Foto de casal gay na Rússia dá World Press Photo a fotógrafo dinamarquês
Imagem faz parte de um projecto maior de Mads Nissen, que quer mostrar ao mundo como é difícil ser gay num país como a Rússia. (...)

Foto de casal gay na Rússia dá World Press Photo a fotógrafo dinamarquês
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 16 | Sentimento 0.416
DATA: 2015-02-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: Imagem faz parte de um projecto maior de Mads Nissen, que quer mostrar ao mundo como é difícil ser gay num país como a Rússia.
TEXTO: O fotógrafo dinamarquês Mads Nissen venceu a 58. ª edição do World Press Photo, o mais importante concurso de fotojornalismo do mundo, com o retrato de um momento de intimidade entre Jon e Alex, um casal homossexual. A imagem foi tirada em São Petersburgo, na Rússia. É como se estivéssemos ali com aquele casal. Naquele quarto, à luz média. A imagem íntima premiada pelo júri do World Press Photo faz parte de um projecto maior de Mads Nissen chamado Homofobia na Rússia, que quer mostrar ao mundo como pode ser muito difícil ser gay num país como a Rússia, onde as minorias sexuais são perseguidas. Mads Nissen, que trabalha para o diário dinamarquês Politiken, vê nesta fotografia, tirada em São Petersburgo, “a história moderna do Romeu e Julieta”: são duas pessoas que se amam mas que todos os dias têm de lutar por esse amor num país preconceituoso que não aceita a diferença. São duas pessoas que se amam entre quatro paredes e de cortinas fechadas. A fotografia de Mads Nissen venceu também o primeiro prémio da categoria de Temas Contemporâneos. “É um tempo histórico para esta imagem, a imagem vencedora tem de ser estética, ter impacto e ter o potencial de se tornar um ícone. Esta foto é esteticamente poderosa e tem humanidade”, escreveu em comunicado a presidente do júri, Michele McNally, directora de fotografia e editora assistente do New York Times. Na Rússia, a comunidade LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros] é discriminada tanto social como legalmente, e é ainda vítima de ataques de ódio de grupos nacionalistas e religiosos. Há mais de 20 anos que a homossexualidade deixou de ser crime neste país, no entanto, as minorias sexuais vivem num clima de insegurança e de impunidade. “Hoje em dia, os terroristas usam imagens gráficas para propaganda. Temos de responder com alguma coisa mais subtil, intensa e que nos faça pensar. Estávamos à procura de uma imagem que fizesse a diferença amanhã e não apenas hoje”, escreve Pamela Chen, membro do júri e directora editorial do Instagram. “Esta é uma questão contemporânea, é a vida quotidiana, é notícia”, destaca ainda. Para a editora da Vogue Itália, Alessia Glaviano, a imagem premiada mostra como o amor pode ser a resposta no contexto actual do mundo. “É sobre o amor como um tema global, de uma forma que transcende a homossexualidade”, defendeu a jurada. “Manda uma mensagem forte ao mundo, não é só sobre a homossexualidade mas sobre a igualdade, sobre o género, sobre ser preto ou branco, sobre todas as questões relacionadas com minorias. ”Mads Nissen esteve dois anos na Rússia a desenvolver este projecto. Foi testemunha da violência que qualquer casal homossexual enfrenta em plena rua. O dinamarquês já tinha feito algo semelhante quando passou dois anos em Xangai a documentar as repercussões sociais e humanas do crescimento económico chinês. Os prémios, atribuídos pela fundação homónima com sede em Amesterdão desde 1955, distribuem-se por oito categorias em que são distinguidos os três primeiros prémios. À edição deste ano, foram submetidas 97. 912 imagens de 5692 fotógrafos de 131 países. No final, foram premiados 42 fotógrafos de 17 nacionalidades: Austrália, Bangladesh, Bélgica, China, Dinamarca, Eritreia, França, Alemanha, Irão, Irlanda, Itália, Polónia, Rússia, Suécia, Turquia, Reino Unido e Estados Unidos. O vencedor recebe 10 mil euros de prémio, além de uma máquina e um conjunto de lentes, e os distinguidos com os primeiros prémios em cada categoria recebem 1500 euros. A epidemia do ébola, o conflito na Ucrânia e a tragédia do MH17, cuja queda em Julho no Leste do país provocou 298 mortos, e a Guerra de Gaza foram alguns dos acontecimentos que marcaram 2014. Todos estes acontecimentos estão representados no prémio mas Donald Weber, fotógrafo canadiano que integrou o júri, diz que é importante que Mads Nissen tenha vencido “porque não faz falta ir à guerra para vencer o World Press Photo”. “Também há formas subtis de documentar assuntos completos, e a homofobia é um problema grave na Rússia. ”A categoria mais disputada é habitualmente a de notícias, na qual a organização do prémio divide entre locais e gerais. Este ano, o fotógrafo da AFP Bulent Kilic, que já tinha sido considerado fotógrafo do ano 2014 pela Time ou pelo Guardian, venceu o primeiro e o terceiro lugar na categoria individual de Spot News (Notícias locais) com imagens da Turquia. Na fotografia que valeu a Bulent Kilic o primeiro prémio vemos uma menina que ficou ferida no funeral de Berkin Elvan, o adolescente turco que morreu 269 dias depois de ter sido atingido na cabeça por uma granada de gás lacrimogéneo disparada pela polícia durante os protestos de Junho em Istambul. O funeral de Elvan tornou-se uma das maiores manifestações em Istambul contra o Governo de Erdogan.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime guerra violência comunidade adolescente social igualdade género chinês homossexual gay lgbt homofobia
O artesanato de hoje com as técnicas de há 100 anos
Se há cem anos andássemos por estas regiões à volta de Fátima, percorrendo serras, aldeias ou cidades, encontraríamos oleiros, latoeiros, tecelões... Fomos à procura deles. (...)

O artesanato de hoje com as técnicas de há 100 anos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Se há cem anos andássemos por estas regiões à volta de Fátima, percorrendo serras, aldeias ou cidades, encontraríamos oleiros, latoeiros, tecelões... Fomos à procura deles.
TEXTO: Mil novecentos e dezassete, o ano do “milagre de Fátima”. Entramos em qualquer casa e facilmente encontramos tecedeiras a urdir teias, oleiros a moldar barro, latoeiros a dobrar a chapa, canteiros a recortar pedra, mulheres e homens a fazer cestos. Dois mil e dezassete: o tempo passou por aqui. As pessoas ocupam-se de tarefas que há um século não seriam imagináveis. Excepto. . . Vitória. O pai era “o Tóino da Vitória”, o nome da avó; ela ficou com Vitória agarrado a Esperança, a sobrinha chama-se Vitória também. “Há uma linhagem de Vitórias”, por isso, que outro nome se daria à sua marca? Modernizou e acrescentou um “c”. Nas etiquetas dos produtos lê-se “Victória” e “hand made” em letras mais pequenas. Quando se entra na sua oficina em Porto de Mós, a dar para a estrada, há um tear gigantesco a ocupar a maior parte do espaço. As cestas de junco são todas feitos aqui. A máquina de costura que está a um canto serve apenas para os acessórios. “O meu pai aprendeu quando era miúdo. Eu aprendi com ele, a minha irmã e a minha mãe também. Durante uma série de anos todos trabalhávamos nisto”. Vitória, Esperança Vitória, tem agora 41 anos mas nem sabe que idade tinha quando começou a tecer. Subia para cima de um tijolo para conseguir chegar ao tear e lá ficava num dos cantos. “Sempre soube fazer. As minhas férias da escola eram a fazer”. Com a irmã, Carla, aconteceu o mesmo — “acho que já nasci num tear”. Vitória tem as mãos da cor do trabalho que está a elaborar, ora avermelhadas, ora esverdeadas, e um calo bem no meio da palma da mão que vem de miúda, “por causa do pente”. Tem outros mais pequenos em vários dedos. Mas não os trocava por nada. Acredita que é a única mulher em Portugal a pôr as asas de vime nas cestas (apesar de, nesta zona, se usarem as de junco), porque é um trabalho que exige muita força de pulso. Se antes era “cada casa, cada tear”, nos anos 1990, com o aparecimento das fábricas de loiça e moldes a ocuparem a população, o objecto começou a tornar-se uma raridade. “Em Porto de Mós só há uma meia dúzia a fazer. . . O trabalho é muito árduo. O que manteve isto vivo foi servir de complemento de reforma das senhoras velhotas”. A própria Vitória esteve alguns anos afastada das cestas, a trabalhar num lar de idosos. Regressou com um “empurrão” do marido, Paulo Jerónimo, para continuar a tarefa. “O meu pai era exigente. As suas cestas eram conhecidas como as mais bem feitas da aldeia. Ele dizia que reconhecia uma cesta sua em qualquer sítio!” A filha não quer fazer pior, mas não as faz exactamente iguais. “Pegámos na cesta tradicional e tirámos do contexto rural para lhe dar um contexto mais urbano”. Aos seus conhecimentos do tear acrescentou os conhecimentos de alguém que sabe trabalhar o couro, e as cestas têm agora alças e fivelas. “As pessoas começaram a perceber que tinham de recuperar algumas tradições, mas com novidades”. Aqui na oficina trabalha quase a família inteira, incluindo a filha que quer ser designer e trata dos catálogos e do site; incluindo Vitória, a sobrinha, que está num curso técnico de serviços jurídicos, mas o que quer mesmo é ficar a tecer com a tia e a mãe. “Aqui com a família vai melhor”, diz, enquanto tira a espiga ao junco seco. Começou com os cantos das cestas, e se calhar no Verão já conseguirá “fazer qualquer coisinha”. Produzem cerca de 250 peças por mês — na véspera da nossa visita tinham enviado 50 cestas para Madrid; no próprio dia estavam a começar a dar resposta a uma encomenda de 30 para a Coreia do Sul (também as vendem para a Austrália, Brasil e vários países da Europa). “O nosso problema é o stock: há pouco. Vamos tentando dar resposta”. Não é fácil, já que cada uma leva, em média, oito horas de trabalho, desde o corte do junco (na ria de Aveiro) até ao acabamento final — e são eles que tomam conta de toda a cadeia, do início ao fim. Vamos por partes, explicadas entre Vitória e o marido:Primeiro apanha-se o junco, em terrenos alagadiços (a campanha vai de finais de Maio a Julho). Depois, aproveitando o Verão, seca-se ao ar livre, espalhando-o em terrenos planos, durante duas ou três semanas. Fica armazenado em molhos, “cada molho é a braçada de um homem — uns 60 centímetros de diâmetro”. Estes são por sua vez separados em “mãos”, uns molhos mais pequeninos, e as “mãos” são levadas para uma arca a enxofrar, onde ganham o tom de pedra, “porque o gás libertado pelo enxofre a arder aclara o junco”. De seguida, escolhem-se as palhas por tons: “as escuras serão tingidas numa tina com água a ferver e anilinas, as tintas em pó que já o meu pai usava”. Quando estão secas já podem ir para o tear. “Este tem oito metros de esteira”, e dá para ter três pessoas a trabalhar ao mesmo tempo. Na aldeia de Castanheira, a 12 quilómetros daqui, de onde é a família, “há uma grande tradição de cestaria. Cada família dedicava-se a uma das etapas. Havia o comerciante que vendia o junco pelas pessoas que tinham teares e depois vendia-lhes as cestas nas feiras. O meu pai saiu da rede porque fazia o processo todo”. Tradicionalmente, há quatro cores vulgares — vermelho, verde, violeta e amarelo. “São as quatro cores com que o meu pai trabalhou sempre”. Elas aqui estão, nos cestos Victória. Também há padrões tradicionais que são utilizados, mas uma coisa tão simples como usar o padrão em toda a cesta, em vez de lhe deixar um espaço vazio no fundo como se fazia antes, pode mudar tudo. Vitória explica onde está a fonte da inspiração: “É o leque de memórias que temos e a criatividade a trabalhar — dão possibilidades infinitas”. As cestas mais tradicionais são as que recebem mais “likes” no Facebook — “é a nostalgia”. Mas as que se vendem mais são “as mais contemporâneas”. “Eu própria não me vejo a usar a cesta tradicional”. Há amadores que sabem tanto ou mais do que profissionais. José Travaços Santos é muito mais do que um etnógrafo amador e até tem alguns livros publicados. Está certo que não estudou na faculdade e a sua profissão era dar apoio aos reclusos nas prisões, como técnico de orientação escolar e social. Mas perguntem-lhe o que quer que seja sobre o artesanato regional que logo se revela um saber enciclopédico alimentado ao longo de 86 anos. Não é sem algum pesar que Travaços Santos afirma: “O artesanato hoje deixou de ser utilitário: aquelas peças que se faziam para utilidade das pessoas, nas casas, deixaram de ser feitas. As pessoas agora têm outros hábitos. . . Hoje fabrica-se para inglês ver, com efeitos turísticos”. Uma perda de tempo? Não. “Tem interesse na mesma, porque corresponde a uma forma de cultura do nosso povo. Porque é que utilizavam aqueles materiais? Porque eram feitos com aquelas formas? Há com certeza influência de outras civilizações, temos muitas coisas que herdámos dos romanos, dos árabes. . . ”, adianta Travaços no pátio da Casa da Madalena, uma casa-museu criada pelo Rancho Folclórico Rosas do Lena, em Rebolaria (a poucos quilómetros da Batalha), onde se pode ficar a saber como era a vida no início do século passado. A zona tem “artesanato específico”, como o bracejo, típico da freguesia da Ilha (Pombal), e que segundo alguns documentos começou por ser usado em cofos e alcofas de duas asas. Foi nos anos 1930 que estas fibras vegetais começaram a ser usadas noutros objectos, como capachos. Há casos de práticas mesmo já enterradas, como aconteceu com os trabalhos em azeviche, “um carvão mineral, muito negro e luzidio — diz-se ‘é negro de azeviche’, vem daí”. Fazia-se com ele objectos de adorno — colares, anéis, pulseiras, brincos, as contas dos rosários e dos terços — que as mulheres usavam para substituir o ouro durante o luto. “Normalmente pessoas de posses, porque não seria muito barato”, adianta Travaços Santos. “No princípio do século XIX, os ferreiros começaram a utilizar o azeviche nas forjas e desapareceu por completo”. O trabalho de cantaria que esteve envolvido na construção do mosteiro da Batalha também trouxe a tradição à região, que chegou a estar cheia de canteiros. “Os antigos canteiros serviam-se das peças em calcário, a mesma do mosteiro, para ganhar mais algum dinheiro e começavam a vender a quem visitava a Batalha”, afirma. Mas quando recentemente foi preciso restaurar a cerca de pedra, com as suas flores-de-lis bem recortadas, praticamente não havia a quem recorrer. Não fosse António Moreira e a sua empresa Gárgula Gótica seria realmente difícil dar conta da empreitada. “Dentro do mosteiro havia uma escola de cantaria que fechou, há três anos. Era a única em Portugal onde se aprendia a arte da cantaria. Os canteiros estão em vias de extinção”, diz António Moreira, que aos 44 anos se pode orgulhar de ser um dos poucos canteiros sobreviventes. À conta disso, é chamado para dar formação no Brasil, Cabo-Verde, República Dominicana. . . “O que fazemos é a parte técnica da cantaria; a parte artística é do escultor”, explica. “Nós reproduzimos em pedra. Não fizemos estudos de anatomia, como fizeram os escultores”. Neste momento, está a restaurar o Senhor do Padrão de Matosinhos, com os seus quatro apóstolos (São Marcos, São Mateus, São Lucas e São João). “As peças estavam danificadas e estamos a fazer novas”. Primeiro, faz-se um modelo à escala em barro, depois em gesso e só então se passa para a pedra. “Usamos uma máquina exactamente igual à que usava Michelangelo”, no século XVI. Tem uma cruzeta em madeira com um ponteiro que assinala no modelo os pontos chave, e quando a máquina é transferida para o bloco de pedra, o ponteiro indica exactamente onde se deve esculpir e que quantidade de pedra retirar. Caixas, armários, cabos de electricidade, o rádio, os cabelos do trabalhador que está à volta do apóstolo — tudo está totalmente coberto de um pó branco fininho. Vivem aqui a tempo inteiro São Pedro, Nuno Álvares, Infante D. Henrique, o Sagrado Coração de Jesus, ou uma caveira gigantesca (os moldes em gesso, porque os originais foram entregues aos clientes). Está também o molde do gato de três metros feito em mármore pele de tigre, de Vila Viçosa, que foi encomendado pelos designers americanos Haas Brothers e que foi parar a casa do actor Leonardo DiCaprio. “Querem peças totalmente feitas à mão. Esse é o critério”. Outra espécie em vias de extinção: os latoeiros. José Marques, de 73 anos, está à volta de duas grandes latas para resina, de 40 litros cada, quando entramos na sua oficina, na Batalha. Rapidamente larga tudo para ir buscar baldes e baldinhos, candeias de vários tamanhos (“faço meia dúzia de uma vez porque não paga fazer só um”), uma enxofradeira (“para as primeiras parras da uva”), um funil, pás, um mata-frangos. . . “É o que o artista faz”, diz orgulhoso. O artista dedicou uma vida inteira a isto. “Fiz a quarta classe — é o que era naquela altura — e depois fui trabalhar”. Aprendeu tudo com um único mestre, Joaquim Félix. Agora, não tem a quem passar. “Tenho tido aí malta, mas estão por pouco tempo. Mal se cortam nos dedos e aparece sangue põem-se a cavar. Tudo quer trabalhar mas é com botões”. Mostra a unha negra de uma martelada recente para provar que as dores não se vão todas com a experiência. “O pessoal hoje não quer grandes responsabilidades. Rapazes que andaram em serralheiros chegam cá e nem sabem soldar estanho”. Costuma comprar a chapa zincada nas Caldas da Rainha — “antes era a folha de Flandres, mais branca, mas despareceu quando entrou o inox no mercado e agora só se encontra para caixas de atum”. De resto, as mudanças foram poucas. As duas bigornas e as várias ferramentas que aqui vemos poderiam estar no mesmo lugar se entrássemos nesta oficina de beira de estrada quando José Marques era ainda um rapaz novo. “Está tudo igual, tudo manual. Aqui não há cá máquinas eléctricas”. Os seus clientes são sobretudo os agricultores da zona. Desistiu de ir ao mercado da Batalha, como fazia às segundas-feiras, e aos de Porto de Mós e Maceira. Não compensa. Ainda que seja o único latoeiro do distrito. “Havia muitas olarias e praticamente desapareceram todas”, adianta José Travaços Santos. “Também havia muita cestaria. Agora há umas curiosidades espalhadas pela região”. De produto popular, o artesanato “passou a ser um artigo de luxo. Hoje é vendido a preços muito razoáveis — não digo elevados, digo razoáveis, porque as pessoas que trabalham merecem receber isso. ” Para Travaços, há um obstáculo para além do preço: “As pessoas querem ser todas modernas: ‘ter uma coisa dessas em casa, não’. Muita coisa se tem estragado e deixado de usar por causa disso. ”Moderno ou antigo? Quando entramos no atelier de Marisa Almeida, em Leiria, ficamos sem saber. O tear é aquele que estava em casa de uma tia, com décadas de trabalho em cima. Mas o que usa para passar entre a trama já é toda uma outra história. Há fitas de todas as cores penduradas na parede, quase como se fossem cortinas. São restos de plásticos que já não são usados e que vão substituir o fio. No final, saem bolsas, carteiras ou mochilas que parecem feitas de um tecido fino, quase seda. “A matéria-prima não é nobre, mas todo o processo é muito lento”, afirma Marisa Almeida. “São dois dias para montar o tear, e no caso da mochila mais um dia e meio” para a tecer. E aqui já não está a contabilizar o tempo que leva a transformar um saco de um hipermercado, por exemplo, num conjunto de tirinhas, todas do mesmo tamanho. Marisa Almeida estudou comunicação empresarial e estava sem trabalho. Em casa da tia, na aldeia de Reguengo do Fetal, havia este tear com mais de 100 anos. “Não sabia trabalhar nele, mas experimentei. Só que depois a teia acabou e era preciso montar outra. Uma senhora da aldeia ensinou-me não só a montar a teia como a fazer desenhos”. E a partir daqui, foi pensar em formas de reduzir o desperdício. Para além dos sacos, também já usou borracha de tapetes de carros, ou restos de tecidos. “É só uma questão de cortar”. Há uma estrutura de madeira na parede para urdir a teia, que depois vai para o tear em forma de trança, para garantir que os fios não se embaraçam; e um a um, os fios são passados pelo pente. “A minha mãe vem ajudar a montar, porque é sempre preciso alguém para esticar os fios do outro lado”. Depois, é começar a passar as fitas de plástico de um lado para o outro. Gosta de forrar as bolsas com capulanas, “por causa da versatilidade das cores”. São objectos cuidados que resultam de horas e horas de trabalho. “Para fazer isto, tinha de ser uma coisa diferente e por isso escolhi a reciclagem de plástico”, diz. Criou depois a sua própria marca — Maria Descalça — e podemos encontrá-la na Organii Concept Store, no Lx Factory, ou no Hotel Oitavos, em Cascais. “Em Lisboa, as pessoas valorizam mais o trabalho. Aqui nem tanto”. E por isso o preço final “é sempre problemático”. “Mas todas as peças são únicas”, afirma. “As pessoas gostam dessa exclusividade. Só que para crescer, é preciso encontrar alguém e dar-lhe formação, e para já não tenho essa disponibilidade. ” Apesar de ser uma tradição regional, pouca gente sabe fazer. “As pessoas mais velhas já só fazem como hobby, ou para os netos”. Ou seja, este é para já “um trabalho muito solitário. Por isso tenho sempre música a tocar!”Também há música quando entramos no atelier de José Siphioni: Miles Davis. Para chegar a Alvados, entre Mira de Aire e Candeeiros, segue-se pela estrada paralela à linha da serra, com carvalhos e azinheiras em abundância. Em baixo o vale, onde fica a aldeia. Estamos aqui porque a técnica que Siphioni usa para cozer as suas peças de barro não tem 100 anos, tem 1000. O raku vem do Oriente, mas “é o oposto daquela cerâmica oriental delicada. Esta é mais tosca”. Tal como muita gente da região, José Siphioni, com 32 anos, achou que iria viver dos têxteis. Era programador das máquinas que fabricam camisolas, numa das muitas fábricas de Mira de Aire. Recuamos novamente a 1917. O historiador José Manuel Poças conta que nessa altura as pequenas aldeias viviam da produção agrícola, e “mantinham uma relação muito forte com Minde e Mira de Aire, que eram centros de produção de mantas” e outros lanifícios. Era às aldeias que iam buscar as lãs . Na década de 1930, os filhos desses agricultores começaram a deixar as suas casas — e terras — para ir trabalhar para as fábricas de lanifícios que se começavam a desenvolver. “Houve um decréscimo da produção artesanal”, sobretudo a relacionada com o trabalho agrícola. Para além disso, “começou também a desenvolver-se Fátima”, atraindo pessoas que pela primeira vez se dedicavam ao comércio (e aumentando a produção de artesanato religioso). Actualmente, as fábricas de lãs são já quase todas apenas esqueletos — foram sobretudo substituídas pelas dos moldes, que agora ocupam uma boa parte da população da região. Sem trabalho, Siphioni teve de começar a procurar alternativas. “Fui aprender isto por acidente”, afirma. “Isto” é a moldar o barro. Faz cerâmica artesanal — desde pequenas peças sobre personalidades da história de Portugal (que incluem reis, músicos, escritores — “o que eu mais gosto de fazer é o Saramago: dizia o que pensava e pensava no que dizia”), a figuras que juntam barro e lã, ou serviços de chá. Não lhe faltam clientes, espalhados por várias zonas do país. “Queria trabalhar perto da natureza, sem estar num espaço fechado”, conta Siphioni. “Vivo disto a tempo inteiro. Mas não é para enriquecer, é para ter um estilo de vida”. Siphioni começa por colocar água no ambientador que ele próprio fez: um pote em grés que tem no fundo um pouco de alfazema, apanhada aqui na serra. Depois, liga a roda. Sentamo-nos com um pedaço de barro nas mãos — como Siphioni organiza workshops, qualquer um pode tentar. Ao fim de muitas instruções para amassar, centrar e tornear, lá conseguimos formar uma pequena taça. “A roda requer muito treino, sobretudo a parte de centrar”, afirma. Quando estão secas, as peças são vidradas. “Antigamente, utilizavam sílica bruta que era moída, sobretudo na zona de Porto de Mós. Muitos alguidares e gamelas eram feitos em casa, para uso doméstico. Toda a gente sabia desenrascar”, conta. Junta-se água ao vidro em pó, mistura-se e fica um vidrado esbranquiçado. “Se se quiser cor, acrescenta-se óxidos de metais, como a ferrugem ou o cobre, que pode dar azuis, verdes, vermelhos. O oxigénio é que vai depois alterar as cores — isto no raku, porque no [forno] eléctrico é tudo homogéneo”. Está na hora de explicar: o raku é um cubo feito em fibra de cerâmica, com uma grade à volta e sem uma das faces. Será este o lado que assenta em tijolos refractários (para aguentar os seus 1000 graus). Introduzem-se as peças na base e acende-se o maçarico, ligado a uma botija de gás. “Este [serviço de bule e chávenas] só vai a 900 graus porque este vidro borbulha um bocadinho. À noite é mais giro porque a fibra de cerâmica fica incandescente”. Ao fim de meia hora, colocam-se folhas apanhadas aqui mesmo, no jardim e do lado de lá da cerca, dentro de um bidão. Com uma tenaz, retiram-se as peças do forno e põem-se no bidão, tapado. O calor das peças incendeia as folhas e o fumo libertado vai colori-las, entrando onde o vidrado não entrou. Aos poucos vamos observando como mudam de cor. Há outro método que às vezes usa: o forno de papel, próximo das técnicas usadas no Neolítico. Aproveita-se papel de jornal, barro, madeira e controla-se a temperatura através da entrada e saída de oxigénio (pode atingir os 1200 graus). Também tem um forno eléctrico em casa. Mas esse “não tem alma nenhuma”. Não muito longe dali, em Minde, encontramos Alzira Roque Gameiro, bisneta do pintor, que é também directora do museu que alberga uma vasta colecção de aguarelas. Mas não é para falar de pintura que aqui estamos. Vamos falar de mantas, vamos falar do “atazanar das menízias” (já explicaremos). O Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro (CAORG) nasceu em 1986 para garantir que o museu sobrevivia em Minde. Como? Envolvendo a população (que agora anda à volta dos três mil habitantes). “Não se faz uma casa sem paredes”, afirma Alzira Roque Gameiro. Neste caso, as paredes são o museu, claro, um conservatório de música, onde os antigos alunos já são professores (“os mindericos gostam muito de música”), uma escola de ballet e um atelier para revigorar as mantas de Minde. Alzira Roque Gameiro garante que nunca teceu nenhuma, mas sabe exactamente como se faz. Regra de ouro: não se pode ver a trama. Por isso, a manta de Minde tem de ser cardada, para ficar de pêlo levantado. “Pendura-se e carda-se de um lado e do outro. Só quando é muito bem trabalhada é que não é preciso. ” Para além disso, há “três coisas fundamentais: coordenação entre pés, braços e cabecinha”. Só são usadas aqui lãs 100% nacionais, vindas da Guarda. “E mantemos os padrões” — há amostras com 70 e 80 anos expostas na parede com vários deles, não vá alguém esquecer-se. Algumas têm ainda a marca: Necil “manta regional de luxo”, anuncia uma etiqueta. “A fábrica Necil tinha uns 20 teares a funcionar e fechou nos anos 70. Nessa altura, os teares desapareceram de Minde, [ficaram] zero. As lãs eram caras, era uma vida difícil. ”A um canto, está um manequim com uma saia e um corpete feitos para a Exposição de Bruxelas de 1958, onde as peças ganharam uma medalha de prata. A parte de trás do atelier (que tem venda ao público) é praticamente toda ocupada pelos três teares. “Muita gente dizia que não valia a pena as mantas, que estavam ligadas a uma camada baixa da população”. Mas Alzira Roque Gameiro foi para a frente com o projecto e agora as mantas podem ser consideradas um produto de luxo. “A primeira manta de Minde é a chamada manta preta, que não tem preto, só cores naturais (castanho e branco), sem tintas. Não é possível datá-la porque há poucos documentos escritos. Mas sabemos que há vários séculos, os soldados que vinham de todo o país e ficavam na fortaleza de Almeida tinham direito a uma manta de dois em dois anos. Nos anos 20, 30 do século XX aparece a manta parda, com barras de cor nas pontas, depois as finas, por serem mais trabalhadas e com padrões”, explica. “O padrão é feito segundo o modo de pôr a trama no tear. E nos teares de Minde, a trama é de fio escuro, castanho”. Que não se diga “fazer uma manta” porque aqui em Minde isso significa fazer-lhe a bainha. Para a fabricar de uma ponta a outra diz-se tecer. E se dissermos “Menízias do Ninhou” estamos a falar de quê? Estamos mesmo a falar de “mantas de Minde”. Há aqui uma variante linguística própria, o minderico. Terá começado a ser usado pelos comerciantes de mantas, que as vendiam em várias partes do país, para poderem discutir os negócios à frente de estranhos sem serem compreendidos. Aos poucos, o minderico foi-se alargando a outros grupos sociais. Alzira Roque Gameiro garante que, se for a Lisboa comprar um vestido com a prima, é certo que lhe perguntará em minderico se ele lhe assenta bem. “Toda a gente sabe. Mas se perguntar a alguém aí na rua se fala, vão dizer que não. Depois, viram costas e começam a falar. Às vezes nem sabem que os termos que usam são minderico. É uma língua intragável, não se percebe nada!”É assim que à entrada do atelier, por cima da porta, há um letreiro onde lê e entende quem sabe: “atazanar das menízias”, ou seja, tecer mantas. Também poderíamos perguntar “a menízia é cópia?”. Sim, a manta é boa. “O artesanato é o parente pobre das artes, cá em Portugal. É [considerado] uma arte menor”, afirma Graça Costa. Apesar de tudo, “está a mudar um bocadinho, com a crise do emprego. As pessoas tiveram que se virar para aquilo que sabem fazer ou foram aprendendo”. A conversa decorre numa antiga escola que Graça Costa converteu na Oficina das Artes em Vale da Perra, perto de Ourém. Esta é também a sua segunda vida. Veio de Maputo para Lisboa em 1971 para se formar em Economia e Tecnologias de Informação. Trabalhou anos a fio na IBM. “Mas aos 57 anos [tem agora 66] decidi reformar-me e disse: ‘É agora!’”Era tempo de se dedicar às artes que tinham sido a sua vocação de garota, mas que por insistência da mãe não tinha prosseguido. Vivia em Lisboa e juntou-se a um grupo de amigos para “um projecto de velhice: ‘Os filhos têm as suas vidas, não vão ter tempo para nós, vamo-nos juntar, construir um conjunto de casas, partilhar serviços’. Começámos à procura de terrenos. Arranjámos vários. Eu e o meu marido começámos a construir, depois os outros foram mudando de ideias e nós ficámos sozinhos! Agora não partilhamos coisa nenhuma, e tenho os filhos a reclamar que estamos muito longe e que se precisarmos de assistência eles não vão conseguir dar!”Foi em Ourém que aprendeu a tecer. “Apresentei um projecto para fazer formações para adultos e crianças, e a Câmara aceitou. Uma das formações foi a de tecelagem, e fiz. ” Agora, ela própria já dá formação, e não só em tecelagem como em feltragem ou cerâmica. “O objectivo [das oficinas] é despertar o interesse nas pessoas e proporcionar-lhes um espaço para poderem trabalhar. É difícil ter espaço em casa para isso: a cerâmica é uma coisa que suja muito e os apartamentos por vezes são pequeninos, [o mesmo com] a pintura, a cestaria. ”No pátio com vista para a serra, onde antes as crianças brincavam nos intervalos, agora há quem aprenda a trabalhar o vime — “há vimieiros lá em baixo que têm de ser podados e as pessoas dão” os restos para os cestos. O workshop que está prestes a começar ao final da tarde é de encadernação. Um encadernador francês morreu e deixou-lhe todo um espólio de peles de cobra para lombadas, a prensa. . . Graça Costa não esperava o entusiasmo à volta desta actividade. “Vêm pessoas de Lisboa, Figueira da Foz, Coimbra. ”Apesar de tentar recuperar muito do artesanato que se está a perder na região, e de algum interesse renovado em certos meios, há uma dose grande de desânimo. “Como não se consegue escoar, é difícil vender. Não está bem visto e não há uma entidade que divulgue, que [garanta] protecção”. Conseguir o preço justo também é difícil. “Nas feiras, as pessoas estão à espera de encontrar tudo a preços baratos. Não é possível vender barato porque a matéria prima é cara e o artesão não consegue descontar tudo o que compra. ”Os clientes são sobretudo de fora da região. E “este tem sido o ano do chapéu. A mulher portuguesa decidiu usar chapéu e não tenho tido mãos a medir. ” Usa feltro, que apesar de ser “um material muito apreciado pelos estrangeiros, sobretudo os nórdicos”, não era tão popular em Portugal. Também faz bijutaria com cerâmica, pele, prata. É “selectiva” em relação aos locais onde coloca as suas peças à venda. Em Fátima, só as podemos encontrar no Hotel Santa Maria, “porque me irrita o artesanato em Fátima: aquelas velas e velinhas, santos e santinhos, não se pode! Houve várias lojas a querer os meus artigos, mas chego lá e vejo tudo misturado com as coisas do chinês. E feiras, praticamente não faço — não me sinto confortável em estar ao lado de uma banca onde vão comprar as continhas dos chineses, põem num cordão e chamam aquilo artesanato. Não estou para concorrer com isso. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. CONTACTOSGárgula GóticaZona Industrial, Lote 17, Batalhahttp://gargulagotica. pt/Maria DescalçaRua do Comandante João Belo, ?n. º 53, Leiriamdescalca@gmail. comCooperativa dos Cestinhos ?da Ilha/Arte de Bracejocooperativacestinhosdailha@gmail. comVictória HandmadeRua do Engenheiro Monteiro Conceição, 84, Corredoura, Porto de Móshttp://www. victoriahandmade. pt/José SiphioniCasas dos Riscos, AlvadosTel. : 911 077 547siphioni. wix. com/cerâmicaOficina das ArtesAntiga EB de Vale da Perra, Atouguia (Ourém)Graça CostaCAORG — Centro Artes e Ofícios Roque GameiroAteliê de Tecelagem — Mantas MindericasTel. : 249 840 022A Loja do CaminhoRua de Nossa Senhora do Caminho, 10B, 2440-121 BatalhaTel. : 963 834 117Windland Private Guided Tours Organiza passeios que incluem visitas a artesãosTel. : 965 853 012
REFERÊNCIAS:
Lady Juliet, uma aristocrata inglesa
A herdeira da colecção Wentworth-Fitzwilliam estudou arte por causa da avó Maud, cria cavalos e é uma das maiores fortunas do Reino Unido. Mas não herdou os “diamantes pretos” que corriam debaixo da grande casa de campo, uma das melhores de Inglaterra e que trouxe riqueza mas também luta de classes (...)

Lady Juliet, uma aristocrata inglesa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A herdeira da colecção Wentworth-Fitzwilliam estudou arte por causa da avó Maud, cria cavalos e é uma das maiores fortunas do Reino Unido. Mas não herdou os “diamantes pretos” que corriam debaixo da grande casa de campo, uma das melhores de Inglaterra e que trouxe riqueza mas também luta de classes
TEXTO: O encontro com lady Juliet está marcado para uma manhã fria de Dezembro. A casa, num bairro popular de Lisboa, tem dois pisos e duas varandas — de uma delas avista-se o Tejo, quando não está nevoeiro, como hoje, e da outra o Castelo. O apartamento onde lady Juliet passa temporadas em Lisboa é do marido, o historiador de Arquitectura Christopher Tadgell, que queria uma casa junto ao mar mas cosmopolita, num lugar onde pudesse ir à ópera de noite e à praia de manhã. “Queria que fosse no Sul da Europa, mas não podia ser em Itália, porque em Itália há muita coisa para ver e não podemos ficar só num sítio. Lisboa é perfeita. ”A decoração do piso de baixo, que manteve o traçado quase original da casa, é tipicamente inglesa — elegância sóbria, com muitas peças em madeira. No piso de cima está o grande tapete déco com motivos de chinoiserie e as peças de mobiliário que o historiador comprou em Malaca, quando lá viveu. São antiguidades, são imponentes, são negras, vermelhas e rendilhadas. “E ficam muito melhor aqui, nestas paredes brancas e neste ambiente moderno, do que no apartamento que eu tinha em Londres”, diz Tadgell. Faz sentido que se comece pela casa onde lady Juliet vive quando está em Lisboa porque o motivo da conversa é outra casa. Uma “casa de campo”, que é como os ingleses chamam aos solares da aristocracia, só que neste caso a definição também não revela a verdade. Wentworth Woodhouse, a casa de família de lady Ann Juliet Dorothea Maud Tadgell (Wentworth-Fitzwilliam de nascimento), é um palácio. É uma das maiores “casas de campo” do Reino Unido, com mais de 300 quartos e mil janelas. Agora está moribunda, corre o risco de morrer. A queda de Wentworth Woodhouse está bem datada no tempo. Como explicou o historiador e crítico de Arquitectura Giles Worsley no texto “England’s great forgotten palace” (The Telegraph, 1998), a casa foi o símbolo de uma luta de classes travada no fim da II Guerra Mundial, quando “a outra metade” exigiu que fosse a sua vez, arrancando os alicerces que sustentavam a velha ordem e a sua arcaica estrutura social. Mas quando a casa nasceu, esclarece Worsley, que era aristocrata de nascimento, foi para se tornar “o epítome da ascensão Whig ao poder, no século XVIII”. A casa foi construída por Thomas Wentworth, que viria a tornar-se marquês de Rockingham. Demorou mais de 15 anos a ser erguida com o objectivo de representar o poder económico, social e político desta família do partido liberal (Whig), uma das duas formações que dominaram a política britânica até à I Guerra Mundial e que desapareceria com a II (os liberais-democratas reivindicam a sua herança ideológica). Era a partir dali — explicava Worsley — que a família dominava o Yorkshire e foi a partir dali que desempenhou um papel-chave na política nacional, papel esse que teve o seu ponto alto quando o segundo marquês de Rockingham, Charles Watson-Wentworth, chegou a primeiro-ministro, por duas vezes, em 1765 e 1782. O esplendor exterior desta casa que tem a maior fachada do Reino Unido, 180 metros de uma ponta à outra, tinha paralelo no seu interior. O mobiliário foi feito à medida para cada uma das salas, as salas foram feitas à medida de cada função — uma delas toda em mármore, de cima a baixo — e para forrar tantas paredes uma colecção de arte que ainda é uma das mais importantes entre todas as colecções privadas do Reino Unido — foi por causa dela que lady Juliet, a quem as obras pertencem hoje, veio a Lisboa; Wentworth-Fitzwilliam: Uma Colecção Inglesa, pode ser vista na Fundação Gulbenkian até 28 de Março. A casa, escreveu outro reconhecido historiador de Arquitectura, Marcus Binney, era “inquestionavelmente a melhor casa georgiana de Inglaterra”. Dezenas de criados mantinham a máquina interior a funcionar, outras dezenas mantinham o parque e os jardins exteriores. “Três proprietários Whig desenvolveram a propriedade criando um modelo económico integrado, com quintas, minas, fundições, uma fábrica de porcelana. No século XVIII, a propriedade era uma zona agrícola e industrial muito desenvolvida, além de a casa representar o que de melhor a aristocracia produziu através do mecenato artístico”, escreveu Giles Worsley. No século XVIII, um fabuloso golpe de sorte aumentou exponencialmente a fortuna da família. A revolução industrial avançava movida a carvão e, debaixo das vastas terras dos Wentworth-Fitzwilliam, estava umas das maiores reservas do país. O crescimento da casa e da família pareciam imparáveis. As festas sucediam-se, juntando os políticos mais influentes, a aristocracia mais importante, os convidados mais apetecíveis. Um visitante do século XIX, o barão Von Liebig, químico alemão que escreveu numa memória a grandeza de todo este cenário, conta que se lembrou de espalhar migalhas de bolacha no chão para conseguir encontrar o caminho de volta ao seu quarto, depois de a noite acabar. Por causa dele e da sua ideia, a cada convidado passou a ser dado uma taça de prata com confetti coloridos para não se perderem nos oito quilómetros de corredores do casarão; os 400 criados “de dentro” que a casa tinha na época, segundo a revista Tatler, tratavam da limpar rapidamente os papelinhos. Lady Juliet, que tem 80 anos, viveu na casa. “Quando o meu pai, que era do Exército, esteve na II Guerra, eu fiquei lá com a minha avó. ” Diz que tem poucas memórias sobre o funcionamento de uma casa tão complexa. Era muito pequena, explica, “tinha nove ou dez anos”. A avó de lady Juliet, Maud, é a senhora de vestido azul na exposição na Gulbenkian, retratada por Philip de Laszlo. “A minha avó gostava muito de arte e ensinou-me muito”, diz a herdeira da colecção Wentworth-Fitzwilliam, que estudou arte e cria cavalos. Lady Juliet não se importa de responder a perguntas sobre a família. Mas é parca nas respostas. O século XX, aquele que testemunhou, não foi bom para os Wentworth-Fitzwilliam, e a segunda visita real à família em 200 anos (a primeira foi em 1789) foi eco desses tempos conturbados. Em 1912, Jorge V e a rainha Mary ficaram na casa e 76 quartos foram atribuídos ao séquito real. A visita durou quatro dias. Os mineiros fizeram um desfile nocturno com as tochas acesas, houve um programa musical e fogo-de-artifício. No pórtico barroco da casa, o rei fez um pequeno discurso para as 25 mil pessoas que o foram ver. Ninguém sabia, mas o desastre aproximava-se dos Wentworth-Fitzwilliam, escreve Catherine Baileu no livro Black diamonds — the dawnfall of an aristocratic dynasty and the fifty years that changed England. A visita real, habitualmente expressão da amizade especial entre a monarquia e a família visitada, foi motivada desta vez pela agitação social que começava a abalar o Reino Unido. O establishment estava nervoso. Nesse ano, realizara-se a primeira greve de mineiros, que exigiam salários mínimos e melhores condições de trabalho. A greve afectou a indústria, os transportes, originou atrasos no abastecimento de bens e escassez dos mesmos em algumas zonas. A visita aos Fitzwilliams foi, para Jorge V, uma bem planeada operação de marketing, produzindo fotografias, publicadas em todos os jornais, do rei a visitar as minas e ao lado dos mineiros. Até a rainha foi fotografada em cima de um trolley de transporte de carvão. O rei escolheu um lugar amigável. Lady Juliet recorda que o seu avô, William (Billy), era um homem respeitado pelos mineiros — gostava mesmo de descer à mina —, o que é consensual entre os especialistas que frisam que ali os mineiros eram mais bem tratados do que noutras explorações. A I Guerra produziu mudanças na dinâmica social tradicional, nomeadamente na estrutura produtiva ligada à grande aristocracia e muitas das grandes casas senhoriais começaram a definhar. Wentworth Woodhouse foi-se mantendo forte, graças à riqueza dos “diamantes pretos”. Mas o carvão, o símbolo do poder dos Wentworth-Fitzwilliam, acabaria com eles. “Aconteceu um ataque à família por causa da antipatia que um ministro tinha à velha ordem. Ele quis fazer desta família um exemplo”, diz Christopher Tadgell, que é o terceiro marido de lady Juliet — foi casada com Victor Frederick Cochrane Hervey, 6. º marquês de Bristol, 20 anos mais velho; a seguir ao divórcio casou com o político e poeta Somerset de Chair, com quem começou a reconstruir a colecção de arte, a preencher as lacunas; finalmente, em 1997, depois de enviuvar, casou com o historiador Tadgell. A história da queda desta família é complexa e obriga à introdução de uma personagem estranha à família: Emanuel “Manny” Shinwell, filho de um vendedor de roupa judeu de Londres e de uma judia nascida na Holanda. Manny, que começa a trabalhar numa fábrica de tecidos, torna-se depressa sindicalista e adere ao jovem Partido Trabalhista, fundado em 1900 e que na década de 1920 já era a principal força de oposição aos conservadores. Mais um salto no tempo e Manny Shinwell está no Parlamento, chegando ao Governo quando, como diz Christopher Tadgell, “a outra metade do espectro social decidiu que chegara o seu momento, a sua oportunidade”. O Labour venceu as eleições do pós-II Guerra. “Eles queriam ter uma palavra a dizer sobre o rumo do país e conseguiram-no. As pessoas consideraram que o Labour faria melhor trabalho na reconstrução do país depois da guerra. ”Nos anos depois da guerra, o Reino Unido passou por uma grave escassez de carvão durante invernos especialmente gelados. Debaixo de duras críticas por não ter sabido gerir as reservas, o ministro Shinwell — responsável pelo Petróleo e as Energias primeiro, depois pela pasta da Guerra (da reconstrução) e finalmente pela Defesa — dá um salto em frente e nacionaliza as minas de carvão. Na brilhante carreira do ministro, que só acabou quando já era barão e estava sentado na Câmara dos Lordes de Westminster, existe este episódio excessivo chamado Wentworth Woodhouse. Shinwell, reconhecem os historiadores, terá ido longe demais na sua guerra contra a velha ordem, contra os velhos senhores da terra e das matérias-primas. O azar da família, reconhece lady Juliet, foi ter debaixo das suas terras, da sua floresta de árvores centenárias, dos seus jardins desenhados pelos melhores arquitectos paisagistas e da sua esplendorosa casa, tanto carvão, a maior reserva do Yorkshire. O ministro mandou expandir a mina — para baixo, para os lados, para cima. Wentworth tornou-se uma gigantesca mina a céu aberto. À época, Peter, o pai de lady Juliet, já era o senhor de Wentworth, o 9. º conde, e residia na casa. “Nesse período eu vivia lá com o meu pai e o carvão ia mesmo até à porta”, lembra a herdeira Fitzwilliam. Em Abril de 1946, uma coluna de camiões e de maquinaria pesada chegou a Wentworth, que se tornou a maior mina a céu aberto do Reino Unido. Produziram-se 132 mil toneladas de carvão. Que qualidade tinha esse carvão? O tema foi polémico. Peter Wentworth-Fitzwilliam encomendou um estudo científico à Universidade de Sheffield, que concluiu que o carvão de superfície era “de muito pobre qualidade” e que “não valia a pena tentar obtê-lo”. Shinwell, por seu lado, insistiu que era “de qualidade excepcional”. Na sua ânsia de destruir os ricos e privilegiados, dizem os historiadores, o ministro nem quis ouvir os argumentos dos próprios operários, dos mineiros, que deram razão ao conde e disseram que o carvão não prestava. Joe Hall, da união dos mineiros do Yorkshire, escreveu ao primeiro-ministro, Clement Attlee: “Os mineiros desta região farão qualquer coisa para não verem Wentworth Woodhouse destruída. Para muitas comunidades mineiras, esta terra é sagrada. ”Foi acusado de estar a soldo do conde, e Manny Sheffield mandou deitar todo o entulho da mina em frente ao pórtico barroco da casa-palácio dos Fitzwiliam — uma pilha negra com 15 metros de altura. “Repare que a família não era contra a mudança, que era necessária, mas a forma como foi feita foi vingativa. Foi um acto vingativo”, diz o historiador Tadgell, que auxilia a mulher em algumas explicações. “Não fez qualquer sentido tirar carvão que não prestava e, no processo, provocar a destruição de uma propriedade, de uma casa, de uma família. ”A mina a céu aberto funcionou até meados de 1950. Quando fechou, os jardins não foram replantados, a floresta não foi reposta e a casa começou a morrer, ferida nos seus alicerces pela movimentação do solo — um episódio da série da BBC The Country House Revealed mostra bem o que era e no que se tornou o palácio dos Fitzwilliam. Lady Juliet diz que o centro da casa assenta no vértice de uma pirâmide de carvão, toda a restante estrutura está sobre o vazio. Há rachas profundas nos tectos e paredes. A luta de classes que se travou naquele campo de batalha e ao fim do rendimento do carvão juntou-se a tragédia familiar. No prazo de seis anos, morreram dois condes e a família pagou dois pesados impostos sucessórios. Billy morreu em 1942, Peter em 1948, num acidente de avião que provocou um escândalo na época — o conde viajava para o Sul de França quando o pequeno aparelho em que seguia se despenhou; com ele estava Kathleen Kennedy Cavendish (irmã de John, que viria a ser Presidente dos Estados Unidos), viúva do marquês de Hartington. “A história não se passou exactamente como é contada” em Black Diamonds, refere lady Juliet, que diz ser uma pena que o livro seja dois terços bom e um terço “fofocas”. Quando o pai morreu, lady Juliet, a única filha de Peter, não pôde herdar o título e as propriedades a ele agarradas. A lei britânica mantém que a maior parte dos títulos de nobreza passem apenas de pai para filho. Para quem segue a série britânica Downton Abbey, que acompanha ao longo dos anos uma família de ficção com semelhanças à de lady Juliet, sabe que o drama começa porque lorde Grantham só tem filhas. O herdeiro, um primo chegado, morre no desastre do Titanic e o título acaba nas mãos de um primo distante e desconhecido, que ainda por cima trabalha, é advogado. As mulheres da aristocracia britânica tentaram, com o êxito da série, relançar uma campanha pela mudança da legislação, mas a aprovação da chamada “Lei de Downton” não parece estar próxima. Como aconteceu várias vezes ao longo da história desta família, o título passou para outro ramo da família, e William Thomas Wentworth-Fitzwilliam tornou-se o 10. º conde — seria o último. Com falta de liquidez e obrigada a fazer partilhas, a família começou a leiloar os móveis, os tapetes, os quadros. Foram feitas três vendas, em 1948, 1986 e 1998. Na venda de 1948, na Christie’s, o quadro Rinaldo Conquista o Amor de Arminda, de Anthony van Dyck, que está hoje na National Gallery de Londres, conseguiu o preço impressionante de 4600 guinéus (o equivalente a 156 mil libras, actualmente 214. 838 euros). Outras obras famosas vendidas acabaram também em museus nacionais: Whistlejacket, de George Stubbs, está igualmente na National Gallery; Sansão e os Filisteus, de Foggini, no Victoria & Albert. A casa, onde chegou a ser criada uma escola para raparigas, foi finalmente vendida em 1986 (o edifício, não as propriedades que se mantiveram nas mãos de vários herdeiros). Está novamente à venda, fala-se em oito milhões de libras, o que não é muito — em Londres há bairros com apartamentos mais caros —, mas não há quem lhe pegue por causa dos 40 milhões de libras que custa a recuperação. Os quadros mais pessoais, como os cavalos da família e os retratos dos antepassados — pintados por Stubbs, Mytens, Ticiano, Van Dyck —, esses ficaram com lady Juliet, que quando o décimo conde morreu — antes fez uma ferida irreparável no espólio familiar, mandando queimar todo o arquivo do século doloroso dos Fitzwilliams, o XX —, sem descendência, em 1979, acabaria por herdar a colecção de arte que tem tentado completar. “Vendemos uma propriedade na Irlanda e investimos na colecção, pois havia grandes lacunas. Os pintores holandeses seriam comuns numa colecção como esta, os flamengos seriam mais raros e era o que queríamos. Tentámos reconstruir o que seria uma colecção. Alguns dos quadros que adquirimos, há 20 anos, não os poderíamos comprar hoje, devido aos preços. Tivemos muita sorte por termos comprado na altura certa”, explica o casal Tadgell, que vive numa propriedade em Kent e, com eles, a colecção exposta na Gulbenkian. Lady Juliet faz parte da direcção de um fundo (um Trust) que tem como objectivo comprar, recuperar, mobilar e abrir ao público uma das mais belas e importantes casas rurais inglesas. O Trust, diz lady Juliet, não tem esse dinheiro; decorre em tribunal uma acção contra a Coal Authority, a quem é exigida uma indemnização pelos estragos, mas só os custos do processo legal são elevadíssimos. Em 1999, a casa foi comprada por Clifford Newbold, um arquitecto que investiu nela e chegou a abrir as portas ao público, organizando visitas. Mas o arquitecto morreu, em Abril, e os filhos voltaram a pôr a casa no mercado. Recentemente, dizem os jornais britânicos, surgiu um comprador — as versões variam, uns dizem que era chinês, outros que era russo —, mas o negócio falhou. Os historiadores de Arquitectura que escrevem de vez em quando sobre Wentworth House dizem que é criminoso que uma das mais belas casas inglesas esteja como está e que a sua existência seja desconhecida da maior parte das pessoas. Podia ser como Highclere, a casa rural que serve de cenário natural a Downton Abbey e que viu o fluxo de visitantes aumentar com a série. A BBC quer fazer uma série a partir de Black Diamonds. Talvez seja o que é preciso para motivar os mecenas e o Estado a investirem em Wentworth. Será, contudo, uma história diferente de Downton, que fala na mudança da malha social e económica na Inglaterra do princípio do século XX, mas é antes de mais uma memória da elegância de uma época. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Wentworth House, que alguns estudiosos da literatura dizem que serviu de inspiração para Jane Austen criar Pemberly em Orgulho e Preconceito — e o 4. º conde terá sido o modelo para Mr. Fitzwilliam Darcy — tem todo o charme da aristocracia rural, mas ali não houve finais felizes.
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu
Mistérios da Natividade
Os presépios sempre serviram para doutrinar. Mas nem a gruta, o estábulo, o burro, a vaca ou o Menino aquecido pelo bafo dos animais fazem parte dos Evangelhos canónicos. Crentes ou não-crentes, devemos reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativas evangélicas da Natividade. (...)

Mistérios da Natividade
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os presépios sempre serviram para doutrinar. Mas nem a gruta, o estábulo, o burro, a vaca ou o Menino aquecido pelo bafo dos animais fazem parte dos Evangelhos canónicos. Crentes ou não-crentes, devemos reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativas evangélicas da Natividade.
TEXTO: Estou debaixo de terra na Praça Central de Cracóvia. A observar esqueletos. De vampiros. Foram ali descobertos, creio que recentemente, os túmulos de seis mulheres: três delas deitadas em posição fetal, uma com as mãos atadas atrás das costas e as restantes duas decapitadas, com as cabeças separadas do tronco. Só assim se impediria, segundo a crença, que os vampiros ressuscitassem das tumbas e de novo viessem atormentar os vivos. A bizarra necrópole de Cracóvia data do século XI, mas estas práticas funerárias são bem mais antigas. Delas existem vestígios do ano 765, em Paderborn, na actual Alemanha. Quem tivesse a pele avermelhada, fosse canhoto, possuísse dentes salientes ou sobrancelhas espessas poderia ser suspeito de vampirismo — e ter um destino idêntico ao daquelas seis mulheres de Cracóvia. Uma morte súbita ou o suicídio eram igualmente suspeitos. Por precaução, decapitava-se o cadáver, apartando-se a cabeça do corpo e colocando-a sobre a tampa do caixão maldito. Lá em cima, a poucos metros de onde me encontro, um veterano da resistência ao nazismo imolou-se pelo fogo em Março de 1980, protestando contra a depravação da juventude, a extinção das artes e ofícios tradicionais e o manto de silêncio que encobria o massacre de Katyn, quando no decurso da Segunda Guerra vários milhares de oficiais polacos foram abatidos a sangue-frio às ordens de Estaline e Lavrentiy Beria. Nas arcadas do Mercado, o Café Noworolski, de veludos sumptuosos. Inaugurado em 1910, era frequentado pelas elites da cidade até os ocupantes nazis o terem requisitado para uso exclusivo de cidadãos alemães. Em 1949, foi nacionalizado pelo governo comunista, só sendo devolvido à família dos proprietários originais em 1992. O interior do Mercado é hoje inteiramente preenchido por bancas de artesanato e souvenirs turísticos. Entre eles, os presépios de Cracóvia. Feitos da prata dos chocolates, as suas cores brilhantes refulgem esplendorosas entre orvalhos de sangue e tantas memórias de morte. Há-os noutros lugares da Polónia. Mas, por direito e tradição, os presépios pertencem a Cracóvia. Diz-se que lá chegaram no século XIII, trazidos de Itália pelos franciscanos. E é em Cracóvia, na Igreja de Santo André, que as Irmãs Clarissas guardam o mais antigo presépio da Polónia — ou até mesmo da Europa, garantem os especialistas —, composto por duas figuras talhadas em madeira de tília na segunda metade do século XIV, que parecem peças de xadrez e, provavelmente, faziam parte de uma composição maior: São José, pensativo e absorto, e Maria jubilosa, de braços abertos, pronta a acolher o Menino no seu regaço. Os olhos da Virgem são pintados e cobertos de vidro, técnica semelhante à que seria utilizada mais tarde pelos grandes artesãos napolitanos. Sob o impulso da Contra-Reforma, e da necessidade de catequização de um povo de poucas ou nenhumas letras, os presépios adquiriram uma importante função didáctica; para esta pedagogia da fé, as Clarissas tinham um presépio ainda hoje exibido na Igreja de Santo André, e em que as figuras eram mudadas durante o período do Natal para representar sucessivamente a Adoração do Menino pelos Pastores, a Matança dos Inocentes, a Circuncisão de Jesus, a Adoração pelos Reis Magos e a Apresentação no Templo. É também no ambiente pós-tridentino que se generalizam os presépios domésticos, expostos o ano inteiro, com figuras de cera ou madeira policromada resguardadas no interior de maquinetas envidraçadas. Mas, a par disso, havia outro modelo de presépio que dizem ser exclusivo da Polónia. Nele, ao lado das figuras tradicionais existia um espaço para espectáculos de marionetas, tendo por temas a história do nascimento de Jesus ou, em versão satírica e profana, comédias de costumes, prática que as autoridades da Igreja acabariam obviamente por proibir. Contudo, os espectáculos eram extremamente populares — e rentáveis. Como num thriller de acção, a plateia assistia horrorizada à Matança dos Inocentes para logo depois aclamar, em ruidoso delírio, o castigo infligido a Herodes, o vilão da história: entrando em cena de rompante, a Morte cortava a cabeça ao rei da Judeia e o Diabo levava a sua alma para os confins das trevas. Moral da história: até os reis mais poderosos tinham de se submeter à implacável lei divina, assim se restaurando um elementar sentido de justiça por que o povo de Cracóvia tanto ansiava. Os monges, como é óbvio, não estavam dispostos a abrir mão deste script arrebatador. Por isso, encontraram formas subtis de iludir a proibição eclesiástica, aproveitando o ritual das visitas domésticas de Natal e Ano Novo (koleda) para utilizar trabalhadores dos conventos ou estudantes de catequese como actores nas representações teatrais feitas porta a porta. Nestes percursos, transportavam consigo igrejas em miniatura com presépios, os chamados “betlemitas” (betlejemki). Encontram-se aí, nos finais do século XVIII, as raízes da arte dos presépios cracovianos, tal como hoje a conhecemos. Mas só no século seguinte ela ganhou forma e vigor devido à conjugação de diversos factores. Desde logo, Cracóvia possuía um abundante acervo de estórias e personagens lendárias, capazes de alimentar as peças representadas na Natividade, as quais eram escritas por literatos e membros da intelligenzia local, sedentos de afirmar a especificidade da cultura nacional polaca e, no seu seio, a supremacia da cultura local da cidade; a incorporação dessas figuras lendárias tinha a vantagem de tornar a dramaturgia da Noite Santa imediatamente reconhecível pelo auditório. Por outro lado, a circunstância de os presépios integrarem monumentos e edifícios emblemáticos, religiosos ou profanos (como o Castelo de Wawel, a Torre do Relógio, a Porta de São Floriano), tornava-os um poderoso elemento identitário de Cracóvia, não sendo por acaso que as representações da Natividade contaram sempre com o generoso patrocínio da burguesia local. Se a isto acrescentarmos o interesse romântico pelo folclore e pelas tradições populares compreenderemos em que medida o florescimento dos presépios de Cracóvia se inscreveu num movimento mais vasto, que a todos envolvia: artesãos, literatos, comerciantes burgueses e autoridades políticas. Tratava-se, além disso, de um negócio lucrativo e rentável, em que alguns artistas ganharam merecida fama e histórica reputação. Entre eles, Michal Ezenkier, um pedreiro e fabricante de azulejos que concebeu presépios e dirigiu um grupo que representou cenas da Natividade desde 1864 até à sua morte em combate, na Primeira Guerra Mundial. A ele se deve a concepção do modelo dos presépios de Cracóvia, sendo o seu filho Leon responsável pelo guarda-roupa das figuras. No Museu Etnográfico é possível admirar um exemplar da autoria de Ezenkier, com quatro figuras sob a forma de marionetas — Herodes e sua mulher, o Diabo e a Morte —, estando ausentes as personagens centrais da Natividade, e até mesmo a Sagrada Família… Não se trata, pois, em bom rigor, de uma alegoria do Natal, mas de um artefacto para um teatro de marionetas a ser apresentado ao público na época natalícia. Em todo o caso, ainda hoje, do ponto de vista arquitectónico, os presépios cracovianos seguem o perfil traçado por Ezenkier: duas torres laterais em forma de pináculos góticos, semelhantes aos da Igreja de Santa Maria situada na Praça Central da cidade, acompanhadas por duas torres mais baixas, de inspiração barroca, e uma torre central mais elevada e dominante. A iluminação através de velas (que em Portugal vitimou, pelo menos, dois sumptuosos presépios barrocos de Lisboa) foi proibida por razões de segurança, passando a ser usadas lâmpadas eléctricas. Em finais do século XIX, o cânone estava estabelecido, sendo até fundada nessa altura uma guilda de artesãos de presépios, muitos dos quais pedreiros e carpinteiros dos arredores da cidade que, não tendo trabalho nos meses de Inverno, dedicavam o seu engenho e paciência à construção de representações da Natividade. Depois, iam mostrá-las de casa em casa, encenando teatralmente o nascimento do Menino, de uma forma não muito diversa daquela que os monges dos conventos tinham apresentado no século anterior. As duas guerras mundiais abalariam esta tradição artística, e o concurso anual de apresentação dos presépios de Cracóvia (szopka krakowska), iniciado em 1937 graças aos esforços do historiador de arte e etnógrafo Jerzy Dobryzcki, só seria retomado em 22 de Dezembro de 1945. Todos os anos, na primeira quinta-feira de Dezembro, os habitantes da cidade e os turistas podem contemplar o desfile. De invulgar estatura e dimensões pujantes, os presépios são transportados pelos artífices e seus familiares, que os depositam no meio da neve, junto à estátua do bardo nacional, o poeta romântico Adam Mickiewicz. No concurso existem categorias de prémios destinados a crianças e jovens, na tentativa de preservar a continuidade desta arte. Há dinastias famosas de artesãos, como as famílias Malikowie, Gluchowie e Piacikowie, mas, segundo se diz, paira uma nova ameaça sobre os presépios de Cracóvia. Ao aproximarem-se da estátua do poeta muitos artistas são aliciados a vender logo ali as suas obras, em vez de aguardarem pelo dia em que serão expostas no Museu de História da Cidade. Intermediários vindos dos hotéis, delegados de agências de viagens, representantes de grandes empresas ou turistas endinheirados disputam avidamente os presépios de Cracóvia antes sequer de estes entrarem em competição. Nem sempre o tamanho conta. Espantei-me pelo facto de um presépio volumoso ser mais barato do que outro, bastante mais pequeno. Porém, um exame atento permitiu surpreender maior delicadeza das formas e mais fina perfeição do recorte dos papéis de prata e de folha de alumínio. As figuras centrais do presépio são, evidentemente, a Virgem, São José e o Menino. Por cima da Sagrada Família, anjos puríssimos fazem soar trombetas de alegria, enquanto pastores e ovelhas, e por vezes os Reis Magos, se aproximam em gloriosa adoração. Com frequência, os presépios de Cracóvia apresentam figuras históricas: monarcas antigos, príncipes afortunados, heróis que alimentam o orgulho de uma nação martirizada ao longo de séculos. Copérnico aparece em alguns presépios, a par de personalidades lendárias como o corneteiro que, na torre da Igreja de Santa Maria, teve a garganta trespassada por uma flecha enquanto alertava a cidade para a invasão iminente dos tártaros. Ou Pan Twardowski, nobre e feiticeiro do século XVI que, como o Dr. Fausto, vendeu a alma ao Diabo a troco de poder mundano e grandes riquezas. Ou ainda o cavaleiro de vestes pseudo-orientais, o Lajkonik, que celebra a chacina dos tártaros e do seu Khan às mãos dos intrépidos barqueiros do Vístula, fasto ainda hoje recordado num desfile que todos os anos percorre Cracóvia no mês de Junho, durante a semana do Corpus Christi. Como sucede nos presépios de todo o mundo, certas figuras envergam trajes tradicionais da região, ainda que sem a exuberância faustosa das suas congéneres de Nápoles. Em alguns deles, personalidades contemporâneas como Karol Wojtyla ou até mesmo Lech Walesa presenciam o nascimento do Menino. A exposição actualmente patente na antiga Fábrica de Oskar Schindler mostra presépios iconoclastas, em que Hitler e Estaline ocupam o lugar central e a Sagrada Família se afasta de burro, espavorida, a caminho de um Egipto imaginário. Tudo isto não deve causar estranheza se pensarmos que em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, o vastíssimo presépio feito pelas beatas irmãs Dos Reis com figuras recortadas de jornais e revistas ostentava, além das de Rodolfo Valentino ou Charlie Chaplin, a imagem de Vladimir Illich Oulianov, a. k. a. Lenine — e sem que daí resultasse escândalo na retrógrada cidade de Ilhéus, Estado da Bahia. Construídos em torno de uma armação de madeira, os presépios de Cracóvia têm uma característica singular: neles são representados, em patamares sobrepostos, as principais igrejas e outros monumentos da cidade, desde o românico à art nouveau. Alguns presépios são verdadeiros guias turísticos em três dimensões, como aquele que vi na penumbra da Basílica de São Francisco de Assis, à entrada dos claustros. Monumental, mais grandioso do que os que se podem contemplar no Museu Etnográfico, o presépio da Basílica de São Francisco apresenta as diversas igrejas de Cracóvia, devidamente assinaladas num mapa explicativo. A reverberação da luz na prata multicolor dá-lhes uma aparência feérica, com laivos de sumptuosidade oriental, característica que é adensada pelo facto de muitos dos presépios de Cracóvia serem encimados por um zimbório em forma de cebola, à maneira bizantina ou ortodoxa. Por vezes, a Sagrada Família é ofuscada pela luminosidade resplandecente das cores vivíssimas e pela pujança dos ornamentos, raiando o kitsch. Quase nos esquecemos que Jesus nasceu numa gruta. A gruta de Belém não é sequer mencionada nos Evangelhos. Aliás, quase tudo o que faz parte do imaginário e da cenografia da Natividade — a gruta e o estábulo, o burro e a vaca, o Menino aquecido pelo bafo dos animais — não consta dos Evangelhos canónicos. Em Lucas 2, 7 fala-se apenas de uma manjedoura, onde o Menino foi deitado, envolto em panos. Não se trata de um pormenor. Pelo contrário, a imagem de Jesus-criança enfaixado em panos, propagada pela tradição dos ícones, contém uma alusão antecipada à hora da sua morte. Prefiguração fulgurante, que introduz uma noção de circularidade do tempo na narrativa evangélica e nos leva a encarar o Calvário e tudo quanto lhe está associado — a Pietá, o Stabat mater dolorosa, etc. — a uma nova luz, impregnada de sombra: a da mãe que se reencontra com o filho morto, exactamente do mesmo modo como antes o tomara nos braços, recém-nascido. Mais extraordinário ainda é pensarmos que, certamente de forma involuntária, esta ligação entre o nascimento e a morte de Cristo teve uma singular expressão artística: as primeiras grandes representações da Natividade, os presépios com figuras talhadas em retábulos feitos a partir do século XV no Norte dos Alpes, mostram claras semelhanças com os grandes Calvários do gótico tardio que foram realizados precisamente nessa época, e na mesma região. Se a gruta não é referida nos Evangelhos, ela consta de uma antiquíssima tradição, como testemunharam o mártir Justino (Dial. , 78) e Orígenes (Contra Cels. , 1, 51) (cf. Salvador Muñoz Iglesias, Los Evangelios de la Infancia, vol. III, 1987, pp. 99ss). Também São Jerónimo escreveu, em 404, sobre o specus Salvatoris, a gruta do Salvador. Baseando-se no teólogo protestante Peter Stuhlmacher, professor em Tübingen, Joseph Ratzinger afirma, no seu livro Jesus de Nazaré. Prólogo. A Infância de Jesus (2012), que desde sempre, na região em redor de Belém, foram usadas grutas como estábulos. A isto poderíamos acrescentar que os Apócrifos contêm menções explícitas à gruta onde nasceu Jesus, como sucede, por exemplo, no Papiro Bodmer 37, 10 (“E ali encontrou uma gruta: levou-a para ela”), no Proto-Evangelho de Tiago 18, 1 (“Encontrou lá uma gruta: levou-a para lá”) ou no Evangelho do Pseudo-Mateus (“disse, depois, à bem-aventurada Maria que descesse do animal que entrasse numa gruta sob uma caverna na qual nunca entrava a luz, mas só as trevas, porque não podia receber a luz do dia”). Em Roma, na actual Igreja de Santa Maria Maggiore, venerava-se como relíquia um pedaço da gruta original onde Jesus nasceu, a partir da qual foi construída, no século VII, a primeira réplica da gruta da Natividade executada no Ocidente. Foi também nessa igreja que se iniciou a tradição da missa da meia-noite. A manjedoura de Belém, diz a lenda, terá sido destruída no século II às ordens do imperador Adriano. Ainda assim, entre 432 e 440 o Papa Sixto III conseguiu trazer para Roma vários fragmentos do Santo Presépio, que mais tarde seriam dispersos por alguns templos da Cidade Eterna: Santa Maria Maggiore, a Igreja de Santa Maria no Trastevere e, naturalmente, a Basílica do Vaticano. Séculos depois, no ano de 1223, São Francisco faz erigir na floresta de Greccio aquele que é considerado o primeiro presépio do mundo, imortalizado por Giotto num fresco celebérrimo da Basílica de Assis. Mesmo isso, no entanto, suscita interrogações e mistérios, pois alguns especialistas entendem que o presépio, tal como o conhecemos, só tomaria forma muitos anos depois. Ou, ao invés, muitos anos antes, bastando recordar que a mais antiga conhecida imagem de Nossa Senhora com o Menino se encontra em Roma, nas Catacumbas de Santa Priscilla. Datando do século III, mostra a Virgem, Jesus e um profeta indicando a estrela, a estrela que, nas palavras de Pascoaes, é divino sorriso alumiante. Já falaremos dela, dentro de minutos. A par da gruta de Belém, outros mistérios se adensam em torno do nascimento de Jesus, começando pela data em que ocorreu. Este é um ponto em que até Ratzinger concorda com os que, como E. P. Sanders (A Verdadeira História de Jesus, 2004, p. 27) ou Joachim Gnilka (Jesus de Nazaré, 1999, p. 77), dizem que houve um erro nos cálculos feitos no século VI pelo monge cítico Dionísio Exíguo († ca. 544) para a elaboração do seu calendário litúrgico e para a determinação do anno Domini. O nascimento de Cristo terá assim ocorrido alguns anos antes da data que, a partir daqueles cálculos, marca o início da contagem da nossa era. Vivemos, pois, por volta de 2019 ou de 2021 d. C. Por sua vez, Jesus terá nascido no ano 4, 5, 6 ou até 7 a. C. , facto que pode apoiar a tese da inverosimilhança de diversas passagens do Novo Testamento mas que, queiramo-lo ou não, tem um desconcertante sentido profético. Antes de nascer, Cristo já o era. Talvez possamos enquadrar essa realidade nas palavras de São João Baptista, recolhidas no Evangelho de João: “Aquele que vem depois de mim é mais importante do que eu, porque já existia antes de mim” (Jo, 1, 30). Muitos defendem que, ao invés de buscar afanosamente uma sustentação histórico-factual para todas as referências evangélicas, devemos assumir que as tentativas de concordismo bíblico, que subsistem entre diversos exegetas católicos e protestantes, são destituídas de fundamento em face da flagrante discrepância entre os relatos de Mateus e Lucas (pese as similitudes detectadas por vários autores, como René Laurentin, Les Évangiles de l’Enfance du Christ, 1982, pp. 361ss). Aquela discrepância, note-se, não é factual, uma vez que os evangelistas nunca tiveram o propósito de elaborar uma biografia histórica de Jesus mas antes uma narrativa construída com um objectivo estritamente teológico, não distante de um género literário hebraico antigo, o “midraxe hagádico”, em que uma dada interpretação das Escrituras é apresentada através de relatos e narrações (cf. Joaquim Carreira das Neves, Jesus Cristo. História e Mistério, 2000, pp. 55ss). Em face disto, tanto se afiguram vãs as “denúncias” de um E. P. Sanders sobre as contradições entre Mateus e Lucas como se revelam as dificuldades de um Joseph Ratzinger para encontrar uma explicação histórica para tudo quanto os dois evangelistas afirmam. Por exemplo, Bento XVI apoia-se em Flávio Josefo († ca. 100) para fundamentar historicamente a ocorrência de um recenseamento para fins tributários na época de Augusto, mas não menciona que o autor de Antiguidades Judaicas em lugar algum se refere à matança de crianças no reinado Herodes, facto que, a ter ocorrido, mereceria certamente registo nos anais da época. Do mesmo passo, Ratzinger sustenta que Maria e José terão ido a Belém justamente por causa daquele censo fiscal, pois, apesar de viverem em Nazaré, é legítimo “supor que José, da casa de David, possuísse um terreno em Belém, pelo que tinha de ir lá para a cobrança dos impostos” (op. cit. , pág. 57). Na ausência de bases históricas para uma tal suposição, melhor será abrirmo-nos à intenção profética das narrativas evangélicas, nos termos da qual Jesus tem de nascer em Belém por ser essa a cidade de David. Só dessa forma se cumpre e realiza o destino profetizado em Miqueias 5, 1: “Quanto a ti, Belém, no clã de Efrata, embora sejas tão pequena entre as terras de Judá, de ti farei seguir aquele que vai ser o guia de Israel. ” Muito do que encontramos no Evangelho de Mateus surge ordenado — e só é explicável — justamente enquanto cumprimento de um desígnio messiânico ou profético, incluindo um ponto que, além do nascimento em Belém, é incontroverso para todos os evangelistas: a concepção virginal de Jesus. A virgindade de Maria é prenunciada em Isaías 7, 14: “Pois bem, é o próprio Senhor que vos vai dar um sinal: a jovem mulher está grávida e vai dar à luz um filho e pôr-lhe-á o nome de Emanuel” (no texto hebraico; sendo mais expressiva a antiga versão grega dos Setenta, a Septuaginta: “A virgem ficará grávida e dará à luz um filho que se há-de chamar Emanuel”). Por outro lado, quando o anjo Gabriel saúda Maria (“O Senhor está contigo”, Lc 1, 28), actualiza a profecia constante da Escritura hebraica, mais precisamente de Sofonias 3, 17: “O Senhor, teu Deus, está no meio de ti. ” A fuga para o Egipto, por seu turno, realiza a profecia de Oseias 11, 1: “Chamei do Egipto o meu Filho. ” O massacre das criancinhas visa cumprir o que escreveu o profeta Jeremias 31, 15. E a presença em Nazaré, e não na Judeia, tem um propósito evidenciado em Mateus 2, 23: “Ali fixou residência numa terra chamada Nazaré. Foi assim que se cumpriu aquele dito dos profetas: ‘Ele há-de chamar-se Nazareno’. ”É também a esta luz, à luz do cumprimento de um desígnio profético, que se compreende que os chamados “evangelhos da infância” sejam marcados por analepses teológicas, digamos assim, que fazem com que a narrativa seja constantemente atravessada por sonhos e presságios, sinais, profecias. É o Natal com seus mistérios. Um anjo aparece em sonhos a José, tranquilizando-o sobre a virgindade de Maria (Mt 1, 20); outro lhe surgirá, também em sonhos, ordenando-lhe que fuja para o Egipto (Mt 2, 13) e, mais tarde, que de lá regresse à terra de Israel (Mt 2, 19). É também através de um sonho que Deus — desta feita, dispensando a intermediação de anjos — avisa os sábios do Oriente para não voltarem a encontrar-se com Herodes (Mt 2, 12). No relato lucano, as angelofanias não emergem numa atmosfera onírica, mas sob a forma de aparições. É desse modo que um anjo anunciou a Zacarias o nascimento de João Baptista (Lc 1, 11) ou que outro anjo, Gabriel, anunciou a Maria o nascimento de Jesus (Lc 1, 26). “Servirei o Senhor como ele quiser. Seja como tu dizes”, respondeu-lhe a Virgem, o que levou alguns padres da Igreja a concluírem que Maria terá concebido através do ouvido, por uma obediente audição da Palavra de Deus, derivando daí, segundo se diz, a expressão popular “emprenhar pelos ouvidos”. A densidade, a um tempo poética e teológica, da aparição angelical é potenciada por uma breve mas lindíssima frase, também ela misteriosa, que remata o diálogo entre Maria e o anjo Gabriel. Após a Virgem lhe ter dito “Seja como tu dizes”, o Evangelho de Lucas acrescenta: “E o anjo retirou-se” (Lc 1, 38). Como salienta Joseph Ratzinger, esse dito tão simples, aparentemente destituído de significado — “E o anjo retirou-se” —, surpreende, ao colocar Maria num momento de solidão, de confronto consigo mesma e com a tarefa que lhe fora atribuída. A sós, com Deus. O mistério da Natividade é também o mistério da maternidade e da solidão que sempre a rodeia, em todos os tempos e lugares, hoje como há dois mil anos. A reserva e a discrição de Maria têm algo de enigmático, emergindo em tantos momentos do texto de Lucas que muitos asseveram que uma das fontes do evangelista terá sido a própria Virgem, descrevendo factos que só poderiam ser revelados após a sua morte. Ao presenciar a correria dos pastores rumo a Belém, para divulgar a Boa Nova, “Maria recordava todas estas coisas e meditava nelas atentamente” (Lc 2, 19). A narrativa lucana da Anunciação só é possível por acesso directo a Maria ou, em alternativa, sendo fruto da imaginação do evangelista, que obviamente não presenciou, por exemplo, o diálogo da Virgem com o anjo Gabriel. Mais adiante, quando Jesus abandona por instantes a família, aos 12 anos de idade, e responde aos pais, inquietos pelo seu desaparecimento, “Porque é que me procuravam? Não sabiam que eu tinha de estar em casa de meu Pai?”, Lucas acrescenta: “Eles não compreenderam o que lhes disse” (Lc 2, 50). A família regressa a Nazaré e Jesus continuou a ser obediente. “Sua mãe guardava todas estas coisas no coração” (Lc 2, 51). Este é o trecho decisivo, aquele em que se revela de forma mais patente a solitária reserva da Virgem Maria. E também, passado um momento de perturbação inicial, a suave placidez com que presenciou e se fez cúmplice do Natal e seus mistérios. A serenidade da Virgem, sintomaticamente, contrasta com a azáfama dos pastores que correram apressados a Belém, com as inquietações de Herodes e do Sinédrio ou com o escândalo suscitado em Jerusalém pelo nascimento do Menino. À semelhança do que ocorreu com a imagem do Menino envolto em panos (Lc 2, 7), o nascimento e a morte de Cristo voltam a encontrar-se. A perturbação sentida em Jerusalém por alturas do Natal é idêntica à que ocorrerá aquando da entrada triunfal de Cristo na cidade santa. De acordo com Mateus, “quando Herodes teve conhecimento disto, ficou muito preocupado, e como ele todos os moradores de Jerusalém” (Mt 2, 3); 30 anos depois, “quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou em alvoroço” (Mt 21, 10). De igual modo, o Sinédrio intervém a pedido de Herodes, aquando do nascimento de Jesus (Mt 2, 4-5), e depois para o seu julgamento (Mt 26, 57). Aliás, os Reis Magos buscam o “rei dos Judeus” (e não, como deveriam, o “rei de Israel”), sendo aquele o título pelo qual Jesus será, muito mais tarde, julgado e condenado à morte (Mt, 27, 11). Nascimento e morte, os dois pólos da existência terrena de Jesus, em torno dos quais se constrói a narrativa evangélica, segundo o polarismo, técnica de expressão simbólica muito comum na semântica hebraica (cf. Gianfranco Ravasi, Videro il Bambino e sua Madre. Meditazioni sui vangeli dell’infanzia, 2000, p. 6). É extraordinário pensar, como expressão acidental dessa polaridade, que a data do nascimento de Cristo foi fixada em 25 de Dezembro pelo Papa Júlio I tendo em conta precisamente a sua estreita ligação ao Calvário, a par de outros factores, como a celebração romana do Dies natalis solis invictis, o solstício de Inverno. Jesus Cristo é o Menino, o Menino Jesus, e assim será conhecido pela tradição da fé, feita história de amor humano. No Auto Pastoril Português, Gil Vicente fala, enternecido, do “cachopinho tam fermoso e sesudinho / filho de Nossa Senhora”. A imagética da Natividade e todo o ambiente que a envolve animam sentimentos vários, desde o embevecimento pelos recém-nascidos à exaltação da sua inocência. De permeio, a composição dos presépios é um regresso ao tempo da infância ou um Ersatz da maternidade. Não por acaso, desde a Idade Média existiu nos conventos femininos germânicos a tradição do Kindlwiegen (“Embalar o Menino”), em que a figura de Jesus-criança surge colocada num berço móvel, com o qual se podia brincar. Neste contexto, o Menino adquire absoluta centralidade, a um ponto tal que passa a ser alvo de devoção específica e de representações artísticas que o tomam por objecto exclusivo. Aparece então sob a forma de uma criança igual a todas as outras, com absoluta candura, na quietude do sono. Na Igreja Paroquial da Carvoeira, em Torres Vedras, Jesus Menino dorme tranquilamente, de faces rosadas, na completa nudez com que nasceu, numa delicada torção, com a cabecinha postada numa almofada de seda bordada a missangas, fazendo cócegas no umbigo. Noutros lugares, como na Igreja das Chagas e no Convento dos Cardaes, em Lisboa, ou na Igreja Paroquial de São Pedro, em Peniche, surge deitado num berço, de olhos abertos ao espanto do mundo. Quem assim se mostra não é o Redentor ou o Messias, mas tão-só uma criança recém-nascida. Numa escultura de vulto pleno e reduzidas dimensões, feita no século XVIII-XIX por um autor desconhecido, e hoje exibida no Museu do Patriarcado de Lisboa, o Menino tem um vasto enxoval de 25 vestidos, em cetim e prata, que se mudavam consoante o gosto, num dispositivo parecido ao do Menino Jesus de Praga, que desde o século XVI vem acumulando um abundantíssimo enxoval, com roupas de toda a parte. Esta dimensão lúdica da Natividade é tão importante como a religiosa, o que obrigou frequentemente à intervenção correctiva das autoridades eclesiásticas. No inventário de um castelo italiano, elaborado em 1567, consta que a duquesa de Amalfi tinha dois baús com 116 figuras de presépio, certamente para seu deleite e entretenimento. Pela mesma altura, no Sul da Alemanha, a arquiduquesa Maria de Wittelsbach enriquecia o seu presépio privado com figuras de madeira encomendadas a artesãos de Munique. E, no século XVIII, as famílias da aristocracia napolitana competiam entre si pela posse do presépio mais faustoso, mais ricamente adornado por figuras de barro ataviadas com delicados finimenti, numa opulência visual que fascinaria Goethe. Na Bíblia, porém, a designação de “menino” tem um objectivo preciso e nada lúdico ou aparatoso: destina-se a evitar que Jesus seja apresentado como filho de José. O anjo de Deus diz a José “levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge com eles para o Egipto” (Mt 2, 13) e, mais tarde, “levanta-te, toma o menino e sua mãe e volta para a terra de Israel” (Mt 2, 20-21), quando a fórmula correcta teria sido “toma o teu filho e sua mãe…”. No Alcorão, aliás, Cristo é reiteradamente descrito tão-só como “Jesus, filho de Maria”, sem menção do nome do pai (2. ª surata, versículos 87 e 253; 3. ª surata, versículo 45). No Evangelho de Mateus, a genealogia de Cristo é apresentada através do encadeamento das gerações por via masculina (“Abraão gerou Isaac…”), mas, singularmente, chegando a Jesus, deixa de se falar em geração: “Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo” (Mt 1, 16). Só assim se torna possível preservar a concepção virginal de Maria e, em simultâneo, integrar Jesus na linhagem da Casa de David (cf. Jean Daniélou, Les Évangiles de l’Enfance, 1967, p. 45; cf. ainda John P. Meier, A Marginal Jew. Rethinking the historical Jesus, vol. I, 1991). Significativamente, não se diz que José gerou Jesus, pois Cristo é “obra do Espírito Santo” (Mt 1, 20). Quando os Reis Magos se abeiram da gruta de Belém, José não se encontra lá, estranhamente (Mt 2, 11). Ratzinger reconhece que nunca conseguiu encontrar explicação para tal ausência. Em alguns Apócrifos, todavia, José está lá, junto a Maria, e com ela recebe dos Magos oferendas preciosas (cf. , por ex. , o Evangelho do Pseudo-Mateus 16, 2). Mas é incontroverso que, nas narrativas dos Evangelhos canónicos, José não se encontra em cena quando os sábios do Oriente fazem a proskynesis perante o Menino real, ou seja, quando se prostram diante d’Ele. Aliás, a presença de José nas representações do presépio só se torna comum no século VI, altura em que a Natividade e a Adoração dos Magos já eram visíveis em diversas obras de arte, como o cofre de Werden, na Vestefália, os mosaicos de São Apolinário ou as âmbulas metálicas de Monza, em Ravena. Em Natividade, um pastel sobre papel feito por Paula Rego em 2002, exposto na Capela do Palácio de Belém, em Lisboa, Maria dá à luz amparada apenas por um anjo de rosto compenetrado e grave. Do marido, nem sombra. Ter-se-á José ausentado no momento crucial da Noite Santa? Trata-se de um mistério tão singular quanto é sabido que a realeza de Jesus — se quisermos, a realeza terrena de Jesus — provinha de José, da Casa de David, e não de Maria, simplesmente Maria, de família pobre de Nazaré. Em todo o caso, é José que dá ao recém-nascido o nome de Jesus (“a quem José pôs o nome de Jesus”: Mt 1, 25) e é a paternidade de José que permite inscrever Jesus na genealogia de David, do mesmo modo que foi a ascendência de David que, no relato lucano, levou José e Maria a Belém, onde foram inscrever-se no recenseamento realizado quando Quirino governava a Síria. “Todos iam inscrever-se, cada um na sua cidade. Por isso, José partiu de Nazaré, na província da Galileia, e foi para Belém, na província da Judeia, onde tinha nascido o rei David. Como José era descendente de David, foi lá inscrever-se com Maria, sua mulher, que estava grávida” (Lc 2, 3-5). Por conseguinte, José é pai de Jesus não apenas em face da lei mas também porque só desse modo se realiza a profecia que fez nascer o Menino em Belém. Todavia, e como salienta Ratzinger, a origem de Jesus, no que respeita à paternidade de José, “permanece um mistério”, a juntar a tantos outros que a Natividade encerra. “Supunha-se que era filho de José”, diz-nos Lucas 3, 23. Falemos dos animais. Nas mais antigas representações da Natividade, três sarcófagos do século IV que hoje se encontram nos Museus do Vaticano, já surgem o burro e a vaca junto ao berço do Menino. Não são referidos nos Evangelhos canónicos, mas há quem descortine a sua presença em trechos veterotestamentários cuja concatenação poderia explicar que junto ao Menino estivessem um burro e uma vaca, testemunhos de obediência e fidelidade, signos de mansidão. Em Isaías 1, 3: “O boi reconhece o seu proprietário, e o burro o estábulo do seu dono; mas Israel, o meu povo, nada conhece e nada compreende. ” Há quem realce igualmente a versão grega de Habacuc 3, 2: “No meio de dois seres vivos serás conhecido (…); quando vier o tempo, tu aparecerás. ” Simplesmente, a esta menção liga-se os dois querubins que, segundo o Êxodo 25, 18-20, estavam colocados sobre a cobertura da Arca da Aliança, indicando e simultaneamente escondendo a misteriosa presença de Deus. Mesmo admitindo a existência de um paralelismo entre a manjedoura de Belém e a Arca da Aliança, permanece um mistério a correlação entre os querubins do Êxodo e a alusão a um boi e a um jumento feita em Isaías 1, 3. Essa correlação não tem, evidentemente, a pretensão de desvendar aqui, num trecho relacionado com animais domésticos, o cumprimento de um grandioso desígnio profético, como bem observam comentadores rigorosos (cf. Salvador Muñoz Iglesias, op. cit. , pp. 104ss). E por isso talvez se afigure mais avisado, até numa perspectiva de reconhecimento de espaço à tradição da Igreja, situar o surgimento do burro e da vaca numa fase posterior da História, num tempo de reconstrução imaginária da Natividade, valorizando o Natal como uma narrativa aberta tanto ao labor dos exegetas quanto à fé dos crentes. A presença dos animais — não apenas do burro e da vaca, mas de todos quantos depois entraram nos presépios, desde as ovelhas dos pastores aos elefantes e girafas, macacos e leopardos que acompanhavam o séquito dos Reis Magos — aprofunda o deslumbramento encantado e o afecto generoso que o presépio sempre desperta. “O Evangelho é simplesmente um catálogo de coisas inesperadas. Não se espera que um boi e um burro adorem a manjedoura. Os animais estão sempre a fazer as coisas mais incríveis nas vidas dos santos. Faz tudo parte da poesia, o lado Alice no País das Maravilhas da religião”, diz Lady Marchmain a Charles Ryder em Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh. Como é possível explicar, senão desta forma, que Jesus faça a sua entrada triunfal em Jerusalém montado numa burra acompanhada de um jumentinho?Agora, a estrela. É ela que, dirigindo-se para ocidente, guia os Reis Magos até à gruta de Belém. Quando a avistaram, os sábios “sentiram uma alegria enorme” (Mt 2, 9-10). Outro prodígio da Natividade. “Era real e não imaginada”, escreve Sophia, num poema que lhe dedicou. Contudo, muitos duvidam da sua existência, dizendo mesmo que era impossível uma estrela deslocar-se da maneira descrita nos Evangelhos. Johannes Kepler, no que parece ser seguido por alguns astrónomos actuais, salientou a existência de uma conjunção dos planetas Júpiter, Saturno e Marte, acompanhada de uma supernova, por altura dos anos mais prováveis do nascimento de Jesus. Afirma-se também que tábuas cronológicas chinesas assinalam o surgimento de uma estrela por volta do ano 4 a. C. No seu monumental Guide to the Bible, o prolífico escritor e divulgador científico Isaac Asimov duvida do aparecimento de uma supernova, mas reconhece a singular aproximação entre Júpiter e Saturno ocorrida, segundo ele, em 7 a. C. A hipótese que tem por mais plausível é, todavia, a da passagem do cometa Halley pelo sistema solar interno, que se verificou em 11 a. C. Não existem, em qualquer caso, provas concludentes sobre a existência da estrela da Natividade (cf. Salvador Muñoz Iglesias, op. cit, , vol. IV, 1990, pp. 226ss). Podemos considerá-la um dispositivo literário, um estratagema metafórico para assinalar o domínio cósmico de Deus e o universalismo da sua mensagem; ou, de novo, encará-la como a concretização de uma referência do Antigo Testamento, aquela que é feita à estrela de Balaão no livro dos Números 24, 17: “Uma estrela de Jacob vai dominar, vai erguer-se um ceptro de Israel. ” Ou podemos, pura e simplesmente, eliminar a estrela dos céus da Judeia, considerando “patéticos” os esforços para demonstrar e documentar a sua existência (cf. Gianfranco Ravasi, op. cit. , p. 8) ou mesmo afirmando acidamente, como José Saramago: “Brilham lumes no céu? Sempre brilharam. ” Mas, se assim fizermos, com isso se perderá o mais cintilante dos mistérios da Natividade, a “ditosa strella, que os três Reys guiaste”, como lhe chamou o poeta quinhentista Diogo Bernandes. As primeiras testemunhas do nascimento de Jesus são pastores (e os seus rebanhos, claro). Não é difícil discernir a razão e o sentido da sua presença ali, no meio dos campos. A mensagem evangélica, neste passo, é cristalina: os pastores são os humildes, os pobres, os eleitos para a mesa do Senhor, alegoricamente apresentada sob a forma de manjedoura. Os pastores foram também os que de noite, naquela noite, se encontravam de vigia, atentos aos sinais dos céus, o que inspirará as veladas e as orações nocturnas da tradição monacal. Não por acaso, uma das figuras características nos presépios napolitanos — também presente em alguns exemplares do barroco português — é o homem que dorme, o “dorminhoco” que não está atento aos sinais de Deus nem se encontra pronto a acolher a mensagem da Natividade e seus mistérios. O sono corresponde, neste contexto, a uma alusão metafórica à descrença e ao paganismo. Por outro lado, Cristo, nascendo entre pastores, será, como David, o grande Pastor dos homens. “Não tenham medo!”, diz-lhes o anjo num cântico (Lc 2, 9), exortação retomada e mundialmente celebrizada por João Paulo II, que antes de ser Papa fora arcebispo de Cracóvia, a cidade dos presépios resplandecentes. Dos Reis Magos muito se poderia dizer, começando pelo facto de, segundo diversos exegetas, a sua presença não ser essencial à apreensão do Natal e seus mistérios (cf. , por ex. , Jean Daniélou, op. cit. , p. 105). Contudo, o facto é que o Evangelho de Mateus refere os “sábios de Oriente” que vêm prostrar-se aos pés de uma família humílima, a que recusaram hospedagem no caminho para Belém, um dado muito expressivo e paradoxal, como sublinha o Evangelho de São João: “Veio para o seu próprio povo, que não o quis receber” (Jo 1, 11). “Nom tendes cama bom jesus não / non tendes cama senão no chão (…) / non tendes cama senão de feno”, dizia um poeta português anónimo do século XVI. De facto, a Sagrada Família teve de buscar refúgio num estábulo. A palavra “presépio” deriva do latim praesepe, cujo significado básico é “estábulo” ou “curral”, sendo composta pelo prefixo prae (“diante”) e pelo substantivo saepes (equivalente a “lugar fechado”, o que produziu a palavra “sebe”). O presépio só existe quando terceiros se encontram diante da cena da Natividade, que perante eles se apresenta — ou representa — teatral e cenicamente. Os Reis Magos não serão imprescindíveis para compreender a Natividade mas, juntamente com os pastores, afiguram-se essenciais para que exista “presépio”, tal como este é designado em castelhano, português ou italiano (em alemão, a palavra “Krippe” denominava apenas a manjedoura, à semelhança de “crèche”, em francês; a língua inglesa, curiosamente, não tem uma expressão para designar a representação figurativa da Natividade). A comitiva dos Reis Magos foi variando com o tempo. Chegaram a ser 12. Um decreto papal do século V, apoiando-se numa homilia de Leão Magno, fixou definitivamente em três o número dos sábios do Oriente. E se, de acordo com a interpretação agostiniana, a manjedoura equivale metaforicamente à mesa de Deus, para a qual todos são convidados, a tradição tomou os magos como reis de todos continentes então conhecidos — África, Ásia, Europa. Entre eles, encontra-se um rei negro, o que para diversos intérpretes, como Joseph Ratzinger, é sinal demonstrativo de que não há distinção de raça nem de proveniência no reino de Jesus Cristo. Na paleta de Vasco Fernandes e Francisco Henriques, a Adoração dos Reis Magos (1501-1506) apresenta mesmo, em vez de um negro, um índio de terras de Vera Cruz, da etnia tupinambá. Num registo menos surpreendente, até vulgar em representações barrocas, o Presépio da Madre de Deus, em Lisboa, atribuído ao escultor António Ferreira, exibe quatro cavaleiros árabes, na peugada dos sábios do Oriente. Também já se viu nos Magos a enunciação das idades da vida: a juventude (Baltasar), a idade adulta (Gaspar) e a velhice (Melchior). No entanto, a ideia de que os Reis Magos teriam vindo de todos os continentes não se coaduna com aqueloutra, igualmente sustentada por Ratzinger, segundo a qual os magos (mágoi) pertenceriam à casta sacerdotal persa ou, mais precisamente, a um pequeno grupo de astrónomos que ainda existiria na Babilónia e que teriam sido capazes de alcançar o significado da conjunção astral dos planetas Júpiter e Saturno no signo zodiacal dos Peixes, verificada nos anos 7-6 a. C. , ou seja, naquela que é apontada como a verdadeira data do nascimento de Jesus. A atribuição aos magos do título régio não coloca particulares problemas se, uma vez mais, for lida em articulação com elementos extraídos do Antigo Testamento, nomeadamente o Salmo 72 (“Os reis de Társis e das ilhas oferecerão tributos, / os reis de Sabá e de Seba mandarão presentes! / Todos os reis se curvarão diante dele; / todas as nações o servirão!”) e a passagem de Isaías 60 sobre a nova Jerusalém: “E os reis serão atraídos para o esplendor da tua aurora. ” No entanto, ao resolver-se deste modo a questão da realeza dos magos, outro problema se suscita. O Salmo 72, como se viu, alude aos reis de Társis, nome pelo qual os gregos descreviam a primeira civilização do Ocidente (Tártassos), a que os romanos chamavam Tartessus, localizada na actual Espanha, num triângulo formado na costa sudoeste da Península Ibérica e que hoje envolve as províncias de Huelva, Sevilha e Cádiz. Há quem assevere que este território civilizacional abrangia também o Algarve, as margens do Guadiana e até do Tejo. Poderemos supor que um dos Reis Magos era algarvio? Não. Os sábios que adoraram Jesus vieram de Oriente; a alusão à mais ocidental das civilizações então conhecida destina-se tão-só a sublinhar a vastidão do domínio do Messias ou, noutra perspectiva, o universalismo da sua mensagem, patente no cântico jubiloso de Simeão: “Já vi com os meus olhos o Salvador que enviaste para todos os povos” (Lc 2, 30-31). Ao menino de Belém, os Magos oferecem ouro, incenso e mirra, bens decerto supérfluos para o agregado familiar de um carpinteiro da Galileia, mas cujo alcance se descortina, uma vez mais, no Velho Testamento, nos já citados Salmo 72, 10-12 e Isaías 60, 5. Segundo a tradição da Igreja, o ouro apontaria para a realeza de Jesus, o incenso para o Filho de Deus e a mirra para a Paixão e seus mistérios. Na verdade, irrompe aqui, novamente, a polaridade entre o nascimento e a morte de Cristo, pois o Evangelho de João refere que, para ungir o corpo de Jesus, Nicodemos trouxe, entre outras coisas, como perfumes e aloés, uma grande quantidade de mirra (Jo 19, 39). Vindos de distintas origens, os Reis Magos chegaram a Jerusalém 13 dias depois do nascimento de Jesus. Feita sem paragens ou interrupções, numa caminhada em que todos, incluindo os animais, nada comeram ou beberam, a viagem, aos olhos dos Magos, pareceu ter sido realizada num só dia. No Livro dos Reis Magos, escrito na segunda metade do século XIV pelo monge carmelita João de Hildesheim, diz-se que “muitos se espantam pela rapidez da viagem”. Logo de seguida, o frade acrescenta que, se para tudo existisse uma explicação racional, a fé seria desnecessária. Na verdade, muito do que se lê nos Evangelhos não é compreensível à luz da razão. Por exemplo, não se percebe o motivo pelo qual Herodes mandou matar todas as crianças até à idade de dois anos: teria demorado tanto tempo a aperceber-se de que os Reis Magos o enganaram?O tempo da Natividade não é, decididamente, o tempo das cronologias — como o demonstra, desde logo, a inaudita velocidade com que os Reis Magos e os seus exércitos chegaram à gruta de Belém. A propósito de outro trecho dos Evangelhos, há quem distinga o tempo cronológico do tempo da revelação. Diz-se que há o tempo da acção, por um lado, e o tempo das personagens, por outro; e que, sendo a narrativa uma operação sobre o tempo, a narrativa vocacionada para as personagens é diferente da que tem por objecto a acção (cf. José Tolentino Mendonça, A Construção de Jesus. A Surpresa de Um Retrato, 2004, pp. 164ss). É também isso que ocorre, e porventura com ainda maior intensidade, nos “evangelhos da infância”, não sendo ao acaso que, na peça de Shakespeare, o príncipe Hamlet proclama que “o Natal é tempo santo e cheio de graça”. Na verdade, o Natal desperta um tempo suspenso, adormecido, em que a febril actividade humana é alvo de súbita paragem e momentânea pausa. Com o frio lá fora, ao lume da lareira antiga, os homens dão tréguas a si próprios e ao vazio trepidante em que vivem. Durante uns dias, ou um par de horas, o ritmo abranda, no convívio festivo com os entes mais queridos ou próximos. A alegria transbordante aparece sempre, seja de forma real ou simulada, serena ou ruidosa. Suspendem-se os conflitos e as inimizades, pensa-se nos que estão distantes e sós, tudo nos serve de pretexto para o doloroso recordatório de natais pretéritos, os da meninice — e para a saudade dos que já partiram. A “Trégua de Natal” de 1914, quando espontaneamente, dos dois lados das trincheiras, os soldados alemães e britânicos decidiram largar as armas e, em vez de tiros, trocar entre si saudações festivas, cânticos natalícios — e até presentes! — comprova o poder apelativo da Noite Santa, a sua enorme força simbólica. A Weihnachtsfrieden ou Christmas truce da Primeira Guerra é tão intrigante como a caminhada dos Reis Magos, só sendo explicável no quadro do tempo suspenso que caracteriza a Natividade e seus mistérios. Não há mistérios sem nuvens. E a nuvem, espessa e poderosa, lá aparece nos Evangelhos. Na Anunciação, Gabriel diz a Maria: “O Espírito Santo descerá sobre ti e o poder do Deus altíssimo te cobrirá com uma nuvem” (Lc 1, 35). A nuvem sagrada — a shekinà — assinala a presença de Deus, ao mesmo tempo que o esconde. Ela surge, luminosa mas ameaçadora, em diversas passagens do Livro do Êxodo. Quando o povo de Israel marchou para o deserto, conduzido por Moisés, foi orientado, de dia, por uma coluna de nuvens e, de noite, por uma coluna de fogo (Ex 13, 21-22); ao chegarem ao Sinai, uma “espessa nuvem” cobriu o monte (Ex 19, 16); então, Deus ordenou a Moisés que subisse o monte, que permaneceu coberto pela nuvem durante seis dias; ao sétimo dia, do interior da nuvem, o Senhor chamou Moisés, que entrou na nuvem, subiu ao monte e aí esteve 40 dias e 40 noites (Ex 24, 15-18). No Novo Testamento, a nuvem reaparecerá num dos momentos cruciais e mais carregados de mistério, a Transfiguração. Quando Jesus leva Pedro, João e Tiago a um monte, para orarem, uma nuvem passa por cima deles e os discípulos ficaram cheios de medo. “Da nuvem saiu então uma voz, que dizia: ‘Este é o meu Filho querido. Escutem o que ele diz’”, um relato presente nos três sinópticos (Mt 17, 5; Mc 9, 7; Lc 9, 35). Escutemos, pois, o que nos dizem os filhos de Deus — Cristo e todos os homens. Crentes ou não-crentes, devemos, acima de tudo, reconhecer a inquestionável verdade poética das narrativas evangélicas da Natividade (cf. Frederico Lourenço, O Livro Aberto: Leituras da Bíblia, 2015, p. 40). Eis uma mensagem que também interpela a Igreja, devendo lembrar-se que a última obra a ser colocada no Índex, antes de este ser abolido, foi o livro Vie de Jésus (1959), de um notável biblista francês, Jean Steinman. A sua leitura foi proibida devido ao capítulo dedicado aos “evangelhos da infância”, o que prova que estes são uma questão muito mais séria do que uma mera fábula com burros e vacas ou uma historieta fantasiosa que ciclicamente, todos os anos, emerge e sinaliza a “quadra natalícia”, à semelhança do frenesi das compras ou das mortes nas estradas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há poucas semanas, em finais de Novembro, uma mãe em desespero deixou o seu filho recém-nascido na manjedoura de um presépio montado numa igreja de Queens, em Nova Iorque. A polícia conseguiu localizar a mulher, que disse estar convicta de que na igreja cuidariam melhor do seu bebé do que ela. A criança, um rapaz, estava embrulhada numa toalha, trazendo ainda consigo resquícios do cordão umbilical. Segundo os jornais, a mulher não será processada criminalmente, uma vez que a legislação vigente no estado de Nova Iorque permite que os pais de crianças com menos de 30 dias as deixem ao cuidado de outrem ou as abandonem numa suitable location, um “lugar apropriado”. Neste caso, o lugar tido como “apropriado” por uma mãe em desespero foi uma igreja do bairro de Queens. Mais precisamente, a Igreja do Menino Jesus.
REFERÊNCIAS:
Vestígios de Lisboa
Depois de ter orientado no Porto o workshop “A escuta da Cidade”, o jornalista e investigador brasileiro Marcelo Carnevale, com pensamento sobre a ocupação do espaço público, viajou até Lisboa. Aquilo que encontrou está longe das imagens que construiu durante uma vida. Impressões da cidade, em português do Brasil. (...)

Vestígios de Lisboa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois de ter orientado no Porto o workshop “A escuta da Cidade”, o jornalista e investigador brasileiro Marcelo Carnevale, com pensamento sobre a ocupação do espaço público, viajou até Lisboa. Aquilo que encontrou está longe das imagens que construiu durante uma vida. Impressões da cidade, em português do Brasil.
TEXTO: No vagão do trem que circula pelo subterrâneo lisboeta, duas mulheres negras revelam os matizes da cidade. Em um silêncio cansado, imprimem a primeira imagem de boas-vindas ali, no metrô que parte da Estação Oriente para conduzir-me ao Rossio. São oriundas de alguma ex-colônia, como eu e, sem se darem conta, oferecem-me a sensação de familiaridade, pelos tons de pele chocolate e caramelo, tão presentes no Brasil. Nesse instante, são a luz quente de Lisboa. Eu, a andar no sentido contrário ao do trem, como se retrocedesse no tempo, ganho esse enquadramento nas minhas lentes: seus rostos tão marcantes à minha frente. Elas fazem-me relembrar a infância no Rio de Janeiro, os vendedores ambulantes na areia da praia, os moradores em situação de rua, quase todos de pele negra sob o sol escaldante, em contraste com o branco das pedras portuguesas. Meu destino é a Estação do Rossio e o trem avança: Cabo Ruivo, Olivais, Chelas, Bela Vista/Chelas, Olaias, Alameda, Arroios, Anjos, Intendente, Martim Moniz e, finalmente, Rossio. Carrego Lisboa nos bolsos como um poema escrito há muito tempo, como o verdadeiro tesouro achado na infância carioca: a cidade imaginária que eu conseguia decalcar dos detalhes arquitetônicos do Rio de Janeiro, um exercício de ver uma cidade dentro da outra cidade. Porque as crianças conseguem ver riquezas nas pedras portuguesas. Brincam de escolher uma das figuras que se repetem no padrão estampado nas calçadas e caminham sem pisar em qualquer outra diferente, para não “perder o jogo”. Sempre soube, sempre desejei esta cidade. As lembranças fogem quando meu telemóvel passa a receber mensagens de outro brasileiro. Alugou-me um quarto próximo ao Elevador de Santa Justa. É didático na hospitalidade e tenta cercar-se de todas as certezas de que suas pistas levarão ao endereço o quanto antes. Nem desconfia de que estou perdido nos anos 80, mergulhado na memória de um centro carioca decadente e emudecido na sua importância como ex-sede do império português, como ex-capital do Brasil. Esforço-me para sair do torpor, igual ao das mulheres negras diante de mim. A segunda imagem lisboeta vem pelo mesmo WhatsApp: é uma cruz verde tipo néon. Sinaliza que meu endereço fica ao lado da farmácia. Não sei por quê, o luminoso rouba-me o encanto. Nesses últimos anos, uma cena do documentário Mariza and the story of fado, produzido pela BBC, em 2007, marcou-me profundamente: o compositor Pedro Campos apresenta à cantora sua nova composição, Montras. A cena em que eles tomam vinho em taças grandes, a conversar e a cantar, é bonita pela simplicidade, mas, sobretudo por adiantar-me algo de Lisboa nos versos da letra: “. . . voam gaivotas no horizonte, só o teu amor é tão real”. “Montras” é uma palavra desconhecida para nós, brasileiros. Só soube dela pela música e é dela que me lembro (mesmo sem ainda saber seu significado), quando, ao alcançar a rua na saída da Estação Rossio, me deparo com a realidade. O que enxergo, com o olhar de visitante, é uma cidade exposta a um turismo massivo, como se cada detalhe da Baixa pudesse transformar-se num souvenir sem lembranças. Sem querer, o significado de “montras” (vitrine) revela-se nessa experiência: a imagem de uma cidade-vitrine, que se vende a si mesma como um artigo chinês de fabricação duvidosa. Por alguns instantes, detesto Lisboa. Sinto vergonha ao descobrir-me na condição de turista, tão distante da cidade imaginária desenhada na minha infância. Meu sonho voa rapidamente do bolso da camisa como um papel de bala pelas pedras portuguesas do Rossio. Resta apelar ao google maps e enquadrar-me como mais um dos turistas-rinoceronte: cabeça baixa, guiado pelos smartphones e pelas “montras”. Meu senhorio está a postos. Com orgulho, detalha a façanha de ter quatro imóveis alugados em nome dele para sublocar aos turistas. Aponta para o espaço e diz excitado: só este quarto, na alta temporada, paga boa parte dos custos de todos os imóveis. Falastrão, despeja uma série de problemas com seus inquilinos: italianos, franceses, espanhóis. Gente que aluga e deseja antecipar a saída ou que reclama do barulho da Baixa. Ele sente orgulho desses problemas, como um executivo de grandes negócios. Olho para aquela cama de rentabilidade máxima, num apartamento de estilo pombalino com uma sacada. Livro-me da conversa e tento repensar a estratégia de como colocar o corpo na cidade, de como realmente chegar em Lisboa. Há um trunfo: nessa minha curta vida de turista-rinoceronte, eu ainda não vi o Tejo. Ganho a Rua Augusta, alcanço a Praça do Comércio num esforço de driblar estátuas humanas, shows de sapateado, performance de músicos cegos, pedintes, garçons oferecendo mesas e muitas, inacreditavelmente muitas selfies (aliás, pode-se alugar um pau de self oferecido por alguns africanos). Enfim, chego entre as Avenidas da Ribeira das Naus e Infante Dom Henrique. O Tejo, sob a perspectiva do passeio público, está tomado por pessoas felizes. Eu, cada vez mais melancólico, resolvo procurar os moradores da cidade. Plano complexo, mas que conta com a ajuda de um amigo lisboeta que mora em São Paulo. Acolhido por amigos dele, encontro Lisboa finalmente, 24 horas depois de chegar na Baixa, no 31 de dezembro de 2017. Quem são os lisboetas? Nesse cais, que liga o passado ao futuro, há os que resistem ao turismo que provocou outro tipo de terramoto na Baixa e no Chiado. Buscam algum tipo de consolo nos becos, escadas e mirantes. Mas quem são os lisboetas? O que encontro, para além da emblemática cena das roupas no varal, que indica sinal de vida local, são as diferentes perspectivas do Tejo. Encaixo mais uma peça no meu quebra-cabeça: os lisboetas são os que contemplam o Tejo, não o perdem de vista mesmo sem vê-lo a toda hora. Vez por outra, de relance, entre um beco e uma escada da Graça, eu vacilo e vejo a Baía da Guanabara. As duas cidades confundem-se dentro de mim. Lisboa é a cidade que eu invento, composta por outras vivências, no caso, fortemente, pelas lembranças do centro carioca. Não é saudade, mas reinvenção. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quanto mais lisboeta percebo-me, mais carioca eu sou. Trata-se de um retorno a um Rio de Janeiro que não existe mais e da descoberta de uma Lisboa que só existiu na minha cabeça. O céu azul das duas cidades, os montes, as cozinhas generosas, os navios, os portos, os botequins, as mercearias com legumes e frutas expostas, um tipo de humor, um tipo de tristeza e uma vocação para a resistência. São cidades fortes, com topografias imperiais e sítios urbanos com pequenas joias, guardada a proporção entre o que faz a mais antiga tão rica na arquitetura histórica e, a mais nova, deslumbrante, numa topografia que homenageia de forma surpreendente a terra portuguesa. Sempre traí o Rio com Lisboa. Como um amante que, finalmente, depois de anos, toma coragem para lançar-se na empreitada amorosa, percebo que é tarde demais. Lisboa não me esperou. Tenho vontade de caminhar dia e noite, já sei que não ficarei muito tempo, pois sonhos são inabitáveis. Tento seguir um velho que se embrenha por um beco, como se pudesse roubar-lhe o passado e tudo o que ele viveu aqui. Na errância, dos becos da Alfama caio num plano inóspito da Rua da Alfândega. Constato que o cais não recebe mais invasores, comerciantes, artistas, aventureiros, muito menos amantes. Agora, a cidade turística mata a sede dos curiosos e quase tudo está fora de alcance. Resta a partida, o Tejo e o mar.
REFERÊNCIAS:
O racismo existe e eu sei o que isso é
Gostava de dizer que o racismo não existe, que os brancos não são racistas, que os negros não são racistas, que os amarelos não são racistas, que o que se passou na Feira do Livro não é sintomático do que nós somos — racistas. (...)

O racismo existe e eu sei o que isso é
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 17 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Gostava de dizer que o racismo não existe, que os brancos não são racistas, que os negros não são racistas, que os amarelos não são racistas, que o que se passou na Feira do Livro não é sintomático do que nós somos — racistas.
TEXTO: A minha mãe é portuguesa. Alfacinha de gema, filha de lisboetas, neta de beirões, da Beira Alta e da Beira Baixa, bisneta e trineta de descendentes de judeus (sabem que os judeus quando perseguidos foram esconder-se para aqueles lados?) e de africanos, do Norte de África (não é por acaso que a Mouraria se chama Mouraria, também sabem disto?). A minha mãe portuguesa casou-se com o meu pai chinês, raça pura, amarelo de gema. A minha mãe podia ter-se casado com um alemão, com um guineense, com um israelita, com um coreano, com um argentino — a universidade onde estudou tinha gente de todo o lado —, mas casou-se com o meu pai, com quem aterrou na Portela no início da década de 1970. O pai da minha mãe não gostou, sempre o tratou por “senhor engenheiro”; a minha avó adorava-o e chamava-o pelo seu nome. Crescer numa altura em que havia apenas dois canais de televisão — um deles só começava a funcionar a meio da tarde —, não havia Internet e pouquíssimos portugueses tinham saído da sua terra, não foi fácil. Não me esqueço de um domingo, a seguir à missa, numa terreola qualquer perdida no centro do país, de os miúdos da nossa idade nos virem tocar, a mim e aos meus irmãos, para confirmarem que éramos reais. As pessoas ficarem a olhar para nós e a comentar, como se não as víssemos nem as ouvíssemos, era constrangedor e, à medida que fomos crescendo, cada um foi criando a sua carapaça, lidando com a coisa da melhor maneira que sabia. Na minha adolescência não se falava de bullying, mas não tenho dúvidas de que fui vítima de violência verbal e psicológica sistemática. Sempre relativizei as bocas, os empurrões, os bilhetinhos anónimos, porque se não fosse por ser chinesa, seria por ser bem-comportada, por me vestir de uma maneira estranha, por me chamar Bárbara no tempo das Carlas, das Paulas e das Sandras, ou, simplesmente, porque sim. Isso acontece a todos os que são diferentes, não é?Tive a “sorte” de ser pouco chinesa. Costumo dizer que a raça se foi aperfeiçoando à medida que os meus irmãos foram nascendo. Eu sou amarela e pequena, mas tenho os olhos e o nariz grandes; o meu irmão é alto e de tez clara, só o feitio dos olhos esverdeados o denunciam; segue-se a minha irmã do meio, que poderia ser tailandesa, e, por fim, a mais nova é chinesa, chinesa, ninguém dirá que a sua mãe é portuguesa senão pelo tamanho das suas ancas. Depois do 3. º ciclo nunca mais ouvi uma boca, já a minha irmã ouve expressões como: “Volta para a tua terra. ” Palavras que também os portugueses de origem africana ouvem. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Numa noite de Santos Populares caminhava de braço dado com a minha irmã do meio e, de repente, levamos um empurrão de duas raparigas, umas africanas elegantíssimas, que nos olharam e cuspiram um “chinesas. . . ” com desdém. Desarmámo-las com uma gargalhada, não podemos deixar de nos rir, as duas, pelo ridículo da situação, e comentámos: Não sofrerão do mesmo? Por que não há solidariedade racial?Hoje lembro-me de que tenho origem chinesa — na verdade, é só um nome, porque não conheço a língua, a história ou a cultura, uma opção parental — quando entro num táxi, em trabalho, e o meu nome lá está, Wong, escarrapachado no ecrã. “Yung, Oom, Vongue, Yang, como é que isto se diz. . . onde é que foi buscar um nome destes? É casada com um chinês? É chinesa? Não é nada! Você é bonita e elas são tão feias. . . ” Quando vou mais aborrecida, sou capaz de responder torto, olho para o cartão de identificação do taxista e digo-lhe: “Por acaso perguntei-lhe por que é que se chama Silva?” Outras, ponho a cassete, tal como faço com os professores doutores que vou entrevistar e que me perguntam o mesmo: “Naquele tempo ainda não havia Erasmus, mas a minha mãe foi estudar engenharia química para a Alemanha e conheceu o meu pai na universidade. ”Gostava de dizer que o racismo não existe, que os brancos não são racistas, que os negros não são racistas, que os amarelos não são racistas, que o que se passou na Feira do Livro de Lisboa (uma voluntária da feira interrompeu um debate sobre racismo, onde os convidados eram todos negros) não é sintomático do que nós somos — racistas. Nos momentos mais dramáticos do meu crescimento, porque a adolescência é um drama, perguntava em lágrimas à minha mãe: “Por que é que te casaste com um chinês?”, e a resposta era óbvia: “Porque amo o teu pai. ” Eu achava-a tão egoísta. “Como é que não foste capaz de pensar em nós?”, e virava-lhe as costas de maneira teatral. Hoje, consigo compreender que o amor pode ser a resposta para tudo na vida, até para o racismo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha violência cultura racismo chinês raça
Diários de viagem de Einstein revelam "comentários racistas"
Mais tarde, o físico tornou-se um defensor dos direitos dos negros nos EUA e considerou o racismo "uma doença dos brancos". (...)

Diários de viagem de Einstein revelam "comentários racistas"
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 17 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mais tarde, o físico tornou-se um defensor dos direitos dos negros nos EUA e considerou o racismo "uma doença dos brancos".
TEXTO: Uma série de observações registadas por Albert Einstein em diários de viagens pela Ásia e pelo Médio Oriente, entre 1922 e 1923, mostram que o cientista e humanista nascido na Alemanha tinha, por essa altura, uma visão estereotipada de alguns povos, em particular dos chineses. Uma década depois, com a subida dos nazis ao poder no seu país natal, Einstein viria a tornar-se numa das vozes da denúncia da segregação nos Estados Unidos, definindo o racismo como "uma doença dos brancos". O físico é lembrado pelas suas posições contra a discriminação racial tanto na Alemanha como nos Estados Unidos, onde passou a viver a partir de 1933 – pouco depois da ascenção do Partido Nazi ao poder e de uma década de discursos e acções de violência contra os judeus. Num dos discursos mais vezes lembrado, proferido na Universidade Lincoln (Pensilvânia, EUA), em 1946 – a primeira instituição norte-americana a conceder diplomas a afro-americanos –, Einstein disse que o racismo é "uma doença dos brancas". Para além desse discurso, Einstein teve várias intervenções públicas contra o racismo e a segregação que o posicionaram na História não só como um físico brilhante como também um humanista. Agora, com a publicação de alguns diários de viagem escritos no início da década de 1920, fica a conhecer-se a visão estereotipada com que Einsetein olhava para alguns dos povos que foi encontrando nas suas viagens pela Ásia e pelo Médio Oriente. Os chineses – escreveu Einstein – são "um povo diligente, imundo e obtuso", e no Sri Lanka (então Ceilão), o fisico encontrou pessoas "que vivem em grande imundice no chão, que fazem pouco e precisam de pouco". Estes textos intimistas, que não se destinavam a ser publicados, foram agora traduzidos do alemão e publicados pela primeira vez em inglês pela Princeton University Press. Os diários já tinham sido publicados em alemão, como parte de uma colectânea de ensaios e trabalhos académicos de Albert Einstein, com algumas traduções suplementares em inglês. Ze'ec Rosenkranz, responsável pela tradução do texto e director assistente do Projecto Einstein Papers (do Instituto de Tecnologia da Califórnia), disse que é normal que estes comentários choquem o leitor actual. "Acho que muitos destes comentários nos parecem muito desagradáveis – especialmente o que ele diz sobre os chineses", disse Rosenkranz em declarações ao Guardian. Isso deve-se ao contraste "com a imagem pública do grande ícone humanitário". "Acho que é um pouco chocante lê-los e contrastá-los com as afirmações públicas. Estão mais desprotegidos, ele não os escreveu para serem publicados. "Einstein tece também comentários de "extrema misoginia" sobre as mulheres chinesas, quando escreve, de forma depreciativa, que "há pouca diferença entre homens e mulheres", e que não compreende como elas conseguem ter tantos filhos. "Notei a pouca diferença que há entre homens e mulheres e não percebo que tipo de atracção fatal têm as mulheres chinesas que enfeitiçam os homens a tal ponto que são incapazes de se defenderem contra a bênção extraordinária da descendência". Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pelo contrário, as percepções sobre japoneses são positivas: "Os japoneses são modestos, decentes e muito atraentes", escreveu. "Almas puras, como ninguém. Uma pessoa ama e admira este país. " Mas, como salienta Rosenkranz, a reflexão conclui com um comentário depreciativo: "As necessidades intelectuais desta nação parecem ser mais fracas do que as necessidades artísticas – disposição natural?", questiona Einstein. "A entrada do diário de Einstein sobre a origem biológica da alegada inferioridade dos japoneses, chineses e indianos não devem ser minimizadas e podem ser vistas como racistas – nestes momentos, os outros povos são vistos como sendo biologicamente inferiores, uma bandeira do racismo", argumenta Rosenkranz. "O comentário inquietante sobre a possibilidade de os chineses virem a 'suplantar todas as outras raças' é um dos mais reveladores neste aspecto. "Rosenkranz disse ao Guardian que, embora as visões de Einstein fossem prevalentes à época, não eram universais. "Essa é a reacção que recebo – 'temos de perceber, era o espírito da época [zeitgeist, no alemão], parte do seu tempo'", disse o editor. Mas a verdade é que "havia mais pontos de vista, e pontos de vista mais tolerantes", disse. "Parece que Einstein teve algumas dificuldades em reconhecer-se na face do outro", conclui.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Festa do Cinema Francês chega com Jean-Jacques Annaud
O realizador de O Nome da Rosa é o “padrinho” do evento, que conta com uma retrospectiva de Jacques Doillon e alguns dos mais falados filmes franceses dos últimos meses. (...)

Festa do Cinema Francês chega com Jean-Jacques Annaud
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-09-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: O realizador de O Nome da Rosa é o “padrinho” do evento, que conta com uma retrospectiva de Jacques Doillon e alguns dos mais falados filmes franceses dos últimos meses.
TEXTO: Jean-Jacques Annaud, o realizador de O Nome da Rosa e O Amante, é o padrinho da edição 2015 da Festa do Cinema Francês, que abrirá dia 8 de Outubro com a ante-estreia do seu mais recente filme A Hora do Lobo. A 16ª edição do popular evento dedicado à divulgação da cinematografia francesa decorre este ano de 8 de Outubro a 29 de Novembro em 18 cidades portuguesas, começando como sempre em Lisboa, onde se instala no cinema São Jorge e na Cinemateca Portuguesa até dia 18. Annaud será um dos convidados presentes durante a Festa, a par de uma outra figura grande do cinema francês, Jacques Doillon, realizador de Ponette, homenageado por um grande ciclo retrospectivo na Cinemateca Portuguesa. Como é já habitual, a Festa mostra uma série de filmes inéditos em Portugal a par de algumas das mais esperadas ante-estreias da produção francesa do ano. Já adquiridos para Portugal estão Lolo, de Julie Delpy (actriz de Richard Linklater e autora de 2 Dias em Paris), ou O Meu Rei, de Maïwenn (Polissia), um dos títulos franceses presentes na edição 2015 de Cannes, que valeu a Emmanuelle Bercot o prémio de interpretação feminina. A Festa mostrará também Un Français, o muito controverso filme de Diastème sobre um jovem neo-nazi (o realizador virá a Lisboa acompanhar o filme), e Fidelio – L'Odyssée d'Alice, de Lucie Borleteau, com Ariane Labed (prémio de interpretação feminina em Locarno 2014) no papel de uma engenheira da marinha mercante. A Festa encerrará em Lisboa a 18 com Marguerite de Xavier Giannoli, recém-exibido no concurso de Veneza. O padrinho Jean-Jacques Annaud acompanhará não apenas a ante-estreia de A Hora do Lobo como também um pequeno ciclo retrospectivo que inclui os seus filmes mais importantes: a sua estreia Preto e Branco a Cores (1976, Óscar de melhor filme estrangeiro), Golpe de Cabeça (1979), A Guerra do Fogo (1981), O Nome da Rosa (1986), adaptação do romance de Umberto Eco com Sean Connery, O Urso (1988) e O Amante (1992), baseado em Marguerite Duras. De salientar que A Hora do Lobo marcou o enterrar do “machado de guerra” do realizador com as autoridades chinesas, que haviam interditado a estreia do seu filme de 1997 Sete Anos no Tibete, interpretado por Brad Pitt. O novo filme é uma co-produção oficial rodada na China sobre um professor chinês (Feng Shaofeng) enviado para a Mongólia onde se torna num ardente defensor dos direitos dos lobos. Quanto a Jacques Doillon, trata-se de um dos mais importantes autores franceses do pós-Nouvelle Vague, que será mais recordado do grande público pelo seu título de 1996 Ponette, sobre o modo como uma menina de quatro anos (Victoire Thivisol) reage à morte da mãe. A Cinemateca receberá um conjunto de dez filmes onde se inclui a sua última realização, Mes Séances de Lutte (2013), mas também títulos chave da sua obra como A Vida de Família (1984), A Apaixonada (1987), La Fille de 15 Ans (1989), ou O Pequeno Criminoso (1990). Para além do Porto (Rivoli) e de Coimbra (Teatro Académico Gil Vicente), a Festa chegará também a Almada, Aveiro, Beja, Braga, Caldas da Rainha, Évora, Faro, Guimarães, Leiria, Portimão, Santarém, São Pedro do Sul, Seixal, Setúbal e Viana do Castelo. As datas estão ainda em finalização e o programa completo será disponibilizado brevemente aqui.
REFERÊNCIAS:
A meditação que salvou os rapazes tailandeses também cá ajuda nas escolas
Alunos mais calmos, menos ansiosos e concentrados. Em Portugal há projectos de meditação e ioga aplicados às salas de aula. (...)

A meditação que salvou os rapazes tailandeses também cá ajuda nas escolas
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Alunos mais calmos, menos ansiosos e concentrados. Em Portugal há projectos de meditação e ioga aplicados às salas de aula.
TEXTO: Silêncio, chiu! Ao sinal do toque na taça tibetana, duas dezenas de crianças, com quatro e cinco anos, já sabem que os próximos minutos são para meditar. Sentadas no chão, pernas cruzadas, têm os olhos fechados à excepção de duas ou três, e inspiram e expiram devagar. Seguem viagem pela floresta até ao arco-íris guiados pela voz da educadora da creche para depois “regressarem” à sala em Miramar, Vila Nova de Gaia. Estão a meditar tal como milhares de crianças já fazem em contexto de sala de aula em Portugal. E com resultados: mais calmas, menos ansiosas e com mais concentração. Por estes dias, muito se falou na importância da meditação com o mundo de olhos postos no resgate dos rapazes da equipa de futebol e do seu treinador de uma gruta de Thuam Lang, no Norte da Tailândia. Esta gestão emocional terá sido importante para os jovens e para o professor manterem a calma e controlarem a ansiedade perante o perigo que viveram por mais de duas semanas. Como evitar ataques de pânico e não ter medo? Com o mindfulness – um “ramo” da meditação –, “as pessoas aprendem a controlar e desenvolver a atenção, a estabilizar o estado mental, o que lhes permite ter mais consciência dos seus pensamentos e emoções que influenciam as suas respostas e comportamentos”, defende o presidente da Associação Portuguesa para o Mindfulness (APM), o psiquiatra José Pinto Gouveia. Logo, sublinha, “a ansiedade e a depressão são menores”, o que pode ter sido o caso dos rapazes da equipa de futebol. A meditação também poderá ter ajudado a não se deixarem sucumbir aos pensamentos negativos, como por exemplo a possibilidade de morrerem, enquanto estavam presos na gruta. “A meditação treina-nos para não considerar o pensamento como sendo realidade”, explica Dulce Gonçalves, mentora do projecto Mentes Sorridentes, que começou há quatro anos com alunos de educação especial, do agrupamento de escolas João Villaret, em Loures, e que já se alargou a outras escolas como em Odivelas e Póvoa de Varzim. Neste último ano, Dulce Gonçalves avaliou o projecto na Escola Secundária da Ramada, em Odivelas, com o apoio da APM. E constatou que o grupo de alunos do 3. º ciclo e secundário, com uma média de 15 anos de idade, que praticou mindfulness conseguiu controlar os pensamentos. Este grupo experimental concretizou o projecto durante oito semanas a fazer mindfulness, uma vez por semana, e havia um outro grupo de controlo que não fez. Nesta avaliação também se constatou o aumento do bem-estar físico e qualidade das relações sociais entre os jovens. “O mindfulness é uma atitude de vida, há uma consciência do que está a acontecer sem que nos deixemos ser controlados pelos pensamentos porque, ao meditar, vou focar-me, por exemplo, na respiração ou nos sons que ouço”, explica Dulce Gonçalves, com uma pós-graduação em terapias cognitivo-comportamentais. Também Tomás de Mello Breyner, mentor do projecto O Pequeno Buda, defende que a meditação “é uma ferramenta que ajuda a controlar as flutuações mentais cada vez que surge um pensamento negativo e [ajuda] a estar calmo”, de maneira a não reagir a quente e de forma precipitada. No caso dos rapazes da Tailândia poderá ter sido essencial, acredita. Mello Breyner já pôs dez mil crianças a meditar em escolas de todo o país, como o que acontece no Colégio do Sol dos Pequeninos, em Vila Nova de Gaia. As aulas de ioga e meditação chegaram às escolas com o objectivo de ajudar as crianças. Tomás de Mello Breyner quis “ensinar o que não se ensina na escola: a perceber o que é a nossa mente”. “Vivemos numa sociedade muito agitada, com um ritmo de vida acelerado que é imposto às crianças, que lhes causa ansiedade e falta de concentração e, como consequência, algumas acabam por sentir frustração e baixa auto-estima, o que muitas vezes leva à medicação”, descreve. Além disso, continua, há “a imensa carga de trabalhos de casa e avaliações, uma elevada carga horária e um excesso de estímulos da era digital” que também contribui para o stress e ansiedade. O projecto O Pequeno Buda “não vai fazer desaparecer os elementos causadores de stress, mas sim ensinar aos alunos uma técnica que lhes vai permitir fazer uma melhor gestão intelectual e emocional” da vida, defende. Como? Através do “Quiet Time”, ou seja, um momento em que as técnicas de meditação e de relaxamento são aplicadas, de modo a que as crianças e os jovens fiquem mais calmos, concentrados, empáticos entre si e em relação ao professor. Também o projecto de mindfulness da Mentes Sorridentes, que é aplicado por uma equipa multidisciplinar de professores, psicólogos e médicos, em escolas de Norte a Sul do país, “treina o desenvolvimento de uma atenção estável e focada no presente, na consciência das sensações, sentimentos e pensamentos que emergem na mente”, elucida Dulce Gonçalves, que foi finalista do prémio Melhor Professor de Portugal. É o treino da mente, tal como se vai ao ginásio para exercitar o corpo. “O mindfulness é um treino mental estudado cientificamente. Nos EUA há estudos que mostram que ajuda os miúdos com défice de atenção e hiperactividade”, sublinha o presidente da APM, que aplica esta metodologia em determinadas situações clínicas. Um dos projectos, que dura oito semanas, chama-se Kg-free, pensado para mulheres obesas, que sofrem de distúrbio de ingestão alimentar compulsivo. “Os resultados são positivos em meia centena de mulheres”, informa José Pinto Gouveia. No contexto da psicologia, o mindfulness surge, então, defende, como uma ferramenta importante para a psicoterapia. “Como psiquiatra defendo que o mindfulness pode ser uma ferramenta útil nas escolas quando bem utilizado. Temos aplicado e avaliado. É preciso informar as pessoas, explorar o que é”, considera, ressalvando que “os professores não devem fazer este tipo de meditação sem terem formação e que devem fazer dela uma prática regular”. Também o professor de Educação Física Sabino Soares, que foi finalista do prémio de Melhor Professor de Portugal, usa o mindfulness para trabalhar as emoções, melhorar o desempenho escolar e o comportamento dos alunos na escola n. º 6 de Olhão, situada num bairro social algarvio, com muitos alunos com dificuldades de aprendizagem e falta de concentração nas aulas. Chama-lhe Pausa M, que acontece duas vezes por dia, também para atenuar conflitos, pois ensina os alunos a “fazer stop, respirar fundo duas a três vezes quando estão perante uma situação que não é fácil, para não reagirem a quente e não baterem, chamarem nomes ou gritarem”, elucida. No caso dos meninos tailandeses fazer stop pode ter ajudado a evitar uma precipitada tomada de decisões e a não correrem risco de vida. Também o projecto-piloto de ioga no Agrupamento de Escolas do Alto do Lumiar, em Lisboa, dado pela Confederação Portuguesa de Yoga e que foi proposto à escola pela Câmara Municipal de Lisboa, procura ajudar as crianças a ficarem mais serenas e concentradas. Todos estes projectos, ressalvam os responsáveis, não têm qualquer vínculo com religiões ou crenças; são exercícios que servem para o desenvolvimento natural de todos. “O mindfulness é uma técnica, treino da mente, que não tem nada de esotérico nem sequer mexe com energias. Gostaríamos que fosse levado mais a sério, pois estamos a avaliar cientificamente os dados”, salvaguarda Dulce Gonçalves. “Já tive casos de miúdos que se automutilavam e tinham ataques de pânico e o sucesso resulta de sermos uma equipa multidisciplinar”, assegura. João Lopes, professor da Universidade do Minho na área da psicologia da educação, contrapõe, baseando-se em três tipos de artigos publicados sobre o assunto nos EUA. E diz que existe uma “fraca evidência” na utilização do mindfulness para reduzir a ansiedade e depressão. Os estudos não encontram ganhos significativos em comportamentos sociais em pessoas que foram sujeitas a este tipo de metodologias, afirma. “Em relação às escolas é uma perda de tempo, porque enquanto se está a fazer isto, não se está a fazer outras coisas”, avalia. Mais ainda, questiona, “havendo tanta gente a queixar-se que não tem tempo para dar os programas lectivos, por que é que têm tempo para fazer este tipo de actividade que a literatura não mostra melhorarem os comportamentos agressivos e a ansiedade?”. A evidência científica não pode assentar em opiniões das pessoas e para haver estudos deste género é preciso haver um grupo de controlo, acrescenta João Lopes. Dulce Gonçalves, das Mentes Sorridentes, diz serem feitas avaliações da aplicação do projecto e haver um grupo de controlo. “Avaliamos o impacto com um conjunto de testes certificados cientificamente, aplicados por psicólogos e há uma avaliação pré e pós-intervenção. ” Ao fim dos três anos, constataram melhorias da gestão emocional na relação com os outros. “Em termos científicos, não podemos dizer que as notas melhoraram por causa do mindfulness, [não podemos] estabelecer uma relação directa, mas melhoraram”, acrescenta a professora. O psicólogo João Lopes não acredita que seja possível as notas subirem com a utilização de métodos de relaxamento. Também o psicólogo José Morgado, do ISPA-Instituto Universitário, em Lisboa, “não acredita em receitas milagrosas. Nenhuma criança é a igual a outra. As crianças não vêm com um manual de instruções”. Contudo, o especialista em psicologia educacional considera boas as ferramentas do ioga e da meditação. “Se as ferramentas se encaixam, óptimo. Mas não pensemos que vêm revolucionar”, considera. “Sou mais reservado em centrar numa única resposta só pela capacidade de achar que há muitas variáveis que mexem com o comportamento das crianças”, justifica. Morgado confessa ter “alguma reserva em relação à utilização de recursos exteriores à sala de aula”. A solução está em toda a gente, já que “para educar uma criança é preciso uma aldeia, uma comunidade educativa”, logo, defende que o ideal é criar ambientes com menos agitação para as crianças. Tudo começa em casa, “se der mais atenção ao meu filho, se estou mais tempo com ele, se o estímulo mais vou notar benefícios”, exemplifica. Também João Lopes, da Universidade do Minho, que costuma ir às escolas fazer acções de formação aos professores, em que ensina técnicas de gestão e organização da sala de aula, crê que não é a meditação que vai resolver tudo, é preciso, sim, “estabelecer rotinas”, reforça. “Tenho pena que a educação seja uma área em que o experimentalismo é a palavra de ordem”, lamenta. O professor considera que a meditação nas escolas é “uma moda que dentro de algum tempo irá ser substituída por outra”. Numa sala cheia de brinquedos, com todo tipo de distracções, as crianças do Colégio Sol dos Pequeninos conseguem estar sossegadas à espera do toque da “taça do silêncio” como a educadora de infância Diana Alves Costa chama ao objecto de metal. Umas esfregam os olhos com as mãos, outras cerram-nos com toda a força enquanto a educadora de infância os vai guiando: “Pomos as nossas costas numa posição confortável, sentimos o ar entrar no nosso corpo, inspiramos e expiramos. Vamos imaginar que está muito quentinho e vamos dar um passeio pela floresta. . . ” No final, pede-lhes: “Devagarinho podemos abrir os nossos olhinhos e espreguiçar. ” É vê-los de braços esticados no ar, alguns deles a bocejar, os olhinhos a abrirem-se devagar com um enorme sorriso. “Imaginei-me mesmo na floresta a pisar as folhas e até ouvia o barulho delas. Estava a meditar”, conta Carla Mónica, cinco anos, com um ar muito sério. Os meninos com quem o P2 falou decidiram baptizarem-se com nomes fictícios de que gostam. Mas afinal o que é isso de meditar? “É tipo relaxar, acalmar a nossa cabeça, ficar mais descansada, e inspirar e expirar muito tranquila”, responde logo a Madalena, de cinco anos, com um enorme sorriso, interrompida por Carlos Tiago, olhos verdes grandes, seis anos de reguila, para explicar: “Pomos as pernas à chinês, fechamos os olhos e depois só vejo preto enquanto respiro fundo, mas gosto”, e ri-se perdido. “É acalmar o nosso corpo e tanto acalmo que estava quase a dormir”, acrescenta Matilde, cinco anos. Tomás de Mello Breyner, mentor do projecto Pequeno Buda, diefine a meditação como “a repetição contínua da mesma acção”. Meditação é coisa que Martim de três diz perceber bem: “Faço tom tom na taça e sinto assim uma coisa cá dentro e depois entra e sai oxigénio. ” A mãe, Vânia Guedes, graceja: “Em casa, o Martim toca numa taça parecida com esta que há aqui na creche e depois deita-se a meditar. Às tantas diz a ele próprio: 'Martim já te podes levantar'. ” A mãe acha-lhe piada e diz que desde que começou a meditação na creche está muito mais relaxado e concentrado. Vânia Guedes é educadora de infância noutro espaço mas já fez um workshop de meditação, ministrado pelo projecto Pequeno Buda. “Foi importante como estratégia para usar com o meu filho e na minha profissão junto dos meninos em momentos de birras e quando estão agitados”, justifica. Sónia Aires, directora do Sol dos Pequeninos, diz que o projecto vem responder à missão do colégio de “trabalhar os valores, a humanização e a identidade das crianças”. E nota que estão mais calmas e concentradas. Há alguns anos, numa das muitas viagens à Índia, “ao passar por uma escola na cidade de Kanpur, os miúdos antes de começarem as aulas iam para o ginásio fazer dez minutos de meditação. Aquilo mexeu comigo e disse para mim mesmo que, quando regressasse a Portugal, queria fazer o mesmo”, recorda Tomás de Mello Breyner. Assim foi. “Começámos, em 2014, com uma escola de Lisboa e aos poucos o projecto foi-se alargando”. No fundo, “é um sonho tornado realidade, é a prova de que a mudança da consciência global está a manifestar-se e isso é uma grande alegria”, realça. Mais a Norte, no Agrupamento Cego do Maio, na Póvoa de Varzim, há uma sala propositadamente preparada para acolher os primeiros participantes do projecto Mentes Sorridentes. Estamos em Janeiro – o P2 acompanhou o início do projecto na escola com alunos do 3. º ciclo – e a professora Ana Ribeiro vai dizendo: “Em casa podem fazer sentados, deitados. Hoje, vamo-nos colocar numa postura que nos ajude. Corpo direito, mais descontraído, pernas paralelas e afastadas, pés assentes no chão. ” E eles anuem, alguns mais calados, outros com risos, mas seguem as orientações de um áudio: “Feche os olhos ou fixe um ponto perto de si sem desviar o olhar. Inspire tranquilamente o ar pelo nariz e liberte-o sem pressa pelo nariz ou boca. Inspire tranquilamente. Expire devagar”. Uns fazem-no, outros ainda mantêm os olhos abertos, como que um pouco desconfiados. “É natural que a sua mente fuja e traga pensamentos”, ouve-se. No final, os alunos começam a mexer os pés e as mãos devagar, e a abrir os olhos. E escutam: “Sorria! Vai tornar-se uma mente sorridente!”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A professora Ana Ribeiro pergunta-lhes o que sentiram. “Fechei os olhos e senti-me um bocado aliviada; acho que vou melhorar na escola e em casa. Vim para descontrair, organizar as ideias e acalmar, porque tenho alguma dificuldade de concentração na sala de aula”, responde Maria, nome fictício, 14 anos, do 8. º ano. Ao seu lado, Miguel, nome fictício, 15 anos, suspira e acrescenta: “Tenho bicho-carpinteiro (risos) e até senti um formigueiro nos pés, mas gostei de fazer esta experiência orientada. Aconselharam-me a participar para melhorar o meu comportamento e as notas. ” A professora aconselha-os: “Há pessoas que se assustam no início por causa das sensações novas, mas tentem fazer em casa uma vez por dia, durante dez minutos. Vão ver que funciona. ”Ana Ribeiro acrescenta ainda: “Quando se enervarem, respirem. Inspirem e expirem antes de darem uma resposta torta. ” Oito semanas depois, o P2 regressa à escola e volta a estar com os alunos que relatam estar mais calmos e concentrados nas aulas. “Adquiriram ferramentas para aplicar em qualquer situação da vida. Se se tornar uma rotina, funciona”, conclui a professora. A psicóloga e psicoterapeuta Joana Vaz, de O Pequeno Buda, diz que, “ao nível da neuropsicologia está provado que o cérebro muda ao fim de alguns anos de meditação; a paciência é muito trabalhada, é um treino”. Logo, acaba por ser, reconhece, “uma forma diferente de estar na vida” que permite parar para pensar.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Noura Mint Seymali, tradição e modernidade no Mimo
Na sua terceira edição em terras portuguesas, o Mimo Festival, de esta sexta-feira a domingo, apresenta em Amarante uma programação fértil em música brasileira, portuguesa e jazz. Mas por entre Dead Combo, Otto e Jack DeJohnette, encontramos a mauritana Noura Mint Seymali. (...)

Noura Mint Seymali, tradição e modernidade no Mimo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na sua terceira edição em terras portuguesas, o Mimo Festival, de esta sexta-feira a domingo, apresenta em Amarante uma programação fértil em música brasileira, portuguesa e jazz. Mas por entre Dead Combo, Otto e Jack DeJohnette, encontramos a mauritana Noura Mint Seymali.
TEXTO: Nascida numa família griot, Noura Mint Seymali não tinha muito por onde escolher. Ao chegar ao mundo na cidade de Nuaquexote, na Mauritânia, o seu destino estava já traçado numa linha directa até à música. “Na Mauritânia, como não há escolas de música”, diz a cantora ao PÚBLICO, “cada família ensina o canto e os instrumentos tradicionais aos seus filhos. ” No seu caso, a aprendizagem começou aos cinco anos, com o pai, Seymali Ould Ahmed Vall, uma importante figura da música nacional; a avó, Mounina, treinou-a na interpretação da ardine, uma harpa tradicional semelhante à kora. “Há instrumentos para os homens e que são interditos às mulheres, e há a ardine, um instrumento para as mulheres e interdito aos homens”, comenta. Sem alternativas e por herança familiar, as escolhas são simples. O início de carreira de Noura Mint Seymali, um dos nomes maiores da programação do Mimo Festival (a decorrer entre 20 e 22 de Julho, em Amarante), com actuação marcada para este sábado, não tardou a seguir os passos habituais num percurso musical ditado pelos costumes griot: juntamente com a família, ainda a transitar da infância para a adolescência, foi crescendo como cantora ao animar casamentos e outras festas populares. E assim foi, cumprindo a tradição, até que Noura se cruzou com um instrumentista que acabaria por acrescentar um colorido à sua música e à sua vida. Ao lado de Jeich Ould Chighaly, hoje seu marido, deu início a um processo de modernização da música mauritana quando, em duo, trocaram os casamentos pelos palcos e lançaram os álbuns Tarabe (2006) e El Howl (2010). “No início tivemos muitos problemas, porque era algo novo. Havia quem dissesse que aquilo que fazíamos não era música mauritana”, recorda a cantora. “Mas, aos poucos, começaram a compreender e a aceitar o nosso estilo, sobretudo desde que começámos a tocar a nossa música um pouco por todo o mundo. ” Esse estilo, que Noura já em tempos baptizou como “música pop baseada na tradição mourisca”, acabaria por se desenvolver depois em quarteto, chegando aos ouvidos da editora alemã Glitterbeat, graças à qual os álbuns Tzenni (2014) e Arbina (2016) – na lista de melhores do ano de publicações como The Wire, Uncut, NPR, Les Inrockuptibles ou The Guardian — catapultaram a cantora para os grandes palcos internacionais. É essa música também dita “tradi-moderne” que Noura Minta Seymali, a grande estrela actual da cena mauritana, trará ao Mimo Festival, aplicando aos sons tradicionais uma electrificação sonora e uma queda pouco subtil para os vapores psicadélicos. O Mimo Festival teve início em 2004, em Olinda, cidade pernambucana conhecida pelo seu carnaval e as suas orquestras de frevo. O crescimento contínuo do evento levou à expansão para muitas outras cidades brasileiras, tendo atravessado o Atlântico em 2016, ano em que fundou a sua ramificação portuguesa, tendo escolhido Amarante, a terra de Teixeira de Pascoaes, para se instalar. A edição deste ano, que integra ainda uma exposição dedicada a Amadeo de Souza Cardoso, tem três blocos programáticos fundamentais: o habitual destaque dado aos artistas brasileiros, a normal delegação portuguesa e um foco particular em escolhas do universo do jazz. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Desde logo, com a presença do projecto Hudson, liderado pelo baterista Jack DeJohnette, histórico do jazz enquanto sideman de Bill Evans, Miles Davis ou Charles Lloyd, nas últimas décadas notabilizado pelo seu trabalho enquanto membro do Standards Trio, de Keith Jarrett. Actua em quarteto no domingo, noite de encerramento, depois dos GoGo Penguin, trio britânico que deixa o jazz escorregar até terras do rock. Na véspera, será a vez do israelita Shai Maestro Trio e do argentino Pablo Lapidusas International Trio; na sexta, o jazz fica por conta de Matthew Whitaker. A comitiva brasileira terá como primeiros representantes Dona Onete e Baiana System (sexta), fecha com Moacyr Luz (domingo), mas o grande momento ficará a cargo de Otto, na noite de sábado. Há muitos anos sem pisar palcos portugueses, o músico que esteve ligado ao nascimento do mangue beat regressa com o novo Ottomatopeia, disco em que cruza a MPB, com rock e música brega. Portugal estará representado pela guitarra portuguesa de Marta Pereira da Costa, pela música feita de uma colecção de passaportes falsos (é tão portuguesa quanto norte-americana, tão mexicana, brasileira ou cabo-verdiana quanto mediterrânica) dos Dead Combo (sexta), pelas canções entremeadas de blues de Rui Veloso (sábado) e pelo jazz-lounge-rock-exótico-pop de Bruno Pernadas (domingo). A diversidade será polvilhada graças às actuações dos moçambicanos Timbila Muzimba (sexta), Noura Mint Seymali (sábado), Orquestra Chinesa Cheong Hong de Macau e do bósnio Goran Bregovic (domingo).
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens mulheres cantora