São Petersburgo: do veludo ao chumbo
Um dos palcos do Mundial de Futebol que está a decorrer, São Petersburgo tem uma história recente mas intensa. Entre o luxo dos czares e a revolução de 1917 ou as privações da II Guerra, a cidade mudou de nome várias vezes e perdeu o estatuto de capital da Rússia, mas manteve sempre a sua identidade. (...)

São Petersburgo: do veludo ao chumbo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um dos palcos do Mundial de Futebol que está a decorrer, São Petersburgo tem uma história recente mas intensa. Entre o luxo dos czares e a revolução de 1917 ou as privações da II Guerra, a cidade mudou de nome várias vezes e perdeu o estatuto de capital da Rússia, mas manteve sempre a sua identidade.
TEXTO: Panelas e granadas de mão não são dois produtos que se associem a Carl Fabergé, o mestre joalheiro que executou obras-primas de joalharia para os Romanov. No entanto, os produtos feitos pelas suas oficinas para a frente de combate durante a guerra de 1914-1918 fazem parte de uma exposição que mostra a sua faceta desconhecida, “Fabergé na Grande Guerra”, numa sala imediatamente ao lado de outra que contém jóias como um dos seus famosos ovos imperiais, combinações perfeitas de minúcia e extrema riqueza (neste aspecto, vale bem a pena visitar o museu Fabergé, dedicado à alta joalharia russa e situado no centro da cidade). Aqui, em apenas duas salas de um dos edifícios que compõem o Hermitage - um dos maiores e mais famosos museus do mundo -, em frente ao Palácio de Inverno, São Petersburgo revela a sua identidade: a de uma cidade marcada tanto pelo luxo imperial como pelas guerras e revoluções. Esta é, aliás, uma urbe criada à força, desejada e concretizada por Pedro I, o Grande, que transformou uma zona pantanosa na capital do império russo. A ideia era ter um ponto de acesso ao mar a ocidente, e a sua concretização, que conduziu à morte de um elevado número de servos (num regime semelhante ao da escravidão, ninguém os contou) e prisioneiros, aconteceu em plena guerra com os suecos para dominar a região. Em 1712, ainda São Petersburgo não estava pronta, a capital mudava-se de Moscovo para as margens do golfo da Finlândia, abrindo-se uma porta para a Europa. A partir deste momento nasceriam grandiosos palácios e edifícios cuja função era terem apartamentos para alugar (a posse não era algo comum). Estes espalham-se pela cidade que, plana e em tons suaves de pastel, convida a andar a pé pelo seu centro histórico (esta é uma proposta menos válida no Inverno, onde o desafio são a neve e as temperaturas negativas - compensado, dizem os locais, com preços mais baratos e menos turistas), sempre acompanhado pela água. Aqui, os números são sempre impressionantes: com os seus múltiplos canais e rios, onde se destaca o Neva, a cidade tem mais de 300 pontes que agregam várias ilhas, e as suas histórias dividem-se por cerca de 200 museus. Diz-se, e é verdade, que por vezes a cidade faz lembrar Amesterdão ou Veneza – urbes por onde andou D. Pedro I -, mas em momento algum São Petersburgo parece perder a sua própria identidade. A isso ajuda o facto de não haver grandes construções modernas, em altura, no centro da cidade, que se mantém quase igual ao que era há várias décadas: o gigante energético Gazprom, que ali quis edificar um arranha-céus de 462 metros, acabou por ser remetido para a zona mais periférica, ocupando apenas, em algumas zonas, o canto do olho de quem vagueia por entre os edifícios neoclássicos. Por aqui, os pontos mais altos e emblemáticos ainda são ditados pelos antigos símbolos de poder e pela fé, nomeadamente por via da catedral de S. Isaac, que se impõe no espaço visual com a sua cúpula coberta a ouro. Construído entre 1818 e 1858, o maior templo ortodoxo da cidade acaba por impressionar mais pelo seu interior, amplo e repleto de cores (como as das imagens de ícones religiosos e as das colunas de malaquite da Sibéria e de lápis-lazúli do Afeganistão, junto ao retábulo). Com uma certa influência católica (visível através da presença de um púlpito), a catedral é hoje mais um local de visita do que um local de culto, que se restringe a uma pequena capela. Nada de estranho para um local que chegou a ser um monumento ao ateísmo na época comunista. Pode-se também subir até à cúpula, uma ascensão paga para uma vista alargada e que requer um bilhete distinto. Não muito longe está outro local de peregrinação turística, a Catedral do Sangue Derramado, cujo estilo exterior se apresenta bem mais invulgar aos olhos de um europeu ocidental, com o chamado “estilo russo” a revelar a inspiração bizantina. A sua história está ligada a um acto de violência - uma das marcas de água de São Petersburgo -, já que foi ali edificada por ser o local onde o czar Alexandre II (responsável pela abolição da servidão) foi assassinado em 1881. Depois de várias décadas – as do comunismo - de abandono, a igreja, famosa pelos seus mosaicos coloridos, acabou por ser restaurada e reaberta ao público em 1997, mas não presta serviços religiosos. No que toca aos símbolos do poder, nada melhor do que o Palácio de Inverno, que hoje funciona como ponto central do Hermitage com as suas centenas de salas e milhares de obras de arte e peças de história. Se foi a imperatriz Elisabete Petrovna quem ordenou o lançamento das primeiras pedras do palácio a meio do século XVIII, num estilo barroco, Catarina II, a Grande, impôs um estilo neoclássico nos anos seguintes – seguindo a moda de então - e ao comprar colecções de arte que acabaram por transformar a residência imperial na base do actual museu. Guardiões do luxo dos czares, os portões com a águia imperial de duas cabeças abriram-se em frente à enorme praça do palácio em Fevereiro de 1917 para albergar o governo provisório formado por personalidades como Kerenski. Poucos meses depois, em Outubro, o edifício foi tomado de assalto pelos bolcheviques liderados por Lenine, com o apoio do cruzador Aurora, num golpe militar que colocou os comunistas no poder e alterou o curso da história mundial. Hoje, o cruzador está ancorado no rio Neva como museu, mesmo lado da Fortaleza de São Pedro e São Paulo, também ela envolvida na revolução (por estes dias de sol, as suas praias fluviais são também um ponto de concentração de locais e ponto de atracção turística). Um conselho dado por locais a quem queira visitar um ponto nevrálgico como o Palácio de Inverno (incluindo a sala do trono, vazia no momento da queda dos Romanov, colocou um ponto final em séculos de monarquia, com Nicolau II na frente oriental) é o de comprar bilhetes antecipadamente. E é preciso ter em conta que o Hermitage é hoje composto por vários edifícios além do Palácio de Inverno, com diversas exposições, temporárias e fixas, e bilhetes correspondentes. Numa cidade como São Petersburgo, rebaptizada Petrogrado em 1914 para cortar com a influência alemã por causa do conflito mundial, uma avenida facilmente se atravessa na história, como é o caso da Nevski. Aqui estavam lojas nobres da cidade dos czares, e aqui fermentou a revolução de Fevereiro de 1917, com todos os seus mortos. Do topo de edifícios como o da Singer - um monumento de seis pisos à arquitectura Arte Nova -, os polícias de Nicolau II assassinaram várias dezenas de pessoas que se manifestavam contra a fome (numa fase aguda de falta de pão, com temperaturas negativas) e contra a guerra. Mais tarde enterrados no Campo de Marte, um jardim ao lado do Museu Russo, os cadáveres deram o mote para a mudança de regime, com a adesão dos cossacos e deserção de regimentos (a vingança contra os postos de polícia foi, depois, bastante sangrenta). Percorrer um pouco a pé a Nevski, principal artéria da cidade, será tudo menos uma perda de tempo, entre edifícios centenários, lojas e monumentos (como a catedral de Kazan, construída no início do século XVIII com inspiração na Basílica de São Pedro, e ligada à vitória sobre as tropas de Napoleão). Com a ascensão dos bolcheviques veio também o fim da participação na I Guerra, com várias cedências à Alemanha, não sem que antes a cidade perdesse o estatuto de capital: em Fevereiro de 1918, ainda com as negociações com os alemães por finalizar, o exército do Kaiser estava a menos de 200 quilómetros da cidade. Com vontade de marcar um novo ciclo, os bolcheviques mudam a sede do Governo para Moscovo e, poucos anos depois, mudariam também o nome da cidade para Leninegrado, após a morte do seu líder em 1924. A cidade, que assistiu à guerra civil e ao terror de Estaline, viu depois a sua existência colectiva ligada a outro episódio extremo, o do cerco nazi. Atraído pelas grandes cidades emblemáticas, como Estalinegrado, Hitler enviou as suas tropas para eliminar Leninegrado, centro industrial e cultural. Sem sucesso. Naquele que foi um dos maiores cercos da História (dois anos e meio, entre Setembro de 1941 e Janeiro de 1944), e possivelmente os mais mortífero, estima-se que cerca de 750 mil pessoas (um terço do total) tenham perecido na cidade, a esmagadora maioria de frio e de fome (com relatos de canibalismo, apenas tornados públicos com o fim do comunismo). Se a Rússia de hoje ainda tem dificuldades em olhar para o período soviético (nomeadamente pelo seu impacto profundo, e falta de distância temporal), a foice e o martelo saem juntas à rua sem quaisquer preconceitos a 9 de Maio, dia da vitória da “grande guerra patriótica” sobre os nazis. Nesse momento, são os símbolos da resistência tenaz ao invasor estrangeiro. Hoje, ainda há sobreviventes desse tempo - tal como há casas partilhadas por várias famílias, uma herança comunitária soviética -, que se recusam a adoptar o regresso da toponímia da cidade para São Petersburgo (a mudança, votada por referendo em 1991, funcionou desta feita para cortar com o passado comunista). Da mesma forma, ainda se sentem os impactos do cerco do exército nazi em dois dos monumentos de referência dos arredores da cidade: Peterhoff, o palácio criado à beira-mar por Pedro, o Grande, e o palácio de Catarina, mulher de Pedro, em Tsarskoe Selo (Pushkin, para o interior), que dividiram entre si as preferências e as estadias de Verão dos czares e da corte. Localizados a cerca de 30/40 km de São Petersburgo, uma visita a estes dois locais, com os seus amplos espaços verdes (Peterhoff é conhecido como a Versalhes russa) é uma viagem ao mundo da riqueza extrema da corte nos séculos XVIII e XIX, com a filha de Pedro e Catarina, Isabel, conhecida como a “gastadora”, a fazer crescer os edifícios em dimensão e ostentação (com preferência pelo ouro, tendência depois travada por Catarina II, a Grande), com recheio a condizer, entre móveis, quadros, tecidos, candelabros e porcelanas. Logo em 1917, Peterhoff foi transformado em museu, para que todos pudessem vislumbrar o modo de vida faustoso dos mais privilegiados na velha ordem. Ao passar por salas como a do âmbar, no palácio de Catarina, pode-se ficar mais ou menos deslumbrado com o seu esplendor, mas a divisão de tons amarelos e laranja faz parte de uma história de destruição e criação: nada do que ali está pertence ao tempo dos czares e czarinas. Durante a invasão das tropas alemãs, tanto este palácio como o de Peterhoff foram ocupados e pilhados pelos nazis, incluindo a cobertura original de âmbar que revestia a sala, em mosaicos acompanhados por ouro e pedras preciosas, não obstante ter sido escondida com tapumes de madeira num processo rápido de fuga devido ao rápido avanço das tropas de Hitler (mesmo assim, funcionários conseguiram proteger diversas peças e até materiais como chão de madeira). Os dois edifícios estavam praticamente destruídos no momento de retirada alemã, pelo que muito do que compõe estes palácios são restaurações posteriores, morosas e dispendiosas (é fácil perceber quais são as partes originais de uma parede revestida a seda, por exemplo, porque essa área tem uma protecção especial). No caso da sala do âmbar do Palácio de Catarina, que ainda hoje tem áreas a serem recuperadas, aquele que era o grande exemplo visual do poder e riqueza dos Romanov – e cujo paradeiro se desconhece, tendo desaparecido juntamente com o domínio nazi – foi mandado replicar em 1982. Quase vinte anos e 10 milhões de euros depois, coube ao primeiro-ministro Vladimir Putin, em 2003 (ano das comemorações do terceiro centenário de São Petersburgo) inaugurar a nova sala do âmbar com o chanceler alemão Gerhard Schroeder ao seu lado (o cunho alemão impregna toda esta história, já que foi Frederico Guilherme I da Prússia quem ofereceu a primeira versão da divisão de âmbar a Pedro, o Grande). Já em Peterhoff, uma das salas mostra o momento de refeição, com um conjunto de chá feito porcelana. Embora pareça nunca ter saído daqui, foi um dos lotes saqueados pelos nazis: encontrado em Berlim após a chegada dos russos à capital alemã, em 1944, as chávenas e pratos voltaram para o palácio com mais uma história para contar. Berço de nomes da literatura mundial como Pushkin, Gogol ou Dostoyevsky (este tem mesmo um museu, localizado na última casa que alugou), São Petersburgo não ficou parada no tempo, e faz jus ao epíteto de capital cultural da Rússia através do Erarta, um museu privado de arte contemporânea. Aberto desde 2010, reúne 2800 peças produzidas de 1945 até hoje, de mais de 300 artistas espalhados pelo país (tendo por base um trabalho aturado de pesquisa e viagens em busca dos trabalhos de pintura, escultura e colagem, entre outros). Aqui, o realismo socialista surge por oposição no caso das obras produzidas durante a época soviética, como resistência ao pensamento pré-formatado. O Recrutamento, de Piotr Gorban (1923-1995), terminado em 1985, é tudo menos um hino ao homem soviético, antes remetendo para um ambiente colectivo depressivo e de subjugação do Estado. Já a instalação da Última ceia do comunismo, concebida por Andrei Filippov, com longa mesa coberta por um pesado tecido vermelho e composta com pratos brancos vazios acompanhados à esquerda e direita por foices e martelos, mostra bem como se via o comunismo em 1989: algo semelhante a uma religião, um monoteísmo estatal que estava a chegar ao fim sem cumprir a sua função. Mais perto dos nossos dias, o quadro de Anatoly Gankevich Os russos estão a chegar (de 2014), mostra um conjunto de várias dezenas de mulheres, idênticas na fisionomia e na marcha militar, com uma diferença face ao passado: consigo levam mastros não com bandeiras mas com tapetes, símbolos da riqueza material (e usados para enfeitar as paredes das casas). Para já, quem vai chegando, e a São Petersburgo são os turistas, a começar pelas excursões de chineses e passando pelos finlandeses e alemães. Portugueses não há muitos, algo a que não é certamente alheio o facto de não haver voos directos (é preciso fazer escala em Moscovo). Para se promover mais no palco internacional do turismo, como pretendem as autoridades locais, nada como um evento da dimensão do Mundial de Futebol, que está a decorrer. O novo estádio de São Petersburgo, que vai receber jogos como o Marrocos-Irão (do grupo que inclui a selecção de Portugal) ou uma das meias-finais e colocar por estes dias a Rússia no centro das atenções do mundo, tem ele próprio uma clara marca do passado. Aqui, na casa do Zenit e onde já existia um outro estádio, há uma estátua colocada de modo a que não passe despercebida: trata-se de Sergei Kirov, histórico bolchevique que chegou a líder do partido comunista na então Leninegrado e que foi assassinado em 1934. Não há provas de que tenha sido Estaline a comandar os tiros, mas o certo é que por essa altura começou a grande purga, com muitos dos detidos/mortos a serem acusados por envolvimento no assassinato do dirigente soviético. No mínimo, a morte de Kirov provou-se útil ao terror de Estaline. Do alto do seu pedestal, o dirigente bolchevique assiste agora às multidões de fãs que se deslocam em direcção aos jogos, numa cidade em mutação visível, com o Mundial a provocar várias obras, desde novas pontes a estações de metro. O metro é, aliás, a melhor forma de chegar à feira da ladra, que se realiza aos fins-de-semana em Udelnaya, já fora do centro. Aqui, cruzam-se as várias camadas da cidade, desde pelo menos a época comunista aos dias de hoje, com objectos que vão desde bustos enjeitados de Lenine a brinquedos soviéticos, passando por objectos do dia-a-dia e produtos de plástico feito na China - sinais dos tempos. Passear os olhos e as mãos por esta feira, tida como uma das melhores do seu género na Rússia, é atravessar parte da história de São Petersburgo (aqui, repete-se o aviso feito várias vezes à Fugas: cuidado com os carteiristas). No centro da cidade, um outro local onde também se consegue sentir a história concentrada é o hotel Astoria: edificado em 1910, recebeu diversos diplomatas internacionais e foi palco de eventos luxuosos, e, em 1917, acabou invadido e pilhado na revolução de Fevereiro, após uma luta sangrenta que provocou várias mortes. Hoje, junto às portas do elevador, destacam-se as placas douradas onde estão inscritos os nomes das várias personalidades que por ali passaram, como Rasputine, Lenine, a bailarina Galina Ulanova, o escritor Maxim Gorki e Putin (o toque português faz-se sentir pela placa com o nome de Jorge Sampaio, imediatamente abaixo do criador de moda Pierre Cardin). Quando ainda se achava invencível, Hitler planeou fazer no Hotel Astoria a sua festa da vitória, tendo mesmo chegado, conta-se, a imprimir os convites - que acabaram por nunca ser enviados. São Peterburgo é isso mesmo: uma cidade resistente, fiel a si mesma, onde a passagem do tempo só parece trazer mais histórias. Uma vez na cidade, aconselha-se o uso de audioguias, pelo menos nos principais locais que queira conhecer, e pode deslocar-se a pé ou de transportes como o metro (muito funcional, é bastante fundo), táxi e Uber. Também há autocarros, mas isso implica melhores capacidades de comunicação. Maio ou Junho apresentam-se como bons meses para a visita, antes dos maiores movimentos de massas de Julho e Agosto. Por esta altura há as chamadas “noites brancas”, em que as noites nunca chegam a ficar totalmente escuras. A cidade também deve ficar bonita com a neve e o gelo, mas em troca há as temperaturas negativas, e menos horas de claridade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não há voos directos entre Portugal e São Petersburgo. A TAP já teve uma rota, mas cancelou-a, sendo que o turismo local diz estar a negociar com a transportadora portuguesa o seu regresso. Assim, é preciso fazer escala em Moscovo. No caso da Fugas, a viagem foi através da Aeroflot, mas há outras companhias aéreas como opção, como a Lufthansa. Para entrar na Rússia é preciso pedir visto (excepto para quem tenha bilhetes para o Mundial), algo que deve fazer com antecedência para evitar despesas acrescidas. No caso de Lisboa pode deslocar-se ao centro de visto da Rússia, na Av. Defensores de Chaves, 15. É preciso preencher um formulário online e depois deslocar-se ao local com a documentação requerida após marcação prévia ( www. vfsglobal. com/Russia/Portugal/). Há também a Secção consular da Embaixada da Federação da Rússia na Av. das Descobertas, 4 (www. consul. embrussia. ru/pt). O centro de São Petersburgo tem uma vasta oferta de restaurantes e cafés, mas a esmagadora maioria tem a ementa apenas em russo. Felizmente, há aplicações para telemóveis que fazem boas traduções, sendo as versões russo-inglês mais fiáveis do que as russo-português. Aliás, o inglês não é uma língua comum nesta cidade, incluindo no sector da restauração e nos museus. Um restaurante que pode experimentar é o Pryanosti I Radosti, na Moskovsky (n. º 191), mesmo em frente à Casa dos Sovietes, um edifício soviético com uma imponente estátua de Lenine (tomando desde já nota de que esta não é uma cidade barata). Outra hipótese é colocar as mãos na massa e inscrever-se numa pequena aula de três horas de culinária local, comendo no final a refeição que cozinhou (como um Borscht). Neste caso é preciso inscrição prévia em http://russianskitchen. com (4500 rublos individual, 3750 rublos por pessoa se for um grupo até 20 pessoas. Um euro vale cerca de 72 rublos). A Fugas viajou a convite do Turismo de São Petersburgo
REFERÊNCIAS:
O abismo da dor no teatro de dúvidas de Pascal Rambert
Uma estrela dos palcos procede a um ritual de despedida do mundo. Em Actrice, Pascal Rambert vai mais fundo neste jogo de, através das palavras, habitar outro corpo. O Festival de Almada apresenta no D. Maria II a peça que rendeu a Marina Hands o Molière para Melhor Actriz. (...)

O abismo da dor no teatro de dúvidas de Pascal Rambert
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma estrela dos palcos procede a um ritual de despedida do mundo. Em Actrice, Pascal Rambert vai mais fundo neste jogo de, através das palavras, habitar outro corpo. O Festival de Almada apresenta no D. Maria II a peça que rendeu a Marina Hands o Molière para Melhor Actriz.
TEXTO: Pascal Rambert foi sempre o típico rapaz sem o menor jeito para jogar futebol. Não compreendia as regras, achava o jogo muito violento, era demasiado lento, desastrado para lá do admissível, um caso óbvio de prejuízo para qualquer equipa que tivesse o azar de o escolher. Sem surpresa, o destino recorrente de Rambert era ser despachado para o banco. “Só que isso era muito bom”, conta, “porque ficava sentado com as raparigas e passava os jogos de futebol a ouvi-las falar. ” O dramaturgo francês acredita que vem dessa relação acidentada com o desporto o fascínio de se relacionar com um mundo a que não pertencia e para o qual tentava transportar-se. Pode assim dizer-se que o seu trabalho de escrita obedece a esse impulso de tentar saltar para um universo estranho que tenta recriar ou reordenar. É uma das razões mais convincentes que encontra para o seu interesse em escrever para actrizes – “por ser um território do absoluto outro para mim”, resume, ao colocar-se na situação de durante alguns meses se imaginar no corpo e na cabeça de outra pessoa. Mas há nesta tendência natural de contrariar aquilo que lhe é naturalmente próximo também uma decisão consciente de “statement político”, ditado pela consciência de saber que os grandes papéis nos palcos de teatro não pendem tantas vezes para o lado das mulheres quanto para o dos homens. Em Actrice, em cena domingo e segunda no D. Maria II, Lisboa, no âmbito do Festival de Almada, Pascal Rambert leva bastante mais longe este desejo de adentrar outros corpos e outras consciências. O corpo de Eugenia (Marina Hands), no palco, está rodeado de flores; a sua consciência está rodeada de morte. Desta vez, o dramaturgo foi mais fundo no seu lugar de desconhecimento, escrevendo para uma personagem que é uma actriz em fim de vida, à qual foi diagnosticado um tumor cerebral e que se despede do mundo. “Quis ir para este território muito assustador”, confessa, lugar que invadiu a sua escrita devido à situação que decorria em paralelo perto de si – à medida que inventava um lugar ficcional para aquela actriz, um amigo próximo e bem real via-se a lutar pela vida, com um quadro semelhante. As flores que alastram e dominam o palco foram, no entanto, plantadas por uma outra experiência menos dramática. Quando Pascal Rambert se instalou em Moscovo para iniciar o processo de criação de uma peça para o Teatro de Arte da cidade, ficou impressionado pelo “entusiasmo febril” que o público ali demonstra pelos actores. As flores eram, antes de mais, o símbolo desse amor que via repetir em cada noite de estreia e que se tornava uma medida válida para avaliar o carinho por actores e actrizes. “Foi muito impressionante para mim”, confessa, “porque nos países do sul da Europa não estamos habituados um tal fervor. Foi também por isso que comecei a pensar na enorme perda que seria a morte de algum daqueles actores. ”Encenação: Pascal Rambert Actor(es): Marina Hands, Audrey Bonnet, Ruth Nüesch, Emmanuel Cuchet, Jakob Öhrman e outros Texto: Pascal Rambert Lisboa. Teatro Nacional D. Maria II, Dom. dia 15 às 16h e 2ª dia 16 às 19hO facto de ter escrito Actrice em Moscovo, reconhece Pascal Rambert, levou a que a sua linguagem teatral se tornasse mais poética mas também mais dramática. E isto porque, apesar de o seu estilo ser porventura reconhecível na elegância e na ocasional violência seca das frases, o francês gosta de trabalhar a porosidade da sua escrita, reagindo “à forma de representar na Rússia, muito diferente da italiana, mexicana, chinesa ou japonesa”. Daí que a sua linguagem se tenha adaptado aos actores russos para quem escreveu a peça inicialmente. “A beleza de trabalhar sobre a língua”, diz ao Ípsilon, “é que pode ser sempre refundada e remexida. A língua fura por muitos lados e gosto muito de que possa não estabilizar. ”Nada seria mais natural do que assumir que esta permeabilidade de Pascal Rambert perante os actores tivesse conduzido a uma reescrita de Actrice aquando da produção francesa que chega ao Festival de Almada. Escolhendo a luminosa Marina Hands para se transfigurar na nesta estrela retirada dos palcos e a caminho da morte, não espantaria que a sua linguagem se adaptasse ao perfil da actriz. Acontece que, desde o primeiro dia de ensaios, recorda Pascal, não teve praticamente o que dizer a Marina. “Já trabalhei com muitas grandes actrizes por todo o planeta, mas ela é mesmo muito especial”, argumenta. “Estava tudo certo desde o início. Não interpretou nada mal, não falhou em nada, tomou totalmente conta das palavras e cada frase que lhe saía era extraordinária. ” O impacto foi de uma tal intensidade que o dramaturgo recorda que, mesmo em ensaios, cada dia em que Marina Hands era uma Eugenia prostrada na cama, pedindo ao pai que a protegesse e descrevendo a sua entrada numa paisagem de neve em que um urso branco guarda o portão da morte deixava toda a equipa em lágrimas. Não terá sido um grande choque, por isso, que Marina Hands tenha vencido o prestigiado Prémio Molière para Melhor Actriz, graças a estas duas intensas horas em que um abismo de dor, sofrimento e desespero se abre diante de si e parece puxar-nos a todos para o seu interior – um precipício comum para o qual nos vemos empurrados, seguindo em queda livre, até que no último momento Eugenia é sugada e nós cuspidos, maltratados, devolvidos ao lugar do início. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pascal Rambert nem estava muito convencido em chamar Hands para Actrice. Fiel aos actores com quem habitualmente trabalha, há já alguns anos que aprofunda uma relação de trabalho com a também magnética Audrey Bonnet – Ksenia em Actrice, regressada a casa para ver a irmã Eugenia murchar como as flores à sua volta – , mas foi a própria Audrey a sugerir-lhe repetidas vezes que chamasse Marina para o seu núcleo próximo. Desconfiando, Rambert cedeu e assistiu a Ivanov, de Tchékhov, encenado por Luc Bondy para o Odéon. E ficou boquiaberto. Sempre disponível para se (re)apaixonar pelos seus actores e pelas suas actrizes, decidiu escrever uma peça para Marina e Audrey (Soeurs, com estreia marcada para Outubro deste ano) no dia a seguir à estreia da versão francesa de Actrice no Théâtre des Bouffes du Nord, deslumbrando com o encontro de energia das duas numa das cenas capitais da peça. “O teatro é uma arte dura e por isso precisamos de ter pessoas fortes com quem possamos ir longe”, justifica. A morte em palco de uma actriz serve também a imagem do próprio teatro – que nunca deixa de estar no centro da escrita de Pascal Rambert. Se no combate de boxe conjugal que era O Final do Amor – encenado por Victor de Oliveira, na Culturgest, em 2017, e também apresentado por Ivica Buljan neste Festival de Almada – se podia ler a relação tumultuosa entre actriz e encenador, Actrice é também percorrida por esse fantasma de vida e morte sistemáticas que um(a) intérprete leva para palco de cada vez que entra e sai de uma personagem. Como uma morte que se dá em palco todas as noites, uma despedida repetida de um ser que ganha corpo, densidade e sentimentos momentâneos para ali ser largado e, talvez, reanimado na noite seguinte. Pascal Rambert não nega essa construção por camadas, admite ser assaltado por uma “zona misteriosa” entre actores e personagens, e reconhece que colocar o teatro no centro do palco é sempre “uma oportunidade para falar sobre tudo – paixão, ciúme, morte, perda”, respeitando sempre a ideia de que o palco serve para diferentes personagens “trocarem ideias e opiniões” que não são necessariamente as suas e questionar como “podemos levar o teatro connosco para as escolhas que fazemos nas nossas vidas”. Sem esquecer que, “ao contrário dos talk-shows em que só ouvimos pessoas arrogantes a falarem sobre qualquer assunto, mostrando que sabem”, Rambert quer permanecer na dúvida. No seu teatro, as certezas ficam à porta.
REFERÊNCIAS:
A psicose, os demónios e a minha linda filha
Uma mãe relata como a filha começou a manifestar a sua bipolaridade até ao dia em que tudo mudou de vez. (...)

A psicose, os demónios e a minha linda filha
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.85
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma mãe relata como a filha começou a manifestar a sua bipolaridade até ao dia em que tudo mudou de vez.
TEXTO: No mês passado, perdi a minha querida filha na luta contra a doença mental. Suicidou-se a poucas semanas de fazer 29 anos, atirando-se para a frente de um comboio em Baltimore. A Natalie e eu escrevemos um livro juntas quando ela tinha 16 anos: Promise You Won’t Freak Out: A teenager tells her mother the truth about boys, booze, body piercing and other touchy topics (and Mom responds) — “Promete que não te passas: Uma adolescente conta à mãe a verdade sobre rapazes, álcool, piercings e outros temas sensíveis (e a mãe responde)”. A ideia de uma adolescente contar à mãe os seus segredos era tão atraente que aparecemos na capa do Baltimore Sun e mais duas dezenas de jornais, fomos a programas de televisão de um lado ao outro do país, incluindo aos programas da manhã, e pagaram-nos para dar conferências. A Oprah ligou-me. No livro, usávamos um dispositivo para assinalar quando uma grande reviravolta estava prestes a acontecer: Até que… Na introdução, defini os momentos Até que… como “uma daquelas alturas críticas em que a minha alegre sensação de que tudo estava bem no mundo colidia com a prova irrefutável de que não, não estava”. O livro foi publicado uma semana antes de a Natalie terminar o liceu e recebeu óptimas críticas. A Amazon considerou-o o melhor livro sobre parentalidade de 2004. Foi nomeado para um prémio nacional. Foi traduzido para lituano e chinês. Até que. . . Aos 22 anos, durante a segunda parte do seu último ano de faculdade, Natalie teve um surto psicótico. No prazo de poucas semanas, passou de uma jovem adulta brilhante com o mundo aos seus pés para uma paciente numa instituição psiquiátrica com cadastro criminal. Só muito mais tarde é que eu soube que esta dramática trajectória é avassaladoramente comum. No prazo de poucas semanas, passou de uma jovem adulta brilhante com o mundo aos seus pés para uma paciente numa instituição psiquiátrica com cadastro criminalOs distúrbios psicóticos aparecem quase sempre no final da adolescência ou no início da idade adulta, com picos entre os 18 e os 25 anos, de acordo com Thomas Insel, director do Instituto Nacional de Saúde Mental. Os cientistas não sabem explicar porquê. Muitos investigadores têm-se concentrado nas anomalias na forma como se desenvolve, durante a adolescência, o cérebro das pessoas com surtos psicóticos. Outros investigam a genética, as circunstâncias pré-natais e o ambiente envolvente. Surgiu um relativo consenso à volta do conceito de que os surtos psicóticos como os de Natalie não são, ao contrário do que possam parecer, abruptos, mas o culminar de um longo processo. De acordo com este modelo, têm origem em alterações moleculares que ocorrem no cérebro que começam uma década antes de os sintomas se manifestarem e que progridem para uma fase de psicose em último grau na qual a realidade é tomada pela ilusão, paranóia, alucinações ou outro tipo de distúrbios. Isto aponta para a possibilidade, tão tentadora quanto controversa, de as crianças poderem vir a ser analisadas segundo indicadores psicóticos, tal como acontece actualmente com outros problemas de saúde, na esperança de se conseguir reduzir o risco de psicose, tal como reduzimos o de ataques cardíacos. Os problemas da Natalie devem ter começado no seu primeiro ano de faculdade, mas — tal como todas as famílias com quem falei sobre os seus próprios casos — eu não tinha um quadro de referências para reconhecer aquilo que na realidade eram. Passou uma semana em que não dormia mais de quatro horas por noite e parecia ter uma energia interminável. Mas nessa altura estava a viajar no estrangeiro e mantinha-se acordada graças à cafeína. A nossa família viu isto como jet lag e não como um distúrbio psicológico. Alguns meses depois, disse que uma das suas amigas começava a sussurrar sempre que ela virava a cabeça, quando na verdade as raparigas seguiam juntas pela rua abaixo, a discutir um pouco entre si. Sem um historial de doenças mentais na família, nunca passou pela cabeça de ninguém que fossem alucinações auditivas. Só seis meses depois — quando o sussurro da sua amiga se transformou num coro de estranhos que lhe davam ordens que levaram a detenções por crimes como invasão de propriedade privada — é que a relação se tornou aparente. Isto, mais uma vez, também é comum: a duração média de falta de tratamento da psicose nos EUA é de 70 semanas, diz Insel. Como a maior parte das pessoas que estão no meio de uma crise psiquiátrica, Natalie argumentava que estava óptima e que “todos os outros estão loucos”. O seu estado continuou a deteriorar-se até que um agente da polícia, em reposta a mais uma chamada, a levou para as urgências de um hospital em vez de uma prisão. Depois de uma série de exames psiquiátricos e de uma audiência de tribunal, deu entrada num hospital público psiquiátrico. Recebeu tratamento intensivo por grave transtorno bipolar e psicose, até ficar estável e sem sintomas, dois meses mais tarde. Natalie chegou bem, animada e parecida com a pessoa que era. Veio passar o Verão a minha casa e ensinou-me a gostar de tofu grelhado e a fazer ovos mexidos. Preparou as melhores saladas que comi na vida. Encheu a casa com a sua arte original, os seus amigos e o seu espírito irresistível. A doença mental não era tema. Voltou à faculdade para recomeçar o último ano. Quando partiu fiquei de estômago vazio, mas cheia de optimismo. Até que. . . Três meses depois, deixou abruptamente de tomar os medicamentos que mantinham à distância os seus surtos maníacos e as alucinações auditivas. Um dia, quando veio passar o fim-de-semana, minutos depois de ter entrado em casa o seu pensamento e comportamento fantasioso tornou evidente que os “demónios”, como eu viria a chamá-los mais tarde, tinham voltado. A recaída da Natalie foi pior do que o seu primeiro surto: a psicose e o internamento mais prolongados, a recuperação mais difícil, a medicação mais complicada, as perspectivas de futuro menos auspiciosas. Esta segunda estadia no hospital durou dez meses, uma eternidade numa altura em que a média de internamento psiquiátrico é de cinco dias e a maioria das pessoas com psicoses nem sequer é internada. Graças a um cuidado intensivo, ela voltou a recuperar, ainda que mais lentamente, e terminou o seu bacharelato em artes plásticas. O seu assistente psiquiátrico do hospital e vários outros funcionários percorreram 120 quilómetros para assistir à sua exposição de final de curso. Foi um triunfo para todos nós. Apesar de Natalie parecer mais feliz e mais produtiva quando tomava a medicação, sentia falta da pica das paranóias ocasionais e odiava o aumento de pesoMas, tal como acontece com muitas pessoas e muitas famílias e profissionais que vivem com, ou perto, de doentes psiquiátricos, o Até que. . . continuou. Apesar de Natalie parecer mais feliz e mais produtiva quando tomava a medicação, sentia falta da pica das paranóias ocasionais e odiava o aumento de peso que é um efeito secundário frequente dos remédios que tomava. Quando estava estável, às vezes declarava que afinal não estava doente e por isso não precisava da medicação — outra razão muito comum que as pessoas dão para deixar os medicamentos. Mas se ela, ainda que inadvertidamente, deixasse de os tomar durante alguns dias, mesmo que estivesse em terapia ou outras formas de tratamento, os demónios regressavam e uma das primeiras coisas que lhe diziam era para deixar de tomar a medicação. A segunda era para não falar com a mãe, a outra influência mais poderosa na sua vida. De todas as vezes ela obedecia e piorava, tinha uma recaída ainda mais duradoura, a queda era mais acentuada e a recuperação mais lenta, regressando a um nível de estabilização mais baixo. A última vez que entrou neste ciclo foi no Outono passado, quando se convenceu de que era aquela pessoa em cada quatro com distúrbios psíquicos cujos sintomas só melhoram muito tenuemente, ou não melhoram de todo, com os medicamentos. Não havia sinais aparentes de psicose, e para todos à sua volta ela parecia feliz e saudável, mas dizia que não conseguíamos ver o que estava dentro da sua cabeça. Em Novembro, seis anos depois do primeiro surto, anunciou que, uma vez que teria alucinações de qualquer forma, iria deixar de tomar a medicação de vez. Tinha 28 anos quando deixou de tomar os antipsicóticos injectáveis e os comprimidos que ajudam a estabilizar o humor que a tinham ajudado a reconstruir a vida. E a sua mente entrou numa última, e fatal, espiral. Natalie acreditava que o tratamento resultava e que o sistema de saúde mental tinha de ser reformado para que outras pessoas recebessem o tipo de cuidados que ela recebia quando tinha uma crise. Contou a sua história no ano passado para um documentário sobre a criminalização de pessoas com doenças mentais. Sonhava ser conselheira de quem tinha os mesmos problemas que ela. Dizia que queria ajudar os outros da mesma forma que a tinham ajudado a ela — até se convencer de que no seu caso qualquer ajuda era inútil. Nas semanas depois da sua morte, as manifestações de simpatia e pesar de legiões de pessoas que combatem os demónios deixaram-me ciente de que a dor que sinto pela sua perda é apenas uma gota no oceano de dor criada pelas doenças psíquicas que estão por tratar. Uma mulher escreveu: “Tenho bipolaridade e nem sou capaz de contar quantas pessoas me disseram ao longo dos anos: ‘Devias ficar contente por só teres isso’, ‘podia ser pior, podias ter cancro ou outra doença terminal. . . ’ Entristece-me que tantas pessoas não percebam que as doenças mentais, apesar de serem tratáveis, não são curáveis e podem matar. ”A minha filha viveu mais de seis anos com uma doença incurável e encheu a cabeça com demónios que literalmente a levaram à morte, e fê-lo enquanto ria, pintava, escrevia poesia, ajudava e trazia alegria a outras pessoas à sua volta. Foi a pessoa mais corajosa que eu conheci e o seu suicídio não muda isso. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “A Natalie ajudará a nossa sociedade a avançar”, escreveu-me um investigador do Johns Hopkins Hospital quando soube da sua morte. “Ela ajudou-nos a olhar para as doenças mentais com o respeito, a compaixão e a dignidade que merecem. ”Espero que sim. A Natalie teria adorado esse legado.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Jerónimo de Sousa: O mundo gira, ele resiste. Isto não será sempre assim
Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa viajou até Havana e encontrou-se com Raúl Castro. Segundo artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)." (...)

Jerónimo de Sousa: O mundo gira, ele resiste. Isto não será sempre assim
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa viajou até Havana e encontrou-se com Raúl Castro. Segundo artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)."
TEXTO: O carro do partido que usa é o mesmo há 11 anos. Vive em Pirescoxe, onde nasceu. Nem de marca de tabaco mudou, há muito que é a mesma. Não tanto, porém, como o tempo há que fuma: o secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP) lembra-se de a mãe, que nunca tinha permitido que acendesse um cigarro à sua frente, lhe dar um maço quando foi trabalhar para a fábrica aos 14 anos. Se ia contribuir para o orçamento familiar, já era um homem. Embora hoje, com 68, seja impossível Jerónimo de Sousa não ter mudado, é essa imagem de constância que faz questão de manter. Os últimos quatro anos, porém, tiraram-lhe o sono. Em 2011, quando o memorando da troika foi assinado, durante a governação socialista e a um mês de este executivo tomar posse, o líder comunista deitou-se e, nessa noite, pensou: “Vêm aí tempos muito duros, muito difíceis. ” De manhã, só tinha uma palavra na cabeça: luta. É este momento que o secretário-geral do PCP identifica, quando lhe perguntamos o que mais o marcou ou o que mudou na sua vida nestes quatro anos: a presença da “troika estrangeira”, como lhe chama. É, aliás, impossível contar quantas vezes repetiu, nestes quatro anos, a expressão “pacto de agressão”, para se referir ao memorando, ou defendeu a necessidade de uma “política patriótica de esquerda”. Jerónimo de Sousa garante que não são meros slogans e que vai repeti-los quantas vezes for preciso. Foi por oposição ao memorando que o PCP definiu a sua estratégia. De tal forma que se recusou a dialogar com a troika. Em que é que essa atitude contribuiu para resolver os problemas dos portugueses? Num terraço na Quinta da Atalaia, onde estavam a montar a Festa do Avante!, Jerónimo de Sousa acende um cigarro e agradece a pergunta. Permite-lhe clarificar as razões: “Reunimos com o Governo PS em torno dessa matéria, porque consideramos que é nas instituições nacionais que o diálogo deve prevalecer. No encontro, perguntei a um alto responsável: ‘Diga cá, o que estamos a assistir é um processo de negociação ou de imposição?’ A resposta foi inequívoca. ‘Não, não estamos a negociar’. ”O argumento dos comunistas é este: se não existia verdadeira negociação, o que era preciso era ir para a luta. Jerónimo de Sousa baixa a voz: “Este Governo fez muito mal aos portugueses, às suas vidas, mas ficará sempre por saber se não tivesse sido essa luta, esta resistência, se não estaríamos bem pior do que estamos hoje. ”Tirando a “intensidade da intervenção e da iniciativa política” destes quatro anos, em que o PCP apresentou três moções de censura ao Governo, é difícil arrancar a Jerónimo de Sousa confidências sobre alterações na sua vida pessoal. Quando, em 2004, sucedeu a Carlos Carvalhas no cargo de secretário-geral, muitos analistas políticos olharam com cepticismo para a escolha. Enfrentou críticas político-ideológicas, mas também elitistas, por ser um operário e não um intelectual, como os antecessores Álvaro Cunhal e mesmo Carvalhas. Hoje reúne um estranho consenso. Numa entrevista ao i, o social-democrata Duarte Marques falou do secretário-geral como “o cúmulo da autenticidade”. É genuíno? Estratégia? Ou está Jerónimo de Sousa refém da sua própria imagem?Ruben de Carvalho, organizador da Festa do Avante! há 40 anos, garante que o camarada é mesmo assim: “Afável e convincente. ” Nunca o viu zangado, embora o secretário-geral se zangue. A Ruben de Carvalho também lhe agrada que o “secretário-geral de um partido com forte implantação operária” seja “ele próprio de origem operária. ”Jerónimo de Sousa tornou-se uma figura mediática, que marca presença em vários eventos. Este ano, esteve na cerimónia de trasladação dos restos mortais de Eusébio para o Panteão Nacional e recordou que o jogador ofereceu uma camisola número dez a Álvaro Cunhal. No ano passado, quando Carlos do Carmo ganhou o Grammy, felicitou-o. E ter ido à apresentação do livro de Judite de Sousa sobre Cunhal mereceu-lhe não só agradecimentos da jornalista, como fotografias nas revistas sociais: “Uma palavra especial para si, Jerónimo de Sousa, por quem tenho uma enorme admiração. Sei que não é habitual a presença do líder do PCP neste tipo de eventos e, por isso, agradeço-lhe o facto de ter vindo. ” Também esteve na antestreia do filme Até Amanhã, Camaradas, baseado no romance do histórico líder comunista Álvaro Cunhal e realizado por Joaquim Leitão. Tratam-no por camarada, mesmo que não sejam do partido. Quando o vêem na televisão, dizem-lhe se esteve bem ou se devia ter dito algo e não o fez. Mas nunca que não o perceberam. Nas arruadas ou no Parlamento, é o mestre dos dizeres populares. O ex-líder parlamentar comunista e presidente da Câmara Municipal de Loures, Bernardino Soares, recorda que, quando se começou a falar dos cortes nos salários e pensões, Jerónimo de Sousa levou para o Parlamento a palavra “roubo”. A direita ficou incomodada. Em 2013, chamou “trapaceiros e malabaristas” ao primeiro-ministro e vice-primeiro-ministro. Já disse que o Governo era um “pau-mandado” do poder económico. Este ano avisou que “o Governo promete as reposições salariais para o dia de São Nunca à Tarde” e, no debate do estado da nação, quando o primeiro-ministro falou nas dez pragas deixadas pelo Governo Sócrates, ironizou: Passos Coelho também não foi o insecticida. No meio da polémica sobre as dívidas do primeiro-ministro à Segurança Social, rematou: “Este Governo já não tem ponta por onde se lhe pegue. ”Quanto ao PS, ilustrou: “Não é carne, nem peixe”, parece mais “um caranguejo moído”. E já lamentou que o Presidente da República, Cavaco Silva, queira, nas eleições legislativas que se avizinham, “aprisionar” o voto ao PS, PSD e CDS. “Perante isto, é caso para usar aquela expressão popular e fazer um apelo: não lhes dês cavaco. ”No ano passado, o secretário-geral pediu uma audiência ao chefe de Estado: queria que dissolvesse a Assembleia da República e convocasse eleições antecipadas. O encontro foi captado pelo fotógrafo do PÚBLICO Daniel Rocha e a imagem não podia expressar melhor o desconforto entre os dois. Jerónimo de Sousa ressalva o “respeito no quadro institucional”, mas admite: há fotografias que conseguem “pôr o coração nos olhos”. Quando Cavaco Silva comentou um eventual Grexit com a frase “a zona euro são 19 países, espero que a Grécia não saia, mas se sair ficam 18”, o líder comunista não perdeu tempo: “Para ele, [a Grécia] é uma folha de couve e veio um burro e comeu-a. ”Numa reportagem de Idálio Revez, no PÚBLICO, durante a campanha para as europeias de 2014, lia-se: “O feirante João Jerónimo, de 77 anos, ajeita o chapéu preto, chega já quase no final dos discursos, com o folheto da CDU na mão: ‘Não sei ler, mas percebo bem o que diz este homem’. ” Até quando perdeu a voz num debate televisivo para as legislativas de 2005, colheu elogios. Além de sublinhar que o PCP já fez uma reflexão sobre “as falhas que houve na construção do socialismo” em alguns países, faz ainda questão de ressalvar que o partido é contra o igualitarismo: a cada um deve ser reconhecido “o seu próprio mérito”. Um “operário qualificado ou técnico especializado” não deve ter “o mesmo vencimento, os mesmos direitos do que alguém que não se preocupou em ter uma formação, uma qualificação”. Isso não quer, porém, dizer que “muitos que não a têm, por dificuldades diversas, sejam preteridos e postos de lado”. No ano passado, Jerónimo de Sousa regressou a Cuba, onde esteve com Raúl Castro pela primeira vez e com quem conversou quatro horas. Falaram sobre a revolução cubana, mas não só. “Foi uma conversa entre dois amigos, dois camaradas, de conversa solta, troca de opiniões”, recorda o secretário-geral, que vê o reatar de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba como um “avanço”, num “processo que ainda não terminou”, sendo necessário resolver a questão “central” do bloqueio económico. Sobre a viagem à China em 2013 (foi ainda ao Vietname e ao Laos), garantiu ao Jornal de Negócios que vincou o desacordo do PCP em relação às privatizações: “A Portugal o que é de Portugal, aos chineses o que é dos chineses. ”Casado, pai de duas filhas (uma do Benfica, como o pai, outra do Porto), Jerónimo de Sousa nasceu a 13 de Abril de 1947 e é militante desde 1974. Não tem na sua biografia a clandestinidade ou a prisão. É o afinador de máquinas, que esteve na Guerra Colonial, que frequentou um curso industrial à noite, que chegou a deputado na Constituinte (1975-76) e na Assembleia da República. Ele que perguntou a um camarada da direcção do partido: “Como é que se faz isso, ser deputado?” O camarada animou-o: “Tu sabes o que queres, o que defendes, és capaz de intervir num plenário com centenas de trabalhadores. Sabes como se organiza uma luta. Vais para ali nunca esquecendo quem és nem os valores que defendes. Não tentes ser o que não és, continua a ser quem és e vais ver que a tarefa se realiza. ” Seguiu à risca o conselho e não se arrepende: “Ao longo destes mais de 30 anos de mandato institucional, todos aqueles que pretendem ser quem não são acabam por falhar. ”Garante que tem, no seu círculo, amigos de direita e que há “gente séria em todos os partidos”. Curiosamente, o homem que lidera o partido a quem muitos apontam intransigência no diálogo diz-nos com toda a calma que a procura de soluções implica um debate franco. “Não sou dono da verdade absoluta. ”Porque segue, então, o PCP um caminho de ataque ao PS e de recusa de entendimentos? Jerónimo de Sousa discorda em absoluto que o partido recuse o diálogo, o compromisso ou as alianças. Argumenta que não pode “andar a dizer uma coisa ao povo português e depois fazer outra”. E elenca a renegociação da dívida, o Tratado Orçamental ou a Segurança Social como alguns temas dos quais não abre mão e para os quais, entende, os socialistas não têm respostas de esquerda. Repete há anos que admite ser Governo se, nas urnas, os portugueses derem força à CDU (coligação com o Partido Ecologista Os Verdes) e sobre a relação com o PS reafirma: “Entendimentos, compromissos em troco deste ou daquele lugar é fácil. O PCP quer assumir compromissos e fazer alianças com base em políticas claras que visem designadamente uma política patriótica e de esquerda capaz de resolver os problemas nacionais. ” E devolve a pergunta: “Então e o PS, o que é que quer?”Só o facto de ser do Benfica tem merecido as poucas trocas de palavras simpáticas com o líder socialista António Costa: “Vi a entrevista dele ao Negócios e podemos encontrar aqui um ponto de consenso. Somos os dois benfiquistas”, disse ao mesmo jornal Jerónimo de Sousa, que, ao contrário da forma como o histórico líder Álvaro Cunhal protegia a intimidade, fala sobre os netos, ouve Beatles e gosta de cantar. Durante a conversa na Quinta da Atalaia, volta a falar, divertido, dos ciúmes da neta. No fim de um comício na Festa do Avante!, quando toda a gente quer cumprimentar o secretário-geral, a miúda, então com oito anos, pediu-lhe colo. Só depois de terem passado a multidão é que a menina perguntou: “Achas que já posso descer, avô?”Começou a trabalhar na adolescência, apesar de um professor insistir que ele devia continuar os estudos. A mãe lamentou: era preciso contribuir para o orçamento familiar, Jerónimo tinha cinco irmãos. Seria afinador de máquinas. Hoje recebe pouco mais de 800 euros, o que ganharia se estivesse na fábrica. O resto do salário de deputado vai, como é regra no PCP, para o partido. Nunca pensou estudar mais. Mas se decidisse agora fazê-lo, escolheria letras ou teatro — na Colectividade de Santa Iria da Azóia, diziam-lhe que ia longe como actor. De certa forma, foi. Há sempre uma componente teatral quando se intervém na Assembleia da República. Como tinha jeito para as palavras, durante a Guerra Colonial, na Guiné-Bissau, os companheiros pediam-lhe para escrever cartas de amor. Jerónimo de Sousa fazia-lhes a vontade a troco de cerveja. Perguntava-lhes como era a rapariga e, depois, dava azo à imaginação. Resultava, elas respondiam. “Sou responsável por alguns casamentos e namoros. ”Também se lembra de ler histórias para a mãe, que era analfabeta, enquanto ela costurava. A mãe Olímpia que fazia milagres com o orçamento familiar e “teria dado uma excelente ministra da Economia”, diz. Tinha um orgulho desmedido no filho: “Ai de quem falasse mal do seu menino e do PCP”, sorri Jerónimo de Sousa, que fala muito mais da mãe do que do pai, que era mais reservado. Na noite em que o filho partiu para o Porto, antes de ir para a guerra, o pai deu-lhe 50 escudos. “O esforço que aquele homem não teve de fazer para me dar aquelas poupanças, ele achava que era uma fortuna. ”Jerónimo de Sousa usou, e continua a fazê-lo, a sua experiência de vida como trunfo: “Descobri a chave do segredo para ser um deputado igual aos outros, mas com características próprias, falando daquilo que sabia falar. ” Dá um exemplo: “Na [Assembleia] Constituinte, quando na comissão respectiva, se discutiu o direito à greve, consagrado hoje na Constituição, eu discutia com doutores, pessoas formadas, não tanto no plano técnico, na solução técnico-jurídica, mas partindo do conhecimento que tinha por que se fazia uma greve, como se fazia, qual o âmbito dos interesses a defender. ”É difícil detectar incoerências no discurso de Jerónimo de Sousa nestes quatro anos. Ou mesmo recuando no tempo. O vocabulário comunista repete-se há anos. No programa eleitoral para as legislativas, lê-se, por exemplo, que querem estudar e preparar o país para se libertar da “submissão” ao euro. O tema é antigo, o PCP sempre olhou com cepticismo para a moeda única. Uma das novidades assinaladas pelo historiador e ex-militante do PCP José Neves nestes anos foi a forma de ocupação das ruas. As grandes manifestações deixam de ser só as das centrais sindicais, em particular da CGTP, e passam a ser também as chamadas inorgânicas, de movimentos sem ligações a partidos. A primeira, pouco antes de este Governo tomar posse, foi a da Geração à rasca, em 2011. No ano seguinte, Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas! foi considerada uma das maiores em Portugal desde 1974. Para José Neves, o PCP “mudou um pouco nestes últimos quatro anos” ao mostrar “alguma simpatia e tolerância” por esses movimentos. Em alguns casos, foi até “obrigado a ir atrás”. Mas o partido chegou a ser acusado de se afastar desses movimentos, que de certa forma poderiam ameaçar o poder do PCP sobre as ruas. Em 2012, ao Jornal de Notícias, Jerónimo de Sousa explicava: “Consideramos que a luta organizada tem muita força e mete muito medo e é por isso que nós, sem fazermos um abraço de urso a esses movimentos, que têm a sua própria dinâmica, podemos perfeitamente confluir e convergir com esse movimento espantoso de luta que existe. ”Nas eleições autárquicas, em 2013, a CDU aumentou o número de câmaras. Nas europeias de 2014, conseguiu um resultado histórico, elegendo três eurodeputados. E conseguiu fazer uma renovação: no ano passado tinha a bancada mais jovem da Assembleia da República. Essa sobrevivência tem, porém, o reverso da medalha: o PCP é um partido “mais consolidado, no bom e no mau sentido”: não morre, mas também não tem agilidade para ir muito mais longe. “Um problema” que ainda não enfrentou “com a energia necessária”, defende José Neves. Despindo-se da pele de historiador, já como cidadão, o ex-militante mostra a sua perspectiva crítica: “O PCP tem um desafio que é perceber que pode mudar, tem de mudar na sua organização política, na linguagem política. E mudar não significa aproximar-se do PS. Mudar não significa aproximar-se do centro, não significa deixar de ser radical. ” Significa ir à raiz do tempo em que se encontra, defende Neves, para quem “o PCP pode agir, intervir, posicionar-se politicamente de formas inovadoras, arriscando-se e sendo mais ousado na construção das suas alianças políticas”. E isso “não tem em nenhum momento de significar uma cedência”. José Neves deixou o PCP na década de 1990, não saiu “zangado”. Foi na altura da disputa entre ortodoxos e renovadores e, embora mais perto da vontade de redemocratização da vida interna do partido, acabou por não se identificar totalmente com o que era proposto. Tal não significa, no entanto, que alinhe na tese de que o PCP é apenas uma força importante da sociedade portuguesa: “O PCP não deve ficar contente com isso e acho que não fica. É um partido importante para a transformação da sociedade. ”Sobre o desempenho de Jerónimo de Sousa nestes quatro anos, entende que se confirmou como “uma figura bastante mais valiosa, mais importante do que alguma vez dele se esperou”. Recorda-se do momento em que Jerónimo de Sousa se tornou secretário-geral, dos artigos de opinião nos quais se dizia que era “um ortodoxo”, um operário que não sabia falar, seria o fim do PCP. Agora, diz, “a sua figura tornou-se em alguns aspectos maior do que o PCP”. É este líder que gera frases como: “Eu não sou comunista, não voto PCP, mas gosto dele. ”Pedimos ao marketeer Pedro Bidarra um olhar sobre o partido, que vê como conservador, e o seu líder, que vê como “um senhor, um clássico, um avô”. É a imagem que passa: de “maturidade”, de homem “mais velho”, com “uma segurança que vem com a idade”. Uma vez, um CEO seu amigo estava atento a um fórum na rádio sobre a situação na Grécia e disse-lhe que, entre todos os intervenientes, o único que se conseguia ouvir era Jerónimo de Sousa. “Fala com sensatez, com um salamaleque na conversa, não é um fedelho”, brinca. Apela àquele “respeito devido aos mais velhos”, embora Bidarra acredite que mantém “lá dentro a chama extremista”. Jerónimo de Sousa é, desde Cunhal, “o que encarna melhor o que é o PCP”, um “caso de sucesso”. Octávio Teixeira destaca nestes quatro anos a coerência de Jerónimo de Sousa, mesmo que para os mais críticos ela signifique respostas antigas para novos problemas. Para o ex-líder parlamentar comunista, o PCP não tem de encontrar outras respostas ou adaptar o discurso a novas realidades, como, por exemplo, a dos trabalhadores precários. “O trabalho precário não é uma novidade sociológica, resulta de políticas erradas que são aplicadas e que, no caso social, [implicam] a desvalorização completa do trabalho. É evidente que não pode haver adaptações, deve haver a coerência de continuar a combater isso. ”Esta é, de resto, a posição do secretário-geral, para quem não são precisas novas respostas, porque, apesar de o mercado laboral ter mudado, o problema essencial continua a ser o confronto capital-trabalho. “Recusamos e entramos em divergência com sectores de esquerda quando tentam criar uma nova classe de precários. ”Pode ser o “menos actual” dos políticos, mas “é muitíssimo genuíno”, diz Carlos Coelho, para quem a “simpatia natural” de Jerónimo de Sousa pode parecer “vulgar”, mas não é. “Nada vulgar”, sublinha. “É o avô lúcido e fisicamente apto da política nacional. É o político coerente numa casa de aço que se mantém fiel ao seu passado de trabalho, ainda que já não o tenha há anos”, acrescenta. O melhor de Jerónimo de Sousa acaba por ser o pior: o aço com que se ergueu permite-lhe ter um “percurso coerente, sólido”, mas ao mesmo tempo mais estático, menos capaz de se modernizar. “O facto de ser do século passado poderia não ser mau, dava-lhe sabedoria, pátina, mas não lhe dá nenhuma vantagem para os desafios contemporâneos. ”De qualquer forma, nota Carlos Coelho, ninguém está à espera que Jerónimo de Sousa se modernize: o secretário-geral tem “sucesso” porque mantém “o espírito de uma época”, dura pela sua “imutabilidade”, é um “político vintage”. O secretário-geral contrapõe: “Tenho a idade que tenho e, no entanto, continuo a ter mais projecto do que memória. ”Na Quinta da Atalaia, quando estava a ser montada a festa que termina hoje, Jerónimo de Sousa não admite só que não é dono da verdade, o comunismo também não o é. Só que isso não quer dizer que não continue a acreditar nele. Acredita tal e qual como quando era adolescente e levou, na fábrica, a primeira lição de marxismo, ao perceber que estava a ser explorado, que devia ganhar mais. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para o líder do PCP, o projecto comunista continua “bem vivo” e a “iluminar o caminho dos que continuam a lutar pela concretização das mais profundas aspirações do povo”. Estas foram as palavras que usou em 2013, no centenário do nascimento de Cunhal e na abertura do Congresso Álvaro Cunhal — O Projecto Comunista, Portugal e o Mundo de Hoje. A questão para o líder comunista continua a ser a mesma de sempre: “Como é possível aceitar que um homem tenha o direito de explorar outro?” Para um homem que apesar das reprimendas nunca aprendeu a escrever com a mão direita, a esquerda sempre se impôs. Na escrita e no resto. Continuará canhoto e a acreditar: “Não há-de ser sempre assim. ”
REFERÊNCIAS:
A casa dos instrumentos
A Casa da Música faz dez anos. Fomos conhecer o labirinto onde se guardam os instrumentos. (...)

A casa dos instrumentos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Casa da Música faz dez anos. Fomos conhecer o labirinto onde se guardam os instrumentos.
TEXTO: A completar dez anos, o edifício da Casa da Música é também a casa dos instrumentos. Tem mais de dois mil: há pianos e cravos, violinos e contrabaixos, harpas e clarinetes, mas o naipe mais representado é o das percussões, que inclui um gamelão indonésio para uso comunitárioPara o concerto que realizou na Casa da Música no final de Março, dois dias depois da Gulbenkian em Lisboa, o pianista russo Grigory Sokolov fez vir de Espanha um piano Steinway de fabrico recente, acompanhado por um afinador próprio. Nas duas actuações que fez na Sala Suggia, em 2008 e 2010, Maria João Pires tocou num piano Yamaha, que normalmente a acompanha. Antes, o pianista polaco Krystian Zimerman, tão virtuoso quanto imprevisível, trouxe o seu próprio piano na deslocação ao Porto. E quando estava a ensaiá-lo no palco montou uma tenda à sua volta para ninguém ver como o preparava para o concerto. . . Esta não é, contudo, a prática usual — a maioria dos pianistas que vêm actuar à Casa da Música usa um dos seus três pianos principais: dois Steinways e um Bösendorfer. Os dois primeiros, da marca internacionalmente mais prestigiada hoje em dia, foram adquiridos em 2004 e 2005 para a inauguração do edifício de Rem Koolhaas (que viria a acontecer a 14 de Abril de 2005, com um concerto de Lou Reed). Mas a verdade é que estes dois pianos se aproximam do fim do prazo de validade, para actuações de exigência máxima. Quem nos explica isso é Ernesto Costa, engenheiro electrotécnico e designer nascido em Viana do Castelo, e o responsável pela coordenação dos recursos técnicos e humanos da Casa da Música, toda uma vasta equipa que assegura, nos bastidores, a ribalta dos artistas. “A vida da Casa da Música é muito mais dinâmica do que pode parecer vendo apenas a agenda de concertos”, realça Ernesto Costa, na visita em que guiou a Revista 2 por entre o labirinto de salas de ensaio, gabinetes e armazéns onde está guardado todo o manancial de instrumentos que garantem a programação da Casa. Ao todo, são mais de dois mil instrumentos musicais, contabilizando aqui a miríade de objectos de percussão cuja variedade e natureza ultrapassa largamente o espectro mais reconhecido do naipe. Na verdade, se o edifício inaugurado faz agora uma década, é programaticamente “a casa de todas as músicas”, ele é também a casa de todos os instrumentos. Tem uma dúzia de instrumentos de teclas: além dos pianos já citados, dois cravos de origem europeia dos séculos XX e XXI, mas construídos segundo fórmulas antigas (um deles é uma das peças herdadas da antiga Régie Cooperativa Sinfonia, etapa anterior na história já cinquentenária da Orquestra Sinfónica do Porto); uma espineta, um Yamaha Disklavier electrónico, uma celesta e dois órgãos (positivo e sinfónico)… Tem também três harpas, uma dezena de contrabaixos, quatro tubas wagnerianas, um cimbasso, um cimbalão húngaro, clarinetes diversos e… um gamelão, que é a peça mais exótica de todo o conjunto — não contando aqui, naturalmente, as percussões. E está a adquirir um contrafagote, para dotar a orquestra de sons mais graves do que os actualmente possíveis. No piso -3 da Casa, a principal sala de guarda dos instrumentos mantém uma temperatura média de 20º e uma humidade equilibrada. Ernesto Costa explica ser “importante não haver diferenças de temperatura entre o palco e as salas de guarda”, principalmente para os instrumentos de pele e madeiras, que “são sempre muito sensíveis” a alterações ambientais. “Para encontrarmos o ponto de equilíbrio, foi preciso aprender como funciona o edifício”, diz este técnico, que entrou para a Casa da Música no ano 2000, quando se preparava a Capital Europeia da Cultura (Porto 2001), e que antes tinha passado por vários teatros e companhias, e trabalhado na Rede Nacional de Teatros. Sobre a especificidade e sensibilidade dos instrumentos, Ernesto Costa explica que, mesmo se são os mais caros — um Steinway pode custar hoje em dia 150 mil euros —, os pianos não são os mais exigentes. “Os cravos, o órgão positivo e mesmo as harpas são os mais delicados e os que exigem mais cuidados”, acrescenta, chamando a atenção para as diferenças estruturais e de robustez. “O piano, que é um instrumento que sofreu uma grande evolução, passou a incorporar peças metálicas na sua estrutura, que lhe conferem uma estabilidade que não observamos nem no cravo nem no órgão positivo, que são mais pequenos e têm também uma mecânica mais ligeira”, nota Ernesto Costa. Ao contrário do que acontece com os instrumentos de cordas — e o exemplo mais notório é o violoncelo Montagnana, que Guilhermina Suggia deixou em herança à Câmara do Porto, que foi já avaliado em três milhões de euros, e que ultimamente tem sido tocado pelo músico da Orquestra Barroca, Filipe Quaresma —, um piano desvaloriza-se com o tempo. Ernesto Costa diz que pode durar até 50 anos, mas o normal é “não ir muito além de uma década, com características de topo”. No resto do tempo, serve para ensaios e actuações em segundo plano. “Cada instrumento tem uma espécie de Bilhete de Identidade e um Boletim de Vacinas, onde está inscrito tudo o que lhe acontece”, diz o coordenador. Para as reparações mais simples, a Casa tem uma equipa de “primeiros socorros”, mas, às vezes, a gravidade das cicatrizes obriga ao recurso a uma “clínica” no exterior. E, no caso dos Steinway, todos os anos há um técnico da marca que se desloca “ao domicílio” para os afinar. Já os instrumentos de percussão têm uma vida mais longa e facilitada — exceptuando os que são feitos de peles e por isso são mais sujeitos a desgaste. A sua guarda está dividida entre uma sala de ensaio e um armazém junto ao parque de estacionamento, no piso -2. Na primeira, especialmente dedicada ao estudo e aos ensaios dos percussionistas, há marimbas, bombos, tan-tans, tímpanos, vibrafones, sinos tubulares… e um armário com gavetas cheias de baquetas e outros acessórios. “São os músicos que escolhem as baquetas que usam em cada programa”, diz-nos Fernando Gonçalves, um cabo-verdiano que faz parte da equipa responsável pela guarda dos instrumentos. “Cabe-me a manutenção e também assegurar que não há conflito entre as requisições e as necessidades dos músicos das diferentes formações residentes”, explica Gonçalves, que entrou na Casa em 2011. Coube a Fernando Gonçalves, de resto, identificar aqui o poiso da velha bigorna — o instrumento nº 55. 638-O [de Orquestra] —, que tínhamos ouvido, no último Concerto de Ano Novo, na execução de uma polka de Josef Strauss. Trata-se, com os respectivos banco de ferreiro e martelos, de uma peça também herdada da antiga Orquestra da RDP. Entre esta sala e o armazém no mesmo piso, distribuem-me centenas de outras peças de percussão. Algumas, da tradição mais facilmente reconhecível deste naipe; outras, “inventadas” para os programas do serviço educativo, ou para servir o Remix, a formação dedicada à música dos séculos XX-XXI, e “os compositores contemporâneos” — nota Ernesto Costa —, que são quem mais alarga o leque destes instrumentos. E dá os exemplos do finlandês Magnus Lindberg, que foi ele próprio a um sucateiro de Gaia buscar uns travões e jantes de automóveis, ou o alemão Helmut Lachmann (o compositor em residência, este ano, na Casa da Música), que pediu bacias de água e um sino emprestado para a execução de peças suas. É assim que nestas duas salas, misturados com cenários e outros materiais (como uma máquina de fazer neve, que o próprio Ernesto Costa construiu para o Concerto de Natal da Orquestra Barroca), se podem encontrar — todos afinados e com as respectivas notas identificadas — carris, molas, serrotes, correntes, gongos, chocalhos, rádios de pilhas, taças chinesas, tanques de plástico, tábuas e as pequenas caixas de madeira (woodblocks) usadas numa obra de Emmanuel Nunes. Muitas destas peças foram criadas, e usadas, pelo serviço educativo. “Mais do que instrumentos, chamamos-lhes objectos sonoros”, diz Jorge Prendas, responsável por este departamento. Essas peças respondem também a um programa que tem “uma grande vertente pedagógica, quase ideológica, de fazer chegar a mensagem ecológica junto dos mais novos”. é, de resto, o título de umpara formação de professores que aquele serviço tem vindo a promover. Eé um espectáculo criado com objectos resultantes da reciclagem e reutilização do lixo, destinado a crianças dos 0 aos 5 anos. Às vezes, nem toda a gente percebe estar na presença de objectos musicais. Jorge Prendas recorda o episódio ocorrido numa apresentação de Lixolândia, em que “as mulheres da limpeza deitaram fora uma série de peças quando foram limpar o palco no fim do último ensaio”. “Foi preciso ir novamente recuperá-las… ao lixo”, diz, entre risos. O serviço educativo é também o principal utilizador do gamelão, instrumento exótico e um dos conjuntos mais extraordinários de quantos se podem admirar na Casa da Música. Foi adquirido, em 2008, em Java, Indonésia — custou 13. 400 euros, mais 3000 de transporte —, e é constituído por 48 peças, vibrafones e xilofones, em madeira tropical e metal. “É um instrumento comunitário para celebrações rituais”, explica Jorge Prendas. Para além de projectos pedagógicos e comunitários, o gamelão tem servido também para a realização de workshops de sonorização de dança, teatro de sombras e cinema de animação. Em 2013, a Casa da Música constituiu um Ensemble de Gamelão, dirigido pelos músicos Jorge Queijo e Maria Mónica, que já gravou um disco e realizou concertos em Barcelona e na Igreja dos Clérigos, no Porto. No próximo dia 31 de Maio, vai actuar no Serralves em Festa. Jorge Prendas diz que “o gamelão é muito simples de tocar, tem um grande potencial sonoro e, com ele, é muito fácil fazer música”. A dificuldade maior, para os músicos ocidentais, “é tocá-lo sentado no chão, uma posição que para nós não é nada natural”, confessa o responsável pelo serviço educativo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos cultura estudo espécie mulheres
Xi Jinping: O Presidente da China de cabeça levantada
Quanto mais poder tem Xi, mais segura de si está a China. É o homem certo para o momento. (...)

Xi Jinping: O Presidente da China de cabeça levantada
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quanto mais poder tem Xi, mais segura de si está a China. É o homem certo para o momento.
TEXTO: No ano passado, na cimeira de Beidaihe — a estância em Hebei onde todos os anos, no Verão, os novos líderes se reúnem com as gerações mais antigas para discutirem linhas de acção — 28 seniores pediram que Xi Jinping se mantivesse no poder até 2027. Em vez de dois mandatos de cinco anos, disseram, teria três. Fizeram-no, lia-se na Asian Review, para cair nas boas graças do líder. Mas fizeram-no também porque estão fascinados com este seu Presidente. Há escassos dois anos no cargo, Xi irradia esperança e personifica a realização de um sonho antigo. O sonho da China poderosa, gloriosa, respeitada. Uma China de cabeça levantada. Não se sabe como reagiu Xi à proposta dos 28 velhos líderes e revolucionários. A lei chinesa não proíbe terceiros mandatos, também não especifica que dois são o limite; foram os órgãos mais poderosos do Partido Comunista Chinês (PCC) que fixaram em dez anos a duração de cada liderança. O que se sabe, e a Asian Review não se coibiu de o lembrar, é que quando Xi Jinping olha para a História chinesa tem um governante favorito. Não é Deng Xiaoping, o “pai” das reformas e com quem se diz que quer ser comparado; tão-pouco é Mao Tsetung, cujos métodos autocráticos se comenta que está a copiar. É o imperador Xuan (91-49 a. C. ), que restaurou a dinastia Han. Há uma citação, atribuída a Xuan, que o Presidente chinês proferiu em mais do que uma ocasião: “As pessoas que têm bom senso mudam para se adaptar ao momento que se vive, as pessoas sábias mudam as leis e os regulamentos para responderem às circunstâncias que estão a viver. ” Há quem leia nela o sinal de que Xi não se importará de revogar a lei não escrita dos dez anos de mandato. Em pouco tempo — foi nomeado em Novembro de 2012 e eleito em Março de 2013 — Xi Jinping ganhou uma reputação extraordinária. Uma reputação de homem tão sapiente que parece infalível — como infalíveis eram os imperadores, elevados da condição humana por desígnio dos deuses. Internamente, não é só um grande líder, é um dos maiores — a taxa de aprovação do Presidente é de 92%, segundo os números divulgados no final do ano passado pelo jornal independente de Hong Kong South China Morning Post. No exterior, a admiração por Xi também é imensa. Um inquérito feito em 30 países pelo Ash Center for Democratic Governance and Innovation da Universidade de Harvard (EUA), para medir o grau de familiaridade e de aprovação a dez dirigentes mundiais, colocou Xi na frente, com 8, 7 pontos em dez possíveis (o Presidente russo é o segundo, com 8, 1 pontos e o chefe de Estado americano, Barack Obama, surge em terceiro lugar, na casa dos 7 pontos). Dentro e fora da China, Xi Jinping, um homem de estatura imponente, sorriso nos lábios e muito carisma — diz quem o conhece —, tem um ascendente cada vez maior. E parece ter cada vez mais poder. Nos meios jornalísticos não há dúvidas em caracterizar Xi como um Presidente todo-poderoso — os títulos a tratá-lo por imperador são muitos e a revista Economist até o vestiu como tal, mostrando-o numa capa sentado num trono. Nos meios académicos debate-se outra dimensão da equação — tenta-se perceber como são, hoje, os mecanismos que levam à tomada de decisões na China. E se por um lado é consensual que Xi concentra nas mãos muito poder — porque é o chefe de todos os departamentos estratégicos, o das reformas económicas e sociais (que dava, até aqui, protagonismo aos primeiros-ministros), o da política externa, das forças armadas, da segurança, incluindo a cibersegurança —, por outro também se explica que, há dois anos, ocorreu uma mudança estrutural na cadeia de decisões. “Temos de perceber que o tipo de liderança assente na ideia do ‘homem forte’ acabou. O consenso e a liderança colectiva marcam a política chinesa actual. O papel de Xi não é tão influente como se pensa, mas é ele quem tem de lidar com as diversas facções no partido e nos órgãos, e é ele quem tem de encontrar equilíbrios na tomada de decisões”, explicou ao South China Morning Post Zhiqun Zhu, do instituto chinês da Universidade de Bucknell (EUA). O consenso ainda é necessário, pelo menos à superfície, para as iniciativas políticas mais importantes, como as reformas estruturais sistemática"Num ensaio na revista The Diplomat, Timothy Heath, especialista em Defesa do grupo de análise Rand Corporation, diz que se assistiu ao declínio do Comité Permanente, que era o órgão mais poderoso do Partido Comunista Chinês, aquele que tomava de facto as decisões. Há dois anos, este órgão passou de nove para sete membros. Era aqui, diz Heath, que aconteciam os conflitos ideológicos, era aqui que aconteciam os choques entre as várias facções do partido; guerras internas que começavam logo na composição do grupo, formado sobretudo por homens apadrinhados pelos mais influentes personagens das facções. O consenso significava, muitas vezes, grandes lutas de interesses. “O consenso ainda é necessário, pelo menos à superfície, para as iniciativas políticas mais importantes, como as reformas estruturais sistemáticas. (. . . ) Em termos relativos, porém, a capacidade de os membros do Comité Permanente mudarem a direcção geral das políticas está cada vez mais reduzida". Para a maior parte das directivas, o que realmente importa é o grau de consenso dentro da burocracia do partido, nas organizações que compõem o Comité Central, como o departamento central de organização (de quem dependem as nomeações), o comité executivo, o centro político de pesquisa ou a escola do partido. Xi, neste contexto, e sem pôr em causa o poder que exerce de facto, é a face visível de uma nova ordem interna que se tornou necessária num momento crucial e crítico da história da China e da história do partido. A reestruturação do modelo de tomada de decisões teve um propósito, explicam os académicos: recuperar valores perdidos. Xi tem sido o porta-voz dessa corrente e por mais do que uma vez o ouviram falar na “superior metodologia intelectual” do partido que, explica, é “a única correcta para unir e liderar o povo e alcançar o rejuvenescimento nacional”. “Xi chegou ao poder num momento em que a China, apesar do seu sucesso económico, estava politicamente à deriva”, diz Elizabeth Economy, do Council on Foreign Affairs. O partido estava (está, ainda) minado pela corrupção e pela falta de ideologia. Perdeu credibilidade numa altura em que os avanços económicos produziram alterações tão profundas na população que se adivinhavam convulsões sociais. A guerra contra a corrupção foi o primeiro sinal visível desse renascimento da metodologia do partido. Uma guerra usada como arma política na contenção das facções — foram assim entendidos os caso de Bo Xilai, uma figura em ascensão na hierarquia presa em 2012 e, depois, expulsa do partido e acusado de corrupção, abuso de poder e assassínio e condenado a prisão perpétua; e o caso de Zhou Yongkang, antigo chefe da segurança, homem forte da facção política ligada ao petróleo e o primeiro antigo membro do Politburo a ser preso e acusado de corrupção. Na aplicação da estratégia, nem os militares foram poupados — Xu Caihou, que está preso, fora vice-presidente da poderosa Comissão Militar Central. A guerra contra a corrupção já levou, em dois anos, tantos membros do partido para a prisão como durante toda a década anterior. O efeito na opinião pública foi poderoso, com os chineses a viverem uma etapa de reconciliação com o partido que os governa — os movimentos de contestação existem, mas é preciso não esquecer que são de facto minoritários num país com 1357 milhões de pessoas. “Estamos a realizar uma campanha de educação dentro do partido para garantir que não se afasta do povo. Para isso, estamos a fazer duas coisas: criámos um sistema de vigilância para assegurar que não há aproveitamento individual e que o partido serve o povo; estamos a punir severamente os corruptos. Os líderes do PCC não podem ser corruptos”, disse ao PÚBLICO, no Verão do ano passado, o vice-presidente da China, o antigo professor primário Li Yuanchao. O vice-presidente também explicou o papel de Xi Jinping neste contexto: “Ele é o chefe do partido”, sendo que o partido tem como “exclusiva” missão fazer “o que é melhor para o povo”. O PCC deu a Xi Jinping uma tarefa prioritária, manter a hegemonia ameaçada do partido, essencial para manter a harmonia social e o progresso económico — também ameaçado com a corrupção, um mal transversal, que afecta a estrutura do topo à base. Sem esta hegemonia e unidade, a China não poderá cumprir o seu desígnio — o “renascimento”. Li Yuanchao explicou que o partido toma decisões com grande antecipação. Sugere que Xi Jinping estava, há muito, pré-escolhido para ser o líder desta fase tão importante. Em parte, foi pelas suas características pessoais — o líder do “renascimento” teria de ser carismático, teria de gerar simpatia e admiração. Teria de andar pelo mundo, expondo-se como há muito não se via. Xi contrasta com os dois antecessores, bastante mais discretos, Hu Jintao e Jiang Zemin. De Xi, conhece-se até a mulher (a segunda), a elegante Peng Liyuan, cantora e directora da academia artística do Exército do Povo que acompanha o marido em viagens internas e ao estrangeiro — pela primeira vez, a China tem uma primeira-dama, apesar de, nos últimos meses, Peng andar mais afastada da ribalta. Xi personifica também uma mudança de paradigma na política externa. Acabou o período, longo, do baixar da cabeça — foi Deng quem pediu aos chineses qualquer coisa como “escondam os talentos e esperem a vossa vez”. Sejam discretos, portanto. A maior potência demográfica que já é também a maior potência comercial quer acumular outro título: a maior potência. A China, explicam os sinólogos, percebeu que uma política externa discreta lhe trazia muitas limitações, sobretudo quando precisava de (re)criar o seu espaço de influência regional. “Começaram a aplicar uma política de grande potência, igual à dos Estados Unidos”, disse ao jornal francês Le Monde Jean-Pierre Cabesten, da Universidade Baptista de Honk Kong. Xi Jinping também a definiu como “diplomacia de grande país. . . com características chinesas”. O lema de Pequim é agora “agir para obter resultados”. E ainda que não tenha tido resultados físicos, diz Cabestan, pontuou no capítulo psicológico quando avançou com pretensões territoriais no Mar da China, ameaçando países que, noutra era, já fizeram parte da esfera de influência de Pequim, mas que fugiram a esse controlo na década de 1930-40 — Vietname, Filipinas, Malásia. O Japão, esse, será sempre um eterno inimigo, o “agressor”, como lhe chamou o vice-presidente Li Yuanchao. A diplomacia é uma parte vital do “renascimento” chinês e marcar território — quebrando o equilíbrio favorável aos Estados Unidos criado com a II Guerra e que a Casa Branca pretendia reavivar com a anunciada “viragem para a Ásia” de Barack Obama — foi a fase mais visível, porque foi a mais agressiva e, por isso, a mais mediatizada. Noutros pontos do globo, as tais “características chinesas” vão avançando. Em África, a China troca serviços por petróleo, na América Latina investe em terras, na Europa multiplica os investimentos de grande dimensão, na Ásia cria uma nova balança comercial que joga a seu favor e retira importância a países como a Indonésia, a Austrália ou a Coreia do Sul. Ao mesmo tempo, Xi anuncia novos acordos comerciais regionais, anunciou a criação de um banco de investimentos para a Ásia-Pacífico e propôs uma “nova rota da seda” — ligando a China à Ásia Central, à Rússia e à Europa. Xi falou nos investimentos necessários em redes viárias e como nada disse sobre como será possível construí-las em regiões instáveis, algumas mergulhadas em conflitos armados, abriu caminho à especulação: está a China disposta a começar a intervir, à imagem dos Estados Unidos?O mundo é suficientemente grande para todos nós"É, por enquanto, uma pergunta sem resposta, com os analistas a ousarem apenas dizer que a China se tornou um país cheio de confiança mas que ainda é pouco confiável. Xi Jinping sabe que tanta ambição provoca inquietações. E fala em não intervencionismo. Na Austrália, no ano passado, Xi Jinping respondeu a um jornalista que escreveu que a China é um gigante na multidão e que o mundo inteiro está à espera de ver como se comporta, dizendo: “O mundo é suficientemente grande para todos nós. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se já é um lugar-comum dizer-se que o século XXI pertence à Ásia, é mais inédito ouvir os analistas dizerem que o ano de 2015 será crucial para se perceber se a China conseguirá cumprir o desígnio a que se propôs — há que não esquecer que, nesta nova ordem internacional, todas as decisões que forem tomadas em Pequim afectarão o mundo inteiro, não apenas um país. Este é o ano da consolidação do equilíbrio interno e da clarificação da diplomacia. Xi Jinping representa esta ambição e este risco. Não é um senhor todo-poderoso, mas é sobre ele que assenta o “renascimento” da China — como sobre um homem só assentava a velha China imperial, gloriosa e vulnerável aos erros humanos. E é por isso que, no que parece ser uma contradição, o especialista australiano em política externa Mark Beeson diz que, de alguma forma, a China está “outra vez vulnerável à síndrome do mau imperador”.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
“Não há lugar para destruir o que existe”
Fátima Carneiro foi eleita a “patologista mais influente do mundo”, pela revista The Pathologist. O reconhecimento de uma carreira que concilia a actividade clínica, a direcção de um serviço hospitalar, as aulas como professora catedrática e a investigação. E o resto da vida. (...)

“Não há lugar para destruir o que existe”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento -0.2
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fátima Carneiro foi eleita a “patologista mais influente do mundo”, pela revista The Pathologist. O reconhecimento de uma carreira que concilia a actividade clínica, a direcção de um serviço hospitalar, as aulas como professora catedrática e a investigação. E o resto da vida.
TEXTO: A frase que dá o título a esta entrevista foi dita já fora do alinhamento da conversa que o P2 teve com Fátima Carneiro, no serviço de Anatomia Patológica do Hospital S. João, no Porto. Por isso, é natural que não a encontre no guião que se segue do diálogo em formato de pergunta e resposta. Quando a “patologista mais influente do mundo” defendeu que “há solução para tudo” e avisava que “destruir demora um minuto e construir demora muito tempo” já estávamos a visitar as salas dos laboratórios do serviço hospitalar de anatomia patológica. Fátima Carneiro tinha um pulmão em cima da bancada, especialistas e alunos à volta. São essas as pessoas que a directora do serviço de anatomia patológica não quer perder. Essas e outras que não estavam ali ou que já se foram. Todas preciosas, garante. Como ela, acrescentamos nós. “A patologia é central na medicina” avisa a especialista com 54 anos e é por isso que “não há lugar para destruir o que existe”. No piso superior, no seu gabinete, Fátima Carneiro falou ao P2 dos tempos de menina em Angola, onde nasceu, do livro na mesinha de cabeceira – D. Quixote – que está a revisitar, da agitação destes últimos dias por causa da distinção atribuída pela revista científica The Pathologist, que resultou de uma votação dos seus pares, especialistas da mesma área e de várias partes do mundo. Uma distinção que, em Portugal, só tinha sido atribuída ao conhecido patologista Sobrinho Simões, com quem a médica trabalha e aprende há muitos anos. Poucos conhecem Fátima Carneiro – muitos nem sequer tinham ouvido falar do seu nome antes da distinção que lhe foi atribuída na semana passada. Mas, tal como Sobrinho Simões, a patologista exibe, sem vaidade, a sua determinação, dedicação e generosidade. A conversa, por mais desvios e tempos que se experimentem, volta sempre ao trabalho. “Um fervilhar diário” assegura a todos os que imaginam que um patologista é um médico calado e sozinho, debruçado em cima de um microscópio dia após dia. No gabinete, lembrou como escolheu ser patologista em vez de pediatra. E como voltaria a fazer tudo igual outra vez. Foi para o gabinete que regressou, apressada, depois da “intromissão” do P2 e depois da visita aos laboratórios do serviço. Era lá que tinha um aluno de Medicina à espera e também uma pequena caixa com lâminas de amostras de um tumor de uma vesícula biliar em cima da secretária. Coisas mais importantes para fazer. Sei que não gosta de entrevistas ou jornalistas. Vamos então começar de uma forma mais leve. O que faz no seu tempo livre?Infelizmente, hoje, tenho pouco tempo livre. O que anda a ler, por exemplo?Ah… D. Quixote. Um clássico. Uma releitura. No pouco tempo livre que tenho. É complicado gerir planos de acção diferentes e integrar as várias actividades. As do hospital de S. João, onde sou patologista e directora do serviço de anatomia patológica, com as actividades como docente na Faculdade de Medicina onde sou professora catedrática…Gosta mais de dar aulas ou da prática clínica e investigação?Não se pode colocar as coisas como se fossem universos estanques. Gosto das duas coisas. Por um lado, temos a actividade hospitalar… [estende a mão que coloca em cima de uma pequena caixa transparente] tenho aqui estas lâminas [com amostras de um tumor da vesícula biliar] para fazer diagnóstico que não vou poder fazer agora… estou a prejudicar os doentes por vossa causa…Vai poder fazer, mas só vai ser um bocadinho mais tarde…Sim, eu sei. Mas, de facto, o que é que esta actividade tem de tão bom? É permitir conciliar a actividade de diagnóstico com a actividade de ensino, gosto muito de comunicar, comecei a dar aulas muito cedo, ainda era aluna da faculdade. No terceiro ano já dava aulas aos alunos do terceiro ano. Isto passou-se em Angola. Onde nasceu, certo?Eu nasci num outro mundo. Um mundo muito diferente. Que idade tinha quando veio para Portugal?Nós tivemos uma trajectória diferente porque os meus pais eram funcionários do Estado e isso correspondia aquele regime de as pessoas estarem quatro anos lá e depois passavam um ano cá e voltavam quatro anos para lá… Nós passávamos a vida a saltar de um sítio para outro. Eu nasci no Sul de Angola. Onde?Em Sá da Bandeira. Depois estivemos cá, depois voltamos para o mesmo sítio, voltámos para cá…E quando é que veio para cá para ficar?Vim em 1975. Já depois do 25 de Abril. Nós – eu e o meu irmão – tínhamos a ilusão de que íamos continuar em Angola. Éramos os dois estudantes de Medicina. Vivemos muitos sonhos, alguns realizaram-se, outros foram interrompidos. Este foi um dos sonhos interrompido, nós queríamos ficar lá. Vai voltar a Angola?Já voltei muitas vezes, mas se calhar um dia vou voltar. O meu marido trabalhou muitos anos em Moçambique depois de termos vindo de Angola, porque ele também era angolano. Conheceu-o em Angola?Sim. E viemos todos para Portugal na mesma altura. No fundo acabamos por voltar em 75, porque eu ainda tinha aulas, o meu irmão estava a fazer apoio de enfermagem em situação de emergência. Num desses dias fomos para o Hospital Universitário que ficava na periferia de Luanda e houve um bombardeamento. O hospital foi bombardeado. E eu estava lá. E isso foi… violento demais. Ficou ferida?Não. Mas, não se pode estar num sítio onde os hospitais são bombardeados. Não havia condições. Foi aí que percebeu que tinha de vir para Portugal?Sim, foi o desmantelamento de uma realidade. Foi muito difícil. Nós viemos no início de Agosto, talvez. O hospital universitário foi evacuado e continuei a ter aulas no hospital central. É essa determinação que faz com que quem quer muito uma coisa a mantenha com tiros ou sem tiros, com bombas ou sem bombas e que fez com que chegasse ao fim do ano lectivo. Mas depois do bombardeamento os meus pais impuseram as regras do jogo e disseram: ‘Acabou, vamos voltar, perdes um ano. Há outros anos adiante. ’Perdeu um ano?Quando cheguei ao Porto recusava-me a perder um ano lectivo. Fizemos uma exposição ao vice-reitor e ele deixou-me fazer as cadeiras por motivos de guerra na segunda época, que não é habitual porque não se pode fazer mais do que duas. Portanto, fiz o terceiro ano neste regime, com as aulas lá e depois os exames cá…Quando é que que percebeu que a anatomia patológica era a especialidade que queria seguir?Ui… muito tarde. É uma história das Arábias. Nem percebi sozinha, tiveram que me explicar. Como assim?A sério. Eu odiei anatomia patológica durante o curso. Foi uma das tais unidades curriculares que eu frequentei lá e depois tive de me sujeitar a uma avaliação cá. E embora a formação teórica seja uma coisa que se consegue adquirir, a formação prática requer que se veja o material que foi seleccionado. Eu não tinha tido aulas práticas. Fui obrigada a confrontar-me e contactar com colegas e andava atrás deles a ver o que é que eles viam, o que eles diziam… Para mim, esta forma de aprender era contranatura. Quando acabei o exame de anatomia patológica, rasguei os apontamentos e deitei tudo no lixo. Fim?Fim. Mas não. Não. Mas de facto eu fiz o curso todo a acreditar que ia fazer pratica clínica. Que especialidade é que achava que ia escolher?Pediatria. Até que no fim do meu curso, um professor de Biologia Celular, o professor Miranda Magalhães, convidou-me para dar aulas em Biologia Celular e eu disse-lhe ‘sinto-me muito honrada, adoro dar aulas, mas uma coisa tão sossegada como a biologia celular não se adapta a mim’. Ele perguntou-me o que é que eu gostava de fazer então. Eu disse que ‘gostava de juntar a actividade clínica com a possibilidade de ensinar e fazer investigação’. E ele respondeu ‘mas isso é anatomia patológica’. Acrescentou: ‘A anatomia patológica fica na porta em frente, quer que eu vá consigo?’. Eu disse que não. ‘Vou sozinha. ’ Cheguei, apresentei-me ao professor [Daniel] Serrão que me apresentou ao professor Sobrinho [Simões] e comecei a trabalhar no dia seguinte. Em que ano?Em 1978. E não achou a especialidade de Anatomia Patológica sossegada?Não, não. Não é sossegada. É um fervilhar diário. E é isso que é bonito. Eu transporto muito para a minha actividade de diagnóstico os meus métodos, em termos de investigação. Fazer observações independentes, gosto de olhar para uma lâmina na primeira análise sem saber qual é o diagnóstico clínicoComo é que a anatomia patológica é um “fervilhar diário”?Primeiro, a anatomia patológica é uma especialidade clínica. Nós produzimos diagnósticos que são utilizados para o tratamento de doentes. E não há dois casos que sejam iguais. Assim como não há duas pessoas iguais, não há dois doentes iguais. Pensa no doente quando olha para uma lâmina?Então não penso!Quando faz um diagnóstico de um cancro, por exemplo…Temos de pensar. Mas não é o patologista que dá a notícia…Não sou eu que vou dar a notícia. Mas, se estivermos agora a falar de cancro, as decisões sobre um tratamento de um doente devem ser tomadas no âmbito de consultas multidisciplinares, está um oncologista, um cirurgião, um gastroenterologista, radioterapeuta, patologista, enfermeira, nutricionista… Nós temos imensa actividade clinico-patológica, participamos em mais de 15 grupos multidisciplinares, alguns deles oncológicos. A anatomia patológica é uma actividade muito exigente. A nossa tarefa não é só estar ao microscópio e fazer o relatório, validá-lo e disponibilizá-lo. Esse diagnóstico também define a terapêutica. Sim, cada vez mais a anatomia patológica incorpora no seu relatório elementos que não são só de uma simples observação ao microscópio, de uma citologia, ou de uma lâmina histológica. Quando fazemos um diagnóstico de cancro temos de identificar um tipo histológico e há uma coisa fundamental: saber o estádio da doença, se envolve os gânglios, se tem metástases. Todos estes elementos vêm a definir um estádio que é fundamental para se ter uma ideia do prognóstico e para se decidir os esquemas terapêuticos. Mas o patologista não tem às vezes sequer o nome do doente, apenas o número de um processo. Não tem o rosto do doente, os olhos dele…Não. Não penso muito nisso porque essa também foi uma das razões pelas quais eu não podia fazer prática clínica de contacto directo com os doentes. Enquanto fiz prática clínica — fiz internato geral, serviço médico à periferia — nunca consegui afastar-me afectivamente. Vinha para a casa preocupada, às vezes vinha ao hospital ao fim-de-semana ver se os doentes estavam bem…Isso em Pediatria poderia ser complicado, tem de lidar com os miúdos e os pais…Terrível. Percebi isso no primeiro dia que fiz urgência. Eu adoro crianças. Adoro crianças a rir, a saltitar. Olhe para ali [aponta para um quadro de cortiça com dezenas de fotografias, são os meus dois filhos [João e Marta]. Sempre com ar bem-disposto. Eles passaram horas aqui comigo. Adoro crianças mas tenho uma grande dificuldade de lidar com o sofrimento. Toda a gente tem…Nunca é fácil. Mas na minha primeira urgência num hospital próximo do Porto, durante a noite, tive uma criança com uma dificuldade respiratória e aí fiquei com a certeza absoluta. Já estava na anatomia patológica, já sabia que ia ter uma actividade clínica de outra natureza. Mais distanciada?Mais distanciada. Na anatomia patológica, além do nosso ambiente que permite integrar o diagnóstico com o ensino e a investigação, também tentamos validar em modelos de doença humana conhecimentos do mundo experimental. É uma especialidade muito rica e funcionamos de uma forma muito integrada. Há uma outra característica que tenho que também não é boa para quem faz clínica, tenho aquele sentido de urgência, se tenho de fazer uma coisa tenho de a fazer logo. A clínica não é assim, a doença tem um percurso, os doentes estão ali e vão reagindoComo patologista tem umas células e pode ver como reagem naquele momento a isto ou aquilo. Neste momento, tenho aqui muitas lâminas para ver. Quando vocês se forem embora é isso que vou fazer. A área patológica, na maior parte dos nossos actos, tem uma liberdade de ocupação de tempo. Na maior parte porquê?Porque se estivermos a falar em actos como, por exemplo, os exames extemporâneos que são intra-operatórios [feitos durante o acto operatório] não ficam à mercê da minha disponibilidade, temos de ter uma escala diária e uma pessoa que tem de estar disponível naquele momento para responder a uma pergunta clínica. A proximidade da anatomia patológica à clínica é cada vez maior. Não só através destes exemplos que estou a dar mas através da participação, que eu diria que é obrigatória, em grupos multidisciplinares, em grupos oncológicos. A decisão é colectiva e nós temos um papel muito importante porque chegamos lá com um rótulo. Um diagnóstico que coloca sobre os nossos ombros uma enorme responsabilidade. E os diagnósticos têm sempre uma certa urgência, as pessoas têm a sensação que demoram sempre muito tempo…Não sei o que é tanto tempo assim. Um dia à espera de um diagnóstico de cancro pode ser uma eternidade, certo?Para as pessoas sim. É o que sinto na maior parte dos casos. Por exemplo, quando um cancro do estômago é identificado como tal, porque deu sintomas, porque condicionou uma endoscopia ou porque se viu uma deformação, já está lá há muitos anos, não é nada que tenha começado ontem. Aquela ansiedade que as pessoas têm “eu tenho um diagnóstico e quero um tratamento amanhã” é uma ansiedade do pânico gerado de repente. Porque isso só será contraproducente. Um diagnóstico de cancro é uma notícia bombástica para quem o recebe. Demolidora. Sim, já recebi em pessoas muito próximas e sei bem o que isso é. E nessa altura não somos médicos somos simplesmente família, amigos. Só que não é sensato ceder à precipitação de um doente com um tratamento o mais depressa possível. Tem de se ver onde a doença está, se está só naquele órgão, se tem metástases…Para tratar melhor. Sim, daí vão resultar decisões terapêuticas. Se o doente tem um cancro localizado no estômago, que é a área de estudo que eu mais gosto, se for muito superficial pode fazer apenas uma ressecção, uma espécie de cirurgia endoscópica e tira a área doente, se já afectar a profundidade da parede já terá que tirar o estômago, ou parte ou a totalidade. Se a doença estiver ainda mais disseminada, antes de se ponderar uma cirurgia tem de se ponderar um tratamento sistémico, a quimioterapia, a radioterapia. Não há regras iguais para tudo. O comportamento dos diversos cancros é diferente e, portanto, a adaptação tem que ser aquele doente, com aquele tumor, com aquele estádio, com ou sem estes biomarcadores. Porque é que é que o cancro do estômago é a área de estudo de que gosta mais?Tudo tem uma história. Quando vim para cá comecei a trabalhar em patologia da tiróide, porque fiquei sob a orientação do professor Sobrinho Simões. Ele tem uma visão muito aberta em relação ao que deve ser o futuro. Numa determinada ocasião, no nosso grupo, ficou claro que um problema de saúde em Portugal era o cancro do estômago. Era e é. O cancro do estômago é diagnosticado em fases muito tardias, não há rastreio, afecta homens e mulheres… era preciso compreender esta doença o melhor possível para ajudar a identificar biomarcadores, para contribuir para outras formas de investigação clínica, ensaios clínicos, o que quiser. Nós passamos de uma fase que não estávamos sequer a estudar o cancro propriamente dito mas a infecção por um microorganismo que causa o cancro que é a tal bactéria Helicobacter pylori. E depois é um mundo sem fim. E hoje continua a investir nessa área…Mais recentemente interessei-me por um modelo de cancro em que pode haver contributos interessantes na prevenção, que são as formas hereditárias de cancro. Do cancro do estômago?No cancro de estômago há mais do que uma forma hereditária. Há uma mais conhecida que é aquela que é causada por um gene que codifica uma molécula de adesão. A Caderina-E que é conhecida como um “cimento das nossas células”?Sim. Nós tivemos a felicidade de acompanhar a identificação desta doença [cancro gástrico hereditário difuso] desde há muito, muito tempo. O PÚBLICO trouxe uma notícia sobre o prémio que recebi agora e a fotografia é de uma altura em que estávamos a estudar as famílias portuguesas com cancro hereditário do estômago. Agora estudamos muito mais, neste hospital há um centro de referência para cancro hereditário do estômago. Portanto, a expansão foi imensa. Essa história marca a sua carreira na investigação clínica…Tive um privilégio de termos visto no início os estômagos que vinham um pouco de todo o mundo, onde se começava a identificar esta doença. Que é um trabalho absolutamente incalculável. Só fiz porque tínhamos na altura um colaborador que é chinês [Xiaogang Wen] e é patologista em Portugal. Ele é que me ajudou a fazer o estudo detalhado daqueles estômagos. Essa foi uma história linda porque nos permitiu identificar quais são as alterações muito iniciais neste tipo de cancro, permitiu fazer reuniões de consenso e caracterizar qual era a genética, a patologia. Na realidade, o nosso grupo ajudou de uma forma substancial a definir isso. Fizemos recomendações sobre o que se faz a um doente que se apresenta com uma forma de cancro do estômago hereditária. Quando o doente se apresenta muitas vezes já está numa forma avançada, mas sabemos que ele tem aquele defeito no seu genoma e que os seus familiares directos também podem ter. E nessa altura o que se faz?Aos seus familiares directos pode-se oferecer uma intervenção que salva a vida. Que é remover o estômago. Chama-se uma gastrectomia profiláctica. Essa história é das mais lindas. Já salvaram vidas assim?Então não? Todas as pessoas que fizeram uma gastrectomia profiláctica não morreram com cancro do estômago. Depois a história é tão recente que ainda falta saber que outras complicações podem existir. E agora? Quais são agora as principais questões sobre este cancro?Ainda não sabemos tudo. Há mutações de muitos tipos. E depois há famílias que têm esta forma cancro e não se identifica esta mutação. Ou seja, haverá outras mutações que é preciso identificar. Há já outra identificada que codifica também uma outra molécula de adesão que é a Catenina. Mas ainda há uma percentagem de casos que do ponto de vista do comportamento clínico parecem indistinguíveis e que a mutação não se encontra. Isto é apaixonante. O que viu mudar mais na sua área ao longo destes anos? A tecnologia?Muita coisa. A tecnologia nem sequer tem comparação. E a possibilidade de usarmos melhor tecnologia aumenta as possibilidades de fazer diagnósticos mais precisos e isso é fundamental. Mudou também a possibilidade de integrar dados genómicos, as alterações do genoma não no indivíduo portador, mas no próprio cancro, integrar isto tudo em diagnósticos que façam sentido para a aplicação clínica, na tal translação. Estamos na época da patologia digital. Caracterizamos uma doença vendo só imagens digitais. Hoje pode-se prestar serviços de patologia à distância. As pessoas podem mandar as lâminas que preparam para serem vistas noutro sítio. Quando faço consulta dos meus casos, a maior parte das vezes o que faço é fazer imagens digitais e mandar para pessoas que respeito e confio. Como vê o futuro?Onde? No mundo? Em Portugal? Aqui, no meu gabinete?Na Anatomia Patológica, no seu serviço. Vejo com muita preocupação. Não falta vontade de fazer e de viver esta realidade em que integramos as diferentes facetas de uma actividade muito gratificante. E em que temos uma actividade que ainda não falei que é a formação de jovens. Mas…Mas precisamos de pessoas. O que acontece é que perdemos cinco pessoas nos últimos tempos. E nos últimos quatro concursos não tivemos nenhuma vaga aberta. Quantas pessoas tem e quantas acha que precisa?Não se pode colocar as coisas assim, este serviço tem pessoas com perfis diferentes. Há cálculos feitos para o número de pessoas que um serviço destes deve ter, recomendações feitas pelo Ministério da Saúde. E o que dizem os cálculos?De acordo com as recomendações, para estarmos numa situação ideal, precisaríamos de ter mais oito patologistas, além dos que saíram. Nós formamos as pessoas, batemo-nos muito para que fiquem cá no hospital e depois elas vão-se embora. Precisamos inexoravelmente delas. São actividades que vamos deixar de fazer porque não podemos fazer. Que actividades?Por exemplo, neuropatologia que é uma área carente. Tínhamos dois neuropatologistas que deixaram o hospital e agora temos uma consultora que só cá vem uma vez por semana. Outro exemplo: este hospital é centro de referência em epilepsia e a anatomia patológica é essencial para o estudo das alterações. Temos uma carência imensa. Formámos uma pessoa para esse fim e depois não tivemos vaga. Estamos à espera de uma solução. Temos de conseguir reter uma equipa suficientemente capaz na solidez geral e especializada. Este centro tem todas as condições para poder fornecer treino em anatomia patológica, para dar oportunidades de investigação, para dar oportunidades de interacção interinstitucional e internacional. E uma vez que as tem não vejo que haja necessidade de as destruir. Sem pessoas não vamos lá. O que pode atrair um jovem patologista?Pode ser atraído por outras instituições privadas, onde os salários são melhores. Não tenho nada contra isso. As pessoas devem ter liberdade plena. Tenho o maior dos orgulhos que neste serviço se formem profissionais competentes, é uma responsabilidade nossa. Acho também que é uma responsabilidade do Governo identificar centros que devem estar capacitados para dar uma formação completa aos patologistas que podem servir as necessidades públicas e privadas. Se se destruir a capacidade de formação das instituições que neste momento as têm, está-se a destruir a qualidade das instituições. Eu preocupo-me muito com uma outra coisa, pela qual me vou bater sempre e até ao fim, que é a educação médica contínua. Preocupa-me tanto e eu sou actualmente presidente da academia nacional de medicina de Portugal e a primeira reunião que organizei foi sobre istoO que significa esse conceito de formação médica contínua?Significa que obter um título não me confere competência. Eu tenho de me actualizar. E quem avalia essa competência e actualização?Em Portugal não há nada. As pessoas procuram elas próprias acções de formação. Aquilo que fazemos de formação pós-graduada para os internos são acções que são partilhadas com os seniores. Reuniões de discussão de casos, por exemplo, são para todos. Novos e seniores. Deus me livre que eu falte a uma dessas reuniões. Eu sei que nada sei. Todos os dias a anatomia patológica, tudo, cresce, temos de acompanhar desenvolvimento, as novas entidades, os novos métodos, as novas exigências. Não podem parar de aprender. Sim. Essa é uma responsabilidade fundamental. Em países como a Holanda e o Reino Unido, onde isto é uma ciência, uma pessoa tem um portfólio. Qualquer médico tem um conjunto de actividades com créditos que deve preencher e satisfazer ao longo de um ano. Ao fim desse ano, o portfólio é avaliado. Em caso de necessidade são pedidas provas. Há um limiar que as pessoas têm de fazer. Para prova para o sistema de que houve iniciativas da tal aprendizagem médica contínua. Na Austrália, que é uma sociedade vigilante, os especialistas têm de fazer um exame…Esse tipo de avaliação seria possível cá?Não acho possível e ninguém quer abanar o fantasma dos exames. Ninguém quer isso. O que as pessoas querem é que a cultura da formação pós-graduada e da educação médica contínua seja praticada. Isto significa, por exemplo, responsabilizar estruturas para oferecer acções de formação médica contínua. Depois há também o um teste online - o progress test - que é feito uma vez por ano e que é voluntárioPara autodiagnóstico?Sim, as pessoas vão saber qual é a sua classificação em relação à média europeia. E vão saber, no ano X se estão melhor do que no ano Y e quais são as áreas que estão mais fracas. O exercício profissional é mais do que fazer rótulos. É ter tempo para formar os outros, é ter tempo para se formar a si próprio, para partilhar em equipas multidisciplinares…. Agora já não está a falar só da patologia…Estou a falar da patologia mas é um exemplo que se pode replicar. Quando, por exemplo, assumi a direcção do serviço fui confrontada com uma opção… continuar a fazer ou não investigação. E decidi que queria continuar. E tive que ir buscar um tempo de antes tinha disponível e que agora já não tenho. Porque quero muito, porque gosto muito. Mas os sistemas amadurecidos e com experiência têm a responsabilidade de garantir o seu futuro. Quando o professor Sobrinho sair, quando eu sair, e os outros…Como explica esta distinção como a patologista mais influente do mundo?Foi exactamente esta história que lhe contei. É que esta distinção só é possível porque eu não sou uma pessoa isolada. Mas como é que influenciou esta área?Eu vivi uma realidade da qual tirei o melhor partido. É, se calhar, um mérito. Como entendo muito bem esta interacção entre a actividade clínica, académica e da investigação, maximizei sempre todas as potencialidades e tentei contagiar outros. Daqui decorrem actividades de ensino, trabalhos científicos, comunicação internacional, convites. . . na minha trajectória passei também pela Sociedade Europeia de Anatomia Patológica, de que fui presidente. Isto é uma expressão da internacionalização. Mas não sou só eu. Aquilo que é relevante nesta história é que a Anatomia Patológica portuguesa está internacionalizada. Isto é um reconhecimento da Anatomia Patológica portuguesa que atingiu uma plataforma internacional. Vou-lhe contar uma coisa cómica, a propósito desta distinção, o meu filho mandou-me uma mensagem ‘mãe, finalmente fizeste uma coisa útil’. Isso leva-me a outra questão. Muita gente conhece Sobrinho Simões, mas o seu nome não é mediático…Não gosto de aparecer. Isto é um sacrifício que vai acabar dentro de uma semana, quando já ninguém se lembrar disto. Vai esconder-se?Gosto da minha paz. Faz parte da minha liberdade. Mas nestas alturas sentimos alguma responsabilidade em nome do que é realmente o valor desta distinção. O valor da Anatomia Patológica. No fundo, o que eu quero é dar nota de que a anatomia patológica é central à medicina. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No dia em que se soube a notícia da distinção disse-me que se sentia privilegiada…Sinto, muito. Sinto-me muito privilegiada de ter nascido em África, de ter crescido em África, de ter tido a família que tive, aquela em que nasci, a que me adoptou através do casamento, fui terrivelmente feliz. Fui ou sou?Sou, mas a vida vai-nos castigando com perdas de pessoas de que gostamos e isso só é compensado com a chegada de outros. Já tem netos?Ainda não, mas hei-de ter.
REFERÊNCIAS:
Mais luminosa do que a árvore de Natal
Produtos naturais com origem nos Açores compõem os novos tratamentos faciais e corporais do Ritz Spa, em Lisboa. Fomos experimentar e ficámos a luzir. Faltou-nos o mar. (...)

Mais luminosa do que a árvore de Natal
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Produtos naturais com origem nos Açores compõem os novos tratamentos faciais e corporais do Ritz Spa, em Lisboa. Fomos experimentar e ficámos a luzir. Faltou-nos o mar.
TEXTO: O que estava programado era um tratamento de rosto designado Anti-Aging (em português, antienvelhecimento), mas havia possibilidade de desfrutar previamente de outras valências do spa do Ritz Four Seasons Hotel Lisbon. Foi o que fizemos. À falta do mar do Açores, escolhemos a piscina interior aquecida, irresistível pela dimensão, temperatura, luz natural e vista ampla sobre o jardim do hotel e sobre o parque Eduardo VII. Durante meia hora pudemos nadar sem companhia. Não só pelo horário escolhido, mas porque a ocupação do hotel era ainda muito reduzida, já que nos dias imediatamente anteriores tinha estado reservado para a comitiva do Presidente chinês, Xi Jinping, na sua primeira visita oficial a Portugal. Tratamentos e preços: Facial Anti-Aging – Protecção das células contra os agentes de envelhecimento, para uma tez radiante e brilho de uma pele rejuvenescida. O tratamento de rosto consiste numa máscara hidratante e estimulante de colostro e colagénio. Duração: 80 min. Preço: 235 eurosFacial Hidratação e Rejuvenescimento – Tratamento adaptado a cada tipo de pele, podendo ser aplicada uma de duas máscaras faciais: a máscara com veneno de abelha e argila ou a máscara de leite de burra. Ricas em nutrientes e poderosas propriedades regenerativas, as combinações foram criadas para purificar, dar firmeza e brilho à pele, deixando-a macia e com aparência jovem. Duração: 50 min. Preço: 180 eurosTratamento Corporal em Casulo – Criado para estimular a drenagem linfática e melhorar a circulação, reduz o inchaço e a retenção de líquidos. Este ritual é finalizado com os clientes envolvidos num casulo de colostro açoriano, deixando o corpo relaxado, a mente calma e a pele luminosa. Duração: 80 min. Preço: 245 eurosMorada: R. Rodrigo da Fonseca 88, Lisboa Marcações: telefone: (+351) 21 3843005; e-mail: [email protected] Horário das instalações do spa: das 6h30 às 22h30 Horário dos tratamentos: das 8h00 às 21h00Antes ainda de mergulharmos, Sara Margarido deu-nos uma ficha médica (obrigatória e confidencial) para preencher, mostrou-nos todo o espaço do spa e informou que a marcação de qualquer tratamento permite aos clientes, além do uso da piscina, também o da sauna e do banho turco. Por isso, aconselha a que se chegue ao spa pelo menos 30 minutos antes da hora agendada para o tratamento. Assim há tempo para que o ambiente vá convidando ao relaxamento. Confirmamos. Toalhas macias, roupões confortáveis, mas chinelos nem por isso estão acessíveis em vários armários de madeira e também junto aos cacifos, a que se acede com um cartão. Há recipientes com frutas aqui e ali e pode solicitar-se chá ou sumos. O sumo de gengibre e canela é uma delícia. Depois de braçadas e flutuações na piscina, seguiu-se um belo duche, com bastante pressão (que envolveu uma divertida atrapalhação com os diferentes manípulos, torneiras e orientações da saída de água, dadas as múltiplas possibilidades). Já contaminados pela atmosfera relaxante do spa, vamos então ao tratamento facial programado. Na verdade, não será só o rosto a entregar-se às mãos de Tânia Rodrigues, a terapeuta que nos foi destinada. Haverá direito a alguns “passeios manuais” pela cabeça, pescoço, colo e ainda a uma massagem drenante às pernas. Pedimos por isso a Tânia que nos explique logo de início o que se vai passar, pois suspeitamos de que vamos “desligar” por completo nos instantes seguintes, mas estamos em trabalho…A terapeuta começa por nos lembrar que o tratamento tem a assinatura Ignae, “uma marca orgânica, com produtos dos Açores 100% naturais e fantásticos”. Enumera ainda os seus quatro componentes principais: “Colostro bovino, água termal, mel e camélia japónica. ” Outros elementos são “colagénio” e, como se lê no site do spa para o tratamento Hidratação e Rejuvenescimento, “veneno de abelha e leite de burra”. Preferimos não pensar muito nisso e queremos antes saber qual pode ser a expectativa de quem se propõe a um tratamento desta natureza. “Sair daqui com a pele muito mais rejuvenescida, com uma limpeza profunda e com a sensação e certeza de que foi efectivamente tratada, desde a raiz até à superfície. ”Informa-nos ainda que a linha é unissexo e tem sido procurada por clientes masculinos. Perguntámos se Tânia já tinha experimentado estes tratamentos. Disse-nos que é prática comum do Ritz Spa os terapeutas submeterem-se aos produtos antes de iniciarem a sua aplicação aos clientes. “A partir do momento em que temos a experiência do produto, torna-se muito mais fácil transmitir as sensações e os efeitos”, descreve. Para concluir, divertida: “Já o sentimos na pele. Literalmente. ”Esclarecimentos prestados, são-nos dadas as boas-vindas com o ritual de lava-pés, em água morna com pétalas de flores e uma breve massagem com exfoliante à base de gengibre. Sabe bem. De seguida deitamo-nos na marquesa e surge uma ligeira inquietação pela ideia de que nos será aplicada uma máscara a tapar todo o rosto, incluindo olhos e boca – só estando prevista abertura na gaze para o nariz. E o relaxamento ameaça abandonar-nos. Com profissionalismo e voz calma, a terapeuta acede com simpatia e empatia a que se mantenha também a boca a descoberto. E a verdade é que não voltámos a pensar num possível desconforto. Assim que tocou o sino que anuncia o início do tratamento e começou a massajar-nos a cabeça e o rosto, os leves indícios de claustrofobia partiram para longe. A máscara foi aplicada depois de os olhos serem tapados com compressas frescas, passadas por gelo. Sobre a gaze, foi pincelada a mistura dos diferentes produtos, em que predomina o colostro. Daí o aroma a leite em pó. Enquanto a máscara actuava sobre o rosto, a terapeuta, que se afirmou como “alfacinha”, concentrou-se nas nossas pernas e pés. Uma massagem drenante ritmada e muito competente. Não só porque nos distraiu do que se passava mais “cá para cima”, como conseguiu aquela pressão ideal sobre o corpo, a que não maltrata nem acaricia. Os óleos essenciais usados são à base de funcho. As ilhas, de novo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Chegado o momento de retirar a máscara, 80 minutos depois de se ter iniciado o tratamento, toca o sino pequenino. Acabou. Tânia pergunta se nos sentimos bem. A brincar, respondemos: “Amanhã à mesma hora. ” E ainda não tínhamos visto como estávamos a brilhar. Confirmámos a boa sensação que se anunciara de ter o rosto limpo e hidratado em profundidade. Enquanto as pernas, de tão leves, pareciam seguir sozinhas à nossa frente. À saída, voltamos a encontrar-nos com Sara, que nos acolhera à chegada. Só agora nos damos conta de que vai ter um bebé. “É o segundo. Mais uma menina, já tenho uma”, diz-nos, enquanto se ilumina num sorriso. Não se pode competir com aquela luz.
REFERÊNCIAS:
Marta, a "achadora" de montras que podem salvar o comércio tradicional
Folheto do comércio tradicional Achador parte do doutoramento de Marta Nestor e busca salvação para lojas portuenses com mais de 50 anos. Montras no papel e fora do sítio. Porque numa cidade em mudança, este sector tem uma palavra importante a dizer (...)

Marta, a "achadora" de montras que podem salvar o comércio tradicional
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Folheto do comércio tradicional Achador parte do doutoramento de Marta Nestor e busca salvação para lojas portuenses com mais de 50 anos. Montras no papel e fora do sítio. Porque numa cidade em mudança, este sector tem uma palavra importante a dizer
TEXTO: Quando Marta Nestor aceitou o convite para trabalhar as vitrinas da Casa Januário, não demorou a perceber que a máxima há muito ouvida nas suas lides pelo mundo do comércio não podia ser mais assertiva: “A montra é o primeiro funcionário a vender. ” Da janela do seu escritório, em frente à mercearia fina da Rua do Bonjardim, a designer gráfica punha-se a observar. Quem passava sem olhar, quem estacionava, a linguagem corporal, a decisão de entrar ou seguir em frente. O seu projecto Porto Paralelo – um directório online da história e localização de lojas cinquentenárias criado em 2012 – já tinha amadurecido e Marta Nestor sentia que algo faltava. “Estava preocupada por ver tantas dessas lojas a fechar. Não conseguia acompanhar as razões pelas quais isso acontecia e queria fazer algo para o contrariar. ”Apaixonada pelo comércio tradicional desde menina, quando com a mãe e avó percorria as lojas antigas da zona da Rotunda da Boavista, Marta Nestor recusava-se a desistir. No seu doutoramento, que concluirá no próximo ano, apresenta “soluções para a vitalidade e viabilidade” destes lugares. E se a mudança é imparável, a adaptação é, ainda assim, possível. O Achador, folheto do comércio tradicional com o número zero já publicado, é um ensaio para isso. A receita veio da conjugação do folheto de supermercado, “que muita gente usa para consulta e planeamento das compras”, com as vitrinas. Com um ano e meio de experiência na Casa Januário e muita investigação pelo meio, Marta sabia já algumas coisas sobre montras. O diagnóstico não era de grande optimismo. Com uma “eficácia muito pontual” nos dias de hoje, as monstras enfrentam vários desafios. No Porto, as esplanadas obrigam as pessoas a desviarem-se delas e as “ruas corredor”, artérias pontuadas por hotelaria e lojas souvenir, cada vez mais comuns na cidade, fecham a urbe a quem a habita e dificultam a vida às lojas. Há negócios que se tornaram quase inexequíveis. “No meu directório não tenho nenhuma drogaria e há já muito poucas. Sofreram muito com as lojas maiores. Não conseguiram sincronizar a oferta e o público, não se reposicionaram, não optimizaram a comunicação”, avalia. Das 53 históricas mapeadas pelo Porto Paralelo umas vinte já terão fechado e no site renovado do projecto caberão num “arquivo silencioso”. Casos existem onde a extinção era inevitável. Outros poderiam ter na adaptação uma bóia de socorro. No trabalho no Porto Paralelo, Marta Nestor tornou-se “da casa” em muitas moradas. Conheceu as lojas de fio a pavio – ou das montras ao armazém –, viu o que está para lá das quatro paredes frequentadas pelos clientes. Nos bastidores foi respigar ideias e produtos para levar para o escaparate da loja. Ambientes invulgares, fotografias dos armazéns, produtos que de tão comuns para os donos e funcionários das lojas já não precisavam de se mostrar: “Na Casa Januário fiz uma vez uma montra com pratos de papel e cartonagens utilizadas em papelaria”, exemplifica. Porque quem vem de fora pode ter “um olhar mais desempoeirado, mais apaixonado, capaz de encontrar coisas que quem lá está sempre já não vê. ”No Achador – palavra com origem em “caçador de achados”, aquilo que a designer se sentia nas lojas – estão doze montras pensadas por Marta Nestor, desta vez em doze lojas do “bairro” da baixa oriental, entre as Ruas do Bonjardim, Fernandes Tomás, Passos Manuel, Sá da Bandeira e Rodrigues Sampaio. Na edição especial de Natal, cuja capa é uma imagem do extinto mural dos três vinténs, na Rua de Cedofeita, cabem A Favorita do Bolhão, o Armazém dos Linhos, a Bernardino Francisco Guimarães, a Camisaria Porto, a Casa Porto, a Casa Chinesa, a Casa Januário, a Casa Lima, a Casa Lourenço, a Casa Natal, a Feira do Bacalhau, Neves & Loureiro e O Pretinho do Japão. Todas com mais de cinquenta anos, premissa para integrarem o projecto, cada uma com uma montra requintada, os materiais listados (com preços), as moradas, horários e contactos. Em cada um dos folhetos deste número zero (são 350 e podem ser recolhidos gratuitamente nas 12 lojas e alguns cafés da zona) está um “cupão de opinião”, para recolher impressões e sugestões dos clientes e pensar no futuro do projecto cuja periodicidade ainda não foi definida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se a pergunta é por que razão devemos privilegiar o comércio tradicional, Marta Nestor não tem muitas dúvidas. Os preços “são quase sempre mais baratos”, a “carga humana” é incomparável, os “conselhos e cuidado pós-venda” dificilmente imbatíveis. Muita coisa está ainda por fazer – e não só do lado dos empresários. Nota positiva para a “criação de um pelouro do comércio e turismo pela Câmara do Porto”, chamada de atenção para a ainda pouca relevância dada ao sector: “O comércio tem um papel fundamental numa cidade, ainda mais quando ela está em mudança. Tem a capacidade de ser um chamariz. De caracterizar um lugar”, afirma. No Porto, ao contrário do que acontece em várias cidades europeias com “políticas agressivas” no terreno, ainda é notória a “falta de protecção aos negócios que caracterizam e dão profundidade à cidade”. Não é a defesa de uma “ilha”. É a apologia da mistura. “Não faz sentido que as lojas cinquentenárias se juntem todas numa rua, mas é preciso que haja uma simbiose de espaços”, diz. Nas andanças por este comércio com mais memória e pergaminhos no quotidiano do Porto, Marta Nestor foi descobrindo um “efeito Lello”: uma espécie de “compra-experiência”, que no caso da livraria quase extinguiu o sentido dessa designação. “Só não deixa de vender livros porque aí deixava de ser a livraria mais bonita do mundo para ser apenas um espaço bonito”, considera. Esse “modelo comercial hibrido” já se ia encontrando pela cidade há 30 ou 40 anos e não é, por si só, negativo, diz ela, na esplanada de uma dessas casas que soube renovar-se: a Bernardino Francisco Guimarães, loja de ferragens da Rua do Bonjardim, agora com uma cafetaria integrada. Essa ideia de alargamento dá uso aos armazéns, muitas vezes semi-vazios por falta de produto, rentabiliza a “nova vaga turística” e cria uma “dinâmica diferente”. O Achador e o Porto Paralelo não querem combater o efeito Lello, mas “contrabalançar” essa tendência. “É preciso voltar ao core do negócio, ao produto”. Caso contrário ficaremos condenados a “lojas para visitar”. E depois, o que seria dos museus?
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave espécie extinção
Barbara Bush (1925-2018). A matriarca de uma família de Presidentes americanos
Antiga primeira-dama dos Estados Unidos e mãe de George W. Bush morreu esta terça-feira, aos 92 anos. (...)

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MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-10 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181210192114/https://www.publico.pt/n1810813
SUMÁRIO: Antiga primeira-dama dos Estados Unidos e mãe de George W. Bush morreu esta terça-feira, aos 92 anos.
TEXTO: “Gostaria de ser lembrada como uma esposa, uma mãe, uma avó. É o que eu sou. E gostaria de ser lembrada como alguém que se importava com as pessoas e que trabalhava arduamente para tornar a América mais letrada”. Redigidas por mão própria em 1988, eram estas as aspirações de Barbara Bush quando confrontada com o legado que queria deixar. Trinta anos depois e olhando para as manifestações de pesar, veneração e respeito difundidas pelas redes sociais, poderá afirmar-se que os desejos da ex-primeira-dama dos Estados Unidos cumpriram-se quase integralmente. A “matriarca de uma dinastia”, como um dia foi rotulada pela biógrafa Pamela Kilian, morreu na terça-feira, aos 92 anos. Mulher de George H. W. Bush, 41. º Presidente dos EUA, e mãe de George W. Bush, 43. º Presidente, Barbara Bush já tinha sido internada várias vezes ao longo do último ano, vítima de uma doença crónica pulmonar e de problemas cardíacos. No domingo decidiu abdicar de tratamento médico adicional e acabou por falecer dois dias depois, em sua casa, na cidade norte-americana de Houston (Texas). Segunda mulher da História dos EUA a ser mulher e mãe de um chefe de Estado do país – Abigail Adams (1744-1818) foi a primeira, tendo sido casada com John Adams e progenitora de John Quincy Adams –, Barbara Bush desempenhou um papel importantíssimo no sucesso político da sua família. Contribuiu sobremaneira para a valorização da missão institucional de primeira-dama norte-americana e foi uma acérrima promotora da alfabetização e dos direitos civis. Fez voluntariado em enfermarias e hospitais de Houston, Washington e Nova Iorque, angariou verbas para o United Negro College Fund em New Haven, marcou presença em mais 500 eventos de combate à iliteracia e ajudou a fundar a Barbara Bush Foundation For Family Literacy. “Barbara Bush foi a pedra angular de uma família dedicada ao serviço público. Estamos gratos pela forma como nos tratou durante os anos em que estivemos na Casa Branca, mas ainda mais agradecidos pela forma como viveu a sua vida. Demonstrou que o serviço público é uma vocação importante e nobre e foi um exemplo da humildade e decência que reflecte o melhor do espírito americano”, reagiu o casal Obama, através de um comunicado no Twitter do antigo Presidente. O actual detentor do cargo reforçou o papel de Barbara Bush na alfabetização das famílias norte-americanas, que considerou ter sido a sua “maior conquista”. “Será lembrada pela sua devoção ao país e à família, que serviu infalivelmente bem”, afirmou Donald Trump, anunciando ainda que a Casa Branca vai colocar as bandeiras a meia haste em homenagem à antiga primeira-dama. As bandeiras irão permanecer assim até ao final das cerimónias fúnebres, marcadas para o próximo sábado, em Houston. Bill e Hillary Clinton manifestaram igualmente o seu pesar, lembrando uma mulher com “coragem, graça, cérebro e beleza”. Barbara Bush “era feroz e resoluta”, uma mulher que viveu uma “vida honesta, vibrante e plena”, expressaram. Presença assídua e oradora dedicada nas campanhas eleitorais dos membros do seu clã – nos anos 1980 e 1990 ao lado do marido, nos anos 2000 em apoio ao filho George e há cerca de dois anos em amparo ao filho Jeb –, Barbara Bush conseguiu, ainda assim, desassociar-se das posições políticas dos seus familiares e manter uma imagem relativamente neutral no que toca à percepção das pessoas sobre a sua verdadeira influência junto do marido, com quem estava casada há 73 anos. “Eu não me meto com o seu gabinete e ele não se mete no meu lar”, resumiu uma vez. Por outro lado, Barbara nunca se escusou a dar a sua opinião a George sobre as suas decisões políticas e até sugeriu ter tido um dedo em algumas delas, como disse em 1992: “Se não tivermos qualquer influência quando estamos casados com alguém durante 47 anos estamos em sérios problemas”. A postura frontal, sincera e genuína da antiga primeira-dama ajudou-a a entrar nas boas graças dos norte-americanos e a construir uma imagem pública favorável. Para esta realidade, escreve o New York Times, muito contribuíram as comparações inevitáveis com a sua antecessora, Nancy Reagan, percepcionada sempre como alguém “distante, fria e demasiado consciente”. “Ela chegou à Casa Branca com a destreza de conseguir moldar a sua imagem. Muita gente não percebeu inteiramente que apenas revelou o que queria e raramente mais do que isso”, escreveu Donnie Radcliffe, numa biografia de Barbara Bush, datada de 1989. Dos EUA até à China, sempre com GeorgeNascida a 8 de Junho de 1925 em Nova Iorque, Barbara foi a terceira filha de Marvin Pierce e Pauline Robinson. Conheceu George. W. H. Bush em 1941, num baile de natal em Greenwich, Connecticut, e os dois começaram a trocar correspondência quase de imediato. O contacto continuou nos anos seguintes e chegou a ser marcado por momentos de enorme angústia, sobretudo enquanto George participou na Segunda Guerra Mundial, ao serviço da Marinha norte-americana – o ex-Presidente foi ferido no Pacífico e não deu notícias durante mais de um mês. Em Janeiro de 1945, Barbara Pierce e George Bush casaram e a antiga primeira-dama desistiu da Smith College, onde estudava. “Já não estava interessada [em estudar]. Só estava interessada no George”, justificou mais tarde a ex-primeira-dama. Nos anos seguintes, Barbara viajou um pouco por todo o país, acompanhando o marido. George Bush foi destacado para diversas bases militares norte-americanas e mais tarde abandonou a marinha, para se dedicar à indústria petrolífera. Antes da aventura na Casa Branca, a família Bush passou pelo Michigan, Maine, Virgínia, Connecticut, Texas, Califórnia e Nova Iorque. O primeiro filho do casal, George W. Bush, nasceu em 1946 e três anos depois foi a vez de Pauline. A menina acabou por morrer antes de fazer quatro anos, vítima de leucemia. Jeb (1953), Neil (1955), Marvin (1956) e Dorothy (1959) são os restantes filhos. Depois de falhar a eleição para o Senado em 1964, George W. H. Bush – membro do Partido Republicano – foi eleito congressista dois anos depois, pelo 7. º Distrito do Texas, e a família mudou-se para Washington. Em 1970, Bush voltou a falhar a entrada no Senado, mas foi compensado com a nomeação para as Nações Unidas, para servir em Nova Iorque como embaixador dos EUA, durante a administração Nixon. Barbara Bush e a família acabaram por regressar a Washington em 1972, depois de George ter sido nomeado para o cargo de secretário do Comité Nacional Republicano. Em 1974, na sequência do caso Watergate, marido e mulher foram viver para Pequim. Ele serviu no Liaison Office norte-americano na capital chinesa e ela assumiu ter vivido um dos períodos mais felizes da sua vida. “O Watergate foi uma experiência terrível. Por isso ir para a China e aprender toda uma nova cultura foi maravilhoso”, contava Barbara em 1984, revelando que andavam de bicicleta pela cidade, estudaram chinês e aprenderam tai chi. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O regresso aos EUA aconteceu em 1976, quando Bush foi nomeado director da CIA. A eleição posterior para a vice-presidência da administração Reagan marcou o início de uma longa relação da família Bush com a Casa Branca e permitiu a Barbara Bush cimentar o seu já longo historial de serviço público durante a presidência do marido (1989-1993), já perfeitamente expressivo e maturado durante o consulado presidencial do filho (2001-2009) e da última década. “Uma primeira-dama e uma mulher diferente de qualquer outra, que trouxe amor, leveza e alfabetização a milhões de pessoas”, descreveu-a na terça-feira George W. Bush. O corpo de Barbara Bush irá estar em câmara-ardente na sexta-feira, “para que o público lhe possa prestar a devida homenagem”, anunciou a Fundação da Biblioteca e Museu George H. W. Bush.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA