Orbán acusa UE de condenar a Hungria por não querer ser um país de migrantes
Primeiro-ministro húngaro esteve no Parlamento Europeu na véspera da votação de relatório que pede abertura de processo contra Budapest por violar de forma sistemática os valores fundamentais europeus. Recusou-se a inverter o caminho. (...)

Orbán acusa UE de condenar a Hungria por não querer ser um país de migrantes
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Ciganos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Primeiro-ministro húngaro esteve no Parlamento Europeu na véspera da votação de relatório que pede abertura de processo contra Budapest por violar de forma sistemática os valores fundamentais europeus. Recusou-se a inverter o caminho.
TEXTO: Com um discurso breve mas inflamado no Parlamento Europeu, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, admitiu a possibilidade de ser iniciado o processo para activar o artigo 7º do tratado europeu contra a Hungria, acusada de desvio das normas democráticas. Mas colocou-se no papel de vítima, ele e todo o seu país, classificando a acção como uma “vingança contra o povo húngaro”, congeminada pelas forças de esquerda que não souberam digerir a derrota nas urnas. “Não vão condenar um Governo mas sim um país que faz parte da História dos países cristãos europeus há séculos”, declarou, assumindo a sua posição clássica de defensor da civilização cristã - face aos imigrantes muçulmanos. “A Hungria vai ser punida por ter decidido que não vai ser um país de migrantes. Mas não deixarei de proteger a fronteira e de defender o povo húngaro. Todos os países têm o direito de organizar a vida no seu território”, acrescentou. Segundo a eurodeputada dos Verdes, Judith Sargentini, relatora de um relatório sobre a Hungria aprovado pelo Comité de Liberdades Cívicas do Parlamento Europeu, a governação de Orbán constitui “uma ameaça sistémica à democracia, ao respeito pela letra da lei e pelos direitos fundamentais”, e impede que a Hungria possa ser considerada um Estado de Direito. A lista de acusações contra o regime é extensa: censura dos media e da academia; nepotismo e corrupção no uso de fundos comunitários; perseguição de minorias (ciganos, judeus, LGBT) e de refugiados, negação de direitos económicos e sociais e vários problemas no funcionamento do sistema constitucional. O relatório Sargentini foi publicado dias depois de Orbán ter conquistado um terceiro mandato consecutivo, com uma expressiva maioria de 50% nas eleições legislativas de Abril. O Governo de Budapeste atacou o documento, que descreveu como uma “colecção de mentiras inqualificáveis”, e uma “inaceitável interferência nos assuntos internos de um Estado-membro”. Para activar o artigo 7º, é precisa uma maioria de dois terços no plenário do PE, o queé uma fasquia difícil de ultrapasar. Por isso não é fácil estimar qual será o resultado da votação PE do relatório SargentiniA votação representa a mais significativa escalada no braço-de-ferro entre Bruxelas e Budapeste: há muito que as instituições europeias vêm dando conta da sua “preocupação” com a deriva autoritária e nacionalista do primeiro-ministro, Viktor Orbán, e esta iniciativa é a mais clara censura à sua governação iliberal. “Usaremos todos os mecanismos à nossa disposição, e seremos implacáveis”, declarou o vice-presidente da Comissão, Frans Timmermans, que tem a pasta dos direitos fundamentais e Estado de Direito. Depois de Orbán chegar ao poder, em 2010, a Comissão Europeia abriu dezenas de processos de infracção contra a Hungria, por incumprimento das regras europeias nos mais variados domínios (segundo o Politico, uma lista preparada pela Comissão com a totalidade dos procedimentos abertos ultrapassa as 30 páginas). Na maioria das vezes, Budapeste acabou por recuar e emendar a sua legislação. Mas os casos recentes da lei do ensino superior e da regulamentação da actividade das organizações não-governamentais (ambos em avaliação no Tribunal Europeu) provam, pelo menos para o Parlamento Europeu, que o Governo húngaro continua a esticar a corda — e que chegou a altura de dizer basta. Se os legisladores europeus decidirem iniciar o procedimento do artigo 7º, o Governo de Budapeste poderá perder o seu direito de voto nas cimeiras europeias. Essa é a penalização máxima para a violação grave dos valores europeus. Mas mesmo que o processo chegue até aí, a suspensão do direito de voto dificilmente será aplicada, por causa da prerrogativa de veto dos Estados membros do Conselho. Num jogo de alianças regionais e ideológicas, Viktor Orbán prometeu ao Governo da Polónia travar a aprovação de sanções num procedimento semelhante lançado em Dezembro, quando Varsóvia recusou fazer marcha atrás numa controversa reforma judicial que Bruxelas diz põe em causa a independência dos tribunais. A garantia de solidariedade dos seus parceiros deixará Viktor Orbán “sossegado” quanto à possibilidade de perder a votação desta quarta-feira. Mas a eventual abertura de um processo contra a Hungria não deixará de ter consequências políticas profundas para a política europeia, num momento pré-eleitoral delicado. O líder húngaro sente claramente que o “momentum” populista lhe dá força: “Somos o partido de maior sucesso no Parlamento Europeu e estamos prontos para restabelecer a democracia na Europa nas próximas eleições de Maio”, avisou. O recado era dirigido ao Partido Popular Europeu, que tem uma escolha difícil: há muito que o Fidesz de Orbán se tornou um constrangimento para a maior bancada no Parlamento Europeu, que espera manter o seu domínio na próxima legislatura. Se aceitar a abertura do processo, o PPE estará para todos os efeitos práticos a abrir mão do Fidesz e dos seus actuais 12 eurodeputados (num total de 21 parlamentares húngaros). Vários membros garantiram que o procedimento contra a Hungria levará imediatamente à suspensão do Fidesz do grupo. O contexto actual, com as sondagens a apontar o encolhimento das maiorias dos partidos conservadores noutros países europeus, pode não ser o mais propício para “irritar” Orbán. Mas por outro lado, se a bancada continuar a cerrar fileiras em defesa do (cada vez mais) homem forte da Hungria, corre o risco de ser ainda mais penalizado pelo eleitorado dos maiores países europeus, que já não estão dispostos a dar uma terceira oportunidade ao regime húngaro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Manfred Weber, o presidente do PPE e primeiro candidato interno à liderança da Comissão Europeia após as eleições de Maio de 2019, conseguiu, até agora, conter uma rebelião e confrontação interna que levasse à expulsão do Fidesz, argumentando que esse passo levaria a uma radicalização ainda maior do partido húngaro. Mas o desconforto na bancada do PPE é indisfarçável. Os partidos da Escandinávia e Norte da Europa entendem que o Fidesz ultrapassou as “linhas vermelhas” dos valores democráticos com o seu discurso xenófobo e nacionalista e defendem abertamente a sua expulsão. “O PSD está muito à vontade, pois sempre manifestou a sua censura, e cada vez mais forte, à política do senhor Orbán. Essa é uma posição documentada nos votos”, disse ao PÚBLICO o eurodeputado Paulo Rangel. Esta quarta-feira, os eleitos do PSD aprovam o relatório Sargentini. Durante o debate, Manfred Weber lamentou que Orbán permanecesse determinado a manter o mesmo rumo e indisponível para chegar a compromisso.
REFERÊNCIAS:
Partidos PSD Partido Popular Europeu
1933, 2018 – Descubra as diferenças. Ou as semelhanças
Na América, a Grande Depressão conduziu ao New Deal. Na Europa, à guerra. Onde nos leva a Grande Recessão? A História pode ensinar-nos alguma coisa. (...)

1933, 2018 – Descubra as diferenças. Ou as semelhanças
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na América, a Grande Depressão conduziu ao New Deal. Na Europa, à guerra. Onde nos leva a Grande Recessão? A História pode ensinar-nos alguma coisa.
TEXTO: O que anda a ler Angela Merkel? O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig, revela a imprensa alemã. Por que razão a palavra “Weimar” regressou ao debate político europeu durante os piores anos da crise do euro? Dois factos, aparentemente pouco relevantes e sem relação directa entre si, mas cuja resposta ajuda a compreender a inevitável tentação de comparar a Europa dos anos que mediaram entre as duas “guerras civis” que a devastaram na primeira metade do século XX e os tempos que vivemos hoje, depois de uma crise violenta que se abateu sobre o continente há quase dez anos. Dez anos separam o crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, do início da II Guerra Mundial. Dez anos nos separam hoje da queda do Lehman Brothers, o acontecimento que inesperadamente desencadeou a implosão do sistema financeiro norte-americano e a Grande Recessão à escala global. Vale a pena olhar para a realidade com as lentes da trágica metade do século XX europeu? Há algum paralelismo histórico que nos ajude a interpretar a ascensão dos movimentos populistas e nacionalistas em demasiados países da União Europeia e que levou Donald Trump até à Casa Branca? Há estudos académicos para sustentar teses diferentes, como sempre acontece. As semelhanças merecem atenção, as diferenças são evidentes. O Mundo de Ontem – Recordações de um europeu, escrito por Stefan Zweig entre 1940 e 1942 no seu exílio brasileiro, depois de ter abandonado a Alemanha nazi em 1934, nunca deixou de ser livro de cabeceira das elites europeias. As tiragens sobem e descem conforme as circunstâncias. Não foi apenas a chanceler alemã que resolveu relê-lo. “Só em França, este livro de Zweig vendeu 3, 2 milhões de cópias desde 2007”, lembrava o diário alemão Handelsblatt em Junho de 2017. O que faz desta obra autobiográfica de um judeu austríaco, nascido em Viena em 1881, um vício? É uma descrição poderosa, ainda que profundamente amargurada, de como ele viu o seu mundo desmoronar-se por duas vezes no tempo da sua vida breve, deixando-o sem pátria, sem raízes, sem cultura, desterrado num país longínquo onde morreu antes de saber da derrota do nazismo. Por que razão a vida dos seus pais e dos seus avós foi, do nascimento à morte, igual, segura, previsível, confortável, num certo sentido banal, durante um século de paz e de prosperidade europeia, e a sua uma constante descida aos infernos, a partir dos píncaros da mais sofisticada cultura? A lição que o livro de Zweig nos transmite é que os povos podem cair no abismo do nacionalismo e da guerra quase sem se darem conta. Zweig não é o único a reflectir sobre esta tragédia humana. Ensaístas, historiadores, escritores deixaram um fascinante legado que ainda hoje nos serve de guião para perceber a Europa desses anos — agora que, de repente, a História voltou a fazer a sua entrada em cena, depois do longo milagre de paz, de democracia, de prosperidade que os europeus ocidentais viveram desde os primeiros anos do pós-guerra, ao ponto de se esquecerem dele. Durante a primeira década após a unificação alemã e da reunificação do continente, a União Europeia mostrou-se capaz de resistir ao regresso dos velhos fantasmas, integrando os países que ficaram do lado errado da História depois da guerra, criando um modelo de partilha de soberania que foi a inveja do mundo e um Estado social como nenhum outro. A viragem do século mudou tudo. Primeiro com a queda das Torres Gémeas de Nova Iorque, depois com a queda do Lehman Brothers, o maior banco de investimento americano, que George W. Bush não quis resgatar com o dinheiro dos contribuintes, para se arrepender alguns dias depois. Como sempre, o destino da Europa estava estreitamente ligado ao do seu grande parceiro transatlântico. Em 2004 e 2005, dois grandes atentados terroristas em Madrid e em Londres puseram a nu o fracasso dos seus modelos de integração da imigração, sobretudo islâmica, lançando um intenso debate em torno do multiculturalismo britânico ou do modelo “republicano” francês. Em 2009 e 2010, o impacte brutal da queda de Wall Street atingiu em cheio a Europa, desencadeando uma profunda recessão, seguida de uma crise do euro que chegou a ameaçar directamente a existência da União Europeia. Foi nessa altura que a República de Weimar fez a sua entrada em cena. Um outro pequeno livro escrito em 1975 por Peter Gay, Weimar Culture, descreve o nascimento e a morte da República de Weimar, criada para cortar com o Império, que escolheu para capital uma pequena cidade da Turíngia, abandonando Berlim, monumental e prussiana . “A estonteante lista dos seus exilados – Albert Einstein, Thomas Mann, Bertolt Brecht, Walter Gropius, George Groz, Wassily Kandinsky (…. ) – faz-nos cair na tentação de idealizar Weimar, terra de Goethe, como única, centro de uma cultura sem limites, uma verdadeira idade do ouro”, escreve Gay. “Mas reconstruir este ideal sem mácula é trivializar as realizações da Renascença de Weimar. Parte dela resultava da ansiedade, do medo, de um sentimento crescente de condenação. Uma glória precária, uma dança à beira do vulcão. Uma cultura de outsiders, num breve, estonteante e frágil momento. ” Uma jovem república, minada desde o nascimento pelas guerras fratricidas entre comunistas e sociais-democratas, que não ouviu a marcha do nacional-socialismo. Ainda hoje, 80 anos depois, os alemães têm horror a um qualquer sinal de inflação, que associam à rápida escalada de Hitler, quando os efeitos do crash de 1929 na Bolsa de Nova Iorque se alastraram à Europa, acelerando a subida desenfreada dos preços e a queda abrupta da actividade económica. No final de 1923, durante o catastrófico período de hiperinflação na República de Weimar, o marco alemão, cujo câmbio com o dólar era de 4, 2 para um em 1914, passou para 4, 2 biliões de marcos em troca a unidade monetária americana. Em 1932, no ano em que Hitler subiu ao poder por via eleitoral, seis milhões de alemães, um terço da população activa, estavam desempregados. “Antes de 1929, o Partido Nacional-Socialista era uma força política marginal”, com 2, 6% dos votos em 1928, recorda o académico Antonis Kiapsis. Em 1930, obtém 18, 25% e, em Julho de 1932, 37, 2%, vencendo as eleições. Em Janeiro de 1933, Hitler toma posse como chanceler da Alemanha. Seis anos depois teve início a II Guerra. A Itália tinha um regime fascista desde 1922, mas é ao longo dos anos 1930 que partidos extremistas começam a ganhar terreno na Europa, da Roménia à Áustria, passando pela então Checoslováquia ou pela Bélgica, incluindo a Espanha. A Alemanha tornou-se austera desde aí. No início da última década, pela primeira vez desde a fundação, o cenário da desintegração da União Europeia chegou a estar em cima da mesa. A chanceler referiu essa possibilidade muitas vezes, para justificar à sua cedência a uma opinião pública que não queria saber da sorte dos países “gastadores” e “indisciplinados” do Sul, com o medo de contribuir para a ascensão de um partido de extrema-direita no seu país. Hoje a Alternativa para a Alemanha (AfD) é a terceira força política no Bundestag – liderando a oposição à “grande coligação”. Obteve 13% dos votos. Volta a colocar-se agora a questão a que Raymond Aron chamava “síndroma de Weimar”: até que ponto se deve condescender com os partidos nacionalistas? As comparações históricas não são fáceis, mesmo que possam ser úteis. O anti-semitismo existia na República de Weimar? Paul Bookbinder (Universidade de Massachusetts, Boston) pergunta, na sua obra Why Study Weimar Germany?: “Como podem as forças democráticas de uma sociedade combater os preconceitos e os estereótipos que levam ao ódio?” A questão é eterna. Regressemos ao tempo actual. “Talvez o maior custo da crise não seja económico mas político”, escrevem na Foreign Affairs Manuel Funk (Instituto da Economia Mundial de Kiel), Moritz Schularich (Universidade de Bona) e Christoph Trebesch (também do Instituto de Kiel). Talvez seja “a vaga de populismo que avassalou o mundo na última década, transformando sistemas políticos, fortalecendo extremistas e tornando a governação mais difícil”. “As crises financeiras conduzem habitualmente ao populismo e à polarização, mas a recente vaga populista está a durar mais do que as que se seguiram a anteriores crises – e a provocar mais estragos. ” Alguns exemplos a que os autores recorrem. “Os velhos sistemas de dois partidos em França e em Espanha foram varridos. As forças populistas de extrema-direita emergiram das margens, nalguns casos conseguindo grandes vitórias eleitorais. ” Estão no governo (ou apoiam o governo) na Áustria, na Itália ou na Finlândia. Já estiveram na Holanda e na Dinamarca. Mas também em Varsóvia, Budapeste ou Bratislava. Em 2015, estes três autores publicaram informação relativa a 100 crises financeiras e mais de 800 eleições nacionais em 20 democracias, desde 1870. Descobriram que os partidos de extrema-direita são sempre os principais beneficiários dos crashes financeiros. Os votos desviados para esses partidos aumentam em média 30%, as maiorias de governo tendem a estreitar-se e governar torna-se mais difícil, à medida que mais partidos anti-sistema entram nas legislaturas. Estes efeitos verificam-se na sequência de crises financeiras profundas, mas não dos ciclos económicos normais. As razões também são comuns. As pessoas revoltam-se contra as elites. O estudo indica que esta revolta não beneficia a extrema-esquerda. “Nos anos 1930, por exemplo, foi a pequena-burguesia alemã que permitiu a ascensão de Hitler ao poder. Da mesma maneira, a eleição de Donald Trump foi decidida pelas classes médias e as classes trabalhadoras. ”Assim, os populistas de direita “estão mais disponíveis para explorar as clivagens culturais e acusar os estrangeiros pelos problemas económicos ou apontar o dedo àqueles que supostamente põem os interesses de uma elite global acima dos dos seus compatriotas”. E porque é que este fenómeno está agora a prolongar-se por demasiado tempo, como defendem autores, em comparação com outras crises? Não apenas porque o choque foi tremendo, mas também porque foi apenas um “de uma série de disrupções ao longo dos últimos dez anos”. Os ataques terroristas e a vaga de refugiados são os dois acontecimentos que se juntam aos efeitos económicos da crise que, por sua vez, veio acentuar nas sociedades desenvolvidas a estagnação dos rendimentos da classe média, a precariedade do emprego jovem, o aumento das desigualdades, provocados pelo efeito da globalização económica. Tudo isto nos parece familiar. A incógnita é o que se vai passar daqui para a frente. São também evidentes as diferenças entre o mundo em que vivemos e aquele que existia na Europa e nos EUA quando rebentou a crise de 1929. Contrariando o destino europeu, três anos depois do crash, os EUA elegeram um líder que foi capaz de responder à destruição provocada pela Grande Depressão na sociedade americana. Franklin Roosevelt prometeu um New Deal e cumpriu, lançando as bases do Estado social, que ainda hoje perduram, aliviando progressivamente as tremendas feridas sociais. O seu programa de grandes investimentos para estimular a economia foi de tal ordem que ainda hoje são icónicas as obras construídas (também com o apoio do sector privado) para estimular a economia — do Empire State Building à Ponte de São Francisco. Hoje, o modelo social europeu continua a garantir um nível de protecção que impediria o drama vivido pelas massas de trabalhadores nos EUA durante a Grande Depressão. “Comparar os anos 1930 com os anos 2000 é uma missão arriscada. Nos 80 anos que passaram entre a Grande Depressão e a Grande Recessão, o mundo mudou. Foram constituídos grandes Estados sociais. A relação entre os mercados financeiros e a economia real mudou e voltou a mudar. Os EUA transformaram-se na suprema potência económica e militar. Na Europa Ocidental, a democracia representativa, ao contrário da situação dessa altura, estava institucionalizada e consolidada”, escreve Johannes Lindvall, da Universidade de Lund (Suécia). Mesmo assim, ele defende que a comparação entre as duas crises mostra um padrão comum. As primeiras eleições pós-crise 1929-33 e 2008-2011 nas 20 democracias que existiam em 1929 (Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Costa Rica, Checoslováquia, Dinamarca, Estónia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Letónia, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido e EUA) revelam que as repercussões políticas foram muito semelhantes. “Os partidos da direita começaram por ser mais bem sucedidos do que os de esquerda, nas eleições realizadas a seguir ao crash, mas, depois de alguns anos, os partidos de esquerda começaram a recuperar. ”Harold James, historiador britânico de Princeton (EUA), tira conclusões semelhantes sobre os efeitos da crise na esquerda e na direita europeias: “A Economist lembrava que, nas eleições para o Parlamento Europeu de 2009, a esquerda moderada não conseguiu capitalizar uma crise económica criada à medida dos críticos do mercado livre. ” Prossegue: “Tony Judt considerava surpreendente que, ‘numa série de eleições europeias que se seguiram ao desmoronar financeiro, os partidos sociais-democratas obtiveram consistentemente maus resultados; apesar do colapso dos mercados, provaram ser incapazes de se erguer à altura das circunstâncias. ” Voltando a Lindvall, “a mais importante consequência política da Grande Depressão foi, evidentemente, a ascensão do autoritarismo de direita na Alemanha, Áustria, Europa Central e América Latina”. Carlos Gaspar (investigador do Instituto Português de Relações Internacionais) lembra, no entanto, que não há hoje à disposição dos movimentos anti-sistema duas ideologias totalitárias, prontas a ser usadas, como havia nos anos 1930 na Europa: o comunismo e o fascismo. O fascismo morreu no final da II Guerra com a vitória dos Aliados. O comunismo implodiu em 1989, com o fim da União Soviética. O Ocidente ganhou a Guerra Fria. Duas outras diferenças significativas entre as duas crises estão no nível de articulação entre as grandes economias que as instituições internacionais permitiram e também na disposição dos governos para intervir em grande escala nas economias. “A crescente densidade das instituições económicas internacionais permitiu aos governos, na Grande Recessão, ultrapassar alguns obstáculos à acção colectiva, associados à coordenação das políticas económicas”, escreve o académico de Lund. Ao mesmo tempo, os governos da França, Alemanha e Reino Unido “intervieram ainda em maior escala [do que os EUA]”. A Europa, no entanto, não conseguiu compreender imediatamente a dimensão da crise de 2008, encolhendo os ombros a um problema que era “dos americanos”. Sucederam-se as proclamações. “Le laisser-faire c’est fini”, disse Nicolas Sarkozy. Peer Steinbrück, ministro alemão da Economia, anunciou com um certo gosto que se tratava de “um problema americano” que levaria a que os EUA “perdessem o seu estatuto de superpotência do sistema financeiro mundial”. Menos exuberante, o vice-primeiro-ministro chinês lembrou com alguma ironia que “os professores estão com um problema”. A crise “acelerou o movimento lento mas inexorável do fim de um mundo centrado nos EUA, que começou com a queda do Muro de Berlim”, escreve Roger C. Altman na Foreign Affairs logo em Janeiro de 2009, definindo o crash de 2008 como “um recuo geopolítico do Ocidente”. A aceleração da ascensão da China foi o resultado mais visível. Richard Haass previu um mundo “não polar” – anárquico. Muitos autores anunciaram a morte do chamado “consenso de Washington” que inspirava o modelo de desenvolvimento de uma grande maioria de países, substituído pelo “modelo de Pequim”. Algumas destas previsões confirmaram-se, outras foram manifestamente exageradas. A realidade internacional era também muito diferente. Nos anos 1930, não havia mais do que duas dezenas de países que dominavam a economia mundial. Em 2008, com a globalização económica, as potências emergentes, apesar de severamente atingidas, conseguiram recuperar mais depressa e puxar pela economia mundial, quando o Ocidente caía em recessão profunda. Ao contrário da maioria das previsões, que apontavam para a grande oportunidade chinesa de “estrangular” a economia americana, vendendo dólares e títulos do Tesouro ao desbarato, isso não aconteceu. “Estrangular” os EUA implicava suicídio. Dez anos depois, algumas dessas previsões mais catastrofistas falharam. A repartição do poder mundial é hoje mais equilibrada, graças sobretudo à emergência da China como a principal candidata a superpotência, desafiando a hegemonia da América. Talvez a questão mais relevante tenha sido a cooperação entre as grandes e médias potências económicas, somando ao G7 (os países desenvolvidos) 13 países emergentes do resto do mundo e travando a tentação do proteccionismo que, nos anos 30, apenas serviu para acentuar a depressão e fomentar o nacionalismo. A primeira reunião do novo G20, que incluía China, Índia, Brasil, África do Sul, Indonésia, Turquia, Arábia Saudita, reuniu-se pela primeira vez em Washington em 2008, por iniciativa de Nicolas Sarkozy e de Gordon Brown. A segunda, em Abril de 2009, já com Barack Obama, foi um marco no consenso entre as maiores economias para travar os efeitos da crise financeira. Houve uma profunda recessão económica, mas não uma Grande Depressão. Citando de novo Carlos Gaspar, há um outro traço comum, acentuado pela Administração Trump. Tal como nos anos 1930, a potência hegemónica “está a abdicar do seu papel de garante da ordem internacional”, como a França e o Reino Unido abdicaram dele nessa altura — permitindo a invasão da China pelo Japão e a Guerra Civil de Espanha, a antecâmara da II Guerra. A China alarga a sua influência, depois de ter consolidado a economia. A Europa está mais dividida do que nunca. É o seu destino enquanto projecto de integração único no mundo e o mais eficaz antídoto contra o nacionalismo que também está em causa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Muita gente previu a sua morte depois da unificação alemã. É célebre a frase do historiador e académico britânico Tony Judt, escrita em 1997: “A Europa será alemã ou não será. ” O jornalista francês François Lenglet, na sua obra de 2008 La Crise des années 30 est devant nous, defende que “a bela ideia europeia é uma fénix que reaparece depois de cada crise internacional e morre imediatamente antes da seguinte”. Cita Paul Valéry para descrever a profunda depressão europeia depois da I Grande Guerra: “Nós, as civilizações, sabemos hoje que somos mortais. ” Mas a fénix europeia reaparece em meados dos anos 1920, “quando a economia do continente começa a estabilizar-se e a França e a Alemanha se aproximam, apesar das incessantes chicanas sobre as reparações de guerra”. Reactiva-se a ideia dos “Estados Unidos da Europa”. A França, pela mão de Aristide Briand (chefe do Governo) toma conta dela. A Alemanha aceita-a. “Como sempre, os povos estão preparados para a abertura, quando não têm medo do futuro”, escreve Lenglet. A euforia não durou muito. “Da mesma forma que a euforia económica tinha permitido aos europeus dar início à reconciliação, a entrada em cena da crise e do desemprego restabelecerá as fronteiras nacionais nos espíritos e nos factos. ” A França abandona pouco a pouco o seu desejo de Europa. Briand morre alguns meses antes da chegada de Hitler à chancelaria. O governo da Frente Popular liderado por Léon Blum, onde dominam os comunistas, começa bem, mas as greves e a redução do tempo de trabalho de 48 para 40 horas travam a economia. A Europa voltará a renascer como uma fénix depois da II Guerra. Para integrar a Alemanha, garantir a presença dos EUA e enfrentar a ameaça soviética. Foi construída por duas grandes famílias políticas: a social-democracia e a democracia-cristã. Hoje, a social-democracia atravessa uma profunda crise na maioria dos países europeus. Quase desapareceu em França ou na Grécia. Não criou raízes no Leste. Os seus redutos do Norte, incluindo o SPD alemão, vivem um declínio eleitoral que parece irreversível. O seu derradeiro sobressalto, que a levou ao poder numa maioria de países da UE na década de 1990 — a “terceira via” —, perdeu-se, incluindo no seu país de origem, onde o New Labour de Tony Blair deu lugar ao velho Labour de Jeremy Corbyn. Boa parte dos votos que perdeu foram para os partidos populistas e nacionalistas, animados pelos deserdados da globalização. No centro-direita, a crise é menos visível, mas a hora da verdade aproxima-se: o que fazer perante a ascensão dos partidos xenófobos e antieuropeus, saídos de um facelift que lhes deu uma aparência mais tolerável? Correm o risco de se partir. Ou de se render. Voltando a Zweig, o que não sabemos é se, de repente, a lenta evolução dos acontecimentos, a que não prestamos demasiada atenção, nos leva inadvertidamente até ao precipício.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
O momento dos Sessenta: nem apolíneo, nem dionisíaco
Devem os sessenta e “1968” ser tomados como catalisadores de mudança social ou como sintomas de dinâmicas já em andamento? Ou devem ser tomados antes como um momento de reforço do conservadorismo, não de ruptura? São muitas as questões que ainda hoje se encontram por responder. As respostas, quaisquer que sejam, devem decorrer do estudo de contextos sociais e históricos específicos, não da celebração acrítica ou da crítica infundada. (...)

O momento dos Sessenta: nem apolíneo, nem dionisíaco
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Devem os sessenta e “1968” ser tomados como catalisadores de mudança social ou como sintomas de dinâmicas já em andamento? Ou devem ser tomados antes como um momento de reforço do conservadorismo, não de ruptura? São muitas as questões que ainda hoje se encontram por responder. As respostas, quaisquer que sejam, devem decorrer do estudo de contextos sociais e históricos específicos, não da celebração acrítica ou da crítica infundada.
TEXTO: Em Israel, os anos Sessenta foram marcados pela “Guerra dos Seis Dias”, não por expressões de protesto juvenil ou profundas transformações sociais. A geração que é invocada, ainda hoje, é a de 67, não a de 68. A guerra ocupa e agita a memória colectiva e o modo como os Sessenta são interrogados. Não são os aspectos frequentemente associados às dinâmicas transformadoras dos sixties que estão no centro dessa interrogação. Tanto ali como nos países árabes envolvidos mais directamente no conflito – Síria, Egipto e Jordânia –, a década foi marcada por outros acontecimentos e deixou outros legados. Mas, apesar disso, há certos aspectos comuns que podem ser identificados. Por exemplo, no que diz respeito a formas de criativa expressão política e cultural. O acontecimento militar não deixou de motivar agendas pacifistas. Abie Nathan, conhecido activista israelita, falhou a missão de paz na sua viagem, não autorizada, ao Egipto em 1966, pilotando o seu avião Shalom 1 (“Paz 1”). Foi deportado por Nasser e preso à chegada a Israel. Não obstante, persistiu. Num país que apenas viu uma segunda estação de rádio ser permitida em 1960, fundou a rádio-pirata Voz da Paz em 1973, transmitindo desde o Navio da Paz, que comprou com a ajuda de John Lennon. Apenas deixou de transmitir a sua mistura de música pop com mensagens pacifistas, em árabe, hebraico e inglês, em 1993. Em 1977, organizou o enterro de brinquedos militares que previamente destruiu, alguns num programa de televisão. Terá gastado 4 mil dólares (3, 4 mil euros) a comprá-los. Em 1978 iniciou a sua primeira greve de fome, em oposição aos colonatos israelitas. Ao longo dos anos, participou activamente no apoio a vítimas de guerra e desastres ambientais, do Biafra à Nicarágua. Num outro sentido, o compromisso juvenil com o projecto sionista foi sendo objecto de questionamento crítico activo. O investimento na doutrinação dos jovens por parte das autoridades israelitas e as correspondentes expectativas de alinhamento ideológico e normativo, de forte cariz nacionalista, foram confrontados com vigor. A “geração expresso”, apodo de Arthur Koestler que Yizhar Smilanski, escritor e político israelita, colou depreciativamente aos jovens israelitas em 1960, não parecia responder aos mesmos incentivos. Para S. Yizhar (nom de plume) eles queriam algo “forte, rápido e barato”. O seu ataque aos “poetas da anexação” envolvia disputas literárias. Mas era muito mais que isso: era uma denúncia do aparente desinteresse pela defesa intransigente do colectivo “nacional”. Em 1961, por ocasião de dois encontros entre David Ben-Gurion e vários jovens intelectuais dos kibutz, entre os quais Amos Oz, o corte geracional no que dizia respeito à relação entre missão nacional e desenvolvimento pessoal era notório. A “geração de 48”, a que participou na “guerra da independência”, era vista como não tendo sucessora à altura. Para Ben-Gurion, era preciso “dizer-lhes como é”. Mas a resposta, dada pelo historiador Muki Tsur, era clara: “Por vezes ignoramos o facto que uma sociedade com a sua própria vida, as suas experiências, os seus próprios desejos, está a emergir nesta terra”. Era preciso dar-lhe voz. Contudo, em 1967, outros clamores se ouviram, parecendo anunciar uma nova geração, capaz, finalmente, de honrar a de 1948. Tal não impediu, claro, que expressões de descontentamento furassem o tom celebratório e vitorioso que predominava em Israel. A publicação do livro Siach Lochamim (“O sétimo dia”), três meses depois do fim da guerra, foi talvez o exemplo mais importante. Composto por inúmeros testemunhos de jovens, da “geração de 67”, reflectindo sobre os efeitos da guerra, o livro tornou-se um best-seller. Foi traduzido para várias línguas. Em 2015 tornou-se um documentário, que resultou de mais de 200 horas de gravações, Censored Voices. Ambos revelam o pulsar de uma sociedade em (relativa) transformação, marcada por inúmeras contradições, mas a dialogar, de modo crescente, com outros contextos. Sim, os Beatles foram impedidos de visitar o país em 1965, por não corresponderem aos critérios artísticos e culturais vigentes. Mas, em 1966, o governo liderado por Levi Eshkol aboliu o regime de conscrição e organização militar que vigorava desde 1948. Movimentos políticos de contestação como o socialista Matzpen começavam a ter alguma projecção pública. 1968 viu o surgimento de um primeiro canal de televisão, ainda que controlado pelo governo. No mesmo ano, Hanoch Levin, um dos mais importantes poetas e encenadores israelitas dirigiu uma peça de cabaré em Telavive: You, I and the Next War. Esta ecoava Brecht, escarnecia do nacionalismo jingoísta e do ethos militarista e lamentava a glorificação da morte. Veiculava ainda uma contestação às orientações colectivistas predominantes. O individualismo era valorizado, em detrimento do sacrifício em nome de um destino colectivo futuro. Um ano mais tarde, Yaakov Rotblit escrevia o hino do movimento pacifista israelita, Shir LaShalom (“Uma canção para a paz”). Em 1971, emergia uma organização de protesto em Jerusalém intitulada Black Panthers, composta por imigrantes judeus de segunda-geração provenientes do Norte de África e do Médio-Oriente. Com óbvia inspiração transatlântica e com alguma capacidade de recrutamento e projecção pública, denunciava as dinâmicas de desigualdade sócio-económica, de notória raiz étnica, que atravessavam a sociedade israelita, condenando os judeus Mizrahim (ou “orientais”) a posições de subalternidade, sobretudo face aos Asquenazes. Todos estes exemplos não significam, longe disso, o sucesso do movimento pacifista ou o gradual, mas imparável, efeito das energias transformadoras dos sixties ou de “68” na sociedade israelita. O pacifismo foi marginal. O feminismo também: as mulheres parecem ter tido um lugar residual nos movimentos de protesto de então. O questionamento do nacionalismo foi igualmente pouco saliente. A Nova Esquerda era olhada com enorme desconfiança. Nem os elogios de alguma esquerda aos kibutz era vista como aliciante. De facto, a mesma desconfiança era dirigida a todos os argumentários que propalavam qualquer espécie de comunitarismo: muita da juventude israelita lutava contra tendências colectivistas e privilegiava a realização pessoal. A fractura geracional foi, também, pouco significativa. Numa palavra: houve e não houve “1968” em Israel. Esta é a história a contar, uma que resiste a operações de simplificação histórica ou memorial. Ressalvando as numerosas diferenças, análises semelhantes podem ser feitas a respeito do Egipto, dos territórios da Palestina, da Síria ou do Líbano. Inúmeras ambiguidades, consequências inesperadas ou improvisações podem ser identificadas. Vários realinhamentos ideológicos e políticos ocorreram, nem sempre de leitura clara. Todas estas dinâmicas foram em parte estimuladas pela guerra. Mas foram decerto condicionadas, e muito, por circunstâncias locais, algumas de longa gestação. Por exemplo, nestas sociedades, questões associadas às relações de género e à sexualidade emergiram com algum vigor no debate político, em parte em razão de tentativas de compreender o desfecho negativo de 1967. O caso do polémico livro de Sadiq Jalal al-Azm, Al-Nakd al-Dhati Ba’da al-Hazima (“Auto-crítica depois da derrota”), publicado no rescaldo do conflito (1968), é particularmente revelador. O conflito criou um espaço de mobilização crítica considerável, que partilhava alguns tópicos comummente associados aos sixties de outras paragens. Sadiq Jalal al-Azm propunha visões secularistas e a igualdade de género como sendo fundamentais para a transformação significativa do “mundo árabe”. Ao mesmo tempo oferecia um diagnóstico crítico das causas da derrota (hazima). Os bloqueios vários das respectivas sociedades, a começar pela questão das mentalidades, eram, no seu entender, as verdadeiras causas da hazima. Não é de estranhar que, anos mais tarde, tenha sido um dos críticos mais ferozes do Orientalismo de Edward Said. No Líbano, a “libertação sexual” acompanhou o retrocesso da moralidade conservadora, parcialmente decorrente da agenda modernizadora e secularizadora que, de modo diverso, percorria o “mundo árabe” nos sessenta e, de modo mais evidente, após 1967. Mais uma vez, o processo deveu mais aos efeitos do conflito do que propriamente à difusão de uma onda global de contestação. Mais, a dita “libertação” decorreu, em parte, à custa de uma degradação da condição da mulher, ainda presa numa sociedade patriarcal e de privilégio masculino. A vincada desigualdade de género filtrou a mudança de valores, gerando consequências para alguns inesperadas, por muitos (homens) aproveitadas. Por vezes, a “libertação” de uns acarreta apenas a redefinição do que aprisiona outros. Essa mesma sociedade que, em razão das notórias dificuldades financeiras e dos persistentes condicionalismos religiosos e morais, não oferecia estruturas médicas capazes de responder ao acréscimo de abortos com um mínimo de condições. E, tal como no “ocidente”, ao contrário da vulgata que a romantiza ou a diaboliza, a “revolução sexual”, grande parte das vezes decorrente sobretudo de formas legalistas de “emancipação”, teve um impacto muito desigual, em função de diferentes universos sociais, culturais e económicos. Quem tinha acesso privilegiado às tecnologias contraceptivas? Quem as podia pagar?Outras manifestações críticas ocorreram nestas sociedades, revelando a dificuldade em destrinçar o sentido de certos fenómenos sociais. A “geração Nakba”, na Palestina, foi questionada, de modo recorrente e crescentemente organizado. A criação da Frente Nacional para a Libertação da Palestina e da Frente Democrática para a Libertação da Palestina são apenas dois exemplos. Esta última teve os sírios Sadiq Jalal al-Azm e Saadallah Wannous como fundadores. Wannous, famoso dramaturgo, foi responsável pelo chamado teatro de politização, que visava torná-lo num instrumento de mudança social e política comprometido, resgatando-o, ao mesmo tempo, ao que considerava ser uma letargia criativa. Um pouco por toda a Síria (e o “mundo árabe”), o campo artístico foi afectado por novos olhares e vozes. O mesmo sucedeu com a multiplicação de tendências modernizadoras no campo político e social. No Egipto, ao lado de revoltas estudantis, beneficiárias das consequências políticas da revolução de 1952 e depreciadoras da dimensão política e militar do envolvimento do país, a revista iconoclasta Galliri 68 (“Galeria 68”) congregava visões críticas, políticas e artísticas, em resposta, sobretudo, ao desfecho de 1967. Motivações políticas, artísticas, sexuais, estéticas, sociais, ideológicas, económicas e até pessoais interagiam. Não podem ser reduzidos nem à guerra, nem à apropriação linear de ventos externos de mudança. É a sua combinação variável e o seu contexto que contam. Que significado tiveram os sessenta e 1968 para quem estava num dos campos de refugiados – por exemplo os de Wadi Dlails ou Baquar, na Jordânia – após o conflito de 1967? O que significou para os milhares de refugiados a visita de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beuavoir a Gaza, em Março de 1967? Que fizeram eles com termos como “alienação” ou “conflito de gerações”? Talvez as respostas a estas perguntas sejam bem mais importantes do que enclausurar a história dos sessenta entre o preto e o branco, ou entre leituras que neles tudo ou nada vêem. Entre a mitologia e a memorialização. O que significaram os “sessentas” é uma pergunta que se pode colocar tendo por referencial múltiplas geografias e temas. Feita a pergunta a um “ocidental”, esta seria a década em que a psiquiatria se viu fundamentalmente abalada nos seus alicerces. Simbolizada pela aglomeração de pacientes em unidades de dimensões consideráveis e pela utilização de técnicas como a lobotomia e a aplicação de electro-choques, a psiquiatria viu a sua legitimidade posta em causa. Intelectuais como Michel Foucault ou praticantes como Ronald Laing forçaram o repensar profundo das noções de saúde e doença mental e do que era, de facto, o “normal”. Contribuíram para o que outro psiquiatra cunhou vagamente como anti-psiquiatria. Resultado de tendências várias de desconfiança em relação à obediência cega à autoridade, de combate à coerção e ao controlo, o movimento desenvolveu-se um pouco por todo o mundo “ocidental”. Olhando para a icónica figura do hospício como um aparato de disciplina social, espelho de uma sociedade que visava, de forma insidiosa e rotineira, controlar não só a esfera pública como também a privada, figuras como Laing questionaram concepções estabelecidas sobre doenças como a esquizofrenia. Denunciaram os mecanismos de construção social que estavam associadas ao seu diagnóstico e ao seu putativo tratamento. Propuseram ainda hipóteses alternativas de lidar com o sofrimento psíquico. Livros como One Flew Over the Cuckoo's Nest (1962) de Ken Kesey (que participou em estudos governamentais envolvendo drogas alucinogénias) ou o relato do percurso biográfico da irmã de John F. Kennedy, que sofrera uma lobotomia que a deixaria institucionalizada para o resto da vida, são apenas dois exemplos de episódios que espelham os desafios que a psiquiatria enfrentou. Este é, em traços largos, um possível resumo da história da psiquiatria enquanto objecto de debate público nos anos sessenta. Ela promove uma ideia de ruptura e crítica de consensos vigentes. Mas esta é uma história incompleta. Noutras latitudes, o questionamento da psiquiatria seguiu outros caminhos. Em 1961, a Primeira Conferência Psiquiátrica Pan-Africana decorreu em Abeokuta (Nigéria), tendo como um dos principais organizadores Thomas Adeoye Lambo. Lambo foi o primeiro nigeriano a receber formação em psiquiatria e, mais tarde, ocupou o cargo de director-geral adjunto da Organização Mundial da Saúde. A conferência visava olhar para o impacto das importantes transformações sociais e económicas que marcavam a generalidade do continente, resultado em parte dos esforços do colonialismo tardio, e prosseguido pelos Estados pós-coloniais, de “modernizar” as sociedades africanas. Mas a descolonização plena era o que estava em jogo. Não se tratava apenas da criação de um novo hino e de uma nova bandeira. O trabalho dos chamados “etnopsiquiatras” coloniais tinha contribuído para o reforço de um conjunto de categorizações sobre a mente e a saúde mental dos africanos. Postulava que a esquizofrenia seria mais prevalecente entre os africanos dado o seu carácter “primitivo”, logo infantil. Entre estes, os chamados “destribalizados”, ou seja, os que tinham abandonado as suas comunidades “tradicionais”, constituíam um caso de particular preocupação. Situados num limbo entre “tradição” e “modernidade”, aparentavam ser presas fáceis. Em sentido contrário, a depressão, asseverava-se, era menos frequente em africanos por força do seu carácter pouco dado à auto-reflexividade. A explicação colonial para a situação mental dos “africanos” fundava-se numa crença da importância dos factores culturais face à saúde psíquica de grupos humanos diferenciados. O que Lambo e outros procuraram fazer foi abanar as bases deste princípio. Por exemplo, o facto de nos poucos hospícios existentes na Nigéria colonial não haver praticamente espaço para tratamento – estes eram essencialmente espaços de repressão – fazia com que todos aqueles que tivessem um comportamento “desadequado” ou violento fossem classificados como esquizofrénicos. Eram esses que maioritariamente eram internados e, logo, entravam nas estatísticas, aumentando de forma extraordinária, e errada, as taxas de prevalência da esquizofrenia nas sociedades africanas. Ao mesmo tempo, dado que a depressão não apresentava necessariamente um perigo para a ordem pública, raramente era registada. Os dados coloniais a partir dos quais estes problemas eram interpretados eram mais que questionáveis. Lambo e outros procuraram “universalizar” a doença mental, negando uma especificidade africana. Através de estudos baseados numa psiquiatria transcultural, envolvendo casos das mais diversas partes do mundo, procuraram demonstrar que a doença mental era, e é, parte integrante da natureza humana, a sua incidência e prevalência não sendo essencialmente afectadas por factores raciais (culturais ou biológicos). Mais do que debater a fiabilidade dos estudos feitos por estes psiquiatras nigerianos que, reforce-se, estavam plenamente integrados em redes transnacionais de especialistas, os seus esforços são uma importante janela para uma visão poliédrica sobre a forma como os anos 60 podem ou não ser pensados como época de ruptura, e sobre que tipo de ruptura. Estes casos demostram vários aspectos fundamentais para a compreensão dos problemas que o estudo dos sixties e de 1968 suscitam, finalmente a ser interrogados com um módico de rigor. Através da inquirição de múltiplas fontes e não sobretudo ou apenas dos testemunhos dos diretamente envolvidos ou interessados na gestão do seu significado. As novas investigações lidam melhor com a espessa retórica política e ideológica, pública e publicitada, de então e de hoje. Como afirmou Gerry DeGroot, “depois da década ter morrido, reemergiu de novo como religião”. Os Sessentas têm sido mais rigorosamente contextualizados, por relação com processos históricos contemporâneos como as dinâmicas de emancipação do dito “terceiro mundo” ou a competição bipolar entre modelos de modernidade. As suas cronologias e principais manifestações têm sido revisitadas. Tornam mais fácil resistir à dramatização, glorificação, ou singularização do ano ou da década. Alguns destes aspectos foram tratados, com originalidade e propriedade, por Arthur Marwick, no seu The Sixties. Cultural Revolution in Britain, France, Italy, and the United States, 1958-1974 (1998). Apesar do foco em dinâmicas culturais, arriscando com isso a parcial despolitização do período, o seu livro sublinhou dois aspectos importantes. Reiterou os benefícios da comparação, método correctivo de discursos de excepcionalidade, tão importantes na mitologização e memorialização enquanto instrumentos para formação e preservação de identidades sociopolíticas ou geracionais. Demonstrou ainda a necessidade de redefinição dos enquadramentos cronológico e social a partir dos quais a “revolução cultural” pode ser escrutinada. Como a propósito da “libertação sexual” no Líbano, uma reflexão sobre as transformações culturais do período tem de interrogar todo o campo sociocultural, não apenas os espaços restritos da vanguarda ou das elites. Marwick perscruta o quotidiano de quatro sociedades, identifica temporalidades distintas, mobiliza diferentes observatórios sociais, aborda diversas práticas culturais. Transformou, de modo decisivo, o estudo dos sixties, chamando a atenção para a centralidade dos símbolos, rituais e performatividade do protesto, das estratégias comunicacionais, das disputas identitárias. Talvez tenha falhado na capacidade de alargar a análise a outros contextos que não os “ocidentais”, mas resgatou os sessenta da alta-cultura, da alta-política (mesmo a protagonizada por pretensos “subalternos”), do grande acontecimento. Mutações nas normas sociais e práticas culturais ou nos padrões de consumo foram tão ou mais decisivas na definição dos “longos sessenta”. Indo um pouco mais longe: devem os sessenta e “1968” ser tomados como catalisadores de mudanças societais ou como sintomas de dinâmicas já em laboração? Ou, como alguns argumentam, um momento de intensificação conservadora? Ou devem ser antes escrutinados a partir do estudo do confronto político e social entre as forças da mudança e as do status quo? As respostas, quaisquer que sejam, decorrem necessariamente dos contextos sociais e históricos precisos sob análise. Por exemplo, nos EUA, 1968 é também o ano da morte de Martin Luther King e de Robert Kennedy, ou do “cerco de Chicago”, que captou a atenção de Norman Mailer. Sucedendo a The Armies of the Night, que um ano antes se debruçara sobre o movimento contra a guerra no Vietname, o seu Miami and the Siege of Chicago lançava um olhar crítico sobre a sociedade, interpelando esta a partir do rico observatório das convenções democratas e republicanas no Verão de 1968. E a década começou com a criação da Young Americans for Freedom, vincadamente conservadora, guiada pelos princípios consagrados pelo Sharon Statement, lavrados em casa de William F. Buckley em 1960. Buckley, cuja fulgurante projecção pública muito deveu à série de confrontações televisivas e literárias com Gore Vidal, popularizou a combinação entre conservadorismo social, liberalismo económico e anti-comunismo que pautaria o pensamento republicano até aos anos 80. Da África do Sul à Grécia, a repressão foi a norma, não a excepção. No plano da sexualidade, os motins do Stonewall Inn (1969), em Greenwich Village, Nova Iorque, foram um evento relevante na demorada conquista de direitos civis e sexuais pela comunidade homossexual. Mas o seu impacto não foi imediato. Não beneficiou todos igualmente. E muito menos foi global. Mesmo se nos ativermos aos grupos sociais normalmente enunciados como sendo as forças motrizes dos sixties, como as mulheres e os estudantes, reconsiderações e matizações talvez sejam necessárias. Como interpretar, por exemplo, o poderoso movimento de mulheres que surgiu no Brasil no início dos anos 60 tendo por fim contestar o governo reformista de João Goulart? Movimentos como a Campanha da Mulher pela Democracia multiplicaram-se um pouco por todo o Brasil, tendo por padrão partilhado a participação política de mulheres que se apresentavam como cristãs, como mães de família, e da nação, ou seja, reforçando papéis de género conservadores, contra o ateísmo comunista. Poucos dias antes do golpe de 1964, uma série destas organizações, de São Paulo a Curitiba, convocou uma poderosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, descentralizada, agrupando centenas de milhares de mulheres que protestavam contra o governo. Construíram as suas próprias redes transnacionais de protesto. Em 1967, realizaram o I Congresso Sul-Americano da Mulher pela Democracia, no Rio de Janeiro. Gravações, panfletos e técnicas usadas pelas activistas brasileiras foram partilhados com as suas congéneres chilenas, que lhes deram bom uso, como é sabido, nas manifestações contra Salvador Allende, mais tarde. E que dizer da Frente de Acção de Estudantes Anti-Comunista da Indonésia que preparou o terreno para a repressão brutal (meio milhão de mortos) que se seguiu à tentativa de golpe de 1965? Antes, envolveram-se em rixas contra o poderoso Partido Comunista da Indonésia, ao mesmo tempo que levavam a cabo iniciativas que visavam boicotar produtos culturais estrangeiros. Depois, prestaram-se não poucas vezes ao trabalho sujo de repressão que os militares lhes delegavam. Donde, só se pode concluir que reduzir a década à iniciativa de uns ou de outros é miopia. Compreender as tensas e por vezes ambivalentes relações entre o poder estabelecido, qualquer que ele fosse, mais ou menos conservador, e as forças de contestação e protesto tem-se tornado um ponto central na literatura. Mais, de que modo causas globais (como o movimento contra a guerra no Vietname) se articularam com reivindicações mais específicas, relativas a dissensões locais, com uma outra história e significado? Ou, ainda, como é que dinâmicas locais se apropriaram, negociaram o sentido prático, deram uso instrumental aos ventos de mudança do exterior?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As respostas as estas questões mostrarão certamente a variedade de cronologias e dinâmicas de contestação ou preservação de uma dada “ordem social”. Relativizarão grandes narrativas e explicações supostamente claras. Dificultarão ainda a recorrência de perspectivas difusionistas. A tendência para homogeneizar dinâmicas de protesto político, cujas motivações e sentidos são frequentemente interpretadas como elementos de uma contestação global contra as sociedades capitalistas, tem de ser devidamente calibrada. A defesa de uma relação significativa óbvia entre acontecimentos importantes que ocorreram em 1968 – da “Primavera de Praga” ao “massacre de Tlatelolco” no México, passando pela afirmação do Black Consciousness Movement na África do Sul – tem que ser matizada. O mesmo sucede com a consideração desse ano como o ano de todas as consumações: a sobrevalorização de acontecimentos, sobretudo os publicamente marcantes, impede a compreensão dos processos que lhes estão associados, ainda que menos visíveis. Até porque a memória, amiúde, sobrepõe-se à compreensão histórica do sentido e peso dos acontecimentos. Investigações recentes no Brasil, por exemplo, demonstram como o ano de 1968, marcado por importantes protestos estudantis (e que coincidiu com o endurecimento da ditadura através do Ato Institucional Número 5), foi inscrito na vaga de protestos globais desse ano, ainda que a importância dessas articulações tenha decorrido em grande parte de memórias construídas posteriormente e menos de uma experiência quotidiana de interacção transnacional. Em contraste, a recordação do papel das mulheres conservadoras na criação e consolidação da ditadura tem desaparecido parcialmente da memória, processo desde logo operado pelas próprias protagonistas. Como escrevemos acima, a maior parte destes casos revela que é na compreensão da combinação variável entre ideias e repertórios de acção, de proveniência vária, que se encontra o desafio. A compreensão do modo como os tópicos dos sessenta foram globalizados e nacionalizados ao mesmo tempo requer outros instrumentos de análise.
REFERÊNCIAS:
Religiões Ateísmo
O que revelam os véus
Há outras possibilidades e caminhos de interrogação da “controvérsia do véu”, mais atentas aos contextos históricos, recusando simplismos e essencialismos, menos politizadas, mas sem deixar de ser políticas. Talvez sejam menos apelativas para a propaganda e os zelotes de serviço, mas são certamente mais rigorosas e humanas (...)

O que revelam os véus
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há outras possibilidades e caminhos de interrogação da “controvérsia do véu”, mais atentas aos contextos históricos, recusando simplismos e essencialismos, menos politizadas, mas sem deixar de ser políticas. Talvez sejam menos apelativas para a propaganda e os zelotes de serviço, mas são certamente mais rigorosas e humanas
TEXTO: Na Bulgária, a desagregação do império soviético criou novos problemas de administração pública de modalidades de culto e expressão cultural, durante décadas remetidas para o espaço privado e, em muitos casos, fortemente vigiadas e constrangidas, senão mesmo violentamente suprimidas. O caso da heterogénea população muçulmana, com uma presença significativa e secular no território, é exemplar. Exemplar é também a problemática relacionada com o uso do “véu” pelas jovens muçulmanas, no que nos diz sobre o facilitismo interpretativo com que muitas vezes se abordam certos processos e práticas sociais. Por exemplo, essa opção significou e pode significar a procura por uma identidade individual autónoma, distintiva, de natureza política, social ou religiosa. Pode ser um rito de passagem em universos sociais distintos. Ou um símbolo de inscrição “urbana” e recusa de uma vinculação simbólica e material ao mundo rural. Nada que incomode quem não hesita, nem hesitou, a equacioná-lo com uma identidade histórica colectiva, sem fissuras. A tensão entre o domínio da expressão individual, relativamente livre, e as tentativas de imposição de um sentido político e cultural unívoco, mais amplo e profundo, é evidente. Isso não impede que muitos dos mais acérrimos proponentes e oponentes do uso do véu ignorem, de modo recorrente, o primeiro aspecto. Opções estilísticas — simplificando, uma escolha entre a minissaia e várias formas de encobrimento — tendem a ser tomadas ora como símbolos de um “ocidente” decadente e desorientado ou de um “oriente” atávico e despótico. São vistas como expressões de (i)moralidade, de identidades colectivas concorrentes, cristalizadas por uma trajectória histórica sem espinhos. Tornaram-se poderosas armas de arremesso político, como se detivessem alguma propriedade mágica para transformar realidades políticas e socioeconómicas desagradáveis. Como se não fossem também formas de expressão individual decorrentes de uma miríade de motivações. Num contexto de gradual integração europeia da sociedade búlgara, com várias transformações sociais, políticas e económicas associadas, estas questões tornaram-se ainda mais visíveis. Um caso singular protagonizado por duas adolescentes em Smolyan, junto à fronteira com a Grécia, espoletou um debate nacional em 2006. Perante a sua vontade em juntar um hijab ao vestuário escolar, foram proibidas de o fazer, por autoridades locais e nacionais. Em razão da sua persistência e do envolvimento de organizações não governamentais, como a União para a Cultura e Desenvolvimento Islâmicos que se dirige essencialmente aos pomaks (descendentes de búlgaros que se converteram ao islão durante o domínio otomano), o ministro da Educação apropriou-se do argumentário esgrimido em França para sustentar a sua posição. Uma queixa foi depositada na comissão búlgara de protecção contra a discriminação. Como em muitas outras situações, a linguagem dos direitos humanos e da liberdade de expressão foi usada como justificação pela União para contrariar a interdição do véu. Após décadas de políticas de “assimilação” forçada e de limitação religiosa por parte do regime comunista, o problema era colocado como sendo de liberdade. Os direitos religiosos sobrepunham-se aos direitos das mulheres. O problema da igualdade de género emergiu nos debates, mas foi consistentemente desvalorizado pelas partes em disputa. O caso em questão foi aproveitado para promover formas mais comprometidas de pertença religiosa, ou mesmo de reforço de uma visão “purificada” desta. Várias publicações, produzidas para a população pomak, eram claras na afirmação das obrigações morais das mulheres (por exemplo, estrita obediência à hierarquia religiosa e às suas interpretações das escrituras) e na dimensão pecaminosa de não se cobrirem. A polícia da fé era também a polícia da moda. O véu não era apenas um símbolo (como seria a cruz). Acima de tudo era tomada como um dogma religioso e um elemento constituinte de uma relação individual com o divino. A estrita observância a ambas, para além do mais, significava a recusa da decadência ocidental, simbolizada pelo uso generalizado da minissaia, inclusive nas regiões pomak. Como em muitas outras circunstâncias, as forças nacionalistas e conservadoras não enjeitaram a oportunidade. As comunidades muçulmanas seriam as responsáveis pelas árduas condições sociais e económicas que decorreram da “transição” política. A associação da pobreza a regiões pomak (sempre essencializadas de um ponto de vista cultural) foi explorada com insistência. Para gáudio destes e de outros grupos, seguramente desconfortáveis com a comunhão de opinião, em 2006, a dita comissão apoiou a decisão do ministério, chegando a punir a União por incitar à conflitualidade étnica. A possibilidade de banir qualquer símbolo religioso em escolas gerou uma contestação significativa, ironicamente proveniente em larga medida dos sectores cristãos maioritários. Em 2016, a Bulgária baniu o uso público de niqabs e burqas, numa proposta liderada pela coligação nacionalista da Frente Patriótica. O argumento securitário, incluindo o da maior visibilidade dos sistemas de vigilância pública, foi avançado como fundamental. O que foi prontamente disputado, entre outras vozes críticas, pela Amnistia Internacional, que considerou a medida uma clara violação dos direitos da mulher à liberdade de expressão e de religião. De pouco serviu. Nem “robôs islâmicos”, nem “objectos sexuais”Em 2005, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sancionou positivamente a proibição dos véus nas universidades turcas. Leyla Sahin, oriunda de uma família praticante, confrontou a Universidade de Istambul com a sua vontade de usar o véu na vida escolar. Foi proibida de o fazer, em Fevereiro de 1998, apesar de invocar a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, nomeadamente os artigos que garantem a liberdade de profissão de fé, proibição de discriminação e liberdade de expressão. Sahin personificou — tal como, décadas antes, Sule Yüksel Senler, jornalista, activista e autora do romance de culto sobre o assunto Huzur Sokagi (Rua da Serenidade) — o que um especialista intitulou “feminização simbólica da política de direita”. Em 2008, tornou-se parlamentar, como representante do Partido da Justiça e do Desenvolvimento turco (AKP), de Recep Tayyip Erdogan. O apoio do tribunal europeu deveu-se em parte ao facto da conciliação do uso obrigatório do véu por questões religiosas, e enquanto decorrência de liberdade de expressão, com os princípios de igualdade de género, pilar declarado, mas escassamente protegido, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ser vista como improvável. Também em 2008, o AKP aprovou duas emendas constitucionais, ratificadas pelo então presidente Abdullah Gül, com o objectivo de revogar a proibição do uso do véu no ensino superior e no sector público, que fora decretada pelo Tribunal Constitucional em 1989. Tal ocorreu com o apoio do Partido do Movimento Nacionalista, um partido de extrema-direita, ultranacionalista. Para regozijo do principal opositor político do processo, o Partido Republicano do Povo (advogado de preceitos secularistas e que encarava as emendas como demonstração dos verdadeiros objectivos do AKP, ou seja, a islamização do regime político), o Tribunal Constitucional anulou essas emendas. Essa decisão, é óbvio, não implicou o esmorecimento do tema. O impasse continuou, sempre num contexto de um ambíguo processo de potencial adesão à União Europeia, que certamente condicionou a “controvérsia do véu”. No seio deste debate, um movimento particular não recebeu o protagonismo que talvez merecesse. Tratou-se de uma iniciativa intitulada “Nós Olhamos Umas Pelas Outras”, que procurou romper com a partidarização calculista do assunto. Fruto de uma coligação de extracção ideológica diversa, criada precisamente em 2008, entre sectores feministas, grupos LGBT e activistas religiosos (nomeadamente a ONG islâmica Organização para os Direitos das Mulheres Contra a Discriminação), o movimento declarava recusar o conjunto de estereótipos públicos que tornavam as mulheres que usavam o véu ou em “robôs islâmicos” ou em “objectos sexuais”. Ou “ignorantes, fanáticas, maliciosas” ou “exibicionistas, sedutoras”. Num caso, recusavam o racismo associado; no outro, o sexismo. A nota de imprensa era clara: “Nós, mulheres, crentes e não crentes, veladas ou não, mulheres que agem de acordo com os direitos e liberdades das mulheres, nós somos contra os que dizem: ‘Se tu existes, então eu não’. ” E continuava: “Nós, as mulheres, rejeitamos o controlo sobre os nossos corpos em nome do modernismo, do secularismo, da república, da religião, da tradição, dos costumes, da moralidade, da honra ou da liberdade. ” Uma citação de Hannah Arendt, “Ignorar uma pessoa condu-la a duvidar da sua própria existência”, encerrava o esclarecedor texto. Sem perder o alcance eminentemente político, a estratégia passava por despolitizar a identidade, não deixando que a discussão ficasse entrincheirada nas antigas disputas entre mundividências “kemalistas” e “islâmicas”. As primeiras, geradas pelo reformismo de Mustafa Kemal Atatürk contra o passado otomano e a favor de uma relativa “ocidentalização” da sociedade turca desde a fundação da República, em 1923, tendem a reduzir a questão do véu a um mero instrumento de incompatibilidade “cultural”. Se nas primeiras décadas da República, marcadas pela abolição do califado e da Sharia e pela chamada Lei do Chapéu, que substituiu o fez ou tarbush, o desvelar era tomado como uma recusa da tradição e do ruralismo empobrecedor, em finais do século, o velamento era tomado como um desafio simbólico à autoridade estatal. As segundas, forjadas na tensa acomodação do islão a um contexto secularista, numa sociedade maioritariamente muçulmana (sunita), tendem a interpretar e a promover o velamento como demonstração clara de lealdade religiosa e compromisso cultural. Talvez seja um truísmo necessário dizer que, ao longo do tempo, o significado e as práticas do velamento mudaram consideravelmente. Há usos do véu que procuram o apagamento das conotações religiosas. Outros revelam de modo claro o abandono da suposta sobriedade “tradicional” no que diz respeito às cores e padrões. Este movimento feminino procurava evitar deixar-se prender no atoleiro do “choque de civilizações” e da política do medo e do controlo social. Mas o delicado encontro de opiniões por parte dos sectores coligados enfrentou vários desafios. E soçobrou. A pressão de sectores religiosos ultraconservadores contra o envolvimento da comunidade LGBT no movimento foi um deles. Outro foi o apoio que alguns dos grupos muçulmanos que dele faziam parte concederam às intoleráveis palavras de Selma Aliye Kavaf contra a homossexualidade, proferidas em 2010, enquanto era ministra dos Assuntos das Mulheres e da Família pelo AKP. Estes factores, entre outros, resultaram na marginalização do “Nós Olhamos Umas Pelas Outras” no interior do movimento feminista, predominantemente kemalista. Mas o seu insucesso não deve implicar a desvalorização do que mostraram ser concebível: outras possibilidades e caminhos de interrogação da “controvérsia do véu”. Talvez menos apelativas para a propaganda e os zelotes de serviço, mas certamente mais rigorosas e humanas. Fé, piedade, privacidade, disfarce, autodefesa, negação. . . Estudos recentes sobre a questão do véu em África revelam aspectos comuns. O significado e o sentido das práticas de velamento variam historicamente, social e geograficamente. Por exemplo, dinâmicas reformistas na educação ou momentos de significativa transformação político-económica suscitam novas codificações e re-significações do seu uso. Essas práticas decorrem ainda de múltiplas motivações e propósitos, muitas vezes reduzidos a interpretações superficiais e facciosas. Em Zanzibar, onde os usos do véu têm uma longa história pré-colonial e remetem para dinâmicas de distinção social complexas, a revitalização da prática do niqab, em substituição do tradicional buibui, parece estar mais associada a formas de estetização do quotidiano e a mecanismos de preservação da privacidade do que a processos de intensificação de fidelidade religiosa. Nada disto obsta à identificação de um padrão semelhante por todas as regiões com presença muçulmana significativa em África e pelo Médio Oriente, demonstrando ligações religiosas difíceis de desprezar. A circulação das normas religiosas percorre caminhos similares às das normas e opções estéticas e de estilo de vida, ainda que com algumas diferenças óbvias. Para os refugiados Oromo (oriundos da Etiópia), no Quénia, o véu preto (abaya) também permite mecanismos sociais tendentes à preservação da privacidade. O disfarce possibilita estilos de vida de outro modo menos exequíveis (sair à noite, por exemplo) ou encena uma superficial integração, facilitadora de oportunidades sociais várias num contexto desfavorável e estranho. Tem ainda a vantagem de dificultar a vigilância de agentes etíopes infiltrados nos campos e fora deles. No Senegal, a justificação dos usos do véu pelas mulheres oscila entre a obrigação da fé e o livre exercício de escolha e autonomia individual, num processo de negociação de papéis sociais e familiares. Na Nigéria, os usos do véu resultam de uma tentativa de diminuir a vulnerabilidade social e “moral” das mulheres, sem deixar de estar associado a afirmações estéticas. É ainda imperioso acrescentar que, como em muitas outras geografias e contextos, as práticas de velamento não são necessariamente constantes, diárias. Ajustam-se a circunstâncias sociais, às suas recompensas e aos seus riscos simbólicos e materiais. Não podem ainda ser interpretadas como significando a ausência de disputas, por vezes acérrimas, no interior de comunidades muçulmanas sobre os pressupostos e o impacto do uso do véu. Este último é por vezes objecto de fortíssima contestação, em função de posições sociais ou diferentes pertenças étnicas, por exemplo. As distinções entre mundos urbanos e rurais é a este respeito muito importante. Acresce ainda que as práticas de velamento não parecem determinar, em si mesmo, qualquer grau de autonomia ou dependência social das que as observam. Ler nelas, necessariamente, expressões de total independência ou, pelo contrário, de subjugação é escassamente confirmado pelas investigações empíricas disponíveis. O riquíssimo livro colectivo coordenado por Elisha P. Renne, Veiling in Africa, é esclarecedor em todos estes sentidos. As modas e as práticas do velamento resultam de relações dinâmicas, por vezes paradoxais e amiúde pouco claras, entre religião e política, “ética e estética”, “piedade e beleza” e “sobriedade e atracção”. Entre relativa autonomia e submissão, podemos acrescentar. Tudo isto atravessado por dimensões geracionais, educacionais, económicas, de estatuto social, entre outras. Com notórias diferenças, só compreensíveis quando descemos aos contextos locais e os compreendemos comparativamente e na sua intersecção com processos que os extravasam, muitas das dinâmicas de descarada instrumentalização política e de distorção interpretativa identificadas nestes três casos são comuns a muitos outros associados à questão do velamento. As “novas” mulheres “novas”Foi contra estas tendências que Joan Wallach Scott escreveu The Politics of the Veil (2007). Figura central da historiografia contemporânea, não apenas por ter insistido na centralidade da questão de género na problematização histórica, Scott debruçou-se sobre a intensa polémica que se instalou em França, em 2004, a propósito do uso do véu nos estabelecimentos escolares. Insuspeita de qualquer simpatia pela prevalência de sociedades patriarcais e reconhecidamente empenhada na luta contra as desigualdades de género, a autora obriga-nos ao desconforto de repensar respostas fáceis a problemas complexos. Desde logo, recusando um uso essencialista e a-histórico dos conceitos. Por exemplo, a usual distinção entre “tradição” e “modernidade” que acompanhou todo o debate é solidamente questionada. É-o com recurso a um exercício simples, mas em grande medida ausente neste debate público: como é que as adolescentes que pretendiam usar véu nos espaços públicos justificavam a sua decisão? Ao contrário do que se possa pensar, muitas delas faziam-no contra a vontade dos pais e dos círculos familiares próximos. Outras porque encontravam no gesto a recuperação de uma espiritualidade que julgavam perdida. As motivações não eram homogéneas. Essa recusa de se enredar em essencialismos não resulta apenas de uma razão heurística: ela existe porque o uso de abstrações decorre de lógicas de natureza política, eivadas de nacionalismo e discriminação. A necessidade de evitar acusações de discriminação numa base étnica ou religiosa fez com que o próprio articulado da lei de 2004 proibisse o uso de qualquer símbolo religioso ostensivo, potencialmente afectando cristãos ou judeus. Mas a oposição entre laicidade e confessionalismo, que inflamou a opinião pública francesa, respondia claramente à crescente islamofobia no país. Os próprios ciclos de erupção da discussão do véu respondiam a agendas de natureza política orientadas em função da questão muçulmana: a ascensão da Frente Nacional nos anos 80, a possibilidade de um governo fundamentalista argelino nos 90, e o contexto posterior ao 11 de Setembro de 2001. Em todos estes casos, a pressão proveniente da extrema-direita levou, voluntária ou involuntariamente, os sucessivos governos de centro-direita ou centro-esquerda, a incorporar alguns dos argumentos das franjas (o que se está a tornar recorrente nos dias que correm, diga-se). O véu, que não tapa o rosto, o niqab ou a burqa passaram a ser tudo uma e a mesma coisa. O mesmo sucedeu com palavras como “imigrante”, “árabe” ou “muçulmano”. O véu, ao mesmo tempo, unifica e dispersa. Os que o usam são fechados numa “comunidade” projectada como inimigo interno e externo, descontrolada, insidiosa. Esses “indesejáveis”, mais ou menos definidos, foram amalgamados num grupo inassimilável, independentemente de sondagens, à época, mostrarem que apesar de a maioria ser contra a proibição, não era necessariamente favorável ao uso do véu. Dispersa, no sentido em que os múltiplos usos quotidianos, as diversas motivações políticas, religiosas, estéticas, os vários condicionamentos económicos e sociais são indistintamente agrupados num único e poderoso símbolo, que tudo explica e determina, “o véu”. Lendas sobre o secularismo, donde decorreria o compromisso da República com a igualdade de género, foram retroprojectadas no passado, não obstante as limitações ao sufrágio universal feminino até 1945 e a persistência de escolas separadas por sexo até bastante tarde. A guerra “cultural” foi tão longe quanto desvalorizar o problema evidente das profundas desigualdades desenhadas ao longo de linhas raciais e religiosas. Ou ao ignorar que, por exemplo, a melhor forma de combater formas de opressão das mulheres seria precisamente através da escola, a mesma escola que podia agora ser vedada na decorrência da nova lei. Os mesmos que decretam o fim das ideologias em nome de um “choque de civilizações” revelam-se lestos a ignorar as consequências práticas do chauvinismo em marcha. Entenda-se, a escolha não é entre a apologia do véu e uma qualquer defesa irredutível da “tradição” e, por outro, a interdição de qualquer manifestação de diferença cultural, definida em função de uma “modernidade”, também ela imaginada. Trata-se, antes, de promover um debate política e historicamente informado, onde aos principais visados e visadas lhes seja dada voz. Centrais nesta história, os legados da França imperial. A articulação da “missão civilizadora” francesa com a edificação de estereótipos e preconceitos em torno da organização familiar, de género e da sexualidade das populações muçulmanas é tão longa quanto a conquista e ocupação da Argélia, na primeira metade do século XIX. As sociedades magrebinas eram tidas como particularmente lúbricas e viciosas. É uma história que se estendeu até à Guerra da Argélia, quando o véu e a poligamia eram apresentados como sinónimos do obscurantismo promovido pelo nacionalismo da Frente de Libertação Nacional. A tutela modernizadora de uma “Argélia francesa” seria a última oportunidade da mulher emancipada. De resto, estas imbricações entre género e diferença cultural podem ser encontradas em muitas histórias imperiais europeias, da abolição do Sati (a prática de queimar viúvas juntamente com os maridos recém-falecidos), na Índia do século XIX, à consolidação de uma representação da família africana como sendo marcada por uma divisão desigual do trabalho, que acabaria por legitimar várias formas de trabalho compelido masculino. Mas esta não é uma história redutível ao moderno colonialismo europeu. A constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, por exemplo, levantou novos problemas ao recém-constituído governo bolchevique, principalmente nos Estados da Ásia Central. Também aqui, a oposição entre “obscurantismo islâmico” e “modernidade”, especificamente socialista, se manifestou agudamente. A necessidade de criar uma “Vida Nova” com uma “Mulher Nova” tinha de confrontar o putativo atavismo das populações locais. O potencial do “véu” como gatilho simbólico foi calculado. Quando, em 1927, foi lançado pelo Partido Comunista da União Soviética aquilo que foi designado como o Hujum (ataque), no Uzbequistão, milhares de mulheres foram incitadas a queimar publicamente os seus véus (paranjis), iniciativas apresentadas pelas autoridades como actos de livre vontade. Tal supostamente resultava do papel esclarecido que desempenhavam os seus militantes e de uma política mais vasta que pretendia educar e trazer ao espaço público as mulheres uzbeques. Mas, mais uma vez, as subtilezas são cruciais. Antes do lançamento do Hujum já algumas mulheres se tinham mobilizado para largar os seus paranjis, fazendo parte de um grupo mais vasto de reformadores sociais e clérigos que entendiam que o uso do véu representava uma distorção da Sharia. Aliás, como sucedia ao mesmo tempo em movimentos similares, patrocinados pelo Estado em países como a já referida Turquia, o Irão ou o Afeganistão. A luta das autoridades soviéticas não era apenas contra o mullahs conservadores, mas também contra estes proponentes de uma “modernização” diferente. A afirmação do poder do novo Estado soviético não foi um factor de importância desprezável nesta batalha pela “secularização”, que envolveu coacção e violências várias que obrigaram mulheres a queimar os seus paranjis em cerimónias públicas (sendo que muitas delas logo o voltaram a usar, pelo menos em privado). Com violência responderam também clérigos e homens uzbeques que, no rescaldo da Hujum, assassinaram mais de 2 mil mulheres que tinham largado o véu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A tentação de criar uma “mulher nova” não foi, no entanto, exclusivamente socialista ou colonial. Nem foi sempre uma forma de imposição de normas sociais pelo Estado. No contexto da Coreia ocupada pelo Japão no início do século XX, a afirmação da mulher num espaço em profunda transição, tanto nos campos como nas cidades, graças às políticas imperiais de modernização e de abastecimento alimentar da metrópole, assumiu contornos de particular relevo, especialmente em face do importante cisma em torno da soberania coreana. Por exemplo, nos anos 20, quando algumas mulheres coreanas decidiram adoptar um corte de cabelo curto (bobbed air) como forma de afirmação do seu espaço social, foram visadas pelas críticas tanto dos nacionalistas coreanos, que as acusavam de distorcer os papéis tradicionalmente atribuído aos géneros e com isso colocar problemas à afirmação nacional, como de uma estranha coligação entre estes e as autoridades imperiais japonesas, unidos pelo temor à ocidentalização. As disputas estendiam-se a outros aspectos, do controlo da natalidade e das práticas de casamento precoce à produtividade das mulheres, passando pela multiplicação de folhetins eróticos na sociedade coreana. Nacionalistas anticoloniais e imperialistas, de formas e com resultados diferentes, não deixaram de mobilizar um importante aparato retórico que essencializava factores culturais como legitimadores de um determinado lugar social da mulher. Em suma, a interconexão entre aquilo que é esperado serem os papéis do género e os discursos sobre a “tradição” e a “diferença cultural” tem uma profunda história, e manifesta-se globalmente, em diferentes contextos. Num momento em que termos como “integração” e “assimilação” parecem ganhar nova vida, apesar do seu passado questionável, estudar a história desta relação, os seus usos instrumentais, o carácter poliédrico das disputas que cada um deles encerra, pugnar por uma visão democrática que, sem descurar princípios, não ignore as consequências práticas de cada medida, recusar essencialismos e realmente escutar aquelas que mais têm a perder (e a ganhar), talvez não seja pedir demais. Os autores da série História(s) do Presente são investigadores do Centro de Estudos Sociais — Universidade de Coimbra. Através da revisitação crítica de 12 livros, ao longo de 12 meses, a série História(s) do Presente recupera um conjunto de processos históricos que modelaram inequivocamente o nosso presente. Da longa persistência de modelos de organização concentracionária em “campos” durante o século XX, à recorrente ameaça, proveniente de vários sectores, sobre os fundamentos racionais do conhecimento, passando pelas preocupações relativas ao crescimento demográfico ou à sustentabilidade do planeta, a série oferecerá ao leitor uma visão mais poliédrica dos passados que construíram o mundo como o conhecemos hoje. Para acompanhar sempre no primeiro domingo de cada mês, no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Canadá pede desculpa por não ter evitado a morte de 254 judeus
Em 1939, o Canadá rejeitou o desembarque de um navio com 907 judeus alemães que fugiam ao regime nazi. O navio foi obrigado a regressar à Europa, e pelo menos 254 passageiros morreram em campos de concentração. (...)

Canadá pede desculpa por não ter evitado a morte de 254 judeus
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em 1939, o Canadá rejeitou o desembarque de um navio com 907 judeus alemães que fugiam ao regime nazi. O navio foi obrigado a regressar à Europa, e pelo menos 254 passageiros morreram em campos de concentração.
TEXTO: O primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau pediu desculpa em nome do Canadá por, em 1939, o país ter rejeitado o desembarque de um navio que transportava 907 refugiados judeus que tentavam fugir da Alemanha Nazi. O navio alemão MS St Louis e os seus passageiros já tinham sido igualmente rejeitados por Cuba e pelos Estados Unidos. Sem autorização para desembarcar, o navio regressou à Europa. Após o retorno, 254 passageiros acabariam por ser assassinados durante o Holocausto. "Lamentamos a insensibilidade da resposta do Canadá. Recusámos ajudá-los quando podíamos tê-lo feito. Contribuímos para selar os destinos cruéis de muitos deles em lugares como Auschwitz, Treblinka e Belzec. E por isso, pedimos desculpa", declarou o primeiro-ministro canadiano, na quarta-feira, durante o seu discurso na Câmara dos Comuns, em Ottawa. Apesar de terem conseguido vistos par entrar no Reino Unido, Holanda, Bélgica e França, os passageiros do navio acabaram por não conseguir escapar aos campos de concentração nazis. “Pedimos desculpa às mães e pais das crianças que não salvámos e às filhas e aos filhos dos pais que não ajudámos. Não restam grandes dúvidas de que o nosso silêncio permitiu que os nazis avançassem para a sua ‘solução final’ em relação ao que chamavam de ‘problema judaico’”, acrescentou, citado pelo Guardian. "Usámos as nossas leis para mascarar o nosso anti-semitismo, a nossa antipatia, o nosso ressentimento", disse Trudeau. “Lamentamos a insensibilidade da resposta do Canadá. E sentimos muito por não ter pedido desculpas mais cedo. ” Escreve o New York Times que, entre 1933 e 1945, o Canadá concedeu asilo a 5 mil judeus. Um número muito inferior aos 70 mil refugiados aceites por Inglaterra e os 200 mil aceites pelos Estados Unidos. O primeiro-ministro acrescentou ainda que, após o recente massacre numa sinagoga norte-americana, os judeus canadianos se sentem novamente “vulneráveis”. Descrito como o mais “mortífero ataque à comunidade judaica norte-americana”, o tiroteio na Pensilvânia fez 11 vítimas. “Estes trágicos acontecimentos recentes mostram que ainda temos trabalho a fazer”, vincou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Antes do discurso, o primeiro-ministro canadiano esteve reunido com Ana Maria Gordon, uma das passageiras sobreviventes do navio a que o país negou desembarque, e que agora vive no Canadá. No último ano, Justin Trudeau pediu também desculpa à comunidade LGBTQ pelo sofrimento causado pela acção do Governo do Canadá ao longo dos anos.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave concentração ataque comunidade
De sofá em sofá na Terra Santa
Um casal com um bebé a fazer couchsurfing em Israel e na Palestina? Parece loucura, mas é a forma mais fascinante de viajar. Com a família, à descoberta de templos, praias e iguarias nos sofás de judeus e árabes. (...)

De sofá em sofá na Terra Santa
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um casal com um bebé a fazer couchsurfing em Israel e na Palestina? Parece loucura, mas é a forma mais fascinante de viajar. Com a família, à descoberta de templos, praias e iguarias nos sofás de judeus e árabes.
TEXTO: Todas as manhãs, o velho Youssef vai ao jardim colher ervilhas. Chegado à sala, onde da salamandra ainda emana o calor da lenha da madrugada, coloca as vagens num alguidar e começa a descascá-las para a Lia, a nossa filha de 15 meses. Depois, sentado na poltrona de que é dono e senhor, pega-a ao colo com a suavidade que só os avôs sábios sabem ter e vai-lhe passando, um a um, os grãos verdes brotados em terra palestiniana. Na mesa, há chá, pão e labneh, um dos queijos mais antigos do mundo, temperado em azeite. Estamos em Beit Ummar, uma vila a escassos quilómetros de Hebron, a cidade mais problemática da Cisjordânia, onde os muros da escola têm pintadas as caras dos mártires adolescentes caídos durante a Intifada. Mas em casa de Youssef respira-se tranquilidade. Ele, a mulher e os cinco filhos tratam-nos como parentes, deram-nos um quarto alcatifado e até montaram uma rede de baloiço para a Lia no quintal. Do terraço, a que Youssef insiste em levar-me todos os fins de tarde, vê-se o Mediterrâneo que banha Telavive, que ele bem conhecia quando, enquanto camionista, transportava frutas e legumes para Gaza. Depois da construção da barreira de separação entre Israel e a Cisjordânia, em 2003, o mar ficou reduzido a uma linha no horizonte que só daqui pode vislumbrar. À noite, visitamos a sua filha mais velha e o neto no campo de refugiados de Al-Arroub. Existe há 70 anos: já não é um acampamento, é bairro de tijolo e cimento. Ignorando os dois soldados armados que patrulham a entrada, a Lia e o pequeno Ahmed pulam, descontrolados, nos sofás arabescos. Mais um serão nos territórios ocupados. Nove folhas arrancadas ao calendário e estamos em Netanya, 30km a norte de Telavive, com Gilad, engenheiro hidráulico, a acender uma vela e a entoar um harmonioso cântico para dar com a família as boas-vindas a mais um shabbat, o dia de descanso semanal no calendário judaico. À mesa, a acompanhar uma deliciosa sopa de lentilhas, frango e massa, somos brindados com uma história familiar contada pela mãe de Gilad, que veio nascer a Israel porque os pais fugiram da Alemanha logo nos primeiros anos da ascensão nazi. Foi nessa época, no início dos anos 1930, que os pioneiros sionistas ergueram Netanya a partir de dunas arenosas, irrigaram-na, cultivaram-na e transformaram-na ao longo das décadas numa das maiores cidades de Israel e sede de algumas das principais empresas tecnológicas. Julia, mulher de Gilad, alemã ateia como Ilka, a minha namorada, é relações públicas no Ebay. As três filhas do casal são evidências da ironia da história: judias alemãs, com avós carrascos e vítimas da Segunda Guerra Mundial, falantes de hebraico e alemão. Filhas do Holocausto, mas também de Israel 2. 0. , país que mais incuba startups depois dos EUA. Gilad gosta que o acompanhemos a passear o cão na zona agrícola que circunda a sua vivenda, decorada com dezenas de bandeirinhas de Israel, assinalando o 70. º aniversário da nação hebraica. Explica-nos a complexa engenharia necessária para irrigar esta região árida e, no topo de um barranco, aponta-nos a pujante expansão de Netanya, que com as suas torres espelhadas ameaça transpor a barreira da autoestrada para engolir este arrabalde bucólico e sereno. A cidade, habitada por um mosaico étnico que vai desde eslavos a etíopes, transformou-se numa das maiores estâncias balneares do país. Os seus 14km de costa de areia fina, praias animadas com campos de futebol, basquete, vólei, skateparks, ginásios e esplanadas, são um chamariz para o turismo interno e além-fronteiras, com destaque para russos e franceses. O mar é tranquilo e tépido. Só a silhueta dos arranha-céus nas falésias macula o cenário. Sábado é dia de piquenique. Orgulhoso do percurso do seu país, Gilad leva-nos até aos jardins de Ramat HaNavid, um memorial ao Barão Edmond de Rothschild, que ao adquirir terras a árabes nesta zona, pantanosa e infestada de mosquitos maláricos, se tornou num dos percussores do sionismo - “O Famoso Benfeitor”, como é conhecido. Para além da faceta histórica, o jardim é de uma beleza exuberante, com centenas de espécies de flores, árvores e ervas aromáticas a salpicarem estátuas e fontes aos pés do Monte Carmelo. Lia, que há uns dias brincava com árabes num campo de refugiados, corria agora com três meninas judias diante do túmulo de um dos homens que abriu caminho para a fundação de Israel e para a expulsão dos palestinianos em 1948. Brincar da mesma maneira com israelitas e palestinianos que, geralmente, nunca têm a possibilidade de coexistência. Esse é o privilégio de qualquer criança estrangeira que pisa estas terras. E a forma de mostrar que a inocência vem antes do preconceito. Este acesso à vida familiar de judeus e muçulmanos não estava previsto. Poucos dias antes do voo para Telavive, fomos surpreendidos pelos preços exorbitantes dos hotéis em Israel num mês de Abril carregado de festas e feriados – Pesach (celebração do êxodo dos judeus do Egipto para Israel), Páscoa, Shoah (Dia Memorial do Holocausto) e o Dia da Independência. Íamos viajar um mês e, com aqueles valores, rebentaríamos o orçamento em menos de uma semana. Assim, tivemos de procurar alternativas. O couchsurfing surgiu à cabeça: ambos já o tínhamos experimentado com bons resultados mas, desta vez, íamos com a bebé. Estariam os anfitriões disponíveis para aceitar o choro nocturno de uma criança? Para apanhar os cacos de copos e bibelôs partidos? Na pesquisa, descobrimos que havia um parâmetro “children-friendly”. E que alguns dos anfitriões até tinham catraios em casa. Foram esses que receberam primeiro os nossos pedidos. Sem saber, estávamos a ingressar numa viagem pelos lares da Terra Prometida: a melhor maneira de conhecer diferentes pessoas e culturas, comidas e monumentos, opiniões políticas e religiosas, enfim, entender a viagem. E entreter a Lia. Não foi fácil explicar esta opção aos familiares. Já uma ida à região numa altura em que os telejornais mostravam as manifestações em Gaza era difícil de conceber. Mais ainda, eliminando o conforto para pernoitar em sofás de estranhos. Mas quem já esteve no país sabe que, evitando-se as áreas conflituosas, se trata de uma zona segura. Longe de nós colocar a nossa filha numa situação arriscada. Quanto aos sofás, revelaram-se mais confortáveis do que muitos quartos de hotel. A vasta varanda do apartamento de Moishe Kerber, de 28 anos, era razão suficiente para termos ido a Israel. Fica na Rua Levinski, no sul de Telavive, numa zona marginalizada mas em rápida transformação graças ao processo de gentrificação que se alastra do vizinho bairro hipster de Florentin. Tem três sofás velhos, uma mesa com um tabuleiro de xadrez, várias garrafas de cerveja vazias e plantas em vasos lascados. Mas não era a decoração que a embelezava: era a brisa morna que a varria e os sons que lhe chegavam das buzinas e das melodias do Médio Oriente. A casa de Moishe não estava na lista de receptividade para crianças. Ele, solteiro, produtor de televisão, amante de whisky e bicicletas, acudiu a um pedido de alojamento que publicámos numa página de Telavive no Facebook. Filho de pai russo e mãe americana, cresceu em Indiana, nos EUA, optando por Telavive para iniciar a vida adulta. Frequentou o exército, como todos os israelitas, e participou na guerra em Gaza em 2014. Este era um tema que o incomodava – confessou ter perdido amigos mas não se estendeu sobre as suas acções enquanto militar. Guardava uma bala e óculos de visão nocturna. A sua inaptidão inicial com a Lia terminou com os dois a jogarem futebol no terraço. Telavive é uma bolha de liberdade e de laicismo no Oriente Próximo. À “cidade branca”, património mundial pelos seus edifícios de arquitectura Bauhaus, confluem ateus e pecadores, gays e intelectuais, empreendedores e pacifistas. Podem ser vistos a passear de trotineta e de auscultadores no jardim central da Avenida Rothschild, numa festa bissexual de uma discoteca árabe em Jafa ou de biquínis reduzidos e tatuagens na praia. “A praia é o lugar a que toda a gente vai depois do trabalho”, diz Moishe. “Uns calções de banho e uma prancha de surf fazem parte dos equipamentos indispensáveis a qualquer morador desta cidade. ” É, portanto, o melhor ponto de partida para conhecer a capital de Israel. Um mergulho nas águas cálidas, enquanto a Lia roubava baldes e ancinhos a outras crianças, auspiciava um mês épico. A sul, as praias têm menos gente, enquanto as do norte são mais populares. No milenar porto de Jafa, bons restaurantes de peixe escondem-se em vielas misteriosas, encimadas pela mesquita Al-Bahr (Mesquita do Mar), onde as mulheres dos pescadores árabes rogavam o seu regresso da faina. Após um sumo natural de romã, o passeio prosseguiu no charmoso bairro de Neve Tzedek, que já cá estava antes de Telavive nascer, há 109 anos. Há várias galerias, pequenas livrarias e esplanadas que servem vinho de qualidade. Daí, uma caminhada de 15 minutos levou-nos ao mercado de Carmel, o epicentro da vida comercial em Telavive. Tudo se compra e tudo se vende: morangos carnudos, grão-de-bico para o húmus, pão quente, queijo de cabra e muitos vegetais frescos, com uma prevalência de beringelas. Há ainda t-shirts e quadros com Donald Trump e Vladimir Putin vestidos de mulher. Telavive não perde uma oportunidade para se assumir como capital da tolerância numa região conhecida pelas restrições às liberdades individuais. O Parque Yarkon, a norte, junto aos museus Palmach (história/política) e Eretz (arqueologia) faz as delícias das crianças com dezenas de parques infantis e gaivotas para navegar no rio. Perto de casa, o mercado gastronómico de Levinski oferecia uma excelente selecção de queijos frescos, azeitonas e especiarias e ainda pequenos restaurantes com húmus e falafel divinais. Ao fim da tarde, a esplanada do Toni & Esther enchia-se de clientes ávidos de aperitivos e de cerveja nacional em horário promocional. Moishe chegava do trabalho todas as noites pelas 23h. Sentávamo-nos nos sofás descarnados a discutir a actualidade de Israel em animadas tertúlias sobre política e religião, em que o meu anfitrião me elucidava sobre pormenores para os quais eu não encontrava explicação. Era um dos interlocutores mais isentos e esclarecidos que jamais encontrara no país. Explicou-me as razões de os judeus ortodoxos estarem livres de serviço militar, a simbologia da indumentária das diferentes correntes judaicas (“os sionistas usam quipá azul”), como é que nasceu um batalhão transexual no exército, o que se celebra em cada feriado. Naquela varanda, aprendi mais sobre Israel do que na minha estadia anterior. Escolhemos mal o dia para chegar a Haifa. É feriado, último dia de Pesach, não há transportes públicos e escasseiam os táxis, pelo que tivemos de empurrar o carrinho de bebé encosta acima até ao apartamento de Dima e Schlomit, os nossos cicerones. Há cidades íngremes e depois há Haifa, que só os deuses impedem de resvalar do Monte Carmelo. Felizmente, o casal reconheceu o nosso esforço e premiou-nos com um jantar comemorativo de borrego e arroz de passas regado com vinho branco, na companhia de um par amigo e de Lenny, o miúdo da casa, de dois anos, que logo quis mostrar à Lia a sua tara por pistas de comboios. Da janela, uma panorâmica do mar rubro ao entardecer. Ali perto, o Mosteiro de Stella Maris, sede mundial dos cristãos carmelitas, assinala a caverna onde o profeta Elias se refugiou na sua luta contra os profetas de Baal. É uma igreja pequena mas extremamente bela, hoje local de peregrinação. Logo em frente, chegam e partem os teleféricos panorâmicos para a costa. No entanto, é a mais recente das religiões monoteístas que ocupa um lugar central na cidade: os Jardins Suspensos de Haifa, ou os Terraços da Fé Bahá'í, desfilam do topo à base da montanha, dispondo jardins coloridos e frondosos por socalcos em redor do Santuário de Báb, percussor desta crença nascida no actual Irão. Descalços e em absoluto silêncio, visitámos o mausoléu, pedindo a Báb que a Lia não acordasse aos berros. Lá fora, a vista desfiava-se pelo bairro da Colónia Alemã até ao mar, delimitada por flores e sebes. Tudo evocava harmonia, equilíbrio e limpeza. Com 15% de árabes, Haifa é uma das cidades mais multiculturais de Israel e isso pode ser visto no Fattoush, um ilustre restaurante palestiniano com aroma a açafrão e vapores de narguilé, ou em Wadi Nisnas, o quarteirão árabe, com um mercado tradicional onde fomos surpreendidos por um carro forrado a carpetes e pelos deliciosos knafehs, um doce à base de queijo, pistácios e uma espécie de aletria, embebido em xarope de açúcar. À hora da oração islâmica, um grupo de árabes – rapazes e raparigas, provavelmente cristãos - deliciava-se com uma sandes de bacon, salame e verduras num talho local, acompanhada por shots de whisky trazidos pelo proprietário, Abdulkarim: “Somos árabes israelitas, solidários com a Palestina mas orgulhosos de viver aqui. Principalmente em Haifa, que é uma cidade que aceita todos os povos e religiões”, diz. De regresso a casa, ficámos a saber mais sobre Dima e Schlomit. Ele veio de Moscovo com a família em 1991, depois da queda da União Soviética, enquanto ela pertencia a um clã religioso originário do Médio Oriente. Aquando do casamento, experimentaram o mesmo problema que afecta milhares de casais hebraicos: apesar de se considerar um Estado democrático e secular, só se podem casar em Israel judeus com as origens devidamente documentadas. Schlomit não teve qualquer problema em fazê-lo. Porém, Dimitri (Dima) e os seus parentes tiveram de ocultar publicamente as suas crenças religiosas durante o regime comunista e não tinham como provar que eram judeus a sério. “Nem queria acreditar quando eu e a minha mãe fomos chamados a um tribunal especial para provarmos que éramos judeus. A ela perguntaram-lhe se sabia falar iídiche [a língua dos judeus asquenazes, do leste europeu] e a mim perguntaram-me quando tinha sido circuncidado. É inaceitável”, afirma Dima. Acabaram por conseguir. Muitos não têm a mesma sorte e preferem fazê-lo em Praga ou em Nicósia. Todas as manhãs, Lenny e Lia ficavam a brincar com os comboios e com os gatos e nós podíamos dormir mais um bocado no sofá. O mundo é um lugar estranho. Estávamos no monte Bental, nos Golã israelitas, com vista desimpedida para a Síria. No dia anterior, a 60km dali, tinha havido um ataque com armas químicas. Mas ali as crianças corriam por entre as flores e os turistas pagavam cinco shekels para ver a Síria por binóculos. Dizem que dá para ver vacas a pisarem minas e a irem pelos ares. Da última vez em que estive na Síria já havia armas mas não minas. As pessoas andavam aflitas mas as vacas pareciam em paz. Meio milhão de sírios já não estão. Guerra total. Horas atrás, aqueles céus tinham sido rasgados por aviões israelitas que bombardearam uma base iraniana. Os de Trump seriam os próximos. A fronteira estava em alerta vermelho. Uma cor a que os israelitas estão habituados: há dezenas a fazer caminhadas, jovens a rezar na montanha e visitantes a beber café na esplanada de um restaurante chamado Coffee Annan (nuvem, em hebraico, mas também um trocadilho com o nome Kofi Annan, do ex-secretário-geral das Nações Unidas). Chegámos a este bizarro mundo de carro alugado, depois de passar por Tzfat, um local sagrado do judaísmo completamente colonizado por ortodoxos e com um centro pejado de edifícios antigos e de galerias de arte judaica. Os Golã são uma espécie de Alpes de Israel – remotos, silenciosos e verdejantes. Terra anexada à Síria em 1967, na Guerra dos Seis Dias, e nunca mais devolvida. Contudo, o ambiente é bem diferente do que se vive na Cisjordânia: os israelitas que aqui residem também são considerados colonos mas não são ideológicos e praticamente não há árabes, só druzos, que gozam de alguma autonomia e se adaptaram bem ao jugo de Telavive. Recebemos guarida na pitoresca moradia de Yosefa e Dudi, no kibbutz de El Rom, que por estar implantado a 1000 metros de altitude tem noites frias só combatíveis com cobertores. Os sexuagenários foram criados em kibbutz – comunidades agrícolas de ideologia sionista e socialista – numa época em que todos recebiam o mesmo salário, as colheitas eram divididas pela comunidade e as crianças viviam juntas na mesma casa. “Hoje é tudo diferente”, diz Yosefa, assistente social, com nostalgia. “O lema era 'trabalha o máximo que conseguires, recebe o que houver'. Mas as pessoas viviam neste sistema capitalista e fartaram-se disso. Hoje ainda há resquícios dessa génese mas quase todos têm trabalho fora de El Rom. ” As famílias do casal pertenciam a dois grupos paramilitares rivais – o Haganah e o Irgun – que ofereceram resistência aos britânicos durante a sua vigência na Palestina e desempenharam um papel preponderante no conflito contra os árabes em 1948. Dudi trabalha hoje na construção de jardins, mas na juventude foi cowboy, chegando inclusivamente a visitar ranchos no Texas. Combateu nos Golã na Guerra de Yom Kippur, em 1973, quando estava noivo de Yosefa, e acabou por trazê-la para a reconstrução do kibbutz entretanto destruído. Ficaram até hoje. A hospitalidade e amabilidade com que nos receberam não correspondem ao estereótipo de vaqueiros e de descendentes de milicianos. Yosefa e Dudi são cultos, viajados e foram extremamente dóceis com a Lia, a quem brindaram com o caixote de brinquedos dos próprios netos. Ele, devoto da gastronomia druza, levou-nos ao Sulthan, um restaurante da vizinhança onde comemos a melhor tehina (pasta de sésamo) de que há memória. Apesar das diferenças étnicas e religiosas, Dudi e o dono do estabelecimento eram grandes amigalhaços. No fim, um knafeh de comer e chorar por mais. El Rom era a base perfeita para percorrer os Golã. Em 15 minutos, estávamos nas magníficas Cascatas de Banias, um jorro de água conduzido desde o colossal monte Hermon, onde no Inverno se faz esqui virado para o Líbano e para a Síria. Ficam ao lado das ruínas da cidade perdida de Dan, antigo feudo de Herodes e onde Jesus, escondido nas cavernas, quis saber dos discípulos o que pensavam dele. Estrada acima, as ruínas da Fortaleza de Nimrod, um bastião com mais de 800 anos que viu mais guerras do que Gengis Khan. Entre o nevoeiro e as rochas, os Golã escondem segredos milenares, mesquitas e sinagogas, ruínas, bunkers, medos e glórias. Na cidade druza de Majdal Shams, onde uma intransponível vedação separa Israel da Síria, as famílias druzas afastadas pela Guerra dos Seis Dias costumavam, antes do advento dos telemóveis, gritar de uma montanha para a outra para anunciarem mortes e casamentos. Ainda hoje há quem vá para o vale de megafone. Deixámos os Golã a caminho do mar da Galileia – esse mesmo, onde, segundo a Bíblia, Cristo caminhou sobre a água – a tempo de umas braçadas antes do cair do sol. Uma luz quente coloria as escarpas dramáticas a leste do grande lago. Já sabia que andar sobre a água só estava ao alcance de um predestinado, mas desconhecia o calvário de passar descalço sobre as pedras pontiagudas da orla. Pernoitámos no tapete de uma escola de ioga em Degania, o primeiro kibbutz de Israel, fundado em 1912, quando 10 homens e duas mulheres se fixaram no local anteriormente ocupado por uma aldeia árabe. Amos deixou a chave escondida à entrada e colchões macios preparados para a Lia. Chegou tarde, vindo de um biscate bizarro: actor de pequenos filmes para uma promissora startup que pretende criar uma base de dados com imagens para todas as situações possíveis – desde sequestros a perseguições de carro – para serem usadas nas redes sociais e em publicidade. Uma nova ferramenta para fake news?Após a Lia ter chapinhado nas águas em que Jesus foi baptizado – e onde turistas de todas as latitudes vêm fazer o mesmo – viajámos a tarde inteira paralelos ao impactante Vale do Jordão, uma bênção de fertilidade no coração do deserto. A maioria dos vegetais que abastecem Israel vêm daquelas várzeas e não surpreendem todos os esforços que Telavive despende para desalojar ilegalmente os agricultores palestinianos. Chegados ao mar Morto, procurámos encontrar uma nesga de terra que não estivesse apropriada por privados, de forma a não pagarmos para boiar nas salgadíssimas águas do lago mais baixo do mundo. Impossível! Não importa: o reservatório está a perder continuamente volume e mais tarde ou mais cedo desaparecerá. A experiência valia os 15 euros. Mas dispensava as excursões de turistas russos e príncipes das Arábias que transformaram o banho numa espécie de pista de carrinhos de choque flutuantes. Exceptuando os dias preguiçosos em Beit Ummar, a nossa base na Palestina foi a casa do chileno Andrés Cuche em Doha, um bairro conservador de Belém. Andrés, voluntário pela causa palestiniana na ONG Saint-Yves, é irmão de um velho amigo de Santiago do Chile e rapidamente nos mostrou as mercearias do bairro – onde os vendedores chegam a oferecer peças de fruta – e os sítios para comprar sandes de falafel a um euro no campo de refugiados de Dheisheh, um dos locais mais gaseados do mundo. As noites eram passadas em castelhano a conversar sobre as questões irresolúveis do conflito israelo-palestiniano. Belém é a localidade mais turística da Cisjordânia. No entanto, poucos são os visitantes que ficam a conhecer a cidade: em Jerusalém, são metidos em autocarros e atirados rapidamente para a Igreja da Natividade, suposto local de nascimento de Jesus, e para a Capela da Gruta do Leite, local que a Bíblia indica como o refúgio encontrado pela Sagrada Família durante o Massacre dos Inocentes, cujo chão ficou para sempre branco quando uma gota de leite caiu do peito de Maria, sendo depois transportados de regresso aos hotéis israelitas. Recentemente, a cidade ganhou mais uma atracção para todos aqueles que se interessam pelo conflito. No Walled Off, o hotel que o artista britânico Banksy fundou de frente para a muro que separa a Cisjordânia de Israel, encontra-se um museu interactivo especializado na história da ocupação, em que os visitantes são confrontados com vídeos explicativos, documentos que ilustram o regime de apartheid vivido pelos palestinianos e destroços retirados de casas destruídas. Destaque para um telefone que toca incessantemente: ao atendê-lo, o visitante é confrontado com a mensagem que os soldados israelitas costumam transmitir antes de se apropriarem de uma residência: “A sua casa vai ser destruída devido a fins militares. Tem dez minutos para sair. ” A recepção do hotel conta ainda com várias obras magníficas do próprio Banksy, que assinou numa parede de Jerusalém o famoso stencil de um manifestante a arremessar um ramo de flores. O muro tem frente e verso. Do lado israelita está o Túmulo de Raquel, sepulcro sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos, agora interdito aos últimos, destino de peregrinação para devotos da Torah. Na parede palestiniana, desenhos de motivações políticas de vários artistas nacionais e internacionais. Entre milhares de inscrições, aquela que se tornou viral: “Make Hummus, Not Wars” (Façam Húmus, Não Muros). Os donos do restaurante Afteem, refugiados de 1948, seguiram este conselho e fazem a pasta de grão de uma forma sublime. À noite, o bar Bandido é ponto de encontro para cerveja e conversa. Belém revelou-se uma excelente plataforma para visitar outras cidades da Cisjordânia. As carrinhas de nove lugares, única forma comunitária de deslocação dentro das áreas sob controlo da Autoridade Palestiniana, demoram mais de uma hora a percorrer os 30km para Ramallah, mas permitem experienciar o quotidiano da vida palestiniana: a passagem pelos checkpoints, os caminhos sinuosos que se desviam de Jerusalém, as paisagens dramáticas, a proliferação de sucateiras e de ferro-velho, os diferentes paradigmas nas zonas A, B e C, debaixo de diferentes legislações. Em Ramallah, capital de um país sonhado, não perder o Museu Yasser Arafat, onde se encontra o túmulo do antigo líder da Fatah, o anexo em que viveu dois anos debaixo de cerco e fotos e vídeos sobre a resistência palestiniana. Em Nablus, no norte, o queixo cai perante a sumptuosidade das montanhas e o estômago abre-se às tentações do mais tradicional dos mercados. Hebron é diferente de tudo o resto. A história dos povos que acreditam num só Deus começou com Abraão em Hebron. Por isso, é tão disputada e cobiçada: a medina árabe está rodeada por colonatos hebraicos. De um lado e do outro, os apoiantes mais radicais. O Túmulo dos Patriarcas é o único local de culto híbrido: metade sinagoga, metade mesquita. Nele estão as sepulturas de Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó e Lea e até de Adão e Eva. É sítio de poucos sorrisos. Pelo menos, até a Ilka ter coberto a Lia com uma túnica islâmica, provocando gargalhadas entre os fiéis. Antes de partir, um encontro com o pacifista palestiniano Issa Amro, sitiado entre colonatos em Beit Hadassah, um assentamento de sionistas radicais colado ao centro de Hebron. Issa tem pulseira electrónica, 18 casos em tribunal contra ele, maioritariamente por desobediência, e está convencido que não tarda irá preso um ou dois anos. Vive com a família nas instalações da Youth Against Settlement, a instituição que dirige há mais de uma década à revelia da Autoridade Palestiniana e do Estado israelita. “Agora já não nos tratam por nomes mas por números, como os nazis faziam aos judeus”, acusa. “A vida nunca foi tão má na Cisjordânia como hoje. Os colonos estão a viver os seus melhores dias”. Entretanto, a entrevista foi interrompida por Lia, que se veio agarrar às minhas pernas. Olhei para os filhos de Issa e imaginei como seria estar na iminência de ser preso apenas por manifestar a minha opinião. Esses pensamentos assombravam-me quando deixámos Hebron, já de noite. Nenhuma visita a Israel fica completa sem Jerusalém. Mais que qualquer profeta ou mensageiro, aquelas muralhas morreram e ressuscitaram vezes sem conta. Com o propósito maior de mostrar a todos os que não acreditam que a fé existe e há-de engoli-los. Uma voz assalta o agnóstico quando pisa a cidade de Deus: “Podes pensar que todos à tua volta são tolos mas rende-te porque são muito mais que tu. ” Cúpula da Rocha, Muro das Lamentações, Igreja do Santo Sepulcro – são apenas três dos magníficos baluartes que marcam a fé dos homens e a guerra das civilizações. Jerusalém comove e revolta. Ninguém fica indiferente. Nem mesmo quando se vêem aberrações como clérigos a enviar SMS encostados à sepultura de Cristo ou fiéis a gravar vídeos enquanto rezam com a testa no mármore. Uma espécie de alegoria para a chegada de um Deus com ecrã táctil. Na praça adjacente à sinagoga Hurva, no centro de Jerusalém, tivemos uma das raras más experiências da viagem. A Lia tentou aproximar-se de crianças de orientação ortodoxa que brincavam em conjunto mas, assim que se aproximava, eles afastavam-se. Como se tivessem receio. Eu e a Ilka concluímos que, devido à indumentária muito marcada – com as tranças, os chapéus e as saias compridas –, aqueles meninos e meninas, membros de uma comunidade muito fechada, não estavam habituados a conviver com crianças com t-shirts dos Rolling Stones. Acontecimento ofuscado pelo entardecer a partir do Monte das Oliveiras; a velha Jerusalém a surgir de caras por cima da gigantesca necrópole habitada por gatos vadios que saltavam de campa em campa. Mensagem: as pessoas são mortais, Jerusalém é imortal, dos gatos ninguém sabe. A descontracção dominou os últimos dias passados em Herzliya, às portas de Telavive, em casa de Hagay e Keren, de cuja filha Elle a Lia se tornou rapidamente compincha. Passavam as tardes de intenso calor na piscina da marquise. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dali, voltámos à casa de Moishe, na Rua Levinski, para o último dia antes do voo, marcado para a madrugada. Lamentavelmente, apercebi-me de que tinha perdido as chaves de casa somente quando chegámos ao patamar do quinto andar pelas 22h. Tínhamos tudo dentro do apartamento. Moishe não abria a porta nem atendia o telemóvel. Uma situação tramada que nos podia levar a perder o voo. Entrámos em ansiedade, com excepção da Lia, que dorme mesmo em situações de stress. Pedimos auxílio aos vizinhos do lado, na esperança de se conseguir saltar de varanda para varanda. Era demasiado perigoso. Naquele apartamento, viviam 10 indianos que se disponibilizaram prontamente para tentar abrir a porta com cartões bancários e facas de cozinha. Nada feito! Quando as esperanças começavam a esmorecer, Moishe apareceu. Era 1h da manhã e vinha de um passeio de bicicleta. Deparou-se com dez indianos a esfaquear-lhe a fechadura, dois hóspedes desesperados a bufar diante de uma ventoinha e um bebé a dormir. Não se chateou. Pediu desculpa por ter chegado tarde, não nos deixou pagar a chave e convidou-nos a voltar quando quiséssemos. Já ouviram falar da hospitalidade do Médio Oriente? É isto. Os judeus e os árabes são dos povos mais solidários para os visitantes. Só falta que o sejam uns com os outros.
REFERÊNCIAS:
Arqueólogos nas barbas do "Estado Islâmico"
Quando o “Estado Islâmico” pisou Palmira, cinco jovens arqueólogos portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos estavam a salvar um pouco da Mesopotâmia, numa colina do Curdistão, não muito longe da linha da frente. Em vez de bandeiras negras, cachecóis do Benfica. Retrato de um mundo partido, entre guerras. Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, no Norte do Iraque (...)

Arqueólogos nas barbas do "Estado Islâmico"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quando o “Estado Islâmico” pisou Palmira, cinco jovens arqueólogos portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos estavam a salvar um pouco da Mesopotâmia, numa colina do Curdistão, não muito longe da linha da frente. Em vez de bandeiras negras, cachecóis do Benfica. Retrato de um mundo partido, entre guerras. Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, no Norte do Iraque
TEXTO: O comandante Ato apoia-se nos sacos de areia e aponta para o horizonte, uma linha ocre debaixo de um céu azul, cortada por uma coluna de fumo: “Ali é o ‘Estado Islâmico’. ” A que distância? “Um quilómetro vírgula oito”, responde ele, com precisão de carta militar. “Mas em Agosto estavam aqui. ”Aqui é uma trincheira no Norte do Iraque, um dos pontos da longa linha da frente que divide as tropas curdas dos jihadistas. E por toda a parte há sinais de como no Verão passado os jihadistas aqui chegaram. Nas nossas costas, Hassan al-Sham, a aldeia mais perto, está deserta, abandonada, possivelmente minada, e as ruínas da ponte que eles fizeram explodir continuam à vista, penduradas sobre o rio. Os soldados curdos, conhecidos como peshmergas, tiveram de fazer outra ponte até à trincheira. Trincheira mesmo: guaritas, barracas para a troca de turno, barreiras de metal, madeira e sacos de areia empilhados, com espaços para enfiar as armas, fazer mira. Estamos entre Erbil, a capital curda, e Mossul, a maior cidade do Iraque dominada pelos jihadistas. Não exactamente a meio porque Mossul está mais perto. Caminhando em linha recta, chegaríamos aos escombros de Nimrud, a antiga cidade assíria que o “Estado Islâmico” fez explodir como a ponte, só que com mais dinamite, e direito a trailer. Assim acontecera em Mossul, em Hatra, teme-se agora em Palmira. Porque à ficção do “Califado”, mais que imperialista, apocalíptica, não basta arrasar para a frente, “conquistar Roma, ser dono do mundo”, como proclama o “califa” Abu Bakr al-Baghdadi. É preciso arrasar para trás, destruir a história que vai do século XXI ao primeiro islão e a história anterior a ele até não haver história, apagar rostos, figuras, símbolos, templos, e portanto o começo da escrita, da troca de bens, das cidades. Esse começo deu-se aqui na Mesopotâmia, a terra entre os rios Tigre e Eufrates que hoje corresponde à Síria e ao Iraque, sobre a qual conhecemos apenas fragmentos, o pouco que ficou em pé ou foi escavado. Teria sido preciso escavar muito mais, e guerras de várias espécies travaram a arqueologia nesta região, sobretudo na segunda metade do século XX. Mas à actual autonomia curda, sempre em braço-de-ferro com Bagdad, interessa trazer a história ao de cima, afirmar um mapa. E uma das coisas que se aprendem numa colina da antiga Mesopotâmia é como a arqueologia avança através de pequenas sondagens: cortes na paisagem por onde o arqueólogo desce, milénio a milénio, até avistar um mundo. Eis o que estão a fazer durante as próximas semanas cinco portugueses, um belga, uma italiana e dois curdos numa colina junto a Sulaymanyiah, segunda cidade do Curdistão. Quando a repórter os deixou para ir um par de dias à linha da frente, preparavam a logística que implica uma escavação nesta parte do mundo. Começam a conhecê-la: na temporada anterior, em 2013, antes da proclamação do “Estado Islâmico”, acharam uma tabuinha de argila com cinco mil anos que representará o início da economia, comprovando trocas entre Norte e Sul da Mesopotâmia. Não é um pedaço da Epopeia de Gilgamesh, o que representaria o início da literatura, mas isso também não seria impossível, como veremos ao longo desta estadia entre refugiados, soldados, checkpoints, caveiras, cacos de cerâmica, panelões de massa com atum, mais dias sem água do que com água, nunca esquecendo que o Benfica foi fundado em 1904, porque haverá um cachecol pendurado na despensa e outro no frigorífico. Vieram na bagagem deste regresso ao Iraque, agora nas barbas do “Estado Islâmico”. “Ainda bem que o André já levou a estação total”, diz Ricardo, contemplando o monte. Uma estação total é um pesado instrumento de medição que não pode viajar no porão, por ser delicado, nem na cabine, por não caber. André Tomé, 28 anos, o outro director português do projecto, levou-a no cockpit há uns dias. Foi adiantar os preparativos em Sulaymanyiah, incluindo achar uma casa para a equipa, porque a da escavação de 2013 fica num lugar isolado do vale e, com o advento do “Estado Islâmico”, os responsáveis curdos acharam que não era segura. Horas depois, o voo de Istambul, lotado, sobrevoa o Norte do Iraque, passando por cima de Mossul, até descer para Sulaymaniyah, uma profusão de linhas bem iluminadas. O Curdistão cresceu desde a invasão americana de 2003, para os lados e para o alto, muita construção alimentada pelos negócios locais, petróleo, cimento. Dois autocarros modernos escoam os passageiros para um terminal moderno, onde os seis guichets de passaporte estão abertos, apesar de ser meio da noite. As bandeiras são do Curdistão, e basta um carimbo de entrada, nada de visto iraquiano. Só quem fica mais de 15 dias tem de passar depois por outra burocracia, também especificamente curda. É como entrar num país dentro de outro, sensação que os próximos dias só vão confirmar, em todos os sentidos. A autonomia curda é um facto, e um dos bocados em que o Iraque está partido. Mas enquanto se mantiverem os obstáculos internacionais a que o Curdistão seja um país — a começar pela Turquia, onde os curdos rondam um quarto da população —, vai manter-se a hostilidade entre este bocado do Iraque e os restantes, xiitas por um lado, sunitas por outro, tensões fratricidas que explodiram durante a ocupação americana (2003-2011), favorecendo a ascensão do “Estado Islâmico”. Mossul, a “capital” iraquiana dos jihadistas, fica apenas a 80 quilómetros de Erbil, a capital curda. Os militantes do “Califado” só recuaram do cerco a Erbil quando Obama ordenou ataques aéreos, em Agosto. Mas ainda conseguiram detonar um carro-bomba junto ao Consulado americano, e isso aconteceu agora, a meio de Abril. O carimbo nos nossos passaportes diz 7 de Maio, começo da madrugada. Em seguida, passageiros e malas empilham-se até ao tecto num mini-autocarro do tempo de Saddam, porque não se pode ir a pé até ao checkpoint das chegadas. O Curdistão passa o tempo nesta oscilação de quem gostava de ser o Dubai mas continua a ser o Iraque. André está à nossa espera, dois carros para caber toda a gente e lá vamos pelo meio da noite até à aldeia onde fica a casa que, finalmente, depois de várias questões, foi possível alugar. Uma questão “sensível” para a vizinhança era a equipa ser mista, homens e mulheres. Além de trolhas e cientistas, os arqueólogos têm de ser diplomatas, e o facto é que a casa, mais que grande, são duas, portanto os homens vão dormir em cima, as mulheres em baixo. Mas como não há nada lá dentro, André só teve tempo de ir buscar uns colchões à casa antiga e limpar o piso de baixo, onde esta noite toda a gente vai dormir. De resto, o chuveiro há-de ser instalado, o autoclismo também, a sanita é de cócoras e o lavatório às flores, para compensar. Amanhã, ou seja, daqui a pouco, vai ser preciso montar uma casa para dez onde se durma, cozinhe, coma e trabalhe. Além de comprar pás, picaretas, picos, cordas, estacas, carrinhos de mão, uma roçadeira para cortar as ervas da colina, loiça em segunda mão, mesas e cadeiras de plástico, caixas para guardar milhares de cacos de cerâmica, sacos para guardar centenas de ossos humanos, etiquetas, canetas, pincéis, arrobas de arroz e de comida em lata, garrafões de água porque a da torneira, quando há, não se bebe, e ainda trazer o fogão e o frigorífico de 2013 seja em que estado for, porque isto é uma escavação que todos os dias faz contas ao dinheiro. O objectivo é chegar o mais perto possível de Mossul, e isso quer dizer ir primeiro a Erbil. Duas estradas levam lá, uma passando junto a Kirkuk (cidade que era controlada por Bagdad e os curdos acabaram por tomar no meio da disputa com o “Estado Islâmico”); outra pela montanha (ao longo da fronteira com o Irão). Faremos a da Kirkuk à ida e a da montanha na volta. O tradutor contratado é amigo de amigos, chamemos-lhe Adan, quem guia é o irmão. Colinas verdes, fábricas de cimento, boas estradas, uma das vias ainda do tempo de Saddam, a outra já da autonomia curda. Adan fala do medo dos carros-bomba e dos refugiados que não param de chegar, centenas de milhares vindos das zonas que os jihadistas vão tomando no Iraque e na Síria. Rebanhos de ovelhas convivem com fábricas, por exemplo, de gás. Desde casa já passámos dois checkpoints com peshmergas que nos mandam seguir. Um carro de matrícula curda e ocupantes que falam curdo tem mais hipótese de não ser parado. Adan explica que “peshmerga” quer dizer “pronto a morrer”. Os curdos estão sempre a honrar os seus peshmergas, tudo o que possa ser remotamente curdo, aliás. Kirkuk é uma zona rica em petróleo, passamos o mais antigo campo do Iraque, e torna-se claro que há combates a menos de 70 quilómetros quando se multiplicam os checkpoints e nos revistam. Depois, curvando para Norte, nenhum sobressalto até Erbil, que parece tranquila, com a sua cidadela ao alto. As alas do bazar onde se troca dinheiro estão desertas mas cheias de pacotões de notas, porque um dólar vale quase 1200 dinares. Mais movimento na ala da fruta, nêsperas, pêssegos, morangos, menos na dos alfaiates. E ninguém no artesanato. “O movimento caiu para metade desde há um ano”, diz Ali, o jovem vendedor. Vir comprar os tradicionais sapatos feitos à mão, por exemplo, não é uma prioridade agora. Ainda assim, Ali nunca pensou partir. “Temos de nos orgulhar do nosso chão. Quem nos quer tirar o sangue é que tem de ter medo. Se precisarem de mim, estou pronto a combater. ”Meio em obras, e cheia de bandeirinhas curdas, a cidadela tem aquele ar das ruínas demasiado refeitas, modesta herança comparada com outras no Iraque, e sobretudo na Síria. Mas a vista lá de cima abarca todo o horizonte além de Erbil, cidade planíssima, encostada ao deserto. É quinta-feira, o que aqui significa pré-fim-de-semana desde o fim da manhã, altura em que andámos pelo Ministério dos Peshmergas de edifício em edifício, tentando uma autorização para ir à linha da frente. Incontáveis telefonemas depois, ao longo de todo o dia, um amigo de um amigo de Adan dá-lhe o contacto de um comandante que aceita receber-nos no dia seguinte. “Têm sorte porque é sexta-feira, temos algum tempo”, diz o comandante Ato Zibary, cumprimentando-nos no seu gabinete, com fotografia em destaque do presidente curdo Massoud Barzani, que ainda domingo esteve com Obama em Washington. É um acampamento organizado, blindados alinhados cá fora, peshmergas marciais na continência, gabinetes bem mobilados. Zibary, um peshmerga “político”, foi nomeado pela presidência, e a seu lado está o general Dedawan. O batalhão deles controla uma faixa de 35 quilómetros da linha da frente diante de Mossul. Como explica o comandante que uma cidade tão grande tenha caído em quatro dias, mil e tal jihadistas contra 30 mil soldados iraquianos, vai fazer agora um ano? “Erros de Bagdad”, responde Zibary. “A divisão sectária entre árabes xiitas [no governo em Bagdad] e sunitas levou a isto. Agora arrependem-se porque vêem que não conseguem lutar sozinhos. Essa divisão não tem que ver com os curdos, nós somos sunitas mas temos yazidis, cristãos, todos a viverem juntos. ” E se as tropas iraquianas vierem com milícias xiitas, avisa o comandante, os curdos não participarão na retomada de Mossul. “Porque temos a certeza de que as milícias matarão muitos civis [sunitas] em Mossul. ” Mas até à luz verde para a retomada, os peshmergas aguentarão em terra. “A força aérea americana ajuda-nos muito, alemães, canadianos, italianos, franceses. . . Demoram 12, 15 minutos a chegar do Kuwait. ”Retomar Mossul é “uma decisão política”, diz Zibary. “Depende de quando o exército iraquiano estiver pronto, porque nós estamos prontos há muito. Mais: se não fôssemos nós, o ‘Estado Islâmico’ já teria conquistado Bagdad. ”E nisto vão todas as tensões desta amálgama militar: curdos sunitas, árabes sunitas desmotivados, xiitas apoiados pelo Irão e força aérea de Obama e aliados. Um caldeirão de ex-inimigos que agora têm um fim em comum, derrubar o “Estado Islâmico”, quando há dois anos, em alguns casos, estavam a erguê-lo, ao armarem rebeldes sírios jihadistas contra Assad. Há dois anos, nada era pior do que Assad, e hoje nada é pior do que o “Estado Islâmico”, esse Frankenstein gerado pela guerra civil dos dois lados de uma fronteira que já não existe, a que dividia Síria e Iraque. Se na Síria a guerra era contra Assad, e no Iraque entre sunitas e xiitas, hoje há um “estado” maior do que a Grã-Bretanha a meio dos dois países, com uma capital em cada lado (na Síria, Raqqa, no Iraque, Mossul), e à volta está tudo partido. No balanço das intervenções e contra-intervenções estrangeiras desde 2003, dos Estados Unidos à Rússia, da Arábia Saudita ao Irão, é difícil imaginar pior. Zibary, este comandante curdo de 50 anos que combateu Saddam, vê o “Estado Islâmico” como “uma continuação da Al-Qaeda, fortalecida pelos erros de Bagdad” desde 2003: “A América derrubou Saddam, deu o poder aos xiitas e assim beneficiou o Irão. O resultado da invasão americana foi dar o Iraque ao Irão. Todos estes erros levaram ao ‘Estado Islâmico’. ”O general Dedawan acrescenta: “O ‘Estado Islâmico’ junta a experiência de guerra no Afeganistão, na Tchetchénia, do regime de Saddam, da guerra civil síria, dos soldados ocidentais. São o mais forte inimigo da humanidade. ” E olhando bem de frente a repórter: “Se eles derrotarem os peshmergas, você não se sentirá segura em Portugal. Estamos a lutar por si também. ”Cerca de 800 peshmergas revezam-se nesta região, substituídos de dez em dez dias. Há muito fumo no ar, do mato que os soldados queimam para ser mais fácil ver avanços do inimigo. A coluna militar pára junto a um pequeno monte. Os peshmergas saltam dos carros, armas em riste, e marcham pelos calhaus até à barricada. Quem está de turno cumprimenta o comandante e os forasteiros. Na tenda montada junto aos sacos de areia dorme quem fez o turno da noite. O horizonte parece quieto, uma planície árida com areia no ar, muito ao fundo recorte de edifícios. O perigo não são só os tiros, os soldados falam dos veículos que os jihadistas enchem com explosivos e lançam contra as trincheiras. “Há um mês foram duas escavadoras e três Humvees”, conta o comandante. “Foi a meio da noite, em geral atacam à noite, quando chove ou faz nevoeiro, porque aí a força aérea não pode actuar tanto. ” O Humvee é um jipe militar americano, um dos muitos equipamentos que o “Estado Islâmico” arrebatou. “Eles têm armas muito sofisticadas do exército sírio, iraquiano, americano, russo. . . ”De novo a bordo do blindado, o comandante não aceita não como resposta. Teremos de ficar para o almoço no acampamento. Boa comida curda, arroz, frango, sopa, vegetais, azeitonas, frutas várias. Quase um feriado. Falam curdo e farsi, e lutam pela autonomia onde estiverem. Por exemplo, Shilan, 28 anos, perdeu dois irmãos no combate com as tropas iranianas e envolveu-se na causa curda aos 15. “Fui treinada por homens, somos a primeira geração de mulheres peshmergas. Primeiro houve homens que se espantaram, mas agora a presença de uma atrai outras. ”Kani, 27 anos, já combateu contra o exército iraniano e agora está aqui. É casada, o marido está na frente. Elas revezam-se para ir lá, em pequenas temporadas. “Não temos medo, estamos habituadas. ” Sahar, 25 anos, casou mas agora fica por aí, em nome da luta. “Neste momento não queremos ter filhos. ” Uma frase rara num contexto muçulmano. Shilan tem dois filhos, mas só foi uma vez à frente. E a mais bonita, Aiwan, 27 anos, nem pensa em casar. “Sou peshmerga, quero lutar. ” A primeira luta é a independência, mas o “Estado Islâmico” tornou-se uma urgência. “Lutamos contra eles porque somos humanas, é dever de todos. ”Kamal, peshmerga de 47 anos que há muito mora na Suécia e agora voltou para treinar os jovens, fala na força do “Estado Islâmico”. Não é só “terem a experiência de guerrilha com armas muito modernas”. É o ânimo: “O que os distingue é que querem morrer, são suicidas, não batem em retirada. Ficam até à última bala e são impiedosos. ”Ele sabe do que fala, veterano da guerrilha curda antes de todo este conforto de tropas peshmergas com gabinetes e ministérios. “Vivíamos nas montanhas. Só às vezes conseguíamos um pouco de comida. Cheguei a estar 45 dias sem tirar os sapatos. ”Para não falar nos anos 80, quando milhares de curdos foram exterminados pelas tropas de Saddam num genocídio com armas químicas, e milhares de combatentes presos e torturados. Mesmo sem Saddam, Adan continua a não ter boas palavras para Bagdad. Há meses que não recebe a sua bolsa de doutoramento, congelada pelo governo xiita iraquiano. Milhares de funcionários também não recebem os salários. O boom do Curdistão está suspenso no ar, como as centenas de prédios que passamos nos arredores de Erbil, bairros inteiros que ficaram a meio porque entretanto caiu o petróleo, veio a crise e o “Estado Islâmico”. Ao longo da soberba estrada de montanha, Adan e o irmão têm ainda outra memória, a de quando resolveram trepar por estas rochas e descobriram que elas ainda estavam minadas, desde a guerra com o Irão nos anos 1980. Tiveram de voltar saltando de pedrinha em pedrinha, sem pisar o chão. Entretanto, rapazes penduram na estrada faixas em homenagem a combatentes curdos que acabam de ser mortos pelo “Estado Islâmico”. Tiago Costa, 27 anos, o perito nos cacos de cerâmica que veio à frente com André, faz um ponto da situação aos que chegaram depois. Ana já escavou na Síria, Ricardo na Síria e no Iraque, mas João está a estrear-se nesta parte do mundo, e Mustafa Ahmed, o entusiástico estudante que hoje cá está em visita, também quer ser arqueólogo. “O mais importante é pensar isto como algo único, que vale pela própria experiência”, diz Tiago. “Idealmente encontraremos um compartimento cheio de cerâmica, mas não podemos esperar nada. ”A repórter é apresentada a Awaz Shadan, 26 anos, e Zana Abdulkarim, 30, os dois arqueólogos curdos nomeados pelas autoridades locais para viverem com a equipa; a Giulia Gallio, 25, a italiana mais inglesa das redondezas, que não por acaso mora em York, e será a antropóloga responsável pelos ossos; e Steve Renette, 33, o flamengo de barba ruiva que é um dos três directores deste projecto, ao lado de Ricardo e André. Como Steve está ligado à Universidade de Pensilvânia e Ricardo e André à Universidade de Coimbra, institucionalmente isto é uma parceria entre as duas universidades e as duas partes vão-se revezando no financiamento. Para 2015, foi Steve que arranjou o orçamento. Mas os três estão sempre a pensar como viabilizar a escavação no futuro. Esta colina foi pessoalmente escolhida por eles e ninguém aqui recebe salário. João veio apesar de estar planear a sua tese de mestrado, porque queria mesmo trabalhar na região, ajudar os amigos. Os cinco portugueses são grandes compinchas em Coimbra, colegas de turma, de apartamento, de escavações e férias, há anos. Ao fim de dez dias com eles, uma pessoa até pondera voltar a Coimbra. Onze à mesa. Numa comuna deste género só deve haver duas hipóteses, ou o humor ganha ou a falta de humor mata, sobretudo ao fim de um mês a trabalhar 12 horas com hérnias e 50 graus ao sol. Aqui, tanto quanto a repórter verá, até a discreta Giulia tem de tirar os óculos para limpar as lágrimas de rir. Ricardo é o Seinfeld do Mondego, e Zana, o curdo, um viking da stand up, mesmo sentado. Tudo isto sem um grau de álcool, nem na grande noite que espera o Benfica, porque o álcool é uma daquelas “questões sensíveis” na vizinhança. Awaz estreia-se no chá com canela, que se tornará um must da casa. Copos e gente pelo chão da sala, o capitão André abre o saquinho do tesouro, aquele que diz: “KS 13 / 1017 / SF-27”. Traduzindo, KS é Kani Shaie, o nome da colina; 13, o ano do achado; 1017, a camada; SF, Small Findings (Pequenos Achados), e 27 o número do achado. Eis a tabuinha de argila com mais de cinco mil anos que prova como André, Ricardo e Steve escolheram bem a colina: há talvez 5200 anos, um homem rolou o cilindro em relevo que era a sua assinatura, imprimindo num bocado de argila fresca o desenho nítido de veados a serem transportados de barco. À direita, fez uma perfuração, indicando a quantidade, provavelmente dez, algo que ainda não era praticado aqui. Estamos assim perante o começo da burocracia, da contabilidade, da economia: uma factura. E uma factura que aponta para uma relação com a Uruk de Gilgamesh, então a grande cidade da Baixa Mesopotâmia. Talvez a nossa colina tenha sido uma colónia de Uruk e venha a revelar como as primeiras cidades se expandiram para Norte, e porquê. “Nossa colina” porque isto já se tornou uma observação participante. Steve teme pelo chá na vizinhança do tesouro e a tabuinha volta ao saco de plástico. Tiago espalha cacos como quem estuda um puzzle, coadjuvado por Ricardo e João. Mas nada bate a imagem de Giulia no chão, a esfregar uma caveira com uma escova de dentes, incluindo os próprios dentes da caveira. “Podemos ver pela forma da mandíbula que é uma mulher, e devia ser jovem porque os dentes estão bons. ”Este projecto não anda à procura de caveiras, gostaria mesmo de as evitar. O problema é que tendo de escavar de cima para baixo vai ter de lidar com os ossos de todos os defuntos enterrados por cima das camadas milenares, que são as que importam neste caso. E como isto não é um filme do Indiana Jones, nem sequer a época de Max Mallowan, tudo o que um arqueólogo vá achando deve ser cuidadosamente escavado, identificado e guardado, mesmo que não lhe interesse nada e pese nas hérnias e no orçamento. As conversas cruzam-se. Ouvindo que a repórter foi a Lalish, o santuário dos yazidis, Ricardo, que ama os yazidis, explica-nos o problema que eles têm com a alface. Há uma propensão para amar os yazidis nesta equipa. “Lalish é o meu lugar favorito”, anuncia Steve. Entretanto, noutra zona da sala, alguém pergunta se há corda, alguém responde que há corda para dez temporadas, o frigorífico regressa com porta, e o capitão André recapitula os problemas: “Temos de ir tratar do prolongamento dos vistos, temos de ir arrancar as ervas…” Se não chover, porque ameaça. Entretanto, como depois de amanhã temos de ir ao Museu de Sulaymaniyah, e hoje o poente promete, os três directores não querem acabar o dia sem um pulo à colina. Ricardo enfrentará a roçadeira que comprou no bazar. Já inventou até um escudo para as pernas com os cartões de uma embalagem e, como não tem máscara, vai de óculos de sol. De Tasluja, a aldeia onde moramos, à colina da escavação, tudo depende do checkpoint a meio, varia entre 15 e 30 minutos. Há um ponto em que o carro sai da estrada e entra por um caminho com estufas de um lado e do outro. Aí, estamos em pleno vale de Bazian, atravessado desde há milénios, vastidão mansa de colinas verdes, pedra branca e campos de trigo, hoje ensombrada por três cimenteiras que lentamente comem as colinas, com um rugido permanente. A região não só foi pouco estudada, como agora estão a rebentá-la com dinamite. Ao poente já tudo passa de verde a dourado em silêncio. O sol que apareceu no Irão desaparece na Síria, lá adiante, onde os deuses de Palmira hão-de ver chegar bandeiras negras. Estar aqui é escavar contra essa destruição, quase um trabalho de Sísifo, recomeçando de cada vez. Por exemplo, desde 2013, o mato tomou a colina, mas é para isso que serve uma roçadeira. “Kani Shaie!”, exulta André, saindo do carro como se voltasse a casa. Trepamos. Papoilas, trigo selvagem, ninhos de vespas. No cimo há uma pequena árvore, a vista é assombrosa e só de pisar aparece cerâmica. “É uma colina tão pequena que tendem a não lhe dar importância, e agora está toda a gente espantada com o que achámos”, diz Steve. Uma das poucas escavações neste momento no Iraque, uma das únicas portuguesas no mundo. “Em 2013, fizemos um corte para chegar aos níveis mais antigos de forma rápida”, explica André. “E agora queremos expandir cada degrau. ” Ou seja, cada milénio. Com o seu colherim — uma espécie de colher de pedreiro mas em forma de losango e muito mais forte —, André cava entre o terceiro e o quarto milénio a. e. c. (antes da era comum), enquanto Ricardo já anda com a roçadeira a zunir, impávido perante as ervas e pedras que vão saltando. Em meia hora, André e Steve acharam mais cacos do que conseguem trazer nas mãos. “A cerâmica é o nosso melhor amigo [para situar épocas], mas também pode ser o amigo mais aborrecido”, diz André. Escurece, cheira intensamente a erva, o operário Ricardo descansa, antes de logo começar a debater onde vão cortar a terra, abrir mais sondagens. É um diálogo que só arqueólogos podem ter: “Repara, aqui estou no terceiro milénio”, diz um, em pé na encosta. Medem o terreno às passadas, decidem o número de trabalhadores. “Podemos começar com 12”, propõe Steve, prudente: 12 salários a sair do orçamento. E ao serão, no pátio, entre os relatos de uns, bolseiros; outros, professores só metade do ano; outros, desempregados depois de estágios de 600 euros; Ricardo compara arqueologia e astronomia. “Quando olhamos uma estrela, também estamos a ver o passado. São duas máquinas do tempo. ”Kani Shaie é a colina que escolheram, e escavar, o que mais gostam. Talvez não haja outra forma de estar num lugar como o Iraque. Ainda bem que o gabinete é grande, porque, à boa maneira oriental, vai acumulando gente à espera de ser recebida. Pouco depois de nós, chegam três arqueólogos japoneses, que trazem presentinhos, e depois um arqueólogo espanhol, que tem pelo menos uma coisa em comum com todos os portugueses em Sulaymaniyah: é um fã de Cláudio Torres. Mulheres de preto servem copinhos de chá, os sofás são de napa, há fotografias do presidente na parede, lenços de papel na mesa, ao lado de um calendário da Asia Oil. O director desdobra-se. Enquanto André e equipa vão tratar dos vistos, incluindo tirar sangue, ele atende a repórter entre os japoneses e o espanhol. “Nesta região de Suleymaniyah, só houve duas escavações no século XX, uma entre 1947 e 1955, de ingleses, outra entre 1957 e 1959, de dinamarqueses”, resume. “Depois, o regime de Saddam não autorizou mais. Foi por isso que em 2003 abrimos portas e janelas a estrangeiros. Temos vestígios desde a Idade da Pedra ao islão, um espectro muito longo, e tentamos que cada projecto escave um período diferente. ” André, Steve e Ricardo estão focados no terceiro e quarto milénio a. e. c. “É a primeira equipa a trabalhar esta era, muito importante para nós, das primeiras cidades, dos primeiros impérios, a relação entre Norte e Sul, e eles já encontraram muitas coisas. ” Os resultados são publicados por ambas as partes, mas todos os materiais ficam no museu, que neste momento é o segundo mais importante do Iraque (depois do de Bagdad), com destaque para um estupendo fragmento inédito da Epopeia de Gilgamesh recentemente identificado. O edifício, onde há baldes a conter infiltrações, espera ser modernizado em colaboração com a UNESCO. O outro interlocutor dos arqueólogos estrangeiros é o próprio director do museu, Hashim Hawa. A cena do gabinete repete-se quando a repórter lá chega. Cá estão os japoneses, distribuindo presentes, cá está o simpático espanhol. Hashim também é simpático, toda a gente é simpática, ainda vão chegar consultores, funcionários, a mulher do director, e acabou de sair o embaixador da Letónia, o que gera um debate local sobre se a Letónia é a Lituânia. “Queremos focar o museu nas peças achadas aqui”, diz Hashim, depois de atender toda a gente sem perder o sorriso. “Antes, este museu era para mostrar a Mesopotâmia, era como o Museu de Bagdad. Agora, a vinda de arqueólogos estrangeiros é muito boa porque as peças ficam todas aqui e podemos fazer convergir o que sabemos. ” Lido politicamente, isto quer dizer que o Curdistão quer ter um museu curdo, com bom material local, afirmando-se, portanto, num mapa antiquíssimo, além de criar laços internacionais, que simultaneamente vão formando novas gerações de arqueólogos curdos. O “Estado Islâmico”, crê este director, não pode ameaçar isso. “Suleymaniyah está segura. Eles conseguiram tomar Mossul porque contaram com a ajuda das pessoas na região [árabes], que odeiam o governo [xiita] de Bagdad. Aqui ninguém os deixaria ficar, destruir a nossa herança. ”Tobin tinha as malas feitas para se mudar para cá quando o “Estado Islâmico” cercou Erbil, em Agosto passado. Mas não mudou de ideias. É casado com uma arqueóloga iraniana, têm uma filha que se desdobra em inglês, farsi e curdo. Esta parte do mundo foi a que ele escolheu. “Para quem quer estudar a Mesopotâmia, estar no Curdistão é uma prioridade”, diz Tobin. “Cada descoberta que fazemos é um grande salto em frente. ” Enquanto as gigantes Ur ou Uruk, no Sul do Iraque, são escavadas há um século “e ainda sabemos tão pouco”, aqui numa escavação pequena é possível avançar muito. “O ‘tell’ deles é espantoso”, elogia, referindo-se à colina de Kani Shaie, escolhida por André, Steve e Ricardo. “Tell” é o nome que se dá a uma colina artificial, resultado de várias camadas de ocupação humana. “O que eles estão a escavar é o nascimento de uma civilização. ”Tobin acredita que as montanhas curdas vão revelar toda uma outra Mesopotâmia, diferente do que sabemos das civilizações urbanas. “O que estamos a tentar ver aqui são impérios e não cidades. Todas as grandes dinastias vieram das montanhas ou lutaram para controlar as montanhas, de onde o perigo vem. Mas ainda não sabemos que civilização começou nestas montanhas. Acho que foi um tipo de civilização não centralizada, colaborativa, de partilha de poder. ” Em suma: “O federalismo pode ter começado aqui. ”E se o “Estado Islâmico” é “uma ameaça à diversidade”, mais uma razão para ficar. “A destruição deles só torna o nosso trabalho mais importante. Não há futuro estável do Curdistão sem arqueologia. As pessoas precisam de provas para falar de quem são. ”Os trabalhadores contratados são pontuais, o que de repente faz 20 pessoas em cima da colina. Ricardo, que ontem desencantou uma máscara no bazar, põe gasolina na roçadeira, uns enfiam as pás na terra, outros arrancam ervas à mão, todos fazem tudo, erva, terra, pás, baldes. Talvez Portugal não afunde se o futuro da investigação for isto, é a alegria no trabalho. Centenas de pazadas depois, entra em cena o colherim para definir o contorno das pedras, o terreno. É a fase do contacto zoológico: dois escorpiões, uma aranha, um lagarto, assim onde a repórter está. Às 7h30 parece que já passaram horas. O sol queima, talvez nasça uma hérnia. Quando uma pessoa escava de colherim, não há boa posição para as costas, só menos más. Descanso de dez minutos e voltamos a meter o nariz na sepultura. Porque do que se trata aqui, nesta camada de cima, é de várias sepulturas islâmicas, está claro já, pela disposição das pedras. Então, primeiro as pedras à volta do esqueleto são escovadas a pincel e colherim, e depois vai-se escavando com cuidado a terra no meio, tão delicadamente que a certa altura já nem podemos usar o colherim, tem de ser uma colher de sopa e depois uma pequena espátula de madeira. O arqueólogo oscila assim entre a força bruta e o bisturi, fora o que ainda vai lavar, estudar, fotografar, escrever. Aparece um fémur. A seguir, um sapo, vivíssimo, e a seguir um escorpião. Depois da morte não se sabe, mas definitivamente há vida sobre a morte. “Alguns arqueólogos recusam-se a escavar sepulturas por razões éticas”, diz Steve. “Imagina pensares que vais ficar ali para sempre, chega alguém, desenterra-te, põe-te dentro de um saco de plástico. ” Exactamente o que vai acontecer a este esqueleto, quando acabarmos de o escavar, o que demorará dolorosas horas. “A cremação é uma grande coisa!” Mais abaixo, Tiago continua às pazadas, está a escavar há horas. Um arqueólogo sem bolsa e sem emprego pode sempre recorrer à enxada, é um perito (alô FCT). Ao mesmo tempo, também percebe de fotografia em 3D e quadricópteros. Ricardo empunha uns comandos tipo PlayStation e o famoso drone sobe como um insecto. Tem quatro hélices nos cantos e uma câmara na barriga, a missão dele é fotografar a grande altura, mas para quem não sabe parece um zangão extraterrestre. Os rapagões curdos largam as pás, tudo de queixo no ar. Às 9h30 faz-se a refeição que corresponde a um primeiro almoço, já que começámos às 5h. Piquenique de pão com triângulos de queijo, pepino, tomate, fruta, ovos cozidos. Dá meia hora de pausa, à sombra da árvore. As sepulturas multiplicam-se. No dia seguinte, Giulia e João passam horas semideitados a escavar ossos: pá, vassoura, colherim, pincel, espátula e infinita delicadeza. Há ossos que se transformam em pó mal são tocados. Giulia é a especialista, mas João trabalha como se não houvesse amanhã, nada parece pesar-lhe. E Ana está como Tiago ontem, uma heroína de pá, picareta, vassoura, balde, num dos outros níveis que é preciso tratar, além de cozinhar todos os dias para dez, porque no ano passado foi André, e é consensual que ela cozinha melhor. De resto, para lavar loiça e limpar a casa, há uma escala. Steve e André juntam-se noutra sepultura, crânio já exposto. O bom estado dos dentes impressiona. “No século IX, as pessoas comiam um quilo de açúcar por ano”, diz Giulia. “E era açúcar natural, de fruta e cereais. Nós comemos 65 quilos por ano. ”Às 13h, já são oito horas de trabalho, os trabalhadores contratados terminam o dia, mas parte da equipa vai só a casa almoçar e volta, porque há ossos expostos, é preciso acabar de os escavar, fotografar e guardar, para não ficarem abandonados uma noite. Quem não vai lava centenas de cacos de cerâmica entretanto achados, vai comprar mantimentos, resolver a crónica falta de água. Jantar pelas 19h, hora a que Ricardo Seinfeld pode, por exemplo, dedicar o seu episódio de hoje à cimenteira mais vizinha da colina, um gigante mundial que talvez esteja disposto a patrocinar a escavação. Investigou tanto sobre eles que descobriu uma secção de responsabilidade social de que eles próprios nem se devem lembrar. Até Giulia, que de tanto sol e trabalho ficou doente, não come mas ri. Uma casa precária, feita entre as estufas, moscas, calor. As crianças vêm descalças à porta, Saado estende a mão. Tem 25 anos, é ele quem fala inglês porque estudou Engenharia em Mossul. Agora está neste buraco, e é porque não morreu, ao contrário de milhares de yazidis da sua idade, apanhados pela conquista do “Estado Islâmico” na região do Sinjar (Noroeste de Mossul). Saado tinha saído da aldeia onde toda a família vivia e foi ao Sinjar em visita. Calhou lá estar na tarde em que os jihadistas chegaram, “com muitos carros, Toyotas, armas e bandeiras negras”, conta, sentado numa das espumas que à noite fazem de cama, enquanto um irmão mais novo traz um copo com água, depois outro com chá. “Nós não tínhamos armas. Eles primeiro disseram: ‘Têm de levantar uma bandeira branca’, e nós levantámos. Depois separaram homens, mulheres, crianças e disseram a todos que se tinham de converter ao islão. Depois disseram um a um e começaram a matar os homens que diziam que não. ” Falavam em curdo, explica, porque sabiam que eles falavam curdo, mas Saado também ouviu árabe e inglês. “Diziam que nos iam libertar. Libertar do quê?” Viu cortarem cabeças e crianças pequenas serem mortas, guardarem as mais velhas como combatentes. Tudo isto demorou horas, era muita gente. Às oito da noite já estava escuro e Saado decidiu fugir. “Pensei: se ficar aqui vão matar-me com uma faca. Se correr terei duas hipóteses, morrer com um tiro ou escapar com vida. ” Qualquer uma dessas lhe pareceu melhor. Teve sorte, caminhou até à Síria, e por mais sete horas. Mas um dos seus primos foi levado pelos jihadistas para Tal Afar, a ocidente de Mossul. “Disse-lhes que se convertia para se salvar. Não consegue fugir. Há duas semanas falámos com ele e só chorava. Disse que os jihadistas fazem o que querem e as pessoas só ouvem. Obrigam os homens solteiros a lutar. Casou com uma rapariga yazidi para a salvar. ” De ser feita escrava. Saado e família acabaram refugiados aqui, como tantos. Arranjaram trabalho nas estufas de pepino, Saado, a mulher e dois irmãos. Pagam-lhes 80 dólares por mês, para todos. O que ele gostava de fazer? “Ir para fora do Iraque”, responde, sorrindo da pergunta. E não vale a pena perguntar-lhe do que precisa. “De tudo e nada. Veja como vivemos. Sou engenheiro e trabalho nesta estufa. Isto é um país islâmico e yazidis e cristãos não podem viver aqui. ” Mesmo no Curdistão? “Mesmo os curdos às vezes perguntam porque não nos convertemos. ” O governo local defendeu-os de pressões, mas Saado acha que aqui não terão paz. Quer ir para qualquer lugar da Europa ou dos Estados Unidos. A propósito de vida depois da morte, “quem gostaria de ter 70 virgens à espera?”, pergunta João. “Eu não. ” Uma canseira ensiná-las, sobretudo quando se é arqueólogo, e já tem de se saber de geografia, topografia, paleobotânica, antropologia social, sistemas de datação carbono 14, sistemas de informação, digitalização, legislação local, políticas públicas, marketing, cartografia, fotografia, aeromodelismo, roçadeiras, cozinha em massa, e tudo isto sobrevivendo ao “Estado Islâmico”, e à maldição de Tutankhamon. De volta a Lisboa, fazemos um skype para André mostrar mais um caco, que não é mais um caco. É o bordo de uma jarra com três homens, um escorpião, mil anos posterior à tabuinha e, como ela, vinda certamente do Sul. “É uma descoberta muito importante porque, ao contrário do que se pensava, indica que não deixou de haver contactos entre Norte e Sul”, explica André. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para eles, é só o princípio, quem sabe não fazem uma casa lá. A TV curda até transmitiu a vitória do Benfica. Ah, Saado, o yazidi, mais irmãos, já estão a escavar na colina. Ainda acabam em Portugal.
REFERÊNCIAS:
“Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo”
Podia ser bispo, podia até ser Presidente da República Checa, mas o padre Tomás Halík preferiu manter o exercício do sacerdócio e da docência. Autor de diversos livros, esteve em Portugal para promover o último, que é uma autobiografia. Diante de Ti, os Meus Caminhos. (...)

“Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.318
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Podia ser bispo, podia até ser Presidente da República Checa, mas o padre Tomás Halík preferiu manter o exercício do sacerdócio e da docência. Autor de diversos livros, esteve em Portugal para promover o último, que é uma autobiografia. Diante de Ti, os Meus Caminhos.
TEXTO: Em Diante de Ti, os Meus Caminhos, o sacerdote checo Tomás Halík escreve sobre a primeira vez em que esteve em Portugal, há dois anos, e como Lisboa o fez lembrar Praga. Então correu o país num par de dias: Lisboa, Fátima, Porto, Braga e Coimbra. Desta vez, o périplo ficou-se por Lisboa, mas com várias conferências e muitas entrevistas. O motivo é o seu novo livro, publicado pela Paulinas Editora, que o faz reflectir sobre a fé e a razão e a era dos populismos. Este é uma autobiografia que nos leva à República Checa de antes da Guerra, à ditadura, às perseguições comunistas, à Primavera de Praga, à queda do Muro de Berlim e ao regresso da democracia, em paralelo com a sua vida, a vida de um jovem que descobre a religião, que decide ser sacerdote e é ordenado no seio de uma Igreja que vive na clandestinidade, logo, em perigo constante. Nas suas memórias, não esconde que teve crises de fé que o fizeram mergulhar no abismo — “bati no fundo, era ali que Deus estava”, escreve — e que se confrontou com o “rosto repulsivo” do clero, numa clara crítica aos sacerdotes presos aos seus pequenos poderes. Halík foi nomeado por João Paulo II para o Pontifício Conselho para o Diálogo com os Não Crentes, em 1992. Fez parte do ciclo próximo do Presidente Václav Havel, foi seu conselheiro e foi incentivado por diferentes partidos a candidatar-se para o suceder. Em vez disso, preferiu continuar a dar aulas na Universidade Carolina de Praga e a exercer o seu ministério. O filósofo e teólogo católico recebeu o prémio Templeton, em 2014, por “contribuições excepcionais ao desenvolvimento da dimensão espiritual da vida”. Ao longo dos séculos, a Igreja Católica tem sido criticada por não seguir o Evangelho. Agora são os casos de pedofilia e abusos sexuais. Como é que um católico sobrevive a tudo isso sem perder a sua fé?A fé é a confiança de que estamos em boas mãos e que tudo tem um sentido na vida. Às vezes não é fácil descobrir sentido em acontecimentos da nossa vida, do espaço público ou da Igreja. Mas todas as crises são um desafio. Estes abusos são uma tragédia. É como o Holocausto. Depois da Guerra, pudemos perceber que a maioria dos alemães não teve nada que ver com isso, mas que tudo foi feito em nome da germanização e eles tiveram de se confrontar com essa realidade. Na altura, foi feita uma grande reflexão sobre o nazismo. Depois, a Alemanha tornou-se a nação mais democrática na Europa, com uma sensibilidade para o sofrimento das gentes, dos migrantes, etc. Precisamos de algo como isso. Espero que dentro da Igreja reflictamos e que haja um eco profundo. Mas são precisas reformas. Isto não é apenas o colapso de vários indivíduos, é um problema mais profundo. É preciso repensar a nossa antropologia, a atitude da Igreja perante o sexo e também perante o poder, porque não foram apenas abusos sexuais mas também abusos de poder. O Papa Francisco tem falado desse clericalismo. É preciso olhar para a formação dos futuros sacerdotes. Repensar a atitude da Igreja perante o sexo, é permitir que os padres possam casar?Estou feliz por o Papa Francisco ter aberto a discussão desse tabu. Pessoalmente, penso que o celibato é possível, ele nasceu nos mosteiros, enquanto os padres e até os bispos podiam ser homens casados. Penso que no futuro podemos voltar a esse sistema, em que será mais nos mosteiros ou entre os missionários. Por exemplo, eu viajo muito, portanto, seria impossível para mim constituir família e ser responsável por ela. Mas há outras experiências, dentro e fora da Igreja, por exemplo entre os ortodoxos, anglicanos ou evangélicos em que não há problema [os pastores serem casados]. A transformação da energia sexual em espiritual é possível, mas é muito exigente em termos espirituais e psicológicos. Penso que é mais fácil na formação das ordens contemplativas. No futuro, haverá padres casados. Esse tempo está a chegar. E quanto às mulheres? No seu livro, conta que na clandestinidade no seu país houve um padre que ordenou mulheres, o que lhes aconteceu?Foi-lhes pedido que suspendessem a sua actividade. Essa discussão foi fechada por João Paulo II. Temos a experiência das mulheres na Igreja Anglicana no trabalho pastoral, teológico, na pregação, etc. Pessoalmente, consigo imaginar isso, mas respeito a disciplina da Igreja. Não espero que haja uma mudança neste tema no futuro próximo. Deus é que sabe!Ao longo do livro, vai confessando que teve as suas crises de fé. Nesses momentos, deixou de ter fé na Igreja ou em Deus?Todas as crises são uma oportunidade. As mais típicas acontecem na adolescência, quando se perde a fé de criança. Às vezes, a Igreja não tem capacidade de oferecer uma fé mais madura, mas estas crises são uma oportunidade. A minha fé nasceu quando eu era adolescente, antes não tive uma educação religiosa. Aos convertidos acontece por vezes que, depois da euforia da conversão, surge uma crise. A pessoa reconhece que a Igreja tem muitos problemas. Uma das minhas crises mais profundas surgiu antes da ordenação — teria de trabalhar na clandestinidade, debaixo de um perigo constante, além de pensar sobre como conseguiria viver sem uma família — estive em retiro, a fazer exercícios espirituais, foi muito, muito exigente. Mas até os santos passam por essas crises. Outra aconteceu mesmo depois da queda do comunismo, altura em que descobre os pequenos poderes dentro da Igreja. Antes disso, eu cooperei com padres que eram como santos, eram verdadeiras testemunhas da fé, passaram anos em campos de concentração e prisões estalinistas. O meu conceito de Igreja eram esses homens e esperava que todos os padres fossem assim. Eu tinha idealizado a Igreja [à luz desses homens]. E depois da queda do comunismo, tantas possibilidades e tantas oportunidades que havia e o que sucedeu foi um retrocesso e foi difícil para mim. Foi um tempo em que descobri o misticismo, a tradição dos místicos que falam da noite escura da alma, foram eles que me ajudaram a compreender. Os místicos João da Cruz e Teresa de Ávila foram importantes no fortalecimento da sua fé, mas fala também dos exercícios espirituais zen, que já praticou, da sua admiração pelo budismo. São tudo formas semelhantes de chegar a Deus?Não é o mesmo, mas temos mais proximidade na dimensão espiritual mais profunda do que na doutrina. Estudei religião e tenho o contacto pessoal com essas religiões porque depois da queda do comunismo pude viajar muito, visitei todos os continentes e conheci os seus líderes religiosos. É amigo do Dalai Lama?Sim, somos amigos, já estivemos juntos várias vezes e no meu dia de anos recebo as saudações do Papa Francisco e do Dalai Lama! (riso) É muito bom. Eu escolhi a fé cristã, eu decidi ser padre, mas eu tentei outros caminhos espirituais e por isso entendo que o diálogo entre as religiões é muito importante. As diferenças entre as religiões está na doutrina, nos rituais, mas não há assim diferenças tão profundas nas questões éticas. Todas as grandes religiões são escolas que nos ensinam a como superar o nosso egoísmo, como transformar as nossas emoções e como viver em paz com os outros. O mais profundo é a experiência de ficar em silêncio perante o grande mistério que é Deus e aí as semelhanças são grandes. Temos a meditação em silêncio, que é muito semelhante [à das religiões orientais], já temos feito em conjunto. Por isso penso que o ecumenismo a nível espiritual é importante porque toda a actividade e todas as palavras nasceram do silêncio. Hoje as pessoas procuram a espiritualidade fora da Igreja, muitas vezes nas filosofias orientais. Não creio que essas pessoas possam voltar à Igreja, mas esta é um organismo vivo. A grande diferença não é entre os crentes e os não crentes, mas entre os acomodados e os que procuram. Os acomodados são aqueles que estão completamente satisfeitos com a situação da sua comunidade religiosa, e o número de pessoas que está completamente satisfeita com a Igreja está a diminuir. Mas o número de ateus também está a diminuir. Portanto, eu penso que entre os crentes há um grande número que procura um caminho, que procura uma espiritualidade, alguns acreditam em “algo”. São pessoas que costumam dizer: “Eu não acredito em Deus, mas existe algo. ” São a mais vasta religião dos nossos tempos. A Igreja futura depende da capacidade de comunicar com os que procuram e de os acompanhar, o que é diferente das missões clássicas. A ideia não é empurrá-los para as estruturas da Igreja já existentes, mas abrir essas estruturas. No futuro, haverá muitas formas e artes de ser cristão, tal como aconteceu no início dos tempos, quando o cristianismo era muito, muito plural. A comunidade de São Paulo era diferente da de Pedro, etc. ; nos primeiros séculos, havia tantas diferenças entre os cristãos de Roma, os celtas, os germanos, mais tarde, os da Índia e outros. Portanto, havia um grande pluralismo. Depois da separação da Igreja de Ocidente e Oriente, a do Ocidente foi romanizada e a pluralidade foi suprimida. Mas o Concílio Vaticano II veio abrir a Igreja a esse pluralismo, à globalização. A Igreja é muito pluralista e será ainda mais. É muito importante criar um ecumenismo mais vasto: como viver juntos nas nossas diferenças. Por vezes, há tensões dentro da Igreja. Por vezes, o ecumenismo é mais difícil entre católicos do que entre religiões!Os movimentos mais conservadores da Igreja, não sei se a sua dimensão é grande ou pequena, mas são muito. . . Barulhentos! (risos)Exactamente! E conseguem fazer ouvir as suas críticas ao Papa Francisco? Eles fazem uma grande oposição ao Papa, serão cerca de 10%, mas fazem muito barulho, fazem-se ouvir nas redes sociais. O conservadorismo não tem nada de mal, o que tem é o reaccionarismo. João Paulo II disse que a Igreja é um par de pulmões, um é o Ocidente e o outro é o Oriente, e eu penso que os católicos acomodados estão mais focados na tradição — há comunidades que preservam tesouros do nosso passado e isso é importante. Mas há pessoas mais abertas ao futuro, com uma espiritualidade mais flexível. O problema é que os conservadores nem sempre conseguem compreender esta pluralidade, querem ser os únicos donos da verdade, e isso é um problema. São eles os grandes defensores da vida, que dão a cara contra o aborto e a eutanásia? Contudo, defende que a resposta não está em condenar, mas está no amor. Esses temas são importantes, mas não são a mensagem do Evangelho. São uma reacção à revolução sexual dos anos de 1960 e a Igreja ficou demasiado focada na moralidade sexual. Se perguntarem, quem são os católicos, a resposta será: são aqueles que são contra o aborto, a contracepção, a homossexualidade. . . contra, contra, contra. E se perguntarem, então são a favor do quê? Ninguém sabe a resposta, só sabemos que são contra. Por isso, temos de defender a vida, a moral sexual é importante, mas a grande missão do Papa Francisco é descobrir o coração do Evangelho e da cristandade. O âmago é o amor, a solidariedade, a responsabilidade pelos pobres, pela natureza, pela criação, como viver na justiça e na paz. Isto é o que o Evangelho diz. Essa é uma mensagem mais difícil de pôr em prática do que erguer a voz para condenar?Claro que é mais fácil dizer que somos contra, contra, contra. É preciso levar o Evangelho a sério. É uma mensagem muito exigente. A missão do Papa Francisco é muito difícil?Sim, é muito difícil. Admiro João Paulo II e Bento XVI. Conheci-os pessoalmente, foram muito próximos um do outro, são muito importantes na história da Igreja e no confronto com a modernidade. Mas esse tempo acabou e vivemos num mundo pós-moderno, global e plural. E o Papa Francisco é o homem certo para este momento. A sua personalidade, o seu estilo de trabalho pastoral, de comunicar com as pessoas, de falar de questões que eram tabu são uma inspiração. Por isso, estou profundamente convicto de que é a maior autoridade neste mundo dividido. No seu livro e nas intervenções que tem feito, revela uma grande preocupação com o populismo. Não aprendemos com o comunismo e o fascismo?Eles têm muito em comum: o ódio, a visão a preto e branco. O comunismo, o bolchevismo, o fascismo ou o nazismo nasceram por causa da grande depressão e da crise económica na década de 1930. Temos tido crises, mas não tão grandes como aquela — além das económicas, também temos tido as de identidade. É um mundo complicado, onde as pessoas têm medos e ansiedades. Não é fácil encontrar as respostas para este mundo plural. Então, as pessoas procuram um alvo, porque têm medo, estão zangadas, ansiosas. Quem é responsável? Nos anos 1930 foram os judeus e agora são os muçulmanos, os refugiados, a União Europeia, etc. Há um aspecto importante: os meios de comunicação social. Na história, as grandes mudanças de paradigma sempre estiveram ligadas a novos meios de comunicação. Por exemplo, para o protestantismo, foi importante o nascimento da imprensa; a rádio foi importante para Hitler ou Mussolini; e a televisão tornou a política um espectáculo. Portanto, a grande mudança é a Internet e as redes sociais. Apenas uma elite está a beneficiar da globalização, porque as pessoas comuns sentem que são os perdedores, são os novos proletários. Têm acesso às redes sociais mas vivem em bolhas e só vêem informação que confirma os seus preconceitos e demonizam o mundo exterior. Isto é uma tragédia. É o reverso da medalha da globalização, esta divisão, estes pequenos mundos em que as pessoas não comunicam umas com as outras. Os populismos beneficiam desta situação e oferecem-se como messias, como quem vai resolver os problemas. Num mundo pós-comunista, há muitas pessoas que não sabem viver sem um inimigo porque se habituaram a ter um. As redes sociais são as responsáveis pelo crescimento dos movimentos populistas?Não sei dizer se são. Nós, as pessoas, é que somos responsáveis. Não podemos demonizar a tecnologia. Depende de como lidamos com ela e pode ser mal usada. Os novos messias são Duterte, Trump, Orbán ou, mais recentemente, Bolsonaro?São falsos messias. Não podemos dizer que os ditadores são culpados porque mais culpado é o povo que os elege em democracia. O povo é quem tem o poder e deu-lhes poder. Foi o que aconteceu com Hitler na Alemanha ou com o comunismo no nosso país [República Checa], e esse é o problema da democracia quando esta é usada apenas como um mecanismo. Estou profundamente convicto de que a democracia é a cultura de relações entre as pessoas e não apenas o mecanismo das eleições livres, porque esse, já vimos, pode ser mal usado. A democracia precisa de um clima moral. Pessoas como Putin, Trump ou Orbán são o espelho de algo que está errado no nosso coração e na nossa mente. Já falou da comunicação social. E, na escola, como é que se luta contra os populismos? Se eu tivesse a resposta, não teria recebido apenas o prémio Templeton, mas o Nobel! (risos). Uma coisa muito importante é desenvolver o pensamento crítico. Acredito na aliança entre a fé e a razão, foi a mensagem de João Paulo II. A fé sem racionalidade é muito perigosa e dá origem aos fanatismos. Mas a razão sem ética também pode ser perigosa. Nos meus livros, escrevo que a fé e a razão são como irmãs e precisam uma da outra. A economia é muito importante — eu costumo dizer que vivemos no moneyteism, por oposição ao monoteísmo —, mas precisamos do capital social, o capital da confiança e sem isso é cada vez mais perigoso. O testemunho da vossa geração, aquela que foi perseguida no tempo do fascismo ou do comunismo, também deveria servir de alerta para não se repetirem os mesmos erros?E essa é a razão por que escrevi este livro, não para falar de mim, não sou assim tão importante, mas para dar um testemunho, porque foi uma experiência que, por vezes, foi muito difícil e que é um dever nosso oferecer a nossa experiência aos outros. E a Igreja também tem um papel no combate ao populismo?A Igreja deve ser parte de um sistema imunitário da sociedade. No nosso corpo, há células doentes, mas se o sistema imunitário trabalhar bem, essas serão menos perigosas; se falhar, então as células proliferam e pode transformar-se num cancro muito grave. Mas não é só a Igreja [que faz parte desse sistema], também a imprensa livre e as universidades. Acredito que a Igreja tem um papel importantíssimo para fazer a ponte entre o mundo islâmico e o secularizado do Ocidente, que são dois mundos em tensão. Os cristãos têm muito em comum com esses dois mundos — somos uma religião abraâmica, tal como o islão, e fazemos parte do humanismo do Ocidente (este nasceu no seio cristão). Há muitas formas de estes dois mundos dialogarem e a Igreja pode ter essa função. É um enorme desafio. Mas acredita que o Papa Francisco tem esse poder e que lhe é reconhecido pelo mundo?Acredito que tem esse papel, mas não tenho a certeza de que todos compreendam e aceitem esse papel como uma oportunidade. Escreveu que João Paulo II desejava uma Europa unida do Atlântico aos Urales. Putin é o grande responsável por essa Europa não se concretizar?Sou muito céptico em relação à Rússia. Não está ainda preparada para a democracia, pois é muito diferente, em termos culturais [da Europa ocidental]. O país tem uma oposição democrática muito fraca, a imprensa também (muitos jornalistas têm sido assassinados), por detrás do Putin há um forte lobby dos chamados “novos russos” que têm o seu capital no Ocidente, onde os seus filhos estudam, onde compram propriedades, palácios, obras de arte. A ideologia de Putin, que está a ser replicada por Orbán, é muito perigosa. A Rússia tem problemas e investe imenso dinheiro em propaganda — Putin é um ex-agente da KGB, portanto é um conhecedor da importância da propaganda —, fazendo uma guerra verdadeira contra o Ocidente e a União Europeia. As fake news, as mentiras que são espalhadas. O Ocidente não está preparado para levar esta guerra a sério. O alvo são as antigas colónias, as antigas repúblicas soviéticas e satélites. A Rússia nunca aceitou a queda da URSS e tem saudades do império soviético. Estaline é o grande herói de Putin. Portanto, é muito perigoso. O comunismo caiu, mas o imperialismo e o nacionalismo russo continuam de pé. Outro problema é a China, especialmente a campanha que faz na tentativa de nacionalizar as religiões. São dois grandes problemas, porque o caminho do comunismo para a democracia é muito difícil. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Rússia é um perigo para a República Checa?Sim, claro, porque os russos estão envolvidos em muitas eleições. Vimos isso nos EUA e no nosso país também. Eles usam “cavalos de Tróia” para entrar na União Europeia e na NATO. Eles apoiam os populistas e precisam deles como marionetas para seu interesse. Por isso, apoiam políticos não apenas no meu país, mas noutros, para conseguir que existam tensões. Com essas investidas de que fala e o “Brexit”, a União Europeia (UE) corre o risco de acabar?Não. O “Brexit” foi uma enorme estupidez. Eu estava na Universidade de Oxford para receber o doutoramento honoris causa um dia antes [do referendo] do “Brexit” e falava com os meus amigos professores e todos estavam convencidos de que o “não” iria vencer. Mas o taxista e a empregada do hotel eram pela saída. Mais uma vez, a propaganda resultou. A UE é muito importante e é importante que se mantenha. Mas precisa de reformas, falta-lhe a dimensão cultural e espiritual para criar uma identidade europeia, para dar uma resposta a: “O que é ser europeu?” Não podemos responder apenas com frases feitas e repetidas. Há políticos que usam o catolicismo para dizer que são contra os refugiados porque têm uma fé diferente da nossa ou que são contra os homossexuais. Esse é um mau uso. Mas tenho a esperança num mundo mais ecuménico, mais alargado e cooperante. Nesse mundo, a Igreja pode ser um importante parceiro.
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Budismo Protestantismo
Marcha das Mulheres: resistência, política e humor
O desafio de um grupo de mulheres apareceu nas redes sociais e a resposta foi avassaladora: 673 marchas no mundo inteiro em nome dos direitos humanos, da justiça social, da igualdade, da tolerância, da paz. O que se viu e sentiu a 21 de Janeiro foi a cumplicidade que se politiza para resistir. (...)

Marcha das Mulheres: resistência, política e humor
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 16 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O desafio de um grupo de mulheres apareceu nas redes sociais e a resposta foi avassaladora: 673 marchas no mundo inteiro em nome dos direitos humanos, da justiça social, da igualdade, da tolerância, da paz. O que se viu e sentiu a 21 de Janeiro foi a cumplicidade que se politiza para resistir.
TEXTO: No sábado 21 de Janeiro de 2017, foram 175 mil as pessoas que se juntaram no mais antigo jardim público dos EUA, no centro de Boston. Foi mais uma das 673 “marchas-irmãs”, que se organizaram por todo o mundo para acompanhar a principal, que teve lugar na capital norte-americana, em Washington D. C. , um dia depois de Donald J. Trump se ter tornado Presidente. O movimento Women's March (Marcha das Mulheres) nasceu de baixo para cima, pouco depois da eleição de 8 de Novembro de 2016 que surpreendeu grande parte da América com a vitória de Trump. Tal como as raízes das ervas que nascem da terra, é um movimento de base, politizado mas não partidário, que partiu da vontade de acção de cidadãos comuns – neste caso, de mulheres comuns – construírem uma democracia participativa. Um pequeno grupo de desconhecidas lançou o desafio através das redes sociais. A resposta foi avassaladora e a prova disso foi aquilo que aconteceu em Washington, nos Estados Unidos e no mundo inteiro no dia 21 de Janeiro e levou milhões de pessoas a saírem de casa para, unidas, se manifestarem. Já é considerada a maior manifestação que alguma vez aconteceu no país. Nenhuma rede social teria substituído a força da presença humana. Mas não chega. E a partir daqui tudo regressará às redes sociais onde nasceu – a marcha foi apenas o primeiro passo de muitas acções e iniciativas no sentido de dar continuidade ao espírito, às ideias e políticas da Women's March. O que é que defendem as pessoas de todas as idades e origens étnicas – mulheres, sobretudo, mas também, homens, crianças – que no sábado se juntaram no centro de Boston e em tantos outros lugares? As únicas palavras que poderiam reunir a multiplicidade de causas são os direitos humanos, a justiça social, a igualdade, a tolerância, a paz. Todos valores que se sentiram postos em causa pelas palavras e políticas anunciadas por Donald Trump durante a intensa campanha eleitoral e que se viram, realmente, ameaçados pela sua eleição. Aquilo que se tornou visível nas milhares de frases escritas à mão em cartazes, folhas de papel, cartões reciclados, erguidos por entre a multidão de cabeças (cor-de-rosa) foi precisamente essa diversidade de ideias e causas. Os cartazes diziam coisas diferentes, mas todos dialogavam uns com os outros. “Women's rights are human rights”, defender os direitos das mulheres é defender os direitos humanos e vice-versa. Os benefícios para uns são os benefícios de todos. No dia 21 de Janeiro, defenderam-se os mais frágeis e marginalizados, os “ilegais”, os imigrantes ameaçados pela deportação devido às novas políticas, as mulheres vítimas de violência, o planeamento familiar, os direitos LGBT, as pessoas com deficiência, tal como os direitos reprodutivos ou a desigualdade salarial entre homens e mulheres, ainda tão tolerada nos Estados Unidos como noutros lugares do mundo democrático. “Trabalho igual/salário igual. ” Contra o racismo, a desigualdade, a discriminação e a intolerância. “Em vez de muros construam-se pontes”, lia-se em vários cartazes. São múltiplos os cruzamentos entre as diferentes esferas, da justiça à igualdade ou à ecologia. E mesmo que algumas pessoas se sintam mais identificadas com umas causas do que com outras, cada vez existe mais consciência de como todas se cruzam. Esta foi sem dúvida uma marcha “interseccional”, em que muitas causas se juntaram, na sua pluralidade e diferença. “Interseccionalidade” é uma palavra difícil, muito usada nos estudos de género, que quer apenas dizer que há muitos aspectos das nossas identidades que se cruzam, que estão interligados e são indissociáveis uns dos outros. Um feminismo “interseccional”, por exemplo, reflecte sobre os cruzamentos entre género e raça, entre género e orientação sexual, ou entre género e meio social. Muitas das questões que afectam uma mulher negra norte-americana pobre, sem educação superior e sem um seguro de saúde são semelhantes às de uma mulher branca em iguais condições. E são muito diferentes dos desafios de uma mulher afro-americana que tenha estudado em Yale, talvez até graças às políticas de quotas em vigor para tentar combater a enorme desigualdade racial que ainda afecta o acesso às universidades de prestígio. Mas estas duas mulheres, negras, também têm identidades comuns. Como já disse o ex-Presidente Barack Obama, se ele tivesse tido um filho rapaz, teria todos os privilégios de afecto, educação e condições materiais, mas seria muito parecido com aqueles rapazes negros e não armados que têm sido mortos por polícias em vários lugares dos Estados Unidos. E ao andar na rua a pé, a cor da pele seria a mais visível das suas identidades. As políticas de identidade implicam que as pessoas assumam os aspectos das suas identidades que as podem tornar mais vulneráveis ou alvo de discriminação, óbvia como inconsciente. Ex-alunos da Harvard Business School, negros, contaram ao jornalista Ellis Cose, também negro, porque é que evitaram as políticas de identidade: “Uma chave para o sucesso de uma pessoa que não seja branca nem do sexo masculino é nunca falar de raça ou de género a não ser para declarar que a raça e o género não têm relevância nenhuma. ” Na ironia destas declarações está a versão simplificada das atitudes possíveis. Fingir que é uma não-questão ou – como aconteceu na Marcha das Mulheres – declarar bem alto que existem diferentes identidades. E que para que não sejam motivo de discriminação ou de desigualdade é preciso falar nelas. Para muitos, no sábado, dia 21, era a primeira vez que viviam algum tipo de activismo. Muitas das mulheres presentes nunca se tinham sentido envolvidas nas causas dos “direitos das mulheres”, muito menos participado numa manifestação. Num New York Times de há uns dias, um artigo acompanhava um grupo de mulheres no seu primeiro ritual de passagem feminista. Altas funcionárias em Wall Street, em Nova Iorque, da finança à advocacia, tinham crescido profissionalmente a tentar que a sua identidade de género passasse despercebida. Já chegava serem poucas num mundo dominado pelo masculino, onde qualquer posição antidiscriminatória poderia catalogá-las de “feministas”. A palavra, afinal, não é apenas incómoda para muitos homens, mas para muitas mulheres, que temem, e não por acaso, que as suas conotações negativas perturbem a sua afirmação pessoal. Algumas colegas de Wall Street não foram a Washington por temerem repercussões profissionais ou de clientes apoiantes de Trump. Mas muitas partiram, aos milhares, em autocarros, de Nova Iorque (a cidade onde Trump fez toda a sua carreira de homem de negócios, mas onde poucos votaram nele), para a capital do país, Washington, onde se juntou quase um milhão de pessoas. Uma das causas da Marcha das Mulheres, também muito presente nos cartazes, foi o movimento Black Lives Matters (http://blacklivesmatter. com), criado em 2012, que muitos consideram uma segunda vaga do movimento de direitos cívicos que teve em Martin Luther King a sua principal figura. Mas, agora, à palavra “matter” – “importa"/"interessa” – associaram-se novas palavras: “Muslim women matter”, “Illegal immigrants matter”, “Transwomen matter”. Inspirados na mais icónica imagem gráfica de Obama e com uma legenda a dizer “We the people”, viam-se reproduzidos por todo o lado três retratos a representar três tipos de mulheres americanas: num deles, uma mulher com a cabeça coberta por um véu com a bandeira americana representava as mulheres muçulmanas; no outro, uma menina afro-americana; e no terceiro, uma mulher “latina”, em nome da comunidade que mais tem crescido nas últimas décadas nos EUA, e aquela que está mais fragilizada em muitos aspectos, pela ilegalidade como pela pobreza. Um homem levantava o seu cartaz feito à mão: “Make America IMMI-great again”. Os oitos anos da presidência de Obama foram, sem dúvida, um sinal de força e de esperança para os afro-americanos e para todos aqueles que acreditam na possibilidade da igualdade, mas os problemas raciais nos Estados Unidos continuam a ser muitos e a afectar demasiados. O movimento Black Lives Matter tem muitas razões para continuar vivo. As vidas negras continuam a valer menos. Um estudo recente revelou como nos Estados Unidos morrem muito mais mulheres negras do que mulheres brancas com cancro de colo de útero. As razões, claro, são múltiplas e começam logo no acesso aos cuidados de saúde, da prevenção ao tratamento, um assunto especialmente delicado que foi uma das principais batalhas de Barack Obama. Mas as provas mais gritantes desta desvalorização estão nos nomes e números daqueles que têm sido mortos pela polícia porque estão a passar na rua, porque é noite ou porque é dia. E porque a cor da pele é vista como uma ameaça que legitima o abuso da força e do gatilho das autoridades. E voltamos ao hipotético filho de Obama. Igual a muitos dos que têm sido injustamente maltratados por alguns membros das forças policiais. marchas por todo o mundo para acompanhar a principal, em Washington D. C. , onde se juntou quase um milhão de pessoasEste é apenas o lado mais visível da discriminação racial nos Estados Unidos contemporâneo. O mais invisível é aquele que está atrás das grades ou mesmo em celas de isolamento, daquelas que só associamos a ditaduras de países distantes ou a tempos históricos remotos. Ironicamente, fala-se mais deles quando são mortos do que quando estão vivos mas não têm voz. A encarceração maciça de homens negros nos Estados Unidos, o país do mundo com a maior percentagem da população presa, pode ser vista como uma nova forma de escravatura. Este é o principal argumento do recente documentário produzido pela Netflix, 13th, realizado por Ava DuVernay, uma mulher afro-americana. Quem quiser saber mais poderá ler os impressionantes artigos de investigação que têm saído nos últimos tempos na revista New Yorker ou no jornal New York Times. O racismo do sistema judicial norte-americano pode manifestar-se em várias fases: do momento em que um homem negro é apanhado numa rusga policial e não tem dinheiro para contratar um advogado ou para pagar uma caução, e os 30 anos que ele poderá passar na prisão, em condições inumanas, para muitas vezes sair sem culpa provada. Ou mesmo depois, já livre, quando mesmo inocente, fica impossibilitado de votar. Para sempre. Depois de Obama, o movimento Black Lives Matter é mais necessário do que nunca, num país onde a geografia da escravatura continua a marcar as rotas e territórios do racismo contemporâneo. No sábado, dia 21, também voltou a marchar nas ruas. Racismo e sexismo cruzam-se de inúmeras formas. Faz todo o sentido que os activismos que os contestam também andem de braço dado. Há outras vidas que importam mas sobre essas notei um inquietante silêncio. Talvez porque ninguém acredite nas possibilidades de uma mudança real. Refiro-me às vítimas da pena de morte, ainda efectiva em tantos estados do país, e às vidas daqueles que são mortos pelos tiroteios em massa que, de quando em quando, relembram ao país a sua estranha forma de se relacionar com as armas. Barack Obama bem tentou durante oito anos mexer num dos maiores tabus americanos, salvaguardado na Constituição, mas as resistências foram demasiadas, do Partido Republicano à National Rifle Association (NRA), que defende o fácil acesso a armas e que tem em Trump um grande adepto. Em Boston, apenas vi um cartaz a tocar na ferida: “Gostava que este país se preocupasse tanto com os meus direitos como se preocupa com as suas armas”, acompanhado do desenho de um círculo sobre uma cruz, o símbolo astrológico do planeta Vénus, que foi apropriado nos anos 1960 pelo movimento feminista, tornando-se o mais icónico dos seus símbolos. “I cannot believe I still have to protest this shit!”, diziam vários cartazes. Afinal, pensávamos que estes direitos já estavam mais do que adquiridos. Os movimentos de mulheres dos anos 1970, como os movimentos contra a discriminação racial, o “civil rights movement”, dos anos 60, já estão de facto arrumados nos manuais de história dos adolescentes norte-americanos. Mas foram muitos desses mesmos adolescentes que – à hora a que o Presidente Trump fazia o juramento na sexta-feira, dia 20 – saíram das aulas em uníssono e se dirigiram para as praças públicas para manifestarem o seu desagrado. Adolescentes, bebés, crianças, muitas, aprendiam com os pais e avós a linguagem do activismo, vivido em comunidade e de modo pacífico. A ausência, visível, de polícia favorecia o ambiente descontraído. Uma menina negra, de uns dez anos, usava uma cartolina como um colete, “I am a feminist”, pintada com lápis de cor. Uma menina branca de cinco, seis anos pintara “Eu gosto da Hillary, P. S. : e de cães. ” O cartaz de um rapaz adolescente repetia o título da famosa TED Talk, depois transformada em livro, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie – “We should all be feminists. ”Olhando à volta, via-se a massa humana, mas também um mar de cartazes – criatividade, originalidade e individualidade – onde cada pessoa tinha posto, em poucas palavras ou num desenho, aquilo que queria dizer publicamente. Palavras escritas. Não nas redes sociais, mas ao vivo, feitas à mão e partilhadas numa marcha em que a cumplicidade foi o sentimento de ordem. Um casal branco, alto e elegante, de mais de 70 anos, empunhava: “Still marching after all these years” com uma fotografia – dela? – numa manifestação feminista na década de 1970. O Still crazy after all these years, de um dos ícones da época, Paul Simon, transformado numa constatação, triste e irónica. Sim, ainda há razões para estarmos aqui. Barbara Lee, uma filantropa próspera de Boston, muito envolvida politicamente, usava uma faixa original das sufragistas do princípio do século XX – “Votes for Women”. Tem esperança – ainda – de ver uma mulher na presidência dos Estados Unidos. Muitas mulheres e alguns homens, de várias gerações, subiram a uma plataforma para falar, da senadora Elizabeth Warren ao presidente da Câmara de Boston, Martin J. Walsh. Mas o que esta marcha revelou, sobretudo, foram os milhares de voluntários, mulheres, e também homens, que dedicaram muito do seu tempo nos últimos meses a preparar este movimento de pessoas “normais”, politizadas mas não políticas. E que agora continuam activas. Algumas frases vinham de outros momentos históricos mas soavam ainda estranhamente contemporâneas. “Feminism is the radical notion that women are people”, “Smash the Patriarchy”, “The future is female”. Outras falavam ao presente numa paródia onde a frase original era subvertida do seu significado: “A woman's place is in the house, the senate, and the oval office!” Alguns homens levavam cartazes com setas apontadas em todas as direcções “Eu estou com ela, com ela e com ela”. Ou seja, com os milhares de “elas” que o rodeavam. Afinal, como também se lia, “Men of quality, don't fear equality” ou “I'm a man, I stand with women, does this disqualify me for president of the US?” Os homens, aliás, estavam por todo o lado – pais, avós, namorados, maridos, amigos, filhos. Alguns caminhavam de mãos dadas. Afinal, os objectivos dos movimentos LGBTQI estão também ameaçados pelas novas políticas, e isto quando só há um ano e meio, no Verão de 2015, é que o casamento entre pessoas do mesmo sexo se tornou constitucional. O Kevin, jovem e giro (sei como se chama, porque toda a gente lhe perguntava o nome), trepou para uma das colunas altas do jardim com um barrete cor-de-rosa e uma bandeira arco-íris, simbólica dos movimentos sociais LGBT. A diversidade de cores estava de facto por todo o lado. Literal e simbolicamente. Na diversidade etária, religiosa, sexual e étnica (mesmo que em Boston dominasse uma maioria branca). Nos barretes cor-de-rosa tricotados à mão, na bandeira multicolor, ou nos cartazes originais de todas as cores. Mesmo na diversidade política. Em Washington algumas apoiantes de Trump foram às cerimónias do Presidente mas ficaram mais um dia, para a das mulheres. Afinal, todos os seres humanos são contraditórios e os resultados eleitorais também – 53% das mulheres brancas votaram nele (as mulheres negras, dizem as estatísticas, foram muito mais sensatas, mas não foram tão eficazes). Apenas um grupo organizado de mulheres manifestou não se sentir integrada na convocatória para a Marcha, aquelas que integram os movimentos anti-aborto e que têm em Trump um grande apoiante. A religião também esteve presente. Uma família divertida levava um enorme cartaz “Jesus is a feminist”, um grupo católico empunhava um “Caminhamos com as mulheres do mundo”, uma das igrejas protestantes, no caminho da marcha, tocava os sinos e servia de refúgio para quem quisesse descansar. Muitas frases falavam de direitos humanos, em geral, e dos perigos dos abusos de poder. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, “Não interessa quem somos, merecemos ser bem tratados”, “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça para a justiça em todo o lado”, ou “Se queres saber a verdadeira natureza de um homem, repara na forma como ele trata os seus inferiores, não os seus iguais”, frase posta na boca de uma personagem de Harry Potter, por J. K. Rowling. Esta como outras frases estavam assinadas por nomes simbólicos de movimentos pelos direitos das mulheres, dos negros ou pela paz, de Gandhi a Luther King, Angela Davies e Susan B. Anthony, uma das mais famosas norte-americanas defensoras dos direitos das mulheres e antiesclavagista da segunda metade do século XIX. “Feminism is back by popular demand”, lia-se noutro sítio. “Os criminosos sexuais não podem viver em edifícios governamentais”, dizia um cartaz a propósito do novo inquilino da Casa Branca. Jane Fonda, que foi à Marcha das Mulheres em LA, trata-o por “Predator-in-chief”. A marcha não era só contra Trump. Havia da parte de múltiplas organizações o empenho em que fosse muito para além disso. Mas claro que também foi contra ele. Foi ele que dominou os cartazes, sob a forma de nome ou em caricatura, até porque, neste caso, o musa inspirou as artistas. Desde as frases mais simples, “Not my president”, “Not in my name”, “Untrump the world”, “Love Trumps Hate”, até ao “Emperor Trump isn't wearing clothes”, “History has its eyes on you” ou o “Make America think again”. “Love not hate makes America great” uma alusão à frase mais abundante dos seus discursos – “Make America great again” via-se escrita, tal como se ouvia, cantada em uníssono. Um cartaz que provocava gargalhadas em quem passava era o “Free Melania”, uma referência à primeira-dama cujo maior gesto público de emancipação foi não se mudar já para a Casa Branca. Num enorme cartão, Trump dava um beijo na boca de Putin (uma imagem do programa de humor Saturday Night Live, onde o actor Alec Baldwin é ainda melhor do que o caricaturado). Em cima, as palavras “Pussy Riot”, uma alusão ao grupo de rock feminista e russo que se manifestou contra Putin, e pagou o atrevimento com a prisão. “You’re so vain, I bet you think this march is about you”, dizia um cartaz inspirado na música da Carly Simon. O problema é que também era sobre ele. Muitas palavras escritas respondiam directamente a ideias de Trump – “a ciência não é uma conspiração liberal”, “Não temos um planeta B” ou “As alterações climáticas são reais”. “Nenhum ser humano é ilegal”, li em português, ao longe. O espanhol estava mais presente, a assinalar a gigantesca comunidade latino-americana dos Estados Unidos. O metro de Boston tem tudo escrito em inglês e em espanhol, tal como grande parte da informação oficial em muitos lugares dos Estados Unidos, nas escolas ou nos hospitais. Mas quem lê muitas dessas frases são imigrantes ilegais que temem agora ser deportados. “Say loud, say clear, immigrants are welcome here” foi uma frase muito gritada. O muro que Trump quer construir, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, tornou-se um “muro” metafórico feito para simbolizar todas as formas de opressão. As palavras que usou ao longo de toda a campanha – violentas, discriminatórias, intolerantes – voltaram-se, na marcha, contra ele. No fim da manifestação, penduraram-se todos os cartazes nas grades do parque de Boston, como numa exposição de arte ao ar livre. Muitos deles a esta hora já foram recolhidos em museus e arquivos históricos, conscientes de estarem a preservar para o futuro a cultura material do presente. O Smithsonian National Museum of American History, em Washington, teve muito que se entreter com os despojos da manifestação-mãe. Em Londres, o Bishopgate Institute lançou logo um apelo para o seu arquivo de história radical e activismo. Fotografias e cartazes de Janeiro de 2017 para uma colecção que começa em 1800. Numa oportuna coincidência, na sexta-feira passada, dia 27 de Janeiro, foi inaugurada em Nova Iorque no International Center of Photography a exposição Perpetual Revolution: The Image and Social Change, que explora os modos como a cultura visual – a fotografia, o filme, o documentário – se têm politizado. É mais uma das várias mostras que nos últimos anos têm explorado as relações entre política, conflito, resistência e imagem. Muitos têm afirmado que a Marcha das Mulheres foi a maior manifestação simultânea e global que alguma vez aconteceu na história. A mais bem documentada visualmente foi de certeza. O humor foi e é uma característica do movimento feminista. As Guerrilla Girls, ligadas às artes, museus e universidades, activas desde a década de 1980, altura em que se constituíram em movimento em Nova Iorque, foram especialmente criativas nos modos de associar feminismo e humor. A apropriação de insultos como uma forma de subversão ao agressor também já foi usada como resistência – “nigga”, reclamado pelos afro-americanos ao insulto racista “nigger”, é apenas um exemplo. Na Marcha das Mulheres, o humor voltou a dominar, dando o protagonismo a uma palavra e a uma história que resumem bem a consideração que Trump tem pelas mulheres. Aliás, talvez tenha mesmo sido essa história aliada ao facto de não o ter impedido de ganhar – em tudo o que isso revela sobre a tolerância colectiva face à violência contra as mulheres – uma das grandes motivações desta Marcha. A palavra “pussy”, em inglês, tem muitos significados e muitos deles propensos a ambiguidades e duplos sentidos. Quer dizer gato, “pussycat”, mas também fraqueza ou cobardia como características associadas ao feminino. Mas é também uma palavra pejorativa para “vagina” e foi a palavra que Donald Trump usou quando descreveu aquilo que fazia às mulheres sempre que lhe apetecia: “I grab them by the pussy. ” “Grab” quer dizer “agarrar”, “pegar”. A violência das palavras de Trump, proferidas há uns anos mas tornadas públicas pouco antes das eleições, teve um enorme efeito perturbador. Para ele, não passou de uma “conversa de balneário”. Para a sua mulher Melania, não passou de uma “conversa de rapazes”. Para muitas mulheres e homens norte-americanos, no entanto, foi uma “conversa” de um agressor sexual, um homem que abusava do seu poder e que falava com orgulho e banalidade, “entre homens”, dos actos de violência – crimes – que praticava. A brutalidade sexual das palavras que descreviam gestos pôs a América a falar de um assunto vivido por uma quantidade avassaladora de mulheres, de todas as gerações e meios sociais. Surgiram várias que, há 30 anos como há três, tinham sido objecto das suas agressões, mas Trump humilhou-as publicamente e ameaçou-as com processos judiciais, tal como ameaçou Hillary Clinton de a enviar para a prisão. Na Marcha das Mulheres, o feitiço virou-se contra o feiticeiro e aquilo a que se assistiu foi a uma desforra carnavalesca das palavras – e gestos – do Presidente. “Grab them by the president, it's Powder Room talk”, “This Pussy fights back”, “Try and grab this pussy”, muitas vezes acompanhadas com imagens de gatos. Em Boston, como por essa América fora, viam-se “Nasty women” [mulheres mazinhas] ou “Angry women” [mulheres zangadas] por todo o lado. A primeira expressão foi usada por Trump para insultar Hillary Clinton. A segunda, remete para “angry black woman”, uma expressão sexista e racista surgida na América dos anos 1930, de que Michelle Obama também já foi objecto. O nome de Michelle aparecia aqui e ali. Afinal, foi ela a fazer o mais poderoso discurso contra a forma como Trump falou das mulheres. E é nela que muitos falam quando pensam numa futura candidata à presidência dos Estados Unidos. Mulher e negra sim, mas, para a brigada do antipoliticamente correcto, também inteligente, eficiente e humana. Mas o elemento mais marcante, entre os milhões de cabeças de pessoas que desfilaram, foi o mar de barretes rosa-choque tricotados à mão. Mais uma vez, a inspiração veio de Trump. O gorro em vez de ser redondo tem duas “orelhas”, uma alusão às orelhas de gato que lhe deram o nome, “Pussycat hats”. É feito à mão, tricotado, uma prática tradicionalmente feminina que assim se vê investida de um novo poder subversivo. É cor-de-rosa – não o cor-de-rosa bebé com que se vestem as meninas à nascença, mas uma cor especialmente forte. “Forte” foi outra das palavras de ordem. O barrete serviu também como símbolo de apropriação dos muitos significados da palavra “pussy”, revertendo-a a seu favor. O insulto transformou-se num instrumento de resistência. A vítima transformou-se na força e na voz. Ainda por cima bem visível naquele cor-de-rosa gritante. Muitos homens também empunhavam os gorros. Alguns não por opção. As estátuas em bronze dos homens históricos de Boston – as cidades também têm género – estavam todas encapuçadas. Muitos outros, de carne e osso e contemporâneos, também. Como o condutor dos camiões de serviços urbanos. De óculos escuros, colete fluorescente e sentado no tejadilho do camião, além do gorro enfiado na cabeça, segurava um cartaz: “Girls just wanna have fundamental human rights”, mais uma canção, de Cyndi Lauper, a servir de mote ao humor activista. O gorro já está na capa da revista Time, sozinho, e na capa da New Yorker acabada de sair. Na cabeça de uma mulher negra, reinventa o cartaz de 1943 que incentivava as mulheres operárias a aumentar a produtividade em tempos de guerra e que só na década de 1980 foi apropriado por movimentos feministas. Um homem desfilava na marcha de Boston com um enorme cartaz cor-de-rosa – “Hey, Donald look where I found your inauguration crowd!” – e despertava sorrisos por onde passava. O principal tema das notícias nos telejornais norte-americanos no dia 21 de Janeiro, primeiro dia de Trump na presidência, versava sobre “multidões”. Por um lado, as multidões evidentes das Women's Marches, quase 500 mil em Washington, muitos milhares em Chicago, Boston, Nova Iorque, mas também Denver, Austin, capital do Texas, ou até no Alasca. Por outro lado, a ausência de multidões nas cerimónias de inauguração de Donald Trump, tornadas visíveis numa imagem dupla que se tornou viral nas redes sociais. Do lado esquerdo, uma fotografia aérea das multidões que foram a Washington para a inauguração presidencial de Obama em 2009. No lado direito, a imagem da inauguração de Trump, a deixar em evidência os espaços vazios. A questão aqui não foi a da legitimidade da imagem ou a relevância dos números, mas sim a da importância que lhe foi dada pelo novo gabinete de imprensa da Casa Branca que a julgou merecedora da sua primeira aparição pública. A questão do tamanho das multidões talvez não seja assim tão importante. Afinal, quem votou em Donald Trump não foi em massa às cerimónias de inauguração. E quem não votou nele, e se opõe àquilo que ele representa, foi, sim, para as ruas, participar nas quase 700 marchas de mulheres que aconteceram em todo o mundo. A questão determinante agora é a de saber qual o tamanho das multidões que as suas políticas irão afectar de forma negativa. Quantos irão perder o direito a cuidados de saúde e a uma morte digna? “Obama cared” dizia um cartaz. Quantos serão deportados por ser ilegais? Quantos imigrantes deixarão de se reunir com as suas famílias? Quantas mulheres não sofrerão com a ameaça do novo Governo em cortar os apoios às organizações de apoio a vítimas de violência doméstica? Quantos muçulmanos serão impedidos de entrar nas fronteiras norte-americanas? Quantos homens negros é que irão para a prisão injustamente (ou serão mortos a tiro pela polícia) no afã de limpeza da pobreza urbana? Quantas mulheres perderão o direito ao planeamento familiar acessível ou aos direitos reprodutivos? Quantas pessoas serão afectadas pela desvalorização das políticas ambientais? Quantas mulheres não verão posta em causa a igualdade salarial com argumentos de produtividade industrial? Quantos investigadores verão o seu trabalho posto em causa por quem não acredita na ciência e acha Barack Obama um “académico” (em oposição ao suposto “realismo” do homem de negócios)? E quantas mais mulheres terão de ser “grabbed by their pussies” e transformadas por Trump em patéticas invenções da imprensa? Essa imprensa – o New York Times, o mais demonizado – que ele menospreza, como um bando irresponsável de desonestos. Uma coisa é certa, aquilo que aconteceu no dia 21 de Janeiro reconciliou-me com a América. Vi e senti na rua aquilo que já se intuía desde o dia 9 de Novembro, um dia depois de acontecer o que tantos julgavam ser impossível. Hillary Clinton não ganhou mas há uma América que reagiu ao choque e que se está a mexer, a associar, a politizar e que vai resistir. Do desespero ao envolvimento. Em prol dos direitos humanos, da igualdade, da justiça social. A vitória de Trump teve esse, único, benefício, de politizar, nas bases, aqueles que de outra forma não o teriam feito. No seu discurso de despedida em Chicago, no dia 10 de Janeiro, o Presidente Barack Obama encorajou "o povo" à acção. Mas as mulheres já tinham respondido ao apelo de cidadania activa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Trump não está a perder tempo. A primeira semana de trabalho já fez muitos estragos. Num dia começou a desmantelar o programa de saúde acessível que Obama conseguira montar com tanto custo. No outro, viu-se livre dos refugiados e começou a tratar da construção do muro. O website da casa branca já retirou referências a alterações climáticas, direitos cívicos e violência contra as mulheres. Mas do outro lado, também não estão a perder tempo. 21 de Janeiro foi o dia da solidariedade, do optimismo, dos contactos, da criação de novas redes e ideias, mas foi no regresso a casa que o verdadeiro trabalho começou. Um dia depois da Marcha das Mulheres, a organização anunciou logo as 10 acções a serem postas em prática nos próximos 100 dias. Podem lê-las em https://www. womensmarch. com. Historiadora, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
REFERÊNCIAS:
A década em que se voltou a exigir democracia na rua
“Movimento das praças” ou “novos novos movimentos sociais”. Seja qual for o nome que se lhe dê, algo de novo aconteceu nesta década, um novo ciclo de protestos herdeiro do Maio de 68, mas distinto dele. Sistemas partidários foram estilhaçados, novas soluções governativas encontradas. “O Manifestante” veio para ficar? (...)

A década em que se voltou a exigir democracia na rua
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Movimento das praças” ou “novos novos movimentos sociais”. Seja qual for o nome que se lhe dê, algo de novo aconteceu nesta década, um novo ciclo de protestos herdeiro do Maio de 68, mas distinto dele. Sistemas partidários foram estilhaçados, novas soluções governativas encontradas. “O Manifestante” veio para ficar?
TEXTO: Maio de 1968, Paris: “Sejam realistas, exijam o impossível. ” Março de 2011, Lisboa: “Inevitável é a tua tia. ” O Maio de 68 morreu ou está mais presente do que nunca como referência? Nunca teve a importância que muitos lhe atribuíram? Hoje, revoltamo-nos mais ou menos? Há 50 anos exigíamos direitos cívicos e agora só nos manifestamos por questões materiais? O que nos revolta faz-nos sair à rua ou grande parte do activismo social acontece online?As respostas não são consensuais. Se ainda há muitos que na academia se dedicam aos “longos anos 60” e ao ciclo de protestos que começou na década anterior e só terminou na seguinte, do México ao Paquistão, também já há quem publique investigações sobre a década em que vivemos e a vaga de movimentos sociais e activismo a que assistimos. Movimentos que começaram por responder a uma crise da banca e da dívida e acabaram a pôr em causa a democracia representativa, o capitalismo ultraliberal e a forma como nos organizamos em comunidade, comunicamos, nos movimentamos ou comemos. Era de novo Primavera e 40 anos depois de 68 voltou a ser exigido o impossível. Da Avenida Habib Bourguiba de Tunes às Portas do Sol de Madrid, da Tahrir do Cairo ao Occupy Wall Street, passando pela Avenida da Liberdade e pelo Rossio. Em 2008, falia o banco de investimentos Lehman Brothers. As consequências que muitos recusaram antecipar não demoraram. Bolhas imobiliárias resultaram em casas abandonadas, hipotecas por pagar; um sistema de bolsa com demasiada imaginação e ganância e instituições financeiras foram resgatados com o dinheiro que os governos passaram a dizer não dispor para manter as garantias de um Estado social. Revoltas contra ditaduras desencadeadas pela mistura explosiva de desfavorecidos desesperados e classe média politizada e mantida à margem das decisões políticas. Tudo ajudado pela rapidez com que as redes sociais permitem comunicar, mobilizar e difundir imagens de repressão ou protesto. Uma e outra vez a mesma descrição: “Saí à rua a medo, primeiro não vi quase ninguém, pensei que era um fracasso, depois começaram a aparecer pessoas vindas de todos os lados…”A frase é de Lina ben Mhenni, activista tunisina, mas podia ser do português João Labrincha ou de um dos primeiros espanhóis a acampar no centro de Madrid. É quase igual à que ouvimos em conversa com Alaa al-Aswany, um dos grandes cronistas da revolta egípcia, roubada uma e outra vez pelos militares. Aswany falava do dia em que um milhão fez transbordar a Praça Tahrir do Cairo. Labrincha tem na cabeça o 12 de Março de 2011, data da primeira de várias manifestações, as maiores em Portugal desde o 1. º de Maio de 1974. Para alguns, este ciclo está terminado – outros, como a filósofa Marina Garcés, nascida em Barcelona e a ensinar em Saragoça, olham para o mundo “em insurreição permanente”. Graeme Hayes, investigador na Universidade de Aston, Reino Unido, especialista em movimentos sociais e desobediência civil, acredita pelo menos que os movimentos nascidos do combate às políticas a que chamamos de austeridade se transformou mas permanece de boa saúde e pode ser “remobilizado” assim que for preciso. E esse momento chegará, inevitavelmente. “As contradições do capitalismo não foram resolvidas, as políticas de austeridade não acabaram com os problemas e a crise ainda cá está, latente. Em breve, voltaremos a ser pressionados”, defende Hayes em conversa com o P2. “As críticas à natureza da democracia representativa deixaram marca e foram importantes. ” Hayes já publicou vários artigos sobre os “regimes de austeridade” e o “movimento das praças”. Em Agosto, chegará às bancas o livro Breaking Laws: Violence and Civil Disobedience in Protest, de que é co-autor com as francesas Isabelle Sommier e Sylvie Ollitrault. Se o sociólogo Alain Touraine descreveu aquilo a que se assistiu nos “longos anos 60” – e de que 68 se tornou símbolo – como “novos movimentos sociais”, já há quem chame “novos novos movimentos sociais” ao que vivemos desde o fim da década passada, início da actual, explica Guya Accornero, especialista em sociologia dos movimentos sociais do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE que não gosta especialmente deste termo. “Maio destruiu a hipocrisia moral”, sentenciou um dos líderes da insurreição original, na Universidade de Nanterre, Daniel Cohn-Bendit, que chegou a líder do Grupo dos Verdes no Parlamento Europeu. Para o pai de Antoine Guégan, Gérard, que sem ser estudante acabou quase por acaso a ocupar o campus de Sorbonne-Nouvelle, Censier, foram semanas a falar de “sonhos” e “utopias”, com “toda a gente convencida de que estava a acontecer algo impressionante”. Antoine, 27 anos, a mesma idade que o pai tinha em 68, acaba de passar três semanas no mesmo campus, atrás de barricadas, numa ocupação em protesto contra a nova lei do ensino superior que a polícia antimotim interrompeu a 30 de Abril, um dia antes de Maio. Para este professor em Censier, aluno de doutoramento noutra universidade, pelo menos em França, “a maioria dos estudantes rejeita a aproximação ao Maio de 68”. Acima de tudo, diz, trata-se “da incompreensão face a figuras essenciais do Maio de 68, como Daniel Cohn-Bendit ou Romain Goupil, que se tornaram cães de guarda de [Emmanuel] Macron”. E da convicção de que “a geração de 68 é incapaz de compreender o mal-estar e o descontentamento que atravessa a nossa juventude”. Os jovens que hoje ocupam universidades em Paris inspiraram-se “em alguns dos seus modelos de acção”, tentando, ao mesmo tempo, “afastar-se desta herança pesada”. Quais eram os gritos de 68? Liberdade face a uma sociedade autoritária e conservadora, combate contra as desigualdades e um mundo onde o consumo se impunha como objectivo último, crítica da democracia representativa (com o ideal da democracia permanente ou participativa) e desconfiança face ao poder, a afirmação da autonomia do indivíduo… Solidariedade também, com os operários que em Janeiro tinham erguido as primeiras barricadas e que acabariam por ultrapassaram os nove milhões em greve. E igualdade, não só entre classes mas entre povos. “Somos todos judeus alemães”, gritou-se numa das maiores manifestações de Maio, em Paris, a fazer lembrar o “Somos todos refugiados” dos últimos anos. “Ninguém se apaixona por uma taxa de crescimento”, foi outro dos slogans de 68, a lembrar que os que o fizeram, como os que saíram à rua e ocuparam as praças na presente década, se inscrevem numa história da mobilização social. Que por mais que alguns queiram, o presente bebe do passado e aprende com ele, nem que seja para fazer diferente, para tentar ser mais consequente. Entre uma e outra década, desenvolveu-se o Movimento Antiglobalização ou Movimento de Justiça Global, o combate dos ambientalistas, reanimou-se o Movimento contra a Guerra e o cooperativismo, começaram a surgir iniciativas de economia social. O Maio de 68 também foi uma festa. No pico da crise, as ocupações de praças e as enormes manifestações, os movimentos antidespejo em Espanha ou as revoltas árabes tiveram mais de deprimente do que de festivo, com medidas frequentes a obrigar a um estado de reacção permanente, cargas policiais. . . Mas entre muitas lágrimas e mortos também houve fogo-de-artifício na Tahrir, entre perda de direitos e de qualidade vida, viram-se risos no 12 de Março e ateliers de dança no acampamento dos Indignados. Agora, pelo menos em Portugal, “respira-se melhor”, diz Labrincha. “Há menos fome, menos precariedade, existe uma janela de esperança. Continuamos a ter um desemprego enorme (mascarado) e muita precariedade, mas os pequenos avanços, como a actual solução governativa, ajudam a que haja um espírito menos pesado. Há mais alegria e as dinâmicas são mais de construção do que de contestação”, diz o activista que continua na Academia Cidadã, que co-fundou na sequência do protesto da “geração à rasca”, e se mantém envolvido em diferentes movimentos. Portugal, Espanha, Itália ou Grécia mudaram de forma fundamental nos últimos anos. Em Espanha, o Democracia Real Já! (“o futuro é agora”, gritava-se em 68) e os Indignados deram origem ao que hoje é o terceiro partido do país, o Podemos, de Pablo Iglesias, e as dezenas de movimentos cidadãos que lideram e participam em governos municipais e autonómicos – a eleição de Ada Colau, uma das mais conhecidas figuras da PAH, a Plataforma Anti-Hipotecas que paralisou centenas e centenas de despejos, para a Câmara de Barcelona, foi o expoente desta passagem do activismo à política. Ao mesmo tempo, o renascer da dinâmica de associações de bairros (criadas durante a ditadura) que a crise e o 15-M provocaram não morreu; independentemente do que se possa pensar do processo independentista catalão, sem essa dinâmica de civismo, o referendo ilegal de 1 de Outubro, fortemente reprimido pela polícia, não teria sido possível. Enquanto na Islândia se derrubaram governos e prenderam banqueiros, na Grécia, que sofreu como nenhum outro país europeu a dureza da austeridade, o sistema partidário entrou em colapso, mas o partido que foi farol de toda a esquerda antiausteritária, o Syriza, rapidamente se vergou perante a intransigência da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). Em Itália, depois de uma série de primeiros-ministros não eleitos – com o afastamento de Silvio Berlusconi por pressão de Bruxelas e a sua substituição por Mario Monti, no final de 2011, a representar o grau zero da democracia – caminha-se agora para um governo formado pelos mais votados e liderado por um partido populista e fascista, a Liga, em coligação com o Movimento 5 Estrelas, o partido antipartidos e antipolítica – expressão máxima no país do slogan “Não nos representam” do 15-M. O regresso do nacionalismo e do fechar de fronteiras a que assistimos em grande parte da Europa, como na eleição de Donald Trump, são tão consequências da crise como o Podemos, os movimentos Morar em Lisboa ou Stop Despejos! ou o Governo socialista apoiado pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP. “Em Portugal, o impacto foi diferente do que em Espanha, onde a cultura de activismo é maior, o que tem que ver com a transição. Mas foi enorme. Sem 12 de Março e Que Se Lixe a Troika, não teria havido ‘geringonça’ e o país não teria o único Governo não austeritário da Europa”, sustenta Guya Accornero. A investigadora e professora lembra que entre os primeiros subscritores do Que Se Lixe a Troika já estavam políticos, como a vereadora da Habitação de Lisboa, Paula Marques. “O movimento integrou actores que dentro das instituições já defendiam e preparavam caminho para novas soluções de governo” – a sua concretização é a grande consequência. Mas Accornero aponta para movimentos relativamente novos, como o Habita e o Stop Despejos!, que “já fazem um trabalho incrível quando o direito à habitação está cada vez mais em risco”. Labrincha fala de um activismo que se abriu, saiu de Lisboa e do Porto, e se atomizou em movimentos que trabalham em diferentes áreas, chegando assim cada vez a mais gente. E sim, também ele, um dos organizadores do 12 de Março, acredita que sem esse dia o Governo actual nunca teria existido. Lembrando os obstáculos enfrentados por menos de meia dúzia de “putos mal chegados a Lisboa” até serem levados a sério e encontrarem pessoas como Raquel Freire e Sérgio Vitorino, especialmente activos no movimento LGBT, que acreditaram neles e, de certa forma, os “validaram”, Labrincha sabe que foi tudo muito rápido. O protesto foi organizado e promovido entre o início de Fevereiro e a data do tudo ou nada, mas na sua cabeça ficou “a sensação de meio ano de trabalho com poucas horas de sono”. O dia 12 de Março, a partida no Marquês de Pombal, as pessoas que chegavam à Avenida da Liberdade pelas laterais, aquela gigantesca massa humana mudou-o para sempre. “Foi o dia mais incrível da minha vida e um momento que recordo até hoje com muita emoção”, descreve. “Foi extraordinário. E foi o momento em que percebi que a minha vida seria dedicada ao activismo. Isso também trouxe um peso, uma responsabilidade, mas que eu tenho prazer em assumir. ”Sem o apoio de gente que não quis dar a cara, mas que os ajudaram a chegar à imprensa e a outros activistas, nada teria sido possível. “Mas também só tivemos o sucesso que tivemos por causa da nossa espontaneidade, por usarmos uma linguagem nova, sem vícios, por tudo o que nos fez ser e parecer algo realmente diferente”, analisa. Depois há o orgulho. Aos 27 anos, idade que tinha em Março de 2011, Labrincha sente que ajudou a “fazer a ponte entre as Primaveras Árabes e os protestos em Espanha”, que começariam em Maio, “ou os movimentos Occupy” em Londres, Washington e, com menos dimensão, em cidades de toda a Europa, ou, mais tarde, o próprio movimento do Parque Gezi, de Istambul. O que nos revolta hoje não é, afinal, assim tão diferente do que revoltava quem fez o Maio de 68. Faltam-nos as estruturas tradicionais, sindicatos e partidos, ganhámos as redes sociais e soubemos reinventarmo-nos. Mas, como lembra Antoine, “o contexto económico degradou-se e a nossa geração só conheceu uma sucessão de crises económicas, políticas, sociais e ecológicas, e é verdade que se instalou um cansaço geral face ao discurso permanente de crise”. Actualmente, e apesar desse cansaço, face “a políticas tão impávidas quanto insolentes e depreciativas em relação à juventude do país”, o movimento estudantil só pode crescer. Hoje, o que mobiliza os estudantes franceses é a lei “que visa excluir as classes mais desfavorecidas da universidade, permitindo ao Estado diminuir o número de estudantes e o orçamento para o ensino superior”. Isto num país que se habituou a ver a sua universidade como “lugar onde todos têm hipóteses de sucesso”. Para Antoine, prova da incompreensão dos políticos “é a repressão policial muito forte, uma violência” que leva os “estudantes a levantar o tom e a procurar novas formas de luta”. Ao mesmo tempo que “demonstra como a democracia francesa está doente”. Habitualmente, a repressão provoca uma escalada dos protestos. Aconteceu em Gezi, quando uma concentração numa cidade se alastrou a 60 províncias; em Atenas (onde foram mortos manifestantes logo em 2008); aconteceu durante algum tempo em Espanha; na Tunísia ou no Egipto. Em Lisboa chegou a haver cargas policiais. Mas a repressão também pode assustar, como a brutal resposta do regime sírio a protestos pacíficos travou movimentos de protesto noutros países árabes. “Se esta situação de força se mantém, eu deveria, para manter a República, tomar, de acordo com a Constituição, outras vias para além do escrutínio imediato do país [legislativas antecipadas]. Em todo o caso, por todo o país, e em seguida, deve organizar-se a acção cívica”, foi o discurso pronunciado na rádio pelo então Presidente Charles De Gaulle, citado por Laurent Joffrin no livro Maio de 68. Uma História do Movimento. Era 30 de Maio e nessa noite dezenas de milhares de gaullistas concentraram-se nos Campos Elísios. “A festa terminou”, escreve Joffrin. Ao agitar o fantasma da guerra civil, De Gaulle “levantou o tabu da morte humana”. “Ninguém até então tinha querido matar; ele fá-lo-ia, se necessário. O Maio de 68 não é uma luta de morte para ninguém. É uma insurreição do verbo. […] Os revolucionários de Maio estão dispostos a tudo menos à verdadeira revolução”, escreve. Na última década morreu-se muito. Na Tunísia, no Egipto, na Síria, no Iémen, na Turquia, mas também na Grécia onde houve mortes às mãos da polícia mas também de frio ou fome. Em Barcelona, nos acampamentos dos Indignados, houve gente a perder a vista com balas de borracha disparadas pela polícia, o que na Tahrir sucedeu com dezenas de activistas e agora voltou a acontecer com uma pessoa, no referendo de 1 de Outubro, na capital catalã. O movimento independentista dos últimos anos que provocou a maior crise política em Espanha desde a transição e a detenção de inúmeros dirigentes políticos acusados de insurreição não se enquadra no movimento antiausteridade ou nos protestos das praças. Mas foi a crise, aliada à descrença no Governo central, que o alimentou. Os mesmos motivos, exacerbados por denúncias de corrupção, má gestão e impunidade que levaram ao nascimento do 15-M e contribuíram para as revoltas que começaram no Magreb. O que a maioria dos catalães quer é o direito a votar sobre o seu futuro político. Claro que nada é assim tão simples. O que alimenta este desejo é a possibilidade de um sonho, de começar de novo, de sentir que tudo é possível, como em 68 ou em Janeiro de 2011 na Tunísia. “O Maio de 68 foi vivido por muitos como o momento zero de choque cognitivo: ‘Tudo é possível’”, diz Accornero. Sobre a Catalunha: “Julgo que isto acontece em momentos em que as pessoas deixam de confiar nas instituições e não há nenhuma força que as mantenha de pé. São momentos de crise, ruptura, incerteza e grandes expectativas. Se nós não reconhecemos as instituições, estas sofrem um abalo. ” Em democracia, as estruturas precisam na nossa confiança para se legitimarem. Ora, muitos catalães deixaram de reconhecer Madrid. Mas a história desta década faz-se precisamente de contestação da autoridade, das instituições, da ideia de inevitabilidade que os políticos, um pouco por todo o mundo, tentaram vender às suas populações. Na Europa e nos Estados Unidos, “desresponsabilizando-se e cedendo o seu poder às grandes corporações e às instituições financeiras, aos mercados”, diz Graeme Hayes. Entretanto, como sublinha Labrincha, o estigma que ainda sobrevivia sobre a ideia de activista ou activismo começou a desaparecer, “apropriado até pela própria publicidade” ou “legitimado”, como lembra Accornero, pela escolha da revista Time para Pessoa do Ano, em 2011, “O Manifestante”. Ao mesmo tempo, defende Hayes, “a desobediência civil, uma técnica de protesto não violento que permite a pequenos movimentos serem mais eficazes e visíveis”, também começou a ser vista cada vez por mais gente como “legítima”, uma forma de sublinhar “que é o próprio Estado que está a abusar da lei”. Em Espanha, isso foi uma constante, das tentativas para impedir despejos executados por polícias aos movimentos criados para recusar pagar um novo imposto, o “euro por receita” (que a Justiça acabaria por considerar inconstitucional), aos médicos que recusaram cumprir a lei que os impedia de atender pessoas em situação irregular. Com consequências como sentenças judiciais a anular leis, juízes a procurarem formas criativas para não fazerem cumprir leis injustas (e contrárias aos direitos humanos), desobedecer passou a ser visto como uma forma de defender a democracia. A desobediência civil, nota Hayes, concretiza-se quase sempre por uma “ocupação de espaço, um reclamar do espaço público, mostrando que se tem legitimidade para o fazer e produzindo diálogo nesse processo”. Trata-se de uma técnica muito “tangível” e que “muitas vezes leva à detenção, o que obriga os envolvidos a explicar-se publicamente” e assim promover a sua causa. Olhando para a desobediência como “uma forma legítima (porque não é violenta) mas de alto risco de praticar activismo”, Hayes lembra que quem o faz “inscreve a sua própria história noutra, que remete para Ghandi e Martin Luther King”. A ocupação do espaço público, a conquista das praças, “é uma forma de dizer ‘isto pertence-nos’”. Face a uma democracia que perdia o demos, “o povo”, o povo recuperou a agora. As decisões importantes nas Portas do Sol eram tomadas por votação de braço no ar, na Tahrir chegaram a organizar-se consultas em urna, na Academia Cidadã tudo se decide por consenso. Accornero fala dos limites de um ciclo de protestos transnacional (e não internacional) em que os temas globais se unem às preocupações locais. Apesar da partilha de experiências e modos de actuação, é difícil pensar num movimento unido em torno de um tema essencial. Antoine também defende que, apesar de haver “um movimento global, é difícil para já antecipar uma convergência de lutas de um ponto de vista mundial”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hayes lembra que o que de bom saiu da crise de refugiados na Europa foi a criação de um activismo transnacional, com novas ONG e activistas “a perceberem que o Estado-nação não era a forma ideal de luta”. A Academia Cidadã, com sede em Lisboa, integra o Fórum Cívico Europeu que “faz lobby junto dos eurodeputados e da própria Comissão Europeia em temas como políticas de habitação ou a necessidade de democratizar a própria UE e abrir as instituições europeias à participação cívica”. E se Hayes acredita que o “movimento das praças” está aí para ser remobilizado a qualquer momento, Labrincha deixa um aviso: “Imagino que um próximo Governo mais conservador em Portugal deva ter medo. Agora, há raízes e bases que não tínhamos. No momento em que voltar a ser preciso reagir, isso vai acontecer com muito mais força e foco. ” Entretanto, pelo menos na Catalunha, onde o último governo eleito está entre a prisão e o estrangeiro, vai continuar a gritar-se: “As ruas serão sempre nossas. ”Brevemente, em Bruxelas, no Museu da História Europeia, passarão a estar expostos alguns cartazes do 12 de Março, conta Labrincha. Talvez lá vá parar aquele onde se lia “Inevitável é a tua tia”, repto claro e directo aos políticos para voltarem a fazer aquilo que os eleitos deles esperam, decidir, fazer opções ou, simplesmente, fazer política.
REFERÊNCIAS:
Partidos PCP