Momento Go, Girls: da China ao Curdistão e com Lara, que se chamava Victor
Três actrizes iranianas e o preconceito, um batalhão feminino de libertação do Curdistão, a mulher do seu mafioso e Lara, que se chamava Victor. Tropeça-se em bons filmes. (...)

Momento Go, Girls: da China ao Curdistão e com Lara, que se chamava Victor
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: Três actrizes iranianas e o preconceito, um batalhão feminino de libertação do Curdistão, a mulher do seu mafioso e Lara, que se chamava Victor. Tropeça-se em bons filmes.
TEXTO: De Jafar Panahi, impedido pelas autoridades iranianas, como se esperava, de vir a Cannes apresentar Three Faces (competição), continua a ser difícil imaginá-lo a realizar filmes. A imagem é turva. Desde 2010, quando as autoridades o consideraram culpado de “propaganda contra o Estado Islâmico” e o sentenciaram a prisão domiciliária e proibição de realizar, a sua vida mudou drasticamente. Mas isso foi mudando. Como é que ele faz? Era impossível não procurar nos filmes – no desespero de Isto Não é um filme (2011), por exemplo, que saiu do Irão numa pen dentro de um bolo, ou na bonomia, alguma pelo menos, de Táxi (2015) – os sinais do que pudessem ser o estado de espírito do realizador e das condições em que vivia e trabalhava. É o que se faz agora: procurar Jafar Panahi em Three Faces. Os seus colaboradores, a montadora Mastaneh Mahojer e o director de fotografia Amin Jafari, falam de um artista “engenhoso” que “sabe o que quer”, que encontra soluções para responder ao argumento que tem debaixo do braço, que sabe que há cenários mais expostos à vigilância do que outros – mas, sublinham, nunca uma rodagem de Panahi, nem mesmo antes de 2010, foi “standard”. Mastaneh Mahojer e Amin Jafari falavam em Cannes ao lado cadeira vazia com o nome do cineasta. Panahi está em Three Faces. Como o realizador Panahi. É a ele que chega, por telemóvel, o vídeo de uma adolescente, um desesperado pedido de ajuda mas, possivelmente pelo que as imagens captadas numa gruta mostram, até mesmo um suicídio. A rapariga, Marzieh, foi impedida pelo conservadorismo dos pais de viver a sua vida: ser actriz. Panahi pede ajuda a uma amiga, uma estrela do teatro e do cinema iraniano (Benhaz Jafari, a fazer de si própria) e partem à procura de Marzieh pelo Azerbaijão iraniano. Onde se cruzam com uma terceira mulher, uma actriz que vive recolhida, ignorada, antiga estrela de antes da revolução. Nunca vemos o seu rosto, só algumas das personagens o encaram, mas essa “presença”, e sabemos que está lá, fica connosco. O recolhimento talvez seja o rosto escondido de Three Faces, filme de gestos menos expressivos ou delineados do que os de Isto não é um filme ou Taxi – o próprio Panahi desvia as atenções de si —, que até parece perder-se, e perder a sua determinação, ao longo das estradas, mas que é percorrido por uma melancolia, uma branda resignação, no encontro com uma sociedade de preconceitos atávicos. Sem sinais evidentes de “filme político” que desafia – por isso a equipa de Three Faces diz que Panahi tem esperança de que possa estrear no Irão, esse é o seu desejo, e se para isso ele tivesse de abdicar de Cannes tê-lo-ia feito —, tem pontas para puxar para ser sintonizado com as afirmações deste tempo: às actrizes, por exemplo, foi-lhes perguntado o estado das coisas no Irão na era pós-Weinstein…Um tenaz retrato de senhora: Ash is the Purest White, de Jia Zhangke (competição), que o cineasta chinês oferece à sua mulher e inspiração, Zhao Tao. E com ele oferece-nos o melhor dos seus últimos filmes, síntese e superação de A Touch of Sin (2013) e Mountains May Depart (2015). Isto é, confirmando que Jia é hoje um cineasta diferente do de Plataforma (2001), porque começou a sublinhar as formas do thriller ou do melodrama nos retratos em movimento da China contemporânea, livra-se aqui da tentação Grand Guignol de A Touch of Sin (o realismo de uma magnífica cena de pancadaria arruma a concorrência mas não faz o filme refém de um exercício ou de um estilo) e consegue integrar as habituais guinadas a que o realizador submete as personagens sem parecer, como em Mountains May Depart, uma prova de esforço. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na verdade há uma mulher mas também há um homem e o casal Zhao Tao e Liao Fan é puro par de cinema à maneira clássica, comovente na forma como reage ao Tempo e à História, ele um pequeno boss do underworld, ela a sua boneca, que por ele se sacrifica. O filme é isso, o casal, o melodrama – é o que Ash is the Purest White é –, a ser transfigurado, alterado e melancolicamente perdido ao longo de duas décadas. Das muitas coisas que se podem apontar contra Les Filles du Soleil, de Eva Hudson (competição), é que não tem personagens. Tem muito para estar no centro das atenções – história de um batalhão feminino de libertação no Curdistão, uma causa de libertação nacionalista e uma causa de libertação feminina contra o Estado Islâmico. Mas, na sua segunda longa (depois de Bang Gang), Hudson está tão mal no íntimo quanto no aventureiro e não consegue, ao trabalhar a relação entre uma guerrilheira (Golshifteh Farahani) e a jornalista francesa que acompanha o batalhão em reportagem (Emmanuelle Bercot), mais do que um kitsch de situações e previsibilidades. Fica com a política. É por isso algo luminoso tropeçar em Girl, primeira longa do belga Lukas Dhont, cineasta de 26 anos, que fez um acontecimento na secção Un Certain Regard. Dhont foi buscar à história verídica, que leu no jornal, de um rapaz que aspirava a ser bailarina, e a mudar de sexo, a personagem de Lara, que é interpretada por um jovem actor, e também bailarino, Victor Polster – escolhido depois de sessões de casting que foram abertas quer a rapazes quer a raparigas. O que é sobretudo de admirar em Girl, e faz dele uma ficção justa, é a forma como permite ao espectador construir com ele uma relação misteriosa e interior – uma comunicação com os silêncios do filme e da personagem. No exterior, o mundo que rodeia Lara não é intolerante ao seu processo. E havendo sinais físicos de que nasceu rapaz, que nasceu Victor, a sua feminilidade espraia-se fulgurante. Mas há a angústia, o mal-estar e a urgência de Lara, que enfrenta os treinos para se afirmar na aprendizagem da dança e o programa para se desembaraçar de um corpo e construir outro. Questão de trabalho de realizador e questão de trabalho de actor, é um pequeno filme totalmente livre do previsível.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
A Netflix à caça do velho Leão
Roma, de Alfonso Cuarón, é considerado favorito na 75.ª edição de Veneza. Se isso acontecer, será uma primeira vez para a plataforma de streaming. Que ainda precisa desta caução do “velho” mundo do cinema. Mas o “novo” está já aí. (...)

A Netflix à caça do velho Leão
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-11-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Roma, de Alfonso Cuarón, é considerado favorito na 75.ª edição de Veneza. Se isso acontecer, será uma primeira vez para a plataforma de streaming. Que ainda precisa desta caução do “velho” mundo do cinema. Mas o “novo” está já aí.
TEXTO: Desta vez, não houve assobios à Netflix e houve três oportunidades, na selecção competitiva de Veneza, para isso acontecer: nos genéricos de The Ballad of Buster Scruggs, dos irmãos Coen, de Roma, de Alfonso Cuarón, e de 21 July, de Paul Greengrass, quando surgia a letra escarlate, N. Em Cannes 2017, a Netflix foi o monstro e os apupos perante os genéricos de Okja, de Bong Joon Hoo, e The Meyerowiitz Stories, de Noah Baumbach, ofenderam a empresa de streaming de Ted Sarandos. Mas a ofensiva estava declarada desde o primeiro dia: para o presidente do júri Pedro Almodóvar seria paradoxal que uma Palma de Ouro fosse para um filme sem distribuição em sala. Eis o que aconteceu em 2018 na Croisette: a Netflix foi oficialmente excluída da competição devido à pressão dos distribuidores franceses contra a inclusão no concurso de um serviço de streaming que não trabalha com convicção a estreia em sala, e excluiu-se ela própria das outras secções em que podia participar. Veneza 2018, primeiro dia: o presidente do júri Guillermo del Toro torna claro que um filme é um rectângulo, o que interessa é o que se passa dentro dele. E eis que, ao chegar ao final, este sábado, a 75ª edição de Veneza, festival que tem sido pragmático nas relações com os “novos operadores do mercado” e fez uma parte da sua festa com o que se excluiu de Cannes (e ficou com o filme e o documentário que ressuscitam The Other Side of the Wind, de Orson Welles, um dos míticos nados-mortos da história do cinema), pode consagrar com o prémio máximo, o que seria uma primeira vez, um filme Netflix: Roma, de Alfonso Cuarón, projecto pessoal do mexicano, em que é também autor do argumento, da fotografia e da montagem, e em que recorda a sua infância num bairro da burguesia da Cidade do México, nos anos 70. Cuarón teve 108 dias de rodagem, mais do que nas produções de Hollywood em que se envolveu (como Gravity). Roma tem como personagem principal uma criada da família do realizador. A sua delicadeza é não se fechar no fetichismo da memória e da nostalgia. Distancia-se dela – os recorrentes travellings … – para abarcar a sua complexidade, confrontando-se Cuarón com o que na altura não podia ver: a invisibilidade social de Cleo, a ama. É o seu melhor filme, com Y Tu Mamá También (2001). Desde a primeira exibição no Lido que se mantém como favorito da crítica e dos espectadores, e isso é o sonho de um prémio de um festival. Se não levar o Leão não será por pudores contra a Netflix. Poderá ser, por exemplo, por Guillermo del Toro, que preside a uma equipa que inclui os actores Christoph Waltz, Trine Dyrholm e Naomi Watts e os realizadores Nicole Garcia, Sylvia Chang, Taika Waititi, Malgorzata Szumowska e Paolo Genovese, acusar algum incómodo: por ser, como se diz que é, amigo do compatriota Cuarón. Se a Netflix salvou Orson Welles e ainda por cima levar o Leão de Ouro, com que cara fica Cannes e os seus princípios? E em que estado ficarão os protestos dos distribuidores, franceses e não só (saiu há duas semanas um comunicado da Federação Internacional de Cinema de Arte e Ensaio…), defendendo que um festival se deve interessar por filmes distribuídos em sala em vez de encorajar práticas que colocam em perigo um sector decisivo como é o da distribuição? Reabre-se o dossier?Se o pragmatismo de Veneza e do seu director, Alberto Barbera, fê-lo abrir-se aos operadores de streaming, também organiza debates sobre o futuro, que já é aqui. Numa masterclass, como foi relatado pela imprensa, David Cronenberg e Spike Lee expuseram pontos de vista. Para o primeiro, um atleta olímpico dos vírus, há uma era que acaba, o que não constitui um problema porque outras coisas acabaram; é o processo de transformação. Cronenberg, disse, não pode ser nostálgico de algo – o “ideal” da sala que junta centenas de pessoas numa experiência comum – que nunca lhe proporcionou orgasmos. Está mais fascinado com o facto de hoje uma série de TV desencadear conversas a uma mesa de café. E admite sem prenúncios de apocalipse que um filme se transformou numa experiência individual: é como ler um livro. Talvez esse futuro se tenha visto na competição, pela duração dos filmes: uma mão cheia chegou às duas horas e meia, de The Ballad of Buster Scruggs dos Coen a 22 July de Paul Greengrass, produções Netflix, passando por Suspiria de Guadagnino ou Peterloo de Mike Leigh, produções Amazon; pela sua “serialização”: o western em episódios dos Coen exterioriza o que fazem de forma mais sub-reptícia o western de Audiard, The Sisters Brothers, ou o alemão Never Look Away, de Florian Henckel von Donnersmarck, compacto da história da Alemanha do nazismo à RFA. Em suma, mostram-se as consequências de uma outra forma de consumo, online, em que a gestão individual, doméstica, do tempo não está presa ao continuum do ritual da sala. É um consumo encostado ao conhecido também. Dominou o “cinema de género” – o western e derivados à cabeça, mas também o filme de samurais, o “filme de perseguição”…– e nisso foi um deslizar sem acidentes ou fulgores por terreno já pisados. A propósito: com The Favourite, o idiossincrático Yorgos Lanthimos faz o seu filme BBC, e é outro dos favoritos ao Leão (ou então prémio de interpretação para uma das actrizes ou, porque não?, insistem alguns, para as três: Olivia Colman, Emma Stone e Rachel Weisz). E com La Quietud, apresentado fora de competição, Pablo Trapero fez o seu Dallas ou Dinastia…No encontro com Cronenberg, Spike Lee terá feito a figura do nostálgico. Admitiu que teve orgasmos: quando se pôs a olhar para o tecto da sala à procura dos helicópteros no dia em que viu Apocalypse Now. Custa-lhe despedir-se das salas. Mas sublinhou: a Netflix anda à procura de produto, investiu este ano oito mil milhões de dólares em filmes e séries, segundo a Hollywood Reporter – e passou um cheque de 120 ou 150 milhões, os números variam, a Martin Scorsese para The Irishman, em que a tecnologia rejuvenesce 30 anos os rostos e as mãos de Robert de Niro, Joe Pesci e Al Pacino. “Produto”… é aquilo a que Carlos Reygadas, habitué da competição de Cannes e dos seus prémios que passou este ano para o concurso de Veneza com Nuestro Tiempo, se refere como o “conteúdo”. “Desgosta-me este falso autorismo que na verdade é algo construído para se consumir em plataformas onde, como eles dizem, há ‘conteúdo’. Há ‘conteúdo’, ‘conteúdo’ em todo o lado. Poucos apoiam quem não está a produzir ‘conteúdo’ e está a produzir outra coisa. Sinto claramente um enorme desequilíbrio entre filmes que se preocupam com a linguagem e com a forma, e que tentam construir uma visão dos indivíduos como seres humanos, e esta televisão disfarçada de cinema, que odeia o que é ambíguo, o que é invenção de formas. Todos temos de existir”. Isto foi o desabafo de Reygadas, em conversa com o PÚBLICO depois da exibição do Nuestro Tiempo, filme de efeitos perturbadores no consumo normalizado de conteúdos – dito de outra forma, tal como no anterior Post Tenebras Lux (2012), este é um exercício para desenvolver os músculos dos sentidos que já esquecemos que tínhamos. E que contrapõe um “nosso tempo” aos tempos de hoje. Se Roma ganhar… a Netflix não tem ainda estratégia definida quanto ao lançamento, ficou claro na conferência de imprensa do filme. Haverá “definitivamente” distribuição em algumas salas, mas. . . O retrato da empresa de Ted Sarandos feito pela Hollywood Reporter fala de uma empresa que procura ainda que o “seu” cinema saia debaixo da sombra das séries. Ainda não conseguiu um produto “de impacto cultural” como, por exemplo, a série Stranger Things. Precisa disso, porque os filmes se perdem no mar das séries. Precisa de aliciar “autores” para o seu campo. Para isso, e para além de lhes dar meios e liberdade, tem de garantir um perfil recortado na estreia – a estratégia de saída em sala em simultâneo com o dia da exibição na plataforma continua a ser incompreensível para autores ligados à individualidade e exclusividade do “acontecimento” e que por isso podem resistir ao aliciamento Netflix. Um Leão de Ouro em Veneza, como um Óscar, é decisivo para a caução que o operador precisa – o “novo” ainda precisa do “velho”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E acabou. Os últimos filmes da competição desta 75. ª edição foram The Nightingale, de Jennifer Kent, Capri-Revolution, de Mario Martone, e Killing, de Shinya Tsukamoto. A cineasta de Brisbane, na sua segunda longa, depois de O Senhor Babadook, investe na libertação feminina e no anticolonialismo. Coloca lado a lado uma irlandesa deportada na Tasmânia e o aborígene que encontra o trilho que a leva à vingança do militar que massacrou a sua família. Sobram para o espectador dividendos da empatia que as personagens conquistam uma em relação à outra, mas este gothic australiano com fantasmas de western não perde tempo com o lirismo. Se tivesse mais pernas para andar ganhava em afastar a crueldade da involuntária paródia de que se aproxima. É também uma história de revolução pessoal Capri-Revolution: quando, nas vésperas da I Guerra Mundial, uma rapariga de Capri, analfabeta, deixa de apascentar as suas cabras para se envolver com uma comunidade de naturistas que fez da ilha o seu paraíso. Martone, longe do cineasta de Morte di un matematico napoletano (1992) ou de L’Amore Molesto (1995), não encontra um tom para afirmar o olhar, perde-se entre o filme de ideias, mas como se acumulasse pistas para fazer a ponte com a “actualidade”, e o pitoresco. Foi bem melhor acabar tudo com sabres e sangue, com Shinya Tsukamoto a fazer ao filme de samurais (Killing) o que Wong Kar-wai fez ao wuxia, o género de artes marciais e capa e espada chinês (Ashes of Time, em 1994). Se o cineasta de Hong Kong agarrava as acrobacias ao chão com metafísica, o japonês liberta-lhes o sangue e o erotismo. É um exercício breve mas de travo melancólico. Que é o que fica quando tudo acaba.
REFERÊNCIAS:
Portugal no México à boleia de um verso de Pascoaes
A imagem e a programação que Portugal trouxe ao México, para a ministra da Cultura: é de um país que “olha para o futuro” mas “não se esquiva a uma leitura do passado" e “consegue recriar o que temos de melhor para o afirmar de uma forma contemporânea”. (...)

Portugal no México à boleia de um verso de Pascoaes
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: A imagem e a programação que Portugal trouxe ao México, para a ministra da Cultura: é de um país que “olha para o futuro” mas “não se esquiva a uma leitura do passado" e “consegue recriar o que temos de melhor para o afirmar de uma forma contemporânea”.
TEXTO: Portugal como país convidado de honra da Feira do Livro Internacional (FIL) de Guadalajara de 2018 tem por lema “O Futuro é a Aurora do Passado”. Está em todos os cartazes espalhados pela Expo Guadalajara e nos folhetos com a programação portuguesa que se encontram no Pavilhão de Portugal. Num dos seus ensaios, o professor Eduardo Lourenço cita a frase atribuindo-a a Teixeira de Pascoaes. “É certo que o verso do poeta é: ‘O futuro é o passado que amanhece’, mas sendo este o verso de Pascoaes é sempre citado da outra forma”, lembra a comissária da representação portuguesa na FIL, Manuela Júdice, que já ia com ela na cabeça quando foi assinado em Lisboa o convénio entre Portugal e o México para a participação no evento que começou no sábado e termina no dia 2 de Dezembro. Nessa sessão, em 2017, ficou surpreendida porque o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, também a utilizou no discurso que fez. “Quando a sessão acabou, disse ao senhor ministro que também eu tinha vindo com aquela frase na cabeça e que poderia ser o nosso lema na Feira do Livro de Guadalajara”, conta Manuela Júdice. “A partir de hoje é você que manda, decida", respondeu-lhe na altura Santos Silva. E assim nasceu o lema de Portugal em Guadalajara. A frase foi também ouvida durante a cerimónia oficial de abertura da FIL, que aconteceu na manhã de sábado em Guadalajara (menos seis horas do que em Portugal), citada pela ministra da Cultura portuguesa, Graça Fonseca, no seu discurso oficial. “‘O Futuro é a Aurora do Passado’, é este o verso de Teixeira de Pascoaes que serve de lema à participação portuguesa na FIL. Falemos, por isso, um pouco de passado. Portugal e o México têm um passado conjunto, cujas relações diplomáticas remontam há 154 anos, quando o Coronel Francisco Facio apresentou as suas credenciais como primeiro enviado extraordinário do México em Lisboa, perante o nosso Rei D. Luís”, lembrou Graça Fonseca. “Mas falemos também de futuro, porque é neste cruzamento entre tempos, nesta abrangência, que Portugal se apresenta aqui em Guadalajara, com os seus autores consagrados mas, também os mais jovens, cuja obra é merecedora de ser conhecida, divulgada e traduzida. O México conhece António Lobo Antunes, galardoado com Prémio Juan Rulfo, ou Nuno Júdice, poeta, professor e tradutor consagrado no universo da língua espanhola. Mas o México deve conhecer também a poesia de Vasco Gato ou Rui Cóias, tal como a prosa de Alexandra Lucas Coelho, que dedicou ao México um dos seus livros de viagens, e de Ana Margarida de Carvalho, já por duas vezes distinguida com o Grande Prémio de Romance e Novela [da Associação Portuguesa de Escritores] e vencedora do Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco. ”Graça Fonseca lembrou que este convite representou para Portugal “um desafio”, foi um “processo longo e complexo” que ultrapassou as fronteiras da cultura, já que exigiu uma visão transversal de cultura que inclui educação, diplomacia e economia. Por isso o Governo vê esta presença “como uma oportunidade, centrada no ensejo de dar início a um processo de contactos e de trocas mais frequentes e mais regulares e, acima de tudo, levar o conhecimento de Portugal a camadas muito mais vastas de público”. A ministra afirmou ainda que a programação que se apresenta no México “olha para o futuro, como quem não se esquiva a uma leitura do passado e consegue recriar o que temos de melhor para o afirmarmos de uma forma contemporânea”. Mais tarde, já no espaço do Pavilhão de Portugal - que tem 1200 metros quadrados e é bem mais pequeno do que o Pavilhão que Portugal teve na Feira Internacional do Livro de Bogotá, em 2013, quando foi também país convidado e que ocupava 3000 metros quadrados -, depois de Gil do Carmo ter cantado para os convidados, a ministra disse ao grupo de jornalistas portugueses que “já há relações bilaterais com o México há muitos anos mas esta é claramente uma ponte para o futuro para construirmos mais em cima do que já temos. ”Segundo a responsável governamental, o objectivo será cumprido quando daqui a uns anos, se entrar numa livraria na Cidade do México, em Guadalajara ou em qualquer outra cidade e se veja que “existem mais livros de autores portugueses traduzidos à venda, que existem mais pessoas do continente latino-americano a ler autores portugueses, não só os mais consagrados mas conseguirmos impulsionar os novos”, acrescentou. “Mais do que fiquem a conhecer quem é a ministra da Cultura em 2018, é que daqui a dois anos mais autores portugueses estejam numa livraria e essa é a felicidade máxima. ”Portugal já foi país convidado em cerca de uma dezena de feiras internacionais, como Frankfurt, Rio de Janeiro e Bogotá. Questionada sobre a possibilidade de também se investir na internacionalização da literatura portuguesa na China, a ministra disse que é "um mercado difícil”, mas terá de ser trabalhado até pelas relações entre Portugal e China. “O próximo ano será uma boa oportunidade de o fazer. Vamos ter um programa conjunto Portugal-China, que aliás já começa este ano com uma exposição chinesa em Portugal e será uma boa oportunidade para fazer uma plataforma e ter alguns autores portugueses presentes". Uma afirmação proferida antes de partir para o almoço que Portugal ofereceu a 700 convidados entre os quais a poeta uruguaia Ida Vitale, que recebeu no sábado o grande prémio da FIL de Guadalajara, ou o prémio Nobel da Literatura Orhan Pamuk, o escritor turco que abriu este domingo o salão literário da feira e que mais tarde, numa conferência de imprensa, explicou que além de Fernando Pessoa tem admiração pela obra de José Saramago, em particular pela "atmosfera europeia" do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. O desenho e a imagem do cartaz de Portugal país convidado em Guadalajara, uma silhueta negra com as cores da bandeira nacional por trás, é da responsabilidade da própria feira e não da equipa portuguesa. Não foi a primeira imagem que enviaram a Manuela Júdice, e a primeira tinha a ver com um “Portugal e uma estética dos anos 40” que levou a comissária da participação portuguesa a explicar que “Portugal já não era aquilo”. A explicar, por exemplo, que a relação com o mar associada ao país passa actualmente mais pelos terminais de cruzeiros de Lisboa ou de Matosinhos e Leça da Palmeira mas também pela onda da Nazaré. Não passa por um farol a piscar para os marinheiros saberem onde está a terra ou com as cores tristonhas de uma figura com uma guitarra portuguesa e um xaile negro. Em outros tempos, o México teve alguma apetência pela literatura portuguesa, no tempo de Octavio Paz e de Francisco Cervantes, nomeadamente pela relação com Fernando Pessoa. Foram os dois tradutores do poeta português, e a Octavio Paz (1914-1998), Nobel da Literatura em 1990, deve-se ainda o conhecido ensaio Fernando Pessoa, o Desconhecido de Si Mesmo. Por isso, os mexicanos conhecem Pessoa, mas também José Saramago, que várias vezes passou pela feira, e ainda António Lobo Antunes. Também conhecem Eça de Queiroz, mas só estão publicados no México os contos. Nos discursos de passagem de testemunho de Madrid, cidade convidada, para Portugal apareceram alguns nomes actuais como Isabela Figueiredo ou Inês Pedrosa, mas no leque de conhecidos estão ainda José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares e o poeta Nuno Júdice. A comissária quis trazer escritores que não tivessem sido citados, quer nas listas que lhe enviou a organização, quer nas conversas que foi tendo ao longo destes meses. Essa era uma proposta muito redutora. Manuela Júdice quis mostrar aos mexicanos o que se fez em Portugal depois do Pessoa e do Nobel de Saramago. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Por isso, no final do dia de abertura da feira, as conferências foram de Gonçalo M. Tavares, que já tem muitos dos seus livros publicados no México e é bem conhecido e de Ricardo Araújo Pereira, que está a lançar La Enfermedad, el sufrimienti y la murete entran en un bar - Una espécie de manual de escritura humorística. Entre o público há quem conheça da Mixórdia de Temáticas e das manhãs da Rádio Comercial como Teresa Martins Dias que é professora de geografia em Colima e fala português porque viveu em Portugal, onde aliás a sua filha nasceu. Apareceu numa das sessões para conhecer o humorista português e tentar perceber como o humorista cria os seus sketches. O primeiro dia da feira terminou à noite com um concerto da cantora portuguesa Ana Bacalhau e nos próximos dias actuarão, entre outros, Capicua, com Sara Tavares e Eva RapDiva, os Moonspell, Camané e os Dead Combo. O PÚBLICO viajou a convite do comissariado para a participação portuguesa na FIL Guadalajara 2018
REFERÊNCIAS:
5 exposições que nos encheram as medidas em Arles
Enquanto o canto das cigarras nos embala e nos faz esquecer a roupa colada ao corpo, percorremos em modo maratona dezenas de exposições nos Encontros de Arles. Estas cinco encheram-nos as medidas (...)

5 exposições que nos encheram as medidas em Arles
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-12-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Enquanto o canto das cigarras nos embala e nos faz esquecer a roupa colada ao corpo, percorremos em modo maratona dezenas de exposições nos Encontros de Arles. Estas cinco encheram-nos as medidas
TEXTO: Na imensidão do Parc des Ateliers, ainda em modo estaleiro de obras à espera da inauguração da torre cintilante de Frank Ghery, e a par de The Train, Le derniére Voyage de Robert F. Kennedy, a exposição que mais nos encheu as medidas foi Lee McQueen - Les Inachevés, uma história de cumplicidade, confiança, amizade e devoção entre Ann Ray e o fulgurante criador de moda Alexander McQueen, que se suicidou em 2010. Não é preciso dar muitos passos nas salas semi-obscuras do pavilhão Les Forges para se perceber a extraordinária sintonia no trabalho desenvolvido em paralelo por estes dois poéticos fazedores de imagens. Ray — que afirma ter conhecido o designer inglês em 1996, logo após a sua nomeação como director artístico da casa Givenchy e enquanto ela própria estava a dar os primeiros passos na fotografia — não só se tornou na sombra fotográfica de McQueen enquanto ele erguia uma obra cintilante e provocadora na moda, como se tornou uma amiga a quem foi permitido registar momentos mais íntimos ou estudar sessões fora do contexto da moda, onde a experimentação ganhou força e forma. Já tínhamos ficado surpreendidos nos Encontros do ano passado com as “aparições” da chinesa Silin Liu entre alguns dos clichés fotográficos do século XX (I’m Everywhere), graças a uma mestria ímpar no uso do Photoshop e a um gozo particular em questionar a imagética ocidental mais comerciável, retocando-a de maneira incluir em cena novos elementos – no caso a figura da sua alter-ego Celine Liu. Agora é Feng Li que impressiona com a sua fotografia provocadora, desbragada e incisiva, o que nos leva a acreditar que há uma fonte de criatividade na fotografia contemporânea chinesa a ter em conta. As imagens que dão corpo a White Nights, a única série de Feng, foram captadas desde 2005 e mostram “o grande espectáculo que é o quotidiano” de Chengdu, capital da província de Sichuan, com o frenesi do comércio de rua, os parques de lazer e a panóplia de restaurantes. No seu habitat natural, a rua, Feng Li usa a câmara como uma lupa para captar com despudor o que de mais divertido, insólito e irónico se apresenta à sua frente: “Não é preciso ir muito longe; mais, sim, olhar mais de perto. É sempre sobre proximidade. ”Não há como passar ao lado de H+, a exposição onde o suíço Matthieu Gafsou nos propõe um estado da arte dos saberes, das tecnologias das ciências, das crenças e das crendices que estão empenhadas em adiar a finitude humana ou em descortinar o segredo da existência eterna. O meticuloso trabalho de investigação de Gafsou começa com as próteses mais arcaicas e acaba nas derivações das correntes pós-humanas, que tentam através de técnicas criogénicas ou de engenharias biológicas e genéticas lutar contra a obsolescência do corpo humano. O difícil é sair H+ e não ficar um pouco assustado. Nenhuma das imagens apresentadas é forjada e documenta “tão-somente” aquilo que existe em domínios como o biohacking a cultura avatar, a condição de homem-máquina e o uso de substâncias nootrópicas, uma classe de compostos que supostamente aumentam o desempenho cognitivo nos humanos. Por outro lado, não deixa de ser paradoxal ver imagens que resultam de tanta sofisticação técnica no meio de um barracão com parades de gesso improvisadas. Isto para não falar da sensação de, lá dentro, nos sentirmos como um frango no churrasco. Mortos de calor. O mínimo que se pode dizer é que Jonas Bendiksen não descarta nenhum pormenor quando se trata de mostrar aquilo que quer mostrar. Le Dernier Testament, que segue as pisadas de sete homens que acreditam ser a reencarnação do Messias na Terra, está soberbamente documentado não só pelas suas imagens fotográficas, mas também pela extensa documentação vernacular que juntou ao estudo de cada caso, que se expressa tanto na Sibéria (Vissarion) como na África do Sul (Moses Hlongwane), passando pelo Brasil (INRI). Mais detalhes: quem entrasse na Igreja de Santa Ana, em pleno coração de Arles, no dia em que Bendiksen apresentava o seu trabalho poderia pensar que ali estava um pregador a espalhar a sua boa-nova e mostrar os caminhos para a salvação. Vimo-lo mãos no ar em cima de um púlpito a explicar como entrou no mundo de “messias” como Jesus de Kitwe (Zâmbia), David Shayler The Christ (Inglaterra), Jésus Matayoshi (Japão) e Apollo Quiboloy (Filipinas). O tom era professoral e quem assistia acreditou. O catálogo da exposição (The Last Testament, Aperture/Gost, 2017) é uma daqueles livros feitos de maneira inteligente e que dão prazer folhear. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se houvesse uma distinção para melhor casamento dos Encontros, este ano o prémio ia para a dupla Jane Evelyn Atwood/Joan Colom, que na secção Dialogues juntam no mesmo espaço dois notáveis trabalhos sobre a prostituição de rua em Paris e em Barcelona. Separados por 20 anos — Atwood captou a prostituição transgénero no Pigalle no final dos anos 70; Colom a prostituição feminina entre 1990 e 2000 —, estas imagens não mostram apenas a performance exibicionista de quem faz do sexo um trabalho, revelando também o quotidiano perdido de bairros do centro da cidade que tanto em Paris como em Barcelona eram já percorridos por turistas à procura de “emoções fortes” e risinhos lascivos. Não tendo sido a primeira, Atwood terá sido a última a retratar o modo de vida “destas criaturas magníficas e complicadas” antes da gentrificação da cidade. Também para Colom o espaço público mais popular e as pessoas que nele gravitam foram sempre a matéria-prima privilegiada do seu trabalho que, para lá da vagabundagem e das ruas a cheirar a mijo, colocam o pulsar humano no coração das cidades, como bem sublinha o comissário Sam Stourdzé.
REFERÊNCIAS:
Festival de Locarno, sob o signo da família
Primeiros filmes da competição suíça em tom morno, familiar: A Family Tour, de Ying Liang, e Tarde para Morir Joven, de Dominga Sotomayor. (...)

Festival de Locarno, sob o signo da família
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Primeiros filmes da competição suíça em tom morno, familiar: A Family Tour, de Ying Liang, e Tarde para Morir Joven, de Dominga Sotomayor.
TEXTO: Cumprido o arranque do Festival de Locarno – a noite de abertura desta 71. ª edição fez-se na Piazza Grande com Liberty, ou Bucha e Estica filmados por Leo McCarey (homenageado na retrospectiva deste ano) numa curta-metragem que aqui foi acompanhada pela música ao vivo de Zeno Gabaglio e Brian Quinn, e com a comédia francesa Les Beaux esprits, de Vianney Lebesque –, pode enfim começar a bolsa de apostas helvética. E, no tiro de partida, a competição internacional deste festival de cinema esteve sob o signo das famílias em crise. Talvez por isso mesmo, há um tom morno, diríamos mesmo “familiar” (passe o trocadilho), nos filmes do chinês Ying Liang, A Family Tour, e da chilena Dominga Sotomayor, Tarde para Morir Joven. Expliquemos, antes de mais, que nem ele nem ela são estreantes nesta coisa dos festivais. Esta é a quinta longa de Ying, que já saiu de Locarno com o prémio de melhor realizador – em 2012, por When Night Falls; e Sotomayor viu a sua estreia na longa, De Jueves a Domingo, também em 2012, ser premiada em Roterdão e vencer o IndieLisboa. É por aí que se instala, muito rapidamente, o receio de estarmos a ver os típicos “filmes de festival”, obras que parecem não existir fora do circuito fechado dos certames mundiais. Mais no caso de Tarde para Morir Joven, que tem um certo ar de família com La Idea de un Lago, que a argentina Milagros Mumenthaler trouxe ao concurso de Locarno no ano passado, ou com A Comuna, em que o dinamarquês Thomas Vinterberg recordava a sua própria adolescência. Estamos a falar de experiências da adolescência de um outro tempo, contadas num tom sedado, difuso, como filtradas pela gaze da memória. Tarde para Morir Joven passa-se numa “comuna ecológica” nos arredores de Santiago do Chile, num tempo indeterminado que a música e os cartazes na parede sugerem ser o início dos anos 1990. Os seus habitantes são músicos, pintoras, actrizes, que vivem fora da rede, sem electricidade nem confortos modernos, uma enorme família aparentemente feliz; mas este suposto paraíso está já contaminado pela serpente. Sofía, o centro do filme, quer escapar a esta família utópica que já percebeu ser uma fraude para ir viver com a mãe, uma cantora de êxito que vive separada do pai – mas tratar-se-á, no fundo, de trocar uma utopia por outra igualmente impossível. É um filme de silêncios e olhares, que Sotomayor, aqui na sua terceira longa, domina com assinalável elegância; o todo é requintadamente filmado por um dos mestres da fotografia contemporânea, o peruano Inti Briones. Mas essa tendência para os silêncios e para os olhares confere ao filme uma opacidade que joga contra ele, que deixa Tarde para Morir Joven permanentemente à beira da desintegração. Sotomayor consegue reconstruí-lo às vezes. Outras, não. E o filme não descola de uma mediania simpática mas frustrante. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mais consistente, a esse nível, é A Family Tour, que questiona o impacto familiar de decisões políticas. Assumidamente semi-autobiográfico, o filme põe em jogo o reencontro, ao fim de vários anos, de uma realizadora chinesa exilada em Hong Kong e da sua mãe que ficou no continente, durante uma viagem turística que a mãe faz a Taiwan. Será, possivelmente, a última vez que se verão na vida: a senhora Chen está muito doente e não tem saúde para voltar a viajar, Yang Shu está proibida de regressar à China por ter feito filmes que questionam a “versão oficial” estatal. Há uma tonelada de coisas que nunca disseram uma à outra, inclusive em relação aos seus conflitos com a censura insidiosa da República Popular. Quando Ying Liang se concentra na ternura e na amargura das relações familiares – quer seja entre mãe e filha, entre avó e neto, ou entre marido e mulher –, A Family Tour é muito bonito, quase zen. Sempre que se desloca para a dimensão política, aproxima-se demasiado do didactismo algo naïf – embora o seu realizador esteja perfeitamente ciente disso: tudo se passa durante o Festival de Cinema de Taiwan, onde o filme que tantos dissabores trouxe à familia, A Morte de um Recluso, é exibido; e nos cinco anos entretanto decorridos Yang Shu não voltou a filmar. Como quem diz que o cinema, por muito activista que seja, nada pode mudar no que diz respeito à política. Já os sentimentos são outra coisa. O PÚBLICO está em Locarno a convite do Festival de Locarno
REFERÊNCIAS:
“O mercado é propenso à especulação. E essa propensão é incontrolável”
Pedro Rebelo de Sousa acredita que a união bancária, além de longa e penosa, não vai ser um processo fácil “para os pequenos países, como Portugal, que deixaram de ter sistema financeiro”. (...)

“O mercado é propenso à especulação. E essa propensão é incontrolável”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pedro Rebelo de Sousa acredita que a união bancária, além de longa e penosa, não vai ser um processo fácil “para os pequenos países, como Portugal, que deixaram de ter sistema financeiro”.
TEXTO: Depois da crise financeira mundial de 2008, em entrevista ao PÚBLICO, Pedro Rebelo de Sousa admite que o sistema financeiro está melhor. Mas avisa que há elementos “imprevisíveis” que podem desencadear nova crise mundial, que dependem “dos cenários macroeconómicos e políticos que se estão a desenhar”. O presidente do gabinete de advocacia SRS Advogados, Pedro Rebelo de Sousa, trabalhou 15 anos no sistema financeiro internacional, onde esteve no Citibank, em Nova Iorque, antes de, em 1990, vir chefiar o Banco Fonsecas e Burnay até à venda ao BPI. Só então assumiu uma carreira na advocacia, começando como sócio, em Portugal, do gabinete inglês Simmons & Simmons. Pelo meio liderou o Instituto Português de Corporate Governance e foi gestor não executivo da CGD, ocupando agora o lugar de presidente da mesa da assembleia geral do Millennium BCP (2017/19). Dentro de um mês, cumprem-se dez anos passados desde a queda do Lehman Brothers [15/9/2008] que veio expor um sistema financeiro sustentado em dívida e especulação. Surpreendeu-o?Para alguém que começou no sistema financeiro internacional, no qual trabalhei durante 15 anos, era evidente que os grandes grupos estavam a avançar no sentido de ir criando megaestruturas contornando o espírito e a letra da lei (isto nos EUA e depois nos outros países), o que estava a pôr em causa as bases do sistema criado após a crise de 1929/30, que tinham como elemento a Lei Glass-Steagall de 1933, que não permitia a ligação entre banca comercial e a banca de investimento, e impunha critérios de limitação à actividade bancária, versus outras actividades com afinidades como a seguradora. Está a referir-se ao final dos anos 80?Sim, começou nos finais dos 80 para os 90, quando se verifica que o dinheiro tinha feito um circuito interessante: a economia mundial tinha tido como pólo dinamizador os EUA e a criação do Plano Marshall [o plano norte-americano de recuperação da Europa a seguir à Segunda Guerra Mundial], e, de repente, nos anos 70, emergiram as potências dos petrodólares, com o Médio Oriente a tornar-se uma realidade com peso no sistema financeiro internacional. Em meados da década de 80, os EUA continuam a ser uma grande força e a Europa uma crescente força, mas dá-se uma transferência do poder do eixo do Médio Oriente para o Japão, que explodiu. Este movimento suscita, em certos círculos, a preocupação de saber se a banca cumpria os critérios de capital e de controlo de crédito [em 1988 cria-se Basileia I]. Ou seja, estavam os dados lançados, mas no princípio da década todos acreditam que a economia mundial não vai parar de crescer e não se antecipam disrupções nos mercados?Mas o pecado original estava lá. Como quadro superior de um banco americano, assisti a muita coisa – por exemplo, não havia “chinese wall” [o mecanismo que protege informação privilegiada na banca de investimento e na comercial], a génese dos episódios anteriores: Segunda-feira Negra [1987], crise financeira dos emergentes [1997], a crise do rublo [1998], crise das dot. com [2000]; crise imobiliária [2007] e a crise das dívidas soberanas [2010]. Havia afloramentos sectoriais e conjunturais. E, subjacente a todos eles, estava a perversão total do sistema, que nenhum fiscalizador e regulador, mesmo com as regras de Basileia, controlava. Quando em 2006 surgiram os primeiros sinais do subprime, porque é que é ninguém fez nada?Havia uma combinação não virtuosa, negativa, entre fiscalizadores, supervisores e o sistema. E o sistema tentava negar a génese do problema, que, para ser resolvido, implicava ter de mudar tudo, reformular a actividade bancária, quer na conta de exploração, quer no balanço. E todos os bancos tinham de reponderar os seus capitais, as provisões, o seu próprio modelo de negócio. Há uma certa ironia nesta crise, pois os problemas rebentam nos países – EUA e Inglaterra – dados como bons exemplos de capitalismo regulado. . . Pois é. Há várias teses. E a minha é que houve, sobretudo da parte dos mercados anglo-saxónicos, o chamado “pretenso cumprimento formalista”. Quer dizer?Estava tudo bem. Era o jogo do faz-de-conta. Na crise houve uma conjugação de factores negativos: perversão do modelo da banca de investimento; reguladores pouco efectivos; fiscalizadores ainda menos efectivos. E agentes especulativos com uma perspectiva de ganhos imediatos, para gestores e accionistas. A governação falhou, quer nos bancos que operam no mercado, quer nos bancos centrais [os supervisores e reguladores] que se limitavam a cumprir rituais, facilmente manipuláveis e sem escrutínio. Houve falta de compreensão por parte dos reguladores do que se estava a passar?Quando o primeiro sinal surge na Grã-Bretanha [2007], não perceberam. O mercado não se auto-regula, é alimentado pela especulação?Diria que é propenso à especulação. E essa propensão é incontrolável. E tenho pensado nisto: a geração dos millennials e as a seguir fizeram uma gestão das empresas em que o desempenho imediato e a criação de valor para o accionista eram primados que se sobrepunham a tudo o resto. Os gestores criavam valor para os accionistas e, por essa via, para si [bónus]. E isso acabou. É um dos ensinamentos que a crise nos deixa. O que mudou?A atitude dos reguladores e a preocupação de tornar a corporate governance mais substantiva e menos adjectiva. Não é a forma que deve prevalecer – essa sem dúvida era cumprida nos casos do BPN, BPP, BCP, BES e PT a ponto de alguns deles ganharem prémios. É essencial criar uma estrutura de governance responsável. Depois das várias crises que se sucederam desde 2008, o sistema bancário está hoje mais forte? Não há perigo de ajudar a abrir outra crise?O sistema está melhor, funcionalmente, e estão a dar-se passos para atenuar uma eventual crise ou impedir que aconteça. Todavia, há elementos que a podem desencadear e que dependem sobretudo dos cenários macroeconómicos e políticos que se estão a desenhar. Há muitas frentes imprevisíveis: o senhor Trump; o futuro da União Europeia pós-“Brexit”; a manta de diversificação que se está a montar na Europa, com partidos populistas que põem causa o modelo europeu. E se o modelo europeu tem alguma coisa relevante para evitar uma crise é a UEM [União Económica e Monetária]. E esta ou se fortalece, ou desaparece. Há muitas incógnitas. Foi partner de uma sociedade de advocacia inglesa. Como está a olhar para o “Brexit”?Os ingleses estão confrontados com o estertor do seu império colonial. Este é realmente o fim da era vitoriana e, olhando para a rainha, percebemos que ela personifica o fim de uma viagem e o fim de uma Commonwealth [comunidade de nações de língua inglesa], que não se revê na liderança inglesa. E a Grã-Bretanha está confinada à sua natureza insular. E, como são pragmáticos, vão tentar que isso não aconteça de forma radical. Como?Têm alguns trunfos. E um deles são os mercados de capital e financeiro que, e embora tendo havido desde o referendo alguma saída, se mantêm no essencial. Ficarão lá. Segundo: num mundo em que uma das moedas de referência é uma incógnita, o euro – e o yuan/renmimbi é outra incógnita, mas não é uma moeda desejada com presença internacional –, o facto de a Inglaterra ter a libra é relevante na parte monetária. O terceiro trunfo é o direito, de que não se fala. As cortes norte-americanas e britânicas têm a lex mercatoria [sistema jurídico usado no comércio internacional] O eixo é comum a todo o mundo anglófono. E protege o “Brexit”. Já percebeu o que é Theresa May quer?O que eles gostariam era de ter um tratamento igual ao da Dinamarca [que está fora do euro]. De ser uma Dinamarca, mas com maior peso. É a solução de Theresa May. E o desmando americano pode favorecer o pragmatismo inglês. Os ingleses pensaram que, voltando-se para os EUA, o velho aliado lhes resolvia os problemas. E o que o Trump disse foi para [May] “meter um processo” [à UE], que é a forma como ele resolve os problemas das falências das suas empresas. Não consegue chegar a um diálogo, mete uma acção e depois logo se vê. E May já percebeu que é uma maluquice. O “Brexit” é irreversível?Tudo na vida é reversível. Mas a ideia de “Brexit” – “Nós não fazemos claramente parte da UE, do espaço Schengen” – já era evidente antes e vai continuar. O “Brexit” vai tentar ser parte de uma relação comercial que privilegia a Europa e dizer: “Nessa medida, somos europeus. ” E convenhamos que as idas e vindas da Europa, nomeadamente em termos de União Bancária, não ajudam. Os ingleses pensam: “Já resolvemos os problemas da banca, já pagámos o preço e já estamos a vender os bancos, e não queremos sujeitar-nos a ter de reportar ao BCE. ”Sem a Grã-Bretanha, a UE não fica diminuída?Claro. A Inglaterra tinha um poder moderador na UE, que sempre exerceu, e que era fundamental para garantir o equilíbrio face à Alemanha. E mesmo em termos da onda nacionalista que se verifica na Europa, mesmo tendo lá dentro essa onda, não existe um movimento de extrema-direita, porque eles têm uma estabilidade comportamental. A Inglaterra também trazia para as instâncias europeias a tal componente do seu direito, que permitia olhar para os factos de uma outra forma. Infelizmente, acho difícil que não haja “Brexit”. Acho politicamente quase impossível uma reversão. Como avalia o futuro da União Bancária Europeia concebida em 2013 com três pilares [supervisão do BCE, mecanismo de resolução, garantia de depósitos], mas que só tem dois a funcionar. Devia estar concluída em 2018, mas os alemães já avisaram que o fundo de garantia de depósitos europeu será adiado sabe-se lá para quando. Não é um risco?Sou um homem de fé e acredito no sucesso. Mas os indicadores que se conhecem mostram uma situação extremamente difícil. Então?O processo vai ser longo, penoso e não vai ser fácil para os pequenos países, como Portugal, que deixaram de ter sistema financeiro. E, num quadro que vai diferindo o processo, o mais previsível é que a banca nacional seja penalizada. Os nossos bancos vão tentar cumprir com uma série de requisitos que os colocam em posição de fragilidade, no contexto do eixo franco-alemão que pretende que haja uma concentração bancária, com pequenos players para satisfazer os populistas. A criação de grandes grupos europeus é uma boa solução?É má a vários títulos. Desde logo é má para o consumidor. E se alguma coisa a crise de 2008 nos ensinou é que estava a haver demasiada concentração em big players que são too big to fail, e depois lá vai o contribuinte resgatar. . . E é mau do ponto de vista da estabilidade do sistema. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas é melhor para o BCE?Um sistema com menos bancos é melhor para os fiscalizadores e para os supervisores. Há incógnitas. Não é claro que o sistema financeiro alemão esteja hoje saneado e regenerado [cerca de 70% dos bancos alemães ficaram fora da supervisão do BCE]. E o futuro da banca italiana também não é claro. A concentração franco-italiana (UniCredit-Société Générale) induzida pela [UE] pode ser ou não virtuosa. Há que dizer que na crise houve claramente um tratamento discriminatório por parte da Europa dos países do Sul: Portugal, Grécia e Irlanda. Mas a situação mais grave é a portuguesa. Também houve desleixo das nossas autoridades?Exactamente. Com a ideia de que tínhamos de sair rapidamente de debaixo da tutela da troika – BCE, FMI e UE – tomaram-se decisões que nem na Grécia foram tomadas. E sempre na base do experimentalismo [Novo Banco, Banif]. Nota: Entrevista corrigida às 14h de 13 de Abril. Na primeira resposta, Pedro Rebelo de Sousa referiu a Lei Glass-Steagall e não a Lei Sarbanes-Oxley, como fora transcrito por lapso pela jornalista
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA TROIKA UE FMI
Os 15 minutos de barbárie que mudaram Timor
Antes de Santa Cruz, houve massacres terríveis, alguns até mais sangrentos. Mas nenhum foi filmado. A 12 de Novembro de 1991 ficou provado, em vídeo, do que os militares indonésios eram capazes. (...)

Os 15 minutos de barbárie que mudaram Timor
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Antes de Santa Cruz, houve massacres terríveis, alguns até mais sangrentos. Mas nenhum foi filmado. A 12 de Novembro de 1991 ficou provado, em vídeo, do que os militares indonésios eram capazes.
TEXTO: Fora de Timor Leste, o massacre de Santa Cruz de 12 de Novembro de 1991, dentro de um cemitério de Díli, teve um significado político claro: a resistência timorense tinha “capacidade de acção política para romper o muro de silêncio”, com resume Carlos Gaspar, da Fundação Oriente e na altura conselheiro político no Palácio de Belém. Dentro de Timor, 25 anos depois, ainda se procuram mortos. Há os 271 que morreram no cemitério, mas há mais de cem que morreram nos dias seguintes e nunca foram entregues às famílias. Recolhemos algumas memórias de um dia que — com a ajuda de Max Stahl, cujo vídeo do massacre passou na CNN — obrigou o mundo a abrir os olhos para as brutais e contínuas violações de direitos humanos em Timor. Os timorenses ainda tiveram de esperar oito anos até verem os indonésios sair do seu país. Mas naqueles 15 minutos de horror, a causa da independência ganhou uma força incrível e inédita. “Foi a prova que eu procurava”, diz o documentarista britânico. Eu era directora da escola básica da paróquia de Balide, mesmo ao lado do cemitério de Santa Cruz. Muitos meninos saltaram o muro e fugiram para a nossa escola. Cinco meninas e seis rapazes. Uma menina estava toda coberta de sangue. Primeiro, assustei-me. Depois percebi que o sangue não era dela. A menina não conseguia falar e só repetia:— Atingiram a minha irmã!Mais tarde, disse-me quais tinham sido as últimas palavras da irmã: “Sai já daqui senão também morres. ”Ela tinha uns 15 anos. Chama-se Dália Corte Real, é irmã do Henrique Corte Real, que agora é professor de Direito na Universidade de Díli. Tornou-se freira, como a irmã que morreu nesse dia. Eu estava com muito medo, mas disse-lhes para não chorarem. Começámos todos a rezar. Pela janela, víamos os camiões a passar com mortos e feridos a caminho do Hospital de Lahane. O padre goês António Eduardo de Paulo Brito disse aos miúdos que vestissem as fardas extra que tínhamos sempre na escola por causa da chuva, e que varressem o átrio da igreja. Como se não fosse nada. Uns ficaram na rua a varrer, outros foram para dentro da minha sala de aulas. Eu ensinava bahasa indonésio ao 6. º ano — a língua do inimigo! Para dar um ar de normalidade, comecei a fazer uma cópia. Escrevi duas ou três frases no quadro. “Tema: a minha escola. ” E em baixo, “A minha escola é bonita”, “A minha escola tem muitos alunos”. Foi tudo muito rápido. Talvez 15 minutos. Até que um servente veio avisar que os militares iam entrar na escola. Comecei a ditar as frases em voz alta. Os miúdos estavam todos misturados, com a farda da escola, sentados nas carteiras. Quando os militares entraram, os mais velhos fecharam a cara dentro dos livros, como se estivessem concentrados a ler. Às tantas, os militares entraram. Eram três. Um vinha sem camisa. Com a arma, mas sem camisa. Perguntaram se tinha entrado alguém da rua. Lá fora, fizeram a mesma pergunta ao padre Eduardo, mas ele respondeu em português:— Não falo a vossa língua!E depois, em tétum, mandou os miúdos varrerem. Dos onze, estão todos vivos. O meu amigo Mateus, com quem estive escondida no mato durante quatro anos, morreu em Santa Cruz. Ainda hoje o corpo não foi encontrado. Mas o meu sobrinho Hermingardo Albano da Costa Soares sobreviveu. Hoje é director da comissão independente que supervisiona as compras da administração pública. Na altura era adolescente e estava na escola interna salesiana de Fatumaka, em Baucau. Na noite anterior, apareceu na minha casa, em Díli, para me dizer que ia participar na manifestação do dia seguinte e que estavam todos prontos para morrer. — Mas tia, por favor não diga à minha mãe. Só quero avisar, para o caso de acontecer alguma coisa. Só à noite é que soube que ele tinha sido atingido no cemitério. Ainda tem a bala no corpo. Nos primeiros dias a seguir ao massacre, não houve primeiros socorros. Os miúdos ficaram no hospital a morrer. Por isso, enviámos um medicamento timorense que é muito bom para estancar sangue. Um motorista das ambulâncias militares indonésias era meu afilhado de casamento. Foi ele quem levou o frasco para o hospital. Maria da Paixão Costa, 56 anos, licenciada em Ciências Políticas e Indonésio, ex-secretária das mulheres da Região 4 da rede clandestina da resistência (que incluía metade do país), ex-deputada do PSD timorense após a independência em 2002, e actual embaixadora de Timor Leste em Portugal. Saí de casa às 5h da manhã para a missa na Igreja de Motael. No fim, formámo-nos em frente da igreja com as bandeiras içadas e fizemos a marcha para o cemitério de Santa Cruz. No percurso fomos provocados pelos militares e pelos membros dos Serviços de Inteligência. Houve quem se tivesse infiltrado na manifestação. Alguns jovens esfaquearam e agrediram um militar que teve de fugir e procurar refúgio num quartel. A acção foi brutal, mas continuámos a marcha até ao cemitério. Quando quisemos colocar as flores na campa do Sebastião Gomes, os militares indonésios que se tinham escondido no cemitério dos Heróis da Indonésia, mesmo ao lado do de Santa Cruz, abriram fogo e nós fugimos em todas as direcções. Eu fui alvejado na perna esquerda e na parte detrás do braço esquerdo. Caí, levantei-me e quis fugir mas não consegui. Tinha a perna partida. Entretanto os militares entraram no cemitério à procura de manifestantes, para os alvejar e esfaquear. Dois militares tentaram levantar-me e bateram-me com a arma na cabeça. Comecei a sangrar da cabeça e caí novamente ao chão. Arrastaram-me para a estrada, despiram-me até ficar completamente nu e lançaram-me para dentro de um grande camião militar, onde estavam depositados os corpos de alguns mortos. Bateram-me novamente na cabeça para não gritar e não espreitar para fora do camião. Levaram-nos para o Hospital Wira Husada de Lahane para fazer tratamentos das feridas. Depois de três semanas no hospital, a 3 de Dezembro levaram-nos para o aeroporto logo de manhã para apanharmos o avião para Jacarta — no meu caso para operar a minha perna partida. Éramos sete. Durante três anos fizeram-nos tratamentos. Enquanto fazíamos a recuperação, tínhamos de fazer a limpeza geral do hospital. Sempre na condição de prisioneiros, controlados pelos militares. Alex Samurai, membro da Polícia Nacional de Timor Leste, em Díli. Apanhei três tiros na perna esquerda, vi muitos companheiros serem massacrados, alvejados, esfaqueados, capturados e presos. Tinha 15 anos. Foi um dia triste, mas um dia de que tenho muito orgulho. Fiz uma coisa que ajudou a libertar a minha pátria. Estávamos preparados para o pior. Estávamos prontos para morrer. Quando os militares indonésios começaram a disparar, eu estava com um primo — desaparecido até hoje — em frente ao portão principal do cemitério. Gritávamos “Viva Xanana!”, “Viva Timor Leste!”, “Queremos paz em Timor!”, “Viva loriku assuain!”, a expressão que usávamos para falar dos jovens guerreiros. Fugi para dentro do cemitério e tentei esconder-me. Aí, vi os militares indonésios fazerem coisas terríveis. Consegui fugir para uma casa perto do cemitério. Como sou do bairro de Santa Cruz, conhecia o terreno. Foi o que me safou. Quando soube que as imagens de Santa Cruz tinham chegado à CNN fiquei muito contente. Desta vez, a Indonésia estava em maus lençóis. Hoje vou rezar e fazer um minuto de silêncio pela alma das vítimas de Santa Cruz. Que tenham descanso em paz. Joaquim Jacob da Silva Fernandes, 2º secretário na Missão Permanente de Timor-Leste Junto da CPLP em Lisboa. Tinha 22 anos e estava a acabar o liceu em Díli. Nessa altura, perdíamos muitos anos de escola. Em 1991, nós, os estudantes, já estávamos muito unidos e já sabíamos que tínhamos de fazer alguma coisa para chamar a atenção do mundo. Foi a visita a Timor do Papa João Paulo II, em 1989, que ajudou a fazer essa viragem. A missa em Tacitolo teve mais de 100 mil timorenses. Nós fizemos uma manifestação, mas pequenina. Na altura não havia telemóveis, por isso organizámos tudo com estafetas e colegas, bairro a bairro. Para Santa Cruz, usámos o mesmo método. Cada bairro organizou os seus jovens. A delegação de deputados portugueses estava para vir a Díli e nós tínhamos organizado uma manifestação. E sabíamos que havia jornalistas estrangeiros na cidade. Quando a visita foi cancelada, decidimos manter o protesto. O Constâncio Pinto, do comité executivo da frente clandestina, deu ordem para que informássemos todos os jovens de Díli que deveriam participar na missa de sétimo dia em homenagem ao Sebastião e a seguir ir à manifestação. Eu era do bairro Kuluhun, ao pé de Bemori e Becora. De manhã, fomos todos à missa. A Igreja estava esgotada. Tudo cheio, cheio. Dentro e fora. Levei a minha família toda. Do meu bairro devem ter ido umas 500 pessoas. A seguir, o plano era caminharmos da Igreja de Motael até ao cemitério de Santa Cruz, para pormos flores e velas na campa do Sebastião Gomes. Já tínhamos as T-shirts vestidas e os panfletos debaixo da roupa. São uns 20 minutos a pé. Mal começámos a marcha, abrimos os panfletos e começámos a gritar: “Integração Nunca!”, “Pátria ou Morte!”, “Referendo para Timor Leste!”. Gritei com aquela garra toda, era uma explosão enorme. Só pensávamos que os jornalistas estrangeiros tinham de dizer para fora o que nós estávamos ali a dizer. Quando chegámos ao Palácio do Governador, uns intel, uns bufos, vestidos à paisana tentaram desmobilizar-nos, deram murros e esfaquearam pessoas. Eu vi isso, foi mesmo ao pé de mim. Um amigo nosso foi agredido. Mas o grupo continuou. Demos a curva no Hotel Resende e seguimos em direcção ao mercado municipal. Aí, eu senti-me mal e desmaiei. Um homem que estava a passar de mota viu-me caído no chão e levou-me para casa. Mal chegámos, comecei a ouvir os tiros. Já não assisti. Os meus irmãos e a minha irmã estavam em Santa Cruz, mas só à noite é que conseguirem vir para casa. Estiveram todo o dia escondidos. A minha prima Rosa Pacheco morreu no cemitério. Tinha 12 anos. Outro amigo, o meu vizinho Manuel Braz, também morreu. Tinha 20 anos e estava a estudar. Eu escondi-me em casa de um amigo chinês. Os indonésios não desconfiavam dos chineses porque achavam que eles só pensavam em negócios e não em política. No ano seguinte, eu e mais seus colegas fugimos para o outro lado da ilha. Comprámos documentos falsos em Kupang. Depois do massacre, a situação ficou muito tensa. E tudo bloqueado. Não conseguíamos movimentar-nos. Os indonésios lançaram uma campanha de propaganda a dizer que não tinha havido mortos, só dois ou três. Uns estudantes foram para o mato e juntaram-se à guerrilha. Nós achámos que tínhamos de ir para o estrangeiro mostrar que os indonésios estavam a mentir. A resistência tinha-nos dado a morada de um rapaz em Jacarta, o Sávio Domingos. Ele era órfão e tinha sido adoptado por um militar indonésio. Fomos até à casa dele e tocámos à porta. Ele não estava. Nós dissemos que éramos estudantes e ficámos lá um dia à espera. Na boca do lobo! O pai dele era um militar indonésio! Foi uma loucura. Mas a nossa luta sempre teve ajuda divina. José Sousa, 47 anos, vive em Lisboa desde 1994, onde é segurança. Tem dois filhos, um a estudar Gestão na Universidade Nova de Lisboa, o outro, com 16, está indeciso entre Medicina e Química. Muitas vezes, o medo está na nossa cabeça, é só um fantasma. Isso não se pode filmar. Quando os militares começaram a matar, eu estava preparado. Já tinha ouvido muitas histórias. E estas eram finalmente as imagens que eu estava à procura. Era o que podia contar a história, provar o que se estava a passar. Eu estava dentro do cemitério, ao pé da campa do Sebastião Gomes para filmar os jovens a rezar e a pôr velas. Eu estava em Timor desde Agosto. Queria incluir a visita dos deputados portugueses no filme que estava a fazer sobre a situação de Timor. A resistência dizia-me que a visita era o culminar de dois anos de esforços. Estavam com muita esperança em que a visita mudasse as coisas. Estava no mato há uns dias quando recebi uma mensagem da resistência a dizer que tinha de ir para Díli. Pensei que ia entrevistar o Xanana Gusmão. Quando cheguei a Díli fui para a casa do irmão do Ramos Horta, o Arsénio. Foi aí que um estafeta me trouxe uma carta do Xanana: avisava que ia haver uma manifestação no dia seguinte e que podia haver violência. Também dizia que era importante eu estar lá e pedia para juntar os jornalistas estrangeiros que estavam na cidade. Deve ter tudo durado uns 15 minutos. Os militares apanharam-me na capela. Tiraram-me a câmara, mas eu já tinha enterrado a cassete na terra, debaixo de uma campa à beira do caminho para a capela. Não sei bem como, mas o militar acabou por me devolver a câmara. Eu não gritei. Eu estava muito zangado, muito zangado mesmo. Olhei-o só olhos nos olhos, com um ar muito sério, e repeti, calmamente:— Devolve-me a câmara, devolve-me a câmara. Eles estavam muito perturbados. Tinham acabado de matar centenas de jovens. Acho que ele sentiu que me matava ou me devolvia a máquina. E deu-me a máquina. Ainda filmei mais uns dez minutos depois disso. Mais tarde fui interrogado pela polícia. Mas à noite fui ao cemitério. Não estava lá absolutamente ninguém. Estava abandonado. Entrei e desenterrei a cassete. Eu sabia que os soldados indonésios tinham medo de entrar no cemitério. Sempre ouvi os homens da resistência dizerem isso. Max Stahl, documentarista britânico que filmou o massacre e cujo vídeo conseguiu fazer chegar a Londres e às televisões de todo o mundo, vive e trabalha em Díli. Eu dava aulas de Matemática numa escola em Miratejo, nos subúrbios de Lisboa, na margem Sul, hoje chamada Escola Secundária Professor Ruy Luís Gomes. Não tinha televisão, nunca tive – por opção –, e não sabia de nada quando saí de casa de manhã. Cheguei à sala de aula e os meus alunos estavam todos vestidos de preto. E às tantas, um perguntou:— Porque é que o professor não está de luto?— Mas o que é que aconteceu?— Houve um massacre num cemitério em Díli. Tive a notícia através dos meus alunos de Matemática. Na altura, havia muitas rixas entre skinheads e negros na escola. Mas a força do massacre uniu-os e a tensão diminuiu. Liguei ao meu irmão mais velho, que vivia em Díli, e ele sempre a fugir da conversa. As chamadas entre Timor e Portugal estavam sob escuta e ele era chefe das Finanças da administração pública. Eu perguntava e o meu irmão sempre a desviar a conversa. Percebi depois que muitos dos miúdos que estavam em Santa Cruz nesse dia eram nossos vizinhos no Bairro dos Grilos, ao pé da escola chinesa. Eu fazia perguntas e ele ficava incomodado, a fazer longos silêncios. — Os teus filhos foram a Santa Cruz?Ele nada. Silêncio. — Os teus filhos estão bem?— Sim. Eu percebi. Ele não podia falar. Luís Cardoso, 57 anos e em Portugal desde os 17, foi nomeado representante do Conselho Nacional de Resistência Maubere a seguir ao massacre. Mais tarde, pediu para “ser escritor a tempo inteiro”. Publicou entretanto quatro livros na Dom Quixote e um na Sextante. O próximo sai em Março. Estava no primeiro ano da Faculdade de Psicologia na Universidade Católica de Soegijapranata, em Semarang, Java, e pertencia à RENETIL. Foi o meu amigo Metodio Caetano Moniz, da rede clandestina de estudantes. Fiquei devastada. Chorei todo o dia. Alguns de nós ficámos em pânico, com medo de novos massacres. Nessa noite, juntámo-nos na casa de um amigo, rezámos e acendemos velas pelos mortos. Foi assim durante uma semana. Durante essa semana toda nunca consegui falar com a minha família em Díli. Eu não acreditava que uma coisa destas pudesse acontecer porque Peter Koojiman, o Special Rapporteurs da Comissão dos Direitos Humanos para a Tortura, estava em Díli, numa visita oficial. Para além dos jornalistas que tinham ido para fazer a cobertura da visita – cancelada – dos deputados portugueses. Mas apesar de a visita ter sido cancelada, o Max Stahl, o Allan Nairn, a Amy Goodman e outros continuavam lá. Vimos as notícias na televisão indonésia. Eles manipularam os factos. Disseram que os jovens é que tinham provocado os militares. E que só tinham morrido 17 pessoas. Nós sabíamos que não era verdade. Sabíamos que eles estavam a mentir. Começámos a trabalhar ainda mais com os indonésios que eram activistas pró-democracia. E eles começaram a ajudar-nos mais e mais. Defendiam, connosco, que Timor Leste devia ser independente. Na RENETIL chamávamos a esta actividade a “indonesiação do conflito”. Mica Barreto Soares, ex-funcionária da Comissão Anti-Corrupção de Timor, está a fazer uma pós-graduação na Universidade de Swinburne, em Melbourne, sobre as relações China-Timor. Tinha 16 anos. Eu, como a maior parte dos manifestantes, ainda estava em frente ao cemitério de Santa Cruz quando os militares da Indonésia chegaram. Vendo a sua presença, corri para dentro do cemitério. Sendo um jovem adolescente, o meu reflexo inicial foi fugir daquele lugar para salvar-me. Mas ao ouvir os gritos e o desespero dos que estavam no cemitério, acabei por ficar petrificado. Não consegui mover-me. Passou uma enxurrada de pensamentos pela minha mente. Um deles foi o de renúncia, o de que não faria mal se fosse preso e morto. Tive sorte. Enquanto quase 60 jovens morreram logo ali, às mãos dos militares Indonésios, eu acabei por ser capturado com outras pessoas. Fomos levados para um pequeno abrigo na parte traseira do cemitério. Já não conseguia pensar ou sentir nada – não tinha medo nem coragem, simplesmente estava naquele lugar naquele momento. Apercebi-me da presença de um militar da Indonésia que pertencia ao Kopassus (Komando Pasukan Khusus – Força Especial da Indonésia) que eu conhecia. Sabia quem ele era pois, por vezes, ele estava no posto militar próximo a minha casa, no bairro de Becora. Ele chamou-me para trás do local onde estávamos e acusou-me – a mim e aos outros jovens da vizinhança – de falar mal dos militares da Indonésia. Perante tal provocação, limitei-me a ficar em silêncio. O oficial retirou a sua pistola do coldre e eu assumi que o meu destino seria, evidentemente, a morte. Mas ele bateu com a pistola na minha cabeça e, para minha surpresa, tirou uma fotografia comigo e com os outros militares que ali estavam e a seguir levaram-me outra vez para junto dos outros jovens capturados. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nessa altura, confesso que tive um sentimento de alívio por ainda não ter sido morto. Eu e os outros fomos então levados para um carro militar e recebemos ordens para que ficássemos deitados ou agachados. Pensei que estávamos a ser transportados para um local qualquer para sermos executados. Em vez disso, fomos levados para o quartel da polícia na parte oeste de Díli (a então POLWIL – Kepolisian Wilayah, actual Academia da Polícia). Estive aí detido duas semanas. Durante a ocupação Indonésia, a violência era uma realidade habitual. De certa maneira, toda a violência era semelhante, da tortura ao homicídio. Mas o 12 de Novembro foi diferente por causa da sua intensidade num único local e por estarem ali tantos jovens e adolescentes. A posterior cobertura mediática acabou por ser a principal diferença entre esta e as outras acções violentas. Só vi o vídeo do massacre [de Max Stahl] depois da restauração da independência, em 2002. Confesso que até hoje não consigo vê-lo sem sentir uma profunda tristeza pelo que aconteceu a tantos jovens, que estavam apenas a agir a favor daquilo que era o melhor para o futuro das pessoas e da nossa nação. Fernando “Lekinawa” da Costa juntou-se à Resistência Nacional dos Estudantes de Timor-Leste (RENETIL) depois do massacre de Santa Cruz e foi estudar para a Indonésia. Hoje trabalha na Fundação Haburas, uma ONG timorense que luta pela protecção do meio ambiente.
REFERÊNCIAS:
Kim Jong-un, o sucessor do “Querido Líder”
Ao contrário do que acontece nas monarquias ocidentais, na Coreia do Norte a linhagem vai perpetuar-se através do filho mais novo e não do primogénito. Kim Jong-un é o benjamim do “Querido Líder” e vai suceder ao pai no controlo dos destinos de um dos países mais fechados e isolados do mundo. (...)

Kim Jong-un, o sucessor do “Querido Líder”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ao contrário do que acontece nas monarquias ocidentais, na Coreia do Norte a linhagem vai perpetuar-se através do filho mais novo e não do primogénito. Kim Jong-un é o benjamim do “Querido Líder” e vai suceder ao pai no controlo dos destinos de um dos países mais fechados e isolados do mundo.
TEXTO: “Na vanguarda da revolução coreana encontra-se actualmente Kim Jong-un, grande sucessor da causa revolucionária (. . . ) e chefe notável do nosso partido, do nosso Exército e do nosso povo”, divulgou hoje a agência oficial norte-coreana KCNA, usando a típica terminologia da propaganda. “Todos os membros do partido, os militares e o público deverão seguir fielmente a liderança do camarada Kim Jong-un e proteger e fortalecer ainda mais a frente unificada do partido e do Exército”, adiantou a mesma agência. Como já vem sendo hábito, a biografia do novo líder da Coreia do Norte está cheia de incógnitas. A começar pela sua idade. Especula-se que terá entre 27 e 29 anos. Seja como for, alguns analistas indicam que, por comparação, o pai teria aproximadamente 52 anos quando se tornou o líder da Coreia do Norte, em 1994. Sabe-se que foi educado na Suíça e que é filho de uma das mulheres favoritas do pai, Ko Yong-hui (já falecida). No colégio interno onde estudou, Kim Jong-un destacou-se em desportos como o basquetebol e o esqui e na aprendizagem de línguas (fala Inglês, Francês e Alemão). Kim Jong-un - já apelidado de "Grande Sucessor" - tem um irmão mais velho, Kim Jong-Chol, e um meio-irmão mais velho, Kim Jong-Nam, ambos preteridos para a sucessão. Em 2009, o especialista sobre a Coreia do Norte Andrei Lankov dizia ao “The New York Times” que se sabia “quase nada” sobre o jovem Kim Jong-un. “É muito novo, sem qualquer experiência administrativa, e sem círculos sociais - ainda não teve tempo para criar uma base de poder. Será um fantoche obediente nas mãos das pessoas que fizeram pressão para que fosse tomada esta decisão. Quem são estas pessoas? Francamente não sei”. Entretanto Jong-un terá ganhado alguma experiência nos últimos dois anos. Em 2010 Jong-un terá sido nomeado general de quatro estrelas e vice-presidente da Comissão Militar central do Partido dos Trabalhadores. Também começou a acompanhar o pai, de forma regular, nas suas viagens de comboio pelo país, avança a Associated Press. Os dois terão chegado a viajar até à China, em Agosto do ano passado, onde se terão encontrado com o Presidente chinês, Hu Jintao. Nessa ocasião Kim Jong-il terá pedido apoio diplomático e financeiro para o seu sucessor. Permanece por avaliar como é que as elites do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte irão reagir a esta sucessão. No escândalo dos e-mails da diplomacia americana que a WikiLeaks divulgou recentemente a Coreia do Sul alertava para a possibilidade de poder haver alguma instabilidade no vizinho do norte resultante da subida ao poder do inexperiente filho mais novo do “Querido Líder”. Por esta altura os 24 milhões de norte-coreanos já se começaram a congregar em torno da figura de Kim Jong-un. Notícia actualizada às 10h40
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Palavras-chave filho mulheres chinês
"É o momento do Brasil despertar para a importância de Portugal"
O novo Espaço Brasil na Lx Factory, em Alcântara, pretende ser o centro cultural das artes contemporâneas daquele país em Lisboa e é considerado pela ministra da Cultura brasileira, Marta Suplicy, que está na capital até segunda-feira, como "um legado do Brasil a Portugal", na medida em que é "bastante sofisticado e contemporâneo". (...)

"É o momento do Brasil despertar para a importância de Portugal"
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-11-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: O novo Espaço Brasil na Lx Factory, em Alcântara, pretende ser o centro cultural das artes contemporâneas daquele país em Lisboa e é considerado pela ministra da Cultura brasileira, Marta Suplicy, que está na capital até segunda-feira, como "um legado do Brasil a Portugal", na medida em que é "bastante sofisticado e contemporâneo".
TEXTO: Este espaço de 1200 metros quadrados - um armazém restaurado por Aby Cohen e com decoração do jovem artista plástico brasileiro Derlon - tem uma sala de espectáculos (com 400 lugares sentados e 900 de pé), uma galeria de arte, um bar chamado Brasileirinho, uma área para gastronomia e ainda um cineclube (de 40 lugares que abrirá mais tarde), e vai ficar para além deste Ano do Brasil em Portugal, que termina a 10 de Junho de 2013. Os brasileiros querem que ele seja um ponto de encontro com a sua cultura e será inaugurado por Marta Suplicy às 20h. Para já, a promessa é que ficará para lá de 2013. Numa conferência de imprensa ontem, em Lisboa, em que participaram também o embaixador brasileiro Mário Vilalva e o comissário-geral do Ano do Brasil em Portugal, Antonio Grassi, a ministra, que está no cargo há 50 dias, afirmou que os dois países têm "ainda um caminho a percorrer" e que esta celebração é uma possibilidade de "afivelarmos os nossos laços e nos aproximarmos não só na cultura, mas empresarialmente e tecnologicamente". O Espaço Brasil vai ter uma programação que saia de fora do eixo Rio-São Paulo, que é o Brasil que os portugueses conhecem através das telenovelas. O espaço teve um investimento de 1, 6 milhões de euros, patrocinados pela empresa Embratur, um braço do Ministério do Turismo brasileiro. Hoje à noite, será inaugurada a exposição O Brasil na Arte Popular - acervo do Museu Casa do Pontal e haverá também um concerto da fadista Mariza e o espectáculo Baile do Simonal, concebido e produzido por Max de Castro e Wilson Simoninha, filhos do famoso cantor dos anos 1960 Wilson Simonal. Já há programação até meados de 2013, mas o comissariado vai estudar qual a melhor forma de dar continuidade para que passe a ser um novo espaço para apresentações artísticas em Lisboa, já que tem uma dimensão média, com características diferentes das salas que já existem na capital. "O futuro da utilização do espaço vai depender também da programação que se vai desenvolver", explicou Antonio Grassi. O acordo de ocupação está assinado até ao final do próximo ano, acrescentou o comissário. Este é o momento"Portugal vive um momento diferente do que nós vivemos", disse a ministra da Cultura, lembrando que partilhamos a mesma língua e, por isso, o nosso "grande parceiro é o Brasil". O investimento que o Brasil está a fazer neste Ano do Brasil em Portugal é que "nunca tinha sido feito deste porte na área da Cultura". E, para Marta Suplicy, "o Brasil ainda não despertou na sua importância com a parceria com Portugal em outras áreas que não as culturais" e "este é o momento". "Outros parceiros estão surgindo em Portugal, mas a companhia de energia foi comprada por chineses, e eu acredito que este é o momento que o Brasil poderia estar mais presente na economia portuguesa. O sector empresarial brasileiro ainda não acordou e não percebeu a importância de o Brasil estar nessa jornada. É um momento único. O que eu puder contribuir para isso, eu farei. "Nesta sua primeira visita oficial será recebida pelo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e visitará museus, o atelier de Joana Vasconcelos e as Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha. Apesar dos laços que existem entre os dois países, para a ministra, no mundo moderno, Brasil e Portugal não se conhecem tão bem. E essa é a grande oportunidade para ambos experimentarem o que há de mais contemporâneo nas suas culturas.
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Queremos viver sozinhos
Viver só não é necessariamente sinónimo de solidão. Pode ser uma escolha, uma descoberta ou uma libertação. (...)

Queremos viver sozinhos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2012-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Viver só não é necessariamente sinónimo de solidão. Pode ser uma escolha, uma descoberta ou uma libertação.
TEXTO: Dentro do número de famílias de uma só pessoa em Portugal - que triplicou desde 1960 e aumentou 37, 3% nos últimos dez anos - há histórias de quem gosta de ter um espaço só para siA vizinha do lado bate-lhe à porta todos os dias pouco depois das sete da manhã. Não é sequer preciso abrir: basta dar sinais de vida, gritar que já está acordada e cada uma segue o seu dia. A essa hora, normalmente, a música até já está "a trabalhar bem alto" em casa de Nazaré Silva, como conta, um dia antes de fazer 83 anos. O ritual entre as duas vizinhas repete-se durante a semana, por vezes com variações. Há um tempo encontrou um papel no corredor, que tinha entrado por baixo da porta: "Nazaré, vou tomar banho", era o que estava escrito. "Depois fui ver dela e até dei o papel de volta para não ter de gastar outro. " Ambas vivem sozinhas no centro de Lisboa, uma no lado esquerdo, outra no lado direito de um andar num prédio de quase cem anos. "Solidão" não é palavra que se sobreponha aos dias de Nazaré. Pelo menos agora: vive-os com o orgulho de ter aprendido a estar sozinha e preza a autonomia com que gere o tempo. Esse tempo passou a estar mais livre desde que se reformou, como recepcionista num consultório médico, e já tinha 76 anos. Por insistência da família, inscreveu-se nas actividades da Junta de Freguesia. "Há lá velhotas assim com a minha idade. Todos os dias, à tarde, há aulas diferentes. À terça-feira é [tapetes de] arraiolos, à quinta é ginástica, depois os computadores. Também há 'chicongo ioga' [Chi Kung]. " Conta como foi dando mais liberdade aos dias: "Dantes", depois das aulas, ia para casa. "Agora vou ao cinema. Tenho um grupo muito engraçado, às vezes vamos para o café, conversamos, elas bebem umas cervejas, eu não. Antes de ontem até fui jantar fora ao chinês. " Jantar fora já significa chegar a casa mais tarde, à uma e meia da manhã, depois de apanhar o último metro no centro de Lisboa. Foi o que também aconteceu no dia de Santo António, por ter fi cado a ver as marchas. "Eu nunca saía a essas horas. Agora, quando chego a casa, tenho de avisar as minhas filhas, que ficam à espera que eu lhes ligue. " A pausa nas aulas, trazida pelo Verão, levou Nazaré Silva para uma colónia de férias: praia durante a manhã, na Costa da Caparica, almoço no bar da praia, passeios à tarde. Ficava com o fi m do dia para tratar das compras e das limpezas da casa, tudo a seu cargo. "Corro tudo para fazer as compras, até vou ao Lidl do Sporting porque o autocarro pára em frente. E entretenho-me muito em casa, limpo é sempre o mesmo", ri. "Vejo televisão, faço renda. Às vezes, vou dormir à meia-noite porque vou à Internet. " É que as tecnologias também já não lhe são totalmente estranhas: usa telemóvel - ainda que diga deixá-lo por vezes esquecido na mala - e tem email e Facebook. As trajectórias e fases da vida de quem vive sozinho podem ser muito distintas. Rosário Mauritti, socióloga, investigadora no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-IUL) e autora do livro Viver Só, compara essas realidades. "Os idosos começam a viver sozinhos não por opção. E esse viver sozinho tem fases: um autofechamento e depois a descoberta da libertação", disse à revista 2. Nas mulheres, e nos casos decorrentes de viuvez, é uma "espécie de descoberta de que afi nal são capazes", sobretudo as que viveram muito tempo limitadas pelos pais ou pelos maridos. Nazaré vive ainda na mesma casa onde nasceu, casou e teve duas fi lhas. Ali, em momentos diferentes, já viveu com toda a família mais próxima. Para quem visita a casa, as fotografi as em molduras, penduradas nas paredes ou pousadas nas cómodas, dão a conhecer quem já lá passou: os pais, o irmão e o marido, nas fotografi as ainda a preto e branco; as duas filhas, os genros e os netos, nas que já são a cores. Perdeu a mãe cedo, tinha oito anos. "Agora até me rio com isso, mas, na altura, chorava e perguntava: e agora quem é que me vai coser as meias?" Para ajudar em casa, o pai arranjou uma empregada. "Chamava-se Margarida, o nome da minha mãe. Nunca me deixava andar sozinha, mas eu pedia-lhe: 'Deixa-me ir só do Arco do Cego à Estefânia. ' Uma vez lá deixou e eu fui descer a rua sozinha. " Aos 21 anos, deixou o pai nervoso quando lhe falou num namorado. "Ele estava estabelecido aqui na rua, era da drogaria. Achava-lhe graça, mas eu nunca andava sozinha. Um dia fui à drogaria com a minha prima. 'Oh senhor José, precisava de um bico para o fogareiro. ' E ele pediu-me em namoro. " Casaram e fi caram a viver em casa dela. Tiveram duas filhas, que ainda eram pequenas quando, aos 33 anos, ficou viúva, um ano depois da morte do pai. Foi aí que a vida deu uma volta: pela primeira vez estava por sua conta. "Fui trabalhar para um consultório aos 34 anos. Ia às cegas e chorava, nunca tinha trabalhado na minha vida. Fiquei lá 42 anos. " Não voltou a casar-se. "Segui o exemplo do meu pai e só me casei uma vez. " Mesmo assim, a presença das filhas, dos genros e dos três netos não a deixou sozinha em casa, até aos 81 anos, quando o último neto se mudou. "Houve um tempo em que me custou. Tinha sempre cá tido gente em casa e fi quei sozinha de repente. " Foi preciso adaptar-se. Mas, dois anos depois, a conversa é diferente. "Gosto muito da casa das minhas fi lhas, mas não há nada como a minha. Faço o que quero e me apetece. "O número de famílias de uma só pessoa aumentou 37, 3% nos últimos dez anos, de acordo com os dados provisórios dos Censos 2011. Entre 1960 e 2011, triplicou (de aproximadamente 254 mil famílias unipessoais para 868 mil), embora neste indicador estatístico também estejam incluídas pessoas independentes, sem grau de parentesco entre si, que partilham alojamento. Recuando a 1960, desce para 11 em 100 o número de famílias de uma só pessoa, contrastando com o peso das famílias de duas pessoas (20%) e de seis (17%). Hoje em dia, em cada 100 famílias portuguesas, 21 são constituídas por uma só pessoa, um número inferior ao das famílias de duas pessoas (32%), mas consideravelmente acima das famílias com mais de cinco (6%). Maria das Dores Guerreiro, socióloga e coordenadora pelo CIES-IUL do Observatório das Famílias e das Políticas de Família, destacou num artigo publicado na revista Sociologia, Problemas e Práticas, em 2003, os múltiplos trajectos sociais de quem vive sozinho. Sejam os idosos que enviuvaram, "os adultos que, por opção, ou não, permaneceram sós e que, podendo já ter vivido em casal, passaram por situações de ruptura conjugal", ou as novas gerações "em transição para a vida adulta". As diferentes realidades entre um idoso e um jovem a viver sozinhos resumem, em parte, aquilo que separa as histórias de Nazaré Silva e Susana Pires. Antes de fazer 25 anos (agora tem 27), Susana saiu de casa dos pais em Almada e mudou-se para Lisboa. Primeiro, por uma questão prática: viver perto dos sítios onde trabalha. Mas não era só isso. Já tinha acabado o curso em História, estava a fazer um mestrado em Teoria da Literatura e trabalhava no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian e como tradutora para duas editoras. "Queria muito ter o meu espaço para ler e escrever. Uma cabana para pensar. Ia poder fazer tudo o que nunca tinha conseguido fazer", lembra. "Mas tive medo que fosse uma ilusão, uma coisa romântica. " Começou por pensar em partilhar casa e acabou por comprar uma no centro histórico de Lisboa. "Vou estar a pagá-la aí durante uns 50 anos", ironiza. "Mas este é um espaço que é meu. Nada na forma como habito a minha casa é indiferente, há um valor afectivo nas coisas. Por exemplo, tenho aquela tendência, desde pequena, de deixar sempre o melhor para o fim. Por isso, deixei para o fim arrumar os livros nas prateleiras. " A mudança não lhe custou, até porque, diz, nunca teve problemas em estar sozinha, talvez por ser fi lha única. Teve de ir pedindo alguma ajuda à mãe, para escolher detergente ou o programa da máquina da roupa, para fazer a primeira sopa. E a casa - com dois gatos - passou a fazer parte do seu ritmo de vida. Opta por não ter televisão, da mesma forma que escolhe não cozinhar todos os dias ou que prefere perder uma hora de sono para poder ler todas as noites, porque sente que a leitura é uma parte central da sua identidade. Agora, admite que existe um risco. "Ganha-se a propriedade do espaço e não se quer abdicar disso. Gostar de viver sozinho faz com que se goste daquele espaço que é da nossa autoria e torna-nos mais intransigentes. Vai ser mais difícil viver com alguém", admite. Ainda que aos poucos a ideia lhe pareça mais possível. Num relacionamento anterior, ela e o namorado optaram por viver em casas separadas, cada um testando por si o que signifi cava viver só. E é aqui que sublinha como viver sozinha não signifi ca sentir-se sozinha. Pelo contrário, essa liberdade - ou o que a socióloga Rosário Mauritti defi ne como "a ausência de balizas quotidianas", a que a partilha de casa habitualmente obriga - faz com que os amigos sejam presença assídua na casa na Bica. "Adoro tê-los em casa. Não é a mesma coisa do que combinar um jantar fora. E aquela afectividade que tenho com os objectos faz com que eu goste de os ver usar os meus talheres ou até sujar a toalha. "Abrir a casa aos amigos é algo que Susana Pires tem em comum com Ricardo Santos, 29 anos. Receber quem quer em casa, sem dar explicações, é uma das formas como traduz a liberdade que sente. Mas há outras. "Se me apetece ir ao ginásio, andar de mota ou ler, é isso que faço. Outros dias, só quero silêncio, chegar a casa, fazer o jantar, deitar-me no sofá e ver fi lmes. " Só que viver sozinho também tem as suas exigências e uma delas é tratar da casa. "Sou eu que faço tudo, seja montar cortinados, cozinhar, o que seja, limpezas e tudo. " Ou quase tudo. "Só há uma coisa que já tentei fazer e não consigo: passar as camisas a ferro. Tenho um senhor que as vem buscar a casa. De resto, passo tudo. " Já tinha pensado em partilhar casa com amigos, mas não tinha sido mais do que uma ideia passageira. Quando saiu de casa dos pais, aos 27 anos, foi para viver com a namorada, com quem já tinha uma relação de oito anos. Era um plano a dois e todos os passos dados foram planeados ao milímetro. "O pensamento era esse: arrumarmos as nossas coisas e irmos à nossa vida. " Ambos trabalhavam e, por conselho dos pais, compraram uma casa de duas assoalhadas em Loures, perto do sítio onde cresceram. Planearam que um dos ordenados teria de ser sufi ciente para pagar as contas, "já para o caso de um de nós ficar desempregado" - uma das decisões a dois mais importantes que tomaram, diz. Viveram juntos dois anos, até que se separaram. De um momento para o outro, Ricardo viu-se sozinho como nunca tinha estado. A vida a dois tinha-se resumido a um só: ele próprio. "Não foi fácil. " Ter casa cheia é uma das coisas de que mais gosta, por isso houve momentos, como a hora do jantar, que se tornaram estranhos. Aprendeu a preenchê-los e construiu à sua volta um espaço do qual hoje não prescinde. "Fui percebendo que morar sozinho é uma sensação única e é bom ser nesta altura. "Trabalha como responsável logístico numa empresa de marketing e publicidade, o primeiro trabalho estável que teve. Consegue pagar as contas, mesmo que tenha "tudo muito mais contado" - pedir emprestado aos pais está fora de causa. Voltar a partilhar o seu espaço não está fora de causa (ainda que tenha de ser "muito bem pensado"). Não só pelos momentos em que lhe falta companhia, mas porque sustentar uma casa não é tarefa simples. Esta é uma das razões para não haver mais pessoas a viver sozinhas em Portugal, segundo Rosário Mauritti. "Portugal está na cauda da Europa neste fenómeno por termos menos dinheiro. " Com outras condições económicas, "haveria, entre jovens, sem dúvida, um maior número a viverem sozinhos". Olhando para outros países, e de acordo com um estudo da Euromonitor International, publicado este ano e citado pelo jornal britânico Guardian, o Reino Unido tem 34% das pessoas a viver sozinhas, e esse número aumenta quando se fala da Noruega (40%) e da Suécia (47%), que ocupa o topo. Bo Söderberg, investigador sueco do Institute for Housing and Urban Research (IBF), da Universidade de Uppsala, aponta várias razões para os números da Suécia. "Um padrão de vida mais elevado permite que se façam escolhas livres. Isto signifi ca que os jovens têm capacidade para fi car sozinhos por mais tempo. E as famílias também podem separar-se mais facilmente se não estão 'forçadas a estar juntas' por razões económicas", explicou, por email, à revista 2. A oferta de habitação, assegurada através de programas públicos desde 1960, também pode facilitar o aumento de famílias unipessoais. E ainda outro motivo: uma taxa de emprego semelhante entre homens e mulheres. "Isto signifi ca que, economicamente, as mulheres são tão independentes quanto os homens. Elas podem escolher onde viver, como viver e com quem viver. Por isso, o número de pessoas a viver sozinhas pode de alguma forma ser maior do que em países onde as mulheres não têm uma taxa de emprego tão elevada. " O investigador resume a tendência na Suécia: "Viver sozinho é, para muitas pessoas, um bem que tende a ser preferido, se o puderem pagar. Viver com mais gente é, para muitos, um problema a suportar quando não se pode comprar a alternativa preferida. " Também Ulla Björnberg, professora e investigadora em Sociologia na Universidade de Gotemburgo, sublinhou o facto de a independência individual ter efeito nas políticas sociais, já que "a partir dos 18 anos é esperado que as pessoas se sustentem a si próprias", como explicou à 2. Nos Estados Unidos, com cerca de 27% das pessoas a viver sozinhas, o livro do sociólogo americano Eric Klinenberg, Going Solo: The Extraordinary Rise and Surprising Appeal of Living Alone, lançado no início deste ano, veio alimentar o tema. Klinenberg analisou o impacto que o número de americanos a viver sozinhos tem na política ou na cultura. Contrariando a ideia de que este número representa necessariamente um aumento da solidão, o sociólogo defende que estas pessoas tendem a estar mais envolvidas social e civicamente, menos limitadas e com maior hipótese de escolha de companhia. Em Portugal, a conversa muda quando a idade avança. Aos 37 anos, viver sozinho levanta outras questões. "Acho que a sociedade, quando vê uma pessoa que viva sozinha com a minha idade, pensa que ou é maluca ou tem algum problema", diz Márcia Mendes. São muitos os amigos, da sua geração, a viver sozinhos, portanto não são eles que perguntam por que razão não se casa. Mas há quem o faça. "Viver sozinho deve ser respeitado como uma opção", considera. "Se acontecer conhecer alguém, isso pode mudar, mas não é uma coisa que me preocupe. " Começou a viver só aos 25 anos, ainda que antes já tivesse partilhado alojamento com três primas, quando veio de Leiria para a universidade. A sua primeira casa foi "um telhado em Lisboa", com 30m2, cuja inauguração durou quase seis meses, "com jantares todas as semanas". Estava licenciada em Linguística e já tinha começado a trabalhar. "Não levei muito tempo a tomar a decisão de viver sozinha. Era algo que eu queria, precisava do meu espaço, das coisas escolhidas por mim, de poder pendurar quadros nas paredes. Quando escolhi a casa, disse: 'Então vai ser este o meu primeiro espaço. É isto'. " Escolheu dedicar-se por inteiro ao trabalho, passando muito tempo fora do país. O seu estilo de vida, explica, criou a necessidade de ter um porto de abrigo. "Tornamonos mais exigentes. Vamos criando hábitos e rotinas, deixamos de estar disponíveis para partilhar. " Dentro de uma relação, nunca dividiu casa, e quando acontecer terá de ser necessariamente numa fase mais avançada de um relacionamento, "quando houver muita cumplicidade". Gosta de jantar à frente da televisão, até porque normalmente o almoço é partilhado no trabalho com as colegas. Há outras coisas de que não abdica de fazer sozinha, como ir ao supermercado ou até à praia; com os amigos há as idas ao teatro, ao cinema ou a um concerto. Eles são parte da rotina e, por isso, quando há seis anos escolheu mudar para uma casa maior, tinha um requisito: uma sala enorme. "Sou muito sociável e só estou sozinha quando quero. Fazem-me falta as pessoas. " Lados negativos? "Às vezes custa-me não ter ninguém com quem comentar um filme ou uma música", responde. "Mas, ao mesmo tempo, se me apetecer chorar desalmadamente, também o posso fazer à vontade. " Ainda que há mais de dez anos não partilhe casa, não pára muitas vezes para pensar no assunto. "Sei que não tenho filhos e que não tenho muita família. Se continuar solteira e não conseguir viver com pessoas à minha volta, deixo a cidade e vou para a aldeia dos meus pais. " Até porque há uma coisa de que não é capaz: viver isolada. "A solidão deve ser uma coisa horrível. "É uma das diferenças que Rosário Mauritti refere. Viver sozinho não é sinónimo de ser solitário ou estar isolado. "Frequentemente, é o inverso que acontece", escreve a investigadora no livro. "A possibilidade de escolha por uma vida independente acaba por promover uma intensificação dos laços e das trocas que se estabelecem na intimidade. " Também João Bessa, psiquiatra e investigador da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho, destaca o peso que a personalidade tem na forma como uma pessoa, independentemente da idade, lida com ideia de viver sozinha. "Os traços de personalidade podem ser um factor facilitador", explica à revista 2, sublinhando ser essa uma variável importante quando está em causa a forma como são estabelecidos os laços sociais, baseados numa maior ou menor dependência na relação com os outros. Ainda que, sobretudo na população idosa, "a perda de familiares ou o isolamento sejam factores que predispõem ao desenvolvimento de estados depressivos", é essencial não generalizar a ideia de que viver sozinho é uma causa de depressão, considera João Bessa. A socióloga Rosário Mauritti vai mais longe: "Qualquer um pode sofrer de solidão mesmo estando envolvido em relações de conjugalidade ou parentalidade ou no seio de amigos. " Foi esse sentimento, em parte, que levou Jorge Romão a mudar de rumo. "Divorciei-me com a esperança de ser algo mais do que fui no meu casamento", conta, aos 41 anos. Acha que há um egoísmo maior do que o de querer viver sozinho: o egoísmo de querer uma família por ter medo de ficar sozinho. E apesar de todas as dúvidas, os últimos cinco anos sem partilhar casa foram tempo para muitas descobertas. "Uma grande conclusão: passar a ferro é uma actividade muito interessante, dá para pensar e tomar decisões. " Ter sucesso num jantar preparado para amigos ou concluir que afinal é capaz de fazer tudo em casa são momentos especiais. Considerase um dono de casa, "e sem aspas, porque o sou mesmo". É que até aos 31 anos viveu com a mãe e as irmãs, e "pouco fazia em casa". Namorou oito anos e casou-se, adaptando-se a uma vida a dois. Só que, cinco anos depois, tomou a decisão que já há tempo andava a crescer dentro dele: terminou o casamento e foi viver sozinho. Nunca tinha acontecido, embora desde muito novo procurasse tempos e espaços para si próprio. "'Tu gostas muito de estar sozinho', diziam-me os meus amigos, quando era mais novo. " Hoje, Jorge vive numa luta entre, por um lado, querer estar sozinho e achar que não são suficientes os momentos que tem para si próprio, e, por outro, vir a partilhar a vida com alguém. A vontade maior? Ter um filho. Portanto, o que conclui é que, excepto quando pensa no que ainda lhe falta viver, gosta de estar só. "Tenho necessidade de períodos de tempo só para mim, para poder fazer o que é diferente quando se vive com alguém, como ler ou escrever, deitar-me a horas mais tardias, levantar-me às horas que quero. " A casa onde vive, que vê como uma "habitação individual", pensada para si, é um espaço que não se imagina a partilhar. Refazer a vida e deixar alguém entrar nesse espaço terá de acontecer noutra casa, não naquela. Quanto aos amigos, recebe-os quando quer, e alguns deles, casados, dizem-lhe invejar a vida e a liberdade que ele tem. "Esta é uma boa fase da minha vida. Se calhar, um dia, virei a achá-la melhor ainda do que a vejo agora. " Rosário Mauritti conclui que a sociedade já não vê de forma negativa quem vive sozinho. Até porque, como escreve no livro, "se é verdade que ao longo de toda a vida adulta os indivíduos tendem a passar com maior frequência por experiências de residência unipessoal, isto não significa que estejam a ficar mais solitários ou que estejam a perder os laços de afinidade e de partilha na família e nas relações amicais". Há o desejo de ter um espaço e um tempo não partilhados, embora nesse espaço também exista tempo para dúvidas e receios, seja aos 27 ou aos 83 anos. Susana conta que, no prédio em frente, vê todos os dias, de manhã à noite, uma senhora em casa, sentada ao pé da janela. "É muito velhinha, tem mais de 90 anos e passa os dias ali à janela a ler. Lê os jornais que o meu vizinho lhe leva, de uma ponta à outra, e depois passa o resto do dia a ler livros. Parece o negativo da minha vida. " Jorge optou por escrever as suas "aventuras" a viver sozinho. Já Ricardo conclui que a mudança o fez aprender. "Gosto mais de mim mesmo. " Nazaré Silva, para quem o último aniversário foi um dos dias mais felizes que já teve, confessa, sentada no cadeirão da sala e rodeada pelas fotografias dos casamentos dos netos, qual o seu próximo desejo. "Quando vier o Totoloto, compro uma casa no campo. "Esta reportagem foi publicada na Revista 2 a 2 de Setembro de 2012
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE