Lançada petição contra a decisão de retirar o Português das provas de admissão em França
A École Polytechnique e a École Normale Supérieure vão retirar o Português das provas de admissão em 2012. (...)

Lançada petição contra a decisão de retirar o Português das provas de admissão em França
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-12-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: A École Polytechnique e a École Normale Supérieure vão retirar o Português das provas de admissão em 2012.
TEXTO: O Português, o Italiano e o Russo vão ser suprimidos das provas de admissão aos cursos de duas das mais prestigiadas escolas do ensino superior francês - a École Polytechnique e a École Normale Supérieure - a partir de 2012. As escolas anunciaram a intenção de reduzir a oferta de línguas vivas nas suas provas de admissão, mas vão manter o Alemão, o Inglês, o Árabe, o Chinês e o Espanhol. Isto causou indignação na comunidade lusófona e a Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Portugueses, Brasileiros e da África e Ásia Lusófonas (ADEPBA) lançou anteontem uma petição na Internet (http://www. petitionpublique. fr/ pi=P2010N4578) e enviou cartas para as duas instituições, para diversas embaixadas lusófonas em Paris (Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde) e para ministérios franceses (da Defesa, da Educação Nacional e do Ensino Superior), mostrando indignação. "Sejam quais forem as razões que motivam a esta decisão - simples comodidade, economia, pedagogia, apreciação, etc. - são dificilmente admissíveis para uma instituição como a vossa", escrevem, pedindo a seguir que estas instituições voltem atrás na sua decisão. Francisco Seixas da Costa, embaixador de Portugal em França, explicou ontem ao PÚBLICO que esta questão - que foi noticiada pelo Expressoonline - surgiu há semanas e que os seus efeitos, "a concretizarem-se", terão lugar a partir de 2012. A Embaixada de Portugal em França tem estado em contacto directo com as autoridades francesas. "O nosso objectivo é tratar o assunto de uma forma compatível com o que entendemos ser o estatuto internacional da língua portuguesa, bem como a importância que esta língua tem para muitos sectores deste país", disse o embaixador por email. Na petição lê-se que "esta decisão é contrária aos acordos bilaterais sobre o desenvolvimento das respectivas línguas assinados entre Portugal e a França a 10 de Abril de 2006 e entre o Brasil e a França, igualmente durante o ano de 2006". Francisco Seixas da Costa explicou que "a avaliação da eventual compatibilidade destas medidas com os compromissos bilaterais luso-franceses está ainda por fazer", porque se trata de "medidas tomadas no âmbito de entidades descentralizadas, com competências próprias". No entanto, a embaixada vê com "grande simpatia" a mobilização que esta petição pública representa: "Ela também nos ajuda a sublinhar, junto dos poderes público franceses, a relevância para a sociedade civil de um tema que, naturalmente, a todos nos é muito caro. "Também o vice-presidente do Instituto Camões, Mário Filipe da Silva, lembra que as autoridades francesas e estas escolas têm autonomia e políticas internas próprias. "Não é uma questão que a França ou que uma determinada escola tenha que comunicar a Portugal ou ao Instituto Camões, mas é uma questão preocupante e pela nossa parte não é uma questão arrumada", explicou. "Estamos a trabalhar no sentido para que isso não suceda. " Para já, o Instituto Camões está a avaliar as políticas em relação às línguas dessas instituições, que tradicionalmente eram pela diversidade. "Tendo em conta que a língua portuguesa tem vindo a ganhar importância e visibilidade internacional, estas instituições francesas estão a ir contracorrente. Estamos a tentar obviar a que isso suceda", acrescentou. Lutar contra estereótipoO conselheiro da Câmara de Paris Hermano Sanches Ruivo (de origem portuguesa) apoia a petição e faz parte dos que estão a reagir, porque sabe que o número de pessoas que têm interesse pela língua portuguesa em França está a aumentar por causa de mercados emergentes como o Brasil ou Angola. "Temos uma política constante de considerar que o ensino da língua portuguesa está ligado à imigração e por isso não é prioritário. A essa interpretação junta-se a de não se considerar que a língua portuguesa seja indispensável para mercados exteriores. É um erro e um estereótipo. "
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola imigração educação ajuda comunidade chinês
Encontrados 279 cadáveres em valas comuns no Norte do México
As autoridades mexicanas encontraram este mês 279 cadáveres em diversas valas comuns no Norte do México, mas as buscas ainda continuam. A violência ligada ao narcotráfico já causou mais de 37 mil mortos no país desde 2006. (...)

Encontrados 279 cadáveres em valas comuns no Norte do México
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-04-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: As autoridades mexicanas encontraram este mês 279 cadáveres em diversas valas comuns no Norte do México, mas as buscas ainda continuam. A violência ligada ao narcotráfico já causou mais de 37 mil mortos no país desde 2006.
TEXTO: O Governo mexicano confirmou a descoberta de 183 cadáveres no estado de Tamaulipas e a detenção de 74 pessoas suspeitas de terem estado envolvidas em massacres, entre elas 17 polícias com alegadas ligações ao cartel da droga Los Zetas, um dos mais poderosos na região. Ao todo, desde o início do mês, foram encontradas 40 valas comuns no município de San Fernando, a 160 quilómetros da fronteira com os Estados Unidos, adiantou a procuradora Marisela Morales. San Fernando, onde em Agosto ocorreu o massacre de 72 pessoas que procuravam passar a fronteira para os EUA, fica no estado fronteiriço de Tamaulipas, um dos mais atingidos pela violência no México, a par do estado de Durango. Aqui foram também encontrados 96 corpos em duas valas comuns. “As escavações vão continuar e provavelmente serão encontrados mais corpos”, adiantou Marisela Morales, citada pela Reuters. Segundo a agência britânica, este mês já foram encontrados 279 corpos em valas comuns, na sequência de uma investigação iniciada após várias denúncias de raptos a passageiros de autocarros naquela região. Os assassínios e a violência ligada ao narcotráfico são um dos principais desafios que enfrenta o Governo do Presidente Felipe Calderón, muitas vezes contestado pela sua política de combate ao narcotráfico e a mobilização de mais de 50 mil soldados para para combater os cartéis que disputam as rotas de tráfico de droga para os EUA. Entre as 74 pessoas que foram detidas nos últimos dias estão alguns “líderes de células” do cartel Los Zetas e vários já confessaram a sua participação nos assassínios, adiantou Marisela Morales. A operação lançada após a descoberta das valas comuns para garantir a segurança da região já permitiu libertar 119 sequestrados, adiantou Morales. Na segunda-feira a polícia resgatou 51 imigrantes, entre eles14 guatemaltecos, dois hondurenhos, dois salvadorenhos, seis chineses e 27 mexicanos.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Paulo Portas desvaloriza “esquerda/direita” e prefere “competência”
Numa visita a uma feira do livro e de artesanato no Satão, Viseu, Paulo Portas recebeu um cravo vermelho das mãos de um capitão de Abril. O momento parecia coroar o discurso feito momentos antes quando o presidente da junta de freguesia local (PS) lhe pediu para se coligar com o partido de Passos Coelho e apontou como vantagem ao CDS a maior atenção pelos “pobres”. (...)

Paulo Portas desvaloriza “esquerda/direita” e prefere “competência”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.142
DATA: 2011-05-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Numa visita a uma feira do livro e de artesanato no Satão, Viseu, Paulo Portas recebeu um cravo vermelho das mãos de um capitão de Abril. O momento parecia coroar o discurso feito momentos antes quando o presidente da junta de freguesia local (PS) lhe pediu para se coligar com o partido de Passos Coelho e apontou como vantagem ao CDS a maior atenção pelos “pobres”.
TEXTO: Em resposta ao autarca Armando Cunha, Paulo Portas desvalorizou a diferença entre “esquerda e direita”, num país “à beira da bancarrota”, preferindo substituir o discurso ideológico pelo critério da “competência”. E aproveitou para salientar o “compromisso social mais forte, mais vincado do CDS” face ao PSD que “não percebe que há gente nova” a ser obrigada a emigrar. “O importante nestas eleições não é direita nem esquerda, é a diferença entre realismo e ilusões”, disse Portas. Alguns passos mais à frente, numa das tendas da feira, em que estão expostas imagens de murais políticos de 1974, o líder do CDS recebe um cravo vermelho de um capitão de Abril que faz questão de distribuir as “flores da liberdade” por outros elementos da caravana. O líder do CDS comenta um dos cartazes do PCTP/MRPP: “Este é inspirado no maoísmo chinês”. E questionado pelos jornalistas sobre se ainda se vai dirigir aos simpatizantes centristas como “camaradas”, Portas cita o Presidente Kennedy. “Eu não te pergunto de onde tu vens mas o que queres fazer pelo teu país”, recordou, insistindo na desvalorização das “categorias ideológicas”.
REFERÊNCIAS:
Partidos PSD
Discurso de Souto de Moura ao receber o Pritzker
O discurso de Souto de Moura ao receber o Pritzker 2011. (...)

Discurso de Souto de Moura ao receber o Pritzker
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-06-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: O discurso de Souto de Moura ao receber o Pritzker 2011.
TEXTO: Exmo. Sr. Presidente dos EUA, Presidente do Júri, elementos do Júri, meus Amigos, minhas Senhoras e meus Senhores, Só quando recebi o convite dizendo “Eduardo Souto de Moura of Portugal” é que acreditei que tinha ganho o Pritzker 2011. Não posso esconder que fiquei feliz, por mim, pela minha família, colaboradores, amigos e clientes. Em nome de todos, os meus sinceros agradecimentos. Aprendi a desenhar na Escola Italiana do Porto, cidade onde nasci, e no liceu decidi ser arquitecto. Não é que tivesse alguma paixão especial pela disciplina, mas na crise agnóstica dos 15 anos, duvidei se Deus devia ter descansado ao 7º dia. É que, pensando bem, ficou por fazer uma geografia como a de Delfos, a Acrópole para receber o Parténon ou secar um pântano no Illinois, onde a Farnsworth pudesse ficar. Em 1975 depois da Revolução dos Cravos, comecei a trabalhar com o Arqº Siza Vieira. Não só pela arquitectura, mas sobretudo pela pessoa em si, foi uma experiência excepcional que ainda hoje continuo a fazer com o mesmo prazer. Saí do seu escritório nos anos 80, para ser arquitecto. Foi difícil começar, mas usar a sua “linguagem” parecia-me uma traição e mesmo que o quisesse, não o conseguia fazer, por pudor. Depois da Revolução, e restabelecida a Democracia, abriu-se a oportunidade de redesenhar um país, onde faltavam escolas, hospitais, outros equipamentos, e sobretudo meio milhão de casas. Não era certamente o Pós-Modernismo, na altura em voga, que nos poderia resolver a questão. Construir meio milhão de casas, com frontões e colunas seria uma perda de energia, pois a ditadura já o tinha ensaiado. O Pós-Modernismo chegou a Portugal, sem quase termos passado pelo Movimento Moderno. É essa a ironia do nosso destino: “antes de o ser já o éramos”. Do que precisávamos era de uma linguagem clara, simples e pragmática para reconstruir um país, uma cultura, e ninguém melhor que o proibido Movimento Moderno poderia responder a esse desafio. Não era só um problema ideológico, mas sobretudo de coerência entre material, sistema construtivo e linguagem. Se “arquitectura é a vontade de uma época traduzida num espaço”, Mies van der Rohe abriu-nos as portas na redefinição da disciplina tão massacrada até aí, pela linguística, semiótica, sociologia e outras ciências afins. O importante é que a arquitectura fosse “construção”, assim com urgência, nos pedia o país. Com 10 séculos de História, Portugal encontra-se hoje numa grande crise social e económica, como já aconteceu em vários períodos anteriores. Hoje, como ontem, a solução para a arquitectura portuguesa é emigrar. Como dizia Paul Claudel: “Le Portugal est un pays en voyage, de temps en temps il touche l’Europe”. Resta-nos a “mudança”, como quer dizer a palavra “crise” em grego. Resta-nos decifrar o significado dos dois caracteres chineses que compõem a palavra “crise”: o primeiro significa “perigo”, o segundo “oportunidade”. Em África e noutras economias emergentes não nos faltarão oportunidades, o futuro é já aí. “Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose é obra própria nossa. ” (1)Muito obrigado. Eduardo Souto de Moura(1) Herberto Helder, “O Corpo. O Luxo, A Obra”
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Descolonizar o pensamento entre Estocolmo e Joanesburgo
A plataforma feminista Mahoyo apresenta esta sexta-feira, em Lisboa, um documentário centrado na efervescente cena cultural de Joanesburgo. Uma alternativa às narrativas uniformizadas sobre África. (...)

Descolonizar o pensamento entre Estocolmo e Joanesburgo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: A plataforma feminista Mahoyo apresenta esta sexta-feira, em Lisboa, um documentário centrado na efervescente cena cultural de Joanesburgo. Uma alternativa às narrativas uniformizadas sobre África.
TEXTO: Farah Yusuf e MyNa Do, ambas DJ, fotógrafas e stylists, nasceram e cresceram na Suécia mas ouvem sempre a mesma pergunta nas ruas de Estocolmo: “De onde são?”. São da Suécia, vivem na capital, mas não encaixam na norma. Farah é de ascendência somali, MyNa de ascendência chinesa, o que entra em conflito directo com os padrões hegemónicos de representação da identidade nacional sueca, país onde a extrema-direita e os sentimentos anti-imigração têm crescido a passos largos, muito à boleia do (cada vez maior) partido nacionalista conservador Democratas Suecos. “Esse tipo de racismo banalizado consegue ser muito irritante”, diz MyNa Do. “Não é só uma questão de insultos racistas ou violência física, é o constante sentimento de insegurança”, conta Farah Yusuf ao PÚBLICO. “Se algum abuso racial acontecer a nós e a outros, sabemos que não vão ser muitas as pessoas brancas que nos vão defender. ”Foi contra "essa passividade" e estereótipos perversos de raça, género, sexualidade e identidade nacional que Farah e MyNa criaram, em 2008, a Mahoyo, uma plataforma feminista interseccional e interdisciplinar que funciona, online e offline, como “um espaço seguro” onde “exploram livremente” as suas identidades e criatividade, numa lógica colaborativa transcontinental. Esta sexta-feira passam pelo espaço Damas, em Lisboa, em mais uma edição do evento Damachine, onde apresentam, pelas 18h, e com entrada gratuita, o seu mais importante projecto até à data: o documentário The Mahoyo Project (2015), realizado por Moira Galey, que acompanha a viagem das Mahoyo a Joanesburgo, na África do Sul, e o intercâmbio entre jovens artistas africanos e suecos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Boa parte do filme centra-se na efervescente cena cultural de Joanesburgo, com testemunhos de vários artistas locais. Entre eles estão a DJ Phola Gumede – com quem organizaram workshops de DJing e produção de música electrónica para mulheres –, a apresentadora de rádio e televisão Lethabo “Boogy” Maboi, a designer de moda Tiisetso Molobi e a crew de dança V. I. N. T. A. G. E CRU, uma força vital na comunidade LGBTI da cidade. “A coisa mais surpreendente em Joanesburgo não foi a existência de comunidades feministas e queer, mas o facto de ter demorado tanto tempo a sermos expostas a isso”, revelam Farah e MyNA, referindo a influência inicial do projecto de documentários e vídeos Stocktown, do realizador Teddy Goitom (Afripedia), também com base em Estocolmo mas com os olhos em África (e no mundo). O objectivo de The Mahoyo Project é claro, e necessário: contribuir, sem paternalismos, para transformar as narrativas uniformizadas e estereotipadas veiculadas sistemicamente pelos media ocidentais sobre África e a sua produção artística, uma realidade profundamente diversificada que é normalmente encaixilhada sob o título redutor de “arte africana”. Descolonizar o pensamento e o conhecimento é a mensagem que se impõe. “Sabemos perfeitamente que internalizamos muita da propaganda dos mundos ocidentais”, diz o duo. “A descolonização das nossas mentes é uma parte muito importante do processo, bem como verificarmos os nossos privilégios e sermos humildes. "Depois da projecção do documentário nas Damas, segue-se uma conversa com as Mahoyo, a rapper Juana Na Rap e Otávio Raposo, investigador nas áreas de estudos urbanos e segregação, e autor de documentários como Nu Bai: O Rap Negro de Lisboa. À noite há concerto de Juana Na Rap, dama do rap crioulo com ligação directa à Margem Sul, e set DJ das Mahoyo, que nos levará do dancehall ao kwaito (género musical nascido em Joanesburgo), do hip-hop ao r&b.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave violência imigração negro racismo comunidade género mulheres sexualidade abuso feminista raça
Um só mundo... ou nenhum
O internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram os melhores dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável. (...)

Um só mundo... ou nenhum
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram os melhores dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável.
TEXTO: A 22 de Agosto de 1939, num mundo em assustadora desintegração, agitado pelos desvarios de Adolf Hitler e Benito Mussolini e marcado pelo desenrolar da Guerra Civil Espanhola, o australiano Stanley Melbourne Bruce, antigo primeiro-ministro do seu país e então delegado na Sociedade das Nações (SDN), assinou um dos relatórios sobre questões internacionais mais importantes do século XX. Forjado no interior de reuniões de um comité ao qual presidia e sob a direcção do secretário-geral Joseph Avenol, o relatório The Development of International Co-operation in Economic and Social Affairs, que ficou conhecido como “Relatório Bruce”, deixou marca não apenas naqueles turbulentos dias, mas também nas décadas seguintes. Foi um olhar para a frente quando tudo parecia recomendar o fechar de olhos. Bruce fora já um dos responsáveis pela promoção da questão da nutrição a problema global, defendendo investigação e intervenção internacionais. Já em 1935 defendia o “casamento entre a saúde e a agricultura” na Assembleia da SDN. A acumulação de estudos desde os anos 20, nomeadamente os elaborados pela Organização Internacional do Trabalho e pela Organização de Saúde da SDN, que apontavam para notórias insuficiências nutritivas a uma escala global, exigia uma resposta global. Para Bruce, era importante deixar claro que o estudo da nutrição não podia ser reduzido a uma questão de saúde: era um problema laboral e agrícola, que afectava o bem-estar das crianças e as dinâmicas educativas. A guerra iminente na Etiópia não ofuscou algumas destas ideias à época. Elas deixaram marca, reavivando anteriores iniciativas e sendo abraçadas por várias delegações. Já em 1933, um relatório sobre nutrição e saúde pública, assente em inquéritos nacionais, fora debatido em Genebra. Era urgente enfrentar o problema. Entre outros aspectos de relevo, reconhecia-se que “em geral as populações coloniais eram subnutridas”. Nem sequer se tratava de um problema de malnutrição. Era fome, escassez de alimentos, pura e simplesmente. O novo saber do “nutricionismo”, agora com uma expressão institucional internacional, e a expansão dos serviços médicos em territórios coloniais, em parte como resultado da necessidade de responder regularmente a pedidos de informação provenientes de instâncias internacionais, confirmavam factos antigos, conhecidos e denunciados por alguns. Nos anos 20, os esforços da SDN para conhecer, regular e intervir em problemas sociais como a prostituição, o bem-estar das crianças, o tráfico de mulheres e crianças, o comércio de narcóticos ou a escravatura eram essencialmente normativos e negativos. Centravam-se sobretudo na tentativa de restringir, de jure e com inúmeras limitações, essas práticas, procurando comprometer os seus membros com normas e políticas comuns. Um dos casos mais fascinantes foi o dos relatórios escritos por Paul Kinsie para o comité especial de especialistas sobre tráfico de mulheres e crianças, nos anos 20. Kinsie era um empregado da American Social Hygiene Association, patrocinada por John D. Rockefeller. Este já tinha financiado o importante Prostitution in Europe (1914), da autoria de Abraham Flexner, e um outro livro, Commercialized Prostitution in New York City (1913), de George Kneeland. Este último comportara uma inovação significativa no estudo da prostituição, pois assentara em investigações clandestinas de tipo policial. Kinsie e a sua equipa também actuaram como agentes infiltrados, viajando por mais uma centena de cidades pelo mundo, incluindo Lisboa, entre 1924 e 1926. Entrevistaram centenas de indivíduos envolvidos no negócio da prostituição, de proxenetas a médicos, passando por polícias a políticos. Undercover, o próprio Kinsie esteve em cerca de 60 cidades de 30 países em três continentes, produzindo centenas de relatórios que registavam detalhadamente a sua interacção com o submundo da prostituição. A SDN tinha ficado responsável pela supervisão da aplicação da convenção internacional para a supressão do chamado “tráfico branco” (1910). Em 1921, a expressão foi substituída por “tráfico de mulheres e crianças” e uma comissão técnica permanente foi estabelecida para monitorizar o problema à escala global. A delegada dos EUA na comissão era Grace Abbott, activista social norte-americana, figura ímpar na defesa dos direitos dos imigrantes e do bem-estar das crianças, incluindo em matéria de trabalho infantil. Foi ela que redigiu o memorando que propôs o primeiro inquérito internacional sobre o assunto, sugerindo o envio de agentes com “treino especial e experiência para conduzirem investigações pessoais e não oficiais”. Tal medida era imprescindível para garantir “factos para refutar exageros sensacionais ou desmentidos gerais” sobre a existência do tráfico. Esses “factos” seriam a condição para “um programa sólido de cooperação internacional”, tendo por fim a sua supressão. Tal como sucedera com a investigação de Kneeland, a crença na fiabilidade dos dados oficiais era reduzida. O receio de possíveis bloqueios das autoridades nacionais era grande. Os relatórios Kinsie acabaram por alimentar o relatório da comissão, de 1927, sendo, todavia, fortemente instrumentalizados e suavizados em nome da necessidade de assegurar a continuidade da comissão e do seu projecto de intervenção global. O dilema é recorrente e não há soluções simples e perfeitas. Os relatórios Kinsie foram, contudo, excepcionais. Na maioria dos casos, a capacidade de recolha de informação e de condicionamento das agendas políticas nacionais da SDN era extremamente limitada. No entanto, durante os anos 30, e apesar da cada vez mais conturbada situação política e económica global, os seus dispositivos de investigação e de intervenção sofreram ligeiras mudanças, multiplicando-se também os tópicos abordados. Por exemplo, criaram-se programas de assistência técnica e de formação e aprimoraram-se formas de conhecimento de alguns problemas, instigando a produção de informação de raiz, não dependendo apenas dos dados providenciados pelos Estados-membros. O caso da nutrição é, novamente, um bom exemplo. A extensa dimensão da pobreza global coincidia com a existência de substanciais excedentes agrícolas, facto que precisava de ser enfrentado política e moralmente. A organização criou um comité científico com o fito de avaliar o impacto económico e agrícola de uma melhoria da nutrição a um nível global. Este efectuou inúmeras e ricas investigações, publicadas em 1936 e 1937, que demonstravam a relação umbilical entre má nutrição, pobreza e deficientes condições de saúde. Determinou parâmetros dietários mínimos, sublinhando a estreita relação entre estes e a saúde individual e pública, o bem-estar social e a actividade económica, nomeadamente a produção agrícola. Os efeitos da depressão faziam-se sentir em vários domínios e eram necessárias respostas. O Relatório Sobre Nutrição teve um enorme impacto, tornando-se a publicação da SDN mais vendida, com várias traduções. Ao contrário do que sucedera no passado, foram tomadas medidas para amplificar os conteúdos do relatório na esfera pública internacional. Comités nacionais foram criados para pressionar em favor de reformas. Como em muitos outros casos, muitas das medidas advogadas não atingiram os seus objectivos, esbarrando em empecilhos burocráticos e diplomáticos e em incompatibilidades várias, reais e de conveniência. Nos contextos coloniais, a “descoberta” da malnutrição esteve, em parte, ligada a intenções de aumentar a produtividade laboral e, até, à imaginação das populações locais como futuros consumidores. Frequentemente, cálculos económicos e (geo)políticos sobrepuseram-se a motivações humanitárias. Mahatma Gandhi não foi o único a perceber, com razão, como preocupações “científicas” sobre as realidades coloniais da nutrição também serviram para renovar e justificar ideologias de “missão civilizadora”. Do mandato dual de Frederick Lugard (1922) e do African Survey (1938) de Lorde Hailey até ao argumentário desenvolvimentista dos anos 40 em diante, abraçado que foi por todos os Estados-império, foram vários os exemplos de interrogações cientificamente alimentadas que foram usadas com propósitos políticos óbvios. Mas também é verdade que o relatório de 1937 insistia no facto de as maiores necessidades se localizarem na Ásia e em África, associando-o, entre outros aspectos, às condições de trabalho coloniais. Quando a guerra começou, existiam planos para intensificar a recolha de informação nesses territórios e para aí realizar conferências. Tal só sucedeu na América Latina. Os parâmetros dietários foram usados, mas principalmente pelos beligerantes, com a Alemanha à cabeça. Estas conclusões e orientações dos anos 30 constituíram uma referência para programas de ajuda alimentar, para regimes salariais ou para dietas escolares. Directrizes reformistas semelhantes foram assumidas em áreas como a habitação ou o planeamento urbano. Essas propostas reformistas foram rapidamente apropriadas e positivamente instrumentalizadas pelo mundo filantrópico e pelo activismo internacional e transnacional. Foram-no também por todos aqueles que visavam a reforma colonial ou ainda pelos que, como Gandhi, visavam a emancipação, denunciando a tibieza da assistência social das administrações coloniais, associadas por certo a dinâmicas várias de extracção. Mais, governaram muito da arquitectura institucional e os princípios de actuação das Nações Unidas. O seu Conselho Económico e Social foi decalcado, com pequenas mudanças, do Relatório Bruce. Como sucedeu com muitas outras iniciativas promovidas durante a Sociedade das Nações, tiveram um impacto positivo, que não pode ser ignorado por supostos “realismos”, mais ou menos científicos, que obliteram partes menos ajustáveis da história. Parte significativa desse esforço foi empreendida por homens como Bruce, visando a reforma da organização internacional no final dos anos 30, numa tentativa da aumentar a autonomia das agências sociais e económicas da SDN. Apesar da notória incapacidade política, a caminho da paralisia da organização, alguns sectores, nomeadamente os centrados em questões económicas, sociais e humanitárias, não deixavam de tentar prolongar a sua acção. É que, com dificuldades e obstáculos constantes, a organização deixara algumas impressões positivas nas últimas duas décadas. E a aparente despolitização da sua actividade podia ser benéfica politicamente. Os anos entre 1935 e 1939 revelaram uma “renascença” das agências respectivas, como um analista escreveu poucos anos depois. O supramencionado Relatório Bruce mostrava como mais de metade do orçamento da SDN tinha sido entregue a projectos humanitários e sócio-económicos. A ideia de desenvolvimento já circulava, sendo pensada já como “uma estratégia de intervenção sócio-económica de larga escala”, na qual “conhecimento especializado, assistência técnica e prestação de ajuda” desempenhavam um papel crucial. Tão importante, o relatório revelava as insuficiências dos Estados “soberanos” em lidar com questões vitais de natureza sanitária, social, económica e, por certo, moral. Notava ainda sua incapacidade em responder ao “crescimento contínuo das exigências materiais e intelectuais” da humanidade. A imaginação moral, política, social e económica do desenvolvimento da SDN marcou de modo indelével as décadas posteriores à sua liquidação. Estes factos contrariam, de modo evidente, os que, incapazes de pensar de um outro modo, a pensam numa narrativa de falhanço, sempre a partir de uma perspectiva no essencial profundamente a-histórica. O caso do Relatório Bruce é um excelente exemplo do modo como é imperioso repensar a história das organizações internacionais, corrigindo inúmeras apreciações superficiais e uma visão pobre da história, assente sobretudo na determinação de sucessos e insucessos. A história mais banalizada sobre o período posterior a 1945 tende a focar-se desproporcionadamente nas dinâmicas referentes à competição bipolar que sucedeu à II Guerra Mundial. No mesmo período, seguindo a toada, o direito de autodeterminação nacional estendeu-se a todo o globo, deixando de ser um privilégio ocidental e de alguns casos excepcionais. Todavia, há outras histórias a contar. Se muito do que sucedeu após a derrota nazi encontra precedentes no período entre guerras, a expansão de internacionalismos, a vários níveis, é uma parte deste passado que merece ser relembrada. Apesar de se poder argumentar que este novo ímpeto internacionalista se deveu, ou foi profundamente modulado, pelo contexto da Guerra Fria, ele claramente obriga a reponderar o seu lugar histórico. Não se tratou apenas da refundação de arquitectura de segurança global, corporizada na Organização das Nações Unidas, em 1945. A nova ordem eliminou barreiras “raciais” ou “civilizacionais” ao direito de se organizarem autonomamente comunidades políticas específicas e consagrou a extensão de um regime de direitos universais. Criou novas estruturas económicas multilaterais, ainda antes do fim da guerra, em Bretton Woods, em 1944. Era o resultado, consagrado na Carta das Nações Unidas, da compreensão de que as questões sociais, económicas e culturais constituíam não só um direito de toda a humanidade como representavam um pilar fundamental da paz e segurança internacionais. Boas intenções seguramente condicionadas por objectivos de natureza geopolítica, na sua acepção mais ampla, mas que não deixaram de produzir os seus efeitos. Como anunciava o candidato presidencial republicano Wendell Wilkie, no seu best-seller, One World (1940), a consciência de que existiam problemas com que se deparava toda a humanidade, e que exigiam soluções globais, não esmoreceu com a maior mortandade que aquela tinha engendrado. O reconhecimento destes processos não acarreta uma posição celebratória ou apologética. Muitos dos novos esforços de promover a cooperação técnica deram-se em domínios pouco atreitos a isso, como no caso da criação da Organização Internacional da Aviação Civil (1944), ou da Organização Meteorológica Mundial (1947). Mas tratava-se de um processo que era causa e consequência de uma crescente interdependência global, que se traduziu em mais do que uma duplicação de organizações internacionais entre 1940 e 1950. Nem estas histórias estiveram isentas de percalços, disputas ou instintos menos altruístas. O caso da nutrição e alimentação, já referido, constitui um bom observatório. Ainda durante a guerra, o presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt percebeu que esta seria uma questão crucial nos futuros planos do pós-guerra. A Food and Agriculture Organization (FAO) seria criada em 1945. Mas as diferenças entre os participantes, e em relação aos anos entre guerras, desde cedo se fizeram sentir. Por exemplo, os governos da América Latina queriam uma organização com reais poderes de regulação dos mercados internacionais; os EUA e o império britânico, uma mais dedicada à consultoria técnica, compilação de estatísticas e com menos poderes decisórios. Seria esta última visão que acabaria por prevalecer, levando a que John Boyd Orr, que viria a ser o primeiro director da organização, declarasse, irritado, que as pessoas esfaimadas “queriam pão, mas eram-lhe dadas estatísticas”. A resistência a que a organização pudesse ter poderes vinculativos em matérias como o comércio internacional de matérias-primas manteve-se, mesmo depois de a criação de uma Organização Internacional do Comércio ter fracassado. Mas, face às dificuldades, os funcionários da própria organização tiveram de a reinventar. Já com um novo director, o indiano Binay Sen, a FAO viria a criar uma das primeiras campanhas a nível global, a Freedom from Hunger Campaign, na década de 50. Envolvendo a sociedade civil, de indústrias de fertilizantes a grupos religiosos, a campanha visava alertar a opinião pública para o problema da fome no mundo. Patrocinada pelos EUA, que viam nela uma forma de granjear simpatias pelo mundo e, ao mesmo tempo, resolver o problema dos seus excedentes agrícolas, a campanha ajuda a justificar o aumento do orçamento da FAO de 7 para 83 milhões de dólares entre 1958 e 1967. A FAO é apenas um exemplo entre muitos da transformação operada no mundo das organizações internacionais nesta época. Sem ignorar os contributos pretéritos, a capacidade de intervenção destas organizações expandiu-se, aliando aos estudos, recomendações técnicas e sistema de aferição e cumprimento de normas internacionais, um número cada vez maior de intervenções no terreno. Uma expansão que era também geográfica à medida que o Sul global, especialmente após os anos da reconstrução europeia e, depois, com o acelerar da descolonização, se tornou o seu principal palco de intervenção. A Organização Mundial da Saúde (1948), além de criar normas de vacinação uniformes internacionais, compilação de estatísticas e sinalizar focos de epidemias a uma escala global, promoveu campanhas globais como a da erradicação da malária ou da varíola, mais tarde. Também aqui a história não é simples. O balanço final da campanha de erradicação global da malária foi francamente negativo, devido a factores ligados à própria metodologia da campanha, mas também a outros como as características da doença e as realidades sanitárias locais. A da varíola, pelo contrário, seria considerada um sucesso, em muito contribuindo para a erradicação global da doença. A acção destas organizações internacionais não se esgotava nas grandes campanhas internacionais. A troca cada vez mais regular de informações, a circulação de normas e modelos no seu seio promoviam diálogos menos visíveis. Logo após a sua fundação, e sustentando-se nos trabalhos de antropólogos e actores estatais durante o período entre guerras, a UNESCO olhou com particular interesse para programas na África do Sul, no Brasil e no México que visavam ultrapassar as desigualdades e discriminação raciais. No caso da África do Sul, o entusiasmo esmoreceria com a afirmação do apartheid no final da década de 40. O modelo da “democracia racial” brasileira acabaria por também sofrer com a constatação das suas insuficiências no terreno e com a instrumentalização do seu principal ideólogo — o para nós conhecido Gilberto Freyre — pelo Estado Novo português. O México acabaria por se assumir como um modelo de referência. Para isso contribuiu o trabalho de muitos dos seus académicos que procuravam responder à questão “indígena” nos anos 30, entre eles Jaime Torres Bodet, que lideraria a organização entre 1948 e 1952. Contribuía também uma prática política e social que pretendia substituir a “incorporação” pela “integração”, isto é, assumia que a integração plena das populações indígenas no espaço social “nacional” deveria ser feita com respeito por aspectos particulares da sua condição social, histórica e cultural. A afirmação do “modelo mexicano” seria, mais tarde, aproveitada por um sem-número de administradores e académicos franceses. Ao contrário de outras organizações internacionais, de quem o Governo francês desconfiava profundamente, a UNESCO, instalada em Paris, revelou-se instrumental na modelação de políticas coloniais francesas. Especialmente após o início da guerra na Argélia (1954), François Mitterrand, ministro do Interior, proclamou a nova doutrina de “integração”. Para isso, nomeou Jacques Soustelle, antropólogo que fizera trabalho etnográfico no México, para governador-geral na Argélia. Soustelle pôs então em marcha um plano inspirado no modelo mexicano dos anos 30: criando programas especiais para “cidadãos franceses muçulmanos da Argélia” no domínio da educação, reconhecendo a desvantagem fundamental criada pelo racismo que governara o império em matérias sociais e económicas e que não era resolvido pela simples igualdade jurídica. A França imperial iria tão longe quanto instituir quotas para argelinos muçulmanos nas estruturas administrativas, em 1958. O mesmo modelo enformaria os tropos anti-racistas que visavam justificar a presença francesa nos três departamentos. É importante sublinhar, novamente, que não se trata de celebrar o internacionalismo. Antes de sinalizar que ele constituiu uma realidade incontornável do século XX. Dois aspectos turvam esse olhar. Por um lado, a importância das organizações internacionais decaiu substancialmente à medida que o século se aproximou do fim. Se uma reunião técnica de qualquer organismo internacional, nos anos 50, se encontra profusamente espalhada pelo arquivo, hoje, a realidade, por exemplo, nos jornais diários é substancialmente diferente. Por outro, e à medida que a descolonização avançava, os projectos de remodelação integral de sociedades através de um meio que se queria “técnico” e “científico” começou a merecer cada vez maior desconfiança por parte das opiniões públicas ocidentais. O distanciamento do objectivo de criar um mundo mais igual em direcção a outros que davam prioridade à atenuação da pobreza, ligados a transformações da ordem económica internacional, e a burocratização dos técnicos e dirigentes das organizações internacionais para isso contribuíram. Seria, todavia, importante, assinalar que esta transformação abriu portas até então cerradas. Como afirmava o primeiro director da OMS, Brock Chisholm, os “povos do mundo” estavam a tentar “fazer coisas que nunca pensaram tentar na história da raça humana”. Não seria expectável que os “seus esforços relativamente primitivos tivessem sucesso à primeira ou que prosseguissem sem dificuldades”. Mesmo se nos fixarmos na história da Guerra Fria, aquilo que se passava para além das relações entre Estados e dentro destes forma uma história que deve ser recuperada no seu pleno direito. A ideia de Wilkie de One World acabaria por ser premonitória. E reforçada, à medida que o potencial destrutivo das armas nucleares passou a ser conhecido. Foi em torno desta questão que um dos mais importantes movimentos transnacionais da época se desenvolveu. O sentimento de vulnerabilidade suscitado pela possibilidade de aniquilação total, numa guerra fratricida, agitou os espíritos. Ao One World responderam Oppenheimer, Bohr e Einstein e outros cientistas com One World or None. O alerta para o perigo à espreita suscitava pulsões internacionalistas. Como Oppenheimer afirmava “os poderes amplamente aumentados de destruição que as armas atómicas nos deram trouxeram consigo uma profunda mudança no equilíbrio entre interesses nacionais e internacionais. O interesse comum de todos na prevenção da guerra atómica é tão grande que eclipsa qualquer interesse puramente nacional, seja de bem-estar ou segurança”. Consequentemente, a Federation of Atomic Scientists empenhou-se na batalha do desarmamento e da utilização da energia nuclear exclusivamente para fins civis. Não seriam os únicos. Na sequência de um teste de uma bomba de hidrogénio perto do atol de Bikini, em 1954, pelos EUA, um navio pesqueiro japonês que não fora alertado aproximou-se da zona, expondo a tripulação aos efeitos da radiação. Um poderoso movimento de base, não comunista, estendeu-se por todo o Japão, o primeiro após a guerra, pedindo o repúdio de todas as armas nucleares. Em Agosto de 1955, simbolicamente em Hiroxima, realizariam uma conferência mundial contra as bombas atómica e de hidrogénio, contando com a solidariedade, através de uma declaração, de Albert Einstein, Bertrand Russel e do físico nuclear e primeiro laureado nobel japonês, Yukawa Hideki. Não seria este o único eixo em torno do qual movimentos transnacionais se mobilizariam no contexto da Guerra Fria. A ideia de contrariar o movimento comunista internacional com um movimento de sentido contrário, mas também multinacional, datava já de finais do século XIX e adensara-se após a revolução russa de 1917. Com o início do conflito bipolar, projectos deste género multiplicaram-se. Um deles foi o Comité Europeu para a Paz e Liberdade, com filiais em França, na Alemanha, em Itália ou na Turquia. Investidos em criar uma “NATO espiritual”, os diversos grupos locais coordenaram acções conjuntas na batalha política e ideológica global. Tinham, seguramente, origens diversas. Enquanto o Paix et Liberté francês fora patrocinado pelo afamado René Pleven e contava com antigos membros da resistência e colaboradores do círculo do ex-comunista, então anticomunista, Boris Souvarine, o seu congénere alemão tinha na sua liderança o ex-braço direito de Joseph Goebbels e nas suas fileiras vários antigos nazis. Envolveram-se em acções concertadas que visavam desacreditar o comunismo internacional. Publicaram cartazes icónicos como o da “Pomba que faz boom”, atacando os movimentos pela paz mais ou menos ligados à União Soviética. Mas as diferenças faziam-se sentir. Num cartaz francês em que se convidava os observadores a visitar a União Soviética, “país da liberdade”, sugeria-se que aproveitassem os “campos de férias. . . soviéticos”. A ideia foi repetida na Alemanha, mas sem a imagética mais explícita francesa, que remetia para os campos de concentração nazi. Na Ásia, face à vitória da revolução chinesa, aos conflitos na Coreia e Indochina, à “insurgência” na Malásia, foi criada a Liga Anticomunista dos Povos da Ásia (1955), patrocinada por Chiang Kai-Shek e Sygman Ree. Seria esta a principal impulsionadora da criação da Liga Anticomunista Mundial (1966). Mais conhecida seria a Confederación Anticomunista Latinoamericana (1972). Ligada aos esquadrões da morte que começavam então a ganhar destaque no continente e a vários serviços militares e de intelligence, a confederação acabaria por se envolver em várias acções bem mais enérgicas. A operação levada a cabo por agentes da missão Condor que levaria ao assassinato de Orlando Letelier, antigo ministro de Salvador Allende, em 1976, nos EUA, contou com o esforço intermediário da confederação. Investida em derrotar os movimentos da Teologia da Libertação e inclusive o Concílio Vaticano II, e o Papa Paulo VI, por transigir com forças heréticas, a confederação, pelo menos através da sua delegação na Bolívia, deu instruções para colaborar com as instituições militares na denúncia de actividades suspeitas, especialmente de padres estrangeiros, num contexto marcado por vários homicídios desta natureza na América Latina e Central. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Servem estes exemplos para sublinhar um aspecto que continua a ser desvalorizado nas narrativas histórica sobre o século XX: se este é o século da afirmação do Estado-nação enquanto instância modelar de organização sócio-política, corresponde também à afirmação de múltiplas modalidades de internacionalismo. São as ideologias gémeas do século, e especialmente do liberalismo, como afirma Glenda Sluga em Internationalism in the Age of Nationalism. A história da coexistência, e por vezes competição, entre as duas mundivisões não é excludente, muito menos simples. Como procuramos mostrar neste texto, o internacionalismo assumiu múltiplas faces, nem sempre quis questionar o primado do Estado-nação e não poucas vezes representou a forma mais palatável de promover interesses egoístas. Também foi uma causa pela qual muitos dedicaram o melhor dos seus esforços, pela qual muitos sonharam para lá dos limites do imaginável. Como historiadores, a nossa função é não a ignorar. A sociedade em geral melhor faz se não se deixar aprisionar em antigos tropos sobre perversas e gigantescas conspirações que se traduzem, no quotidiano, num expediente para o destrato de cidadãos diferentes, frequentemente os mais frágeis e desprotegidos.
REFERÊNCIAS:
Quando o mundo veio a Portugal ver como se faz uma revolução
40 anos depois do 25 de Abril de 74, a revolução portuguesa tem o seu comeback. Livros, filmes, conferências. . . mas este regresso parece ter menos a ver com os rituais de uma efeméride do que sinalizar uma crise de identidade. Como se voltássemos a olhar para ela com a intensidade de uma primeira vez. Não foi preciso ter estado lá. Em Abril de 1974, dois jornalistas da rádio suíça francesa são enviados a Portugal para fazer uma reportagem “positiva” sobre a ajuda helvética a um país “subdesenvolvido, mas simpático”. Os jornalistas entediam-se na província portuguesa quando, subitamente, a revolução dos cravos f... (etc.)

Quando o mundo veio a Portugal ver como se faz uma revolução
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-02-06 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20160206113854/http://ipsilon.publico.pt/cinema/texto.aspx?id=333490
TEXTO: 40 anos depois do 25 de Abril de 74, a revolução portuguesa tem o seu comeback. Livros, filmes, conferências. . . mas este regresso parece ter menos a ver com os rituais de uma efeméride do que sinalizar uma crise de identidade. Como se voltássemos a olhar para ela com a intensidade de uma primeira vez. Não foi preciso ter estado lá. Em Abril de 1974, dois jornalistas da rádio suíça francesa são enviados a Portugal para fazer uma reportagem “positiva” sobre a ajuda helvética a um país “subdesenvolvido, mas simpático”. Os jornalistas entediam-se na província portuguesa quando, subitamente, a revolução dos cravos faz acelerar a sua carrinha Volkswagen em direcção a Lisboa. E, numa noite, produzem a reportagem das suas vidas. Um filme conta como foi, com todos os adereços de época, de calças à boca de sino para cima: As Ondas de Abril, do suíço Lionel Baier, é exibido esta sexta-feira às 19h no Festival IndieLisboa, e estreia em sala a 8 de Maio. É uma farsa – o realizador achou que ninguém levaria a mal se fizesse uma comédia sobre “uma revolução onde tudo correu bem” – mas só porque a história não é verdadeira, não quer dizer que não tenha acontecido. Numa cena, o repórter de guerra Joseph Cauvin é aclamado pelo povo enquanto discursa, apesar de ninguém entender o que diz. Esse momento, conta Lionel Baier ao Ípsilon, emocionou um português que, ao ver o filme na Suíça, se lembrou de ter tido uma experiência semelhante durante a revolução. “À época muitos sindicalistas de toda a Europa vieram a Portugal e ele lembrava-se de uma discussão uma noite num café de Lisboa onde um sindicalista tomou da palavra e falou em francês durante duas horas, sem que ninguém percebesse nada. Esse senhor disse-me: ‘Mas eu estava tão feliz com o direito de reunir e de falar livremente e, mais do que isso, com o facto de os franceses falarem de nós. Pela primeira vez em muito tempo, os franceses, os alemães, e outros falavam de nós. Tivemos a impressão de que nos estávamos a juntar ao resto do mundo, finalmente. ”Não houve, de facto, muitos momentos assim, em que o resto do mundo convergiu para Portugal. Literalmente: “De repente, toda a gente olhou para Portugal como se isto fosse uma coisa do outro mundo”, diz José Rebelo, que foi correspondente do Le Monde em Lisboa a partir de Janeiro de 1975. “Eu andei a passear por Lisboa com o Sartre e a Simone de Beauvoir. Vinha cá toda a gente. Parece que tudo quanto era importante se passava ali entre o Rossio e os Restauradores. ”Depois da revoluçãoAgora que se completam 40 anos sobre a revolução portuguesa, esse olhar exterior, estrangeiro, está de novo a ser evocado, o que parece ter menos a ver com os deveres de uma efeméride (afinal, este não é o primeiro aniversário redondo de Abril) do que sinalizar uma qualquer crise de identidade. Repórteres e enviados especiais que cobriram a revolução para a imprensa estrangeira foram convidados a participar de muitas das conferências e festividades que estão a ter lugar; um novo livro de Joaquim Vieira e Reto Monico, Nas Bocas do Mundo: O 25 de Abril e o PREC na Imprensa Internacional (ed. Tinta da China), reconstitui a forma como os jornais estrangeiros acompanharam o processo revolucionário português através dos seus textos de opinião e comentário; Lídia Jorge acaba de publicar um novo romance, Os Memoráveis, que tem no centro a realização de uma reportagem televisiva sobre a revolução portuguesa para a estação americana CBS (sobre essa questão de o olhar estrangeiro ser o catalisador deste regresso, a escritora explicou recentemente no Ípsilon que “no exterior avalia-se a revolução com mais frequência como uma coisa positiva”, seja porque os portugueses são “profundamente autopunitivos”, seja porque no exterior “talvez não se saiba do que veio a seguir”. )O que levou Lionel Baier, um suíço de 38 anos, a fazer um filme sobre a revolução portuguesa, quando a Suíça não viveu nenhuma guerra nem grande crise no século XX?“Quando era pequeno e ia à escola, no início dos anos 80, havia muitas crianças que eram filhas de imigrantes portugueses, eram quase 30% da minha turma. Quando havia festas de aniversário eu ia a casa delas e lembro-me de ver fotografias e de ouvir falar da revolução dos cravos. Quando somos pequenos e suíços temos a impressão que a democracia é uma coisa normal. As primeiras pessoas que me fizeram ter consciência do preço da democracia foram os portugueses. Dei-me conta de que tinham sido privados dela durante muito tempo e que a democracia era qualquer coisa frágil, que se podia perder”, explica. “Os portugueses têm qualquer coisa em comum com os suíços. São pessoas muito trabalhadoras, austeras, não muito alegres. Ao mesmo tempo, tiveram a força de fazer uma revolução, apesar de isso não fazer parte da sua natureza. Os franceses fazem revoluções o tempo todo, é uma coisa normal. Quando os portugueses se revoltam, é preciso um esforço suplementar. Creio que deram uma verdadeira lição de democracia aos suíços. Creio que é frequentemente o caso na Suíça: as vagas de imigrantes, quer sejam espanhóis, italianos ou portugueses, trazem com elas um certo peso do mundo que os suíços não conhecem. ”Existe nas personagens do filme uma certa condescendência em relação ao Portugal pré-revolucionário. Cauvin, o veterano, chega a relativizar uma ditadura patriarcal e arcaica, dizendo que as pessoas não parecem ter razões de queixa. Os jornalistas de As Ondas de Abril apercebem-se muito rapidamente de que a reportagem que lhes foi encomendada em Portugal não tem interesse, mas parecem demasiado ingénuos ou ter pouco brio profissional: apesar de se encontrarem numa das últimas ditaduras da Europa ocidental, nunca lhes ocorre fazer uma reportagem sobre isso. Ao mesmo tempo, há nesse retrato alguma verdade: de forma geral, a imprensa estrangeira ignorou Portugal durante a ditadura. O país não existia antes da revolução. “Tenho a impressão que os jornalistas estrangeiros não tinham consciência de que era uma ditadura tão esmagadora quanto era, na verdade”, sugere Lionel Baier. Werner Herzog, um jornalista suíço (nenhuma relação com o cineasta alemão homónimo) que cobriu a revolução para jornais suíços e alemães, admite: “Quase ninguém escrevia sobre Portugal. Tínhamos dado como perdida a possibilidade de alcançar a democracia em Portugal. Esperava-se mais de Espanha. Portugal foi uma surpresa. Parecia que eram umas ditaduras que duravam, duravam, duravam. Espanha e Portugal estavam atrás dos Pirenéus. Essas montanhas pareciam ter dez mil metros de altura porque aí começava outro mundo, que não tinha nada a ver com o resto da Europa ocidental. 25 de Abril foi o dia em que Portugal foi colocado no mapa da Europa. ” Falta dizer que tudo isto é dito originalmente em português – outro resultado, dizemos nós, do 25 de Abril. “Se não tivesse havido o 25 de Abril, eu não teria vindo a Portugal”, diz o catalão Ramón Font, 62 anos, que veio ver a revolução portuguesa quando no seu país a ditadura de Franco perdurava. “Na minha geração, quando se fala de Portugal, há sempre alguém que pergunta: ‘E tu, em que dia chegaste a Portugal?’ Há uma competição para ver quem chegou antes. Porque, mais tarde ou mais cedo, nos primeiros dois anos viemos todos. ”Para um imenso número de jornalistas internacionais, o testemunho e a cobertura da revolução portuguesa correspondeu a um trampolim profissional: uma escola de aprendizagem ou um prenúncio da carreira futura. Muitos deles prosseguiram o seu trabalho noutras zonas do globo, em particular África, ou perseguiram outras revoluções (no Irão, no mundo árabe). As suas biografias mencionam quase sempre a passagem pela revolução portuguesa, como um factor de orgulho. As suas histórias davam um filme. Há uma em particular que Dominique Pouchin, ex-repórter do Le Monde, contou vezes sem conta em cursos de jornalismo onde lhe pediam que partilhasse as suas experiências. Pouchin – que participa esta sexta-feira numa sessão no Museu do Oriente com Mário Soares e o ex-Presidente brasileiro Lula da Silva sobre “o 25 de Abril visto de fora” – costuma apresentá-la como “a história do scoop falhado”. Tinha terminado o seu estágio no Le Monde há pouco tempo quando, em Março de 1974, nas vésperas do levantamento militar falhado das Caldas da Rainha, o seu editor lhe perguntou se tinha medo de ir a Portugal. “Medo não, mas para fazer o quê?”, perguntou o jovem jornalista. A pasta sobre Portugal que existia nos arquivos do jornal era frugal. Havia sinais de descontentamento no interior do exército português – o alarme tinha soado duas ou três vezes em pouco tempo, explicaram-lhe. Não era forçoso que escrevesse alguma coisa, mas disseram-lhe para manter os olhos e os ouvidos abertos. Pouco depois, Pouchin deu consigo na parte de trás de uma mota, às voltas por Lisboa, sem saber onde estava. Tinha pedido ajuda a colegas portugueses, do jornal de oposição República. “Eu gostava de escrever sobre isto, mas se existe realmente um movimento de capitães preciso de falar com um deles. ” O encontro produziu-se na sala mais recôndita de um restaurante do Bairro Alto – que, afinal, não ficava longe da sede do República, a mota limitara-se a andar às voltas para despistar suspeitas –, onde Pouchin se viu sentado diante de um militar de óculos escuros que lhe falou durante mais de duas horas. “Esse senhor fala-me da sua admiração por Amílcar Cabral, da longa marcha chinesa. . . Fico completamente aturdido. ” O militar não correspondia às expectativas. “Tenho a impressão de estar perante um perito em acções militares, mas esquerdista”, ri-se hoje Dominique Pouchin, ao contar o episódio. O jornalista escreve um artigo curto, no qual cita vagamente o militar em questão, identificado como “Comandante R”. Após o golpe das Caldas de 16 de Março, tido como um ensaio para o 25 de Abril, regressa a Paris. Mas a revolução chama-o, pouco depois, de volta a Lisboa. Em de Julho de 1974, está no seu quarto no Hotel Mundial a folhear os jornais da manhã quando repara na fotografia de primeira página do Diário de Notícias. Era um retrato do militar que tinha encontrado em Março e que, percebia agora, veio a ter um papel crucial no movimento das forças armadas. “Dou-me conta de que o homem com tinha falado em Março, era o Major Melo Antunes. Ou seja, tinha encontrado Melo Antunes e não fiz nada, ou quase nada. ”Entre Março de 1974 e Janeiro de 1976, Pouchin passou mais tempo em Lisboa do que em Paris. “Eu ia e vinha, dependendo da evolução dos acontecimentos durante o PREC – a palavra mais horrível que já ouvi. Como se pode baptizar uma revolução com um nome tão horrível? Sempre que havia um sobressalto, eu vinha. ” Ao todo, foram 17 viagens a Lisboa, 40 blocos de notas. José Rebelo, que hoje é investigador e professor na área de sociologia da comunicação no ISCTE, nota que os jornalistas estrangeiros estavam distribuídos pelos hotéis de Lisboa de acordo com a nacionalidade. “Os americanos estavam quase todos no Sheraton. Os ingleses no Ritz. ” Os franceses ocupavam o último andar do Hotel Mundial. Jornalistas de diferentes jornais, da esquerda e da direita. “Constituíamos uma verdadeira redacção. Jantávamos sempre juntos no restaurante panorâmico do hotel. Não havia concorrência. Havia tanta coisa que se passava todos os dias que cada um de nós era incapaz de cobrir tudo. ”Um laboratório políticoO jornalista americano Steve Broening, então correspondente da Associated Press em Lisboa, é citado no livro de Joaquim Vieira e Reto Monico, dizendo que à excepção do Vietname, “nenhum outro acontecimento estrangeiro motivara tanta e tão longa atenção” por parte da agência quanto a revolução portuguesa. O que é que atrai tanto a atenção da imprensa internacional?“Estamos a falar de um período em que o cenário de guerra fria ainda existia, e os golpes de estado na altura eram de direita ou de extrema-direita, e eram feitos por generais e coronéis, sempre com tendências autoritárias e totalitárias, para endireitar um regime que eles achavam que estava a ser desviado por defeito dos políticos que estavam à frente dele. E este é o contrário”, contextualiza Joaquim Vieira. “Ainda para mais ocorrendo na Europa. Se fosse num país do Terceiro Mundo se calhar era diferente. Mas na Europa o que estava a acontecer era inédito desse ponto de vista. Tinha havido um golpe de estado na Grécia mas tinha sido feito por coronéis. ”Além disso, a mudança de regime não se produziu apenas em Portugal, mas em todas as extensões territoriais no ultramar. O que se estava a passar era maior do que um rectângulo no extremo ocidental da Europa. “O fim da guerra colonial e as independências africanas iam causar uma alteração profunda do ponto de vista geoestratégico. Muita gente começou a ver, a prazo, que a União Soviética podia ter influência nesse processo”, diz Joaquim Vieira. Que continua: “Depois do Maio de 68 em França, que durou só algumas semanas e não teve um grande resultado político, havia um processo revolucionário em Portugal que se prolongava com coisas concretas: ocupações de fábricas, de terras e tudo isso. A opinião pública estrangeira começou a estar muito atenta à evolução dos acontecimentos em Portugal, para ver o que é que isto ia dar. Muitos estrangeiros, herdeiros do Maio de 68 e outros, vinham aqui para Portugal. Havia uma ligação muito directa entre Portugal e as correntes estrangeiras mais de esquerda e extrema-esquerda. ”Inicialmente, pelo menos, a revolução é vista com simpatia pela imprensa internacional e saudada como positiva. “O que impressionou muito naquela fase foi que não houvesse violência”, diz Ramon Font, que se fixou como correspondente em Lisboa a partir de 1976, logo a seguir à aprovação da Constituição. “Não foi partido vidro nenhum. Há uma fotografia extraordinária que está no átrio da Universidade de Lisboa, onde se vê uma chaimite, dessas que estavam no Chiado, cheia de povo, sobrelotada, e, do lado direito, um senhor que devia ser funcionário de alguma repartição pública, vestido de fato e gravata, agarrando a chaimite como se fosse o seu guia. Como se dissesse: ‘Siga-me, siga-me que vou indicar-lhe o sítio. ’ Tudo isso configurava um universo assombroso para quem, como nós, vinha de fora. E estávamos fascinados com os militares, que eram a antítese dos nossos militares [espanhóis]. De repente, aparecem à nossa frente tipos com os quais se podia tomar um copo num bar de Lisboa. ”Numa visita a de Caxias, em Julho de 1974, Ramon Font fica impressionado com a forma como os novos prisioneiros – ex-agentes da polícia política do Estado Novo – são tratados. “Almoçámos no refeitório da prisão e nas mesas ao lado das nossas estavam os pides. Que nos diziam: ‘Estamos aqui como passarinhos, mas não vamos estar aqui muito tempo. ’ Efectivamente, saíram pouco tempo depois. Isso causou-me um impacto brutal de uma sociedade diferente. Se os vencedores são capazes de tratar os vencidos com esta generosidade. . . Essa foi a imagem mais forte que levei de Lisboa. Lembro-me que no regresso a Espanha passamos pela Andaluzia e fomos ter com uns militares espanhóis, nossos conhecidos, a quem contámos esse episódio e eles não nos deram crédito. Pensavam que, à hora a que contávamos isto, depois do jantar, era consequência do que tínhamos bebido. Não era possível. ”Os estrangeiros não tinham necessariamente uma visão “turística” da revolução portuguesa. Portugal parecia-lhes menos um caso de exotismo do que um laboratório político que podia trazer respostas às questões que os inquietavam. Ser o imenso PortugalZuenir Ventura, que veio cobrir a revolução para a revista brasileira Visão, chegou a Lisboa logo no dia 26 de Abril de 1974. “Fui o primeiro enviado especial do Brasil a chegar. Encontrei a cidade numa saudável confusão que me lembrou Carnaval, celebração desportiva e comício político. As pessoas, sem qualquer objectivo definido, pulavam, cantavam – e, sobretudo, falavam. Era quase como se tivessem descoberto a própria voz. Fiquei contagiado pela euforia do povo, uma espécie de embriaguez de liberdade. Como se fosse um prenúncio da nossa. ” O Brasil vivia então sob uma ditadura militar, que acabara de completar uma década, em vésperas da revolução portuguesa. “Foi a cobertura mais alegre e surpreendente da minha vida. Porque eu olhava para aquilo pensando no Brasil. Menos em Portugal e mais no Brasil. ” Até então, Portugal tinha sido uma referência no Brasil, mas irónica. “De repente, você queria ‘ser o imenso Portugal’, como na canção Fado tropical, de Chico Buarque. ”Outro brasileiro que veio para Lisboa nesse período, foi o realizador Glauber Rocha. “Ele conseguiu uma câmara emprestada e filmou o 1º de Maio. Filmou como se quisesse se preparar para fazer o mesmo no Brasil. ”A neutralidade não era possível. “Há idades em que é muito difícil resistir a certos cantos de sereia”, diz Ramon Font. “Com 22 anos, era difícil não me deixar arrastar [pela revolução]. Ninguém me pedia neutralidade. E se alguém tivesse pedido, eu teria dito: ‘Desculpe, não consigo. ’ Ainda por cima, o país estava todo à esquerda. [Os de direita] Ou tinham fugido ou todos disfarçavam. ”Talvez espante ouvir dizer que a revolução, aqui, foi “exemplar” (a expressão é de Lionel Baier) quando 1975 em particular representa um período traumático para alguns sectores da sociedade portuguesa (as nacionalizações, as expropriações, a vaga de “retornados” das ex-colónias) e abriu dissidências político-partidárias que perduram até hoje que fazem com que a nossa forma de comemorar o 25 de Abril ainda não esteja normalizada (prova disso é a recente polémica sobre se os capitães de Abril deveriam ou não ter direito a discursar no Parlamento, nota Ramon Font). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando para boa parte da esquerda, ela representou o fim das ilusões revolucionárias dos soixante-huitards (“Usando linguagem teatral: o pano cai em 1975”, diz Dominique Pouchin, ex-trotskista cicatrizado). Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando o modelo hoje seguido na Tunísia, um exemplo feliz da Primavera árabe, é a transição espanhola, onde não houve revolução e a mudança de regime foi um pacto negociado por mútuo acordo entre ex-franquistas e a esquerda (“A minha suspeita é que os tunisinos sabem muito mais sobre a transição espanhola e estão, de certa forma, a tentar seguir-lhe o exemplo. E não fazem ideia do que foi o processo português”, disse ao Ípsilon Philippe Schmitter, analista americano que presenciou a revolução portuguesa e escreveu sobre ela, na véspera de partir para a Tunísia. “Amanhã tiro as teimas!”)Talvez espante ouvir dizer que a revolução foi exemplar quando a crise parece confrontar-nos com as escolhas que foram feitas nesse período e com esse legado. Para as gerações que nasceram depois de 1974, talvez este seja o primeiro aniversário em que a revolução é mais do que uma efeméride. “Há uns anos tive a impressão que muitas pessoas nas novas gerações se tinham esquecido do que se passara. Isso surpreendeu-me. Os jovens não sabiam grande coisa porque para eles era algo que pertencia à história”, diz Lionel Baier. Mas em 2012, quando filmou As Ondas de Abril em Portugal, o realizador teve a sensação de que as pessoas começavam a ganhar uma nova consciência. “Grande parte da equipa do filme era portuguesa e eu fazia imensas perguntas. E pareceu-me que era como se falassem pela primeira vez em muito tempo da revolução. As pessoas parecem ter vontade de se lembrar desse espírito. ” Por causa da crise? “Por causa da crise, sim. ”Não por acaso, o filme de Baier termina com imagens actuais, dos graffiti anti-austeridade e anti-troika. “Parecia-me impossível fazer um filme com um tom meramente histórico. Todos os dias havia manifestações na rua, havia dias em que interrompíamos as filmagens para que os técnicos ou os figurantes pudessem ir manifestar-se. O filme devia dizer qualquer coisa sobre o presente. ”
REFERÊNCIAS:
Fausto, ou a velha cultura europeia no Leão de Ouro
Um palmarés intermitentemente vaiado pela imprensa, aplausos ao máximo ("Michael, Michael, Michael") para o melhor actor, Michael Fassbender, por Shame, de Steve McQueen, reverência para o Leão de Ouro, Fausto, do russo Alexandr Sokurov. (...)

Fausto, ou a velha cultura europeia no Leão de Ouro
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.133
DATA: 2011-09-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um palmarés intermitentemente vaiado pela imprensa, aplausos ao máximo ("Michael, Michael, Michael") para o melhor actor, Michael Fassbender, por Shame, de Steve McQueen, reverência para o Leão de Ouro, Fausto, do russo Alexandr Sokurov.
TEXTO: Como previramos, Sokurov, com a sua (re)visão de Goethe, meteu-se entre a história de um sex addict nova-iorquino, o filme de McQueen, com favoritismo desde o dia em que passou, e a história de uma diabólica família texana, Killer Joe, de William Friedkin, que desde a sua exibição ficou claro que era pouco solene para a ocasião, apesar do ambiente electrizante com que foi recebido pela imprensa. E o que se pode dizer do Palmarés entregue ontem em Veneza pelo júri presidido por Darren Aronofsky, e que incluía ainda a "artista visual" finlandesa Eija-Liisa Ahtila, o músico David Byrne, os cineastas Todd Haynes, Mario Martone, André Téchiné, e a actriz Alba Rohrwacher, é que jogou pelo seguro. E entregou-nos uma espécie de "chic cultural", a sua visão de Arte e Consciência Social. Não está mal, mas houve filmes que mereciam que se tivesse excedido. O prémio à interpretação sem medos de Fassbender, impedindo Shame, segundo os regulamentos, de receber outro dos galardões principais, resolveu o embaraço de colocar no trono um filme desconfortável e sexualmente explícito. Fassbender, referindo-se a esta nova colaboração com o realizador que em 2007 lhe "mudou a vida" ao convidá-lo para Fome, pôs as coisas assim: "Steven gosta de falar naquilo que não gostamos de falar, é a história do elefante numa sala. "Realizado por um artista plástico chegado ao cinema (é a segunda longa-metragem), Shame correria o risco de fazer a figura do pretendente a um trono que estará sempre disponível quando existe um Sokurov. E este até fecha uma tetralogia sobre o poder, depois de Moloch (Hitler), Taurus (Lenine) e The Sun (o Imperador Hirohito). Sokurov agradeceu o seu filme ter sido "compreendido", algo que "não acontece muito", defendeu festivais em que a arte se imponha à "feira das vaidades" e fez-se representante de "uma cultura europeia" que os Estados, as televisões, se estão a demitir de apoiar. O Leão de Ouro enche-se de ecos, vê potenciado o seu valor simbólico. O Prémio Especial do Júri - declaração de afecto dos jurados. . . - foi para Terraferma, de Emmanuele Crialese, cartinha delicodoce sobre a necessidade de as "ilhas" aprenderem a olhar o "outro" - no caso, a imigração ilegal africana. É verdade que o tema dos imigrantes ilegais (novo "Holocausto", segundo Crialese) esteve em várias secções. Ficou assim representado no Palmarés. Mas nem o sempre explícito patriotismo dos jornalistas italianos impediu os apupos na sala de imprensa quando Crialese foi anunciado. É bom saber, porém, que o júri reservou espaço (melhor realização) para um dos grandes filmes desta edição, People Mountain, People Sea, do chinês Shangjun Cai, história de uma vingança que não pára enquanto não se cumpre. Shangjun Cai, chegado a Veneza sem autorização dos censores chineses, vai até às últimas consequências com a personagem de um vingador nesta espécie de western chinês. E que se comoveu premiando Deanie Yi, a intérprete de um pequeno filme, A Simple Life, que sendo "pequeno", é a prova de uma grande generosidade de um olhar, o da cineasta Ann Hui. PalmarésLeão de Ouro: Fausto, de Alexandr SokurovLeão de Prata, para a melhor realizaçao: Shangjun Cai, por People Mountain, People SeaPrémio Especial do Júri: Terraferma, de Emmanuele CrialeseTaça Volpi para o melhor actor: Michael Fassbender, por Shame, de Steve McQueenTaça Volpi para a melhor actriz: Deanie Yi, por A Simple Life, de Ann HuiPrémio Marcello Mastroianni para um jovem actor ou actriz emergentes: Shota Sometani e Fumi Nikaido, por Himizu, de Sion SonoOsella para a melhor fotografia: Robbie Ryan, por Wuthering Heights, de Andrea ArnoldOsella para o melhor argumento: Yorgos Lanthimos e Efthimis Filippou, por Alps, de Yorgos Lanthimos
REFERÊNCIAS:
Marceline Loridan-Ivens (1928-2018): a cineasta que escreveu sobre o que é amar e desejar depois de sobreviver a Auschwitz
Uma mulher de uma força extraordinária, uma cineasta atenta, uma escritora de uma intensidade rara: os elogios sucedem-se nos obituários e testemunhos da imprensa francesa. Marceline Loridan, que enfrentou os horrores dos campos de concentração nazis, começou por se culpar por ter sobrevivido e, depois, viveu para testemunhar. (...)

Marceline Loridan-Ivens (1928-2018): a cineasta que escreveu sobre o que é amar e desejar depois de sobreviver a Auschwitz
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-12-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma mulher de uma força extraordinária, uma cineasta atenta, uma escritora de uma intensidade rara: os elogios sucedem-se nos obituários e testemunhos da imprensa francesa. Marceline Loridan, que enfrentou os horrores dos campos de concentração nazis, começou por se culpar por ter sobrevivido e, depois, viveu para testemunhar.
TEXTO: Chegou a Auschwitz em 1944 e tatuaram-lhe no braço o número 78750. Foi lá que “viu tudo da morte sem nada conhecer do amor”, escreveria mais tarde. E foi essa experiência de sobrevivência nos campos de concentração nazis que marcou todo o seu percurso de 1945 em diante. Um vida de resistência, de denúncia permanente dos horrores do Holocausto e de todas as guerras, uma vida de uma imensa liberdade que agora chegou ao fim. Marceline Loridan-Ivens morreu a 18 de Setembro, em Paris. Tinha 90 anos. A notícia foi avançada à AFP pelo advogado Jean Veil, filho da intelectual e política francesa Simone Veil (1927-2017), uma amiga de longa data que, como ela, sobreviveu a Auschwitz. Escritora e produtora, infatigável e combativa, Marceline Loridan-Ivens teve uma carreira como cineasta que é indissociável daquele que foi o seu segundo marido, o documentarista holandês Joris Ivens (1898-1989), 30 anos mais velho do que ela. Dessa parceria nasceriam projectos como O Paralelo 17 (1968) e Comment Yukong Déplaça les Montagnes, uma série de 12 títulos rodados entre 1972 e 1976. Para fazer o primeiro, o casal viveu durante dois meses de 1968 entre os camponeses de uma pequena aldeia na chamada zona desmilitarizada entre o Vietname do Sul, controlado pelas tropas americanas, e o do Norte, em luta pela independência com o apoio da China, da União Soviética e de outras nações comunistas. Marceline e Joris acompanharam estes habitantes no seu dia-a-dia, passado, em boa parte, nas galerias subterrâneas em que se refugiavam dos bombardeamentos norte-americanos. O segundo, composto pelos tais 12 filmes que, no total, formam um documentário de 12 horas, centra-se na revolução cultural chinesa e valeu-lhes a reprovação da mulher do próprio Mao Tsé-Tung, Jiang Qing, e uma saída apressada do país. “Estive lá, vivi a guerra vietnamita e o horror dos bombardeamentos”, contou a cineasta ao PÚBLICO em 2000, quando esteve no Porto para acompanhar a exibição de O Paralelo 17 e de duas das mais importantes obras de Joris Ivens, Terra de Espanha (1937) e Os 400 Milhões (1939). “Foram meses a madrugar para fugir às bombas e a escapar por um triz à morte”, disse, lembrando que um dos operadores de câmara morreu e que outros, como ela, ficaram feridos. Na mesma entrevista recordou ainda que foi por causa de Terra de Espanha, que viu pouco tempo depois de ser libertada do último campo de concentração onde esteve detida, que se interessou pelo cinema de Ivens. “Quando se volta de um lugar como aquele, em que se viu tamanho horror, em que tantas vezes a morte esteve por um triz, não é fácil encontrar um lugar. Por isso envolvi-me na luta pela libertação dos povos: era uma maneira de fazer qualquer coisa da minha vida. E acabei por partilhar o destino atribulado do meu marido. ”Marceline Loridan-Ivens nasceu Rozenberg em Março de 1928 em Épinal, França, numa família judia oriunda da Polónia. Com a chegada dos nazis ao território francês entrou para as fileiras da resistência e com ela colaborou até que foi presa pela Gestapo, a polícia secreta de Hitler. Com o pai, foi deportada para Auschwitz-Birkenau (Polónia) em 1944, onde viria a encontrar Simone Veil. Transferida primeiro para o campo de Bergen-Belsen (Alemanha), foi libertada em Maio de 1945, quando o exército soviético abriu os portões de Theresienstadt, na actual República Checa, e durante muito tempo teve dificuldade em aceitar que estava entre os que tinham sobrevivido a algo inimaginável. Escreve o Figaro que, depois da guerra, Marceline passou a frequentar a Cinemateca Francesa e a trabalhar para o sociólogo Roland Barthes, que haveria de a apresentar aos dois homens que lhe abriram a porta do cinema – o filósofo Edgar Morin e o antropólogo e cineasta Jean Rouch. A escritora é a mulher que aparece a falar sobre as deportações durante a Segunda Guerra no célebre monólogo da Praça da Concórdia no filme que Morin e Rouch realizaram — Crónica de um Verão (1961) — e que é o verdadeiro manifesto do cinema-vérité, movimento que questionava a capacidade do cinema para captar a realidade. Foi neste filme que, contou ao PÚBLICO, Joris Ivens a viu pela primeira vez. E o impacto, ao que parece, foi grande: “Virou-se para o Jean Rouch e prometeu: ‘Se algum dia me cruzar com esta rapariga, apaixono-me. ’” E assim foi. Com ele partilhou o sexto andar do número 61 da Rue des Saints-Pères, a sua casa nos últimos 40 anos. “Joris aceitou a minha liberdade e eu aceitei a sua", disse ao jornal francês Le Figaro. Marceline, que até à morte usou os apelidos dos seus dois maridos – o engenheiro Francis Loridan, de quem se divorciou, e o cineasta holandês, com quem permaneceu de 1963 até 1989, ano da morte do realizador – dedicou uma parte da sua vida ao cinema e outra à escrita, nunca deixando de dar testemunho da sua experiência nos campos de concentração, fosse nos filmes, nos livros, em festivais e conferências ou nas salas dos liceus. “Quando dou o meu testemunho nas escolas peço que se mostre um filme aos alunos. Para que as crianças vejam do que se trata e não se fiquem só pela linguagem, na abstracção. A imagem tem uma força que a palavra não tem. É preciso testemunhar sempre e é por isso que eu escrevo e faço filmes”, dizia a cineasta, para acrescentar em seguida que nem sempre esta urgência de falar sobre o que acontecera aos judeus na Segunda Guerra Mundial era bem vista, até mesmo por membros da sua família, que preferiam que Marceline tivesse optado pelo silêncio. Mas a escritora e cineasta nunca se calou. Entre as memórias que recuperava com frequência nas suas sessões nos liceus está a imagem das crianças que eram levadas para as câmaras de gás, a quem diziam que tomassem bem conta da sua roupa depois de se despirem para que a pudessem recuperar depois, e a da menina que se recusava a deixar a sua boneca para trás. “Os bebés e os velhos eram enviados [para as câmaras] primeiro”, lembrava muitas vezes aos alunos. Nos últimos anos foi na escrita, no entanto, que Marceline Loridan-Ivens se concentrou. Et tu n’es pas revenu (Grasset, 2015), escrito com a jornalista e romancista Judith Perrignon, é um livro-testemunho que vários críticos consideraram de uma intensidade rara em que a cineasta, uma das últimas sobreviventes de Auschwitz-Birkenau, se dirige ao pai, deportado no mesmo dia que ela e um dos que sucumbiram àquela que foi a mais mortífera rede de campos de concentração nazis. Evocando uma breve nota que o pai conseguira fazer-lhe chegar às mãos em Auschwitz e de que recordava apenas a primeira linha (“Ma chère petite fille”) e a assinatura (“Shloïme”), Marceline disse a Perrignon que estava na altura de lhe responder, conta a ensaísta num texto publicado esta quarta-feira no diário francês Le Monde e em que a ela se refere como “uma filha de Birkenau. Matrícula 78750 no braço”. A Et tu n’es pas revenu seguir-se-ia a sua última obra, também escrita com Judith Perrignon. Em L’amour après (Grasset, 2018), Marceline Loridan-Ivens dedicou-se a um tema-tabu ao falar sobre o que é amar e desejar alguém depois de Auschwitz. E fê-lo à sua maneira – desassombradamente, contando com precisão de que forma o seu corpo se recusava a obedecer àquilo que a sua mente tinha já decidido, e sem deixar de mencionar os nomes dos homens que passaram pela sua cama (da lista dos amantes fazem parte Georges Perec ou Edgar Morin) e as duas vezes que tentou pôr fim à vida (dois dos seus irmãos, Henriette e Michel, suicidaram-se). “Eu não sei render-me, não gosto que me toquem, não gosto de me despir. ”É também nesta derradeira obra, publicada aos 89 anos, que a autora admite que foi nos campos que conquistou “uma certa forma de liberdade” – as palavras são suas, numa entrevista que deu à revista Madame Figaro em Março deste ano – de que nunca mais abdicou: “Esta liberdade construída nos campos perseguiu-me depois. Jamais qualquer pessoa seria capaz de me impor o que quer que fosse. ”L’amour après é um livro confessional e delicado em que o relato de um longo caminho de regresso ao amor e ao desejo é, ao mesmo tempo, o testemunho de um regresso à vida, escrevia em Janeiro deste ano Jérôme Garcin, jornalista e editor de Cultura do semanário francês L’Obs. Quando foi libertada, Marceline tinha 17 anos e um “corpo seco”, lembra nesta última obra. Nos dois anos que passara em trabalhos forçados, sob o olhar dos nazis, nudez fora sinónimo de humilhação, de “violação colectiva”. “O meu corpo de mulher desenhou-se ao mesmo tempo que era condenado. Em Auschwitz. Que fazer dele depois de ter sobrevivido? Seria ele capaz do desejo, do prazer… De amar simplesmente?”, pergunta-se na capa da edição da Grasset esta mulher que, de acordo com os relatos da imprensa francesa, manteve até ao fim os cabelos vermelhos, uma elegância natural e um tom acutilante. Foi na altura do lançamento do livro que contou ao jornal regional Ouest France que cedo começou a ter amantes, em parte para se libertar do controlo da mãe, e que na maioria das vezes foi ela quem os deixou. De muitos guarda cartas e outros objectos numa mala que foi essencial no processo de escrita deste L’amour après. “Quem amei um dia, amo para sempre. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O cineasta português Sérgio Tréfaut, também ele habituado ao documentário, quis homenageá-la e o resultado, ainda que longe da intenção inicial, é Treblinka. “Num dos seus livros ela diz que, mesmo passados 70 anos do final da Segunda Guerra, é como se todos os comboios a levassem a Auschwitz”, disse Tréfaut ao PÚBLICO na altura da estreia do filme. Marceline não esqueceu mas, como escreve esta quarta-feira Judith Perrignon no Monde, também não deixou que a proximidade da morte lhe arrancasse a alegria da vida, a capacidade de resistir, mesmo quando o seu corpo começava a dar conta de que o fim, provavelmente, não estaria longe. No lançamento de Et tu n’es pas revenu em Jerusalém, Marceline deixou de ver. Assim, de repente, de um só golpe, diz Perrignon. No dia seguinte, em vez de ficar sossegada e deprimida por causa da cegueira, quis ir dançar, beber e fumar a um bar de que gostava muito em Telavive. “L’amour après é um hino à liberdade. Ela não tinha idade. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens guerra filha cultura campo concentração filho mulher violação corpo rapariga deportado
WikiLeaks: EUA mantiveram centenas de inocentes em Guantánamo
Uma nova série de documentos secretos publicados no site da WikiLeaks revela que, entre 2002 e 2009, os Estados Unidos mantiveram sob custódia no campo militar de Guantánamo centenas de prisioneiros com pouca ou mesmo nenhuma participação em actividades terroristas, e libertaram muitos outros que se revelaram ser perigosos extremistas. (...)

WikiLeaks: EUA mantiveram centenas de inocentes em Guantánamo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-04-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma nova série de documentos secretos publicados no site da WikiLeaks revela que, entre 2002 e 2009, os Estados Unidos mantiveram sob custódia no campo militar de Guantánamo centenas de prisioneiros com pouca ou mesmo nenhuma participação em actividades terroristas, e libertaram muitos outros que se revelaram ser perigosos extremistas.
TEXTO: Um deles foi Said Mohammed Alam Shah, um indivíduo de 24 anos capturado no Afeganistão e que negou aos interrogadores de Guantánamo ter qualquer conhecimento da organização, uma vez que tinha apenas sido contratado como motorista pelos taliban. A sua história foi considerada credível pelos analistas militares e o prisioneiro foi repatriado para o Afeganistão em 2004. Pouco tempo depois, os Estados Unidos constataram que o seu antigo prisioneiro era, na verdade, um importante militante de origem paquistanesa chamado Abdullah Mehsud. Antes de morrer num ataque suicida em 2007, Mehsud gravou e distribuiu vários vídeos com ordens jihadistas, montou uma milícia taliban para combater o Exército americano, planeou um ataque ao Ministério do Interior do Paquistão onde morreram 31 pessoas e organizou o rapto de dois engenheiros chineses. Em contrapartida, o Exército norte-americano manteve sob a sua guarda cerca de 150 inocentes, que apesar de nunca terem sido objecto de queixa ou acusação foram sujeitos a anos de interrogatórios por suspeita de terrorismo. Eram predominantemente afegãos ou paquistaneses – agricultores, motoristas, cozinheiros – que foram capturados em zonas de conflito, ou por engano ou simplesmente por estarem no sítio errado à hora errada. Por exemplo, um operador de câmara de estação Al-Jazira, que cumpriu seis anos de detenção até ser libertado por falta de provas (e regressar ao trabalho na mesma organização). Um paquistanês foi preso na fronteira com o Afeganistão em 2001 e enviado para Guantánamo, onde ao fim de sete meses se percebeu que tinha sido capturado por acaso ao voltar a casa do funeral de um familiar. Ainda assim, os Estados Unidos mantiveram-no mais dois anos na prisão, na expectativa de obter informação sobre caminhos secretos usados pelos taliban. Os vários jornais que tiveram acesso aos documentos da WikiLeaks concordam que os relatórios demonstram como os procedimentos para avaliar as ligações de 700 indivíduos detidos em Guantánamo a organizações terroristas eram “inconsistentes e questionáveis”. Ao longo dos anos, os oficiais militares registaram meticulosamente toda a informação referente aos seus prisioneiros: não só as suas frases durante os interrogatórios, mas todas as suas conversas enquanto estiveram presos. E nem quando os relatórios provavam a irrelevância de toda essa informação, os detidos eram libertados – pelo contrário, em nome da “eficácia” do programa, continuavam a ser submetidos a vigilância apertada. Do total de 700 processos analisados, só 220 dizem respeito a indivíduos categoricamente reputados como “extremistas perigosos”, enquanto 380 eram considerados “de menor interesse”. Entretanto, 604 prisioneiros já abandonaram o campo de detenção (transferidos para outras prisões, deportados ou libertados), enquanto 172 suspeitos ainda continuam em cativeiro. Na população de Guantánamo constam actualmente 130 homens cuja eventual libertação ainda é classificada como uma “ameaça de alto risco” para a segurança nacional pela Administração, que se recusa a libertá-los. No entanto, essa mesma classificação não impediu a saída de um terço dos 600 prisioneiros transferidos da ilha. Como aponta o jornal “The New York Times”, um dos factores que mais pesava para a libertação de detidos era a nacionalidade, com os europeus e os sauditas a serem repatriados de forma mais expedita do que, por exemplo, os iemenitas. A Casa Branca reagiu imediatamente à divulgação dos documentos, considerando a decisão da WikiLeaks em publicar “infeliz” e “despropositada” e sublinhando que as avaliações realizadas durante a presidência de George W. Bush foram posteriormente revistas pela Administração Obama.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens campo ataque prisão cativeiro rapto