Quando as luzes se apagarem, brilharão os corpos que pagaram a crise
Dos estaleiros de Viana do Castelo aos bairros mais duros da Grande Lisboa, Marco Martins vem-se fixando obstinadamente nos despojos da crise. Desta vez, foi encontrá-los em Inglaterra, onde nos tornámos os melhores a esquartejar perus e a limpar rabos de reformados com Alzheimer. Provisional Figures Great Yarmouth, peça que agora chega ao Porto e a Lisboa, tinha tudo para ser um matadouro, só que não: este espectáculo salvou várias vidas. (...)

Quando as luzes se apagarem, brilharão os corpos que pagaram a crise
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Ciganos Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dos estaleiros de Viana do Castelo aos bairros mais duros da Grande Lisboa, Marco Martins vem-se fixando obstinadamente nos despojos da crise. Desta vez, foi encontrá-los em Inglaterra, onde nos tornámos os melhores a esquartejar perus e a limpar rabos de reformados com Alzheimer. Provisional Figures Great Yarmouth, peça que agora chega ao Porto e a Lisboa, tinha tudo para ser um matadouro, só que não: este espectáculo salvou várias vidas.
TEXTO: Os números sempre foram provisórios, como no título que Marco Martins acabou por roubar ao jargão das estatísticas da imigração, mas, mais desemprego, menos “Brexit”, ainda hoje haverá cinco ou seis mil portugueses que sabem marcar com um X no mapa de Inglaterra o lugar exacto onde o zumbido das agulhas dos salões de tatuagens se cruza com o cheiro a fritos dos estaminés de fish & chips e com os néons intermitentes daquela que só pode ser a maior concentração de casas de máquinas a oeste de Las Vegas. Há dias em que parece uma trip das boas, com castelos insufláveis e algodão doce. Há dias em que parece um apocalipse de obesidade mórbida, gravidez adolescente e overdoses de heroína. É o lugar exacto onde ainda hoje, mais desemprego, menos “Brexit”, o bacalhau para demolhar, as alheiras de Mirandela e o vinho em boxes de cinco litros se pagam em libras num dos dois minimercados Lusa, onde há missa em português ao primeiro domingo do mês na igreja católica da Regent Street (“Tens de dizer ‘Rua Augusta’, se não ninguém conhece”), onde à entrada de um beco sem saída alguém escreveu “Dukes of Ribatejo”. O tipo de lugar a que por sorte ou por azar cinco ou seis mil portugueses passaram a chamar casa. Great Yarmouth. “The finest place in the universe”, escreveu Charles Dickens em 1849, quando para ali levou um dos mais amados working class heroes da Inglaterra vitoriana, David Copperfield, sem imaginar que 160 anos depois a indústria alimentar e a doentia atracção dos ocidentais por carne processada e perus para rechear no Natal lhe dariam abundante descendência portuguesa. “Uma cidade de merda”, actualiza Victoria, que numa vida anterior, quando tinha 22 anos, tentou afogar num jacuzzi com cinco desconhecidos a tragédia proletária de se ver coroada Miss Great Yarmouth (200 libras não pagam um ano de sorrisos nos jornais locais e de presenças em quermesses, mas pagam uma dívida a um dealer, e Victoria tinha e ainda tem uma irmã bastante pragmática). A ela nunca lhe disseram que Great Yarmouth era “o Algarve inglês”. Nunca lhe mentiram, ou pelo menos não acerca disso. Também não a chamaram para uma entrevista depois de responder a um anúncio do Correio da Manhã, nem lhe pediram para mostrar as mãos e os dentes, nem lhe disseram que ia para Inglaterra embalar fiambre, also known as esquartejar perus (peitos para a Europa, testículos para a China). Victoria e Carmo continuariam até hoje a viver vidas paralelas em Great Yarmouth se não se tivessem cruzado num ensaio do espectáculo que Renzo Barsotti convenceu Marco Martins a montar, depois de ter descoberto “os portugueses da Bernard Matthews” (also known as Bernardo Mateus), então um colosso da indústria alimentar do Reino Unido movido a mão-de-obra barata importada da periferia da União Europeia. Em 2012, já fora o produtor italiano, para quem o trabalho é definitivamente “o grande tema do século XXI”, a levá-lo aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, então já em estado terminal, onde Marco Martins acabaria por levantar um auto popular com 16 trabalhadores; aí se iniciou uma aproximação aos “despojos da crise” que, radicalizando o vaivém entre ficção e realidade, o encenador e cineasta prosseguiu no seu último filme, São Jorge (2016), descida ao submundo das cobranças difíceis e da sobrevivência nos bairros mais duros da Grande Lisboa, e agora aprofunda nesta peça em que junta no mesmo palco crepuscular quatro working class heroes da última vaga da imigração portuguesa, quatro outcasts locais que não tiveram pernas para fugir quando a explosão do turismo low-cost no Mediterrâneo apagou a costa inglesa do mapa, e ainda um cozinheiro esloveno. É para eles finalmente sobressaírem que as luzes se vão apagar sexta-feira e sábado no Porto, onde, depois da estreia de há duas semanas no Norfolk & Norwich Festival, Provisional Figures Great Yarmouth se apresenta no Rivoli, via FITEI — Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, e depois, de 28 de Junho a 4 de Julho, em Lisboa, no Maria Matos, onde encerrará o ciclo Migrações (e todo um período da vida daquele teatro municipal, mas essa já seria outra história, outra despedida). No escuro, veremos como brilham os corpos que pagaram a crise. Hão-de mostrar-nos o cabelo quebradiço, os braços que já não dá para esticar totalmente, as pernas que passaram a coxear, as cicatrizes da queda aparatosa que pôs fim a uma vida inteira de trabalho, a pele que tiveram de largar, as tatuagens que fizeram para poder aguentar, e as que desfizeram porque já não aguentavam. “Great Yarmouth? Deus do céu, é a primeira vez que lá vais?”, pergunta o funcionário na bilheteira da estação, ar apreensivo até perceber que a viagem vai ser de ida e volta. Great Yarmouth. Carmo (dois ataques cardíacos, um osso sobreposto a outro no ombro esquerdo, uma tendinite crónica, e o pior ainda foram as depressões) tem jeito para frases bombásticas à mesa do café: “Se vivesses aqui morrias. ”Encenação:Marco Martins Porto. Teatro Rivoli. Praça Dom João I. T. 223392200. 15 e 16 de Junho. Sexta às 21h30; Sábado às 19h00 (FITEI 2018 - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica). 7, 50€ Lisboa. Maria Matos Teatro Municipal. Avenida Frei Miguel Contreiras, 52. T. 218438801. De 28 de Junho a 4 de Julho. Terça a domingo às 21h30. 6€ a 12€ (c/desconto)Ao longo dos últimos dois anos, Marco Martins foi apanhando aviões para lá e para cá na esperança nem sempre muito realista de muitas milhas depois ter um espectáculo para estrear, um espectáculo a que pudesse chamar, para esconjurar a dor e a poesia de atrás dos números haver pessoas, Provisional Figures. Tinha uma história de trabalho com Renzo Barsotti e o seu Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua que, antes de chegar a Viana do Castelo, já vinha da comunidade cigana da Baralha, em Santa Maria da Feira, e o tema interessava-lhe “muito” — mas a primeira ida a Great Yarmouth “foi devastadora”, diz ao Ípsilon horas antes da segunda apresentação do espectáculo na cidade que, com o tempo (e com as idas e vindas dos portugueses que nunca deixaram de estar ali apenas provisoriamente, mesmo que entretanto já se tenham passado 15 anos), se impôs como protagonista. “Lembro-me de ir para a paragem às 4h da manhã, a hora em que saía o autocarro para a Bernardo, e de os portugueses passarem por mim como se fossem fantasmas. O regresso, à noite, ainda era mais duro. E depois havia os ingleses que eu via dia e noite a fumarem de pijama à porta de casa, com montes de filhos à volta. Estava a acabar o São Jorge e na minha cabeça Great Yarmouth ia ser um filme: as imagens eram muito fortes. ”Não foi um filme (talvez ainda venha a ser). Quando Marco Martins começou a fazer entrevistas para escolher os seus não-actores, já se tinha tornado claro que Great Yarmouth ia ser “um espectáculo sobre a vida dos imigrantes portugueses em Inglaterra e sobre o trabalho na Bernardo Mateus” (os anúncios dos anos em que a fábrica só tinha trabalhadores ingleses, e que hoje são memorabilia alojada no YouTube, pareceram-lhe, diz, “material muito sugestivo”). Mas a intermitência da produção à distância e da própria comunidade portuguesa, naturalmente flutuante, obrigaram-no a reconfigurar o projecto mais uma vez. “Era impossível manter um grupo fixo. Passava dois ou três meses sem cá vir e quando regressava as pessoas tinham desaparecido para outro trabalho, para outra cidade. Mudei de estratégia e pedi ao director de casting com que costumo trabalhar, o Zé Pires, para passar cá um mês a fazer entrevistas. À medida que ia vendo o que ele me mandava — a Victoria que foi Miss Great Yarmouth, o Bob que trabalhou na reserva ornitológica… —, fui percebendo que tinha de abrir o espectáculo a esta cidade estranha onde vêm parar tantas pessoas perdidas, tantas pessoas em fim de vida. O contraste entre os portugueses fechados na fábrica 12 horas por dia e os habitantes originais da cidade tornou-se uma via. ”Através deles, das suas histórias de infância, juventude e lágrimas nos olhos quando os filhos nasceram ou saltaram pela primeira vez no castelo insuflável vermelho com estrelas azuis e brancas, Great Yarmouth é outra vez a cidade technicolor dos circos ambulantes e dos sorvetes, dos hotéis chiques para os ricos e das pensões para a classe média, dos luna parks e das barracas de praia, dos bikers e dos mods; a cidade que se reconverteu, esgotado o ciclo de prosperidade do arenque e mal refeita da destruição da Segunda Guerra Mundial, em estância balnear de massas. Os casinos, os carrosséis, os pontões e o Jardim de Inverno, agora abandonado, enchem-se de gente feliz em férias e não apenas de casais de adolescentes com bebés ao colo ou de reformados que desistiram de andar a pé porque o mercado lhes impinge cadeiras de rodas eléctricas ou scooters de mobilidade em suaves prestações mensais. A Regent Street ainda não se chama Rua Augusta nem é este amontoado de lojas de souvenirs baratos e de roupa em “SALDOS SALDOS SALDOS”. As fábricas ainda não olharam para tantos quartos e parques de campismo vazios e pensaram que podiam fazer de Great Yarmouth um dormitório para operários polacos, lituanos e portugueses. Através deles, também, das suas histórias de perda, fracasso e noites mal dormidas, Great Yarmouth é de novo a cidade que correu mal. Uma bolsa de pobreza endémica, white trash, numa região genericamente rica, um fracasso estatístico em termos de desemprego, abandono escolar, gravidez adolescente, obesidade, doença mental, alcoolismo e abuso de heroína que nas eleições locais de 2014 deu 41% dos seus votos ao UKIP (entretanto já os reduziu a menos de 5%) e dois anos depois, no referendo do “Brexit”, se revelou a quinta cidade mais eurocéptica de toda a Inglaterra, com 71, 5% de votos “leave”. “Um lugar bizarro”, confirma Joe McIntosh, director do SeaChange Arts, o centro de criação ligado ao circo e às artes de rua que co-produziu Provisional Figures e o acolheu na Drill House. “No período vitoriano, Great Yarmouth ganhou fama como estância balnear para gente com dinheiro, daí os belos edifícios e toda a parafernália de entretenimento da marginal. Hoje continua a ser uma das três estâncias balneares mais frequentadas de Inglaterra — recebe seis milhões de visitantes por ano —, mas quando a classe média começou a ir para o estrangeiro ficou com o refugo do mercado. A pesca e a transformação do arenque, que durante séculos foram o pilar da economia local, já tinham acabado, a marinha mercante passou a operar com barcos demasiado grandes para a barra que aqui havia, e Great Yarmouth entrou numa espiral de decadência. Há famílias que não trabalham há três gerações, desde que o avô perdeu o emprego na pesca. ”O lucro gerado pelas reservas de petróleo e de gás descobertas mais recentemente passa literalmente ao largo de Great Yarmouth e dos seus quase 99 mil habitantes. O novo maná da energia eólica também. “É riqueza que não fica na cidade. Quem trabalha nesse sector tende a viver fora daqui. Restam as fábricas, e a indústria dos cuidados domiciliários, mas essas só parecem entusiasmar a mão-de-obra imigrante”, diz Joe McIntosh. Sorte, azar ou lei da oferta e da procura, enquanto o desemprego local se mantiver galopante, muitos polacos, lituanos e portugueses (mas também cabo-verdianos, angolanos, curdos, paquistaneses…) continuarão a ter aqui o seu lugar a esquartejar perus ou, como se ouve dizer num dos cafés da King’s Street, “a limpar rabos de reformados com Alzheimer”. Não será o “Brexit” a fazer os ingleses salivar com isso. Pouco passa do meio-dia, a hora em que os mais pobres dos pobres se juntam à porta do Exército da Salvação para a distribuição de comida. Raparigas de pele acastanhada pela heroína, punks de 60 e tal anos ainda com a crista intacta, só que murcha. Não há portugueses aqui. Esses caminham em passo apressado, vindos “lá do office”, onde “a assistente social não estava”. Jogam sueca no Café Tropical, SIC Notícias ligada. Trocam receitas de bolo de mármore na biblioteca, onde há um escaparate inteiro de livros sobre como lidar com a demência e permanecer são. Já terão sido mais. Na King’s Street, os cafés e as mercearias portuguesas ainda se sucedem, há sempre gente a entrar e a sair da Fernanda Lopes Hairdresser, mas o Pátio das Cantigas (“Portuguese foods, wines and delicacies”) fechou. Cátia e Hugo, que há sete anos vieram de Almada (ele à frente, “com um contrato de trabalho na Bernardo”, depois ela e os dois filhos, que entretanto já são três), têm visto muitas famílias a irem de férias para já não voltarem. “Umas dez só no ano passado. ” Na mercearia de que tomaram conta há oito meses, e que além de portugueses também abastece cabo-verdianos, angolanos e guineenses (“Essa variedade toda de feijões é por causa deles”) e ainda polacos, lituanos e moldavos que "vêm à carne e aos enchidos”, os clientes queixam-se do aumento do custo de vida, “dizem que não compensa trabalhar só para pagar as despesas”. “Há menos dinheiro, menos avios grandes. Mas vamos ficar, agora são as crianças que já não querem ir embora. O ‘Brexit’ não nos assusta, trabalhamos os dois a tempo inteiro, os miúdos estão cada um na sua escola. ”A imigração portuguesa em Great Yarmouth esteve no auge entre 2009 e 2014, o ano em que o UKIP fez o seu sinistro brilharete eleitoral. Mesmo depois desse sinal, “a votação expressiva no ‘Brexit’ foi um choque para os portugueses, não tinham noção de que não eram bem-vindos”, conta Marco Martins. “No dia seguinte muitos tiveram medo de sair à rua. De repente descobres que o teu vizinho não te quer aqui — e começam a aparecer histórias. Nessa fase senti um enorme decréscimo de interesse no projecto, havia o receio de que quiséssemos falar de política e as pessoas esquivavam-se. ” De resto, acrescenta Renzo Barsotti, a descoberta de que a comunidade portuguesa em Great Yarmouth não é verdadeiramente uma comunidade como as que caracterizaram a emigração das décadas de 50, 60 e 70, de que “é cada um por si” (“A precariedade laboral também é uma precariedade identitária, os processos de identificação e desidentificação com Portugal e com Inglaterra são contínuos, complexos e concorrentes”), foi “dura, pessoal e artisticamente”. E uma dor de cabeça para o encenador. “Estava perdido. Sabia que queria trabalhar com as histórias pessoais, mas faltava-me um corpo de texto que lhes desse chão. E então o Gonçalo M. Tavares sugeriu-me que fizesse um espectáculo sobre aquilo em que as pessoas estão a pensar enquanto matam animais. Passou a ser sobre isso. ”No processo de passar a ser sobre isso, os nove não-actores que acabaram por chegar à estreia tiveram de se transformar em animais de palco. Mesmo quando trabalharam com a sua própria verdade. Sobretudo quando trabalharam com a sua própria verdade. A verdade dos movimentos repetitivos da Carmo na linha de montagem da Bernardo (“choques eléctricos, cortar o pescoço, tomates para a China, furar o cu, tirar pulmões”), aqui convertida em número de circo. A verdade dos cabelos em desalinho do Bob em mais um dia ventoso, quando ainda não precisava de binóculos para ver o sol reflectido na penugem de uma pêga, a sua ave favorita. A verdade da receita de peru recheado que o Ivan cozinhou na Alemanha, na Suíça, na Jamaica, em Miami, no Havai, até vir parar a Great Yarmouth, este desterro para imigrantes e misfits que já não vivem, apenas vegetam. A verdade de que o Pedro nunca ficará sem um par. A verdade da filha da Ana a dançar Nirvana em versão Patti Smith. A verdade da tatuagem que o Richard, coração partido, esfolou com uma lixa depois de uma noite de copos e drogaria. A verdade do casting que poderia ter feito da Victoria uma das Spice Girls, em vez de uma Miss Great Yarmouth. A verdade dos invernos em que dormia num quarto diferente todas as noites e dos verões em que ficava sem quarto para dormir, e de que o Peter, cujos pais geriram um hotel em Great Yarmouth, não quer falar. A verdade dos dois amores que o Sérgio teve no circo, e que estão longe de chegar ao amor que o vemos a gritar pelos pais, antes de abrir as asas do anjo que tem nas costas e voar. Só dois dos nove não-actores de Provisional Figures alguma vez tinham entrado num teatro. Nenhum tinha lido os manifestos de Marinetti, Yvonne Rainer ou Mierle Laderman Ukeles. Quase todos parecem ter nascido para isto. “A primeira regra do trabalho com não-actores é não os pôr a representar personagens”, explica Marco Martins na sessão de perguntas e respostas que a Drill House abre na noite de estreia, minutos após o fim da peça e o momento Cristiano Ronaldo do Sérgio — que, claro, com a sua cicatriz de uma ponta à outra da nádega e as suas lágrimas verdadeiras roubou o palco como estava escrito (lá fora, o filho de Victoria, que estuda teatro na universidade, comenta que “nasceu uma estrela, um performer nato”). Peter, o primeiro a entrar em cena, já não esfrega as mãos uma na outra para libertar a tensão dos últimos instantes antes de as luzes se apagarem, e fala agora pelos cotovelos dos amigos portugueses que fez nos ensaios, e de como passou a andar para todo o lado com o Sérgio, apesar de esse veterano em Great Yarmouth que antes disso foi funcionário da limpeza no aeroporto de Gatwick e embalador de lasanhas numa fábrica de Bristol ainda não conseguir completar uma frase em inglês ao fim destes anos todos. Quase na outra ponta da meia-lua de cadeiras, Bob continua “a tremer como uma folha”: quando o foco se acendeu em cima dele, a marcação que dá início ao espectáculo, percebeu que não conseguia arrancar nenhuma palavra da boca. Foi já no fim de um processo de criação particularmente lento, e para o qual precisou de recorrer a “facilitadores" (Nuno Lopes, Sara Carinhas, Romeu Runa e Victor Hugo Pontes), que Marco Martins percebeu que os dois pólos do espectáculo só podiam ser esses “dois homens da mesma idade, mais ou menos da mesma altura, mas com histórias de vida radicalmente diferentes” e, o que também interessava, “uma relação com os animais fatalmente distinta”: “Antes de trabalhar na manutenção de um parque de auto-caravanas, o Bob passou muitos anos em projectos de conservação da natureza. O Sérgio andou com um circo, teve aquela história com a rapariga das cobras, e depois matou perus na Bernardo. ”Naturalmente, o corpo impôs-se num espectáculo que, por causa das assimetrias no domínio da língua, nunca teria podido depender exclusivamente do texto. Mas impôs-se também porque “a própria morfologia de cada um diz muito acerca do que foram estas vidas”, aponta o encenador, “basta olhar para a diferença entre a Carmo e o Bob”: ela pequena e densa, os músculos deixados a amolecer à sua sorte desde a reforma antecipada, ele esguio e frágil (“como uma folha”, de facto), as bochechas mirradas praticamente coladas aos maxilares sem dentes. Estes corpos contam desamores, internamentos em unidades psiquiátricas, suicídios falhados. Duas gravidezes, anos a fio no Colégio Militar, uma nova vida a dar aulas de zumba. E contam uma crise. Não apenas porque Marco Martins a tenha querido contar, mas porque ela estava lá: há uma diferença entre a poesia destas vidas e a sua pornografia. “Não gosto daqueles espectáculos comunitários em que cada um vai lá lamentar-se como se fosse o café do bairro organizado em forma de palco. Talvez venha daí a minha obsessão de levar isto para um lado que se sobreponha ao testemunho. Na verdade, quando lhes peço para me contarem as suas histórias, dou por mim a interessar-me sempre pelas coisas mais poéticas, não pelas mais gráficas. E depois esforço-me por encontrar uma zona em que o intérprete sinta que o que está a contar é importante e significativo não só para mim mas também para ele. É muito complicado. E muito delicado. Queres sempre saber mais acerca destas pessoas. A realidade nunca deixa de estar à flor da pele porque aqui tudo muda diariamente de uma forma drástica — é isso que torna Great Yarmouth tão apaixonante. ”Great Yarmouth. Uma sucessão de casas de máquinas com nomes flamejantes (Caesar Palace, Silver Flipper, Flamingo, Circus Circus, Golden Nugget, The Mint, Gold Rush, Leisure Island), e no fim o bingo dos anos 60 em que dois cartões só custam dez pence. Um pub de esquina onde se chega ao fim da tarde para comer caracóis e ver reality-shows da TVI. Hotéis que agora são residências para seniores de classe média-baixa porque o clima aqui é o melhor de toda a ilha — mesmo com esta ventania. Um esloveno grande e volumoso que chegou para ser catering manager de uma rede de casinos e acabou a fazer voluntariado no centro de refugiados local, entre 1001 outras actividades comunitárias, porque quando regressou ao lugar onde nasceu percebeu que os amigos casaram/emigraram/morreram e ele passou a ser um estranho: Ivan, que ainda hoje não entende como é que Marco Martins o quis no elenco final (dos 15 participantes do último workshop foram escolhidos apenas nove), se havia “pessoas mais profissionais” e ele nem sequer pode dar um passo sem as muletas. Uma portuguesa de Sintra que há 15 anos, “por causa de um amor proibido e de um capricho que se tornou um pesadelo” (“Eu achava que a vida lá fora era um mar de rosas, não um dia-a-dia árduo de desgaste físico e psicológico”), respondeu a um anúncio e se viu a esquartejar perus de noite e a dormir em quartos de pensão partilhados de dia (ou foi ao contrário?): Carmo, que em Provisional Figures representa “a fábrica em si e o que a maior parte da imigração portuguesa viveu” e que desde os ensaios, diz-nos o filho de 22 anos, atende o telefone com outra voz. Um inglês da cidade grande mais próxima que só veio a Great Yarmouth beber uma cerveja com a irmã e ficou a fazer uma peça de teatro com “oito completos estranhos”: Richard, um trabalhador da construção civil que precisou de se expor no palco para “fechar um capítulo” pessoal que mete uma tatuagem e uma ex-mulher, e que daqui só sai ou para o próximo filme de Marco Martins (“Seria fantástico, seria o ideal”) ou para o Sul da Europa, onde pretende abrir um parque de campismo para motoqueiros com a nova namorada. Uma descendente de cabo-verdianos que saiu de Oeiras para se juntar ao irmão em Londres e que ao fim de dez anos “daquela vida agitada” desembarcou em Great Yarmouth para umas férias e decidiu ficar, por causa do sol e de uma certa vida portuguesa que encontrou nos cafés e nos minimercados: Ana, a agitadora local, que fundou uma associação de dança comunitária, a Afrolusa, e entretanto abriu o seu próprio negócio de aulas de zumba. O filho de um guarda-costeiro que cresceu junto ao rio, a apanhar boleias dos barcos-piloto, quando ainda não havia estrangeiros em Great Yarmouth a não ser a rapariga asiática da escola e “o chinês do take-away”: Bob, uma cabeça tão extraordinária e tão disponível para tudo (“Nunca deves deixar de aprender, é fixe fazeres coisas que nunca fizeste antes: expandem-te como pessoa”) que na vida já estudou as migrações das salamandras, já tratou sozinho dos oito hectares de uma reserva ornitológica, já consertou telhados, e agora é um intérprete em digressão internacional. Um moçambicano que o pai meteu com dez anos num avião para Lisboa, direcção Colégio Militar, “para dar um futuro ao puto”, e que depois de reprovar no último ano veio parar a Inglaterra, onde entre outros expedientes limpou o chão da Bernard Matthews (bem menos mau “do que tirar as tripas ou estar no deboning”): Pedro, que entretanto descobriu que numa cidade onde “as pessoas vêm morrer” — “descansar em paz, era assim que eu devia ter dito” — podia ganhar a vida a cuidar de idosos e deficientes, pelo menos “se não der certo andar pelo mundo como rapper”. Um inglês que aos 12 anos veio com os pais abrir um hotel em Great Yarmouth e depois se entusiasmou quando regressou, já adulto, “com a quantidade de imigrantes”: Peter, que não sabia se ia conseguir conseguir levar Provisional Figures até ao fim porque quando chegou aos ensaios vinha de “uma série de problemas pessoais” que lhe deixaram “a auto-confiança muito em baixo”, e depois ainda passou por “uma ruptura amorosa”. Um português de olhos azuis e rosto de actor de cinema que ainda sabe de cor todos os transportes que teve de apanhar para se mudar de Bristol, onde rebentou duas hérnias inguinais a levantar tabuleiros industriais de molhos de lasanha, para Great Yarmouth, onde trabalhou 15 anos na Bernardo até “um acidente na sanitation” o deixar incapaz: Sérgio, para quem todos os dias são iguais, “um cafezito” de manhã, “uma volta até ao shopping para ver as lojas de uma libra” pela tarde, “um copito” no Galante ao cair da noite. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Uma ex-Miss Great Yarmouth que nos últimos meses, “em vez de continuar sentada ao sol no jardim a detestar a vida por ter fodido tudo com as drogas”, teve um trabalho, coisa que já não lhe acontecia há nove anos: Victoria, a quem este espectáculo deu “uma razão para viver”. Ivan, Carmo, Richard, Ana, Bob, Pedro, Peter, Sérgio, Victoria. Também conhecidos por Great Yarmouth. O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto e do Teatro Maria Matos
REFERÊNCIAS:
“O que são 100 euros, com duas crianças, para o mês todo?”
Trabalha numa das casas mais movimentadas de Lisboa, os Pastéis de Belém. É uma das 336 mil trabalhadoras do turismo mas férias só faz quando vai “para a terra”. Aos 38 anos, Carla Sofia lamenta: “Nunca levei o meu pequenino ao Jardim Zoológico." (...)

“O que são 100 euros, com duas crianças, para o mês todo?”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-12-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Trabalha numa das casas mais movimentadas de Lisboa, os Pastéis de Belém. É uma das 336 mil trabalhadoras do turismo mas férias só faz quando vai “para a terra”. Aos 38 anos, Carla Sofia lamenta: “Nunca levei o meu pequenino ao Jardim Zoológico."
TEXTO: Esta é a segunda de uma série de reportagens sobre pobreza. Acompanhe nos próximos dias o dossier O que é ser pobre hoje em Portugal?Carla Sofia entra nos Pastéis de Belém com grande à-vontade. Vê-se logo que conhece bem os cantos de uma das mais famosas casas de Lisboa. Sorridente, mostra as sucessivas salas do edifício centenário, a cozinha onde diariamente se fazem milhares de bolos para os turistas que esperam à porta e que depois os levam às dúzias. Aqui e ali vai cumprimentando os colegas. Há dias em que vê pessoas a bater à porta mesmo antes da abertura ao público, às 8h, tal é o sucesso dos pastéis que ali são feitos há 180 anos. Chega a uma das salas e diz com orgulho: “Limpo isto todos os dias. Às 6h30 já aqui estou, gosto sempre de chegar mais cedo. " E aponta: “Ali temos a esplanada mas hoje está fechada. "Se o turismo é a galinha dos ovos de ouro da economia portuguesa, os Pastéis de Belém são um dos seus grandes ex-líbris. Aqui fazem-se pelo menos 20 mil pastéis por dia (últimos dados de 2017). Não há guia turístico que não os refira. Carla Sofia, 38 anos, tem 18 como empregada de limpeza desta casa. O seu turno é, normalmente, das 7h às 16h, mas no dia em que o PÚBLICO a entrevistou tinha começado às 5h. “Quando não temos pessoal, temos que fazer outro horário”, comenta, sem lamento. Fala em “nós”, usa o plural quando se refere à empresa. Embora trabalhe em turismo, as únicas férias que faz são “ir para a terra”. Ganha, de base, um salário de 620 euros brutos – e não 580 euros como o PÚBLICO escreveu. É uma das 336 mil trabalhadoras do turismo (que inclui o sector do alojamento, restauração e hotelaria). A média do salário base dentro da sua área, no segundo trimestre de 2018, era de 648 euros, bem menos do que os 887 euros do resto dos trabalhadores, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), que excluem subsídios e prémios. Já depois de publicado o artigo na edição em papel a 9 de Dezembro, a Antiga Confeitaria de Belém fez saber que a este salário que paga à trabalhadora são acrescidas outras parcelas como subsídio de alimentação, prémio de assiduidade, diuturnidades, prémio de produtividade, feriados e horas extra (este último item num dos recibos de ordenado chega aos 350 euros brutos). Com os impostos e Segurança Social, e descontada a penhora judicial que impende sobre o seu vencimento, por causa das dívidas que contraiu, mais o pagamento de empréstimo que a empresa lhe concedeu, este ano Carla Sofia ganhou uma média mensal de 862 euros. Diz o INE que a pobreza atinge 9, 7% dos trabalhadores. Está neste grupo quem tem "um rendimento anual por adulto equivalente" inferior a 468 euros por mês, sendo que o "rendimento por adulto equivalente" é obtido dividindo o rendimento das famílias por cada elemento que as integram, tendo em conta a sua composição. Carla pode não se enquadrar no que as estatísticas definem tecnicamente como um trabalhador pobre, mas não deixa de viver uma situação precária. Na altura da entrevista com 17 anos, o filho mais velho de Carla está a tirar um curso de restaurante-bar no Colégio Pina Manique (Casa Pia); o mais novo tem sete anos e estuda no 1. º ano do ensino básico. Apoio tem da Associação Ser Ajuda, em Lisboa; do pai do filho mais velho recebe 150 euros, mas “vai ser cortado quando ele fizer 18 anos”; do pai do mais novo nunca recebeu nada. Vive numa cave perto do mercado de Algés, com dois quartos — Carla Sofia dorme num quarto e os dois rapazes dormem noutro. “A casa é pequenininha… para a casa que eu tinha…não tem nada a ver”, lamenta, de lágrimas nos olhos. Está a comparar com uma casa onde viveu no Cacém, com o ex-marido, pai do filho mais velho. Só que, nessa altura, ela era vítima de violência doméstica. “Era tudo um mar de rosas até virar um mar de espinhos”, recorda. “Um dia a minha colega perguntou-me porque não me despia à frente delas. Eu não queria porque estava marcada por ele, ia para a casa-de-banho. Houve uma vez em que ele deu-me uma sova, fui parar ao hospital. Um polícia disse-me: ‘Se você voltar para casa agora, na próxima vez pode ir para o seu enterro e não vê mais os seus filhos’. ” Ela então tomou coragem (foi há 14 anos) e saiu. “Andei de quarto em quarto. Foi assistência social, foi tribunais…”. Ainda chegou a ir a tribunal mas, sem dinheiro para “bons advogados” ao contrário dele: “Os que eu arranjava da Segurança Social faltavam. " Acabou por desistir. Pensou muitas vezes que devia “abandonar isto tudo e ir para a terra”. Conta: “Gostava de me arranjar, de me pintar, mas fui-me desleixando…”. Nascida em Arouca, perto de Aveiro, veio para Lisboa aos 16 anos trabalhar para cuidar de uma idosa; fez vários serviços como doméstica, trabalhou em cafés até chegar aos Pastéis de Belém. “A minha vida melhorou um bocadinho quando vim para Lisboa. Melhorou no aspecto de não passar fome, poder vestir-me, poder comprar a minha roupa, fazer a minha vidinha. ”Depois da separação, foi morar para a Ajuda, em Lisboa. Mais tarde iniciou outra relação e ficou grávida do segundo filho. A casa era “velha, precisava de obras”. “O Tribunal de Família e Menores foi lá e não deu hipótese, não deu ajuda. Disse: ‘ou você arranja uma casa ou fica sem os meninos’. Ficar sem os meus filhos não!”A relação com o tribunal e a Segurança Social não foi fácil. “Metiam sempre defeitos, era isto e aquilo. A casa precisava de obras mas eu não tinha maneira. ”Um dia percebeu que tinha o ordenado penhorado — o marido não pagava as rendas para as quais ela lhe entregava o dinheiro. Tem ideia de que devem ter sido mais de 10 mil euros de dívida, mas não tem sequer a certeza, a patroa é que gere a penhora e por isso todos os meses fica sem parte do ordenado. “Antigamente estava nos pastéis e depois ia trabalhar na segurança privada. Chegava ao fim do mês e dava-lhe [ao pai do segundo filho] o dinheiro para fazer as contas. Um dia cheguei a casa com a penhora na mão e ele já não estava. Fiquei com o bebé no colo e bastantes dívidas. ”Explicou à patroa o que se passou, pediu ajuda para encontrar uma casa. “Disseram que emprestavam dinheiro para as rendas adiantadas e depois descontavam no ordenado. Já paguei essa parte, graças a Deus! Agora vou ter outra dívida, para arranjar a minha boca”, diz, contente. Aponta para os dentes que lhe faltam. Quer arranjar um segundo emprego na segurança privada. “Vou às entrevistas e já sei que não vão chamar por causa da boca. ” Os patrões têm ajudado. “Também sabem que só se eu não puder…. Nunca faltei, nunca chego atrasada, estou aqui há 18 anos. As únicas baixas que meti foi por causa dos meus filhos. ”Uma vez por mês vai à Associação Ser Ajuda buscar alimentos e roupas “para os meninos”: arroz, massa, cereais, etc. No resto do mês, leva pão do trabalho, à noite come uma sopa. “Há meses que é bué apertado. O pequenino pede alguma coisa, brinquedos ou uma goma, e nem pensar. ” Tem de pagar o passe da Carris para ela e para o mais velho, “são quase 70 euros os dois”. Depois o filho mais velho “tem um eczema de pele, é um dinheirão em farmácia”. Há meses em que gasta 50 ou 60 euros em cremes. Mas organiza-se assim: primeiro paga a renda, a água, luz e gás; o resto é para a alimentação. Fazendo as contas: renda são 350 euros, todos os meses precisa de duas bilhas de gás, 50 euros; a água e a electricidade variam; há ainda as telecomunicações. A verdade é que fica com 100 euros, às vezes 200, para o mês todo. “Quando há dinheiro faço compras maiores. Compro coisas melhores: peixe, os nuggets de que eles gostam. Outras vezes não dá para comprar aqueles iogurtes que ele quer e ficamos por ali”, lamenta. Carla Sofia chora. Custa-lhe. “Eu passei muita fome”, lembra. “Éramos sete e a minha mãe era solteira. E ela não tinha, prontos, não dava para comprar nada para nós. Chega ao Natal e não dá para comprar nada. ”Há uma outra forma que o INE utiliza para medir a população mais vulnerável, mesmo aquela que não encaixa no conceito de pobreza monetária (a que vive com o tal rendimento inferior a 468 euros). É o conceito de "população em risco de pobreza ou exclusão social". São perto de 2, 2 milhões de pessoas em Portugal (21, 6% da população) que estão numa destas situações: têm rendimento inferior ao limiar de pobreza, ou vivem num agregado onde os adultos trabalham muito poucas horas por mês, ou estão em privação material (esta medida pela incapacidade de suportar, por exemplo, uma semana de férias para a família, uma despesa inesperada, uma refeição de carne ou peixe pelo menos de dois em dois dias). Considera-se Carla pobre? “O que são 100 euros com duas crianças, para o mês todo? As crianças precisam de alimentar-se, calçar-se, precisam de tudo. E eu não tenho. Se formos ao supermercado e à farmácia fica lá tudo. Não posso dizer aos meus filhos: ‘hoje vamos comer fora, hoje vamos ao cinema, vamos ao Jardim Zoológico. Nunca levei o meu pequenino ao Jardim Zoológico. ” Com o filho a fazer 18 anos, preocupa-a não ter dinheiro para fazer uma coisa especial, como desejava. Nem que fosse levá-lo a jantar fora. O filho já disse: “‘Mãe, não te preocupes’", conta. “Mas é uma dor de cabeça”, desabafa. “Hei-de arranjar, nem que tenha que pedir. "Ainda ambiciona que “eles estudem” e façam o que ela não pôde fazer. Uma coisa melhorou na escala social, considera: pelo menos os filhos não passam fome como ela passou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Todos os dias, antes de os turistas entrarem e começarem a levar os pastéis, ela e o filho mais novo tomam o pequeno-almoço. "Sempre é uma ajuda. "Notícia actualizada às 17h59 de dia 10 de DezembroDados específicos sobre vínculos laborais no turismo não há. Mas sociólogos reconhecem a precarização e a escassa regulação. “Pior do que alguém receber 450 euros é não saber se é descartado no mês seguinte”, diz Sérgio Aires, especialista em pobreza. Cerca de 10% dos trabalhadores em Portugal são pobres, mostram os dados mais recentes divulgados no fim do mês pelo Instituto Nacional de Estatística. Apesar do indicador ter melhorado, isto “é um problema endémico”, analisa o sociólogo que ocupou durante duas décadas cargos importantes em organizações como a Rede Europeia Antipobreza. “Porque as pessoas, independentemente dos rendimentos, não conseguem sair da linha da pobreza. "A par disso, somos também o terceiro país da União Europeia em que a contratação temporária é mais comum: cerca de 22%, para uma média da União Europeia (UE) de 14%, segundo um estudo do Observatório das Desigualdades. E 85% dos trabalhadores têm vínculos laborais temporários e gostariam de ter um contrato permanente (a média da UE é de 62%). Porém, houve uma subida dos contratos sem termo, afirma Renato Carmo, sociólogo e coordenador do Observatório das Desigualdades: “Não sabemos a amplitude e sustentabilidade da subida, e não podemos dizer que há uma inversão da precarização, mas estamos a viver um momento de incógnita, vai depender das dinâmicas do sector e das políticas. "Embora não existam dados específicos sobre vínculos contratuais no turismo — segundo o Turismo de Portugal há 336 mil trabalhadores nesta área —, Renato Carmo lembra que este é um sector “que, pela sua natureza, tem características de precariedade”: “É muitas vezes sazonal, pouco regulado e com um défice de representatividade sindical. ”Sérgio Aires levanta outra questão, a indefinição. A sua experiência permite-lhe constatar a precariedade num sector onde a “mão-de-obra está sujeita a uma concorrência forte” e por isso “torna-se fácil tratar as pessoas de forma mais precária”: “A qualificação da mão-de-obra não é muito exigente na restauração, nas lojas. Mas pior do que receber 450 ou 500 euros é não saber se no mês seguinte pode ser descartado”, analisa. Segundo dados do Turismo de Portugal, só 11, 3% dos trabalhadores neste sector (alojamento, restauração e hotelaria) têm uma licenciatura. Mais de 60% dos trabalhadores neste sector têm o 3. º ciclo. A isso acresce a natureza dos serviços e funções atribuídas aos trabalhadores, em que lhes é pedido para desempenhar várias tarefas, “tudo e mais alguma coisa”, podendo ser deslocados para outro local. “Nada que a lei não permita, mas demonstra pouco respeito pela vida das pessoas. A minha preocupação é que isto está a acontecer a uma população jovem, a iniciar a vida, mas sem estabilidade para contratualizar vínculos, como alugar uma casa. E acontece sobretudo nas duas cidades onde há os maiores problemas de habitação: é uma bombinha em termos geracionais. " Como se muda? “Veja-se a dificuldade em aceitar que o salário mínimo fique acima do limiar de pobreza. Enquanto isto acontecer, a precariedade laboral não se resolve”, afirma. Já Maria das Dores Gomes, coordenadora da Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal, está preocupada com os trabalhadores da restauração que agora se aposentam – além de receberem salários baixos, estiveram durante muitos anos sem descontar a totalidade do ordenado e agora deparam-se com parcas reformas. “Hoje as coisas estão melhores, há um controle, mas antigamente muita gente recebia parte do salário por fora. ”A socióloga Sónia Costa, do Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa, lembra: “Temos estado preocupados com o impacto do turismo na habitação mas se calhar temos que colocar a questão sobre as condições em que as pessoas acedem a este mercado de trabalho. "
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
Estes criminosos portugueses do século XIX foram ao fotógrafo
Conhecem-se pelas alcunhas, por pequenas biografias publicadas na época e até por entrevistas que deram aos jornais. Uns foram presos por roubar galinhas, carteiras e jóias, outros por falsificarem moeda ou por matarem o filho recém-nascido. A todos a polícia de Lisboa mandou tirar o retrato. Um novo livro vem agora falar-nos destas mugshots à portuguesa. Com ele, os retratos judiciais mais antigos conhecidos em Portugal recuam 30 anos, até 1869. (...)

Estes criminosos portugueses do século XIX foram ao fotógrafo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Conhecem-se pelas alcunhas, por pequenas biografias publicadas na época e até por entrevistas que deram aos jornais. Uns foram presos por roubar galinhas, carteiras e jóias, outros por falsificarem moeda ou por matarem o filho recém-nascido. A todos a polícia de Lisboa mandou tirar o retrato. Um novo livro vem agora falar-nos destas mugshots à portuguesa. Com ele, os retratos judiciais mais antigos conhecidos em Portugal recuam 30 anos, até 1869.
TEXTO: Foi sobretudo a cultura popular americana que as trouxe até nós através dos filmes e da televisão, dos sites e das biografias de celebridades, das revistas e dos jornais. Foi lá que nos habituámos a encontrar as estrelas do cinema e da música fotografadas de frente e de perfil, com um número comprido junto ao peito, depois de terem sido detidas por conduzirem alcoolizadas, por fazerem corridas na auto-estrada ou por participarem em manifestações contra a guerra do Vietname que acabaram em confrontos com a polícia. Algumas destas fotografias tiradas nas esquadras — mugshots, assim se chamam — transformaram-se em conversas de café e peças de museu, entraram para o imaginário colectivo e passaram a fazer parte do que julgamos saber sobre Elvis Presley e Jimi Hendrix, Jane Fonda e Steve McQueen, Jim Morrison e Frank Sinatra, David Bowie e Marilyn Monroe, Janis Joplin e Johnny Cash, Mick Jagger e Kurt Cobain. Muito menos famosos, mas também eles detidos e fotografados, alguns dos criminosos portugueses da segunda metade do século XIX têm agora um livro em que Leonor Sá, conservadora do Museu da Polícia Judiciária, explora o universo do retrato judiciário em Portugal, partindo de dois álbuns que reúnem fotografias tiradas entre 1869 e 1895 e que hoje pertencem a um coleccionador privado. “Estas são as mais antigas mugshots à portuguesa, feitas à medida do nosso século XIX”, diz a autora. São exemplares do chamado “retrato repressivo”, criado para responder às necessidades de controlo dos estados que, dado o aumento demográfico, o crescimento das cidades, a transformação económica provocada pela indústria e as frequentes convulsões políticas e sociais se vêem a braços com problemas de segurança e crime cada vez mais agudos desde os finais do século XVIII. Em Infâmia e Fama. O mistério dos primeiros retratos judiciários em Portugal (1869-1895), um volume com 280 páginas que resultou de uma tese de doutoramento e que as Edições 70 lançaram recentemente, Leonor Sá começa por dar ao leitor o contexto internacional deste género de retrato, mostrando-lhe como apareceu e como evoluiu. Em seguida, concentra-se no caso português e nos dois álbuns que Francisco Teixeira da Mota, advogado e colunista do PÚBLICO, comprou num leilão há quase 20 anos e que reúnem cerca de 300 fotografias, 24 das quais respeitantes a indivíduos cujo percurso, mais ou menos breve, é traçado na Galeria de Criminosos Célebres em Portugal. História da criminologia contemporânea (1896-1908), uma das várias fontes a que a autora recorre, sobretudo quando procura dados biográficos. Leonor Sá analisa essas 24 imagens com mais detalhe e com este livro retrata a sociedade da época, enriquecendo a historiografia sobre o século XIX português, defende no prefácio Filipa Lowndes Vicente, investigadora do Instituto de Ciências Sociais que tem dedicado boa parte do seu tempo à história da fotografia e à cultura visual no contexto colonial. “Se olharmos para a imprensa, a Lisboa da segunda metade do século XIX, como nos mostra Maria João Vaz [autora de Crime em Lisboa, 1850-1910], está cheia de furtos e pequenos crimes, está cheia de delinquentes reincidentes até à última”, diz Sá. Numa época em que os crimes recebiam cada vez mais atenção mediática e o romance policial começava a fazer sucesso, as páginas dos diários que circulavam aos milhares pela capital enchiam-se de notícias de furtos e escaramuças e, de quando em vez, havia um ou outro ladrão, fosse operário ou criada de servir, que tinha direito a entrevista de primeira página com fotografia e tudo. “Como hoje, as pessoas queriam saber, seguiam as histórias de crime, sobretudo as mais violentas, que felizmente não eram muitas. ”Foi assim, por exemplo, com A Matricida, uma mulher que matou e esquartejou a mãe, protagonizando um caso que até deu origem a títulos da literatura de cordel, um deles do jovem Camilo Castelo Branco (Maria não me mates que sou tua mãe!). A Galeria de criminosos célebres em Portugal tem o seu perfil, assim como o de Maria da Luz Botelho da Silva, açoriana de 24 anos que matou o marido servindo-lhe um prato de arroz com arsénio. Ele, médico nascido em Coimbra e 14 anos mais velho, fechava-a em casa e agredia-a; ela, farta dos seus ciúmes, queria fugir para Lisboa com o amante. Leonor Sá não fala destas duas mulheres cuja história o semanário Expresso veio recordar em 2015 numa série a que chamou Crime à Segunda, mas apresenta-nos a Pianista e o Caramelo, ou a Giraldinha e o Físico, todos eles actores de primeira ordem num universo onde cabem muitas outras alcunhas (e vidas): o Ratão, o Lindinho, o Vidraças, o Mineiro, a Aguardenteira, o Larico…Maria Rosa, a sedutoraO retrato que ilustra a capa do livro de Leonor Sá é de José Maria da Silva, um homem de 40 anos, nascido em Elvas, filho de pais incógnitos, que é acusado de falsificar moeda e que, depois de várias detenções, acaba condenado ao degredo. Conhecido como Caramelo, é fotografado bem vestido, de alfinete na gravata, e segurando na mão esquerda o objecto do crime, numa atitude desafiadora. “Este Caramelo aparece na Galeria. . . mas com outro retrato. Era famoso na época e hoje esticamos-lhe a fama com esta capa”, diz a conservadora do Museu da Polícia Judiciária, sublinhando o ar sereno do falsário e contando que guardava esta fotografia da moeda, que saiu nas páginas dos jornais, no estojo das tesouras e navalhas que usava na prisão do Limoeiro, onde era barbeiro. “Ele tinha um enorme orgulho nesta imagem e costumava mostrá-la, como hoje mostramos a um amigo uma fotografia das nossa férias. Para ele, não havia nela nada que o envergonhasse. ”O retrato de Caramelo, como outros que encontramos em Infâmia e Fama e nos álbuns F. T. M. — Leonor Sá usa apenas as iniciais do proprietário para se referir aos dois volumes carregados de fotografias que começou a estudar em 2012 —, é tirado com um espelho para que, na mesma imagem, o vejamos de frente e de perfil, uma “solução ‘panóptica” que reforça, escreve a autora, a “vigilância fotográfica” dos suspeitos e que parece ter sido aplicada, no caso dos álbuns que lhe servem de base à tese, sobretudo às mulheres. “Há uma diabolização da mulher criminosa. A imprensa da época parece exagerar nos adjectivos quando o acusado — e o retratado — é uma mulher. ”É precisamente a propósito das mulheres que um dos autores da Galeria. . . , Ferraz de Macedo, que coordenou três dos sete volumes desta obra e que viria a ser director dos Serviços Antropométricos e Fotográficos do Juízo de Instrução Criminal, chega a escrever: “Também o belo sexo dá um subsídio para a história do crime, e não tão pequeno, quanto o pode parecer à primeira vista. A mulher que tem a desgraça de vir ao mundo com a terrível tendência para o crime torna-se muito mais temível do que qualquer criminoso do sexo masculino […]. É que as mulheres, todos nós o sabemos, são muito mais maliciosas que nós outros homens. [. . . ] Possuem em muito mais elevado grau a ciência de mentir e dissimular. ”Maria Rosa, solteira e com pouco mais de 20 anos, era uma destas mulheres nascidas para enganar, diria provavelmente Ferraz de Macedo. Delinquente que todos conheciam por Giraldinha, foi uma das mais famosas ladras portuguesas do século XIX. O ar humilde terá sido uma das principais armas desta mulher que era capaz de ludibriar até os que lhe eram mais próximos. Para reforçar essa aparência modesta, a Giraldinha costumava usar vestidos de chita, um tecido barato, um lenço na cabeça com o nó para a frente e um xaile sobre os ombros, à maneira das antigas criadas. Diz o seu perfil na Galeria que era uma “gatuna perigosíssima” com uma “finura perfeitamente fora do vulgar”. No tom quase teatral de muitas passagens desta publicação que tem pretensões de rigor mas que acaba por adoptar muitas vezes instrumentos da ficção, escreve-se ainda em referência a esta mulher com uma “boca sedutora”: “Aquela que foi engendrada para o mal confunde-se com a maldade dos demónios e contém o veneno das serpentes, os dentes dos monstros apocalípticos. ”No caso de Maria Rosa, sublinha Leonor Sá, o autor que lhe faz o perfil parece não conseguir compreender por que razão, tendo ela uns traços físicos agradáveis, prefere roubar a dedicar-se à prostituição. “É uma sociedade muito masculinizada, machista diríamos hoje. Da mulher, mesmo quando lhe é reconhecida inteligência, como no caso da Giraldinha, o que se espera é que faça uso da sua beleza, não da sua cabeça”, diz a investigadora. Giraldinha era de tal forma uma “celebridade” que chegou a dar uma entrevista com honras de primeira página ao jornal A Tarde, a 1 de Maio de 1890, com direito a fotografia (precisamente a que está num dos álbuns Francisco Teixeira da Mota). “Na época, a fotografia da primeira página dos jornais era reservada para figuras importantes da sociedade — membros da realeza, deputados, médicos, artistas — mas, a partir de dada altura, os criminosos passaram a ser incluídos neste grupo onde antes só havia gente ilustre. ”Nos cenários da burguesiaFoi em Julho de 2000 que Teixeira da Mota arrematou num “leilão bem disputado” os dois álbuns com 300 fotografias arrumadas em “janelas” encimadas pelo nome e/ou alcunha do retratado em letra miudinha e outros dados de registo. Aficionado da fotografia antiga e habituado a andar pelos alfarrabistas à procura de “brinquedos” novos — o advogado recusa a ideia de que os livros, gravuras e objectos que vai comprando formem uma colecção —, viu nos dois pesados volumes uma oportunidade para se “divertir”. “É claro que fico satisfeito com a possibilidade de ficar a saber algo que ainda não sabia, mas para mim a parte lúdica, o prazer que tiro de objectos como estes [aponta para os álbuns abertos em cima da mesa] antecipa e justifica a ciência, a informação que trazem”, diz o cronista e autor de duas biografias sobre Alves dos Reis (Alves dos Reis. Uma História Portuguesa), burlão e falsificador, e Henrique Galvão (Henrique Galvão. Um Herói Português), militar português que foi o protagonista do mediático assalto ao paquete Santa Maria. Quando comprou os dois álbuns, o que tencionava fazer era estudá-los, cruzando-os com outras fontes escritas da época, como a Galeria…, mas cedo percebeu que, para levar em diante essa tarefa, seria preciso que tivesse “outra vida”. “A Leonor Sá fez muito mais do que eu poderia ter feito, descobriu muita coisa. Eu não teria tempo”, acrescenta. De facto, quando chegaram às mãos da conservadora do Museu da Polícia Judiciária, os álbuns F. T. M. não tinham sequer qualquer indicação de proveniência. Hoje, Leonor Sá não tem dúvidas de que são uma “encomenda” não oficial da Polícia Civil de Lisboa, feita quando esta força de segurança era ainda uma novidade (foi criada em 1867). Para produzir estes volumes semelhantes a outros já estudados nos Estados Unidos e noutros países europeus, a polícia viu-se obrigada a recorrer a fotógrafos comerciais de Lisboa, que estão devidamente identificados, porque não dispunha ainda do equipamento nem dos conhecimentos necessários para o fazer em sede própria. Os suspeitos, muitos deles criminosos já bem conhecidos da polícia e hóspedes frequentes das cadeias do Limoeiro (para homens) ou do Aljube (mulheres), eram então levados ao fotógrafo para que lhes fosse tirado o retrato para identificação e registo. Chegados lá, por regra, eram fotografados nos cenários que já estavam montados, o que chegava a criar um enorme contraste, já que o contexto era cuidado (colunas, tapetes, reposteiros) e os retratados estavam quase sempre com as roupas e os cabelos em desalinho, com uma aparência que denunciava as suas origens humildes: “Algumas destas primeiras imagens são feitas nos cenários da fotografia burguesa, o que cria de imediato uma sensação de desconforto aos nossos olhos já que a falta de sintonia entre uma e outra coisa é evidente. Estão despenteados, desabotoados, alguns até sujos, algo impossível num retrato da burguesia”, explica a autora. “A ironia aqui é que foi o facto de terem cometido um crime que lhes permitiu irem ao fotógrafo – de outro modo, provavelmente, nunca o conseguiriam pagar. ”Uma ironia de que o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) dera já devidamente conta no seu ensaio The Lives of Infamous Men, ao defender que tinha sido a conduta criminosa e a consequente perseguição policial a contribuir para a visibilidade de uma série de indivíduos que, de outro modo, jamais chegariam ao conhecimento do grande público. “A sua infâmia é apenas uma modalidade da fama universal”, escreve aquele que é um dos mais celebrados intelectuais europeus. Com ou sem imagem, muitos dos criminosos ocupavam já as páginas da Galeria… e foi o facto de ter encontrado reproduzidos nesta obra em volumes 24 retratos dos dois álbuns de Teixeira da Mota que levou a investigadora a supor que têm origens comuns: a Polícia Civil de Lisboa e/ou os estúdios comerciais que esta força de segurança contratava para fotografar os supeitos (no caso dos álbuns F. T. M. , 75% dos retratos são feitos pelo mesmo Atelier Bastos, que vai mudando de nome e de dimensão ao longo dos 26 anos que separam a primeira fotografia da última). Uma “turba medonha”A investigação de Leonor Sá que agora se publica permite, defende a autora na conclusão, antecipar em 30 anos o retrato judiciário português. Os exemplares mais antigos que até aqui se conheciam datavam de 1902 e tinham por origem o Posto Antropométrico do Porto. A polícia portuguesa, tal como as suas congéneres europeias, integra os dois álbuns F. T. M. numa estratégia de combate ao aumento da criminalidade, escreve Sá, numa “lógica transversal de evolução científica e tecnológica, assim como de crescimento das preocupações taxonómicas, do controlo social biopolítico e da comunicação mediática de finais do séc. XIX”. A polícia da época mandava fotografar os criminosos para registo pelo menos desde 1869, mas é bem provável que já antes o fizesse, uma vez que a autora encontrou indicação na Galeria… de que pelo menos um dos criminosos que lá figuram, Constantino da Silva, o Vidraças, terá sido fotografado em 1863, quando tinha apenas 13 anos e era já “célebre na gatunagem”. Diz a investigadora que, na época, surgem em Portugal vários estudos que procuram acompanhar as mais modernas teorias no contexto internacional, sobretudo as de Cesare Lombroso (1835-1909), psiquiatra italiano a quem é atribuída a criação da antropologia criminal. Este médico acreditava que o criminoso podia ser equiparado ao doente e que havia no seu comportamento uma forte componente hereditária – a sua conduta desviante devia-se a algo inato que não podia controlar. “No geral, acreditava-se que os criminosos vinham das classes sociais mais baixas e que tinham quase sempre características físicas negativas que funcionavam como indicadores ou reflexos dos seus comportamentos desviantes. Para simplificar, acreditava-se que um ladrão tinha cara de ladrão”, resume a investigadora. “Podia roubar por motivos sociais, como a falta de trabalho, mas a biologia tinha um peso grande na sua condição. Como se o crime estivesse inscrito no seu código genético, diríamos hoje, como uma doença que vem de um pai ou de um avô. ”Esta atitude perante o criminoso rapidamente venceu os limites do mundo científico e intelectual e chegou à opinião pública, através das páginas dos jornais. A medicina e a antropologia criminal do século XIX, lembra a conservadora do Museu da PJ, contribuem para a ideia de que estes criminosos, na sua maioria pequenos delinquentes, formam uma massa indiferenciada e perigosa, uma “turba medonha”. É a partir da década de 1880, continua Leonor Sá apostando ainda no enquadramento internacional, que o francês Alphonse Bertillon, que fundara um laboratório criminal concentrado nas medidas do corpo humano (antropometria), cria um protocolo para o retrato criminal que determina que o suspeito seja fotografado de frente e de perfil. “Com Bertillon esta fotografia passa a ter uma retórica própria e no registo é combinada com componentes antropométricas, que mais tarde são destronadas pelas impressões digitais, mais rápidas e mais fiáveis. É preciso ver que o discurso científico era muito ambíguo, contraditório até, aberto a interpretações contantes. Estes criminosos são vistos como parte de uma entidade colectiva – o indivíduo não interessa para nada. ”A Galeria de Criminosos Célebres em Portugal vem precisamente contrariar essa ideia de colectivo. As histórias que conta são as que se distinguem da tal “turba medonha”. Tocar, bordar e roubarGuilhermina Adelaide do Canto e Mello Araújo, a Pianista, entra nesta categoria. Era uma mulher elegante, bem vestida, uma professora de piano que falava línguas e ainda sabia bordar. Foi presa vezes sem conta por roubar jóias, roupas, tecidos, chapéus e outros artigos em lojas e casas de Lisboa, acabando por morrer no degredo, em Angola, depois de se envolver com outro delinquente, o Mesquita. Quando os furtos aconteciam em ourivesarias do centro da cidade, por exemplo, era comum contar com a ajuda do filho, ainda uma criança. Durante muito tempo ninguém suspeitou de que era a responsável pelo desaparecimento de artigos de luxo das casas das meninas de boas famílias a quem dava aulas, mas a partir de determinada altura a Cepa, outra das suas alcunhas, passou a ser “hóspede” regular da Cadeia do Aljube, prisão de mulheres acusadas de delitos comuns até aos anos 1920 e que em 2015 foi convertida no Museu do Aljube — Resistência e Liberdade, em parte para homenagear todos aqueles que, perseguidos pelo Estado Novo, ali foram encarcerados e torturados entre 1928 e 1965. Luís Augusto Pereira, o Físico, também era um “gatuno fino”, que se apresentava com vários nomes e que sabia “estar à vontade na sociedade, como se nela tivesse nascido e vivido”, lê-se na Galeria. . . Na realidade, era analfabeto e sê-lo-ia até morrer, o que não o impedia de frequentar os salões por onde passavam “homens distintos e damas ilustres” ou de se fazer passar por médico. A maioria dos biografados nos vários volumes da Galeria. . . , escreve Leonor Sá, são responsáveis não por “crimes violentos, graves ou de grande envergadura económica, mas [por] pequenos delitos”. Destacam-se não pelo que fizeram, mas “por não corresponderem — sobretudo pela astúcia e boa aparência — ao modelo estereotipado do criminoso da época”. É o caso de António Braz Monteiro, o Ladrão Fino, homem que se “impunha pelo porte, pela forma como falava, pela maneira de pensar”, pode ler-se na obra publicada em volumes ainda no século XIX. Braz Monteiro especializou-se em arrombamentos e roubos em casas que sabia estarem vazias a partir do que lia nos jornais. Apanhava o barco pela manhã em Cacilhas, comprava o Diario Illustrado e decidia o alvo do dia a partir da secção que hoje teria, provavelmente, o cabeçalho Life & Style, onde se dava conta dos “ilustres” que se tinham ausentado da capital. Chegado a Lisboa, dirigia-se a um prédio na Rua do Arsenal onde guardava as ferramentas do “ofício” e ia “trabalhar”. A Galeria. . . procura justificar a sua actividade criminosa, defende a investigadora, com um impulso que lhe é impossível controlar, mas o seu comportamento sistemático indicia uma premeditação e uma capacidade de organização que nada parece ter que ver com um ímpeto repentino. Outro dos criminosos cuja aparência iludiu as autoridades foi Narciso Viana, o Bonito ou Bonita, que se apresentava sempre impecavelmente vestido e que tinha cuidado redobrado na maneira como falava e escrevia. Detido múltiplas vezes por haver suspeitas de que roubara uma carteira ou um relógio, acabava quase sempre libertado por falta de provas. “Este Viana é como aquele americano cuja mugshot se tornou viral [Jeremy Meeks] e que hoje é modelo, acho eu. O seu aspecto era de tal forma dissonante do que fazia nesta época em que a criminologia dava os primeiros passos que as pessoas tinham dificuldade em acreditar que era um ladrão. ”Se é verdade que muitos dos “criminosos célebres” são detidos por pequenos crimes — roubo de galinhas incluído —, também é verdade que a Galeria. . . dá conta de outros brutais, como o da já referida Matricida — Maria José, 30 anos, vendedora de tapetes que morava perto do Campo de Santa Clara —, condenada à forca por ter matado a mãe, Matilde, espalhando as várias partes do corpo pelo bairro, guardando para o chão da sua cozinha a cabeça; ou o de Maria Constância, que esquartejou o seu filho recém-nascido. O retrato de Maria Constância nos álbuns F. T. M. mostra-nos uma mulher de aspecto modesto, que terá escondido a sua gravidez ilegítima e que depois optou pelo homicídio, com contornos particularmente cruéis. Um retrato como “pena perpétua”Cada um destes retratos, diz Teixeira da Mota, funciona como “uma janela para o passado criminoso do país” e põem-nos a imaginar como seria Portugal no final do século XIX. Estudá-los — e mostrá-los — é, por isso, uma forma de conhecermos melhor essa sociedade em que a noção de propriedade é bem diferente da que temos hoje. “Há muita coisa que estes retratos ainda nos podem dizer”, acredita este advogado, explicando em seguida que só autorizou a divulgação de cerca de um terço das fotografias dos seus álbuns para manter boa parte inédita de forma a que outros investigadores se mostrem interessados em trabalhá-los. A autora, lembra Teixeira da Mota, vira já “chumbado” um pedido para divulgar sem alterações fotografias semelhantes, com mais de 100 anos, que constam dos arquivos da Polícia Judiciária. A Comissão Nacional de Protecção de Dados autorizou a publicação, desde que se colocasse uma “névoa” sobre os olhos, de modo a que o retratado não fosse identificado, o que levou a que a investigadora desistisse de as usar. “Isto é o politicamente correcto elevado à doença. O que é que me afecta que um familiar meu, há mais de 100 anos, tenha sido preso por roubar duas galinhas ou uma carteira?” Teixeira da Mota defende que a divulgação destas e de outras fotografias semelhantes deve ser feita em nome do direito à informação. “Nós não vivemos de conceitos, mas de imagens, sentimentos, percepções directas. […] Não concordo com essa ideia de que a fotografia [judiciária] é já um pelourinho, um castigo. ”Leonor Sá é de outra opinião. Estas fotografias, que depois eram afixadas nas portas das esquadras para que o público em geral ficasse a conhecer as caras associadas ao crime, funcionavam como uma “estigmatização para a vida”, já reconhecida e combatida por um documento de 1876 que a autora encontrou na Torre do Tombo. “É o comissário Morais Sarmento que, já naquela altura, percebe que o retrato assim divulgado pode impedir uma pessoa de reconstruir a sua vida depois de reabilitada. Ele proíbe a sua divulgação desta maneira. Diz que o retrato se torna uma ‘pena perpétua e degradante’. ”De facto, muitos dos delinquentes que se viam assim expostos nas portas das esquadras eram presos por roubarem uma manta ou um chapéu-de-chuva. “Muitas vezes fiquei com o coração partido ao ler as suas histórias muito breves. Eram pessoas muitos pobres, muitas roubavam para comer; só dois ou três eram bem-nascidos. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Entre estes “bem-nascidos” ou com formação académica, conta-se, por exemplo, o professor primário Manuel Joaquim Pinho, anarquista reconhecido, que foi detido por agredir o deputado Manuel Pinheiro Chagas, com quem trocara argumentos nas páginas dos jornais a propósito da formação da Comuna de Paris. Pinheiro Chagas escrevia, entre outras coisas, que para disciplinar uma das principais figuras deste movimento de base operária, a professora e poetisa anarquista Louise Michel, bastava levantar-lhe as saias e dar-lhe uns açoites, evocando assim a violência doméstica como forma de pôr fim às aspirações emancipadoras das mulheres. Manuel Joaquim Pinho não gostou e escreveu um artigo em que expunha a pobreza da argumentação do parlamentar, que mais tarde voltou à carga e lhe exigiu explicações. Farto da imprensa, o professor primário decidiu trocar a caneta pela bengala e dirigiu-se a São Bento, onde aplicou a Pinheiro Chagas um castigo semelhante ao que ele sugerira para a sindicalista francesa, o que lhe valeu 18 meses de prisão e uma multa. “Não sei se o Manuel Joaquim Pinho era um feminista, mas que é difícil pensar nele como um criminoso, lá isso é”, admite Leonor Sá, para quem há no retrato judiciário um misto de fascínio e repulsa. “Estas fotografias mexem connosco porque lidam com crime e castigo, porque têm uma carga simbólica, social e política fortíssima. Não é por acaso que artistas como [Andy] Warhol, [Marcel] Duchamp ou [Christian] Boltanski se apropriam delas para alguns dos seus trabalhos. ”A retórica do retrato de frente e perfil criada por Bertillon ainda hoje tem um impacto enorme, garante a conservadora do Museu da Polícia Judiciária. Já não estamos à espera, é certo, que a conduta criminosa de alguém possa em boa parte ser explicada pela hereditariedade ou pelos seus traços fisionómicos, mas continuamos a acreditar que um rosto diz muita coisa: “Boltanski tem uma instalação em que usa retratos de agressores e vítimas. Mesmo sem se aperceber, a esmagadora maioria das pessoas tenta descobrir quem é quem só olhando para aquelas caras, o que nos diz que não mudámos assim tanto… Continuamos a achar que é bem possível que os maus tenham mesmo cara de maus. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades PJ
Goa: Onde as pessoas estão divididas no seu passado, no seu presente e no seu futuro
Aldona é uma pequena aldeia no concelho de Bardez (Norte). Para lá chegar passa-se por campos de arroz, onde o trabalho é feito pelo homem com ajuda de bois, ou por mulheres de costas viradas para o céu e olhos na água, dependendo do ciclo da planta. Há uma vaca morta, hirta, na beira da estrada. Estará lá ainda passadas umas horas, quando o carro fizer o caminho inverso. (...)

Goa: Onde as pessoas estão divididas no seu passado, no seu presente e no seu futuro
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 3 Animais Pontuação: 5 | Sentimento -0.08
DATA: 2011-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Aldona é uma pequena aldeia no concelho de Bardez (Norte). Para lá chegar passa-se por campos de arroz, onde o trabalho é feito pelo homem com ajuda de bois, ou por mulheres de costas viradas para o céu e olhos na água, dependendo do ciclo da planta. Há uma vaca morta, hirta, na beira da estrada. Estará lá ainda passadas umas horas, quando o carro fizer o caminho inverso.
TEXTO: A estrada vai-se fechando no meio de árvores. Agora a aldeia, casas de piso térreo de um lado e outro. E aqui estamos. Pede-se emprestada a descrição da escritora Maria Aurora Couto para a sua própria casa, visitada numa tarde abafada, porque as chuvas da monção, que deveriam aliviar o calor, tardam em cair. "A casa em que agora vivo é uma casa antiga, construída por fases ao longo de vários séculos, e transporta consigo uma enorme carga de história, emocional e cronológica. Na sua origem, a entrada abria-se para uma paisagem de campos de arroz. A presença de marmeleiros da Índia, associados ao culto de Shiva, sugere o passado hindu da família. Os pilares de laterite, sem qualquer arco mas com telhado inclinado, revelam a antiguidade da casa. Uma mistura de cal e argamassa liga o chão de excremento de vaca e lama às grossas paredes de pedra que protegem o espaço habitado do sol e da chuva. O pátio tradicional não se situa ao centro, mas ao longo da traseira da casa: um recinto murado com um poço fundo, rodeado de flores de abolim e uma jaqueira alta. . . " Agora fecha-se Goa, História de Uma Filha (a ser lançado brevemente pela Livros Horizonte). Segue-se o dedo estendido da escritora, de pé, inclinada na varanda: "A minha selva vai até ali. " É meio a sério, meio a brincar. Porque não é propriamente uma selva, com a dimensão que a palavra pressupõe, mas são muitas as árvores que foram deixadas sossegadas nos 1400 metros quadrados à volta desta casa de paredes brancas com contornos em azul alfazema. Entra-se por um pequeno alpendre e em cima da porta, no estuque branco, descobre-se o relevo subtil de uma âncora. Aqui não há plásticos para proteger da chuva e todos os anos as andorinhas entram para fazer o ninho. As janelas têm pequenos quadrados de carepas (conchas de madrepérola) à volta de um quadrado de vidro ao centro. Nas paredes da sala várias fotografias de família, incluindo a do marido, Alban Couto, que foi escolhido por Nova Deli para participar no primeiro governo civil de Goa após a saída dos portugueses em 1961. Sentemo-nos na varanda, debaixo da ventoinha. Na mesinha ao centro estão copos de limonada e fatias de bolo de Natal, com várias especiarias. Uma casa não é só uma casa. Esta, que pertencia à família materna de Alban, testemunhou a própria história de Goa e foi mudando com ela. Pode muito bem ser uma metáfora do que é isso de ser-se goês. Ou melhor, do que é ser-se goês católico. "É diferente de serse católico em Kerala, onde não há nenhuma diferença cultural entre hindus e cristãos. Aqui, por causa da Inquisição, mudaram-se os hábitos culturais", explica. A identidade de Maria Aurora Couto, como a das paredes que a rodeiam, pode ser complexa, mas está bem consolidada. "Sou indiana, mas sei que tenho influências que vêm de fora", responde, em inglês. "[As influências] foram integradas na minha personalidade, não foram justapostas. "Cultura compostaO livro foi necessário para encontrar as respostas às próprias perguntas sobre a sua identidade. E pelo meio a escritora descobriu outras coisas. "Antes de começar a escrever não conhecia o papel da Inquisição em Goa, não queria acreditar naquela violência. " O Tribunal do Santo Ofício foi introduzido em 1560, com uma história de conversões forçadas ao cristianismo, depois de os templos hindus nas Velhas Conquistas (a zona onde os portugueses se instalaram primeiro) terem sido arrasados.
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo
“A cultura de limpeza social ainda é fortíssima no Brasil”
Ao longo de décadas, o Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, tratou doentes como animais. Este hospício era como “um campo de concentração nazi”, denunciaram médicos nos anos 1980. Mais de 30 anos depois, a jornalista Daniela Arbex foi à procura dos sobreviventes para lhes dar voz. (...)

“A cultura de limpeza social ainda é fortíssima no Brasil”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.298
DATA: 2014-05-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ao longo de décadas, o Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, tratou doentes como animais. Este hospício era como “um campo de concentração nazi”, denunciaram médicos nos anos 1980. Mais de 30 anos depois, a jornalista Daniela Arbex foi à procura dos sobreviventes para lhes dar voz.
TEXTO: Quando entravam no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, os pacientes eram despidos da sua capa de pessoas, tiravam-lhes os nomes, cortavam-lhes os cabelos, passavam a ser animais. Não ficavam apenas nus fisicamente, como vemos nas fotografias e “ouvimos” nos relatos dos sobreviventes no livro Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, editado em Portugal pela Guerra & Paz: uma mãe que se barra com fezes para proteger o filho que traz na barriga, pessoas a beber água do esgoto e a comerem ratos, corpos de doentes deitados em palha e cobertos de moscas, uma multidão nua, no terraço, mulheres mantidas em celas como aves…Há várias cenas relatadas no livro que impressionam, e remetem para a ideia de genocídio. Passando em revista as imagens de época do fotógrafo Luiz Alfredo, que em 1961 foi dos primeiros a testemunhar o “campo de concentração nazi” em que se transformou o maior hospício no Brasil, como foi descrito, fica a pergunta imediata: como foi possível?Segundo as estimativas, houve 60 mil mortes às mãos deste hospício, e a maioria dos internados nem sequer tinha diagnóstico de doença mental, eram deserdados sociais: prostitutas, homossexuais, epilépticos… Durante onze anos, 1853 corpos de pacientes foram vendidos a 17 faculdades de medicina, e pelo menos 30 bebés foram roubados às suas mães, relata Daniela Arbex no livro. Fundado em 1903, transformado em Centro Hospital Psiquiátrico em 1980, o hospício de Colônia e o que lá se passava foi denunciado várias vezes ao longo dos anos: pelas reportagens de Luiz Alfredo em 1961, e de Hiram Firmino e Jane Faria em 1979, pelo documentário de Helvécio Ratton no mesmo ano, pelas tomadas de posição públicas do psiquiatra italiano Franco Basaglia em 1979, dos psiquiatras brasileiros Francisco Paes Barreto (em 1966 e 1972) e Ronaldo Simões Coelho (em 1972)…Mas Daniela Arbex, a autora e jornalista que fez a investigação para o jornal Tribuna de Minas, decidiu ouvir os sobreviventes e dar-lhes voz, e isso é o que distingue este trabalho das denúncias anteriores, considera a própria. A jornalista tem viajado por vários países para falar do seu trabalho, incluindo congressos de saúde mental. A série de 2012 que deu origem ao livro publicado em Junho de 2013 valeu-lhe várias distinções, como o prémio Esso 2012. O impacto no Brasil foi “imenso”, diz num hotel em Lisboa esta mulher que se emociona a falar do livro e das personagens que entrevistou e que no final nos pergunta se as respostas que deu “estavam bem”. Tudo começou em 2009 quando viu pela primeira vez as fotos de Luiz Alfredo num livro editado por essa altura. “Fiquei completamente chocada: ‘meu Deus, o que é que é isso, que história é essa?’”Durante dois anos tentou convencer o jornal a fazer “a matéria”, até que em 2011 sugeriu procurar os mesmos sobreviventes 50 anos depois e entrevistá-los. Tinha acabado de regressar de licença de maternidade e ainda estava a amamentar o filho, algo “emocionalmente muito difícil”, porque “saía de casa e me sentia a pior das mães”. Depois, quando a série de reportagens saiu “foi realmente avassalador”. Decidiu então escrever o livro, que já vendeu 60 mil exemplares, e foi, segundo diz, adoptado por faculdades, e escolas secundárias. Depois da sua publicação, o estado “injectou 10 milhões de reais no hospital”. Depois da leitura do seu livro há uma pergunta que não nos larga: nunca se apurou a responsabilidade pelas mortes dessas pessoas e pela forma como foram tratadas?É muito difícil pensar numa responsabilização individual, porque foi um crime cometido durante oito décadas. Em oito décadas passaram [por lá] centenas de funcionários, de médicos, [houve] 28 governantes na presidência do Brasil. Quem responsabilizar? Isso é também fruto de uma omissão colectiva da sociedade brasileira, não adianta falar só dos governos. O maior responsável é o governo brasileiro porque tinha a custódia dessas pessoas, a responsabilidade de tutorar e oferecer atendimento digno. O governo falhou gravemente, mas a sociedade também: as famílias que deixaram os filhos, os parentes e nunca mais voltaram, os médicos que trabalharam lá e viram isso e não conseguiram fazer alguma coisa, os próprios funcionários, os próprios moradores de Barbacena que conviviam com o hospício. As pessoas diziam, e acredito: ‘a gente não sabia o tamanho da tragédia’. Muitas pessoas que entrevistei, no começo, se colocavam na defensiva, e no final da entrevista, mais relaxadas, percebiam que podiam ter feito alguma coisa - isso aconteceu em quase todas as entrevistas, era quase uma confissão.
REFERÊNCIAS:
Lady Juliet, uma aristocrata inglesa
A herdeira da colecção Wentworth-Fitzwilliam estudou arte por causa da avó Maud, cria cavalos e é uma das maiores fortunas do Reino Unido. Mas não herdou os “diamantes pretos” que corriam debaixo da grande casa de campo, uma das melhores de Inglaterra e que trouxe riqueza mas também luta de classes (...)

Lady Juliet, uma aristocrata inglesa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A herdeira da colecção Wentworth-Fitzwilliam estudou arte por causa da avó Maud, cria cavalos e é uma das maiores fortunas do Reino Unido. Mas não herdou os “diamantes pretos” que corriam debaixo da grande casa de campo, uma das melhores de Inglaterra e que trouxe riqueza mas também luta de classes
TEXTO: O encontro com lady Juliet está marcado para uma manhã fria de Dezembro. A casa, num bairro popular de Lisboa, tem dois pisos e duas varandas — de uma delas avista-se o Tejo, quando não está nevoeiro, como hoje, e da outra o Castelo. O apartamento onde lady Juliet passa temporadas em Lisboa é do marido, o historiador de Arquitectura Christopher Tadgell, que queria uma casa junto ao mar mas cosmopolita, num lugar onde pudesse ir à ópera de noite e à praia de manhã. “Queria que fosse no Sul da Europa, mas não podia ser em Itália, porque em Itália há muita coisa para ver e não podemos ficar só num sítio. Lisboa é perfeita. ”A decoração do piso de baixo, que manteve o traçado quase original da casa, é tipicamente inglesa — elegância sóbria, com muitas peças em madeira. No piso de cima está o grande tapete déco com motivos de chinoiserie e as peças de mobiliário que o historiador comprou em Malaca, quando lá viveu. São antiguidades, são imponentes, são negras, vermelhas e rendilhadas. “E ficam muito melhor aqui, nestas paredes brancas e neste ambiente moderno, do que no apartamento que eu tinha em Londres”, diz Tadgell. Faz sentido que se comece pela casa onde lady Juliet vive quando está em Lisboa porque o motivo da conversa é outra casa. Uma “casa de campo”, que é como os ingleses chamam aos solares da aristocracia, só que neste caso a definição também não revela a verdade. Wentworth Woodhouse, a casa de família de lady Ann Juliet Dorothea Maud Tadgell (Wentworth-Fitzwilliam de nascimento), é um palácio. É uma das maiores “casas de campo” do Reino Unido, com mais de 300 quartos e mil janelas. Agora está moribunda, corre o risco de morrer. A queda de Wentworth Woodhouse está bem datada no tempo. Como explicou o historiador e crítico de Arquitectura Giles Worsley no texto “England’s great forgotten palace” (The Telegraph, 1998), a casa foi o símbolo de uma luta de classes travada no fim da II Guerra Mundial, quando “a outra metade” exigiu que fosse a sua vez, arrancando os alicerces que sustentavam a velha ordem e a sua arcaica estrutura social. Mas quando a casa nasceu, esclarece Worsley, que era aristocrata de nascimento, foi para se tornar “o epítome da ascensão Whig ao poder, no século XVIII”. A casa foi construída por Thomas Wentworth, que viria a tornar-se marquês de Rockingham. Demorou mais de 15 anos a ser erguida com o objectivo de representar o poder económico, social e político desta família do partido liberal (Whig), uma das duas formações que dominaram a política britânica até à I Guerra Mundial e que desapareceria com a II (os liberais-democratas reivindicam a sua herança ideológica). Era a partir dali — explicava Worsley — que a família dominava o Yorkshire e foi a partir dali que desempenhou um papel-chave na política nacional, papel esse que teve o seu ponto alto quando o segundo marquês de Rockingham, Charles Watson-Wentworth, chegou a primeiro-ministro, por duas vezes, em 1765 e 1782. O esplendor exterior desta casa que tem a maior fachada do Reino Unido, 180 metros de uma ponta à outra, tinha paralelo no seu interior. O mobiliário foi feito à medida para cada uma das salas, as salas foram feitas à medida de cada função — uma delas toda em mármore, de cima a baixo — e para forrar tantas paredes uma colecção de arte que ainda é uma das mais importantes entre todas as colecções privadas do Reino Unido — foi por causa dela que lady Juliet, a quem as obras pertencem hoje, veio a Lisboa; Wentworth-Fitzwilliam: Uma Colecção Inglesa, pode ser vista na Fundação Gulbenkian até 28 de Março. A casa, escreveu outro reconhecido historiador de Arquitectura, Marcus Binney, era “inquestionavelmente a melhor casa georgiana de Inglaterra”. Dezenas de criados mantinham a máquina interior a funcionar, outras dezenas mantinham o parque e os jardins exteriores. “Três proprietários Whig desenvolveram a propriedade criando um modelo económico integrado, com quintas, minas, fundições, uma fábrica de porcelana. No século XVIII, a propriedade era uma zona agrícola e industrial muito desenvolvida, além de a casa representar o que de melhor a aristocracia produziu através do mecenato artístico”, escreveu Giles Worsley. No século XVIII, um fabuloso golpe de sorte aumentou exponencialmente a fortuna da família. A revolução industrial avançava movida a carvão e, debaixo das vastas terras dos Wentworth-Fitzwilliam, estava umas das maiores reservas do país. O crescimento da casa e da família pareciam imparáveis. As festas sucediam-se, juntando os políticos mais influentes, a aristocracia mais importante, os convidados mais apetecíveis. Um visitante do século XIX, o barão Von Liebig, químico alemão que escreveu numa memória a grandeza de todo este cenário, conta que se lembrou de espalhar migalhas de bolacha no chão para conseguir encontrar o caminho de volta ao seu quarto, depois de a noite acabar. Por causa dele e da sua ideia, a cada convidado passou a ser dado uma taça de prata com confetti coloridos para não se perderem nos oito quilómetros de corredores do casarão; os 400 criados “de dentro” que a casa tinha na época, segundo a revista Tatler, tratavam da limpar rapidamente os papelinhos. Lady Juliet, que tem 80 anos, viveu na casa. “Quando o meu pai, que era do Exército, esteve na II Guerra, eu fiquei lá com a minha avó. ” Diz que tem poucas memórias sobre o funcionamento de uma casa tão complexa. Era muito pequena, explica, “tinha nove ou dez anos”. A avó de lady Juliet, Maud, é a senhora de vestido azul na exposição na Gulbenkian, retratada por Philip de Laszlo. “A minha avó gostava muito de arte e ensinou-me muito”, diz a herdeira da colecção Wentworth-Fitzwilliam, que estudou arte e cria cavalos. Lady Juliet não se importa de responder a perguntas sobre a família. Mas é parca nas respostas. O século XX, aquele que testemunhou, não foi bom para os Wentworth-Fitzwilliam, e a segunda visita real à família em 200 anos (a primeira foi em 1789) foi eco desses tempos conturbados. Em 1912, Jorge V e a rainha Mary ficaram na casa e 76 quartos foram atribuídos ao séquito real. A visita durou quatro dias. Os mineiros fizeram um desfile nocturno com as tochas acesas, houve um programa musical e fogo-de-artifício. No pórtico barroco da casa, o rei fez um pequeno discurso para as 25 mil pessoas que o foram ver. Ninguém sabia, mas o desastre aproximava-se dos Wentworth-Fitzwilliam, escreve Catherine Baileu no livro Black diamonds — the dawnfall of an aristocratic dynasty and the fifty years that changed England. A visita real, habitualmente expressão da amizade especial entre a monarquia e a família visitada, foi motivada desta vez pela agitação social que começava a abalar o Reino Unido. O establishment estava nervoso. Nesse ano, realizara-se a primeira greve de mineiros, que exigiam salários mínimos e melhores condições de trabalho. A greve afectou a indústria, os transportes, originou atrasos no abastecimento de bens e escassez dos mesmos em algumas zonas. A visita aos Fitzwilliams foi, para Jorge V, uma bem planeada operação de marketing, produzindo fotografias, publicadas em todos os jornais, do rei a visitar as minas e ao lado dos mineiros. Até a rainha foi fotografada em cima de um trolley de transporte de carvão. O rei escolheu um lugar amigável. Lady Juliet recorda que o seu avô, William (Billy), era um homem respeitado pelos mineiros — gostava mesmo de descer à mina —, o que é consensual entre os especialistas que frisam que ali os mineiros eram mais bem tratados do que noutras explorações. A I Guerra produziu mudanças na dinâmica social tradicional, nomeadamente na estrutura produtiva ligada à grande aristocracia e muitas das grandes casas senhoriais começaram a definhar. Wentworth Woodhouse foi-se mantendo forte, graças à riqueza dos “diamantes pretos”. Mas o carvão, o símbolo do poder dos Wentworth-Fitzwilliam, acabaria com eles. “Aconteceu um ataque à família por causa da antipatia que um ministro tinha à velha ordem. Ele quis fazer desta família um exemplo”, diz Christopher Tadgell, que é o terceiro marido de lady Juliet — foi casada com Victor Frederick Cochrane Hervey, 6. º marquês de Bristol, 20 anos mais velho; a seguir ao divórcio casou com o político e poeta Somerset de Chair, com quem começou a reconstruir a colecção de arte, a preencher as lacunas; finalmente, em 1997, depois de enviuvar, casou com o historiador Tadgell. A história da queda desta família é complexa e obriga à introdução de uma personagem estranha à família: Emanuel “Manny” Shinwell, filho de um vendedor de roupa judeu de Londres e de uma judia nascida na Holanda. Manny, que começa a trabalhar numa fábrica de tecidos, torna-se depressa sindicalista e adere ao jovem Partido Trabalhista, fundado em 1900 e que na década de 1920 já era a principal força de oposição aos conservadores. Mais um salto no tempo e Manny Shinwell está no Parlamento, chegando ao Governo quando, como diz Christopher Tadgell, “a outra metade do espectro social decidiu que chegara o seu momento, a sua oportunidade”. O Labour venceu as eleições do pós-II Guerra. “Eles queriam ter uma palavra a dizer sobre o rumo do país e conseguiram-no. As pessoas consideraram que o Labour faria melhor trabalho na reconstrução do país depois da guerra. ”Nos anos depois da guerra, o Reino Unido passou por uma grave escassez de carvão durante invernos especialmente gelados. Debaixo de duras críticas por não ter sabido gerir as reservas, o ministro Shinwell — responsável pelo Petróleo e as Energias primeiro, depois pela pasta da Guerra (da reconstrução) e finalmente pela Defesa — dá um salto em frente e nacionaliza as minas de carvão. Na brilhante carreira do ministro, que só acabou quando já era barão e estava sentado na Câmara dos Lordes de Westminster, existe este episódio excessivo chamado Wentworth Woodhouse. Shinwell, reconhecem os historiadores, terá ido longe demais na sua guerra contra a velha ordem, contra os velhos senhores da terra e das matérias-primas. O azar da família, reconhece lady Juliet, foi ter debaixo das suas terras, da sua floresta de árvores centenárias, dos seus jardins desenhados pelos melhores arquitectos paisagistas e da sua esplendorosa casa, tanto carvão, a maior reserva do Yorkshire. O ministro mandou expandir a mina — para baixo, para os lados, para cima. Wentworth tornou-se uma gigantesca mina a céu aberto. À época, Peter, o pai de lady Juliet, já era o senhor de Wentworth, o 9. º conde, e residia na casa. “Nesse período eu vivia lá com o meu pai e o carvão ia mesmo até à porta”, lembra a herdeira Fitzwilliam. Em Abril de 1946, uma coluna de camiões e de maquinaria pesada chegou a Wentworth, que se tornou a maior mina a céu aberto do Reino Unido. Produziram-se 132 mil toneladas de carvão. Que qualidade tinha esse carvão? O tema foi polémico. Peter Wentworth-Fitzwilliam encomendou um estudo científico à Universidade de Sheffield, que concluiu que o carvão de superfície era “de muito pobre qualidade” e que “não valia a pena tentar obtê-lo”. Shinwell, por seu lado, insistiu que era “de qualidade excepcional”. Na sua ânsia de destruir os ricos e privilegiados, dizem os historiadores, o ministro nem quis ouvir os argumentos dos próprios operários, dos mineiros, que deram razão ao conde e disseram que o carvão não prestava. Joe Hall, da união dos mineiros do Yorkshire, escreveu ao primeiro-ministro, Clement Attlee: “Os mineiros desta região farão qualquer coisa para não verem Wentworth Woodhouse destruída. Para muitas comunidades mineiras, esta terra é sagrada. ”Foi acusado de estar a soldo do conde, e Manny Sheffield mandou deitar todo o entulho da mina em frente ao pórtico barroco da casa-palácio dos Fitzwiliam — uma pilha negra com 15 metros de altura. “Repare que a família não era contra a mudança, que era necessária, mas a forma como foi feita foi vingativa. Foi um acto vingativo”, diz o historiador Tadgell, que auxilia a mulher em algumas explicações. “Não fez qualquer sentido tirar carvão que não prestava e, no processo, provocar a destruição de uma propriedade, de uma casa, de uma família. ”A mina a céu aberto funcionou até meados de 1950. Quando fechou, os jardins não foram replantados, a floresta não foi reposta e a casa começou a morrer, ferida nos seus alicerces pela movimentação do solo — um episódio da série da BBC The Country House Revealed mostra bem o que era e no que se tornou o palácio dos Fitzwilliam. Lady Juliet diz que o centro da casa assenta no vértice de uma pirâmide de carvão, toda a restante estrutura está sobre o vazio. Há rachas profundas nos tectos e paredes. A luta de classes que se travou naquele campo de batalha e ao fim do rendimento do carvão juntou-se a tragédia familiar. No prazo de seis anos, morreram dois condes e a família pagou dois pesados impostos sucessórios. Billy morreu em 1942, Peter em 1948, num acidente de avião que provocou um escândalo na época — o conde viajava para o Sul de França quando o pequeno aparelho em que seguia se despenhou; com ele estava Kathleen Kennedy Cavendish (irmã de John, que viria a ser Presidente dos Estados Unidos), viúva do marquês de Hartington. “A história não se passou exactamente como é contada” em Black Diamonds, refere lady Juliet, que diz ser uma pena que o livro seja dois terços bom e um terço “fofocas”. Quando o pai morreu, lady Juliet, a única filha de Peter, não pôde herdar o título e as propriedades a ele agarradas. A lei britânica mantém que a maior parte dos títulos de nobreza passem apenas de pai para filho. Para quem segue a série britânica Downton Abbey, que acompanha ao longo dos anos uma família de ficção com semelhanças à de lady Juliet, sabe que o drama começa porque lorde Grantham só tem filhas. O herdeiro, um primo chegado, morre no desastre do Titanic e o título acaba nas mãos de um primo distante e desconhecido, que ainda por cima trabalha, é advogado. As mulheres da aristocracia britânica tentaram, com o êxito da série, relançar uma campanha pela mudança da legislação, mas a aprovação da chamada “Lei de Downton” não parece estar próxima. Como aconteceu várias vezes ao longo da história desta família, o título passou para outro ramo da família, e William Thomas Wentworth-Fitzwilliam tornou-se o 10. º conde — seria o último. Com falta de liquidez e obrigada a fazer partilhas, a família começou a leiloar os móveis, os tapetes, os quadros. Foram feitas três vendas, em 1948, 1986 e 1998. Na venda de 1948, na Christie’s, o quadro Rinaldo Conquista o Amor de Arminda, de Anthony van Dyck, que está hoje na National Gallery de Londres, conseguiu o preço impressionante de 4600 guinéus (o equivalente a 156 mil libras, actualmente 214. 838 euros). Outras obras famosas vendidas acabaram também em museus nacionais: Whistlejacket, de George Stubbs, está igualmente na National Gallery; Sansão e os Filisteus, de Foggini, no Victoria & Albert. A casa, onde chegou a ser criada uma escola para raparigas, foi finalmente vendida em 1986 (o edifício, não as propriedades que se mantiveram nas mãos de vários herdeiros). Está novamente à venda, fala-se em oito milhões de libras, o que não é muito — em Londres há bairros com apartamentos mais caros —, mas não há quem lhe pegue por causa dos 40 milhões de libras que custa a recuperação. Os quadros mais pessoais, como os cavalos da família e os retratos dos antepassados — pintados por Stubbs, Mytens, Ticiano, Van Dyck —, esses ficaram com lady Juliet, que quando o décimo conde morreu — antes fez uma ferida irreparável no espólio familiar, mandando queimar todo o arquivo do século doloroso dos Fitzwilliams, o XX —, sem descendência, em 1979, acabaria por herdar a colecção de arte que tem tentado completar. “Vendemos uma propriedade na Irlanda e investimos na colecção, pois havia grandes lacunas. Os pintores holandeses seriam comuns numa colecção como esta, os flamengos seriam mais raros e era o que queríamos. Tentámos reconstruir o que seria uma colecção. Alguns dos quadros que adquirimos, há 20 anos, não os poderíamos comprar hoje, devido aos preços. Tivemos muita sorte por termos comprado na altura certa”, explica o casal Tadgell, que vive numa propriedade em Kent e, com eles, a colecção exposta na Gulbenkian. Lady Juliet faz parte da direcção de um fundo (um Trust) que tem como objectivo comprar, recuperar, mobilar e abrir ao público uma das mais belas e importantes casas rurais inglesas. O Trust, diz lady Juliet, não tem esse dinheiro; decorre em tribunal uma acção contra a Coal Authority, a quem é exigida uma indemnização pelos estragos, mas só os custos do processo legal são elevadíssimos. Em 1999, a casa foi comprada por Clifford Newbold, um arquitecto que investiu nela e chegou a abrir as portas ao público, organizando visitas. Mas o arquitecto morreu, em Abril, e os filhos voltaram a pôr a casa no mercado. Recentemente, dizem os jornais britânicos, surgiu um comprador — as versões variam, uns dizem que era chinês, outros que era russo —, mas o negócio falhou. Os historiadores de Arquitectura que escrevem de vez em quando sobre Wentworth House dizem que é criminoso que uma das mais belas casas inglesas esteja como está e que a sua existência seja desconhecida da maior parte das pessoas. Podia ser como Highclere, a casa rural que serve de cenário natural a Downton Abbey e que viu o fluxo de visitantes aumentar com a série. A BBC quer fazer uma série a partir de Black Diamonds. Talvez seja o que é preciso para motivar os mecenas e o Estado a investirem em Wentworth. Será, contudo, uma história diferente de Downton, que fala na mudança da malha social e económica na Inglaterra do princípio do século XX, mas é antes de mais uma memória da elegância de uma época. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Wentworth House, que alguns estudiosos da literatura dizem que serviu de inspiração para Jane Austen criar Pemberly em Orgulho e Preconceito — e o 4. º conde terá sido o modelo para Mr. Fitzwilliam Darcy — tem todo o charme da aristocracia rural, mas ali não houve finais felizes.
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu
Mistérios da Natividade
Os presépios sempre serviram para doutrinar. Mas nem a gruta, o estábulo, o burro, a vaca ou o Menino aquecido pelo bafo dos animais fazem parte dos Evangelhos canónicos. Crentes ou não-crentes, devemos reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativas evangélicas da Natividade. (...)

Mistérios da Natividade
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os presépios sempre serviram para doutrinar. Mas nem a gruta, o estábulo, o burro, a vaca ou o Menino aquecido pelo bafo dos animais fazem parte dos Evangelhos canónicos. Crentes ou não-crentes, devemos reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativas evangélicas da Natividade.
TEXTO: Estou debaixo de terra na Praça Central de Cracóvia. A observar esqueletos. De vampiros. Foram ali descobertos, creio que recentemente, os túmulos de seis mulheres: três delas deitadas em posição fetal, uma com as mãos atadas atrás das costas e as restantes duas decapitadas, com as cabeças separadas do tronco. Só assim se impediria, segundo a crença, que os vampiros ressuscitassem das tumbas e de novo viessem atormentar os vivos. A bizarra necrópole de Cracóvia data do século XI, mas estas práticas funerárias são bem mais antigas. Delas existem vestígios do ano 765, em Paderborn, na actual Alemanha. Quem tivesse a pele avermelhada, fosse canhoto, possuísse dentes salientes ou sobrancelhas espessas poderia ser suspeito de vampirismo — e ter um destino idêntico ao daquelas seis mulheres de Cracóvia. Uma morte súbita ou o suicídio eram igualmente suspeitos. Por precaução, decapitava-se o cadáver, apartando-se a cabeça do corpo e colocando-a sobre a tampa do caixão maldito. Lá em cima, a poucos metros de onde me encontro, um veterano da resistência ao nazismo imolou-se pelo fogo em Março de 1980, protestando contra a depravação da juventude, a extinção das artes e ofícios tradicionais e o manto de silêncio que encobria o massacre de Katyn, quando no decurso da Segunda Guerra vários milhares de oficiais polacos foram abatidos a sangue-frio às ordens de Estaline e Lavrentiy Beria. Nas arcadas do Mercado, o Café Noworolski, de veludos sumptuosos. Inaugurado em 1910, era frequentado pelas elites da cidade até os ocupantes nazis o terem requisitado para uso exclusivo de cidadãos alemães. Em 1949, foi nacionalizado pelo governo comunista, só sendo devolvido à família dos proprietários originais em 1992. O interior do Mercado é hoje inteiramente preenchido por bancas de artesanato e souvenirs turísticos. Entre eles, os presépios de Cracóvia. Feitos da prata dos chocolates, as suas cores brilhantes refulgem esplendorosas entre orvalhos de sangue e tantas memórias de morte. Há-os noutros lugares da Polónia. Mas, por direito e tradição, os presépios pertencem a Cracóvia. Diz-se que lá chegaram no século XIII, trazidos de Itália pelos franciscanos. E é em Cracóvia, na Igreja de Santo André, que as Irmãs Clarissas guardam o mais antigo presépio da Polónia — ou até mesmo da Europa, garantem os especialistas —, composto por duas figuras talhadas em madeira de tília na segunda metade do século XIV, que parecem peças de xadrez e, provavelmente, faziam parte de uma composição maior: São José, pensativo e absorto, e Maria jubilosa, de braços abertos, pronta a acolher o Menino no seu regaço. Os olhos da Virgem são pintados e cobertos de vidro, técnica semelhante à que seria utilizada mais tarde pelos grandes artesãos napolitanos. Sob o impulso da Contra-Reforma, e da necessidade de catequização de um povo de poucas ou nenhumas letras, os presépios adquiriram uma importante função didáctica; para esta pedagogia da fé, as Clarissas tinham um presépio ainda hoje exibido na Igreja de Santo André, e em que as figuras eram mudadas durante o período do Natal para representar sucessivamente a Adoração do Menino pelos Pastores, a Matança dos Inocentes, a Circuncisão de Jesus, a Adoração pelos Reis Magos e a Apresentação no Templo. É também no ambiente pós-tridentino que se generalizam os presépios domésticos, expostos o ano inteiro, com figuras de cera ou madeira policromada resguardadas no interior de maquinetas envidraçadas. Mas, a par disso, havia outro modelo de presépio que dizem ser exclusivo da Polónia. Nele, ao lado das figuras tradicionais existia um espaço para espectáculos de marionetas, tendo por temas a história do nascimento de Jesus ou, em versão satírica e profana, comédias de costumes, prática que as autoridades da Igreja acabariam obviamente por proibir. Contudo, os espectáculos eram extremamente populares — e rentáveis. Como num thriller de acção, a plateia assistia horrorizada à Matança dos Inocentes para logo depois aclamar, em ruidoso delírio, o castigo infligido a Herodes, o vilão da história: entrando em cena de rompante, a Morte cortava a cabeça ao rei da Judeia e o Diabo levava a sua alma para os confins das trevas. Moral da história: até os reis mais poderosos tinham de se submeter à implacável lei divina, assim se restaurando um elementar sentido de justiça por que o povo de Cracóvia tanto ansiava. Os monges, como é óbvio, não estavam dispostos a abrir mão deste script arrebatador. Por isso, encontraram formas subtis de iludir a proibição eclesiástica, aproveitando o ritual das visitas domésticas de Natal e Ano Novo (koleda) para utilizar trabalhadores dos conventos ou estudantes de catequese como actores nas representações teatrais feitas porta a porta. Nestes percursos, transportavam consigo igrejas em miniatura com presépios, os chamados “betlemitas” (betlejemki). Encontram-se aí, nos finais do século XVIII, as raízes da arte dos presépios cracovianos, tal como hoje a conhecemos. Mas só no século seguinte ela ganhou forma e vigor devido à conjugação de diversos factores. Desde logo, Cracóvia possuía um abundante acervo de estórias e personagens lendárias, capazes de alimentar as peças representadas na Natividade, as quais eram escritas por literatos e membros da intelligenzia local, sedentos de afirmar a especificidade da cultura nacional polaca e, no seu seio, a supremacia da cultura local da cidade; a incorporação dessas figuras lendárias tinha a vantagem de tornar a dramaturgia da Noite Santa imediatamente reconhecível pelo auditório. Por outro lado, a circunstância de os presépios integrarem monumentos e edifícios emblemáticos, religiosos ou profanos (como o Castelo de Wawel, a Torre do Relógio, a Porta de São Floriano), tornava-os um poderoso elemento identitário de Cracóvia, não sendo por acaso que as representações da Natividade contaram sempre com o generoso patrocínio da burguesia local. Se a isto acrescentarmos o interesse romântico pelo folclore e pelas tradições populares compreenderemos em que medida o florescimento dos presépios de Cracóvia se inscreveu num movimento mais vasto, que a todos envolvia: artesãos, literatos, comerciantes burgueses e autoridades políticas. Tratava-se, além disso, de um negócio lucrativo e rentável, em que alguns artistas ganharam merecida fama e histórica reputação. Entre eles, Michal Ezenkier, um pedreiro e fabricante de azulejos que concebeu presépios e dirigiu um grupo que representou cenas da Natividade desde 1864 até à sua morte em combate, na Primeira Guerra Mundial. A ele se deve a concepção do modelo dos presépios de Cracóvia, sendo o seu filho Leon responsável pelo guarda-roupa das figuras. No Museu Etnográfico é possível admirar um exemplar da autoria de Ezenkier, com quatro figuras sob a forma de marionetas — Herodes e sua mulher, o Diabo e a Morte —, estando ausentes as personagens centrais da Natividade, e até mesmo a Sagrada Família… Não se trata, pois, em bom rigor, de uma alegoria do Natal, mas de um artefacto para um teatro de marionetas a ser apresentado ao público na época natalícia. Em todo o caso, ainda hoje, do ponto de vista arquitectónico, os presépios cracovianos seguem o perfil traçado por Ezenkier: duas torres laterais em forma de pináculos góticos, semelhantes aos da Igreja de Santa Maria situada na Praça Central da cidade, acompanhadas por duas torres mais baixas, de inspiração barroca, e uma torre central mais elevada e dominante. A iluminação através de velas (que em Portugal vitimou, pelo menos, dois sumptuosos presépios barrocos de Lisboa) foi proibida por razões de segurança, passando a ser usadas lâmpadas eléctricas. Em finais do século XIX, o cânone estava estabelecido, sendo até fundada nessa altura uma guilda de artesãos de presépios, muitos dos quais pedreiros e carpinteiros dos arredores da cidade que, não tendo trabalho nos meses de Inverno, dedicavam o seu engenho e paciência à construção de representações da Natividade. Depois, iam mostrá-las de casa em casa, encenando teatralmente o nascimento do Menino, de uma forma não muito diversa daquela que os monges dos conventos tinham apresentado no século anterior. As duas guerras mundiais abalariam esta tradição artística, e o concurso anual de apresentação dos presépios de Cracóvia (szopka krakowska), iniciado em 1937 graças aos esforços do historiador de arte e etnógrafo Jerzy Dobryzcki, só seria retomado em 22 de Dezembro de 1945. Todos os anos, na primeira quinta-feira de Dezembro, os habitantes da cidade e os turistas podem contemplar o desfile. De invulgar estatura e dimensões pujantes, os presépios são transportados pelos artífices e seus familiares, que os depositam no meio da neve, junto à estátua do bardo nacional, o poeta romântico Adam Mickiewicz. No concurso existem categorias de prémios destinados a crianças e jovens, na tentativa de preservar a continuidade desta arte. Há dinastias famosas de artesãos, como as famílias Malikowie, Gluchowie e Piacikowie, mas, segundo se diz, paira uma nova ameaça sobre os presépios de Cracóvia. Ao aproximarem-se da estátua do poeta muitos artistas são aliciados a vender logo ali as suas obras, em vez de aguardarem pelo dia em que serão expostas no Museu de História da Cidade. Intermediários vindos dos hotéis, delegados de agências de viagens, representantes de grandes empresas ou turistas endinheirados disputam avidamente os presépios de Cracóvia antes sequer de estes entrarem em competição. Nem sempre o tamanho conta. Espantei-me pelo facto de um presépio volumoso ser mais barato do que outro, bastante mais pequeno. Porém, um exame atento permitiu surpreender maior delicadeza das formas e mais fina perfeição do recorte dos papéis de prata e de folha de alumínio. As figuras centrais do presépio são, evidentemente, a Virgem, São José e o Menino. Por cima da Sagrada Família, anjos puríssimos fazem soar trombetas de alegria, enquanto pastores e ovelhas, e por vezes os Reis Magos, se aproximam em gloriosa adoração. Com frequência, os presépios de Cracóvia apresentam figuras históricas: monarcas antigos, príncipes afortunados, heróis que alimentam o orgulho de uma nação martirizada ao longo de séculos. Copérnico aparece em alguns presépios, a par de personalidades lendárias como o corneteiro que, na torre da Igreja de Santa Maria, teve a garganta trespassada por uma flecha enquanto alertava a cidade para a invasão iminente dos tártaros. Ou Pan Twardowski, nobre e feiticeiro do século XVI que, como o Dr. Fausto, vendeu a alma ao Diabo a troco de poder mundano e grandes riquezas. Ou ainda o cavaleiro de vestes pseudo-orientais, o Lajkonik, que celebra a chacina dos tártaros e do seu Khan às mãos dos intrépidos barqueiros do Vístula, fasto ainda hoje recordado num desfile que todos os anos percorre Cracóvia no mês de Junho, durante a semana do Corpus Christi. Como sucede nos presépios de todo o mundo, certas figuras envergam trajes tradicionais da região, ainda que sem a exuberância faustosa das suas congéneres de Nápoles. Em alguns deles, personalidades contemporâneas como Karol Wojtyla ou até mesmo Lech Walesa presenciam o nascimento do Menino. A exposição actualmente patente na antiga Fábrica de Oskar Schindler mostra presépios iconoclastas, em que Hitler e Estaline ocupam o lugar central e a Sagrada Família se afasta de burro, espavorida, a caminho de um Egipto imaginário. Tudo isto não deve causar estranheza se pensarmos que em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, o vastíssimo presépio feito pelas beatas irmãs Dos Reis com figuras recortadas de jornais e revistas ostentava, além das de Rodolfo Valentino ou Charlie Chaplin, a imagem de Vladimir Illich Oulianov, a. k. a. Lenine — e sem que daí resultasse escândalo na retrógrada cidade de Ilhéus, Estado da Bahia. Construídos em torno de uma armação de madeira, os presépios de Cracóvia têm uma característica singular: neles são representados, em patamares sobrepostos, as principais igrejas e outros monumentos da cidade, desde o românico à art nouveau. Alguns presépios são verdadeiros guias turísticos em três dimensões, como aquele que vi na penumbra da Basílica de São Francisco de Assis, à entrada dos claustros. Monumental, mais grandioso do que os que se podem contemplar no Museu Etnográfico, o presépio da Basílica de São Francisco apresenta as diversas igrejas de Cracóvia, devidamente assinaladas num mapa explicativo. A reverberação da luz na prata multicolor dá-lhes uma aparência feérica, com laivos de sumptuosidade oriental, característica que é adensada pelo facto de muitos dos presépios de Cracóvia serem encimados por um zimbório em forma de cebola, à maneira bizantina ou ortodoxa. Por vezes, a Sagrada Família é ofuscada pela luminosidade resplandecente das cores vivíssimas e pela pujança dos ornamentos, raiando o kitsch. Quase nos esquecemos que Jesus nasceu numa gruta. A gruta de Belém não é sequer mencionada nos Evangelhos. Aliás, quase tudo o que faz parte do imaginário e da cenografia da Natividade — a gruta e o estábulo, o burro e a vaca, o Menino aquecido pelo bafo dos animais — não consta dos Evangelhos canónicos. Em Lucas 2, 7 fala-se apenas de uma manjedoura, onde o Menino foi deitado, envolto em panos. Não se trata de um pormenor. Pelo contrário, a imagem de Jesus-criança enfaixado em panos, propagada pela tradição dos ícones, contém uma alusão antecipada à hora da sua morte. Prefiguração fulgurante, que introduz uma noção de circularidade do tempo na narrativa evangélica e nos leva a encarar o Calvário e tudo quanto lhe está associado — a Pietá, o Stabat mater dolorosa, etc. — a uma nova luz, impregnada de sombra: a da mãe que se reencontra com o filho morto, exactamente do mesmo modo como antes o tomara nos braços, recém-nascido. Mais extraordinário ainda é pensarmos que, certamente de forma involuntária, esta ligação entre o nascimento e a morte de Cristo teve uma singular expressão artística: as primeiras grandes representações da Natividade, os presépios com figuras talhadas em retábulos feitos a partir do século XV no Norte dos Alpes, mostram claras semelhanças com os grandes Calvários do gótico tardio que foram realizados precisamente nessa época, e na mesma região. Se a gruta não é referida nos Evangelhos, ela consta de uma antiquíssima tradição, como testemunharam o mártir Justino (Dial. , 78) e Orígenes (Contra Cels. , 1, 51) (cf. Salvador Muñoz Iglesias, Los Evangelios de la Infancia, vol. III, 1987, pp. 99ss). Também São Jerónimo escreveu, em 404, sobre o specus Salvatoris, a gruta do Salvador. Baseando-se no teólogo protestante Peter Stuhlmacher, professor em Tübingen, Joseph Ratzinger afirma, no seu livro Jesus de Nazaré. Prólogo. A Infância de Jesus (2012), que desde sempre, na região em redor de Belém, foram usadas grutas como estábulos. A isto poderíamos acrescentar que os Apócrifos contêm menções explícitas à gruta onde nasceu Jesus, como sucede, por exemplo, no Papiro Bodmer 37, 10 (“E ali encontrou uma gruta: levou-a para ela”), no Proto-Evangelho de Tiago 18, 1 (“Encontrou lá uma gruta: levou-a para lá”) ou no Evangelho do Pseudo-Mateus (“disse, depois, à bem-aventurada Maria que descesse do animal que entrasse numa gruta sob uma caverna na qual nunca entrava a luz, mas só as trevas, porque não podia receber a luz do dia”). Em Roma, na actual Igreja de Santa Maria Maggiore, venerava-se como relíquia um pedaço da gruta original onde Jesus nasceu, a partir da qual foi construída, no século VII, a primeira réplica da gruta da Natividade executada no Ocidente. Foi também nessa igreja que se iniciou a tradição da missa da meia-noite. A manjedoura de Belém, diz a lenda, terá sido destruída no século II às ordens do imperador Adriano. Ainda assim, entre 432 e 440 o Papa Sixto III conseguiu trazer para Roma vários fragmentos do Santo Presépio, que mais tarde seriam dispersos por alguns templos da Cidade Eterna: Santa Maria Maggiore, a Igreja de Santa Maria no Trastevere e, naturalmente, a Basílica do Vaticano. Séculos depois, no ano de 1223, São Francisco faz erigir na floresta de Greccio aquele que é considerado o primeiro presépio do mundo, imortalizado por Giotto num fresco celebérrimo da Basílica de Assis. Mesmo isso, no entanto, suscita interrogações e mistérios, pois alguns especialistas entendem que o presépio, tal como o conhecemos, só tomaria forma muitos anos depois. Ou, ao invés, muitos anos antes, bastando recordar que a mais antiga conhecida imagem de Nossa Senhora com o Menino se encontra em Roma, nas Catacumbas de Santa Priscilla. Datando do século III, mostra a Virgem, Jesus e um profeta indicando a estrela, a estrela que, nas palavras de Pascoaes, é divino sorriso alumiante. Já falaremos dela, dentro de minutos. A par da gruta de Belém, outros mistérios se adensam em torno do nascimento de Jesus, começando pela data em que ocorreu. Este é um ponto em que até Ratzinger concorda com os que, como E. P. Sanders (A Verdadeira História de Jesus, 2004, p. 27) ou Joachim Gnilka (Jesus de Nazaré, 1999, p. 77), dizem que houve um erro nos cálculos feitos no século VI pelo monge cítico Dionísio Exíguo († ca. 544) para a elaboração do seu calendário litúrgico e para a determinação do anno Domini. O nascimento de Cristo terá assim ocorrido alguns anos antes da data que, a partir daqueles cálculos, marca o início da contagem da nossa era. Vivemos, pois, por volta de 2019 ou de 2021 d. C. Por sua vez, Jesus terá nascido no ano 4, 5, 6 ou até 7 a. C. , facto que pode apoiar a tese da inverosimilhança de diversas passagens do Novo Testamento mas que, queiramo-lo ou não, tem um desconcertante sentido profético. Antes de nascer, Cristo já o era. Talvez possamos enquadrar essa realidade nas palavras de São João Baptista, recolhidas no Evangelho de João: “Aquele que vem depois de mim é mais importante do que eu, porque já existia antes de mim” (Jo, 1, 30). Muitos defendem que, ao invés de buscar afanosamente uma sustentação histórico-factual para todas as referências evangélicas, devemos assumir que as tentativas de concordismo bíblico, que subsistem entre diversos exegetas católicos e protestantes, são destituídas de fundamento em face da flagrante discrepância entre os relatos de Mateus e Lucas (pese as similitudes detectadas por vários autores, como René Laurentin, Les Évangiles de l’Enfance du Christ, 1982, pp. 361ss). Aquela discrepância, note-se, não é factual, uma vez que os evangelistas nunca tiveram o propósito de elaborar uma biografia histórica de Jesus mas antes uma narrativa construída com um objectivo estritamente teológico, não distante de um género literário hebraico antigo, o “midraxe hagádico”, em que uma dada interpretação das Escrituras é apresentada através de relatos e narrações (cf. Joaquim Carreira das Neves, Jesus Cristo. História e Mistério, 2000, pp. 55ss). Em face disto, tanto se afiguram vãs as “denúncias” de um E. P. Sanders sobre as contradições entre Mateus e Lucas como se revelam as dificuldades de um Joseph Ratzinger para encontrar uma explicação histórica para tudo quanto os dois evangelistas afirmam. Por exemplo, Bento XVI apoia-se em Flávio Josefo († ca. 100) para fundamentar historicamente a ocorrência de um recenseamento para fins tributários na época de Augusto, mas não menciona que o autor de Antiguidades Judaicas em lugar algum se refere à matança de crianças no reinado Herodes, facto que, a ter ocorrido, mereceria certamente registo nos anais da época. Do mesmo passo, Ratzinger sustenta que Maria e José terão ido a Belém justamente por causa daquele censo fiscal, pois, apesar de viverem em Nazaré, é legítimo “supor que José, da casa de David, possuísse um terreno em Belém, pelo que tinha de ir lá para a cobrança dos impostos” (op. cit. , pág. 57). Na ausência de bases históricas para uma tal suposição, melhor será abrirmo-nos à intenção profética das narrativas evangélicas, nos termos da qual Jesus tem de nascer em Belém por ser essa a cidade de David. Só dessa forma se cumpre e realiza o destino profetizado em Miqueias 5, 1: “Quanto a ti, Belém, no clã de Efrata, embora sejas tão pequena entre as terras de Judá, de ti farei seguir aquele que vai ser o guia de Israel. ” Muito do que encontramos no Evangelho de Mateus surge ordenado — e só é explicável — justamente enquanto cumprimento de um desígnio messiânico ou profético, incluindo um ponto que, além do nascimento em Belém, é incontroverso para todos os evangelistas: a concepção virginal de Jesus. A virgindade de Maria é prenunciada em Isaías 7, 14: “Pois bem, é o próprio Senhor que vos vai dar um sinal: a jovem mulher está grávida e vai dar à luz um filho e pôr-lhe-á o nome de Emanuel” (no texto hebraico; sendo mais expressiva a antiga versão grega dos Setenta, a Septuaginta: “A virgem ficará grávida e dará à luz um filho que se há-de chamar Emanuel”). Por outro lado, quando o anjo Gabriel saúda Maria (“O Senhor está contigo”, Lc 1, 28), actualiza a profecia constante da Escritura hebraica, mais precisamente de Sofonias 3, 17: “O Senhor, teu Deus, está no meio de ti. ” A fuga para o Egipto, por seu turno, realiza a profecia de Oseias 11, 1: “Chamei do Egipto o meu Filho. ” O massacre das criancinhas visa cumprir o que escreveu o profeta Jeremias 31, 15. E a presença em Nazaré, e não na Judeia, tem um propósito evidenciado em Mateus 2, 23: “Ali fixou residência numa terra chamada Nazaré. Foi assim que se cumpriu aquele dito dos profetas: ‘Ele há-de chamar-se Nazareno’. ”É também a esta luz, à luz do cumprimento de um desígnio profético, que se compreende que os chamados “evangelhos da infância” sejam marcados por analepses teológicas, digamos assim, que fazem com que a narrativa seja constantemente atravessada por sonhos e presságios, sinais, profecias. É o Natal com seus mistérios. Um anjo aparece em sonhos a José, tranquilizando-o sobre a virgindade de Maria (Mt 1, 20); outro lhe surgirá, também em sonhos, ordenando-lhe que fuja para o Egipto (Mt 2, 13) e, mais tarde, que de lá regresse à terra de Israel (Mt 2, 19). É também através de um sonho que Deus — desta feita, dispensando a intermediação de anjos — avisa os sábios do Oriente para não voltarem a encontrar-se com Herodes (Mt 2, 12). No relato lucano, as angelofanias não emergem numa atmosfera onírica, mas sob a forma de aparições. É desse modo que um anjo anunciou a Zacarias o nascimento de João Baptista (Lc 1, 11) ou que outro anjo, Gabriel, anunciou a Maria o nascimento de Jesus (Lc 1, 26). “Servirei o Senhor como ele quiser. Seja como tu dizes”, respondeu-lhe a Virgem, o que levou alguns padres da Igreja a concluírem que Maria terá concebido através do ouvido, por uma obediente audição da Palavra de Deus, derivando daí, segundo se diz, a expressão popular “emprenhar pelos ouvidos”. A densidade, a um tempo poética e teológica, da aparição angelical é potenciada por uma breve mas lindíssima frase, também ela misteriosa, que remata o diálogo entre Maria e o anjo Gabriel. Após a Virgem lhe ter dito “Seja como tu dizes”, o Evangelho de Lucas acrescenta: “E o anjo retirou-se” (Lc 1, 38). Como salienta Joseph Ratzinger, esse dito tão simples, aparentemente destituído de significado — “E o anjo retirou-se” —, surpreende, ao colocar Maria num momento de solidão, de confronto consigo mesma e com a tarefa que lhe fora atribuída. A sós, com Deus. O mistério da Natividade é também o mistério da maternidade e da solidão que sempre a rodeia, em todos os tempos e lugares, hoje como há dois mil anos. A reserva e a discrição de Maria têm algo de enigmático, emergindo em tantos momentos do texto de Lucas que muitos asseveram que uma das fontes do evangelista terá sido a própria Virgem, descrevendo factos que só poderiam ser revelados após a sua morte. Ao presenciar a correria dos pastores rumo a Belém, para divulgar a Boa Nova, “Maria recordava todas estas coisas e meditava nelas atentamente” (Lc 2, 19). A narrativa lucana da Anunciação só é possível por acesso directo a Maria ou, em alternativa, sendo fruto da imaginação do evangelista, que obviamente não presenciou, por exemplo, o diálogo da Virgem com o anjo Gabriel. Mais adiante, quando Jesus abandona por instantes a família, aos 12 anos de idade, e responde aos pais, inquietos pelo seu desaparecimento, “Porque é que me procuravam? Não sabiam que eu tinha de estar em casa de meu Pai?”, Lucas acrescenta: “Eles não compreenderam o que lhes disse” (Lc 2, 50). A família regressa a Nazaré e Jesus continuou a ser obediente. “Sua mãe guardava todas estas coisas no coração” (Lc 2, 51). Este é o trecho decisivo, aquele em que se revela de forma mais patente a solitária reserva da Virgem Maria. E também, passado um momento de perturbação inicial, a suave placidez com que presenciou e se fez cúmplice do Natal e seus mistérios. A serenidade da Virgem, sintomaticamente, contrasta com a azáfama dos pastores que correram apressados a Belém, com as inquietações de Herodes e do Sinédrio ou com o escândalo suscitado em Jerusalém pelo nascimento do Menino. À semelhança do que ocorreu com a imagem do Menino envolto em panos (Lc 2, 7), o nascimento e a morte de Cristo voltam a encontrar-se. A perturbação sentida em Jerusalém por alturas do Natal é idêntica à que ocorrerá aquando da entrada triunfal de Cristo na cidade santa. De acordo com Mateus, “quando Herodes teve conhecimento disto, ficou muito preocupado, e como ele todos os moradores de Jerusalém” (Mt 2, 3); 30 anos depois, “quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço” (Mt 21, 10). De igual modo, o Sinédrio intervém a pedido de Herodes, aquando do nascimento de Jesus (Mt 2, 4-5), e depois para o seu julgamento (Mt 26, 57). Aliás, os Reis Magos buscam o “rei dos Judeus” (e não, como deveriam, o “rei de Israel”), sendo aquele o título pelo qual Jesus será, muito mais tarde, julgado e condenado à morte (Mt, 27, 11). Nascimento e morte, os dois pólos da existência terrena de Jesus, em torno dos quais se constrói a narrativa evangélica, segundo o polarismo, técnica de expressão simbólica muito comum na semântica hebraica (cf. Gianfranco Ravasi, Videro il Bambino e sua Madre. Meditazioni sui vangeli dell’infanzia, 2000, p. 6). É extraordinário pensar, como expressão acidental dessa polaridade, que a data do nascimento de Cristo foi fixada em 25 de Dezembro pelo Papa Júlio I tendo em conta precisamente a sua estreita ligação ao Calvário, a par de outros factores, como a celebração romana do Dies natalis solis invictis, o solstício de Inverno. Jesus Cristo é o Menino, o Menino Jesus, e assim será conhecido pela tradição da fé, feita história de amor humano. No Auto Pastoril Português, Gil Vicente fala, enternecido, do “cachopinho tam fermoso e sesudinho / filho de Nossa Senhora”. A imagética da Natividade e todo o ambiente que a envolve animam sentimentos vários, desde o embevecimento pelos recém-nascidos à exaltação da sua inocência. De permeio, a composição dos presépios é um regresso ao tempo da infância ou um Ersatz da maternidade. Não por acaso, desde a Idade Média existiu nos conventos femininos germânicos a tradição do Kindlwiegen (“Embalar o Menino”), em que a figura de Jesus-criança surge colocada num berço móvel, com o qual se podia brincar. Neste contexto, o Menino adquire absoluta centralidade, a um ponto tal que passa a ser alvo de devoção específica e de representações artísticas que o tomam por objecto exclusivo. Aparece então sob a forma de uma criança igual a todas as outras, com absoluta candura, na quietude do sono. Na Igreja Paroquial da Carvoeira, em Torres Vedras, Jesus Menino dorme tranquilamente, de faces rosadas, na completa nudez com que nasceu, numa delicada torção, com a cabecinha postada numa almofada de seda bordada a missangas, fazendo cócegas no umbigo. Noutros lugares, como na Igreja das Chagas e no Convento dos Cardaes, em Lisboa, ou na Igreja Paroquial de São Pedro, em Peniche, surge deitado num berço, de olhos abertos ao espanto do mundo. Quem assim se mostra não é o Redentor ou o Messias, mas tão-só uma criança recém-nascida. Numa escultura de vulto pleno e reduzidas dimensões, feita no século XVIII-XIX por um autor desconhecido, e hoje exibida no Museu do Patriarcado de Lisboa, o Menino tem um vasto enxoval de 25 vestidos, em cetim e prata, que se mudavam consoante o gosto, num dispositivo parecido ao do Menino Jesus de Praga, que desde o século XVI vem acumulando um abundantíssimo enxoval, com roupas de toda a parte. Esta dimensão lúdica da Natividade é tão importante como a religiosa, o que obrigou frequentemente à intervenção correctiva das autoridades eclesiásticas. No inventário de um castelo italiano, elaborado em 1567, consta que a duquesa de Amalfi tinha dois baús com 116 figuras de presépio, certamente para seu deleite e entretenimento. Pela mesma altura, no Sul da Alemanha, a arquiduquesa Maria de Wittelsbach enriquecia o seu presépio privado com figuras de madeira encomendadas a artesãos de Munique. E, no século XVIII, as famílias da aristocracia napolitana competiam entre si pela posse do presépio mais faustoso, mais ricamente adornado por figuras de barro ataviadas com delicados finimenti, numa opulência visual que fascinaria Goethe. Na Bíblia, porém, a designação de “menino” tem um objectivo preciso e nada lúdico ou aparatoso: destina-se a evitar que Jesus seja apresentado como filho de José. O anjo de Deus diz a José “levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge com eles para o Egipto” (Mt 2, 13) e, mais tarde, “levanta-te, toma o menino e sua mãe e volta para a terra de Israel” (Mt 2, 20-21), quando a fórmula correcta teria sido “toma o teu filho e sua mãe…”. No Alcorão, aliás, Cristo é reiteradamente descrito tão-só como “Jesus, filho de Maria”, sem menção do nome do pai (2. ª surata, versículos 87 e 253; 3. ª surata, versículo 45). No Evangelho de Mateus, a genealogia de Cristo é apresentada através do encadeamento das gerações por via masculina (“Abraão gerou Isaac…”), mas, singularmente, chegando a Jesus, deixa de se falar em geração: “Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo” (Mt 1, 16). Só assim se torna possível preservar a concepção virginal de Maria e, em simultâneo, integrar Jesus na linhagem da Casa de David (cf. Jean Daniélou, Les Évangiles de l’Enfance, 1967, p. 45; cf. ainda John P. Meier, A Marginal Jew. Rethinking the historical Jesus, vol. I, 1991). Significativamente, não se diz que José gerou Jesus, pois Cristo é “obra do Espírito Santo” (Mt 1, 20). Quando os Reis Magos se abeiram da gruta de Belém, José não se encontra lá, estranhamente (Mt 2, 11). Ratzinger reconhece que nunca conseguiu encontrar explicação para tal ausência. Em alguns Apócrifos, todavia, José está lá, junto a Maria, e com ela recebe dos Magos oferendas preciosas (cf. , por ex. , o Evangelho do Pseudo-Mateus 16, 2). Mas é incontroverso que, nas narrativas dos Evangelhos canónicos, José não se encontra em cena quando os sábios do Oriente fazem a proskynesis perante o Menino real, ou seja, quando se prostram diante d’Ele. Aliás, a presença de José nas representações do presépio só se torna comum no século VI, altura em que a Natividade e a Adoração dos Magos já eram visíveis em diversas obras de arte, como o cofre de Werden, na Vestefália, os mosaicos de São Apolinário ou as âmbulas metálicas de Monza, em Ravena. Em Natividade, um pastel sobre papel feito por Paula Rego em 2002, exposto na Capela do Palácio de Belém, em Lisboa, Maria dá à luz amparada apenas por um anjo de rosto compenetrado e grave. Do marido, nem sombra. Ter-se-á José ausentado no momento crucial da Noite Santa? Trata-se de um mistério tão singular quanto é sabido que a realeza de Jesus — se quisermos, a realeza terrena de Jesus — provinha de José, da Casa de David, e não de Maria, simplesmente Maria, de família pobre de Nazaré. Em todo o caso, é José que dá ao recém-nascido o nome de Jesus (“a quem José pôs o nome de Jesus”: Mt 1, 25) e é a paternidade de José que permite inscrever Jesus na genealogia de David, do mesmo modo que foi a ascendência de David que, no relato lucano, levou José e Maria a Belém, onde foram inscrever-se no recenseamento realizado quando Quirino governava a Síria. “Todos iam inscrever-se, cada um na sua cidade. Por isso, José partiu de Nazaré, na província da Galileia, e foi para Belém, na província da Judeia, onde tinha nascido o rei David. Como José era descendente de David, foi lá inscrever-se com Maria, sua mulher, que estava grávida” (Lc 2, 3-5). Por conseguinte, José é pai de Jesus não apenas em face da lei mas também porque só desse modo se realiza a profecia que fez nascer o Menino em Belém. Todavia, e como salienta Ratzinger, a origem de Jesus, no que respeita à paternidade de José, “permanece um mistério”, a juntar a tantos outros que a Natividade encerra. “Supunha-se que era filho de José”, diz-nos Lucas 3, 23. Falemos dos animais. Nas mais antigas representações da Natividade, três sarcófagos do século IV que hoje se encontram nos Museus do Vaticano, já surgem o burro e a vaca junto ao berço do Menino. Não são referidos nos Evangelhos canónicos, mas há quem descortine a sua presença em trechos veterotestamentários cuja concatenação poderia explicar que junto ao Menino estivessem um burro e uma vaca, testemunhos de obediência e fidelidade, signos de mansidão. Em Isaías 1, 3: “O boi reconhece o seu proprietário, e o burro o estábulo do seu dono; mas Israel, o meu povo, nada conhece e nada compreende. ” Há quem realce igualmente a versão grega de Habacuc 3, 2: “No meio de dois seres vivos serás conhecido (…); quando vier o tempo, tu aparecerás. ” Simplesmente, a esta menção liga-se os dois querubins que, segundo o Êxodo 25, 18-20, estavam colocados sobre a cobertura da Arca da Aliança, indicando e simultaneamente escondendo a misteriosa presença de Deus. Mesmo admitindo a existência de um paralelismo entre a manjedoura de Belém e a Arca da Aliança, permanece um mistério a correlação entre os querubins do Êxodo e a alusão a um boi e a um jumento feita em Isaías 1, 3. Essa correlação não tem, evidentemente, a pretensão de desvendar aqui, num trecho relacionado com animais domésticos, o cumprimento de um grandioso desígnio profético, como bem observam comentadores rigorosos (cf. Salvador Muñoz Iglesias, op. cit. , pp. 104ss). E por isso talvez se afigure mais avisado, até numa perspectiva de reconhecimento de espaço à tradição da Igreja, situar o surgimento do burro e da vaca numa fase posterior da História, num tempo de reconstrução imaginária da Natividade, valorizando o Natal como uma narrativa aberta tanto ao labor dos exegetas quanto à fé dos crentes. A presença dos animais — não apenas do burro e da vaca, mas de todos quantos depois entraram nos presépios, desde as ovelhas dos pastores aos elefantes e girafas, macacos e leopardos que acompanhavam o séquito dos Reis Magos — aprofunda o deslumbramento encantado e o afecto generoso que o presépio sempre desperta. “O Evangelho é simplesmente um catálogo de coisas inesperadas. Não se espera que um boi e um burro adorem a manjedoura. Os animais estão sempre a fazer as coisas mais incríveis nas vidas dos santos. Faz tudo parte da poesia, o lado Alice no País das Maravilhas da religião”, diz Lady Marchmain a Charles Ryder em Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh. Como é possível explicar, senão desta forma, que Jesus faça a sua entrada triunfal em Jerusalém montado numa burra acompanhada de um jumentinho?Agora, a estrela. É ela que, dirigindo-se para ocidente, guia os Reis Magos até à gruta de Belém. Quando a avistaram, os sábios “sentiram uma alegria enorme” (Mt 2, 9-10). Outro prodígio da Natividade. “Era real e não imaginada”, escreve Sophia, num poema que lhe dedicou. Contudo, muitos duvidam da sua existência, dizendo mesmo que era impossível uma estrela deslocar-se da maneira descrita nos Evangelhos. Johannes Kepler, no que parece ser seguido por alguns astrónomos actuais, salientou a existência de uma conjunção dos planetas Júpiter, Saturno e Marte, acompanhada de uma supernova, por altura dos anos mais prováveis do nascimento de Jesus. Afirma-se também que tábuas cronológicas chinesas assinalam o surgimento de uma estrela por volta do ano 4 a. C. No seu monumental Guide to the Bible, o prolífico escritor e divulgador científico Isaac Asimov duvida do aparecimento de uma supernova, mas reconhece a singular aproximação entre Júpiter e Saturno ocorrida, segundo ele, em 7 a. C. A hipótese que tem por mais plausível é, todavia, a da passagem do cometa Halley pelo sistema solar interno, que se verificou em 11 a. C. Não existem, em qualquer caso, provas concludentes sobre a existência da estrela da Natividade (cf. Salvador Muñoz Iglesias, op. cit, , vol. IV, 1990, pp. 226ss). Podemos considerá-la um dispositivo literário, um estratagema metafórico para assinalar o domínio cósmico de Deus e o universalismo da sua mensagem; ou, de novo, encará-la como a concretização de uma referência do Antigo Testamento, aquela que é feita à estrela de Balaão no livro dos Números 24, 17: “Uma estrela de Jacob vai dominar, vai erguer-se um ceptro de Israel. ” Ou podemos, pura e simplesmente, eliminar a estrela dos céus da Judeia, considerando “patéticos” os esforços para demonstrar e documentar a sua existência (cf. Gianfranco Ravasi, op. cit. , p. 8) ou mesmo afirmando acidamente, como José Saramago: “Brilham lumes no céu? Sempre brilharam. ” Mas, se assim fizermos, com isso se perderá o mais cintilante dos mistérios da Natividade, a “ditosa strella, que os três Reys guiaste”, como lhe chamou o poeta quinhentista Diogo Bernandes. As primeiras testemunhas do nascimento de Jesus são pastores (e os seus rebanhos, claro). Não é difícil discernir a razão e o sentido da sua presença ali, no meio dos campos. A mensagem evangélica, neste passo, é cristalina: os pastores são os humildes, os pobres, os eleitos para a mesa do Senhor, alegoricamente apresentada sob a forma de manjedoura. Os pastores foram também os que de noite, naquela noite, se encontravam de vigia, atentos aos sinais dos céus, o que inspirará as veladas e as orações nocturnas da tradição monacal. Não por acaso, uma das figuras características nos presépios napolitanos — também presente em alguns exemplares do barroco português — é o homem que dorme, o “dorminhoco” que não está atento aos sinais de Deus nem se encontra pronto a acolher a mensagem da Natividade e seus mistérios. O sono corresponde, neste contexto, a uma alusão metafórica à descrença e ao paganismo. Por outro lado, Cristo, nascendo entre pastores, será, como David, o grande Pastor dos homens. “Não tenham medo!”, diz-lhes o anjo num cântico (Lc 2, 9), exortação retomada e mundialmente celebrizada por João Paulo II, que antes de ser Papa fora arcebispo de Cracóvia, a cidade dos presépios resplandecentes. Dos Reis Magos muito se poderia dizer, começando pelo facto de, segundo diversos exegetas, a sua presença não ser essencial à apreensão do Natal e seus mistérios (cf. , por ex. , Jean Daniélou, op. cit. , p. 105). Contudo, o facto é que o Evangelho de Mateus refere os “sábios de Oriente” que vêm prostrar-se aos pés de uma família humílima, a que recusaram hospedagem no caminho para Belém, um dado muito expressivo e paradoxal, como sublinha o Evangelho de São João: “Veio para o seu próprio povo, que não o quis receber” (Jo 1, 11). “Nom tendes cama bom jesus não / non tendes cama senão no chão (…) / non tendes cama senão de feno”, dizia um poeta português anónimo do século XVI. De facto, a Sagrada Família teve de buscar refúgio num estábulo. A palavra “presépio” deriva do latim praesepe, cujo significado básico é “estábulo” ou “curral”, sendo composta pelo prefixo prae (“diante”) e pelo substantivo saepes (equivalente a “lugar fechado”, o que produziu a palavra “sebe”). O presépio só existe quando terceiros se encontram diante da cena da Natividade, que perante eles se apresenta — ou representa — teatral e cenicamente. Os Reis Magos não serão imprescindíveis para compreender a Natividade mas, juntamente com os pastores, afiguram-se essenciais para que exista “presépio”, tal como este é designado em castelhano, português ou italiano (em alemão, a palavra “Krippe” denominava apenas a manjedoura, à semelhança de “crèche”, em francês; a língua inglesa, curiosamente, não tem uma expressão para designar a representação figurativa da Natividade). A comitiva dos Reis Magos foi variando com o tempo. Chegaram a ser 12. Um decreto papal do século V, apoiando-se numa homilia de Leão Magno, fixou definitivamente em três o número dos sábios do Oriente. E se, de acordo com a interpretação agostiniana, a manjedoura equivale metaforicamente à mesa de Deus, para a qual todos são convidados, a tradição tomou os magos como reis de todos continentes então conhecidos — África, Ásia, Europa. Entre eles, encontra-se um rei negro, o que para diversos intérpretes, como Joseph Ratzinger, é sinal demonstrativo de que não há distinção de raça nem de proveniência no reino de Jesus Cristo. Na paleta de Vasco Fernandes e Francisco Henriques, a Adoração dos Reis Magos (1501-1506) apresenta mesmo, em vez de um negro, um índio de terras de Vera Cruz, da etnia tupinambá. Num registo menos surpreendente, até vulgar em representações barrocas, o Presépio da Madre de Deus, em Lisboa, atribuído ao escultor António Ferreira, exibe quatro cavaleiros árabes, na peugada dos sábios do Oriente. Também já se viu nos Magos a enunciação das idades da vida: a juventude (Baltasar), a idade adulta (Gaspar) e a velhice (Melchior). No entanto, a ideia de que os Reis Magos teriam vindo de todos os continentes não se coaduna com aqueloutra, igualmente sustentada por Ratzinger, segundo a qual os magos (mágoi) pertenceriam à casta sacerdotal persa ou, mais precisamente, a um pequeno grupo de astrónomos que ainda existiria na Babilónia e que teriam sido capazes de alcançar o significado da conjunção astral dos planetas Júpiter e Saturno no signo zodiacal dos Peixes, verificada nos anos 7-6 a. C. , ou seja, naquela que é apontada como a verdadeira data do nascimento de Jesus. A atribuição aos magos do título régio não coloca particulares problemas se, uma vez mais, for lida em articulação com elementos extraídos do Antigo Testamento, nomeadamente o Salmo 72 (“Os reis de Társis e das ilhas oferecerão tributos, / os reis de Sabá e de Seba mandarão presentes! / Todos os reis se curvarão diante dele; / todas as nações o servirão!”) e a passagem de Isaías 60 sobre a nova Jerusalém: “E os reis serão atraídos para o esplendor da tua aurora. ” No entanto, ao resolver-se deste modo a questão da realeza dos magos, outro problema se suscita. O Salmo 72, como se viu, alude aos reis de Társis, nome pelo qual os gregos descreviam a primeira civilização do Ocidente (Tártassos), a que os romanos chamavam Tartessus, localizada na actual Espanha, num triângulo formado na costa sudoeste da Península Ibérica e que hoje envolve as províncias de Huelva, Sevilha e Cádiz. Há quem assevere que este território civilizacional abrangia também o Algarve, as margens do Guadiana e até do Tejo. Poderemos supor que um dos Reis Magos era algarvio? Não. Os sábios que adoraram Jesus vieram de Oriente; a alusão à mais ocidental das civilizações então conhecida destina-se tão-só a sublinhar a vastidão do domínio do Messias ou, noutra perspectiva, o universalismo da sua mensagem, patente no cântico jubiloso de Simeão: “Já vi com os meus olhos o Salvador que enviaste para todos os povos” (Lc 2, 30-31). Ao menino de Belém, os Magos oferecem ouro, incenso e mirra, bens decerto supérfluos para o agregado familiar de um carpinteiro da Galileia, mas cujo alcance se descortina, uma vez mais, no Velho Testamento, nos já citados Salmo 72, 10-12 e Isaías 60, 5. Segundo a tradição da Igreja, o ouro apontaria para a realeza de Jesus, o incenso para o Filho de Deus e a mirra para a Paixão e seus mistérios. Na verdade, irrompe aqui, novamente, a polaridade entre o nascimento e a morte de Cristo, pois o Evangelho de João refere que, para ungir o corpo de Jesus, Nicodemos trouxe, entre outras coisas, como perfumes e aloés, uma grande quantidade de mirra (Jo 19, 39). Vindos de distintas origens, os Reis Magos chegaram a Jerusalém 13 dias depois do nascimento de Jesus. Feita sem paragens ou interrupções, numa caminhada em que todos, incluindo os animais, nada comeram ou beberam, a viagem, aos olhos dos Magos, pareceu ter sido realizada num só dia. No Livro dos Reis Magos, escrito na segunda metade do século XIV pelo monge carmelita João de Hildesheim, diz-se que “muitos se espantam pela rapidez da viagem”. Logo de seguida, o frade acrescenta que, se para tudo existisse uma explicação racional, a fé seria desnecessária. Na verdade, muito do que se lê nos Evangelhos não é compreensível à luz da razão. Por exemplo, não se percebe o motivo pelo qual Herodes mandou matar todas as crianças até à idade de dois anos: teria demorado tanto tempo a aperceber-se de que os Reis Magos o enganaram?O tempo da Natividade não é, decididamente, o tempo das cronologias — como o demonstra, desde logo, a inaudita velocidade com que os Reis Magos e os seus exércitos chegaram à gruta de Belém. A propósito de outro trecho dos Evangelhos, há quem distinga o tempo cronológico do tempo da revelação. Diz-se que há o tempo da acção, por um lado, e o tempo das personagens, por outro; e que, sendo a narrativa uma operação sobre o tempo, a narrativa vocacionada para as personagens é diferente da que tem por objecto a acção (cf. José Tolentino Mendonça, A Construção de Jesus. A Surpresa de Um Retrato, 2004, pp. 164ss). É também isso que ocorre, e porventura com ainda maior intensidade, nos “evangelhos da infância”, não sendo ao acaso que, na peça de Shakespeare, o príncipe Hamlet proclama que “o Natal é tempo santo e cheio de graça”. Na verdade, o Natal desperta um tempo suspenso, adormecido, em que a febril actividade humana é alvo de súbita paragem e momentânea pausa. Com o frio lá fora, ao lume da lareira antiga, os homens dão tréguas a si próprios e ao vazio trepidante em que vivem. Durante uns dias, ou um par de horas, o ritmo abranda, no convívio festivo com os entes mais queridos ou próximos. A alegria transbordante aparece sempre, seja de forma real ou simulada, serena ou ruidosa. Suspendem-se os conflitos e as inimizades, pensa-se nos que estão distantes e sós, tudo nos serve de pretexto para o doloroso recordatório de natais pretéritos, os da meninice — e para a saudade dos que já partiram. A “Trégua de Natal” de 1914, quando espontaneamente, dos dois lados das trincheiras, os soldados alemães e britânicos decidiram largar as armas e, em vez de tiros, trocar entre si saudações festivas, cânticos natalícios — e até presentes! — comprova o poder apelativo da Noite Santa, a sua enorme força simbólica. A Weihnachtsfrieden ou Christmas truce da Primeira Guerra é tão intrigante como a caminhada dos Reis Magos, só sendo explicável no quadro do tempo suspenso que caracteriza a Natividade e seus mistérios. Não há mistérios sem nuvens. E a nuvem, espessa e poderosa, lá aparece nos Evangelhos. Na Anunciação, Gabriel diz a Maria: “O Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Deus altíssimo te cobrirá com uma nuvem” (Lc 1, 35). A nuvem sagrada — a shekinà — assinala a presença de Deus, ao mesmo tempo que o esconde. Ela surge, luminosa mas ameaçadora, em diversas passagens do Livro do Êxodo. Quando o povo de Israel marchou para o deserto, conduzido por Moisés, foi orientado, de dia, por uma coluna de nuvens e, de noite, por uma coluna de fogo (Ex 13, 21-22); ao chegarem ao Sinai, uma “espessa nuvem” cobriu o monte (Ex 19, 16); então, Deus ordenou a Moisés que subisse o monte, que permaneceu coberto pela nuvem durante seis dias; ao sétimo dia, do interior da nuvem, o Senhor chamou Moisés, que entrou na nuvem, subiu ao monte e aí esteve 40 dias e 40 noites (Ex 24, 15-18). No Novo Testamento, a nuvem reaparecerá num dos momentos cruciais e mais carregados de mistério, a Transfiguração. Quando Jesus leva Pedro, João e Tiago a um monte, para orarem, uma nuvem passa por cima deles e os discípulos ficaram cheios de medo. “Da nuvem saiu então uma voz, que dizia: ‘Este é o meu Filho querido. Escutem o que ele diz’”, um relato presente nos três sinópticos (Mt 17, 5; Mc 9, 7; Lc 9, 35). Escutemos, pois, o que nos dizem os filhos de Deus — Cristo e todos os homens. Crentes ou não-crentes, devemos, acima de tudo, reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativas evangélicas da Natividade (cf. Frederico Lourenço, O Livro Aberto: Leituras da Bíblia, 2015, p. 40). Eis uma mensagem que também interpela a Igreja, devendo lembrar-se que a última obra a ser colocada no Índex, antes de este ser abolido, foi o livro Vie de Jésus (1959), de um notável biblista francês, Jean Steinman. A sua leitura foi proibida devido ao capítulo dedicado aos “evangelhos da infância”, o que prova que estes são uma questão muito mais séria do que uma mera fábula com burros e vacas ou uma historieta fantasiosa que ciclicamente, todos os anos, emerge e sinaliza a “quadra natalícia”, à semelhança do frenesi das compras ou das mortes nas estradas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há poucas semanas, em finais de Novembro, uma mãe em desespero deixou o seu filho recém-nascido na manjedoura de um presépio montado numa igreja de Queens, em Nova Iorque. A polícia conseguiu localizar a mulher, que disse estar convicta de que na igreja cuidariam melhor do seu bebé do que ela. A criança, um rapaz, estava embrulhada numa toalha, trazendo ainda consigo resquícios do cordão umbilical. Segundo os jornais, a mulher não será processada criminalmente, uma vez que a legislação vigente no estado de Nova Iorque permite que os pais de crianças com menos de 30 dias as deixem ao cuidado de outrem ou as abandonem numa suitable location, um “lugar apropriado”. Neste caso, o lugar tido como “apropriado” por uma mãe em desespero foi uma igreja do bairro de Queens. Mais precisamente, a Igreja do Menino Jesus.
REFERÊNCIAS:
Banksy assina polémica sequência de abertura dos Simpsons
O conhecido street artist britânico Banksy criou uma polémica sequência de abertura de um episódio de "Os Simpsons". A introdução mostra Bart a escrever no quadro preto “Não devo escrever nas paredes” numa Springfield coberta de graffiti com a assinatura do artista e termina, não com a família sentada no sofá de casa, mas mostrando uma fábrica asiática a produzir merchandising dos Simpsons, com recurso a trabalho escravo e à morte de animais. (...)

Banksy assina polémica sequência de abertura dos Simpsons
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 9 | Sentimento 0.55
DATA: 2010-10-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: O conhecido street artist britânico Banksy criou uma polémica sequência de abertura de um episódio de "Os Simpsons". A introdução mostra Bart a escrever no quadro preto “Não devo escrever nas paredes” numa Springfield coberta de graffiti com a assinatura do artista e termina, não com a família sentada no sofá de casa, mas mostrando uma fábrica asiática a produzir merchandising dos Simpsons, com recurso a trabalho escravo e à morte de animais.
TEXTO: Esta sequência de abertura do episódio (chamado MoneyBart) foi emitida ontem nos EUA e foi a primeira vez que um artista foi convidado para criar parte do storyboard. Banksy é o pseudónimo de um artista britânico cuja verdadeira identidade não é conhecida. As suas obras são satíricas e humorísticas. Um dos seus murais mais famosos mostra dois polícias britânicos a darem um beijo. Outra criação sua - uma rapariga e um rapaz com um escafandro - fez capa de um álbum dos Blur, “Think Tank” (2003). A sequência de abertura idealizada por Banksy termina com um trecho de um minuto de duração que mostra trabalhadores asiáticos a colorir manualmente, num regime de quase escravatura, as vinhetas de animação da série (ver vídeo em link). A cena passa-se numa fábrica onde são feitos os produtos de merchandising da série. Vêem-se crianças a trabalhar, ossadas amontoadas de antigos trabalhadores, animais a serem mortos para encherem Barts de peluche e um unicórnio cansado cujo chifre serve para furar DVD’s. Esta extensa sequência foi aparentemente inspirada na teoria que os produtores dos Simpsons recorrem a empresas sul-coreanas para animarem, em regime de outsourcing, a família amarela mais famosa do mundo. De acordo com Banksy, citado pela BBC, o argumento para a sequência de abertura deu origem a atrasos e discussões acerca das normas de difusão televisiva, chegando mesmo a haver uma ameaça de demissão por parte do departamento de animação. “É isto que acontece quando trabalhamos com recurso a outsourcing”, ironizou um dos produtores-executivos dos Simpsons, Al Jean. Especial Halloween satiriza saga TwilightO episódio especial dos Simpsons dedicado ao Dia das Bruxas promete igualmente uma boa dose de humor ao parodiar a saga Crepúsculo. O episódio Casa da Árvore do Terror - que será emitido nos EUA no próximo dia 7 de Novembro - conta três histórias e a uma delas os criativos chamaram “Tweenlight” (em vez de “Twilight”), tendo posto Lisa a apaixonar-se por Edmund, um rapaz misterioso que esconde um grande segredo: é vampiro. Quando Lisa descobre que Edmund não é um mortal, juntos fogem para a Terra do Drácula, mas Homer vai persegui-los e assegurar que a sua filha não se transforma em vampira. Os criadores dos Simpsons convidaram o actor Robert Pattinson - o protagonista da saga “Crepúsculo” e actual ídolo das adolescentes - para dar voz à personagem de Edmund mas o actor recusou. Em sua substituição, os produtores convidaram Daniel Radcliffe (o eterno Harry Potter), que aceitou dar a sua voz à personagem.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Apetite de sal durante a gravidez explicado nas moscas-da-fruta
Tal como nos humanos e em outros animais, as moscas-da-fruta gostam de mais sal quando estão grávidas. Uma equipa de cientistas, em Portugal, explicou os mecanismos fisiológicos por trás daquele fenómeno, que poderão ajudar a compreender o que se passa nos mamíferos. (...)

Apetite de sal durante a gravidez explicado nas moscas-da-fruta
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Tal como nos humanos e em outros animais, as moscas-da-fruta gostam de mais sal quando estão grávidas. Uma equipa de cientistas, em Portugal, explicou os mecanismos fisiológicos por trás daquele fenómeno, que poderão ajudar a compreender o que se passa nos mamíferos.
TEXTO: Dois corpos exigem mais alimento do que um, como acontece durante a gravidez. Nos humanos, associa-se empiricamente esta ideia de exigência nutritiva às “vontades” que as mulheres grávidas têm por certos alimentos. Mas ainda se sabe pouco acerca de como esta relação é regulada. Alguns estudos já mostraram que as mulheres grávidas gostam mais de sal do que as mulheres que não estão grávidas. No entanto, este gosto aumentado não está necessariamente relacionado com a falta daquele mineral, como sugere um novo estudo feito em moscas-da-fruta. O trabalho realizado por uma equipa de investigadores do Centro Champalimaud para o Desconhecido, na zona ribeirinha Lisboa-Algés, aborda especificamente a vontade das fêmeas destes insectos de comerem sal após terem copulado com um macho e mostra que elas passam a gostar mais de sal. Este fenómeno é controlado por uma molécula existente no esperma do macho e é independente da necessidade real daquele mineral por parte das fêmeas. Mas tem consequências na reprodução: se as fêmeas ingerirem mais sal vão produzir mais ovos. Baseando-se num conjunto elegante de experiências, os investigadores liderados por Carlos Ribeiro revelam ainda parte da sinalização neuronal que a molécula do macho desencadeia na fêmea. O estudo foi publicado nesta quinta-feira na revista científica Current Biology. “Em muitas espécies de mamíferos, a preferência por sal aumenta durante a gravidez, mas até agora ainda se desconhecia se a mosca-da-fruta partilhava este comportamento”, refere Carlos Ribeiro, citado num comunicado daquele centro. As moscas-da-fruta (Drosophila melanogaster) são o animal-modelo preferido de muitos cientistas por serem relativamente simples, terem um ciclo de vida rápido, não estarem associadas a tantos problemas éticos e serem facilmente mantidas. Muitas vezes, descobrem-se mecanismos fisiológicos nas moscas-da-fruta que permitem, dentro de certos limites, lançar teorias mais abrangentes para explicar fenómenos nos animais, e depois são testadas em experiências com ratinhos ou galinhas. “A nutrição é um tópico extremamente complexo. Para se perceber de que modo o cérebro regula o consumo de nutrientes é necessário trabalhar com um organismo que nos permita ter acesso a um vasto conjunto de tecnologia. E nesse aspecto, a mosca-da-fruta é imbatível”, explica Carlos Ribeiro. O paladar das moscas-da-fruta está nas suas patinhas. É com elas que o insecto saboreia os alimentos. Depois, usando a probóscide – o tubinho que sai da cabeça dos insectos – as mosca-da-fruta sugam os alimentos. A equipa fez uma primeira bateria de experiências para averiguar se, após o acasalamento, as moscas-da-fruta tinham mais vontade de sal. Os cientistas descobriram que as fêmeas depois de se cruzarem alimentavam-se mais frequentemente de sal, e têm uma tolerância maior à concentração de sal do que as fêmeas virgens. Além disso, a equipa descobriu que quanto mais sal ingerem, mais ovos produzem. “Verificámos que existe uma correlação directa entre a quantidade de sal na dieta e a quantidade de ovos que as moscas conseguem produzir”, diz Carlos Ribeiro. “O sal parece ser importante em muitas espécies, desde moscas, a elefantes e humanos. Isto sugere a existência de princípios biológicos universais subjacentes a este comportamento e que poderão ser identificados em diferentes espécies. ”Depois, os cientistas foram tentar compreender a origem do sinal que faz com que as fêmeas tenham mais apetite por sal. Este sinal pode partir de um estímulo interno da fêmea face a uma necessidade de sal causada pelo desenvolvimento dos ovos, ou pode ser devido a um sinal externo. Para testar isso, os cientistas impediram o desenvolvimento dos ovos num número de moscas-da-fruta, mas deixaram-nas copular à mesma. Apesar de não haver uma necessidade real de sal, as fêmeas continuaram a ter mais vontade de ingerir o mineral. Por isso, os cientistas foram ver se havia alguma substância no esperma dos machos que estaria a desencadear esta vontade. O principal alvo foi uma molécula chamada péptido do sexo (um péptido é constituído por aminoácidos, tal como uma proteína, mas é mais pequeno). O péptido do sexo das moscas-da-fruta desencadeia uma série de comportamentos nas fêmeas, como uma menor vontade de copular. Quando os cientistas usaram machos mutados que não produziam esta molécula, as fêmeas deixaram de ter uma maior vontade de ingerir sal após o acasalamento. Assim, esta molécula é a responsável pela mudança do comportamento. “Esta molécula activa neurónios no útero da fêmea”, explica Samuel Walker, um dos autores do estudo, citado no comunicado. “A partir daí, encontrámos uma pequena cadeia de interacções que activam a preferência por sal. ”
REFERÊNCIAS:
As vidas que nunca viveremos
Mariano Pensotti admite que as nossas vidas sirvam apenas para imitar a ficção: talvez estejamos condenados a repetir o que lemos em livros e vimos em filmes, condenados a dar posteridade à ilusão. Foi o que fez em El Pasado Es Un Animal Grotesco e Cineastas, as peças com que este dramaturgo e encenador argentino se estreia agora em Portugal. (...)

As vidas que nunca viveremos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 5 | Sentimento -0.06
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mariano Pensotti admite que as nossas vidas sirvam apenas para imitar a ficção: talvez estejamos condenados a repetir o que lemos em livros e vimos em filmes, condenados a dar posteridade à ilusão. Foi o que fez em El Pasado Es Un Animal Grotesco e Cineastas, as peças com que este dramaturgo e encenador argentino se estreia agora em Portugal.
TEXTO: Para as personagens de El Pasado Es Un Animal Grotesco (2010), a primeira peça do dramaturgo e encenador argentino Mariano Pensotti (Buenos Aires, 1973) que veremos em Portugal (amanhã, às 21h30, e domingo, às 18h, no Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa), a vida é como aquele carrossel que gira sempre à mesma velocidade no parque de diversões semi-gasto dos arrabaldes. Podemos imaginar Mario, que neste mês de Junho de 1999, “o mais chuvoso dos últimos 100 anos”, quer fazer cinema mas não sabe como dada “a sua total falta de experiência e de guito”, agarrado ao pescoço da girafa, tentando lembrar-se das suas cenas favoritas dos filmes de Jacques Demy (ou de “miúdas de outros tempos, miúdas sempre na praia ao entardecer”) para esquecer que deve “três meses de aluguer e seis de despesas” e que “a sua tensão dava para iluminar uma cidade do tamanho de Mar del Plata”. Podemos imaginar Laura num banco corrido a lembrar o avô que há 93 anos chegou da Calábria “com a ideia de encontrar ouro, fazer-se missionário e ter um carro branco” – o avô que nunca aprendeu a conduzir e que teve um filho talhante ao qual Laura rouba até à última das suas poupanças na esquina de um bairro com vista para “fábricas e fábricas que enferrujam há décadas”, antes de deixar uma gravação para a família, explicando que acabou a melancolia, vai viver para Paris. Podemos imaginar Pablo a rodar na chávena de chá e a pensar “que se parece um pouco com Mick Jagger quando era novo” – e o cérebro dele a girar dentro da cabeça desde a manhã em que ao sair para as aulas do curso de Marketing encontrou um pacote postal com uma mão cortada no preciso momento em que escrevia alguma coisa a lápis, e depois se pôs a passar a ferro para se acalmar. E podemos imaginar Vicky a cavalgar o seu pónei com um arco-íris tatuado no dorso, as costas muito rectas “que nos falam de anos de natação nalgum colégio caro”, o “braço direito habituado ao ténis”, a sua segurança em si mesma, na sua classe social, pelo menos até ao dia em que ao remexer nas tralhas do pai dá com fotografias de uma família que não é a dela embora seja parecida, só que “um pouco mais rústica, mais pobre”, a um canto uma rapariga que podia ser ela, com a mesma t-shirt amarela que o pai lhe deu há dois meses (um coelhito, e por baixo a palavra smile). Estamos a 22 de Junho de 1999. É o dia zero nas vidas das quatro pessoas de 25 anos que Mariano Pensotti quis contar em El Pasado Es Un Animal Grotesco. A seguir, tudo irá mudar, ainda que no final desta viagem de carrossel todos estejam exactamente no mesmo sítio, por mais voltas que tenham dado ao som de uma canção homónima dos Of Montreal, The past is a grotesque animal, em que o dramaturgo e encenador argentino se viciou quando estava a acabar de escrever a peça. “Por um lado, é uma canção muito comprida para um grupo de rock e tem algo desta ambição épica de narrar algo muito grande que eu sentia que era o que também estávamos a tentar fazer com a peça, contando dez anos da vida de uma geração em duas horas e com um elenco mínimo, de quatro pessoas. Por outro lado, o título aponta para essa ideia de que a recordação do passado é uma reconstituição que fazemos no presente, como um animal que muda de forma de cada vez que o lembramos”, explica-nos ao telefone desde Buenos Aires. É daquelas canções que parecem ter a frase certa para cada momento da vida, ou pelo menos da vida que se vive entre os 25 e os 35: I’m flunking out, I’m flunking out, I’m gone, I’m just gone / But at least I author my own disaster (…)/ We want our films to be beautiful, not realistic/ Perceive me in the radiance of terror dreams. ”A partir daqui, já não temos de imaginar nada. Vemos como Mario sofre com o contraste entre a grandeza do nome que os pais, fanáticos de cinema italiano, lhe deram, sacado de um herói de Visconti, e a sua vida indigna de ser projectada em lugar algum. Veremos como Laura percebe ter ido mal agasalhada para o Inverno de Paris e tem medo de experimentar roupa muito linda que lhe fique muito mal. Veremos como Pablo chega ao Brasil para dirigir a sucursal da sua empresa e uma noite bebe de mais num karaoke enquanto fantasia encontrar a mulher da sua vida, a filha rebelde de uma família de dinheiro. E veremos como Vicky viaja semana após semana até à aldeia onde o pai tem outra família e passa as noites a pensar e a fumar, a pensar e a fumar, até se apaixonar por um trabalhador rural com quem foderá como se fosse um cavalo e pouco falará, embora um dia ele lhe diga: “Sonhei com umas vacas em chamas que iluminavam o campo à noite. ”Outras pessoasParte das vidas que Mariano Pensotti inventou são a vida que teve. Outra parte são as vidas que viu os outros à sua volta a terem ou a poderem ter tido. Com os seus abortos, amores de fim de Verão, persianas baixas e corpos colados o tempo todo, palestinianos obcecados com a jihad, tentativas de suicídio, mortes precoces, livros para sempre inacabados. Inventou-as enquanto olhava para “as fotografias defeituosas” que todas as sextas-feiras o laboratório de revelação perto da sua casa em Buenos Aires deitava à rua. “O meu plano foi tomar um período muito recente, de 1999 a 2009, que correspondeu a um tempo de transformações profundas na Argentina e a um tempo em que a minha geração se tornou protagonista da História do país”, diz ao Ípsilon. “Como geração, temos uma imagem muito desfocada, muito turva, de nós mesmos, porque somos os filhos dos militantes políticos e revolucionários dos anos 70 e sempre nos sentimos um pouco defeituosos. Ao mesmo tempo, esta ideia de tentar sempre ser o outro, da permanente construção de uma identidade, é muito teatral. Uma coisa que unifica as personagens – personagens da classe média argentina, em si mesma um organismo muito diverso – têm esta fantasia de que poderiam ser melhores se estivessem noutro lugar, se fossem outras pessoas. É por isso que os vemos transformando-se em duplos de si próprios”, continua. Ao princípio, admite, não sabia o que iria fazer com essas fotos. Quando voltou a vê-las, apercebeu-se de que compunham um retrato da sua geração – e agradou-lhe essa metáfora de um conjunto de gente “desfocada”, porque “sempre nos sentimos falidos e falhados em relação à geração anterior”. Quis encontrar as pessoas que estavam nessas imagens, mas às tantas decidiu dar-lhes as vidas que talvez nunca tenham vivido – vidas enormes como as dos filmes de Fassbinder ou nos romances de Tolstói. Depois acrescentou-lhes um narrador omnisciente que, em voz on, conta as vidas de Mario, Laura, Pablo e Vicky pondo em palco a ideia de que a identidade é “uma narrativa”. “Tanto o texto original de El Pasado… como o de Cineastas (2013), que escrevi a seguir, se parecem muito pouco com peças de teatro. Escrevi-as mais como uma novela ou como um conjunto de contos, sem saber no que iriam transformar-se. Interessa-me a carga literária de uma cena, mas não no espírito da adaptação; de resto, as referências mais directas destes textos são os romances-mundo do século XIX em que autores como Balzac, Stendhal ou Tolstói misturaram acontecimentos autobiográficos com factos históricos. Ter um narrador em cena era um dispositivo muito atraente parar gerar essa dissociação entre o narrado e o representado”, argumenta. De cada vez que o carrossel gira, notamos, parece que tudo vai mudar. Quando voltarmos a encontrar Mario, Laura, Pablo e Vicky, já serão outras pessoas. Ou não, corrige Mariano: “O interessante destes turning points é que muitas vezes não são reais, são impressões subjectivas das personagens. Estão sempre a sentir que as suas vidas vão mudar, mas na verdade não mudam assim tanto – é apenas uma fantasia. ”Feitos de ficçãoTrês anos se passaram até Mariano Pensotti estrear, de novo com o seu Grupo Marea, a peça que veremos nas próximas quinta e sexta-feira na Culturgest. Cineastas é, no fundo, uma experiência metateatral que não correu bem. “A primeira ideia que tive foi entrevistar um grupo de jovens cineastas de Buenos Aires para aquilo que eu julgava que ia ser uma instalação numa galeria, onde pudesse projectar simultaneamente os filmes reais que eles realizaram e uma série de documentários sobre as suas vidas. Mas não funcionou e achei que podia trabalhar esse material em teatro. ” O projecto de um palco dividido ao meio, em split screen – a vida real em baixo, os filmes em cima – apareceu aí (Mariana Tirantte, a sua cenógrafa habitual, desenhou-o habilmente; de resto, trabalha sempre com o mesmo iluminador, Alejandro Le Roux, e com o mesmo músico, Diego Vainer). Muito pouco ficou das entrevistas iniciais – quase tudo ficou do indissolúvel vínculo entre ficção e realidade que Mariano descortinou haver na maioria dos entrevistados: “Mais ou menos indirectamente, as suas histórias de vida estão presentes nos filmes e os filmes acabam por transformar as suas vidas. Isso era óbvio mesmo antes das entrevistas. O que mais me surpreendeu foi perceber o modo como estamos tão injectados de ficção. Todos vivemos vidas efémeras e o cinema parece uma forma de preservar a experiência para a posteridade – como uma cápsula do tempo das nossas vidas, apontando ao futuro. Mas na verdade passa-se tudo ao contrário: vamos editando cenas que vimos nos livros, nos filmes, na televisão. Somos terrivelmente feitos de ficção. Ao ponto de me questionar se as nossas vidas servem apenas para a imitar. ”Onde em El Pasado encontrávamos Mario, Laura, Pablo e Vicky, em Cineastas encontramos Gabriel, cineasta de grande êxito comercial em choque depois do diagnóstico de doença incurável, Mariela, realizadora experimental que quer contar a história da dissolução da União Soviética através dos musicais que ali se produziram na fase terminal do regime, Lucas, o artista pobre que tem de trabalhar no McDonald’s para financiar o seu projecto de ridicularizar o imaginário das multinacionais, e Nadia, documentarista filha de um desaparecido da ditadura a quem uma produtora francesa encomenda uma história muito parecida com a sua. Desta vez só passamos um ano, não dez, dentro das vidas delas – e das ficções que elas engendram, porque no andar de cima vemos tudo o que imaginaram. “É um mecanismo complexo para os actores, que têm de estar a subir e a descer constantemente, mas gera um sistema bastante lúdico, e vital, que é o que me interessa em geral na cenografia, uma vez que a dramaturgia tende a ser melancólica”, sublinha Mariano. Como dramaturgo, não tem grandes certezas sobre onde acaba a realidade e começa a ficção, mas escreveu coisas como “quando se termina um filme, algo morre”; ou “há coisas que duram para sempre, como certas cidades e as grandes marcas do capitalismo”; ou ainda “as ficções duram mais do que as vidas”. Facto: “Desde a invenção do cinema até 2013, realizaram-se mais de 400 mil filmes em todo o mundo. Se alguém quisesse vê-los todos de enfiada, demoraria mais de 92 anos. ”Este demora apenas uma hora. E não é o retrato de uma geração, mas talvez seja o retrato de uma cidade tal como Mariano Pensotti, um dos seus mais extraordinários habitantes, a viu em 2013. Por algum motivo a homepage do seu site é o mapa de Buenos Aires.
REFERÊNCIAS: