Extremo ocidental: Na praia, sem nada
De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, até Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas. (...)

Extremo ocidental: Na praia, sem nada
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.06
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: De Caminha a Sagres, é possível viajar quase sempre à beira-mar. Durante cerca de 800 quilómetros, até Setembro, vamos percorrer a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas.
TEXTO: Havia duas maneiras de fazer esta viagem: de Caminha a Sagres, ou de Sagres a Caminha. A escolha era totalmente livre, parecia-me. Mas logo me fizeram ver que não era bem assim. Seria estranho avançar do Sul para o Norte. Por alguma razão, o normal seria começar no Minho e terminar no Algarve, disseram-me. Por alguma razão, em Portugal, quando alguém parte, parte para sul. Não sei se esta lógica se funda nos habituais trajectos de férias, nos vectores dos fluxos migratórios das últimas décadas, ou nas pulsões ancestrais da Reconquista, mas a verdade é que há algo de libertador no acto de rumar a sul. Quando se progride no terreno, sente-se que cada etapa é uma vitória, uma ascensão a esferas mais limpas e puras. Há um despojamento, um abandono de bagagem, à medida que avançamos para o meridiano, que no entanto é uma miragem que se afasta. O que vem a seguir é sempre experimentado como uma espécie de recompensa. A cada cem quilómetros entramos num novo círculo, pleno de características, marcas específicas inconfundíveis, ainda que ilusórias, definidas pela sua posição geográfica relativa e a direcção de onde se provém. É assim que, a partir de Santa Cruz, nos sentimos chegar ao Sul. A paisagem altera-se, faz-se mais árida e plana, a luz torna-se mais clara. Seguindo pela Estrada Nacional 247, junto às arribas de Ribamar e da Ericeira, parece no entanto ter-se entrado numa zona de transição. É uma área de excepção, diferente, com personalidade de oásis, que liga, ainda que numa estranha atitude de ruptura, os pinhais e as dunas do Norte com as planícies arenosas do Sul. Aqui, ao contrário de quase toda a orla costeira portuguesa, a terra chega verde até ao mar. Há campos agrícolas muito próximos das praias, vegetação densa e fresca cobre o dorso das falésias, que surgem em cortes abruptos, sem transições dunares, ou de plantas de zonas secas, como se o mar aqui tivesse chegado há pouco tempo. Faz lembrar, mais do que outras zonas do litoral português, as Rias Altas da Galiza, ou os tons contrastados da húmida costa cantábrica. É nestes caminhos traçados em terrenos altos, em que, de braços abertos, quase podemos tocar os campos de milho e a água, que nos sentimos seres de vários mundos, capazes de compreender o continente e o mar, a Europa e o Atlântico, e os seus nexos subtis e inquebráveis. A serra de Sintra cria e abriga este mundo de neblinas, e define-o como um pequeno “Norte”, por oposição ao “Sul” da Linha do Estoril. O cabo da Roca marca a divisão. A praia da Adraga, a Praia Grande e a Praia das Maçãs, tal como a Ericeira e todas as estâncias a norte da serra, são húmidas e ventosas, e inauguram até os seus dias de Verão com densos nevoeiros. Se obedecermos ao percurso ribeirinho, saindo da EN246 para as praias de Sintra, e daí tomar a estrada da montanha que vai ao cabo da Roca, desce pelas aldeias da Azóia e da Atalaia até ao Guincho, e daí até Cascais, pode quase sempre observar-se a mudança climática a olho nu. Descendo pela Malveira da Serra, é frequente acontecer sairmos de uma nuvem, como quem aterra numa superfície com luz própria. Depois, se olharmos para trás, lá está a aura de fumo sobre a serra, a nuvem endémica e espessa que nos faz acelerar convictamente para sul. A marginal que liga Cascais a Lisboa é um universo à parte, com os seus superlotados bares de praia, os seus hotéis de luxo e apartamentos de milhões de euros. Também isto contribui para que olhemos a zona como um outro “Norte”, em relação ao “Sul” que é a Costa de Caparica, o Meco e Sesimbra. Nestes raciocínios subjectivos, a serra da Arrábida funciona como a némesis da serra de Sintra. Se esta invoca atmosferas góticas do Norte da Europa, aquela é toda Mediterrâneo, Grécia e Palestina. O percurso a seguir é pela Ponte 25 de Abril, chegando à Costa de Caparica por Cacilhas e Cova do Vapor (ou, em abreviatura preguiçosa, pela auto-estrada directa para a Caparica). Se exceptuarmos o interregno constituído pelo eixo Sintra-Cascais, todas estas praias a sul da Nazaré, designadamente Santa Cruz, Ericeira e Caparica, projectam uma imagem de desleixo, caos urbanístico, falta de estruturas de desporto e veraneio, incúria das autoridades municipais, má qualidade das construções. Que diferença entre estas praias da zona de Lisboa e as de Esposende, Vila do Conde, Francelos, Miramar, Espinho ou Figueira da Foz. Neste capítulo, descer a EN246 depois da Estrada Atlântica da Costa de Lavos significa passar da civilização para a barbárie, e a libertação, claramente, consiste em rumar a norte. A estrada que une a Costa de Caparica à Fonte da Telha dá acesso a praias incríveis, de areais imensos e dunas, ligados sem interrupção. É uma zona ambiental protegida, pelo que não há construção para além dos bares de praia. Mas existe o sinistro parque de Campismo da Caparica, pertencente ao Clube de Campismo de Almada, onde milhares de pessoas vivem em “alvéolos” pegados uns aos outros como num campo de refugiados, e há todo o bairro clandestino da Fonte da Telha. Aqui, em plena zona protegida das Arribas da Caparica, há centenas de casas e barracas, terrenos com caravanas, construções em tijolo e chapa, e até mansões com piscina. Os terrenos ocupados e apropriados são depois vendidos, trocados, aumentados. Há quem vede um espaço, o atafulhe de roulotes e tendas e o arrende à semana, ao mês ou ao ano, a turistas no Verão, ou a novos moradores, expulsos de várias regiões pelo desemprego e a crise. Desde uma série de demolições ocorridas em 1982, as autoridades resolveram deixar em paz os habitantes do bairro da Fonte da Telha, por não ter solução para eles. António Amorim, presidente da Associação de Moradores da Fonte da Telha, e uma espécie de autoridade suprema e informal do bairro, disse-me que está prevista para 2017 uma nova acção na urbanização clandestina, decorrente da aprovação no novo Plano de Pormenor para a zona. Até lá, só pede que asfaltem a única estrada de acesso, para que a “povoação” não viva permanentemente envolvida em poeira. “Aqui tudo é ilegal”, diz ele. “Vivemos com uma espada em cima da cabeça. Nós não mandamos nada. Um ministro pode vir aqui e dar ordem para demolir tudo no dia seguinte. Mas isso não impede as pessoas de tentarem melhorar as suas casas e as suas condições de vida. Por isso fazem obras, prolongam os seus alojamentos, para receberem novos familiares e amigos, que precisam. Mas não são pessoas de fora. São apenas as velhas famílias de pescadores desta terra, e os seus filhos e famílias, que vão crescendo. ”Vivemos com uma espada em cima da cabeça. Nós não mandamos nada. Um ministro pode vir aqui e dar ordem para demolir tudo no dia seguinteHá anos, esta Comissão de Moradores teve alguma força, contactou as autoridades, informou os media. Agora está em decadência. “Os jovens não querem saber de nada, não se reúnem connosco, para resolver os problemas”, diz Amorim, que tem 82 anos e é dono do enorme restaurante Amorim, que começou por ser uma barraca. “Já não conseguiremos resolver nada. Isto não tem solução, por causa das autoridades da zona protegida. A gente desse gabinete não tem nenhuma compreensão pelo que se passa aqui. Querem saber da natureza, mas não querem saber das pessoas. Por isso isto não vai ter nenhuma solução. ”Há anos, um bem-sucedido empreendedor do bairro começou a construir um gigantesco palacete na encosta, decorado com uma colossal escultura de uma ave (talvez uma gaivota, ou uma águia) saindo da parede central. Até a Câmara de Almada, que nunca faz nada quanto às construções que nascem todos os dias, parece ter achado que aquilo era demasiado, e embargou a obra. Resta agora uma ruína em tijolo e cimento, com o enorme o pássaro de asas abertas, em frente do mar. Em poucos lugares do país é tão evidente o contraste entre o esplendor da natureza e a miséria humana. Só muito mais à frente se recupera a harmonia. Só após o estuário do Sado, depois da travessia no ferry-boat para Tróia, seguindo ao longo da costa da Comporta, voltamos a ter ordem e beleza, talvez porque as barreiras naturais reservaram estas regiões para os ricos, ou os muito pobres. A pressão urbana ficou detida nas escarpas da Arrábida, que deixaram para trás a luta pela sobrevivência, a lei da selva, o desespero da concorrência pelos bens escassos, e abrem o caminho para, agora sim, o verdadeiro Sul. Mais uma ilusão produzida pela viagem, agora formada por solidão, planície, casas caiadas, sombras definidas e mar turquesa. O Sul. Uma doçura que só tem equivalente nas praias a norte de Viana do Castelo. Mas aqui há mais distância à nossa frente. Teremos a imensidão da costa alentejana e vicentina, podemos deslizar em paz pelo Sul, o grande Sul português. É um milagre que tudo isto tenha sobrevivido. Onde estão os hotéis hediondos, os prédios encavalitados, as rotundas e os centros comerciais? Nada. Há apenas o necessário, as estruturas que permitem viajar, comer, dormir, habitar. Ou talvez isto seja um exagero, apenas mais uma ilusão do viajante. A sensação, que a moto oferece, de planar sobre uma terra primordial, limpa e cristalina. Tudo isto nos reconcilia com o que ficou para trás. Recobramos a força, aceitamos, com uma espécie de indulgência criativa, o país a que pertencemos, porque existe esta beleza preservada. Nada está perdido, enquanto for possível conduzir uma moto pela estrada a sul de Sines, por São Tormes, ondulando pelas curvas até Porto Covo. Aí, na aldeia que se popularizou e cresceu por efeito de uma canção, encontramos o equilíbrio urbanístico próprio das povoações alentejanas, mesmo quando se trata de construções novas e modernas. Quem, vindo de todas as regiões, escolhe Porto Covo para passar férias, parece animado por uma filosofia, provavelmente extraída do poema de Carlos T. “Venho para cá todos os anos”, diz Carlos Pereira, 48 anos, professor do Porto. O naturismo ajuda a transformar as relações sociais. Ao colocar os preconceitos de lado, elas concentram-se no que é mais verdadeiro e importante. O naturismo é uma grande arma contra a hipocrisiaCarlos, a mulher e a filha vão muitas vezes para a Praia do Salto, uma das várias entre as falésias a norte da povoação. Situa-se entre as praias do Cerro da Águia e Cerca Nova, tem acesso por uma longa escadaria de madeira, e é uma das sete praias oficialmente nudistas em Portugal. Destas, não há nenhuma a norte do Meco (junto a Sesimbra) e da Bela Vista (ao lado da Fonte da Telha). A maioria das praias nudistas, ou naturistas, situa-se na costa alentejana e algarvia. Poucos quilómetros a sul da Praia do Salto, encontramos a das Adegas, contígua à praia de Odeceixe. Ao contrário de todas as outras, que são frequentadas maioritariamente por estrangeiros, jovens “alternativos” e casais acima dos 60 anos, a do Salto é essencialmente uma praia familiar. As pessoas provêm de várias regiões do país, mas conhecem-se, na sua maioria, porque vêm para cá todos os anos, e têm a consciência de pertencerem a um determinado grupo e a um movimento. “Para nós, o naturismo é uma filosofia de vida”, diz Carlota, uma designer de 36 anos que vive na zona de Lisboa. Veio com o marido e os dois filhos, ficará alguns dias, antes de partirem para as outras praias nudistas, ao longo da costa, rumo a sul, até à da ilha de Tavira. “Além da sensação de liberdade, da saúde e bem-estar físico que proporciona, acreditamos que o naturismo ajuda a transformar as relações sociais. Há um convívio diferente entre as pessoas. Ao colocar os preconceitos de lado, elas concentram-se no que é mais verdadeiro e importante. O naturismo é uma grande arma contra a hipocrisia. ”A meio da tarde, a praia está cheia. Não é um areal grande, pelo que não há a dispersão que vemos no Meco, em Odeceixe ou em Tavira. Aqui as pessoas estão próximas e, como se conhecem, falam umas com as outras, dentro de cada grupo, mas também entre grupos. Uma família no centro da praia inclui pais, filhos, avós e uns primos, instalados noutro canto, perto das rochas. As crianças de uma família brincam com as de outra. Os adolescentes de dois grupos juntam-se para jogar cartas, sentados em roda. Todos nus, é claro, embora ninguém repare nisso. Grupos de homens, geralmente acima dos 50 anos, juntam-se à beira da água a conversar. Estão muito bronzeados, integralmente, e não parecem sentir qualquer constrangimento com as particularidades anatómicas de cada um. Há quem se desloque de um grupo para ir meter conversa com outro. Quem se sente junto de outra família, para partilhar o lanche, mostrar uma imagem no telemóvel, ou emprestar um livro, ou uma revista. Os pais brincam com os filhos, crianças ou adolescentes, sem evitar o contacto físico, sem embaraço ou vergonha. Por vezes, ao ver os grupos humanos deitados na areia, com os seus corpos quase sempre imperfeitos movendo-se com naturalidade, vem à cabeça de um repórter ainda muito imbuído de preconceitos da sociedade do pudor a imagem de grupos de animais relaxando à beira da água. Passando a óbvia incorrecção política da metáfora, ela não deixa de sugerir a questão: o nudismo desumaniza-nos?Mark, um holandês de 55 anos que acaba de sair da água com a mulher e a filha de 19 anos, responde à pergunta. “O naturismo devolve-nos a humanidade. Olhe à volta, repare bem. Veja como todo o comportamento é tão humano. ”Mark é um intelectual e um activista. O nudismo é para ele um acto político. “As pessoas vestem-se, na nossa sociedade, para marcar relações de poder e dominação. A origem dos trajes é a necessidade de esconder o corpo da mulher, para manter a posse sobre ele, por parte do homem. Tratava-se de guardar e proteger a propriedade, impedindo a usurpação, por parte de outros machos, e a liberdade da mulher, enquanto ser humano autónomo. E com a simbologia das roupas geriu-se, ao longo da História, todo um tráfico dos corpos e das individualidades. ”Na sequência destas considerações, despirmo-nos é um acto simbólico de revolta. “Note como as pessoas, sem roupa, passam a agir com muito mais autenticidade. Não mostram arrogância e prepotência umas com as outras. Não ostentam poder, mas também não têm medo. É como baixar as armas. As pessoas ficam sem nada, excepto a sua humanidade. É só isso que trazem para aqui, mais nada. E com isso ficam mais ricas. ”Na presença de tal teórico, e vendo como a filha não parece tão descontraída como os pais atravessando nua a praia, por entre os banhistas, aproveito para lhe colocar uma questão que me confunde. Uma vez, numa reportagem com o INEM, vi trazer para a ambulância uma mulher de mais de 80 anos, que tinha perdido os sentidos em casa, devido a uma crise cardiorrespiratória. Quando a mulher foi colocada na maca pelos técnicos de emergência médica, a sua camisa de dormir levantou-se até ao cimo das pernas, deixando as cuecas à vista. Foi nesse momento que a mão daquela mulher, que estava inconsciente, surgiu de repente, das profundezas da sua quase-morte, a puxar freneticamente a saia para baixo. Será possível que o pudor seja uma coisa natural? Mark não se comoveu com a história. “Essa mulher foi condicionada durante toda a vida. Convenceram-na de que perderia a sua dignidade, se o seu corpo fosse visto por alguém. ”É possível ser-se condicionado até à morte? “Sim. Nem a morte nos liberta. É enquanto estamos vivos, enquanto temos forças, que temos de quebrar as algemas. ”O importante não é tirar a roupa. O importante é sermos capazes de nos aproximar uns dos outros sem nada nas mãos, nada no corpoCarmen e Maria, espanholas na casa dos 30 anos, procuram sempre praias nudistas, quando fazem férias juntas. Não fornecem explicações políticas, como Mark, mas a sua lógica parece confirmar a dele. “Como somos lésbicas, aqui sentimo-nos muito mais à vontade. Há sempre muitos casais gay nas praias naturistas, por essa razão. Aqui ninguém nos julga, nem nos sentimos diferentes ou estranhas. ”Tudo se passa como se, eliminadas as roupagens, fossem também neutralizadas as regras e os códigos de comportamento convencionais. Alguém que não está interessando em jogar com essas regras sente-se aqui mais livre. “Aqui somos olhadas como pessoas normais”, diz Maria. “Como pessoas. ”De vez em quando, no cimo das falésias, surgem os inevitáveis mirones, especando em transe pasmado, ou não resistindo a fotografar, com os telemóveis. Neste caso, alguém dá um alerta, e toda a praia desata a gritar e a assobiar. “Não, não! Estás a fotografar o quê? Vai-te embora!” As crianças, em especial, parecem adorar estes momentos. Gritam com orgulho, muito compenetradas do seu papel, as frases que já ouviram gritar, várias vezes por dia. “Vem cá abaixo tirar uma selfie!”São as únicas alturas em que a praia nudista funciona como tribo. Unidos contra um inimigo comum. Chegam a parecer um grupo fechado e preconceituoso, no zelo exagerado com que defendem a sua liberdade. Quando o mirone foge, envergonhado, riem e conversam uns com os outros sobre o caso, com expressões de indignação. “Se toda a gente fizesse nudismo de vez em quando, o país estaria bem melhor”, diz Carlota. “Se as pessoas voltassem à estaca zero, se se despojassem de tudo, voltassem à sua essência, seria mais fácil pensar, resolver os problemas. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Carmen mantém as pernas entrelaçadas nas de Maria enquanto diz: “O importante não é tirar a roupa. O importante é sermos capazes de nos aproximar uns dos outros sem nada nas mãos, nada no corpo. Sermos nós, sem mais nada. ” Carlos, que se aproximou delas, acrescenta: “E ser capaz de vaguear sem horas marcadas pela costa alentejana. ”Só depois do pôr do Sol é que os nudistas abandonam a praia. Um a um, sobem a estreita escada de tábuas. Só um rapaz muito magro, de cabelo comprido, fica no areal. Tem uma pequena tenda, está ali a viver. Aquece uma chávena de chá numa pequena fogueira junto aos rochedos e acena-me, quando por fim também eu começo a subir a escada. Opto por não o entrevistar. Está tudo dito no seu silêncio. É tempo de amarrar a mochila à moto e rumar a sul.
REFERÊNCIAS:
Israel: A ópera da contradição
Israel tem um problema de imagem e, como diz um analista, “nem o melhor relações públicas do mundo” o conseguiria resolver. A paisagem e um bom húmus não são suficientes para mudar a realidade. Mas o Governo vai tentando, e o turismo é uma das armas do seu soft power. (...)

Israel: A ópera da contradição
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Israel tem um problema de imagem e, como diz um analista, “nem o melhor relações públicas do mundo” o conseguiria resolver. A paisagem e um bom húmus não são suficientes para mudar a realidade. Mas o Governo vai tentando, e o turismo é uma das armas do seu soft power.
TEXTO: Ele está sentado à porta da sua tenda, com a mulher e o filho, de uns sete anos, ao colo. Ela retira-se discretamente, mas a criança fica, em silêncio e agarrada ao pai. Ao lado desta tenda há outra e mais outra e o chão é só pedras e pó. Está de noite e a pouca iluminação eléctrica dá apenas para ver que é um homem alto e corpulento e para lhe adivinhar a expressão. Estamos literalmente no meio do deserto, o da Judeia, com montanhas a toda a volta e o Mar Morto ali em baixo. Ficasse a descrição por aqui e poderíamos pensar que temos à frente um beduíno e a sua família. Mas não. Quem está diante de nós é o maestro israelita Daniel Oren, que se prepara para, dentro de poucos minutos, dirigir a Tosca. Aqui?Aqui mesmo. Uma ópera no meio do deserto?Isto é Israel, terra de muitas contradições. Uma ópera — que pode chegar a confundir-se com um excêntrico festival de som e luz — já nem sequer é novidade aqui. Desde 2010 que se faz este festival no sopé de Massada, um planalto onde há dois mil anos se achou por bem construir um palácio. Há três meses que 2500 pessoas estão a trabalhar intensamente para que do nada cresça um palco de 64 metros de comprimento, uma plateia de 6030 lugares, meia dúzia de camarins, tendas de bebidas — é toda uma “aldeia” de 45 mil metros quadrados. No intervalo para o II e III actos avisam que haverá tiros em palco, para ninguém se assustar porque são encenados. Se há local onde o aviso é necessário, é este. É o sítio ideal para a Tosca?, pergunta a Oren um dos jornalistas estrangeiros convidados pelo Ministério do Turismo a vir assistir ao espectáculo. “É o sítio ideal para qualquer ópera, não só as bíblicas mas qualquer uma”, responde o director musical da Ópera de Israel. Como irão os músicos lutar contra o calor e o pó “está nas mãos de Deus”. Além disso, “esta peça tem tudo a ver com Massada”, diz. A forma como a diva da obra de Puccini se entrega à morte para não cair nas mãos dos soldados de Scarpia, o chefe da polícia que ela acabara de matar para não ser desonrada por ele, pode ser comparada ao suicídio de 960 judeus que antes preferiram morrer a tornarem-se escravos dos soldados romanos que se preparavam para tomar a fortaleza. Uma comparação um pouco rebuscada, talvez, mas Oren não foi o único a fazê-la ultimamente. No dia seguinte subirá ao palco uma feérica Carmina Burana, um códice de poemas do século XIII musicados por Carl Orff em 1936. O espectáculo abriu com cinco homens montados a cavalo a irromper pelo palco e foi sempre conduzido por um Indiana Jones de chapéu e casaco de cabedal porque, diz o programa, esta é “a viagem de um arqueólogo que chega ao deserto e descobre um mundo antigo, que desconhecia, tal como Orff descobriu pela primeira vez os poemas antigos que musicou”. Forçado? Muito. Mas dali a duas semanas, tudo estará como antes. Só pedras e pó. Como se nada nem ninguém tivesse passado por Massada. E para o ano há mais. Hanna Munitz, directora da Ópera de Israel, refere numa conferência de imprensa que o país tem uma tradição de música instrumental, mas não de ópera. Este festival serve para “educar o nosso público”. E também para “mostrar [ao exterior] que temos uma vida normal, uma vida cultural. Israel também é isto, não é só [o primeiro-ministro Benjamin] Netanyahu, Irão e Gaza”. “Bem-vindos à terra da criação”, diz a seguir aos jornalistas Pini Shani, director do departamento estrangeiro do Ministério do Turismo. Shani admite que é preciso “mostrar Israel de uma nova forma” e que este é um passo para isso. E é também através do turismo que o Governo pretende mudar a percepção que no estrangeiro existe sobre o país. A BBC realiza regularmente sondagens sobre como o mundo olha para Israel. Os resultados publicados em Julho do ano passado — e que incluíam três anos de auscultações, que começaram ainda antes da impopular campanha aérea contra Gaza em 2012, nota a estação britânica — mostram que a maioria das pessoas dos 22 países inquiridos (Portugal não consta) tem uma imagem “sobretudo negativa” de Israel. É assim em todos os países da Ásia, Europa e América do Sul que foram analisados. E é nos Estados Unidos e na África subsariana que o Estado israelita é visto com mais simpatia. Pini Shani explica à Revista 2 os desafios que o seu Governo enfrenta para contrariar a ideia de um país sistematicamente em conflito: “Temos desvantagens, sim, mas também temos vantagens. ” E enumera-as: “Jesus nasceu em Belém [no Norte de Israel] e não em Lisboa. Se andar por Jerusalém, vê a história [cristã] desde a via sacra à Igreja do Santo Sepulcro. Não é uma viagem longa para quem vem da Europa. Tem o maior spa natural do mundo [Mar Morto]. Estamos a tentar transmitir essas vantagens. Não tentamos convencer ninguém de que é um lugar seguro, isso não vale a pena. ”Do outro lado da campanha está o movimento BDS (boicote, desinvestimento e sanções), que quer passar para o exterior a mensagem de que tal como o boicote ao regime do apartheid na África do Sul surtiu efeitos, o mesmo poderá acontecer em Israel, relativamente às violações dos “direitos de liberdade, igualdade e autodeterminação dos palestinianos, através da limpeza étnica, colonização, discriminação racial e ocupação militar”. O movimento foi criado em 2007 por representantes de palestinianos refugiados no exílio, palestinianos em territórios ocupados na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e por cidadãos do Estado israelita que se sentem discriminados por serem palestinianos. O BDS pede um boicote “às instituições desportivas, culturais e académicas”. Não especifica aqui o turismo, mas “qualquer um pode boicotar os bens israelitas simplesmente assegurando-se de que não compra produtos fabricados em Israel ou por empresas israelitas”. Para o representante do Ministério do Turismo, “é difícil dizer se o BDS tem impacto [na vinda de estrangeiros] ou não. Mas não acho que impeça os turistas de vir a Israel”. E se quiserem ver a realidade palestiniana, “os turistas podem viajar para a Cisjordânia, mas para Gaza não. Há uma disputa e não achamos que seja seguro. Também não há lá nada para ver”, diz Shani. Já Israel “é um destino turístico por excelência, apesar dos desafios”. Quem chega vê um país empreendedor, com boa comida, uma paisagem deslumbrante e diversificada — tão depressa desértica como verdejante, aponta Yossi Mekerlberg, analista da Chatham House, um think tank britânico, numa conversa telefónica. “Israel projecta uma imagem de modernidade e ao mesmo tempo com uma história antiga. ” O turismo é “sem dúvida” uma arma de soft power (a capacidade de influenciar de forma não bélica). Há outras: “A indústria cinematográfica, a música (de fusão com o Ocidente); uma economia muito high-tech; a academia; a literatura, que é traduzida para muitas línguas. . . ”Mas o outro lado da moeda é bastante mais pesado. “Israel tem um grande problema de imagem que vem da própria realidade: da ocupação, dos colonatos, do bloqueio a Gaza. Nem o melhor relações públicas do mundo conseguiria resolvê-lo. E isto é uma coisa que corrói também a sociedade israelita. Podemos passar umas férias óptimas em Israel, mas a democracia está a sofrer. A paisagem, a gastronomia, não mudam a realidade. ”E daí que, segundo o analista, as ideias do BDS — mais do que o movimento em si, “devido à linha que defende a violência” — têm vindo a acolher cada vez mais seguidores. “Há a crescente percepção na comunidade internacional que a expansão dos colonatos, a falta de vontade em dialogar, são sinais claros de que Israel não está empenhado num acordo de paz, e que por isso tem de sofrer consequências económicas — isto faz já parte do discurso na Europa e nos Estados Unidos. As medidas económicas poderão tornar Israel mais flexível e, a não ser que [o Governo israelita] faça um esforço, são agora mais prováveis, mais do que eram há cinco anos. ”De cima vê-se bem o Mar Morto, separando Israel da Jordânia — um mar que é na verdade um gigantesco lago azul-celeste, esbranquiçado por causa do sal, que se situa 400 metros abaixo do nível do mar e que a cada ano que passa está mais encolhido. E vêem-se bem desenhados, lá em baixo, os quadrados formados por pedras que delimitam o local onde os romanos se estabeleceram antes de lançar o ataque à fortificação, no ano 73. Tudo em volta é cenário bíblico, metafórico e, em alguns casos, literalmente também. “Fez [Deus] chover sobre Sodoma e Gomorra enxofre e fogo [vindo] do céu; e destruiu estas cidades, e todo o país em roda, todos os habitantes das cidades, e toda a verdura da terra. ” A zona a que se diz corresponder às cidades castigadas pela ira divina está a poucos quilómetros de Massada. Montes que parecem templos em ruínas. Grutas onde a temperatura desce abruptamente devido ao ar que passa por paredes de sal. Um guia beduíno conta que os nómadas que ali habitavam aprenderam a ler nos animais os sinais das enchentes avassaladoras dos rios: quando coelhos e cabras escapavam para lugares mais altos e quando os burros punham as orelhas para trás, era tempo de deixar as margens até então secas e firmes. Massada é hoje património mundial da UNESCO. Visto a dois mil anos de distância, a construção de um palácio ali parece quase uma alucinação provocada pelo calor. Mas resultou num dos mitos fundadores da identidade israelita e é agora um dos pontos de maior atracção turística do país. O sol está implacável e só raramente sopra uma brisa. O brasileiro António Carlos Neves caminha com um pequeno grupo de amigos. Percorre como um guia experiente as ruínas do palácio que terá sido mandado construir por Herodes e que ninguém sabe se ele alguma vez pisou. Vai apontando para o que antes eram armazéns de armas, uma sauna, aposentos para convidados. . . e avançando com as suas explicações. Não exageramos se dissermos que já veio a Massada umas três centenas de vezes. Poucas foram as que a viu tão vazia como agora. Pele escura, olhos claros, cabelo quase branco e muita energia na voz, não fosse ele pastor evangélico. Procura uma sombra, um telheiro de canas no que antes era uma zona de banhos, e apresenta-se: “António Carlos Neves, 63 anos, sou brasileiro. Venho da cidade de Santos e estou aqui há 20 anos já. ”Não foi por ser judeu que decidiu vir, apesar de tanto ele como a mulher terem ascendência judaica. “O que nos fez vir para cá foi a parte bíblica desse país. A história que [aqui] é viva. É como se pudéssemos viver a Bíblia em 3D ou 4D, não é? Você cheira, sente, vive a realidade da história, comprova muita coisa que está escrita na Bíblia. Também descobre que muita coisa de que se fala é um pouquinho lenda. ”Na sua função de pastor evangélico, recebe em casa outros pastores vindos do Brasil. “Quando descobrem que vivo aqui dizem: ‘Vou para tua casa, que é mais barato!’”Os amigos de António Carlos Neves juntam-se assim aos milhares de evangélicos que anualmente visitam Israel. Não é por acaso. O Governo tem tentado converter o amor deste grupo religioso pela Terra Sagrada em apoio político, “com alguns proponentes [desta ideia] a declarar que a diplomacia com base na fé é a arma mais poderosa do arsenal diplomático de Israel — apesar de as suas capacidades e alcance precisos ainda estarem por provar”, referia o Christian Science Monitor num artigo de Fevereiro de 2013. A revista explicava que o crescimento rápido desta congregação em países como o Brasil e a Nigéria, “que tradicionalmente não são apoiantes do Estado de Israel”, se pode converter em apoio em fóruns internacionais, como as Nações Unidas. Para isso, “o Governo israelita aposta na herança religiosa comum entre judeus e cristãos para aumentar o turismo e a posição no palco internacional”. O CSM adianta que o Governo gasta milhões de shekels para atrair pastores que depois virão com os seus rebanhos, que pelo caminho, espera, se converterão em apoiantes mais fervorosos do Estado de Israel nos seus próprios países. Mas a fé nem sempre é suficiente para fazer face ao medo. “[Quando cheguei] em 95, a quantidade de turistas era muito grande”, continua António Carlos Neves. “Viajávamos no país e havia muito mais liberdade de caminhar [a primeira Intifada, que começara em finais de 1987, acabara dois anos antes, em 1993]. A Intifada [a segunda, 2000-2005] e esses problemas religiosos realmente assustaram muito as pessoas. . . Toda a vez que há um conflito, a maioria dos turistas cancela o voo para cá. ” Ele, pelo contrário, sente-se confortável. “Nunca corri perigo. Tenho esposa, tenho filhos, tenho netos. Estudam, trabalham, vive-se muito bem. Tem muita tranquilidade nas ruas. É muito seguro. Tirando excepcionalmente as épocas em que há conflito. . . Esse conflito faz parte do dia-a-dia. Convivemos bem com isso e superamos. Aconteceu, aconteceu. A vida não pára, o país não pára. ”Os números reflectem a desconfiança. Uma notícia do Jerusalem Post de 15 de Junho referia que o Turismo ainda não recuperou dos 50 dias de conflito no Verão passado — período durante o qual soavam constantemente as sirenes de alerta contra os rockets lançados a partir de Gaza (território controlado pelo grupo palestiniano Hamas), tendo mesmo chegado a haver a suspensão do tráfico aéreo quando um deles foi cair próximo do aeroporto internacional Ben-Gurion. As operações terrestres das IDF em Gaza mataram 2251 palestinianos (incluindo 1462 civis); do lado israelita morreram 67 militares e seis civis. Uma investigação da ONU publicada recentemente concluiu que ambas as forças terão então cometido crimes de guerra e apontava para níveis de destruição e sofrimento “sem precedentes”. Também a crise na Rússia e a queda do rublo está a reflectir-se nas entradas de estrangeiros, adianta o diário. Resultado, no primeiro trimestre de 2015, o sector atingiu os níveis mais baixos dos últimos cinco anos. O centro de estatísticas israelita estima que, nesse período, os rendimentos do turismo baixaram 12% em relação ao ano anterior; as estadias de estrangeiros em hotéis decaíram 27, 4% (e aumentaram 9, 4% as de turistas israelitas). Segundo o responsável do Turismo de Jerusalém Eli Nachmias, em 2014 visitaram o país 3, 5 milhões de turistas estrangeiros (a maioria, 700 mil, dos EUA, seguidos pela Rússia, com 600 mil). “O presidente da Câmara de Jerusalém disse que quer 10 milhões até 2020”, afirma à Revista 2. Se o sector enfrenta dificuldades, é também por causa da crise na Europa, refere. Mas essa é “a razão leve”. A razão pesada é “a situação geopolítica: infelizmente, não somos a Suíça, que tem por vizinhos a Itália, a França e a Alemanha, países pacíficos. Os nossos vizinhos são o Iraque, a Síria, onde está o Estado Islâmico; todo o mundo árabe está a arder”. Nachmias adianta que a estratégia do Governo é “mostrar que não há bombas a explodir nas ruas”, trazendo opinion makers, académicos, jornalistas ou organizando eventos culturais, conferências, tours para famílias, “que levam o testemunho que a realidade não é exactamente o que se vê na CNN”. Um muro cinzento divide o espaço mas apenas pela cintura. No topo estão fotografias a preto e branco do verdadeiro muro, o que separa Israel da Cisjordânia. Wall, do fotógrafo Josef Koudelka, é uma “visualização épica de um dos símbolos mais definitivos da soberania israelita e do conflito israelo-palestiniano”, lê-se na ficha que acompanha a obra exposta no Museu de Arte de Telavive (e que integra a exposição This Place, em que 12 fotógrafos estrangeiros olham para este ponto do globo). O muro dos olhos de Koudelka às vezes parece uma serpente que rompe a paisagem, outras uma barreira de betão que nada permite perscrutar, outras ainda um emaranhado de arame farpado que torna tudo mais turvo. É sempre um corte, uma ferida, uma prisão. O muro vê-se bem a partir de vários locais de Jerusalém — locais onde os guias levam os turistas para lhes mostrar as magníficas vistas da cidade velha, reclamada como capital tanto por israelitas como palestinianos (e sagrada para judeus, muçulmanos e cristãos) e não reconhecida internacionalmente como tal em nenhum dos casos. Jerusalém está, pois, em cima desta cisão, faz parte dela, é o seu epicentro. Mas Telavive acaba por ser um bom posto de observação. Dentro do edifício da Ópera de Israel, Neta Amit Moreau, directora de palco e responsável do programa educativo, afirma que é preciso acabar com o equívoco entre “o que é ser judeu e o que é ser israelita. Se o turismo puder ajudar, óptimo”. Voltemos ao deserto, sem sair da mesa onde estamos, neste átrio moderno e com ar condicionado: “Quem estava na orquestra a tocar? Apenas israelitas, mas todos vindos nos anos 80. Quem está à entrada a revistar a sua mala para ter a certeza de que não vai lançar uma bomba em Massada? Árabes, muçulmanos. Se ninguém nos explicar nada, não ajudará [a esclarecer]. Mas se como jornalista puder abrir esta caixa de Pandora que é Israel e ver que para além das serpentes há pessoas de todas as cores e religiões e etnias, então pode ver que não é tão simples como pode parecer visto de fora, da Europa rica e segura. ” Perceber o que se passa neste país talvez não seja possível. “Se não o vivemos, não o conseguimos compreender. O Dalai Lama diz ‘sejam amáveis’. E é isso: não sabemos por que lutas as pessoas passaram, por isso devemos ser amáveis para elas. É assim que olho para os árabes à minha volta. ”A cultura pode ser uma porta. “As pessoas que vêm cá não são palestinianas, mesmo os árabes são uma minoria. . . Mas o papel da arte é abrir a mente. E independentemente de sermos palestinianos, de Gaza, ou israelitas, quando choramos, choramos, quando rimos, rimos. E é disso que o palco trata, de sentimentos. Talvez possamos levar esses sentimentos aos corações frios dos políticos que vêm cá com frequência. ”Não será fácil. Recentemente, a ministra do Desporto e da Cultura ameaçou retirar financiamento às instituições que “deslegitimam” Israel, levando centenas de artistas israelitas a protestar nas ruas. Antes, Miri Regev tinha ameaçado cortar o subsídio a um teatro dirigido pelo actor árabe israelita Norman Issa, em Jaffa, por este se ter recusado a participar numa performance na Cisjordânia ocupada. Neta Amit Moreau não tem dúvidas: “É nestas alturas que surge a melhor arte. O seu próximo espectáculo será o melhor. Porque quando tocamos nos nervos das pessoas. . . ” E é mesmo com a arte que se deve responder. “[A arte] é uma forma não agressiva de levar as nossas opiniões às pessoas. Não conheço artistas muito violentos. Podem ser agressivos nas ideias que trazem ao palco, ao cinema, às suas músicas, mas não fisicamente violentos. É a única forma branda de lá chegarmos. ”Moreau garante que a Ópera de Israel tem a liberdade de apresentar o que quiser. Mas, afirma agora a um pequeno grupo de jornalistas ibéricos, há tabus que subsistem: “Não vemos Wagner em Israel, mas acabaram de ver a Carmina Burana. Bach e Carl Orff [ambos alemães] também não gostavam muito dos judeus. [Wagner é proibido] talvez por ter a sua própria teoria, escrita, e por Hitler o adorar. É uma contradição que existe desde que aqui estamos e estamos sempre a encontrar contradições destas. Se os sobreviventes do Holocausto têm um problema com Wagner, não ouvimos Wagner. É como um tabu que não se quebra. Os maestros israelitas vão a Berlim dirigir O Anel de Nibelungo, mas em Israel não o podem fazer. Podemos chamar-lhe hipocrisia, ou não querer ferir susceptibilidades, mas, como dizia a minha avó, ‘os factos estão no pudim’. [O que é certo é que] não tocamos. . . Está tudo tão recente. Talvez daqui a uma geração. ”O que não precisa de esperar uma geração é a manifestação do orgulho gay. A marcha que nos dias anteriores tinha invadido Telavive continua a respirar nas ruas. Bandeiras com o arco-íris estão espalhadas por toda a cidade, em bares, lojas de roupa, bancas de sumos. Duas raparigas beijam-se despudoradamente no meio do passeio, dois homens seguem abraçados pela rua fora, e a cena repete-se vezes e vezes sem conta e sem complexos. Aqui não se tapam ombros nem se prolongam patilhas em canudos — ou não tanto como em Jerusalém, pelo menos. As adolescentes andam de saltos altos e saias curtas. Passeia-se junto ao mar e sente-se uma brisa de Copacabana. Se Jerusalém é cor de pedra — há mesmo uma lei que impede a construção em qualquer outro material que não seja a meleke, “a rainha das pedras” — Telavive é a “Cidade Branca”, luminosa. O centro de arquitectura Bauhaus foi declarado património da humanidade pela UNESCO e os prédios baixos são suficientemente numerosos para não nos sentirmos engolidos pelos arranha-céus. Três brasileiros preparam-se para aterrar em Telavive: Pedro, Felipe e Nelson formam um trio que no Brasil já será reconhecido por muitos. Os vídeos humorísticos do Põe na Roda, que todas as semanas colocam no YouTube, chegam a ter um milhão de visualizações, sobretudo da comunidade homossexual. Vieram porque foi o próprio Ministério do Turismo que os convidou — faz parte da promoção do país como destino gay friendly. E Telavive é realmente gay friendly?, perguntamos dias depois por Facebook. “Isso é inegável”, diz Pedro HMC (é pelas iniciais que é conhecido), ex-roteirista de programas de humor na MTV Brasil. “Você conversa com as pessoas na rua e sente isso. Não se sente às margens da sociedade, nem julgado ou observado, como acontece sendo gay em muitos lugares do mundo. Você vê um monte de casais gays com filhos nas ruas, drag queens, transexuais, coisas que mesmo em cidades grandes do Brasil onde ser gay é possível, não chega a ser tão normal e tranquilo quanto em Telavive. ”O grupo fez uma série de vídeos que são publicados faseadamente no canal. “Mostramos a praia gay, Hilton Beach, o Gay Center, que é um centro público de apoio à comunidade LGBT, entrevistámos gays idosos, fizemos matéria em uma festa gay num parque aquático, além de entrevistarmos a Conchita Wurst [vencedora do festival Eurovisão da Canção de 2014, que se tornou popular por ser uma transexual com barba], o que foi uma honra. A intenção é mostrarmos Telavive como um destino gay incrível para o público gay brasileiro. Nem todo o mundo sabe disso, muitos, quando pensam em Israel, pensam apenas em Jerusalém, guerras e turismo religioso. ”No centro de Jaffa, a cidade portuária colada a Telavive, está uma rapariga com uma enorme cabeleira afro, olhos sorridentes e dentes brancos. Passeia-se entre um lado e o outro da rua, conversando, fumando um cigarro. Maayan Shimomi é gerente do Puua, um restaurante que começou por ser uma loja de flores — depois a proprietária começou a servir cafés e a coisa foi expandindo. Tem uma mistura de peças de datas e estilos variados, sofás onde as pessoas se podem sentar, cadeiras e mesas vintage, loiças e naperons que podiam ter vindo de casa das avós. “Esta é a minha Israel. Uma grande misturada que mostra o que o país poderia ser”, diz Maayam. Poderia, mas ainda não é. E se ela está aqui hoje foi porque um dia alguém disse aos seus bisavós, maternos e paternos, que havia uma nação para construir. “Vieram do Iémen [pouco depois da proclamação do Estado de Israel em 1948]. Eram judeus. Alguém lhes prometeu uma coisa e eles partiram. É assim que funciona. ”Daqui, a vida até parece um lugar tranquilo. Mas se tivesse de definir resumidamente os israelitas, Maayam diria no seu inglês hesitante: “São barulhentos. Metem-se na vida das outras pessoas, para o bem e para o mal. Ou tentam ajudar ou repreendem. ”Não é preciso partilhar com ela os resultados dos estudos sobre a forma como Israel é visto fora de portas porque ela conhece-os intuitivamente. “As pessoas têm medo de vir”, afirma. “À distância tudo parece pior do que quando se está no lugar. ” Aponta alguma da responsabilidade aos media, que sistematicamente mostram a parte como se fosse o todo. O guia turístico Aviram Politi diz o mesmo — sem as críticas que Maayam lança ao Governo, que queria ver “todo mudado”. “Eu acredito, e também o Ministério do Turismo [para quem trabalha ocasionalmente], que o turismo é uma boa forma de combater o boicote e os preconceitos contra o Estado judaico. Quando as pessoas cá vêm e vêem com os seus próprios olhos, não estão a ser induzidas em erro pelos media, que infelizmente descrevem os hebraicos como másculos e os árabes como os bonzinhos, sem dar as múltiplas dimensões. ”Nas suas visitas guiadas em inglês, italiano ou hebraico, Politi não entra “no terreno minado da política, por ser uma base de conflito entre os elementos do grupo, e entre o grupo e o guia”. Mas acha que este é um debate “fácil de manipular, especialmente por europeus, que durante séculos e séculos tiveram ódio aos judeus. . . , culpando-os por tudo o que acontece, quer seja verdade ou não”. Conta que a sua família, tanto do lado do pai como da mãe, são judeus sefarditas expulsos de Espanha em 1492 por causa da Inquisição. Em casa ainda falam um dialecto que mistura castelhano com hebraico — “os meus pais recebem uma revista trimestral em ladino”. No século XV, um antepassado do lado materno, da família Ginio, foi forçado a converter-se ao cristianismo; estava encarregue do Tesouro do Rei D. Fernando, e ele próprio fez a ligação entre Cristóvão Colombo e os reis de Espanha, garante. “Há documentos [emitidos por] Espanha que o comprovam. ”Alguns membros da família morreram nos campos de concentração nazi, outros instalaram-se na Grécia antes de se fixar aqui, “no único estado hebraico do mundo. Os judeus tiveram de tomar o seu futuro em mãos, porque não se pode confiar em nenhum outro país”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Em hebreu, há esta frase: ‘Não perdoamos, não esquecemos. ’ Talvez o perdão venha quando o esquecimento vier também, ou vice-versa”, diz Neta Amit Moreau, da Ópera de Israel. “Quando construímos uma cultura, um Estado, assente nesta declaração. . . Israel está a viver uma síndrome pós-traumática. É um país pós-traumático. O que é isso de Massada? É uma loucura, não é? Tomámos como símbolo um suicídio colectivo (que ninguém sabe se é verdade ou não, mas isso não importa, o que importa é o mito). Precisamos disso? Eu gostava de ter um símbolo melhor. Não é que não seja fascinante do ponto de vista arqueológico, mas um símbolo do triunfo do espírito, em que todos acabam mortos no fim?! É isto que temos de glorificar? Talvez devêssemos mudar de história. ”
REFERÊNCIAS:
A esquizofrenia: o Brasil entre dois turnos
Sim, dizer que uma eleição se está a resolver em “grupos de Whatsapp” é estranho. Porém, é isso mesmo que está a acontecer. (...)

A esquizofrenia: o Brasil entre dois turnos
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sim, dizer que uma eleição se está a resolver em “grupos de Whatsapp” é estranho. Porém, é isso mesmo que está a acontecer.
TEXTO: Um dos candidatos presidenciais que o Brasil escolheu para o segundo turno é professor. Enquanto ministro da Educação, abriu o ensino universitário para milhões de alunos de baixa renda e, enquanto prefeito de São Paulo, melhorou o trânsito endémico da cidade e foi o primeiro a apresentar uma dívida menor do que a que recebeu. O outro é um deputado e militar sem méritos que ficou famoso por atacar os direitos humanos, defender o armamento da população e elogiar o único homem declarado torturador pela justiça brasileira. Diria a lógica que Haddad não teria problemas no confronto com Bolsonaro. Porém, a lógica vale cada vez menos no Brasil desde o “golpe branco” que foi o impeachment de Dilma. A luta política hoje é uma disputa pelas almas do povo em que as frases de efeito valem mais do que o currículo. E é nas redes sociais em que elas circulam que se escreveu a melhor frase sobre estas eleições. Segundo Carlos Mandacuru, a esquizofrenia brasileira traduz-se hoje em "eleger um fascista de verdade, achando que é de mentira, por causa de um comunismo de mentira que acham que é de verdade”. Algo como: “Que importa que o Haddad tenha criado uma controladoria autónoma que recuperou quase 300 milhões de reais desviados do município? Haddad é do PT e vai transformar o país numa Venezuela. Só Bolsonaro pode resolver essa situação”. Na verdade, não é exagerado dizer que Bolsonaro e sua equipa parecem completamente inaptos para resolver qualquer situação. O seu programa de Governo parece um trabalho feito na véspera da data final, as suas propostas são inconsequentes e disparatadas e os atropelamentos da sua equipa económica são constantes. O grande sucesso de Bolsonaro foi entender o crescimento do antipetismo e construir-se como o homem providencial contra ele. O seu eleitorado fecha os olhos à incompetência, às acusações de desvios de fundos e ocultação de património que varam o seu núcleo duro, ao nepotismo do candidato e ao crescimento suspeito do património da sua família. Nada disso importa, desde que se tire o PT do poder. Nem todos caíram na esparrela. O Brasil, efetivamente, está dividido nos grupos do Whatsapp. A mentira é um vírus Sim, dizer que uma eleição se está a resolver em “grupos de Whatsapp” é estranho. Porém, é isso mesmo que está a acontecer. O compromisso da ubíqua aplicação de mensagens com a privacidade dos utilizadores implica que imagens de uma criança amordaçada com a legenda “Haddad quer legalizar a pedofilia” não possam ser denunciadas. Uma vez solta, a mentira espalha-se como um vírus. E o medo também. Há dias, um colega disse-me que espera mudar-se para Portugal no ano que vem. Perguntei porquê. “Too gay for Nazi Brasil”. Zanguei-me. “Eles que se ferrem, pá”. Mas não tive resposta para o que veio em seguida: “eu não quero morrer”. Um exagero? Depois do primeiro turno, pipocaram casos de agressões contra negros, homossexuais, mulheres ou contra quem simplesmente declarou votar PT. Um mestre de capoeira na Bahia foi assassinado depois de uma discussão política. Um rapaz no Paraná levou com uma chuva de garrafas em cima por usar um boné do MST. Insultos e ameaças de estupro, morte e agressão foram distribuídos pessoalmente e pela Internet. Suásticas apareceram pintadas em paredes de norte a sul do país. E tudo isso foi acompanhado da frase “Bolsonaro 17”. Não saiu nas notícias o caso da minha amiga que correu assustada para casa depois de um homem que passava de carro lhe gritar: “Sua vadia! Agora é Bolsonaro!”. Ou o do meu amigo bancário que ouviu, de um homem farto de esperar na fila, “cê vai ver só quando eu puder trazer a arma!”. Ou o da minha amiga que, pela primeira vez, tem medo de ser atacada por ter ascendência japonesa. Ou o do meu amigo gay e negro que diz “vamos ter de encontrar novas formas de sobreviver” como se fosse um refugiado de uma guerra. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois de anos alimentando um eleitorado à base de frases homofóbicas, racistas e misóginas, o candidato — que disse não ter nada a ver com os ataques — tornou-se o mantra invocado nos crimes de ódio do Brasil, porque a onda que o carrega é, ela própria, uma festa movida a ódio. Desde Hannah Arendt que sabemos que podemos apoiar alguém assim por ação ou por inação. No Brasil, o sangue que correu já mancha as mãos de Bolsonaro e as dos seus apoiantes, mesmo as dos que “não concordam com tudo o que ele diz” e as dos que acham que ele “é mal preparado, mas tem que ser”. Viver no medo do presente e do futuro. Esse é o preço para que Fernando Haddad não ganhe? Posso dizer já, com toda a certeza: não vale a pena.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte guerra humanos educação negro homem criança medo mulheres refugiado gay
Os Ultras
Bolsonaro, o “Trump Tropical”, protagoniza apenas o mais recente episódio desta série de terror. (...)

Os Ultras
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Bolsonaro, o “Trump Tropical”, protagoniza apenas o mais recente episódio desta série de terror.
TEXTO: Et tu, Brasil? A extrema-direita disparou na primeira volta das eleições brasileiras, tornando real a possibilidade de alcançar a presidência. Jair Bolsonaro bradou declarações de ódio a mulheres, negros, homossexuais, fez a apologia da tortura e incitou à violência. Mesmo assim (ou também por isso?) foi o candidato mais votado, com 46% dos votos. Como é possível? Como chegamos aqui?Algumas opiniões tentam explicar o ascenso da extrema-direita com questões locais ou nacionais. O localismo diz que os EUA abraçaram a extrema-direita pela perda de perspetivas dos operários brancos, que na Inglaterra esteve em causa o soberanismo, em França o terrorismo, em Itália foi a crise dos refugiados (ou na Suécia, Áustria, Alemanha, etc. ), que na Índia é pelo Paquistão, que no Paquistão é pela Índia, que no Japão é pela China, no países bálticos é pela Rússia e na Rússia é pela NATO. . . Enfim, a lista de países continua de forma cada vez mais assustadora e, para todos, é apresentada uma explicação própria para o ascenso da extrema-direita. Este pensamento localista afirma que a viragem no Brasil foi motivada pelo antipetismo, a insegurança e a corrupção. Adiciona-se a tragédia durante a campanha eleitoral que se tornou golpe de sorte para o candidato vítima de esfaqueamento. E, acrescento eu, bebeu muito da polarização que o país viveu com a destituição de Dilma Rousseff e o consequente eclipse do centro político partidário. Contudo, ficarmos apenas pela análise nacional é olhar para a árvore e não ver a floresta. É claro que existem diferenças entre países e os processos políticos nacionais que estamos a assistir. Mas, num mundo globalizado, considerar que o furacão ultra conservador reconhece fronteiras é algo do domínio da fé, não da realidade. Assistimos a uma gigantesca viragem mundial nos panoramas políticos e é para isso que temos de nos preparar. Só isso explica a ruína de sistemas político-partidários que duravam há décadas e a ascensão eleitoral meteórica de propostas populistas, xenófobas e racistas. A crise financeira de 2007/2008 é a origem desta movimentação de placas tectónicas. Por esses dias, num ápice, a economia de casino ruiu e levou consigo largos setores da economia mundial. Uma década depois, somos confrontados com a inevitabilidade: a arrumação social imposta pela primeira crise do capitalismo global teria necessariamente efeitos no sistema político-partidário. Progressivamente, assistimos à introdução de uma nova ideologia que justifica e legitima a divisão social e tem como roupagem uma demagogia de grande alcance popular. É a política da exclusão, do ódio, que ganha força na redefinição do conceito de comunidade pela exclusão de largas franjas da população. O velho “dividir para reinar”, numa casa global onde falta o pão, aplicado com um crescente autoritarismo do Estado. O arco do autoritarismo chega a mais de metade da população mundial: China, Rússia, Egito, Turquia, Índia, Paquistão, crescentemente nos EUA e em implementação no Brasil, só para citar alguns exemplos. Bolsonaro, o “Trump Tropical”, protagoniza apenas o mais recente episódio desta série de terror, mas não será o capítulo final. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A “trumpização” da política a que assistimos é a vitória desse projeto reacionário, que está a conseguir seduzir parte considerável da direita tradicional. Na concorrência com o sucesso eleitoral dos projetos de extrema-direita, a direita tradicional abraça cada vez mais as propostas extremistas numa tentativa de se salvar. São areias movediças, que depois de pisadas não têm retorno, nem bom resultado para os povos. Bolsonaro ganhou, mas ainda não venceu. O Brasil assustou, mas ainda se pode salvar. Três semanas é o tempo que nos separa do abismo. Lá, como por cá, precisamos de um projeto forte para uma sociedade inclusiva, que defende os povos da globalização e criar uma economia onde cabem todas e todos. É essa a salvação da democracia das garras dos ultras. O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA NATO
A maioria dos trabalhadores do sexo no Norte usa preservativo
Estudo da Associação para o Planeamento da Família apresentado esta quarta-feira na Universidade do Porto. (...)

A maioria dos trabalhadores do sexo no Norte usa preservativo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 7 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.5
DATA: 2015-10-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estudo da Associação para o Planeamento da Família apresentado esta quarta-feira na Universidade do Porto.
TEXTO: A maioria dos homens que se prostitui na região Norte é homossexual, reside sozinha e usa preservativo nas relações profissionais, revela um estudo da Associação para o Planeamento da Família. Em entrevista à agência Lusa, Nuno Teixeira, coordenador do projecto ECOS - Educação, Conhecimento, Orientação e Saúde, revela que a maioria dos trabalhadores do sexo masculino na região Norte é de nacionalidade portuguesa e mora sozinha principalmente no Grande Porto, mas também em Braga, Vila do Conde, Felgueiras, Guimarães e Póvoa de Varzim. O estudo baseia-se numa pequena amostra. "Tratou-se de uma amostra de conveniência recolhida através do método de snowball, onde participaram 57 indivíduos, aos quais foi atribuído o sexo masculino na altura do nascimento e todos eles a exercerem trabalho sexual na zona Norte do país", descreve o coordenador. Os participantes têm idades compreendidas entre os 19 e os 54 anos, 28 nasceram em Portugal (49, 1%) e 29 possuem outra nacionalidade (50, 9%). Quase todos (98, 2%) afirmaram ter realizado o teste Vírus de Imunodeficiência Humana (VIH) e 21, 1% revelam ser portadores do VIH. No "sumário executivo" apresentado esta quarta-feira na Universidade do Porto, no seminário Corpos, Sexo e Territórios no Trabalho Sexual Masculino, pode ler-se que 30 indivíduos pensam em si próprios como homens (52, 6%), 14 como mulheres (24, 6%), 12 como transgéneros (21%), e um não sabe/não quer definir-se (1, 8%). De acordo com a mesma fonte, 26 indivíduos identificam-se como homossexuais, 13 como bissexuais, dez como heterossexuais e cinco como tendo outra orientação sexual (9, 3%). "Quase 68% dos inquiridos estão desempregados e 58, 5% reportam não ter qualquer outra fonte de rendimento para além do trabalho sexual. Nesse trabalho, valorizam a possibilidade de conhecer clientes importantes, ganhar dinheiro, aumentar a autoestima, e ir a hotéis, pensões e bares. Nos últimos seis meses, a maioria dos participantes (73, 7%) afirma ter usado preservativo em todos os actos sexuais profissionais e 21, 1% em quase todos. Sobre o uso do preservativo em contexto pessoal nos últimos seis meses, a sua prevalência desce para 47, 4%. O estudo revela que os participantes do questionário associam fortemente o uso do preservativo à prevenção da transmissão do VIH.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens educação sexo estudo sexual mulheres homossexual autoestima
Os Emmys foram um jogo Netflix contra HBO... e no fim ganhou A Guerra dos Tronos
Uma noite marcada por um pedido de casamento em palco: os Emmys deram 23 prémios a cada um dos dois grandes "canais" concorrentes e foram um espectáculo entre o poder do blockbuster dos dragões e o poder da comédia feminina da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel. Veja a lista dos principais vencedores. (...)

Os Emmys foram um jogo Netflix contra HBO... e no fim ganhou A Guerra dos Tronos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2018-11-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma noite marcada por um pedido de casamento em palco: os Emmys deram 23 prémios a cada um dos dois grandes "canais" concorrentes e foram um espectáculo entre o poder do blockbuster dos dragões e o poder da comédia feminina da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel. Veja a lista dos principais vencedores.
TEXTO: A noite dos Emmys saldou-se com mais uma vitória de A Guerra dos Tronos e a distinção unânime da comédia da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel nas principais categorias – e o que é que isso diz sobre a televisão hoje? Que depois de, em 2017, o streaming ter conquistado o primeiro Emmy de melhor série dramática com The Handmaid’s Tale, fenómeno semelhante se produziu este ano na comédia. E diz-nos que a revolução Netflix já está no mesmo patamar que o modelo de distribuição convencional e conseguiu, nesta 70. ª edição dos Emmys, tantos prémios quanto a suspeita do costume há 17 anos, a HBO. Mas sobretudo confirma que na televisão ninguém pára os blockbusters: mesmo não estando há mais de um ano no ar, a fantasia de dragões e gelo criada a partir dos livros de George R. R. Martin foi a mais premiada. A cerimónia dos Emmys que decorreu na madrugada desta terça-feira em Los Angeles não foi uma noite de grandes afirmações sobre o estado da arte nem sobre os muitos temas que trespassaram este pequeno grande meio. E não por falta de tentativas, mas lá iremos. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas Televisivas rematou uma noite longa com a entrega do Emmy de Melhor Drama à série A Guerra dos Tronos (HBO/SyFy/TVSéries), cuja ausência no ano passado (dada a sua tardia data de estreia) permitiu em parte a vitória de The Handmaid’s Tale (Hulu/Nos Play), que era também a sua mais forte concorrente em 2018. Também distinguiu Peter Dinklage como actor secundário na mesma série – o prémio para melhor actriz secundária numa série dramática foi para Thandie Newton, pela sua prestação em Westworld (HBO/TVSéries). O melhor actor dramático foi Matthew Rhys pela última temporada de The Americans (FX/Fox Crime), série que também recebeu o prémio de argumento mas que viu Keri Russell perder para Claire Foy, que no seu último ano como rainha em The Crown foi premiada como melhor actriz dramática. A real série Netflix foi também distinguida pela realização de Stephen Daldry. A comédia foi uma das duas secções dos Emmys em que a dispersão da noite teve a sua excepção, com The Marvelous Mrs. Maisel a dar o prémio de melhor série à Amazon, de melhor actriz a Rachel Bresnahan, de melhor actriz secundária a Alex Borstein e de melhor argumento e realização a Amy Sherman-Palladino. A autora da popular Gilmore Girls tornou-se assim na primeira mulher a acumular esses dois Emmys. Bill Hader e Henry Winkler venceram respectivamente como protagonista e actor secundário da nova série Barry (HBO/TVSéries). A outra categoria que viu os prémios concentrarem-se foi a de série limitada, com a favorita American Crime Story: O Assassinato de Versace (FX/Fox Life) a ser distinguida pelo protagonista Darren Criss e pelo realizador Ryan Murphy, que subiria ao palco perto do fim da cerimónia também para recolher o Emmy de Melhor Série Limitada – batendo Genius: Picasso (National Geographic), Godless (Netflix), esta consolada pelos prémios de actuação para Jeff Daniels e Merritt Wever, e outras séries ainda por estrear em Portugal. Contra o favoritismo de Laura Dern pelo filme The Tale (HBO/TVCine), Regina King recebeu o prémio para a actuação de uma actriz numa série limitada, por Seven Seconds, também Netflix. O serviço de streaming receberia ainda o prémio de escrita por Black Mirror, pelo episódio USS Callister, batendo, entre outros, David Lynch e Mark Frost por Twin Peaks. Last Week Tonight, de John Oliver (HBO/RTP3), bateu Trevor Noah ou Stephen Colbert, e Saturday Night Live foi a melhor série de variedades. Mas, posto tudo isto, um dos pontos altos da cerimónia foi mesmo o pedido de casamento do realizador Glenn Weiss, que dirigiu os últimos Óscares e aproveitou o seu Emmy para surpreender a namorada e mergulhar uma plateia de estrelas em ovação e lágrimas, gerar uma leva de alertas noticiosos e pôr o Twitter em alvoroço romântico. “O melhor momento da noite”, para o Guardian, suplantou em parte os momentos criados pela Academia e pelos anfitriões da cerimónia, Colin Jost e Michael Che, para serem memoráveis. E distraiu momentaneamente o grande público do que fica no fim do fogo-de-artifício que enfeitou o número musical de abertura – as contas e os jogos de poder entre canais e produtores, mas também o futuro da televisão. “Com os contributos espantosos das pessoas nesta sala, podemos manter a televisão durante uns cinco, seis anos no máximo”, brincava Colin Jost. Os Emmys são os prémios mais importantes da televisão norte-americana, mas também uma cerimónia e uma academia que lutam contra o desfasamento – entre o meio televisivo, as suas audiências e as novas plataformas, entre as séries nomeadas e/ou premiadas e sua popularidade ou valorização crítica. Já lhes foi apontada falta de frescura, pela omissão dos produtos mais disruptivos (este ano, por exemplo, não houve grandes nomeações para Twin Peaks nem vitórias para Atlanta, por exemplo), e já foram pretexto para um estudo do Katz Media Group que, em 2017, o ano de The Handmaid’s Tale, concluía que a maioria dos americanos nunca tinha visto ou sequer ouvido falar de grande parte das séries nomeadas, devido à ausência de séries dos canais generalistas nesse panteão (a excepção este ano foi This is Us mas Uma Família Muito Moderna ou A Teoria do Big Bang não constaram da lista). Os prémios da indústria televisiva constituem, no fundo, um espelho polido da situação actual da televisão, e é aí que entra A Guerra dos Tronos, a série que, sendo da televisão por subscrição, e ainda por cima premium, é um arrasador fenómeno de massas que mal voltou a entrar na corrida levou os prémios que pertenceram à dura série The Handmaid's Tale no primeiro ano de presidência Trump e três semanas antes da eclosão do movimento MeToo. Foi em parte sob as suas sombras que decorreu uma noite partilhada com “as muitas pessoas talentosas e criativas que ainda não foram apanhadas”, como brincou o apresentador Michael Che no número inicial da cerimónia, e com os “milhares na audiência e com as centenas em casa”, como resumiu o outro apresentador, Colin Jost. A sombra do dragão parecia tímida, só com dois grandes prémios, mas a noite terminou mesmo como o célebre aforismo do futebol segundo o qual são 11 contra 11, mas no fim ganha sempre a eficaz máquina da Alemanha – neste caso, a eficaz máquina de A Guerra dos Tronos, que em 2019 chegará ao fim depois de anos de domínio, e que com 45 Emmys já é a série mais premiada de sempre. Com os seus nove prémios em 2018 (as contas finais incluem também os Emmys atribuídos na cerimónia prévia Creative Arts), permitiu em parte que as contas continuassem equilibradas para a HBO – ou empatadas. A histórica casa de Os Sopranos ou The Wire e a nova morada online de Black Mirror ou The Crown receberam 23 Emmys cada depois de, pela primeira vez na história, o Netflix ter tido mais nomeações para os Emmys (112) do que a HBO (108). A Amazon levou mais oito prémios, todos de The Marvelous Mrs. Maisel (cinco na cerimónia desta noite e mais três nos Creative Arts), para o campo do streaming, a que se juntaram os quatro do Hulu, somando um total de 35 distinções para estes novos grandes produtores de TV que tanto investem – é célebre a revelação de que o Netflix gastará 6800 milhões de euros em conteúdos contra os dois mil milhões de um canal incumbente como a HBO. A NBC foi a terceira estrutura mais premiada, com 16 Emmys. Nos últimos dias, escreveu a imprensa especializada, as festas dos Emmys e os mais de cem eventos de promoção para a cerimónia foram dominadas pelas conversas sobre as mudanças no sector, desde as grandes fusões Disney-Fox até às consequências do vendaval de denúncias de casos de assédio, como a saída do poderoso Les Moonves da presidência do canal generalista CBS. Mas na cerimónia propriamente dita os temas foram outros – a ausência de referências directas ao Presidente dos EUA, as mensagens sobre género e a comunidade LGBTQ de Ryan Murphy, e sobretudo a diversidade. Celebrou-se o grupo de nomeados mais diversificado de sempre – “estamos um passo mais perto de um Sheldon negro”, brincaria Kenan Thompson no número musical que dividiu com Kate McKinnon, Kristen Bell e Titus Burgess, entre outros –, e constatou-se que isso é uma trémula vitória – “vêem, não havia nenhuma e agora há uma”, diriam sobre a primeira nomeação para uma actriz de origem asiática no drama, para Sandra Oh, por Killing Eve (BBC America). Os prémios nas principais categorias (vencedores a negrito)Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam
Acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. (...)

Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 21 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-11-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido.
TEXTO: A ideia de que ser a favor ou contra as touradas é uma questão de liberdade de expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as touradas é uma questão de civilização e, por muito que a palavra esteja gasta, nós sabemos muito bem o que é. É o mundo frágil que nos faz viver melhor, mais tempo, com menos violência do que no passado. É completamente frágil e contraditório, muitas vezes anda para trás e poucas vezes anda para a frente, mas representa o melhor da vida possível, feito por um olhar humanista sobre as coisas, que inclui condenar, limitar, punir a violência. É o mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as mulheres são iguais, é o mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas da violência doméstica, é o mundo em que o direito de viver de forma livre o sexo é garantido, é o mundo em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são condenados, é o mundo em que há liberdade religiosa, de opinião, política, etc. , etc. Sim, é verdade que é também o mundo em que tudo isto não existe, mas escolham. Pode não ser o mundo que temos, mas é o mundo que desejamos. Os animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos humanos, mas faz parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata todas as formas de violência olhar para os animais com um sentimento de especial proximidade que está para além da domesticidade. Os movimentos a favor dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o modo como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a crueldade contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada que não se limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e crianças. Não me estou a referir a nenhuma das variantes radicais modernas dos direitos dos animais que fazem parte da moda dos nossos dias. Não é isso, não tem que ver com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma formas de industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam em ser menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e tem um papel no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de modo a que o seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades. Tem que ver com as touradas. Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a exibição pública da tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das touradas de morte — que todos os defensores das touradas desejavam poder ter sem limitações —, ser morto. As touradas vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos os rituais possíveis, ter toda a “arte” de saracotear à volta de um bicho, mas as touradas não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio colectivo. Não é um combate de iguais. Na verdade, os combates de cães e de galos — proibidos não se sabe porquê à luz da permissão das touradas — são muito mais um combate entre iguais do que o homem de faca e o touro sem armas a não ser os chifres, que muitas vezes são embolados. Mas é o sangue e a morte que fazem o espectáculo e, ao serem um espectáculo, são um sinal de barbárie. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas que a tradição encobre é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são consideradas inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos homossexuais, à excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se aceitamos que a “tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então podemos voltar ao “cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe bater. Os argumentos dos defensores das touradas são a versão portuguesa dos argumentos da National Rifle Association nos EUA, que também se identifica como uma “associação de direitos civis” e usa o argumento da tradição para justificar uma sociedade banhada de armas e em que a violência dos massacres é sempre culpa de outra coisa que não sejam as armas. As histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros” (sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem” perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização. O mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.
REFERÊNCIAS:
O corpo de Jota Mombaça é um manifesto
Escreve e faz performance das suas ideias em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, “estudos kuir”, justiça anti-colonial... fica-se com a impressão de que não apenas devorou teoria com a urgência de quem quis sobreviver, mas que esta lhe atravessou o corpo. Esteve na Bienal de Berlim com uma performance, está este domingo na Foz do Porto. (...)

O corpo de Jota Mombaça é um manifesto
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Escreve e faz performance das suas ideias em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, “estudos kuir”, justiça anti-colonial... fica-se com a impressão de que não apenas devorou teoria com a urgência de quem quis sobreviver, mas que esta lhe atravessou o corpo. Esteve na Bienal de Berlim com uma performance, está este domingo na Foz do Porto.
TEXTO: Convidada a participar na Bienal de arte contemporânea de Berlim para uma leitura-performance, Jota Mombaça, 27 anos, nascida e criada no Nordeste do Brasil, nómada a residir actualmente em Lisboa, define-se a si mesma como "bicha não binária". Afável, exuberante e frágil, vestida com uma túnica que lhe serve para para confundir definições e revelar um corpo tatuado, recusando qualquer tipo de normatividade, vem ao nosso encontro uma guerreira temível que dispara com a acutilância das palavras. Fica-se com a impressão de que não apenas devorou teoria com a urgência de quem quis sobreviver, mas que esta lhe atravessou o corpo. "Pode um cu mestiço falar?" é um título de um texto seu em que se apropriava o título de um ensaio da filósofa indiana Gayatri Spivak, "Podem os subalternos falar?". A resposta, provocadora, era não. Jota Mombaça não só escreve como faz performance das suas ideias, trabalhando em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, "estudos kuir", justiça anti-colonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre arte e política nas produções de conhecimentos do "Sul-do-Sul globalizado". Para uma nova geração de artistas, activistas, investigadores e curadores investidos no debate sobre a descolonização, que está a atravessar um apogeu nas artes, tornou-se impossível pensar a questão do racismo sem cruzar as dimensões de classe social ou de identidade de género. "Não há lutas unidimensionais porque não há vidas unidimensionais", diz Jota Mombaça, citando a afro-americana Audre Lorde (1934-1992). Há diferenças decisivas entre o debate actual e o momento histórico da luta pela independência das colónias ou da segunda vaga do feminismo (que ficou conhecida no contexto português através do julgamento do livro Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa). Diferenças de origens de classe, em que os combates estiveram associados a uma classe média-alta urbana que protegia o privilégio do acesso à universidade. Diferenças de horizontes teóricos –? o marxismo era a narrativa de fundo e o "povo" era a categoria abstracta para a qual tudo se remetia – e de práticas culturais – a poesia era a arma central para escapar à censura. O corpo de Jota Mombaça é, por si só, um manifesto e torna evidente o que entretanto mudou. Encontrá-la é ter a sensação de que algo tem andado invisível no debate público, nas vozes e nos corpos autorizados a falar (ela utilizará a noção de "lugar da fala" para situar e questionar em permanência quem fala, de que posição e para quem). E digamos sem rodeios, vem aí um tremor de terra. A mudança situa-se desde logo no interior mesmo da linguagem utilizada. Pouco fica de pé. Se é evidente que Jota Mombaça deve muito aos estudos queer e pós-coloniais das últimas décadas, e tratando-se de autores na maior parte dos casos ainda por traduzir, será então ela que vai "entortar" os conceitos e adaptá-los à sua experiência de um país ex-colonizado. Assim, queer tornar-se-á cuir, e Jota identifica práticas populares de desobediência sexual e de identidade género que já existiam (como os terreiros de candomblé queto, em que participantes conjugam códigos femininos e masculinos) muito antes de serem teorizados pela categoria global do queer. Mas quando pensaríamos que esta lógica de digestão local poderia remeter para precedentes que passariam pelo manifesto antropofágico brasileiro (1928), Jota dispara: "A antropofagia foi uma lógica de devoração e eu pratico uma lógica de vómito. O poeta Oswald de Andrade [1890-1954] integra ainda uma forma de colonialismo interno, trata-se de uma elite branca, com acesso exclusivo à arte e com uma imagem idealizada do sujeito racializado. Há uma ficção da democracia racial, quando a negritude foi sendo aniquilada pela pobreza e miscigenação. A filósofa e psicanalista Suely Rolnik, investigadora em São Paulo, lembra que o capitalismo financeiro devora tudo e pratica uma antropofagia zombie, criando uma hiper-flexibilidade do sujeito e impedindo subjectividades – para ela não são apenas necessárias resistências macropolíticas mas também uma micropolítica do desejo, porque de outra forma se reproduz o inconsciente colonizado pelo capitalismo e volta tudo ao mesmo lugar. "Há que desenvolver uma ética própria, uma política do cuidado, recusando o banquete que nos é imposto. Comer aquilo que nos potencializa e vomitar o projecto genocida cristão do corpo colonizado". Jota Mombaça, que este domingo, às 19h30, na Praia do Homem do Leme (Foz do Porto) fala sobre Dor, Dívida, Dilema: O que significa descolonizar, a convite do Teatro Experimental do Porto, foi também convidada pela Bienal de Berlim a escrever um texto fundamental no catálogo (Por uma greve ontológica) que tem a impetuosidade crítica habitual da autora, próxima de um manifesto, mas introduz uma melancolia inusitada. Partindo da impressão de que o seu trabalho é uma fuga para se "salvar de algo do qual não posso ser salva" e fazendo por escapar às estatísticas dos corpos negros queer confrontados com a violência ou a morte (numa das suas tatuagens lê-se "A gente combinamos de não morrer", citando uma das autoras brasileiras que mais admira, Conceição Evaristo, nascida numa favela de Belo Horizonte). O texto resume uma lógica de exploração das contradições e conflitos que distingue a sua escrita – não se limitando a criticar posições dominantes mas também posturas supostamente críticas – para interrogar a forma como a arte contemporânea (e as bienais) obriga os corpos e as vidas negras queer a transformarem-se no tema do trabalho, sendo que estes corpos já são determinados por estruturas de poder lhes extraem subjectividade. E recusa-se a estabelecer uma narrativa heróica sobre as lutas destes corpos e vidas quebrados para evitar que isso se torne a condição para ter acesso ao mundo da arte. "O que não quer dizer que eu entre num fetichismo do-it-yourself, o meu trabalho está atravessado por instituições". Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A melancolia parece surgir de uma constatação lúcida, já evocada por José Esteban Muñoz (1967-2013), investigador de performance e teórico da desidentificação (enquanto forma de oposição à identidade), quando sublinhava estar consciente de que o devir queer ainda é uma utopia. "O futuro é um privilégio", diz Jota, e talvez por isso cite no seu texto a escritora afro-americana de ficção cientifica Octavia E. Butler – outra das autoras reverenciadas por esta nova geração – procurando extrair o futuro desta lógica de utopia, partindo da negritude. Numa conferência no Rio de Janeiro, Jota Mombaça criticou o princípio estandardizado de fluidez de género, acrescentando que no contexto de precariedade generalizada que combate, o seu género "não flui, como é possível?". Interrogou-se ao anunciar a sua transição de identidade de género: "Embora eu saiba identificar a estrutura da qual me afasto, fugindo ao projecto arbitrário da masculinidade" (a obrigação de uma concordância entre identidade e sexo de nascença), "prossigo sem coordenadas para saber onde isso me pode levar e, portanto, tropeço (…). Pensar na transição e na descolonização a partir de uma perspectiva abolicionista requer pensar e deslocar provisoriamente a questão sobre o que vou passar a ser, abrindo espaço para outras questões: como desfazer o que fazem de mim?". No contexto lisboeta, Jota Mombaça tem escrito e participado em plataformas que estão a abrir espaços para o debate da descolonização, marcado recentemente pela polémica gerada em torno da designação do museu das "descobertas" ou da estátua do Padre António Vieira. "A reciclagem 'pós-colonial' dessa personagem, amparada pelo imaginário amplamente difundido da colonização portuguesa como branda e, particularmente, do referido padre como tendo sido uma figura sensível à humanidade das gentes que viviam nas terras do que hoje chamamos Brasil, atesta de maneira contundente a hegemonia do lugar de fala branco-colonial como infraestrutura dos regimes de verdade". Encontrou vozes aliadas em projectos lisboetas como Buala ou a rádio Afro-Lis, ou na colectânea de poetas e autores negros Djidiu – A Herança do Ouvido, incluindo nesta rede de afinidades o jovem poeta queer Daniel Lourenço – interessado por formas de neuro-dissidência em saúde mental e tecendo críticas ao capacitismo – ou a investigação do Nicholas Mirzoeff na Universidade Nova sobre culturas visuais de protesto. E atribui um valor histórico às duas conferências em Lisboa de Grada Kilomba, artista e investigadora lisboeta a residir em Berlim (e que está também a participar na Bienal), em que esta considerou "uma profunda negação" a relação da subjectividade portuguesa com a "ferida colonial". Jota é extremamente crítica em relação à invisibilidade para a qual estão remetidas as vozes negras neste debate. "Quando uma pessoa branca diz 'usar seu privilégio' para 'dar voz' a uma pessoa negra, ela di-lo na condição de que essa 'voz dada' possa ser posteriormente metabolizada como valor, sem com isso desmantelar a lógica de valorização do regime branco de distribuição das vozes". E assume que a dificuldade para quem pratica a dissidência está em preservar as sementes de pessoas ainda por existir, que terão de se inventar a si mesmas a partir daquelas que foram historicamente negadas.
REFERÊNCIAS:
Religiões Candomblé
Feministas despem-se em Notre Dame para festejar saída do Papa
Entraram na catedral e despiram-se como é característico do movimento Femen. (...)

Feministas despem-se em Notre Dame para festejar saída do Papa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-04-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Entraram na catedral e despiram-se como é característico do movimento Femen.
TEXTO: Oito feministas do movimento Femen entraram na Catedral de Notre Dame, em Paris, França, e despiram-se para festejar a saída de Bento XVI. As jovens entraram discretamente, ao lado dos habituais turistas, envergando longos casacos escuros que despiram no interior do local de culto católico. Junto a três dos nove novos sinos, provisoriamente no chão de uma das naves da catedral, as raparigas despiram-se e mostraram os seus corpos onde escreveram mensagens como "Não ao Papa", "Não à homofobia", "Crise de fé", "Adeusinho, Bento!". As feministas chocaram os visitantes. "Este é um local sagrado, vocês não devem despir-se aqui", disse uma turista francesa. Poucos minutos depois, as manifestantes foram obrigadas a sair do edifício pelos responsáveis do local de culto, o que não as impediu de continuar a gritar e a cantar "Confiamos nos homossexuais" – em inglês "in gay we trust" uma variante da frase "in God we trust", ou seja, "em Deus confiamos" – e "Sai, homofóbico". O movimento Femen é conhecido por, desde 2010, se manifestar de peito descoberto da Rússia à Ucrânia, passando por Londres e pelo Vaticano, quando, por exemplo, o Papa reza o Angelus, ao domingo, ao meio-dia. Em Setembro, instalaram em Paris o "primeiro centro de treino" para o "novo feminismo".
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave gay feminismo homofobia
Convenção condicionada por fora
Na semana em que a deputada Mariana Mortágua brilhou no Parlamento ao fazer PSD e PS recuarem nas subvenções dos deputados, o BE fecha-se no Pavilhão das Olaias para decidir o futuro que não depende só de si. (...)

Convenção condicionada por fora
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na semana em que a deputada Mariana Mortágua brilhou no Parlamento ao fazer PSD e PS recuarem nas subvenções dos deputados, o BE fecha-se no Pavilhão das Olaias para decidir o futuro que não depende só de si.
TEXTO: O futuro do Bloco de Esquerda, muito provavelmente, depende pouco da IX Convenção que hoje se inicia em Lisboa e joga-se sobretudo na dinâmica eleitoral que se criar entre este partido e a tentativa de uma "candidatura cidadã" subscrita por 241 personalidades que esta semana foi anunciada. Uma iniciativa que tem como suporte legal a estrutura do novo partido, Livre, e que reúne o Manifesto e a Renovação Comunista. Não tanto porque esta nova formação surja como substituto do BE do ponto de vista político, mas porque eleitoralmente pode gerar uma dinâmica que, ao agregar votos, acabe por contribuir para a erosão eleitoral do BE. Na semana em que a deputada Mariana Mortágua brilhou no Parlamento ao fazer PSD e PS recuarem nas subvenções dos deputados, o BE fecha-se no Pavilhão das Olaias, em Lisboa, para decidir se continuará a ser coordenado por uma solução paritária composta por Catarina Martins e João Semedo ou se volta a uma liderança de tipo tradicional com Pedro Filipe Soares. Esta diferença no que são as caras de topo da direcção para o exterior não é uma diferença menor – assim como são diversos o tom e a abordagem ideológica. Pedro Filipe Soares, que surge como herdeiro da linha UDP, chega a afirmar: “Esse horizonte socialista continua à nossa frente. ” Já para Catarina Martins e João Semedo, “Socialismo é o novo regime feito de todas as emancipações”. É verdade também que há pequenos matizes nas moções – como a defesa por Catarina Martins e João Semedo de que a rejeição do Tratado Orçamental seja submetida a referendo. Mas ambas as moções, na prática, defendem o mesmo: a desvinculação do Tratado Orçamental, a reestruturação da dívida pública, a nacionalização da banca, a rejeição da austeridade europeia, a reforma fiscal com tributação de empresas, a nacionalização dos bens comuns privatizados e defesa dos sectores públicos estratégicos como a água, a protecção dos serviços públicos de saúde, educação e Segurança Social, a revisão da legislação laboral com reposição de direitos, o aumento do emprego e dos salários, a criminalização do enriquecimento ilícito e o combate à corrupção, o respeito absoluto pela paridade (50/50) a, igualdade de género, a adopção por gays, a saída de Portugal da NATO. Só que o BE que chega a esta convenção é um BE desgastado, fraccionado, fechado sobre si mesmo – a viver numa lógica de sobrevivência em reacção ao afastamento de alguns fundadores e à própria incapacidade de renovação geracional, exibindo também o abandono cada vez mais acentuado da cultura de abertura ao diálogo político. Reflexo desse desgaste é a saída dos militantes que pertenciam à Política XXI e que estão no Fórum Manifesto. Uma ruptura que deixou em minoria a linha política que junta herdeiros do PSR e da Política XXI e que no início de 2013 criaram a tendência Socialismo, protagonizada por Francisco Louçã, João Semedo e José Manuel Pureza. É o confronto entre estes e a Associação UDP que se joga na IX Convenção, na qual Pedro Filipe Soares surge com 262 delegados eleitos contra 256 de Catarina Martins e João Semedo – e em que poderão ser decisivos os 90 delegados eleitos pelas outras moções. Ora, mais do que estas lutas internas no BE, o que determinará o futuro deste partido, repetimos, é a sua capacidade de atrair eleitores em 2015. Este jogo passa-se no exterior do Pavilhão das Olaias e tem como parceiro o novo Livre e a capacidade inegável que Rui Tavares teve de congregar em torno de si intelectuais e personalidades de esquerda que estão para além do próprio Livre, do Fórum Manifesto e da Renovação Comunista. Assim, entre os promotores da “candidatura cidadã” do Livre estão nomes mais ou menos expectáveis como Ana Drago, Daniel Oliveira, Rogério Moreira, Cipriano Justo, Paulo Fidalgo, Carlos Brito, Henrique de Sousa, Fernando Sousa Marques, Carlos Luís Figueira, José Manuel Tengarrinha, Luísa Mesquita, Florival Lança, Ulisses Garrido, Isabel do Carmo, Pilar del Rio, Luís Moita, José Reis, Ricardo Paes Mamede, Eugénia Pires, Sandro Mendonça e Boaventura Sousa Santos. Mas estão outros que não são tão previsíveis, como é o caso de Viriato Soromenho-Marques, Ricardo Sá Fernandes, São José Lapa, Luísa Costa Gomes, Mário Laginha, Júlio Machado Vaz, Alexandra Lucas Coelho, Jorge Wemans, Augusto M. Seabra, André Freire, Miguel Vale de Almeida e Pedro Bacelar de Vasconcelos. Já para não falar de alguns jovens ainda sem proeminência pública, mas que representam uma renovação geracional e intelectual. A questão é saber até onde será atractiva para o eleitorado esta proposta liderada por uma nova geração, nascida depois do 25 de Abril, que não está enredada nas teias das rivalidades velhas de 40 ou 50 anos entre o PCP e a extrema-esquerda, e que parece não ter medo de partilhar o poder e de tentar condicionar uma governação do PS à esquerda.
REFERÊNCIAS: