propostas, salgadas e doces, para começar o dia como se estivéssemos no Líbano.
TEXTO: No Líbano, “bom dia” diz-se “sabah el kher” e no Muito Bey, o restaurante libanês perto do Mercado da Ribeira, em Lisboa, um bom dia começa agora com um pequeno-almoço, servido entre as 8h30 e a 11h30, no qual se podem descobrir novos sabores de uma gastronomia que nos últimos dois anos tem vindo a conquistar cada vez mais adeptos em Lisboa. Joseph Youssef, libanês que trabalhou no Dubai, é desde o Verão o novo chef consultor (e, desde Novembro, residente) – o que permite renovar a carta com mais frequência e apresentar propostas diferentes. “Acreditamos que contribuímos para aquela que é agora uma das tendências na cidade”, diz Ezzat Ellaz, o proprietário do Muito Bey. “Queremos continuar a ser a primeira oferta, agora que conhecemos bem o mercado e os sabores que as pessoas preferem. ” Os pequenos-almoços fazem parte dessa aposta, apesar de Ezzat saber que são algo de muito diferente daquilo que os portugueses estão habituados a comer a estas horas da manhã. A carta divide-se em Manhã Salgada, Manhã Doce e Padaria. O prato salgado que, diz Ezzat, é comum a todas as casas libanesas para começar o dia, é o zaatar, a mistura de especiarias, que inclui tomilho, sésamo e sumac (uma especiaria cítrica), servida com pão tradicional e azeitonas – e que se acredita que torna as crianças mais espertas e mais atentas na escola (ou, pelo menos, é esse o argumento usado pelas mães). Para além do zaatar, o labné, queijo fresco, aqui também com azeitonas e servido com um prato de legumes frescos, é o outro item obrigatório nas casas libanesas. Ezzat acredita que estes pequenos-almoços poderão ser bem recebidos pelos portugueses também porque são essencialmente vegetarianos, e em alguns casos vegan, “com grande enfoque na proteína” e “muito saudáveis”. O chef Joseph Youssef confirma, explicando que não há necessidade de incluir carne porque os queijos e algumas leguminosas já asseguram proteína suficiente. O grão-de-bico é, claro, um ingrediente imprescindível, tanto no húmus, aqui, curiosamente, servido com carne e pinhões (numa versão mais pequena de prato que está na carta de almoços e jantares) e em duas novidades: o foul, puré de fava com grão, azeite, alho, cominhos e a acidez dada pelo sumo de limão que os libaneses usam com generosidade na sua cozinha; e balila, grão-de-bico cozido, misturado com azeite, alho, cominhos e também pinhões. No Líbano, explica Ezzat, há lojas especializadas nestes dois pratos que são muito populares nos pequenos-almoços dos fins-de-semana. Outros pratos nas “manhãs salgadas” do Muito Bey são, por exemplo, a intensa beringela em azeite recheada com nozes, pimento vermelho e alho, chamada kabiss; ou beid & jebné que é uma omelete com queijo akawi. Na secção de padaria há diferentes propostas de manuché, o pão achatado quente que é coberto com legumes ou queijo ou outros ingredientes, numa versão de Médio Oriente das pizzas italianas. E, por fim, existem as “manhãs doces”, com o knefé, uma torta de queijo servida quente com massa de semolina e xarope de açúcar, pistácio e água de rosas; o mamounié, um pudim quente de semolina e leite com requeijão, canela e xarope de açúcar (algo de semelhante às papas de aveia, embora com uma textura diferente); e o sahlab, pudim à base de leite servido com kaak, um biscoito feito também à base de leite. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para além do pequeno-almoço, o Muito Bey, que passa a estar aberto continuamente entre as 8h30 e a meia-noite, servindo durante todo o dia, promete para breve novidades na carta de almoços e jantares. E, para a época natalícia, propõe uma versão libanesa do peru de Natal, com arroz e especiarias orientais, confeccionada por encomenda (60€ para um peru com 5/6 quilos). Horário: todos os dias das 8h30 às 00h00Preço: Os preços de cada prato do pequeno-almoço variam entre os 6€ e os 9€ e podem-se combinar ou comer separadamente. Existe ainda um menu que inclui três dos pratos à escolha (em doses um pouco mais pequenas), com um café e um sumo de laranja natural, por 12€.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola carne
Palavras para um tempo de secura e esquecimento
Uma poesia que interroga o humano e o divino. Versos que se assumem portadores de um legado imponente, mas que se libertam do fardo da servidão, para encontrarem a sua voz, autónoma e livre, desprotegida. É o nosso livro de poesia do ano. (...)

Palavras para um tempo de secura e esquecimento
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma poesia que interroga o humano e o divino. Versos que se assumem portadores de um legado imponente, mas que se libertam do fardo da servidão, para encontrarem a sua voz, autónoma e livre, desprotegida. É o nosso livro de poesia do ano.
TEXTO: Sombra Silêncio é descrito por Carlos Poças Falcão como uma reunião de “poemas muito esparsos no tempo, (. . . ) no espírito (. . . ) e no estilo” (p. 59). Essa “Nota final”, de uma honestidade, desde logo, marcante, fala de uma recolha que “não cumpre inteiramente a ideia que faço de um livro, que releva mais de exigências arquitectónicas que de organização” (id. ). Assim é. E, no entanto, mesmo os poemas aparentemente (ou realmente) específicos a um enquadramento que, na presente colectânea, necessariamente, se perdeu e que, por isso, são, efectivamente, esparsos, acabam por encaminhar-se para o cerne desta poesia: a busca por uma possibilidade de sentido para o humano, enquanto carne e espírito — “O fotógrafo trabalha num recorte de penumbras/ captando (capturando) espectros luminosos/ silêncios fugidios, movimentos, corpos tensos, / expostos numa sombra de uma sombra de uma sombra. ” (p. 47) Porque esta é uma poesia que procura sentidos, que se interroga e que, ao fazê-lo, se dirige ao mundo, interpelando o que é dele, mas também aquilo que o transcende. A escrita deste poeta é, por conseguinte, uma causa e uma consequência da inquirição do humano e do transcendente, aqui concebidos como dimensões irredutíveis. O que não quer dizer que, de repente, se iluda a dificuldade que há em saber se Deus é incomparavelmente obscuro ou incompreensivelmente simples. “Silencioso, último, sem préstimo, obscuro/ aí vem, com seu sorriso, a face arcaica: o Deus. ”, lia-se já em A Nuvem (A Pedra Formosa Edições, 2000, in Arte Nenhuma (Poesia 1987-2012), Opera Omnia). Autoria: Carlos Poças Falcão Opera Omnia Ler excertoEm Sombra Silêncio, Carlos Poças Falcão propõe a necessidade de uma espécie de raciocínio indutivo, que subverte a ordem dos factores; sempre questionando, avança a seguinte hipótese, em dois versos de um dos poemas aqui coligidos: “se nada encontras/ como hás-de procurar?” (p. 39) O sujeito desta poesia assume, portanto, a sua posição enquanto agente que se apresenta despido perante a violência da questionação — “aí, na indefensão, nos entregamos e vivemos” (p. 12). Um sujeito que se concebe perante uma ordem alternativa à dispersão do concreto, da sua energia imediatista e dissipada — “Eu sou a noite/ eu sou a espera inútil, a vasilha que ressoa. / A minha alma é nova, mas espero deste sempre. / Como o deserto espera pela gota que há-de vir. ” (p. 9) À concretude limitadora, esta poesia contrapõe, ou associa, uma perenidade que, ainda assim, se faz de matérias perecíveis, como uma vasilha, e de encontro a um lugar concreto, como o deserto — mas onde ressoam a informação cultural e a matriz bíblica, aspectos fundamentais nesta poesia. Um dos poemas reunidos em Sombra Silêncio abre com dois versos especialmente reveladores: “Aprendi a ver de longe a grande árvore das crenças/ com os seus frutos de álcool e sombras desejadas. ” (p. 48) Esta “árvore das crenças” não é, porém, um indício de endoutrinação, nem constitui qualquer assomo de uma piedade que cometesse a falha de esquecer o “deus inquietado”(p. 52), que, pelo contrário, comparece, poucas páginas depois. Porque a poesia de Carlos Poças Falcão nunca oculta que se escreve “Daqui deste ruído” (p. 24), mesmo quando se dirige a Deus, como sucede no poema cujo primeiro verso acabado de citar, nem se recusa a ouvir o “clamor civil” (p. 30). Sendo esta uma poesia de interrogação e busca do transcendente, ela parte do terreno — “O mundo é minha língua, quando falo escuto-me outro/ e as frases desunidas, por sentidos enganados/ conduzem-me a um lugar de desencontro. ” (p. 24) Contudo, também se pode dizer que a acumulação de elementos heterogéneos, difusos, e até certo elenco de banalidades, serve, paradoxalmente, para suplantar esse muro irreversível que é a taxatividade — “como pedir ajuda aos arrabaldes/ como fazer oferendas às rotundas/ seguir na ordem certa das fachadas?” (p. 42). Com o decurso dos versos, tudo se fortifica de novas implicações, níveis aventícios do sentido — “não ouças os apelos/ não despertes seus olhares// porque são apenas homens e demónios” (id. )Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Uma poesia como a de Carlos Poças Falcão é, necessariamente, uma revisitação (lúcida e emancipada) de um vasto legado. Ao lermos estes versos: “Subir uma montanha é fincar-se ainda à terra/ ascender a altos cumes é ainda horizontal. ” (p. 22), ou quando somos confrontados com ocorrências como “um desconhecer a pique” (p. 27), não é apenas da dualidade entre terreno e divino que se trata, mas de uma descodificação do que é idiomático, dentro dos códigos do texto bíblico, enquanto fonte cultural e literária. O conhecimento é ascensional, no sentido em que prefigura uma superação metafísica, ou um confronto superador entre a visceral incompletude humana e a totalidade infinita do transcendente — o temporal e o espiritual, se é adequado tal simplismo. Mas, além da poderosa imagem da montanha, esta poesia abeira-se, por exemplo, do sortilégio do Cântico dos Cânticos, para fazer uma releitura dinâmica daquele grande monumento lírico (e devocional). Este universo poético, altamente codificado, estatuído na sua gramática própria, é recalculado e refeito, na poesia de Carlos Poças Falcão, através de uma imagética subtil, profundamente sugestiva, e de hábeis apropriações, de timbre, mais do que sensual, insinuante, que colhem inspiração no texto bíblico para lhe dar nova vida e diferentes configurações — “percorre a minha pele/ é nela que lhe ofereço o coração// beija-me a sua boca é néctar/ olha-me o seu olhar protege-me” (p. 15). A memória e a reinterpretação da matriz bíblica opera poderosos efeitos na construção de sentidos vários e actuantes que estes poemas nunca deixam de ser. Uma sequência como: “o que é humano ao centro/ como um sacrifício vivo/ que não acha repouso” (p. 44) recorda-nos que o fardo — e a benesse? — do ser humano é, ao contrário dos restantes animais, não ter real quietude à sua disposição, nem verdadeiro abrigo com que possa contar. O que não pode deixar de ecoar as palavras de Mateus: “O Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. ” Trata-se, não de índices de erudição, mas da capacidade de transfigurar e transpor o que poderia fixar-se e petrificar, tornando-o, pelo contrário, uma parte da vida. Esta poesia reflecte sem receios acerca da condição humana, sem obliterar a desumanidade que, a maior parte das vezes, a define — “Perseguições e mortes são o tédio a história/ mas para os céus clementes tudo flui. ” (p. 13) Ao fazê-lo, não pretende coarctar as suas possibilidades como espécie, mas lançar as bases para um debate íntimo e quase silente, o que estes poemas levam a cabo. Uma tentativa de entender “a obrigação da liberdade” (p. 19) e o horizonte iniludível da adversidade — “o mal/ não está no escolher, mas na fractura de me ver” (p. 11) —, uma condição à qual o sujeito não foge. Ao poema, com a sua “voz pobre” (p. 37), mais não resta do que a humildade de assumir a “mais obscura idade” (p. 43) em que se forma e em que, também ele, deve “entrar no fogo/ e só arder” (p. 55). Mais não lhe cabe do que a oferenda de “palavras para um tempo de secura e esquecimento” (p. 37).
REFERÊNCIAS:
Marlene Monteiro Freitas ganhou um leão com asas mas não vai deixar de ir à caça
Quando o Leão de Prata da Bienal de Veneza (o primeiro de sempre para a dança portuguesa) lhe chegou às mãos, em Junho, já tinha estreado uma peça em Israel que foi toda uma educação política (além de coreográfica). A carreira promete prosseguir, fulgurante, para esta coreógrafa cujas peças têm a potência avassaladora, tão próxima da vida quanto da morte, dos Carnavais de São Vicente. (...)

Marlene Monteiro Freitas ganhou um leão com asas mas não vai deixar de ir à caça
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quando o Leão de Prata da Bienal de Veneza (o primeiro de sempre para a dança portuguesa) lhe chegou às mãos, em Junho, já tinha estreado uma peça em Israel que foi toda uma educação política (além de coreográfica). A carreira promete prosseguir, fulgurante, para esta coreógrafa cujas peças têm a potência avassaladora, tão próxima da vida quanto da morte, dos Carnavais de São Vicente.
TEXTO: Não a vimos muito por cá em 2018, mas foi por boas razões: Marlene Monteiro Freitas passou metade do ano em Tel Aviv a resolver o quebra-cabeças (para ela inédito) de criar uma peça para uma companhia estabelecida, a Batsheva, isto enquanto media cada passo que dava no campo minado do conflito israelo-palestiniano; e a outra metade a mostrar trabalhos anteriores como Guintche (2010), Jaguar (2015) ou Bacantes – Prelúdio para uma Purga (2017) num território que já domina, o circuito internacional. Exactamente a meio, em Junho, marcando um antes e um depois pelo menos simbólico – porque não o vê a afectar assim tanto o que fará a seguir –, recebeu das mãos de Marie Chouinard (e ao lado de Meg Stuart) o Leão de Prata da Bienal de Veneza, o primeiro de sempre para a dança portuguesa. Sempre em trânsito – por estes dias, entre Estrasburgo, Lisboa e Munique –, não foi fácil apanhar a mais selvagem das nossas coreógrafas, corpo de transformista, cabeça em mise en abîme, o killer-instinct de uma caçadora, para esta entrevista. Nisso, 2018 não foi um ano assim tão excepcional: em 2019 e 2020 continuaremos a ter saudades de a ver por cá. O que é que se faz com um Leão de Prata de Veneza? Literalmente: onde é que ele está?(Risos) Ficou muito tempo guardado numa caixa. Agora está visível, numa estante. Mas demorou a sair da caixa, não sei porquê. E não fui eu que o tirei (risos). Ser oficialmente consagrada como “um dos melhores talentos da sua geração” mexe com a cabeça de um artista?Um Leão de Prata de Veneza é aquele tipo de coisa que nunca imaginamos que vai acontecer: não é um prémio que se espere. Não me passava pela cabeça sequer que do facto de o Bacantes ter sido selecionado para o programa da Bienal de Dança resultasse uma distinção. É um marco importante, uma razão para celebrar, mas fundamentalmente acho que não muda nada: não muda a minha relação com o trabalho ou com os meus colaboradores, não muda os projectos que penso realizar. Conseguir fazer um projecto é um passo importantíssimo, traz tanta felicidade quanto uma distinção destas. O que é possível – e vejo isto com outra nitidez agora, porque depois de Veneza já estive em Cabo Verde [De Marfim e Carne – As Estátuas Também Sofrem abriu em Novembro o festival Mindelact] – é que este prémio abra uma possibilidade: para um jovem cabo-verdiano ter um percurso como o meu deixou de ser irreal. Cabo Verde é um país com poucos meios, onde não há uma formação artística convencional (sou um exemplo disso, tive de sair para passar por uma escola de dança)… O mediatismo do Leão de Prata, a recepção que ele teve por parte dos poderes políticos, a possibilidade de o Governo concluir que é necessário um investimento nas áreas artísticas: isso sim, pode dar uma forma valiosa a este prémio. O facto de o prémio ter sido proposto pela Marie Chouinard – que, embora numa direcção radicalmente diferente, também trabalha o corpo a partir da deformação e da mitologia clássica, dois tópicos seus – tem alguma importância simbólica? O trabalho dela faz parte da sua genealogia, ou é absurdo pôr as coisas nesses termos?Não é absurdo. Eu conhecia o trabalho da Marie Chouinard das aulas da história de dança, tem todo esse peso (risos)! E mais tarde, quando acabei a minha formação na P. A. R. T. S. e tive um programa comunitário na Cova da Moura [Não vamos ter aulas de dança, vamos ensaiar], fui com alguns jovens do bairro ver uma peça dela ao Centro Cultural de Belém: o impacto daquelas imagens foi extraordinário. Mas a minha história pessoal com a Marie Chouinard começa em 2012, quando levámos a Montréal o (M)imosa / Twenty Looks or Paris is Burning at the Judson Church [co-criação de Marlene Monteiro Freitas com François Chaignaud, Cecilia Bengolea e Trajal Harrell] e ela foi ver a peça. Foi por essa altura que me disse que se eu quisesse fazer parte da companhia dela podia ir quando quisesse (risos). Eu não tinha nada a ver com aquilo, acho que no fundo ela sabia que eu nunca iria (risos)! A verdade é que não nos encontrámos estes anos todos. Se há uma genealogia… certamente que eu venho de algum sítio. Mas posso encaixar-me em várias histórias da dança, não consigo escolher apenas uma parte dessa história. A questão das influências é sempre muito difícil para mim. Gosto de muitas coisas – e não digo isto por disparate. Tanto me sinto próxima de um instante de uma peça como de um instante de um filme ou de uma música; informam o meu trabalho de igual forma. Não posso afirmar descendência directa de uma linha ou de uma forma de fazer específica. Então que genealogia é relevante?O meu avô [Jorge Monteiro, conhecido como Jotamont] era compositor, tenho uma tia que veio muito nova para Portugal estudar música… Mas são coisas infinitas. O meu pai não tinha nenhum talento artístico (até tinha: conseguia construir coisas com as mãos…) mas tinha uma imaginação tão livre que ainda hoje é recordado por isso. A capacidade dele para criar uma realidade paralela e fazer-te vaguear dentro desse mundo era um talento muito presente, muito forte: eu cresci a ver e a sentir coisas que não existem. A minha mãe tinha uma relação com a música também, mas mais espontânea: tocava muito o piano lá de casa. E adorava dançar: era a melhor bailarina nas festas, lembro-me de ouvir as pessoas dizerem “esta música, vou ter de dançá-la com a Neuza”. A minha irmã, dez anos mais velha, com quem partilhava o quarto, tinha dois posters enormes com uma bailarina clássica, bailarinas nas capas dos cadernos… E tinha um livro, O Mundo do Ballet¸que eu acabei por herdar; muitos anos mais tarde, vim a descobrir que a minha imagem preferida, um homem todo pintado, a segurar um arco, era um bailarino do Béjart…Sempre dancei muito com a minha irmã em frente ao espelho, depois comecei a fazer ginástica rítmica. Mas não gostava das competições – e a partir de determinado nível tornou-se uma prática muito solitária. Nessa altura já coreografava: escolhia uma música e um figurino, treinava os passos. Fiz a minha primeira coreografia – não sei se posso dizer isto (risos) – aos seis anos, com uma amiga, para uma festa na rua: com o La isla bonita, da Madonna. Depois tive um grupo de dança com amigos, criávamos números para festas da escola, concursos de misses… Mas o meu primeiro contacto com a improvisação foi em casa de um músico, o Vasco Martins, teria eu uns 14 anos: estava sozinha num quarto, no outro uma data de músicos importantíssimos, e ele pediu-me que os ouvisse e fizesse o que me viesse à cabeça (risos). Acho que para mim tudo começou nesse quarto. Sempre gostei mais de trabalhar quando não está ninguém a ver. E houve o encontro com a Clara Andermatt…Que foi uma sorte. Eu não estava inscrita no workshop, mas ela viu-me tão interessada que disse que eu podia ir. Quando vi o resultado final, fiquei mesmo com vontade de fazer. Até aí eu sabia e não sabia. Também gostava muito de psiquiatria, mas o que me interessava na psiquiatria era a mente, e ter de passar pela medicina toda afastou-me. Acabei por ir para a dança, coisa ainda mais obscura (risos). A declaração do júri da Bienal de Veneza descrevia o seu trabalho a partir de expressões como “híbrido”, “metamorfose” e “deformação”. Reconheceu-se?Em parte. Também porque prezo muito a ideia de que as pessoas podem falar do meu trabalho à sua maneira. Eu trabalho justamente para que o espectáculo permita que as pessoas projectem ali a sua imaginação. Não tento controlar o que se diz sobre o meu trabalho; às vezes eu própria digo asneiras… Sim, o meu trabalho é sempre sobre o híbrido, a metamorfose, a intensidade, mas também é sempre mais do que isso. E quando eu falo do híbrido, não se trata de perseguir uma criatura estranha com asas – como o Leão de Veneza –, mas da possibilidade de colocar umas coisas ao lado das outras, coisas que não imaginarias juntas, para ver o que resulta a partir daí. O espectáculo tem a sua forma, tem princípio, meio e fim, tem um nome, tem uma estrutura que foi ensaiada, controlada… mas é uma entidade viva: só fala pela boca do público, só vê pelos olhos do público. Mesmo que para mim, antes, durante e depois disso, esteja o prazer de dançar, o prazer físico de procurar no corpo a dança específica de cada trabalho. E um brincar com os materiais e os códigos de cada espectáculo. Trata-se sempre de coleccionar coisas e experimentar o que vai acontecer a este corpo, nesta peça: é tão básico quanto isso. Mesmo quando eu não entro, como na peça mais recente: dançava com os bailarinos todos os dias. Não passo sem isso, tenho de pôr o corpo no centro. Mas há a tal fase em que está sozinha a acumular referências. Não são processos separados, um alimenta o outro. Às vezes parece que eu parto de uma ideia central para coisas muito periféricas, mas isso acontece com o corpo também. As referências que vou encontrando informam o que faço com o corpo, o que faço com o corpo leva-me à procura de referências: há um ir e vir muito conectado. E a música está lá sempre. Eu muito rapidamente sou alterada pela música, influencia-me tremendamente, é automático. Desde miúda. Quando fazia os meus esquemas para a ginástica, ia à rádio de São Vicente procurar músicas que não conhecia. Ainda faço isso. E em todas as direcções: o meu gosto musical é muito ecléctico. Mas isso também acontece com os filmes, com a pintura: o que me toca não é a forma, é a intensidade. O júri do prémio também fazia outra referência que se tornou um lugar-comum: o Carnaval de São Vicente. É mesmo essa a raiz do prazer da metamorfose e da deformação até ao limite do esteticamente incorrecto?É. Esse jogo do tornares-te qualquer coisa, do tornares-te outro, a permissão de uma certa desordem, ou da coabitação da desordem com a ordem, da fealdade com a beleza… Em pequena eu adorava ficar a ver os homens que comiam babosa [aloé vera], aquela textura como ranho na boca: era impressionantemente feio e ao mesmo tempo fascinante. Essa passagem de um estado ao outro, de um ritmo ao outro, é uma coisa que me fascina muito, pelo movimento que permite: um riso que se torna um grito, uns olhos desvairados que se tornam tristes. A tensão entre extremos, entre opostos, tem uma fragilidade qualquer. E essa experiência continua impressa mesmo passados… quando foi o seu último Carnaval em São Vicente?Há demasiado tempo. Queria ir este ano, mas não consegui ter duas semanas de paragem – porque há uma coisa que as pessoas aqui não percebem, o Carnaval em São Vicente não são só uns dias. Mas estive no fim de ano. Fala-se muito do Carnaval, mas também há o fim do ano, as festas do São João, fortíssimas, cheias de álcool, de terra, de dança, de música – sempre tomei parte, mesmo que acontecessem à noite e não fossem propriamente feitas para crianças… É difícil explicar, mas não é só o dia da festa, são os dias a fio a imaginar a roupa e as horas que passas no costureiro, que afinal não tem tempo e às tantas, quando vais lá no último dia para os acabamentos, tem mil pessoas à espera, e já tens as lantejoulas coladas e o cortejo já está na rua, e aquilo vai tudo mal mas é incrível na mesma. No primeiro dia de Janeiro, a banda (que dantes era dirigida pelo meu avô) vai pelas ruas a tocar sempre a mesma música horas e horas e horas – ninguém se cansa. Acompanhas a banda, a música é feliz, mas entras em casa das pessoas e sabes – porque numa ilha toda a gente se conhece – que no ano que passou esta família perdeu alguém, que naquela casa há alguém que está nos últimos dias, que na outra nasceu um bebé: tudo ganha uma potência desmedida. O cortejo cruza-se com as pessoas que saem das festas e que se puseram bonitas mas já não estão tão bonitas porque beberam, porque perderam um brinco, porque vêm com os sapatos nas mãos… Não há como isto não ficar contigo para sempre. E outra coisa de lá que ficou comigo: a relação entre a morte e a vida, que é muito diferente. Também coabitam?Em Cabo Verde a morte vê-se. O cortejo fúnebre é uma coisa muito presente, faz parte da vida. Mas é claro que só dei conta disso quando saí. Portugal foi um choque?O choque mais radical que se possa imaginar. Foi doloroso, em todos os aspectos. Porque parece um sítio familiar, de tão presente que está no imaginário cabo-verdiano – só quando chegas é que percebes a distância que há. No meu caso a própria relação com o que vim cá fazer – a formação na Escola Superior de Dança – não foi pacífica. Estava habituada a um ritmo de trabalho muito intenso, mesmo que a um nível amador, e na escola o corpo não estava assim tanto em movimento. Achei tudo muito pouco. Mesmo que eu já soubesse - talvez por vir de outro contexto – que a escola não era o sítio onde eu ia encontrar tudo, o onde eu ia estar 100% satisfeita. Só estou 100% satisfeita no palco. Mas não ficou 100% satisfeita como bailarina, também quis coreografar…Eu encontro muita satisfação como bailarina; é outra forma de fazer as coisas. E durante muito tempo, mesmo quando já trabalhava mais como coreógrafa, tentei arranjar tempo para isso – já não tento. Quando foi a última vez?Acho que foi com o Boris [Charmatz, Tout Cunnigham, 2008]… ou talvez tenha sido com a Emmanuelle Huynh [Cribles, 2009]. . . Ou o trio com a Tânia [Carvalho, O Reverso das Palavras, 2013]. Meu deus, já não sei! Mas não faço mais apenas por não poder. Quando as pessoas me convidam dá-me logo vontade, tenho de me controlar. 2018 foi o ano do Leão de Prata, mas também de outra primeira vez: a criação para o elenco de uma companhia, a Batsheva. Em Junho dizia: “Vai mudar a minha forma de trabalhar”. Mudou mesmo?Sim. Estou habituada a trabalhar com os intérpretes que eu escolho e aqui havia um elenco, ainda por cima grande. Os meus planos para ir trabalhando com pequenos grupos à medida que a peça evoluía foram por água abaixo. Mas criar o Canine Jaunâtre 3 [a peça chegará a Culturgest, em Lisboa, e ao Teatro Municipal do Porto em 2020] foi uma experiência incrível, com uma carga emocional muito, muito forte – quando acabei estava exausta. Ia assustada?Muito. As pessoas diziam-me que eu não tinha nada a ver com a Batsheva, mas as diferenças de vocabulário coreográfico não foram nunca uma questão. E acho que temos em comum uma dedicação visceral ao trabalho. Desde o início que tanto eu como eles tivemos bem presente que trabalharmos juntos implicaria eu ir na direcção deles e eles virem na minha. E entretanto estava a trabalhar com uma companhia de dança israelita numa peça a estrear no Israel Festival…. . . e a lidar com pedidos de boicote. Foi muito duro. Porque é uma situação muito séria e não se pode lidar com ela de forma ingénua. Tive de estudar o assunto para me sentir em condições de dar uma resposta e definir a minha posição em relação a este trabalho. Portanto foi uma questão?Foi sempre: antes de aceitar o convite do Ohad [Naharin], durante todo o processo de criação e até hoje. E não é por causa das cartas de apelo ao boicote, é porque sabes que estás a trabalhar num país que tem em curso uma limpeza étnica há 70 anos. Quando o Tiago Rodrigues, já em Maio, renunciou à participação no Israel Festival…Nessa fase eu já tinha trabalhado muito para chegar à minha posição – mas a carta mexeu comigo. Eu acho que é preciso boicotar, mas também é preciso perceber muito bem o que se está a boicotar para não se fazer o jogo do Estado israelita – porque os principais opositores à política do Estado de Israel estão em Israel. A minha resistência ao boicote nunca passou por qualquer tipo de ingenuidade; acho é que a situação é de uma complexidade tão grande que não se resolve com uma declaração, nem com um email, nem com um boicote. Nem com uma peça, claro. Mas a conclusão a que eu cheguei foi que a linguagem em que eu me sinto mais à vontade é aquela em que eu me movo: não consigo dizer com um boicote tudo aquilo que consigo dizer com o Canine, ou com as coisas que eu vou descobrindo nas minhas visitas à Palestina… Há a possibilidade de montar cá uma programação com artistas e ONG que têm trabalhado sobre a questão israelo-palestiniana. Por obrigação moral?Não no sentido de ter de expiar uma culpa, mas no sentido de achar que devemos perceber o que está a acontecer. O Canine já exprime a minha posição de um modo claro. Há sempre diferentes leituras possíveis, mas é um espectáculo em que duas equipas se dedicam com muita infantilidade a um jogo de construir e destruir, erigir e demolir – um jogo cujas regras podem mudar, conforme o que se quer conseguir… Isto é o Canine. Diz o que eu tenho a dizer. Portanto Israel fez da Marlene Monteiro Freitas uma programadora?Não! Seria uma catástrofe! Uma vez fiz isso em França e o que era suposto ser uma coisa pequena tornou-se gigante. Mais planos para 2019?Em 2020 há uma peça a fazer com os actores da Kammerspiele de Munique (ainda não sei se também haverá bailarinos) e o trabalho já está a começar. Mas este ano faço uma instalação para a [bienal] BoCA. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E muita circulação internacional?Alguma, mas estamos a tentar reduzir porque terei de estar bastante tempo em residência. Mais fora de Portugal do que dentro, como sempre?Sempre foi assim. As peças de uma coreógrafa que vive em Portugal não sentem falta de ter um público português?Ninguém faz espectáculos para não serem vistos. E o trabalho que se faz numa peça a partir do momento em que ela finalmente contacta com o público é muito importante – privar um espectáculo disso é terrível. Mas é como se já nos tivéssemos habituado à dificuldade de apresentar o trabalho cá; temos de nos desabituar.
REFERÊNCIAS:
Diz-se Senhora Presidenta e é uma galeria de arte no Bonfim
Mariana Malhão, Dylan Silva e Luís Cepa, três jovens artistas vindos da FBAUP, juntaram-se a Célia Esteves, experiente designer e criadora da GUR, e juntos abriram uma loja-galeria. A Senhora Presidenta existe e mora no Bonfim, Porto. (...)

Diz-se Senhora Presidenta e é uma galeria de arte no Bonfim
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mariana Malhão, Dylan Silva e Luís Cepa, três jovens artistas vindos da FBAUP, juntaram-se a Célia Esteves, experiente designer e criadora da GUR, e juntos abriram uma loja-galeria. A Senhora Presidenta existe e mora no Bonfim, Porto.
TEXTO: A Senhora Presidenta — assim mesmo, “Presidenta”, sem pompa e circunstância — convida a entrar. Tem janelas de cima abaixo, muita luz, uma loja de tapetes e uma jovem galeria de arte montada pelos três jovens artistas que trabalham lá atrás, num atelier que esconde secretárias, provas, esboços, teares e o cão Xuxu que, às vezes, decide mostrar-se, divertido. Entremos, então. Lá dentro encontramos Mariana Malhão — “ilustradora, apesar da licenciatura em design”, 23 anos — Dylan Silva — 25, “considero-me sobretudo pintor” — e Luís Cepa, 24 — “assumidamente designer gráfico, sim”. Os três conheceram-se na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), muito próxima dali. “Há o quê, seis anos?” Mariana desvaloriza: “Não importa, também no início não éramos assim tão amigos. ”A ilustradora de Coimbra e o pintor da Marinha Grande já eram vizinhos. Da faculdade e, sem saberem, da antiga casa de sistemas de vigilância que, com a ajuda e "mentoria" da designer Célia Esteves, criadora dos tapetes GUR, transformaram na mais recente loja-galeria do Bonfim. Mas já lá vamos. Antes, há cerca de um ano, os dois artistas começavam a Sábado-Feira, uma "feira de artes diversas no Maus Hábitos”, aos sábados. Tinham trabalho, mas faltava-lhes um espaço próprio, “sério”, para trabalharem. Ao mesmo tempo, inquietavam-se. “Mas e a seguir?” Passo um, decidiram: “Encontrar um atelier. Tínhamos saído da faculdade há pouco tempo e queríamos focar-nos no nosso trabalho enquanto artistas. ”Arrendaram, então, um espaço soalheiro voltado para o Mercado do Bolhão, poucos meses antes do início das obras no mercado centenário. Seduziram Luís Cepa, arranjaram-lhe uma secretária e nesse primeiro atelier divertiam-se a imaginar as histórias da primeira Senhora Presidenta — que na altura ainda era só uma (senhora) gaivota de bico arrebitado, sempre atenta aos momentos de distracção das peixeiras. “Falávamos muito em ter uma galeria nossa”, confidencia Mariana Malhão. Mas precisavam de um “empurrão”. Coragem. Foram buscá-la a Célia Esteves, da Gur, e a Rui Vitorino Santos e Júlio Dolbeth, professores na FBAUP com atelier nas redondezas e fundadores da Dama Aflita, a desaparecida galeria de desenho e ilustração, uma das poucas no Porto. Sem ela, haveria um espaço por preencher na cidade?“Falo por mim, eu tinha algum saudosismo em relação à Dama Aflita”, começa por dizer Luís. “Mas não sei se queremos esse peso, não sei se o aguentamos. O legado que traz… Somos coisas distintas. ” “Ai Jesus do Céu”, deixa escapar Mariana. Dylan interrompe-os. “Claro que há a Ó!, mas nós sabemos que, em termos de galerias, o Porto comparado com Lisboa é muito mais fraco. Então porque não?”, atira-lhes. Foi uma “simbiose” de vontades. Célia Esteves queria abrir a primeira loja física da Gur, a marca de tapetes de lã feitos à mão com o auxílio de um tear através da técnica tradicional do puxadinho. Foi a designer que encontrou aquele espaço, na Rua Joaquim António de Aguiar. “Vamos?”, perguntou-lhes. “E nós confiámos”, explica Mariana, que não se cansa de repetir que este “não é um projecto só de três jovens artistas loucos”. Ou que “sem aquela rede de segurança não estariam ali”. “E seria um desperdício deitar fora os conselhos que os três nos deram. E os pregos e outros materiais que herdámos [da Dama Aflita]”, brinca Mariana. Tanto a Senhora Presidenta como a Gur partilham a porta 65 e o atelier com entrada pela galeria (um dos requisitos do grupo, para não terem de separar o artista do galerista). “Apesar de serem espaços teoricamente diferentes, contaminámo-nos”, poetiza Luís Cepa. Aproveitam para fazer do encontro uma das regras de ouro da loja-galeria: “Não nos vamos focar numa coisa só. Não nos sentimos obrigados a dizer ‘nós somos isto’. Não queremos estar a fechar as portas porque é uma coisa totalmente diferente, ou porque não a entendemos. ”Na galeria, que se inaugurou a 15 de Setembro, querem “essa mistura toda”. “O interessante é mesmo haver essa dinâmica entre alguém com projecção internacional e alguém da cidade que está a agora a começar", realçam. Aquando da visita do P3, uma das paredes ainda se revestia de guardanapos. Em vez de limpar a boca, a dupla portuense Chei Krew rabiscou-os e transformou-os numa exposição que reflecte o quotidiano dos cafés portugueses. Depois de Berlim, a mostra passou pelo Porto, marcando assim a estreia das exposições VRRRUMMM, caracterizadas pela “efemeridade”. A partir de 3 de Novembro, a galeria recebe 20 piscinas e uma garrafa de Rum, com pinturas e desenhos de Bruno Borges. Com o tempo, o calendário quer também preencher-se de exibições de filmes, workshops, conversas. Datas, só para o ano. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na semana anterior, decorreu ali o lançamento da terceira edição do “jornalinho de bairro” O Bonfim, publicação de distribuição gratuita criada por uma tradutora, uma ilustradora e uma designer gráfica da freguesia na parte oriental do Porto. Algumas cópias ainda repousavam por estes dias na galeria. Folheada a primeira página, o leitor pode encontrar um levantamento “do circuito de arte no Bonfim”, cada vez mais preenchido também por nesta zona ainda ser possível encontrar "áreas acessíveis para arrendar por estudantes e artistas”. “Eu vivo a 20 metros daqui e tenho a noção que esta zona do Bonfim está a crescer muito. Acho que não queríamos ir para uma zona muito turística. Ou queríamos?”, pergunta, retórico, Dylan. “Eu não queria”, apressa-se Luís, e prossegue: “Uma das coisas boas daqui é que estás a dois minutos a pé do Coliseu, mas ao mesmo tempo esses dois minutos dão-te a segurança de estares um sítio calmo para trabalhar e onde ainda consegues ter a experiência quase de bairro, de cumprimentar as pessoas que passam lá fora. ” No jornal, a fotografia que acompanha o levantamento dos espaços artísticos da “vizinhança” mostra, precisamente, aquela galeria, a mais recente adição a um circuito “em crescimento evidente”. E deixa uma pergunta, à espera de novas respostas: “À hora do fecho desta edição, quem sabe se novos pontos neste mapa não se desenham?”
REFERÊNCIAS:
Na doença de Alzheimer nem sempre a morte de neurónios é má
Através de experiências com moscas-da-fruta, cientistas do Centro Champalimaud verificaram que, nas fases iniciais da doença de Alzheimer, a morte de neurónios danificados pode ser vantajosa. (...)

Na doença de Alzheimer nem sempre a morte de neurónios é má
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.69
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Através de experiências com moscas-da-fruta, cientistas do Centro Champalimaud verificaram que, nas fases iniciais da doença de Alzheimer, a morte de neurónios danificados pode ser vantajosa.
TEXTO: Era do consenso geral que a morte de neurónios no cérebro era responsável pelo caos cognitivo associado à doença de Alzheimer. Agora, uma equipa de cientistas do Centro Champalimaud (em Lisboa) – juntamente com investigadores da Suíça – desconstrói essa ideia através de experiências com moscas-da-fruta e refere que a morte neuronal pode não ser má. O que pode ser? Um mecanismo para controlar a qualidade celular com o objectivo de proteger o cérebro da acumulação de neurónios disfuncionais. O gatilho que desencadeou o trabalho apresentado esta quarta-feira na revista Cell Reports foi accionado em 2015 com a publicação de um estudo na Cell sobre o mecanismo de competição celular. Este mecanismo controla a qualidade dos tecidos e terá surgido na evolução dos organismos mais complexos para resolver conflitos entre células. “As células do mesmo tecido comparam constantemente os níveis de ‘fitness’ (aptidão) entre si. Aquelas que apresentam uma aptidão mais baixa, ou seja, que se encontram danificadas ou que sejam pouco funcionais são eliminadas por morte celular, deixando de fazer parte do organismo”, explica Dina Coelho, do Centro Champalimaud e primeira autora do artigo. A investigadora indica que isto é vantajoso por duas razões: para excluir células doentes que podem dar origem a um organismo defeituoso durante o desenvolvimento ou envelhecimento; e para proteger o organismo das “células egoístas” – como as células cancerosas – que não contribuem para o seu bom funcionamento. Ora, no estudo de 2015 descrevia-se a competição celular como um mecanismo de antienvelhecimento. Neste mecanismo, as células danificadas que normalmente se acumulam no corpo ao longo da idade são eliminadas, o que será benéfico tanto para a integridade dos tecidos como para a saúde do indivíduo. Fez-se então a pergunta: estará este mecanismo envolvido em doenças em que o factor de risco é a idade, como as doenças neurodegenerativas? “Isto nunca tinha sido testado”, assinala Eduardo Moreno, do Centro Champalimaud e coordenador do estudo juntamente com Christa Rhiner (também do Centro Champalimaud), num comunicado da Fundação Champalimaud. O teste foi feito em moscas-da-fruta. Para tal, a equipa manipulou geneticamente este animal para que expressasse no seu sistema nervoso a versão humana da proteína beta-amilóide (que forma placas no cérebro de doentes com Alzheimer). Observou-se então que apresentava sintomas semelhantes aos dos doentes de Alzheimer como a acumulação de placas de beta-amilóide no cérebro, morte precoce, dificuldade em movimentar-se e problemas de memória. Isto acontecia porque os neurónios estavam danificados e os que estavam menos aptos eram mortos por competição celular. Por fim, testou-se se a morte neuronal – desaparecimento das células responsáveis pela transmissão de impulsos nervosos e que processam a informação, os neurónios – seria positiva ou negativa. Quando se bloqueou a morte neuronal, o cérebro deteriorou-se mais depressa e as moscas desenvolveram problemas de memória e de coordenação motora ainda piores. “No entanto, quando a cientista [Dina Coelho] estimulou o processo de competição celular, acelerando assim a morte dos neurónios disfuncionais, as moscas que expressavam a proteína associada à doença de Alzheimer tiveram uma recuperação impressionante”, lê-se no comunicado. “Para nosso espanto, conseguimos ver uma regressão impressionante dos sintomas: a estrutura do cérebro apresentava-se mais intacta, a locomoção era mais rápida e ágil e a capacidade de formação de memória foi recuperada”, relata a cientista. “O principal resultado foi o facto de existir uma selecção de neurónios ‘mais aptos’ em detrimento de neurónios ‘menos aptos’ quando o cérebro é confrontado com a proteína tóxica que causa a doença de Alzheimer e que essa selecção (que implica a morte de alguns neurónios) é, na realidade, um mecanismo protector para o organismo”, frisa Dina Coelho. Nas fases iniciais da doença, a morte dos neurónios mais danificados e menos funcionais é vantajosa porque pode permitir ao cérebro reajustar-se e estabelecer novas ligações que compensem a falta desses neurónios, acrescenta. Nos doentes de Alzheimer, os principais tipos de neurónios afectados e os que morrem primeiro são as células do córtex e as do hipocampo. É nestas zonas que se forma a memória, a capacidade de planeamento e da linguagem, que podem ser perdidas durante a doença de Alzheimer. “Usando o modelo da mosca-da-fruta na doença de Alzheimer, percebemos que a morte neuronal é benéfica para o indivíduo porque identifica e elimina especificamente os neurónios danificados. É melhor perder esses neurónios do que tê-los no cérebro a interferir com o seu funcionamento normal. Portanto, a competição celular é uma resposta do corpo contra a doença de Alzheimer”, explica Eduardo Moreno. Quebrou-se assim um dogma científico? “Penso que sim, porque todos julgavam que a morte neuronal era má e que podia explicar os problemas cognitivos associados à Alzheimer”, considera o cientista. “As nossas experiências confrontam isso porque mostram que a morte neuronal não é uma manifestação aleatória que afecta todos os neurónios, mas um processo regulado muito cuidadosamente e que mata especificamente os piores neurónios para beneficiar o cérebro como um todo. ”Por sua vez, Dina Coelho considera que tem de existir um equilíbrio entre os neurónios perdidos e os restantes, que são necessários para executar funções cerebrais. “Em fases já avançadas da doença, o equilíbrio é perdido e a morte drástica de um grande número de neurónios é irreversível, causando danos irrecuperáveis no cérebro que estão na base do caos cognitivo que caracteriza a doença de Alzheimer. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Estes resultados poderão contribuir para o desenvolvimento de novos tratamentos que acelerem a morte celular. “Além dos inibidores dos Bcl-2 ou Bcl-XL [genes que permitem às células cancerosas sobreviverem], estamos a tentar descobrir medicamentos baseados em anticorpos que poderão aumentar ou reduzir a competição celular”, indica Eduardo Moreno. Já Dina Coelho diz que este estudo sugere que os novos tratamentos deverão ser direccionados para fases mais iniciais da doença e ter como alvo neurónios menos aptos, “para que a saúde do cérebro possa ser prolongada por mais tempo”. “A comunidade científica tem chegado à conclusão de que, dada a complexidade da doença, um só medicamento que vise um único alvo não será suficiente e que o mais eficaz será gerar um tratamento que vise vários factores da doença. Os neurónios ‘menos aptos’ podem ser um deles. ”Mas antes de tudo isso (e porque é cedo para saber se a competição celular é um caminho a seguir), ainda terá de se verificar se os resultados deste estudo são replicáveis em ratinhos e humanos. “Até agora, sabemos que os mesmos genes responsáveis pela competição celular também existem em humanos, mas não sabemos se a sua função é conservada no que respeita à neurodegeneração e envelhecimento”, diz Dina Coelho. A equipa quer perceber ainda os detalhes envolvidos no reconhecimento e eliminação dos neurónios menos saudáveis e entender por que é que os neurónios eliminados são tão prejudiciais.
REFERÊNCIAS:
Documentário explica o fim da epopeia da caça à baleia nos Açores
Estreia-se esta sexta-feira um documentário com produção portuguesa sobre a transformação da indústria baleeira na actividade de observação de baleias no arquipélago açoriano. (...)

Documentário explica o fim da epopeia da caça à baleia nos Açores
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.05
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estreia-se esta sexta-feira um documentário com produção portuguesa sobre a transformação da indústria baleeira na actividade de observação de baleias no arquipélago açoriano.
TEXTO: Havia uma temática que não saía da cabeça da realizadora Sandra Cristina Sousa e da sua equipa constituída maioritariamente por açorianos: a caça à baleia nos Açores. “Era preciso fazer alguma coisa para arrumar este assunto”, conta-nos. Como tal, procuraram o que tinha sido feito sobre o tema e perceberam que faltava contar como a baleação nos Açores se tinha transformado na observação de baleias. Acabou-se por realizar o documentário Fortuna Escorregadia que se estreia esta sexta-feira na RTP1 às 21h. Sandra Sousa, agora com 42 anos, chegou aos Açores com apenas nove meses. “Portanto, posso considerar-me uma açoriana”, brinca a realizadora. “A baleação é um assunto que está no sangue dos açorianos. Foi uma epopeia e esta geração gostava de explicar de uma vez por todas que os [baleeiros] não foram assassinos e que estavam mesmo a tentar sobreviver. ” A explicação surge neste documentário de 52 minutos feito pela produtora audiovisual Comunicar Atitude, com sede na ilha do Pico, e com imagens subaquáticas de Nuno Sá. Os antigos baleeiros são uns dos protagonistas da história. “O meu avô começou a levar-me ‘à baleia’ com 14 anos de idade [quando se podia ser tripulante de uma canoa baleeira]”, recorda Manuel Medina Azevedo no documentário. Mas este é apenas um dos testemunhos. “Íamos lutar contra um animal que tinha muita força, mais do que a gente”, ouve-se de outro ex-baleeiro. “A grande maioria – e falo por conhecimento pessoal do meu pai – foi àquela vida por necessidade, não por gostar de matar baleias”, diz por sua vez António Manuel Garcia, também antigo baleeiro. “Houve uma fase em que se descrevia os baleeiros como assassinos, como os maus da fita”, recorda ao PÚBLICO Sandra Sousa. “Queremos mostrar que tudo se fez por uma questão de sobrevivência e por estabilidade financeira. ” E até o nome do documentário – Fortuna Escorregadia – se refere aos baleeiros. A expressão (greasy luck, em inglês) pertence a um poema que os baleeiros costumavam escrever nos dentes de baleia durante viagens de baleação. Este poema é declamado por Orson Welles no filme Barbed Water (1969) realizado na ilha do Faial no Verão de 1968. “A caça às baleias nunca deu dinheiro aos baleeiros para se sustentarem”, explica Sandra Sousa sobre o uso da expressão. Este documentário também pretende mostrar alguns “mal-entendidos e segredos” sobre o fim da baleação nos Açores. Em 1982, a Comissão Baleeira Internacional anunciou a suspensão da caça de todas as espécies de baleias com início a partir de 1985 e 1986. Ora, por esta altura, Portugal entrou para a Comunidade Económica Europeia (com a sigla de CEE e actual União Europeia) e fica mesmo impedido de caçar baleias, acabando por ser o último país europeu a abandonar a prática. “Pelo facto de estar à distância e pela sua insularidade, a maioria destas comunidades [açorianas] não terá entendido na altura o que era isto da CEE e porque iam acabar com a caça à baleia”, indica Sandra Sousa. Na altura, os baleeiros acabam por “culpar” o eurodeputado açoriano Vasco Garcia. Além disso, a realizadora diz que os baleeiros não perceberam que havia um cheque de 100 mil dólares (87 mil euros) da CEE para conversão da indústria baleeira na observação de cetáceos. Em 1987, caçou-se um cachalote (na verdade, foram três), a CEE não gostou e cancelou o projecto. Vasco Garcia conta este episódio no documentário. Sandra Sousa refere ainda que o mais interessante foi saber que foram os ambientalistas que criaram as bases para fomentar a criação das empresas de observação de baleias nos Açores. “Percebe-se que a baleação pode passar para whale watching [observação de baleias], que pode haver aqui um negócio”, diz a realizadora. “Foram os ambientalistas que falaram com as comunidades. Hoje os filhos dos baleeiros trabalham nessas empresas. ”Por exemplo, em 1989, o velejador francês Serge Viallelle – outro dos protagonistas do documentário – criou o Espaço Talassa, a primeira empresa de observação de cetáceos em Portugal. Hoje, a protecção das baleias é a grande questão sobre estes cetáceos nos Açores e o turismo tem o seu contributo. “O facto de já existir muito turismo a recair sobre as baleias faz com que não exista um controlo efectivo da protecção destes cetáceos”, avisa Sandra Sousa. “Há muitas embarcações no mar, tudo a correr atrás das mesmas baleias. ” Portanto, no final do documentário questiona-se se as baleias estão a ser protegidas e deixa-se no ar o que poderá ser feito. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Ainda temos de encontrar um equilíbrio e é por isso que continuo a insistir neste trabalho: para falar do equilíbrio da biodiversidade e do bom senso que o homem tem de ter com o nosso planeta. Não é só com as baleias”, aconselha Serge Viallelle no documentário. Mesmo com a proibição da baleação foram capturadas em todo o mundo 50. 751 baleias desde 1985, segundo dados de 2017 da Comissão Baleeira Internacional. No topo da lista está o Japão com a caça de 5519 baleias sem autorização e 15. 315 para fins científicos. A seguir está a Noruega com a captura de 11. 900 e Rússia com 6056, ambos os países sem autorização. A realizadora conta que já está a preparar um documentário sobre turismo sustentável (não só sobre as baleias) nos Açores. Chama-se Terras d’um Caim, expressão que nasce a partir de uma comunidade no Pico que consegue ser auto-sustentável em terrenos de basalto. Na Bíblia, Caim refere-se a uma terra árida. Por agora, fiquemos com o Fortuna Escorregadia esta noite na RTP1, na RTP Internacional às 21h15 e em 2019 na RTP Açores e na RTP Madeira.
REFERÊNCIAS:
O (ainda) mistério da estrela de Belém
Que fenómeno astronómico está por trás da designada “estrela de Belém”? A astronomia tem algumas hipóteses para este símbolo do Natal. E agora, se olharmos para o céu, quais as estrelas visíveis mais brilhantes em Portugal? (...)

O (ainda) mistério da estrela de Belém
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Que fenómeno astronómico está por trás da designada “estrela de Belém”? A astronomia tem algumas hipóteses para este símbolo do Natal. E agora, se olharmos para o céu, quais as estrelas visíveis mais brilhantes em Portugal?
TEXTO: Um dos grandes símbolos da época natalícia é a estrela. Por estes dias, quer seja no topo da árvore de Natal ou em músicas, a estrela brilhante está omnipresente. Tudo se deve ao relato bíblico (representado depois no presépio) de magos que seguiram uma estrela até Belém, onde terá nascido Jesus Cristo. Mas, do ponto de vista da astronomia, o que é esta estrela?“Ninguém sabe o que é. Do ponto de vista da astronomia, não há ninguém que possa afirmar que a estrela de Belém foi isto ou aquilo”, começa por dizer Rui Agostinho, astrónomo da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Ao longo dos anos, tem estudado esta questão, que aglomera várias componentes, desde o estudo de registos históricos e de datações usadas por várias civilizações para se apurar o ano de nascimento de Jesus Cristo à leitura e interpretação de textos bíblicos. No final, junta-se a astronomia. “Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos vindos do Oriente. E perguntaram: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. ’” Esta é uma passagem bíblica do Evangelho de S. Mateus, onde a estrela é referida. Comecemos então pela utilização do vocábulo “estrela”. “A palavra ‘estrela’ é usada erroneamente. O termo correcto será ‘astro’, era o que as línguas antigas utilizavam genericamente para indicar o que estava nos céus”, diz Rui Agostinho. “Fazer a tradução dos textos bíblicos para ‘estrela’ cria problemas, porque hoje em dia a palavra ‘estrela’ é atribuída muito especificamente a tipos de objectos que existem no céu. ” No fundo, ‘estrela’ significaria um sinal no céu. Máximo Ferreira, astrónomo e director do Centro Ciência Viva de Constância – Parque de Astronomia, explica: “O que se pensa é que ‘estrela’ teria (como ainda hoje pode ter) o significado de ‘luz que orienta’, ‘luz que serve de guia’. Assim, um ‘sinal no céu’ teria o mesmo significado. ”Afinal, a estrela de Belém pode não ter sido uma estrela. Mas, como destaca Rui Agostinho, não houve um cuidado em fazer uma descrição exaustiva, detalhada e o mais exacta possível sobre esta suposta estrela. Além disso, S. Mateus (dos quatro evangelistas incluídos no Novo Testamento) é o único que faz uma referência a este fenómeno e fá-lo de uma forma vaga e ambígua. O astrónomo frisa que nem S. Lucas – que era médico e muito rigoroso sobre aquilo que escrevia – refere o fenómeno. Quanto aos restantes pormenores desta história, não se sabe ao certo qual é ano do nascimento de Jesus Cristo, mas pensa-se que terá ocorrido entre o ano sete a. C. e um a. C. Sobre os magos do Oriente também não se sabe muito. O Evangelho de S. Mateus não dá pormenores sobre estes homens, apenas refere que levavam como presentes ouro, incenso e mirra. É só no século XIII que aparecem representados como três reis magos no presépio criado por S. Francisco de Assis. Também se sabe que o Oriente – até muito antes do nascimento de Cristo – era berço da astrologia e da astronomia e lá fazia-se, por exemplo, previsão de eclipses. Mas o que poderão então estes sábios do Oriente ter observado? Rui Agostinho refere como a resposta mais favorável a conjunção por três vezes entre os planetas Júpiter e Saturno (a Lua também estava muito próxima deles). Este fenómeno terá ocorrido ao longo de meses (e especulando): a primeira vez terá acontecido em Junho, colocando os magos de sobreaviso; a segunda terá sido em Setembro, o que fez que iniciassem a sua viagem de camelo para Jerusalém; e a terceira em Dezembro, o que os guiou até Belém. Sugerida pelo alemão Johannes Kepler (1571-1630), esta conjunção tripla entre Júpiter e Saturno pode ter acontecido no ano seis a. C. e é algo raro que só acontece a cada 300 e 400 anos. Uma conjunção acontece quando um planeta passa extremamente próximo de outro visualmente, ou seja, quando o ângulo de separação entre eles é pequeno. E Rui Agostinho acrescenta que este é um fenómeno discreto o suficiente para que a maioria das pessoas não preste atenção, mas que alguém como os magos do Oriente observassem. Além disso, esta conjunção terá acontecido na constelação de Áries, que estava associada ao povo judeu, salienta o astrónomo. Mas há mais hipóteses de “acontecimentos rápidos” como uma supernova e um cometa. Quanto às supernovas (estrelas que morrem e provocam uma explosão brilhante), à vista desarmada são muito rápidas e duram apenas semanas. E os magos terão demorado meses a andar pelo deserto de camelo até chegar a Belém. “E não há registo de nenhuma supernova nesses séculos ou que possa ser associada ao nascimento de Cristo”, sublinha Rui Agostinho. Um cometa também parece ser hipótese incompatível com o tempo de viagem dos sábios pelo deserto e seria um fenómeno a que mais pessoas teriam dado importância. “O que acontece é que quando os magos chegaram a Jerusalém e perguntam ao rei Herodes onde nasceu o menino porque o vinham adorar, Herodes não sabia de nada. Mandou chamar os sacerdotes e estes também não sabiam de nada”, assinala o astrónomo. “Aquilo que aconteceu não chamou a atenção de ninguém. ”Máximo Ferreira indica ainda que naquela época os cometas eram encarados como um “mau augúrio e, portanto, isso é contrário ao anúncio do nascimento de um ser que seria filho de Deus, salvador da humanidade e, além disso, ainda por não se encontrarem registos nem deduções de que um tal astro tivesse aparecido naquela época”. O cometa acabaria mesmo por figurar no fresco Adoração dos Magos do pintor italiano Giotto di Bondone datado entre 1304 e 1306. Contudo, o símbolo pintado refere-se à passagem do cometa Halley em 1301, que terá impressionado Giotto. A partir daí, a estrela de Belém começou a ser representada como um cometa. Máximo Ferreira também aponta como hipótese a supernova e a conjunção tripla de Júpiter e Saturno, mas acrescenta outras duas. Uma delas é a conjunção de Júpiter com a estrela Régulo, que no ano três a. C. terá tido a particularidade de também ter sido uma conjunção tripla. “O planeta passou por Régulo, da direita para a esquerda, estacionou e retrogradou, tendo passado de novo pela estrela, da esquerda para a direita, parou de novo e retomou o sentido de deslocamento habitual, tendo efectuado uma terceira passagem pela estrela”, explica Máximo Ferreira. A outra hipótese é que até poderia ter sido um grupo de estrelas, caso na época isso fosse considerado um sinal no céu para os magos. “A estrela Régulo e a constelação a que pertence, Leão, eram associadas à tribo de Judá, segundo uma profecia, e ‘traria ao mundo o Messias’. ”E pode não ter acontecido nada? “Estamos convencidos de que algo aconteceu”, responde Máximo Ferreira. “Podemos não saber interpretar o significado de ‘sinal no céu’ para procurar o que terá sido, mas é muito provável que a referência tenha alguma justificação. ” Já Rui Agostinho refere que a hipótese de não ter mesmo acontecido nada também pode ser colocada. A partir das 21h30 de 4 de Janeiro na Fábrica Centro Ciência Viva de Aveiro, Rui Agostinho vai juntar as peças deste fenómeno astronómico e mostrar simulações do céu naqueles anos, assim como conjunções triplas, supernovas e cometas. A entrada é livre e Rui Agostinho assegura que “vai ser giro”. Já agora, se em Portugal continental nos quisermos colocar no papel de magos do Oriente e observar o céu nocturno, quais as estrelas mais brilhantes que descobriremos? Por ordem decrescente, as oito estrelas mais brilhantes e visíveis em Portugal são: a Sírio (na constelação de Cão Maior), Arcturo (Boieiro), Vega (Lira), Capela (Cocheiro), Rígel (Orionte), Prócion (Cão Menor), Betelgeuse (Orionte) e Altair (Águia). Com excepção de Arcturo, todas as outras estrelas podem ser observadas agora (entre Dezembro e Janeiro) desde o anoitecer até à meia-noite, segundo Máximo Ferreira. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para quem queira começar a identificar estrelas e constelações, o astrónomo aconselha que participe em locais de divulgação de astronomia (como planetários e centros Ciência Viva). Depois, terá de se treinar individualmente com a ajuda de livros, mapas de constelações e aplicações informáticas. Quanto a estas aplicações, Máximo Ferreira aconselha: “Há apenas que ter a garantia de que a bússola do telemóvel está em pleno funcionamento para evitar que dê indicações erradas sobre a parte do céu então visível. ” Por fim, terá de se ter em conta o incómodo produzido pela luz do ecrã do telemóvel, se não tiver a funcionalidade de luz vermelha. Afinal, nada nos deverá distrair ou tirar uma boa observação do céu seja de uma estrela brilhante ou de um outro “sinal no céu”.
REFERÊNCIAS: