Tourada fiscal
Não só existem já incentivos de mais à tauromaquia, como o OE 2019 vem juntar novos incentivos a uma atividade que implica violência e sofrimento animal injustificados. (...)

Tourada fiscal
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 21 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não só existem já incentivos de mais à tauromaquia, como o OE 2019 vem juntar novos incentivos a uma atividade que implica violência e sofrimento animal injustificados.
TEXTO: A discussão sobre as touradas voltou à ordem do dia, desta vez pela via fiscal. O Orçamento do Estado (OE) para 2019 prevê alterações no IVA aplicável à tauromaquia: 1) o fim da isenção de IVA dos serviços prestados por artistas tauromáquicos, ficando sujeitos a IVA a 6%; e 2) embora a proposta do Governo previsse manter o IVA nos espetáculos tauromáquicos nos 13%, propostas de alteração já aprovadas com os votos do PSD, PCP, CDS e de alguns deputados do PS reduziram esta taxa para os 6%. O fim da isenção, medida do PAN, visa penalizar a tauromaquia. No entanto, em muitos casos poderá beneficiá-la. De facto, apesar dos serviços prestados por artistas tauromáquicos encarecerem, ao serem acrescidos de IVA, estes passam a poder deduzir o IVA que pagaram nos bens e serviços adquiridos para a sua atividade. O que isto na prática significa é que não só passam a ficar melhor financeiramente, como podem mesmo ficar em crédito fiscal perante o Estado, através do reembolso do IVA que suportaram. É, pois, uma medida que à primeira vista parece desincentivar a tauromaquia, mas que, na prática, lhe é até financeiramente útil, o contrário do pretendido. Já a redução para 6% do IVA (proposta pelo PSD, PCP, CDS e PS) incentivará as touradas ao vivo. A taxa reduzida de 6% é destinada a atenuar o impacto na aquisição de bens ou serviços, incentivando-os, daí se aplicar a produtos alimentares, medicamentos, próteses e livros, entre outros, e deve respeitar um dos princípios dos benefícios fiscais: ter caráter excecional para assegurar um interesse público extrafiscal relevante, superior ao imposto que é sacrificado. Deve também considerar o sistema fiscal como um todo. Como se justifica que o papel higiénico, bem de primeira necessidade, tenha 23% de IVA, enquanto as touradas beneficiam da taxa de 6%?Chegamos então à questão principal: têm as touradas um interesse extrafiscal relevante? Não sendo unânime, considero que não têm, por várias razões. Diria até que o interesse é o de as desincentivar. É inegável que as touradas implicam sofrimento animal. Uns dirão que é aceitável em função da alegada arte. Outros, como eu, dirão que é inaceitável. Certo é que é função do Estado ir eliminando e prevenindo o sofrimento animal. Nesse sentido, recentemente os animais deixaram de ser “coisas” para a lei, eliminou-se o direito a causar-lhes sofrimento injustificado e criminalizou-se os maus tratos a animais de companhia. Ora, os incentivos à tourada não se coadunam com este movimento. O respeito pelos animais é um dos valores que mais e melhor desenvolvimento tem tido, e que claramente se sobrepõe ao valor do espetáculo tauromáquico. Como bem disse o embaixador Seixas da Costa no Facebook, "Eu também não coloco os animais acima das pessoas, mas coloco o sofrimento dos animais acima do gozo de um espetáculo para pessoas". A esta argumentação é normalmente contraposto o valor da tradição. É estratégia já antiga usar a tradição contra certos movimentos, principalmente os de direitos humanos. É um argumento por definição errado, dado tentar justificar a continuidade de uma prática negativa com base em ser algo que “sempre se fez”, e que foi sempre e repetidamente utilizado para tentar impedir o fim de práticas que hoje são inaceitáveis, como a escravatura, a proibição do voto das mulheres e a discriminação em função do género e da orientação sexual. As tradições podem ter valores históricos e culturais, mas não podem servir como perpetuadoras de discriminação, sofrimento e violência, como é o caso das touradas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Por fim, refira-se que as touradas já têm bastantes incentivos. A transmissão de touradas pela RTP é um incentivo estatal, e a tauromaquia recebe ainda diversos incentivos pela via de subsídios agrícolas que beneficiam a criação dos chamados touros de lide, a que se juntam os incentivos autárquicos à realização de touradas. Em suma: não só existem já incentivos de mais à tauromaquia, como o OE 2019 vem juntar novos incentivos a uma atividade que implica violência e sofrimento animal injustificados. Não é tradição que mereça proteção. Espera-se que, num futuro muito próximo, esta discussão se tenha tornado inútil, por os direitos dos seres vivos serem mais claros para todos. O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PAN PSD PCP
Porque é que a América inventou o nigger?
I Am Not Your Negro quer ser o filme que James Baldwin nunca fez, a história da América a partir de três assassínios marcados pela luta racial. Recupera o Baldwin político e desafia a América a olhar-se no que tem de mais incómodo. A começar pela palavra proibida: Nigger. (...)

Porque é que a América inventou o nigger?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: I Am Not Your Negro quer ser o filme que James Baldwin nunca fez, a história da América a partir de três assassínios marcados pela luta racial. Recupera o Baldwin político e desafia a América a olhar-se no que tem de mais incómodo. A começar pela palavra proibida: Nigger.
TEXTO: Em 1979, James Baldwin, romancista, ensaísta, dramaturgo, activista dos direitos civis, escreveu uma carta ao seu agente literário propondo-se contar a sua história da América a partir das vidas de três amigos seus assassinados num período de cinco anos. Os amigos eram Medgar Evans, activista afro-americano morto por um supremacista branco no Mississipi em 1963; Malcolm X, muçulmano, afro-americano, fundador da Organização Para a Unidade Americana e defensor do nacionalismo negro na América, morto em 1965 no Nebraska; Martin Luther King Jr. , pastor protestante, activista político, morto em 1968 em Memphis. O livro chamar-se-ia Remember This House e nunca foi escrito. Quando morreu, em 1987, o escritor deixou trinta páginas com notas soltas. O realizador haitiano Raoul Peck pegou nelas e concluiu o projecto de Baldwin, um livro que deu um filme: o documentário I Am Not Your Negro que acaba de se estrear em Nova Iorque e recupera James Baldwin para o presente. I Am Not Your Negro começa por uma tentativa de dar corpo e voz ao homem a quem Toni Morrison, Nobel da Literatura em 1993, agradeceu ter-lhe dado a linguagem. “Deste-me a linguagem onde morar, um presente tão perfeito que parece invenção minha”, disse no funeral de Baldwin, à época considerado um dos grandes intelectuais americanos da segunda metade do século XX, mas que foi quase esquecido durante os últimos trinta anos. A sua história e a da sua obra são a de um conflito com o país onde nasceu. É a partir daí que Peck explora a ideia de casa, uma que a dado momento se tornou insuportável. O interdito continua. Para dizer o título do filme e do livro é preciso dizer a palavra que carrega raiva, culpa, preconceito: NegroJames Baldwin abandonou-a em 1948, aos 24 anos, refugiando-se num exílio em Paris. Recusava-se a conviver com o preconceito numa América intolerante à diferença. Negro, homossexual, queria ser escritor e que a sua escrita fosse feita fora desse universo claustrofóbico e repressivo. “Deixei este país por uma única razão, uma só razão - não me importava para onde ia. Poderia ter ido para Hong Kong, poderia ter ido para Tombuctú. Acabei em Paris, nas ruas de Paris, com quarenta dólares no bolso, com a teoria de que nada pior poderia acontecer comigo lá do que já tinha acontecido comigo aqui (. . . ) Os anos em que vivi em Paris fizeram uma coisa por mim: libertaram-me desse terror social, que não era paranóia da minha cabeça, mas um verdadeiro perigo social visível no rosto de cada polícia, de cada chefe, de toda a gente”. Contou isto em 1968, numa entrevista no programa The Dick Cavett Show. Peck foi buscar esse excerto para dar a voz, mas também revelar o sorriso aberto, o porte, as mãos, o olhar vivo e tudo o que isso diz da figura de James Baldwin. É dessa matéria que é feita a sedução de I Am Not Your Negro e também aquela onde reside toda a sua força e que pode ser sintetizada numa frase-diagnóstico: “A questão não é o que acontece com o Negro aqui ou com o homem negro aqui (. . . ), a verdadeira questão é o que vai acontecer com este país. ”Era deste mote que Raoul Peck precisava para transpor o pensamento de Baldwin para o presente: olhar o momento actual a partir de Baldwin. O documentário começou com uma ideia vaga, há dez anos, quando Peck foi a casa de Gloria Karefa-Smart, irmã mais nova de James Baldwin, para lhe pedir permissão para consultar os arquivos pessoais do autor de obras como Another Country (1962) The Fire Next Time (1963) ou Tell Me How Long The Trains Been Gone (1968). Leitor de Baldwin desde os 15 anos, admirador não apenas da sua literatura, mas de modo como foi capaz de expor uma realidade que o realizador também conhecia do seu Haiti natal – o racismo e “a violência intelectual” -, Peck queria trabalhar a partir do legado de Baldwin sem saber bem como. A solução veio das mãos da própria Glória quando, passados quatro anos de conversas, ela lhe passou para as mãos o maço com trinta páginas e o título Notes Toward Remember This House. Seria aquela a história. Peck “só” tinha de a escrever a partir das notas que o escritor deixara e a que juntou entrevistas, ensaios, cartas. “O meu trabalho foi o de encontrar aquele livro nunca escrito. I am Not Your Negro é o resultado mais improvável dessa procura”, afirma o realizador na introdução do livro que deu origem a um filme narrado por Samuel L. Jackson, o actor que dá voz à que seria a voz de Baldwin tal como Peck a concebeu. Estamos sempre na primeira pessoa numa obra que mesmo antes de se estrear foi selecionada para a edição deste ano dos Oscares na categoria de melhor documentário - o filme foi comprado para exibição comercial em Portugal pela Midas, que também editará o livro. É um filme sobre um discurso e a sua alegada intemporalidade que surge num momento em que a América está a recuperar o nome de Baldwin. Não apenas os seus romances, mas as peças de teatro e os ensaios onde está exposto o seu pensamento no contexto do movimento dos direitos civis que marcou a América na década de 60 e que parece ajustar-se ao presente no que têm de argumentação no combate à exclusão, na denúncia de todos o tipo de segregação: racial, sexual, de classe. É o momento pós-Ferguson, pós- Baltimore, pós-Staten Island, pós-Charlote onde americanos negros morreram vítimas do preconceito, o da consequente contestação protagonizada pelo movimento Black Lives Matter. Foi também o momento do segundo mandato do primeiro presidente negro, e o do ressurgir do racismo numa escala que não se via desde os anos 50 e 60 quando morreram nada mais do que Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, Jr. Não foi por acaso que Barack Obama citou James Baldwin na inauguração do último Museu Smithsonian, em Washington, dedicado à história e cultura afro-americana. Foi a 23 de Setembro passado: "Enquanto a história de como sofremos, de como ficamos encantados, e de como podemos triunfar não for nova, ela deverá ser sempre escutada. ” Ou seja, o pensamento de Baldwin continuava a fazer sentido no último trimestre de 2016. Peck sabe que faz ainda mais sentido neste arrancar de 2017. Quando o documentário foi concluído, Donald Trump ainda não fora eleito sucessor de Obama na presidência dos Estados Unidos, mas as palavras escolhidas para o trailer de apresentação do filme parecem feitas para desafiar a nova administração americana. “Eu não posso ser pessimista, porque estou vivo. Ser pessimista significa que se concordou que a vida humana é um assunto académico, por isso sou forçado a ser otimista. Sou forçado a acreditar que podemos sobreviver no que quer que de nós deva sobreviver. Mas o Negro neste país. . . o futuro do Negro neste país é precisamente tão brilhante ou tão escuro quanto o futuro do país. Depende inteiramente do povo norte-americano e dos nossos representantes. Cabe inteiramente ao povo americano se vai ou não enfrentar e tratar e abraçar esse estranho que tem maltratado durante tanto tempo. ” Baldwin disse isto em 1963, num programa da televisão pública chamado The Negro And The American Promise, o mesmo de onde Raoul Peck retirou o título do documentário, com uma pequena alteração que atenua o peso das palavras. “O que os brancos têm de fazer é tentar descobrir no seu íntimo porque é necessário ter um ‘nigger’ (. . . ), porque eu não sou um nigger, sou um homem. Mas se acha que eu sou um negro, isso significa que precisa dele. A pergunta que tem que fazer, que a população branca deste país tem que se perguntar (. . . ) é se eu não sou o nigger e o inventou, então tem que descobrir porquê. O futuro do país depende disso, quer seja ou não capaz de fazer essa pergunta. ” A frase de Baldwin é I’m not your nigger. Ele diz a n word, a da injúria, do estigma, aquela que uma nação inteira não pode dizer, a não ser que seja a nação negra a usá-la como quem usa uma caricatura de si mesmo. Ao optar pela palavra Negro, em inglês, Peck não despe a injúria, apenas a torna um pouco mais suportável e incómoda. Quando andava pelas ruas de Nova Iorque, criança, adolescente, jovem adulto, Baldwin sentira essa injúria, tentou esquecê-la em Paris, mas uma imagem reavivou-a. Era uma fotografia de jornal. Nela via-se Dorothy Counts, 15 anos, a primeira rapariga admitida no liceu de Harring Harding, em Charlotte, Carolina do Norte. Dorothy está sentada sozinha na primeira fila de um anfiteatro e atrás dela há muitos rostos a escarnecer. “Havia um orgulho, tensão e uma angústia indescritíveis no rosto daquela menina enquanto entrava nas salas de aula (. . . ) Aquilo deixou-me furioso, encheu-me de ódio e de piedade. E deixou-me envergonhado. Alguém de nós deveria ter estado lá com ela! (. . . ) Foi naquela tarde luminosa que eu soube que estava a deixar a França. Não poderia, simplesmente, ficar mais tempo sentado em Paris a discutir os problemas argelinos e dos negros americanos. Toda a gente estava a pagar as suas dívidas, era hora de eu ir para casa e pagar a minha. ”O documentário começa por aqui, pela decisão de Baldwin regressar aos EUA, em 1957. O mesmo preconceito que o expulsara fazia-o regressar. Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, Jr. eram os homens que tinham ficado quando ele optou por sair. Voltar, e mais tarde partir deles para escrever a sua versão da história da América, era um modo de pagar a tal dívida, de tentar enfrentar o interdito. O documentário é feito de passagens entre passado e presente. Baldwin surge enquanto profeta pelo pessimismo com que vislumbrara o futuro de um paísNatural de Nova Iorque, do Harlem, onde nasceu em 1924, James Baldwin conta que viveu os seus primeiros anos pouco consciente da diferença. Era um americano admirador de George Washington e de John Wayne que aprendeu a admirar os livros e a apreciar o cinema com uma professora branca. Aos sete anos, viu Joan Crawford e apaixonou-se, viu Bette Davis e aprendeu a fumar como ela. Escreveu sobre tudo isso e muito mais em The Devil Finds Work (colectânea de ensaio e memória sobre a sua experiência enquanto espectador de cinema e um tempo de formação, publicada em 1976). O cinema seria determinante e Peck quis explorar essa faceta para mostrar que Baldwin não rejeitara o mundo dos brancos. Foi com os livros e o cinema de autores brancos que aprendeu a olhar e a olhar-se. Baldwin diria muitas vezes que nunca sentiu ódio pelos brancos, que nunca fora racista ao contrário de muitos negros, mas aprendeu cedo a perceber que os amigos brancos o abandonavam à porta da escola. A amizade entre brancos e negros não saía da porta do recreio. “Quando uma criança põe os olhos no mundo tem de usar o que vê. Não há mais nada para usar. ” Quando em Imitation Of Life, filme de 1934, a mãe de uma aluna vai à escola entregar o casaco à filha e a professora lhe diz que se deve ter enganado na sala pergunta porque não há ali nenhuma aluna de cor, a filha não lhe perdoa. E não perdoa porque sabe que naquele momento foi excluída. O ódio racial começava aí, ao descobrir-se, por exemplo, americano numa América que não o reconhecia como plenamente seu. “O Negro nunca foi tão dócil como os americanos brancos queriam acreditar. Isso era um mito. Nas folgas não estávamos sempre a cantar e a dançar. Estávamos a tentar manter-nos vivos; estávamos a tentar sobreviver num sistema brutal. O ‘nigger’ nunca foi feliz neste país. ” E tudo isso fazia parte de uma narrativa maior que, outro exemplo, o cinema ajudara a sedimentar. Peck faz uso disso, partindo dos ensaios de James Baldwin, utiliza os filmes como âncora. No que revelam e no que escondem vê-se a História que um país conta a si mesmo. Por exemplo, o diálogo entre Toni Curtis e Sidney Poitier que antecede uma tentativa de fuga, em The Defiant Ones (1951), e as palavras: “Não sou capaz! Não sou capaz!” É a história de uma relação de amizade improvável entre um negro e um branco supostamente racista, em que o negro sacrifica a sua liberdade em nome do amigo. Como se lê isto no documentário de Peck que escreveu o que Baldwin supostamente teria escrito? Sai assim na voz de Samuel L. Jackson: “É impossível aceitar a premissa da história, uma premissa baseada no profundo mal-entendido americano da natureza do ódio entre negros e brancos. A raiz do ódio do negro é a raiva, ele não odeia tanto os homens brancos como simplesmente os quer fora de seu caminho, e, mais do que isso, fora do caminho de seus filhos (. . . ) Quando Sidney salta do comboio, os brancos liberais ficaram muito aliviados e alegres. Mas quando os negros o viram pular, gritaram: volta para o comboio, seu imbecil. O homem negro a fim de tranquilizar os brancos fazê-los crer que não são odiados. ”O cinema apelava à mesma pureza mítica, aquela que a América, ou uma certa América, queria ver legitimada, e que Baldwin volta a denunciar com outro filme, A Great Feeling (1949), “um dos mais grotescos apelos à inocência”. Como contraponto, ouvem-se canções de Bob Dylan ou Ray Charles e assiste-se às imagens da vida e da morte daqueles três homens: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, Jr. Há lágrimas e raiva e a vontade de não ver, coisa que Peck sublinha numa revisitação histórica que é outro olhar sobre a história. As imagens estão lá, mas sem deixar esquecer que são as palavras o que importa. Tudo à luz do presente que para já voltou a pôr os livros de Baldwin nos escaparates e nas montras das livrarias de Nova Iorque como de leitura obrigatória na América actual onde se voltam a ouvir palavras como medo, opressão, e a raça voltou aos discursos e a perseguição à diferença uma realidade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É como se, ao intercalar imagens do passado com acontecimentos recentes, ecoasse uma pergunta: de onde vem o ódio?O interdito continua e Raoul Peck puxou-o para capa. Para dizer o título do filme e do livro é preciso dizer a palavra que carrega raiva, culpa, preconceito: Negro. Há quem a diga bem alto, dose idêntica de provocação e de libertação, como o homem que pede moedas à porta da livraria Strand, em Nova Iorque: "I am Not Your Negro". Ele é negro, como são de um negro os olhos na capa do livro que acaba de ver nas mãos de uma mulher branca. "Não mo quer oferecer?", pergunta, e repete: "I am Not Your Negro", agora numa gargalhada rouca que se some no ruído da rua. O tom dele não é o tom triste, ainda que pouco resignado, de Richard Widmarck no filme No Way Out (1950): "Dizem que não é bonito dizer nigger. Nigger! Nigger! Nigger! Pobres crianças negras, amem as crianças negras. Quem me amou? Quem me amou?" Peck recupera esta fala para sublinhar o discurso de Baldwin e o modo como ele se foi socorrendo do cinema para exemplificar a legitimação do preconceito, no caso, o peso de uma palavra que carrega aquilo a que se convencionou chamar "the Negro problem". I am Not Your Negro é sobre isso. A dificuldade de uma parte da América saber como vive a outra parte, de conhecer a sua intimidade de modo a olhar-se como um todo. "Essa falha da vida privada teve sempre o efeito mais devastador na conduta pública da América e nas relações negros-brancos. Se os americanos não vivessem tão aterrorizados com seus eus privados, nunca se teriam tornado tão dependentes do que chamam The Negro problem", escreveu Baldwin nas suas notas dispersas que ganham aqui um corpo moldado à luz do presente. No livro isso não se vê. Há o texto, fotografias do escritor, imagens de filmes que servem para ilustrar o seu pensamento, fotografias de época, o contexto para o texto. Mas o documentário é feito de passagens entre o passado e o presente de modo a sublinhar uma ideia de profecia, ou seja, Baldwin a surgir enquanto profeta pela análise do seu tempo transposta para a cronologia actual, e pelo pessimismo com que vislumbrara o futuro de um país com o qual sempre teve uma relação ambígua, a mesma que se tem numa casa onde impera o conflito. Quando diz que o modo de vida americano falhou, quando diz que o sonho americano, quando existiu, foi à custa do sofrimento dos negros, quando refere que olhar à volta nos EUA de então era suficiente para fazer chorar profetas e anjos. “A verdade”, escreveu, “é que este país não sabe o que fazer com a sua população negra, sonha com qualquer coisa como ‘a solução final’. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Empire, série negra em TV branca
Série-fenómeno chega esta quinta-feira ao fim numa altura em que "as coisas estão a mudar" na diversidade racial da televisão dos EUA. Em Portugal, a novela A Única Mulher foca-se no racismo. (...)

Empire, série negra em TV branca
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 14 | Sentimento -0.08
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Série-fenómeno chega esta quinta-feira ao fim numa altura em que "as coisas estão a mudar" na diversidade racial da televisão dos EUA. Em Portugal, a novela A Única Mulher foca-se no racismo.
TEXTO: Esta quinta-feira à noite, Empire faz fade to black na Fox Life até à próxima temporada com a transmissão do último episódio de uma série que conseguiu destronar Madonna ou A Teoria do Big Bang. Mas o efeito fade to black aqui é quase ao contrário – a série, com tom e reveses de novela, trouxe para o horário nobre a ostentação da indústria do hip hop com alma à flor da pele. Negra. Que, tal como as telenovelas portuguesas e angolanas, tem, nos últimos meses, ganho mais espaço na ficção televisiva. Empire é um “nós os ricos” entre cenas da luta de classes com a cor da pele à mistura. A intriga é veloz, sacrificando a subtileza e “não se levando demasiado a sério”, elogia Robert J. Thompson, especialista em cultura popular na Universidade de Syracuse, nos EUA. Foca temas quentes que não só o do racismo - “Cookie, tenho de ir à TV branca e falar de uma maneira que não assuste de morte aquelas pessoas”, diz o patriarca e músico Lucious Lyon à ex-mulher que esteve presa 17 anos por tráfico de droga –, como o da homossexualidade na comunidade negra. Filma um dos filhos do magnata Lucious, Jamal, a usar os saltos da mãe quando era criança. O pai, enfurecido, põe-no no balde do lixo na rua – experiência pessoal do criador, realizador e produtor Lee Daniels, aos cinco anos. Neste império musical, são trabalhados estereótipos vários numa série que Daniels descreve despudoradamente como uma “Dinastia negra”, aludindo à série dos anos 1980. Cookie Lyon (Taraji P. Henson), a matriarca com sabedoria de rua envolta em padrões leopardo, será a personagem emblemática dessa atmosfera “sem vergonha de ser exagerada”, como categoriza Thompson, e a estrela-surpresa de série que tem momentos clássicos "tão mau que é bom". Na mesma linha, “é O Padrinho por Aaron Spelling”, segundo o jornalista e crítico do site Grantland Wesley Morris, que associa esta luta de poder pela sucessão na editora Empire, por motivo de doença, às séries cor-de-rosa daquele produtor como Melrose Place ou Os Anjos de Charlie. Empire é especial também pelos números – musicais, muitos, que pontuam a série à imagem de Glee ou Smash, mas sobretudo de audiências e de lucro. Desde a estreia até ao episódio final, a série captou cada vez mais espectadores, algo muito raro na televisão americana. O PÚBLICO pediu dados sobre as audiências na Fox Life, mas o canal não forneceu esses números. A série que começou na cabeça de um dos seus criadores, o também actor Danny Strong, com uma mistura de entrevistas de Kanye West e Rei Lear, tornou-se no programa mais visto do país no cobiçado grupo de público entre os 18 e os 40 anos – algo que não acontecia desde a estreia de Anatomia de Grey, em 2005. Em média é também, desde que se estreou em Janeiro, a série mais popular no Twitter, suplantando Scandal (Fox) ou The Walking Dead (AMC, em Portugal Fox). A história que propôs a Daniels (Precious, O Mordomo, também escrito por Strong, que assina ainda os últimos Jogos da Fome) tornou-se um fenómeno cultural e as conversas sobre Empire entre os executivos da Fox e os produtores passaram, como relatou sintomaticamente o New York Times, de frases a emojis. As palavras já não eram precisas. De chapéus festivos a confetti, de smiles com corações a coroas e, por fim, sacos de dinheiro. Acabou com mais espectadores do que a sitcom de duradouro sucesso A Teoria do Big Bang e a música original da série, produzida por Timbaland, tirou o novo disco de Madonna do número um do top de vendas nos EUA. É, expectavelmente, a campeã de audiências entre os afro-americanos: 71% das mulheres negras vêem Empire e os negros com menos de 50 anos dão à série números superiores aos dos do habitual campeão de audiências anual dos EUA, o Super Bowl. E é também um espelho das tabelas de vendas, das rádios, dos liceus, da moda, do mainstream da cultura popular americana – o hip hop é a regra. Empire “é retumbante e extravagantemente negra sem ser sobre ser negro. Aqui, o negro é-o simplesmente”, longe do gueto ou de uma postura à defesa, defendia Wesley Morris numa altura em que os motins de Ferguson estavam sanados mas antes de Baltimore se incendiar por mais uma morte de um jovem negro com envolvimento das autoridades. “Empire é uma parte importante do que estamos a ver na diversificação da programação nos EUA”, diz Thompson ao PÚBLICO, reconhecendo que “as coisas estão a mudar” na esteira de Raízes (anos 1970), Cosby Show (1980s) ou O Príncipe de Bel-Air (1990s) e no reverso da medalha de The Wire ou Treme. E quando há no horário nobre Scandal, Como Defender um Assassino (AXN), a comédia black-ish (ABC) e numa altura em que Larry Wilmore e Trevor Noah substituem Stephen Colbert e Jon Stewart na Comedy Central. “Mas essa não é a razão do sucesso” de Empire, defende o professor. “É porque é uma boa série, uma boa e velha telenovela nocturna” que o transportou para os anos 1980 e Dallas e Dinastia, longe dos dramas de prestígio como Breaking Bad ou True Detective e em plena indústria musical trespassada por “temas shakesperianos que lhe dão uma densidade divertida”.
REFERÊNCIAS:
Bringing up baby
Com J'ai Tué Ma Mèreestreou-se em Cannes (2009). Com Mommy foi premiado no Palmarés (2014). As mães são o seu tema, mas agora está no lugar delas. (...)

Bringing up baby
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0
DATA: 2015-12-29 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20151229180944/http://ipsilon.publico.pt/cinema/texto.aspx?id=335603
SUMÁRIO: Com J'ai Tué Ma Mèreestreou-se em Cannes (2009). Com Mommy foi premiado no Palmarés (2014). As mães são o seu tema, mas agora está no lugar delas.
TEXTO: À pergunta sobre uma possível filiação ou reivindicação do património do “cinema gay” — o que quer que isso seja: Derek Jarman, o New Queer Cinema de Gregg Araki, Todd Haynes ou Isaac Julien, e ainda Bruce La Bruce. . . ? —, Xavier Dolan respondeu numa entrevista que não lhe fora difícil fazer o coming out, que não era herdeiro de nada mas que sabia bem o que dizer sobre a crueldade das relações entre mãe e filho. Tinha 20 anos quando, sem passar por curtas ou videoclips, se estreou com J’ai Tué Ma Mère (2009). Isso levou-o à Quinzena dos Realizadores de Cannes, numa daquelas sessões que ainda hoje faz vir à baila os longos aplausos finais, e iniciou-se aí uma relação do festival com ele, através do director artístico Thierry Frémaux, que foi parecendo assunto demasiado familiar, coisa entre eles. No passado houve outro “bringing up baby”, Gilles Jacob acarinhando o punk Lars von Trier, e sabe-se como acabou, com o filho a vandalizar a casa paterna, a matar o pai. Mas o Made in Cannes de Dolan teve contornos exasperantes, com cada reinvenção capilar do realizador/actor a desencadear mimos do calibre enfant terrible — foi apenas ponto de partida, já vamos no “neo-Fassbinder”, “starlette art et essai”, “diva hipster gay narcísica”, “flamboyantly coiffed Quebecois” — os cabelos não dão descanso. . . — “who put the auteur into hauteur”. . . Os Amores Imaginários, em 2010, e Laurence para Sempre, em 2012, fizeram Xavier passar para a Selecção Oficial, na secção Un Certain Regard, Tom na Quinta foi o flirt com a competição de Veneza 2013 e este ano Xavier, 25 anos, subiu à competição oficial da Croisette com Mommy — ao agradecer o Prémio do Júri, não mordeu a mão que lhe deu de comer, como Lars foi fazendo até ser açoitado (a declaração de persona non grata), e agradeceu a amamentação. Este regresso que viria a ser em grande, com sinais de entronização (prémio ex-aequo com o Adieu au Langage de Godard, cineasta que não conhece), era esperado tendo em conta os sinais que dera com Tom na Quinta: a gravidade foi algo que se sentiu pela primeira vez nesse filme, parecia um começar de novo, e agora a sério, realizador não apenas starlette — a forma como investe com os caracóis, louros para fazer ton sur ton com um campo de trigo, ainda participa de uma vertigem narcísica, mas Xavier abre-se à autodestruição, à violência. Mommy confirma esse sentimento de novo começo. (Peter Debruge, na Variety, escrevia que Dolan parece ter esquecido o que andou a “aprender” com os outros filmes, para encontrar a sua voz de cineasta. ) Até porque, depois do filme em que matou sa mère, voltou a chamar Anne Dorval para mãe e Suzanne Clément para professora participante activa da crise que se gera entre a mãe e o filho que, desta vez, não é interpretado por Dolan mas por uma criatura de energia perigosa, irredutível, Antoine-Olivier Pilon — com quem Dolan filmara um videoclip para os Indochine, College Boy, onde já se notava um ar de família (certamente não procurado, Xavier diz-se ignorante cinéfilo) com o Malcolm McDowell de Laranja Mecânica e de If (caso específico do videoclip). Essa ausência de Dolan como intérprete é decisiva: suspende qualquer tentação narcísica, o que é uma das conquistas de Mommy. O realizador traz a possibilidade de se olhar para Mommy como reescrita de J’ai Tué Ma Mère: argumenta que o filme de 2009 era sobre a complexa relação com a sua mãe, Geneviève Béatrice Dolan, e que a personagem da mãe do filme de 2014, Diane, nada tem a ver com ela. Ele é que sabe, mas isso não exclui que se olhe para aquele passado e para este presente: a autobiografia foi transcendida e deu lugar a algo de amplo e universal de que Dolan quer falar. A Mãe: é a relação que o obceca, ele que cresceu numa família monoparental, que só se reencontrou com o pai, o cantor e actor de origem egípcia Manuel Tadros, mais tarde. Por isso é que Manuel, aparecendo nos filmes do filho, com quem mantém relação “amigável”, tendo até relatado para a TV do Quebeque o sucesso na Croisette, é afecto não problemático, relação que “apenas existe”, pela qual Xavier nunca sentiu curiosidade. “É o tema que me inspira mais, a mãe. Se calhar porque tento vingar a figura das mulheres ou da minha mãe em particular. As mães são a minha coisa”, confirmou ao Ípsilon. Mas isso é Mommy (estreia em Portugal no final do ano), isso ainda não era J’ai Tué Ma Mère/I Killed My Mother. É como se Mommy concretizasse o que ainda não era possível no primeiro filme, onde Dolan dizia coisas dolorosas (“Quando penso na pior mãe do mundo, não encontro ninguém melhor do que tu”) sobre uma relação paradoxal que é isto de “ter uma mãe que somos incapazes de amar mas incapazes de não amar”, isto de não deixarmos ninguém tocar na nossa mãe sob pena de matarmos o invasor e no entanto sermos capazes de contabilizar cem pessoas no mundo de quem gostamos mais, mas impunha à frente disso a insustentável leveza do narcisismo. Víamos, antes de tudo, Xavier a olhar para o seu filme, sem espaço para os outros, meros veículos. O seu emotivo discurso de premiado em Cannes, “temos esta profissão para amar e ser amados”, uma forma de dizer o que já dissera na conferência de imprensa, que o cinema serve para “vingar”, para fazer “o que a vida não nos deixa fazer”, é sinal de que talvez Xavier Dolan tenha encontrado o lugar do outro. Aconteceu a educação pelo cinema — está em Tom na Quinta, está em Mommy. Em Mommy está visível, por exemplo, o for que Dolan dizia estar invisível no título I Killed (for) My Mother. O cinema fez o seu trabalho, bringing up baby.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave violência campo filho educação mulheres gay
Desde 2009, houve mais 80 mil mortes do que nascimentos
Tendência para a diminuição da população manteve-se no ano passado: nascimentos voltaram a diminuir e nunca houve tão poucos casamentos em Portugal. (...)

Desde 2009, houve mais 80 mil mortes do que nascimentos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.5
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Tendência para a diminuição da população manteve-se no ano passado: nascimentos voltaram a diminuir e nunca houve tão poucos casamentos em Portugal.
TEXTO: Em apenas seis anos, entre 2009 e 2014, morreram quase mais 80 mil pessoas do que as que nasceram nesse período. É o resultado de seis anos consecutivos de saldos naturais negativos (mais óbitos do que nascimentos) e que se fica a dever ao decréscimo constante da taxa de natalidade, revelam os dados esta quinta-feira divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). As "estatísticas vitais" do INE apontam também para uma nova diminuição dos casamentos, que baixaram para o número mais baixo de sempre. Os dados do INE agora publicados indicam que em 2014 o número de óbitos (104. 790) suplantou de novo o total de nascimentos, levando a que, apenas neste ano, o saldo natural negativo ascendesse a 22. 423 pessoas, apesar de o total de mortes até ter diminuído ligeiramente face a 2013. As estatísticas permitem perceber que o fenómeno se fica a dever sobretudo à queda da natalidade, porque o total de óbitos mantém-se relativamente estável ao longo dos anos, enquanto os nascimentos têm sempre diminuído e de forma abrupta nalguns anos. Em 2014, a taxa de natalidade voltou a descer, ao contrário do que se tinha previsto inicialmente, mas esta queda foi muito ligeira (menos 420 nascimentos, ou seja, menos 0, 5% do que em 2013). Agora, o INE revelou os números definitivos (82. 367 nascimentos de crianças cujas mães eram residentes em Portugal) que vêm contrariar a tendência para um ligeiro acréscimo que tinha sido evidenciada pelos “testes do pezinho” (exames de rastreio feitos aos bebés nos primeiros dias de vida) feitos pela Unidade de Rastreio Neonatal, Metabolismo e Genética do Instituto. Ricardo JorgeO INE sublinha, a propósito, que a diminuição dos nascimentos em 2014 registou "menor intensidade do que nos três últimos anos” ( -4, 5% em 2011, -7, 2% em 2012 e -7, 9% em 2013). Para isso, explica, terá contribuído o nascimento no segundo semestre de 2014 de mais 1024 crianças do que no período homólogo de 2013, o que não chegou, porém, para compensar o decréscimo verificado no primeiro semestre. Também seguindo a tendência já verificada em anos anteriores, em 2014 houve menos portugueses a casar-se. Foram 31. 478, menos 520 do que no ano anterior, um mínimo histórico. Apenas um terço foi celebrado pela Igreja Católica e, do total, destaca o INE, 308 casamentos foram realizados entre pessoas do mesmo sexo. Mais de metade dos residentes em Portugal que se casaram no ano passado já viviam juntos, uma situação que tem vindo a aumentar de forma significativa nos últimos anos (em 2009, nesta situação estavam 39, 2% dos noivos). As portuguesas estão também a ter filhos cada vez mais tarde. As estatísticas do INE revelam que a percentagem de mães com 35 ou mais anos cresceu 7, 9 pontos percentuais em comparação com 2009. Outro fenómeno que também está a aumentar: há cada vez mais filhos nascidos “fora do casamento” (no ano passado eram já quase metade do total). São dados apresentados numa altura em que o Governo e os partidos da oposição apresentaram várias medidas para incentivar a natalidade em Portugal. A preocupação dos políticos com esta problemática começou depois de as quebras sucessivas e abruptas do número de nascimentos, entre 2010 e 2013, terem feito soar campainhas de alarme. Em 2013, Portugal detinha a mais baixa taxa de fecundidade no conjunto dos países da União Europeia (média de 1, 21 filhos por mulher em idade fértil) e a idade média do nascimento do primeiro filho ascendia já aos 29, 7 anos. Num recente estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre dinâmicas demográficas e envelhecimento da população especialistas estimavam que, “na melhor das hipóteses”, Portugal terá menos 1, 5 milhões de habitantes em 2060. No pior cenário, a redução poderá chegar aos quatro milhões. A boa notícia é que a esperança de vida deverá aumentar, chegando aos 90 anos (em média), no caso das mulheres, e aos 86 anos, no caso dos homens.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens filho mulher sexo estudo mulheres casamento
“A Igreja Católica aprendeu as regras do jogo democrático”
Paul Christopher Manuel, da Universidade de Mount St. Mary, em Maryland, nos Estados Unidos, diz que a Igreja Católica se porta como uma importante organização da sociedade civil. (...)

“A Igreja Católica aprendeu as regras do jogo democrático”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.2
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Paul Christopher Manuel, da Universidade de Mount St. Mary, em Maryland, nos Estados Unidos, diz que a Igreja Católica se porta como uma importante organização da sociedade civil.
TEXTO: Tende a ser mais julgada pelo seu passado, a sua associação ao antigo regime, do que pelo seu presente, o seu papel na democracia, mas a Igreja Católica aprendeu a participar no processo democrático, defende Paul Christopher Manuel, da Universidade de Mount St Mary, em Maryland, nos Estados Unidos. No início de Setembro, a marcar o novo ano pastoral, o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, apelou aos diocesanos que votem nas legislativas e nas presidenciais. Não fez referência a qualquer partido. Apontou a última encíclica do papa Francisco: a “ecologia integral”, que tanto reafirma que a vida começa logo na concepção, como condena o consumismo, o predomínio da finança, faz a apologia do direito ao trabalho, da solidariedade, do respeito pelo ambiente. E aquela mensagem é de direita ou de esquerda? Para Paul Christopher Manuel, não tem sentido reduzir o catolicismo ao binómio direita/esquerda, como muitos têm feito, de forma renovada, desde que Francisco foi eleito. “Podemos dizer que se inclina à esquerda numas questões (apoio aos pobres) e à direita noutras (aborto, casamento). Num sentido mais amplo, abre as questões da ontologia e da existência. ”O autor de Religion and Politics in Contemporary Portugal: Of Devotion and Democracy, capítulo do livro Religion and Politics in a Global Society: Comparative Perspectives from the Portuguese-Speaking World, que acaba de ser lançado nos EUA, conhece bem Portugal. Natural de Massachusetts, descende de portugueses que se mudaram de Santarém para Rhode Island em 1919. Estava a fazer doutoramento, na Universidade de Georgetown, quando decidiu dedicar a sua carreira ao estudo do país dos avós. Já antes se debruçara sobre as aparições de Fátima, que recusa reduzir a uma ferramenta de resistência dos conservadores na I República, uma das rampas de lançamento do Estado Novo. Sabe que não se esgotou com a ditadura o papel de Fátima na vida política portuguesa. Logo após o 25 de Abril de 1974, houve quem tentasse convencer o povo a trocar a religiosidade pela consciência revolucionária. A hierarquia católica reagiu contra a esquerda, em particular contra o Partido Comunista, sobretudo no Norte e nas Ilhas. E muitos devotos apegaram-se a Nossa Senhora de Fátima, alguns convencidos de que tinham rezado pouco pela conversão da União Soviética. Foi há 40 anos. O país fervia. A prelatura opôs-se à integração de padres nas listas dos candidatos à assembleia constituinte. Pediu aos católicos que votassem “com toda a liberdade”, mas não se absteve de afirmar que lhes estava vetado votar em partidos que, de algum modo, se afigurassem “incompatíveis com a concepção cristã do homem e da sua vida em sociedade”. E muitos sacerdotes, de forma mais ou menos velada, deram indicações de voto. A separação entre Estado e Igreja ficou consagrada na Constituição de 1976. Entretanto, a Igreja Católica aprendeu a jogar as regras do jogo democrático, sublinha Paul Christopher Manuel. Tenta influenciar decisões políticas sem confundir papéis. Assume-se como uma importante organização da sociedade civil, independente, com uma visão própria, com interesses próprios. Os católicos sempre se organizaram para garantir auxílio aos pobres, aos doentes, aos desvalidos. E diversas vezes fizeram-no para tentar bloquear a despenalização da interrupção voluntária da gravidez ou a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. E a adopção e a co-adopção por homossexuais. É evidente que diminuiu a influência política do catolicismo desde a transição democrática, nota o investigador. “Durante a sua visita oficial, em 2010, o Papa Bento XVI agradeceu aos leigos católicos os seus esforços contra o aborto e em favor da família fundada no 'casamento indissolúvel entre um homem e uma mulher', descrevendo o casamento homossexual como 'insidiosos e perigosos'. Quatro dias depois, o Presidente da República ratificou a lei do casamento homossexual do Partido Socialista. ” Não era a primeira derrota. “Governos socialistas já tinham aprovado outras medidas legislativas culturalmente progressistas, como a descriminalização do consumo de droga em 2001”, lembra o mesmo cientista político. E a interrupção voluntária da gravidez fora despenalizada, via referendo, em 2007. Em todas essas derrotas, avalia, a hierarquia católica reagiu com alguma elegância. A Conferência Episcopal Portuguesa não pediu aos crentes para não votarem nos partidos responsáveis pela mudança, como fez a espanhola, recorda Helena Vilaça, professora da Universidade do Porto, especialista em Sociologia da Religião. Não excomungou fiéis por apoiarem a despenalização do aborto, nem deputados por aprovarem o casamento gay. A sociedade mudou nestes 40 anos. Longe vai o fervor religioso da era António de Oliveira Salazar/Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira. Diminuiu o número de pessoas que se declaram católicas. Faltam sacerdotes. É preciso ir buscá-los ao estrangeiro. As pessoas vão cada vez menos à missa. Multiplicam-se as uniões de facto, os divórcios, as crianças nascidas fora do casamento. Apesar disso tudo, como diz Paul Christopher Manuel, a Igreja Católica continua a ser a maior organização religiosa do país (79, 5% dos portugueses declararam-se católicos em 2011 e 45, 7% iam à missa). Surpreende-o a afluência à missa no Natal, na Páscoa, nas festas dos santos populares, a quantidade de baptismos, casamentos e funerais católicos. Nota que, apesar de as tensões políticas terem acalmado, Fátima não se converteu num fóssil do antigo regime, mantém-se “parte da identidade nacional”, alimenta uma certa sensação “de importância, de singularidade”. “Não é o monopólio religioso que costumava ser, mas a impressão de que a Igreja Católica está em rápido declínio pode ser exagerada”, diz. Na sua opinião, os cientistas sociais têm de mudar a lente que costumam usar para observar o catolicismo contemporâneo. É preciso ter em conta a forma como o desafio demográfico (marcado pelo envelhecimento da população) se relaciona com as mais populares fontes de força espiritual (como Fátima) e com o papel social da Igreja. Usando essa outra lente, o catolicismo até lhe parece vibrante em Portugal. Há séculos que a Igreja recolhe donativos e aplica pelo menos parte deles nas chamadas obras de misericórdia. Um dos aspectos mais visíveis desse trabalho, hoje, é a rede de santas casas. E o domínio no universo de instituições particulares de solidariedade social a prestar serviço a crianças desprotegidas, famílias carenciadas, idosos, deficientes. “A crise trouxe renovada atenção à necessidade social de associações cívicas católicas”, diz. Neste momento, o país vive dois processos contraditórios: por um lado, “a secularização tende a afastar as pessoas da dependência espiritual diária da religião organizada”; por outro, “a política de austeridade exige mais serviço aos pobres, prestado por organizações do terceiro sector”. “A 'questão católica' no Portugal contemporâneo obriga a perguntar se o catolicismo continuará a ser uma força na vida associativa do século XXI ou se enfrentará um futuro de lento e constante declínio”, interpreta. Para já, “o que diminuiu foi a capacidade de influenciar a moral”. “A igreja Católica compete com muitas vozes seculares em assuntos como sexualidade, casamento, divórcio, interrupção voluntária da gravidez”, sublinha, num dos seus artigos sobre aborto. E “os católicos convictos, a maior parte dos quais a viver nas zonas rurais do Norte e Centro do país e nas ilhas, sente maior atracção por Nossa Senhora de Fátima ou pelo santo popular local do que pela teologia oficial vinda de Roma ou das arquidioceses de Braga ou Lisboa”. Há valores que se tornaram comuns e esses, no seu entender, têm muito mais influência no voto: o amor, a solidariedade, a compaixão, a ajuda o próximo. Está convencido, por exemplo, de que foi por compaixão, solidariedade, vontade de apoiar as mulheres numa situação de crise, poupando-as a penas de prisão e a complicações relacionadas com o aborto clandestino, que muitos católicos votaram "sim" no referendo da despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
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Entidades EUA
A tensão entre a velha e a nova Turquia
Gaye Su Akyol tornou-se o nome obrigatório em todas as (muitas) listas que pululam pela internet de nomes a ter em conta na nova música turca. (...)

A tensão entre a velha e a nova Turquia
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.118
DATA: 2017-02-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Gaye Su Akyol tornou-se o nome obrigatório em todas as (muitas) listas que pululam pela internet de nomes a ter em conta na nova música turca.
TEXTO: Desde que lançou o seu álbum de estreia, Develerle Yasiyorum, em 2014, Gaye Su Akyol tornou-se o nome obrigatório em todas as (muitas) listas que pululam pela internet de nomes a ter em conta na nova música turca. Afirmando-se herdeira de um estilo de canto vindo de lendas nacionais como Asik Veysel, Ruhi Su, Müzeyyen Senar ou Selda Bagcan, a flagrante originalidade da cantora era apresentar-se rodeada de músicos formados na mais indisfarçada escola do rock ocidental, sem negar os trejeitos arábicos que lhes entravam pelas guitarras nem a adopção natural de outros compassos que não o do sacramental 4/4. A combinação cirúrgica entre estes dois mundos tornaria Gaye Su Akyol uma estrela instantânea num país enfiado num dilema permanente com a sua aproximação à Europa e em relação conflituosa com as tradições seculares. A sua música, na verdade, assumia-se como banda sonora perfeita para a tensão entre o antigo e o moderno, e resolvia-se numa espantosa, sedutora e misteriosa justaposição entre os dois planos. Autoria:Gaye Su Akyol Glitterbeat RecordsSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O muito justificado burburinho foi de tal ordem que a fama de Gaye rapidamente transcendeu fronteiras e, em 2016, chegava ao festival de Roskilde, meses antes de publicar o seu segundo álbum. Na altura, em palco havia de brincar com o facto de Develerle Yasiyorum significar qualquer coisa como “vivendo com camelos”, um exercício paródico com os clichés e as ideias estapafúrdias criadas pelo mundo ocidental acerca do que significa viver na Turquia. Boa parte desses delírios colectivos está agora condenada ao colapso com a edição de Hologram Imparatorlugu, cujo entusiasmo generalizado a levou já às páginas da Wire ou do Financial Times. A provocação quanto ao que será a música turca repete-se nos segundos iniciais do disco, com Hologram a arrancar com cordas de evidente travo arábico, mas logo acompanhadas pelo rumor de uma guitarra eléctrica que se encarregará de borrar a pintura tradicional. As tonturas provocadas pelo tom surf rock, desértico e psicadélico da sua banda – os membros dos também muito recomendáveis Bubituzak, mais dados a uma extravagância instrumental que faria as delícias dos grupos-satélite de Mike Patton: ouvir com urgência Boyutlar – voltam a aproximar os ouvidos do mundo da música contemporânea turca, depois de os Baba Zula, há uma década, terem conseguido furar a escala nacional. Só que há um charme em canções como Akil olmayinca, Fantastiktir bahti yarimin ou Eski tüfek que os Baba Zula nunca conseguiram alcançar. Talvez porque os seus (óptimos) álbuns sempre pareceram desenhados com um traço mais grosso, querendo vincar uma modernidade que em Gaye Su Akoyl nunca tenta escapar de uma situação mais frágil e tensa, mas também por isso mais envolvente.
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Palavras-chave escola cantora
Um blues para a escravatura moderna
O nova-iorquinio James Hannaham quis fugir ao óbvio sobre raça e escravatura e escreveu um romance partindo de uma pergunta: a vontade de subjugar faz parte da natureza humana? Chama-se Fruta Deliciosa, uma trágica ironia onde um dos narradores é a droga. (...)

Um blues para a escravatura moderna
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2017-01-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170101011105/https://www.publico.pt/n1756199
SUMÁRIO: O nova-iorquinio James Hannaham quis fugir ao óbvio sobre raça e escravatura e escreveu um romance partindo de uma pergunta: a vontade de subjugar faz parte da natureza humana? Chama-se Fruta Deliciosa, uma trágica ironia onde um dos narradores é a droga.
TEXTO: No momento em que foi dado como certo que Donald Trump seria o próximo presidente dos EUA, James Hannaham enviou um SMS a um amigo, romancista como ele. "Já viste como é tão fácil passar a ser um escritor dissidente?" O material de que é feito o mais recente livro de Hannaham e a sua própria identidade – "sou um negro americano, gay" – colidem em tudo com o discurso que fez eleger Trump e que em simultâneo gerou um movimento de contestação e de reacção em grande parte do universo literário americano: "Há muita gente determinada a não deixar que isto tudo se e isso é inspirador", refere James Hannaham numa altura da história do seu país em que é inevitável falar de política sempre que se fala com um escritor. No caso de Hannaham, alguém que publicou um livro centrado nas modernas formas de escravatura e em todos os modos de exploração de um ser humano por outro ser humano. Exploração económica, sexual, de raça, civilizacional. Chama-se Fruta Deliciosa, venceu a última edição do PEN/Faulkner Award, um dos mais prestigiados prémios das letras americanas, e acaba de ser publicado em Portugal. É terça-feira, passam três semanas desde as eleições. Cheira a lareira nas ruas tranquilas do bairro de Clinton Hill. Chove e já se acendem as primeiras luzes a anunciar a noite apesar de serem quatro e meia da tarde. Num pequeno café na cave de um prédio antigo, Hannaham aquece as mãos numa chávena de chá depois de um dia de aulas de escrita criativa no Pratt Institut, em Brooklyn, Nova Iorque, onde é professor. Meio a rir, diz que o mau humor não o larga desde esse dia 8. O desabafo sai-lhe num tom que se reconhece como o mesmo de Fruta Deliciosa: directo, irónico, perturbante, com as palavras escolhidas para atingir o efeito. O livro foi publicado há mais de um ano, mas agora parece assumir um carácter ainda mais político. “Quando Trump ganhou pensei numa coisa em que já pensara quando estava a escrever o livro: será que é da natureza humana tentar controlar outras pessoas, subjugá-las e satisfazer-se com isso? É uma questão que não tem nada a ver com raça. Pode ter a ver com a subjugação de mulheres por parte dos homens”, diz num inglês sem sotaque que revela uma viagem maior do aquela entre o Bronx, onde nasceu, e Brooklyn, onde vive. No princípio do livro, Eddie, 17 anos, guia sem parar desde uma quinta na Flórida até uma pequena cidade do Minnesota. Perdeu as mãos há pouco tempo. Transporta ainda as feridas abertas e a sensação dos dedos no volante. Foge. Para trás deixou Darleene, a mãe, dependente de crack, e um passado cheio de trauma. Quer dar uma pausa a esse tempo para mais tarde voltar. Pressente-se que para um ajuste de contas ou o desvendar de um mistério relacionado com a morte do pai, Nat, um activista contra os supremacistas brancos do sul, assassinado tinha Eddie seis anos. Foi quando Darleene deixou de suportar a vida. Na tranquilidade que a sua vida parece assumir no Minesota, Eddie mantém um silêncio acerca do modo como perdeu as duas mãos e da relação que mantém com a mãe. Ela ficou na Fruta Deliciosa, o nome da exploração agrícola de onde Eddie fugiu, a trabalhar num regime de escravatura que lhe alimenta o vício e a mantém refém. A ela e a centenas de pessoas que vivem como espectros. Autoria:James Hannaham (Trad. José Lima) Relógio d’Água Ler excertoCom uma estrutura clássica, o livro joga com a cronologia, viajando entre geografias – Texas, Louisiana, Florida, Minnesota – e entre passado e presente. Reconstitui a relação de Darleene com Nat, o nascimento de Eddie, a vida de dependência e de prostituição da mãe, a ida para a quinta. E é narrado na terceira pessoa ou na primeira, uma voz que vive na cabeça de Darleene, dá pelo nome de Scotty e é nada mais que o crack. “Digo à Darleene que todo o problema da humanidade é que tens um corpo, tens de ter um tempo e um lugar. Mas quando vocês todos têm um tempo e um lugar, vocês todos não têm merda nenhuma… a única coisa que o tempo faz é passar. ” Scotty fala assim e é apresentado como o grande trunfo de Hannaham neste romance que tem sido muito bem tratado pela crítica. Hannaham acha, no entanto, que lhe é dada excessiva importância e distrai do que para ele é essencial no livro. Scotty permitiu-lhe o humor, o sarcasmo que o fez chegar ao fim do livro e suportar o horror. Espera que tenha o mesmo efeito sobre o leitor. “Scotty para mim não é um diferencial de venda. Não foi assim que o pensei. Tentei seguir uma voz funcionasse e fosse disruptiva, mas que seria acima de tudo divertida. Foi sobretudo o meu modo de resolver um problema. Eu tinha Darleene que teria uma voz parecida com Scotty, mas não queria que ela soasse àqueles documentários sobre televisão do real. ” Queria alguma coisa mais ambígua. Como falar de Darleene sem parecer que havia uma câmara a espreitar pelo seu ombro? “Veio-me a ideia de pôr a droga a falar. Não sabia como iria soar, fui indo no livro e soou a uma espécie de humor doentio. Acabou por ser perspectiva invulgar e o humor tornou-me capaz de terminar o livro, enquanto escritor e talvez faça com que o leitor o consiga terminar. Muito do material é muito duro, negro, sofrido, difícil de lidar. Fiz muita pesquisa sobre tráfico humano e não há nada no romance que seja nem de perto tão duro. Não há comparação. Mas eu teria de representar isso de alguma maneira. O trauma e a violência não eram o que eu queria que as pessoas retivessem, mas que a ficção tivesse a textura da vida e permitisse chegar ao fim do livro, com todas as diferentes sensações e conflitos. Uma das minhas sensações foi a de que não deveria estar a rir daquilo porque é horrível, mas a vida é uma tragédia hilariante. ”Faz uma pausa. “Vê porque digo que não ando com muito bom humor?” Olha o chá, mas não o bebe. Resumindo, queria a atenção para o presente da escravatura, uma realidade em muitas explorações agrícolas sobretudo no Sul dos Estados Unidos, que independe da raça, mas está ligada a um passado onde a raça determinou a relação entre subjugar e ser subjugado. “A minha forma de entrar no tema foi através da raça”, conta. “Mas aquilo em que estava realmente mais interessado era na relação entre pessoas que são exploradas no seu trabalho e as pessoas que as exploram. A descriminação racial é parte disso, mas não creio que explique tudo. Acho que é uma desculpa para o abuso laboral. Abre o tópico para muitas outras situações e permite ao livro ser sobre muitas outras coisas que não esta específica de pessoas negras no sul. ”Este não é um livro de embalar. Gosto que os livros sejam sobre um largo espectro de possibilidades, que perturbemA ideia começou a desenhar-se na sua cabeça estava ainda a escrever o seu primeiro romance, God Says No (2006), onde conta a dificuldade de um rapaz católico em assumir a sua homossexualidade. “Estava a terminar a faculdade e tive uma disciplina com o seguinte nome: Cultural Tourism, Slavery Museums and the Modern Neo-Slavery Novel. Li muitos livros, a maioria de negros americanos. Todos tinham que ver com escravatura actual em muitos aspectos. ” O facto de estará a trabalhar num romance muito diferente não o afastou do tema. “Eu queria ver como é que eu podia contribuir com alguma coisa nova para este grupo de livros e que me parecia pertencer a uma espécie de tradição em que eu aparecia apenas como um jovem romancista a escrever sobre escravatura”. A pergunta agora era: “Que nova perspectiva poderia eu trazer?” Foi quando leu Nobodies: Moder American Slave Labor and the Dark Side of New Global Economy, do jornalista John Boewe (2008). Cada capítulo conta uma história real, diferente, de abuso laboral à volta do mundo. Cada história tem mais ou menos uma página e meia. ” Lá está a de uma mulher negra escravizada na Flórida em 1992, mais ou menos o tempo em que decorre a acção central de Fruta deliciosa, entre o início da década de setenta e meados de noventa, com múltiplas referências à cultura musical, popular, à política. James Hannaham continua: “Essa história perturbou-me. Percebi que o tal livro que tinha na minha cabeça deveria ser sobre isso, sobre este presente, não precisaria de ir ao passado para falar de escravatura. Foi uma percepção tão perturbante quanto emocionante no seu sentido mais deprimente e perverso. Achei que as pessoas deviam saber disto, estar mais alertadas para isto, ter esta versão moderna de escravatura no contexto da escravatura mais global. Em alguns aspectos é uma coisa nova mas no essencial o princípio mantém-se. Não é legal. E há outro sentido: a escravatura atravessa gerações. Há diferenças técnicas, mas é a subjugação de um grupo de pessoas por outro grupo de pessoas, trabalho barato, explorado. Não há nada de novo nisto. ”Chamou a essa quinta Fruta Deliciosa e a melhor justificação para a escolha desse nome pode estar numa frase de Scotty. “As pessoas dão nomes a tudo, e então nós pensamos que o nome é a verdade. ” James Hannaham diz isso de outra forma. “O sonho da boa comida, saudável, de uns, é o pesadelo de outros. Há ironia nesse nome?”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Escuta-se Hannaham e não se sente demagogia. Andou pelas estradas da Flórida, conhece o sul, contaram-lhe coisas, viu outras, mas não quis saber uma história em particular para construir a sua Darleene. “Não queria apropriar-me da vida de alguém nem que isso me limitasse, criativamente, emocionalmente. ” Darleene é ambígua, como o livro também é. Mesmo quando se fala de raça. Se Nat lutava por um pouco de igualdade, Bethella, a irmã de Darleene, carrega um passado cujas marcas não se apagam. “Todos os negros sabem reagir a uma tragédia. Basta sair-se com um carrinho de mão cheio da Boa Velha Raiva, despeja-lo em cima da Frustração do Costume e regá-la com uns Alguém Devia…” Bethella reagiu assim ao ver os pulsos sem mãos do sobrinho, em vez de perguntar “como” foi que aconteceu. James Hannaham quer fugir ao óbvio, ao cliché, e consegue um registo fulgurante, narrativa ritmada, linguagem precisa, conjugando fantasia com passagens quase documentais, a consciência a entrar pelo demencial, a sedução do crack como modo de sobrevivência. “Quando trabalhas no duro”, pensa Darleene, “e não estás a ser verdadeiramente paga, e não podes ir para lado nenhum, toda a gente sabe o nome que se dá a isso. Todos na quinta sempre a comparar com o que se fazia nos tempos antigos, mas estão só a exagerar porque estão furiosos – nesses tempos ninguém era pago. Não é essa a definição de escravatura? Não te pagam? E se assinas um contrato fodido e concordas com a dívida que eles continuam a empilhar – bem, anda toda a gente a discutir calmamente a definição dessa merda o tempo todo. ” Este pensamento de Darleene é revelador de um passado em que ela prometia ter sido mais do que foi. Andou na universidade numa família onde ninguém o fizera antes. É ela a falar através de Scotty que tanto conhece a linguagem do vagabundo quanto a do privilegiado, uma voz que tanto soa a jazz como a blues, mas que por vezes soa algo dissonante. Propositadamente? A conversa com o escritor não responde a isso. O júri do PEN/Faulkner não teve dúvidas quanto às qualidades do romance entre mais de 500 candidatos. Considerou-o ao mesmo tempo uma tremenda fábula americana “sobre a exploração e raça”, um thriller cómico e um retrato íntimo entre uma mãe perturbada e o seu filho espoliado. É também um livro político. Diz Hannaham: “Talvez tenha um ponto de vista político. Todos os livros são políticos à sua própria maneira, mesmo que evitem a ideia de política. Mas não sei que política é a dele. As de um homem negro gay? Um romance americano que não tem negros, não tem gays, nem explorados não pode ser chamado de não político. Fazer a escolha de não os incluir é ser político? Só porque só tem pessoas brancas não é político? Há pessoas a enganar-se a si mesmas ao pensar que não estão a ser políticas ou então a minha definição do que é isso é um pouco diferente. Este não é um livro de embalo. Gosto que os livros sejam sobre um largo espectro de possibilidades, que perturbem”, Há uma música. Ela vive nele, na sua biografia. Quando pensou em ser alguma coisa pensou antes de tudo na música. Mas fez teatro, foi performer em palcos de Nova Iorque, mais tarde designer; escreveu em jornais, desenhou páginas do Village Voice e pouco depois estava a escrever sobre música nessas mesmas páginas. “Se há uma continuidade neste percurso estranho é a arte”, dá uma gargalhada. E faz nova pausa. Volta à raça e aos subterfúgios à volta dela. O seu romance ganhou prémios prestigiantes e “só foi vendido para três países”, refere. “Dizem-me que o romance de um escritor negro americano não vende na Europa. Não sei se é verdade ou uma explicação preguiçosa. O facto é que só estou traduzido em Portugal, Itália e Holanda. Parece um queixume?” Nova gargalhada. Não quero que soe a qualquer coisa como cry me a river”, título da canção de Ella Fitzgerald, também expressão para “bem podes chorar”.
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Entidades EUA
Família de Amy Winehouse demarca-se de documentário sobre a cantora
Amy, do inglês Asif Kapadia, vai ter estreia mundial no próximo Festival de Cannes. (...)

Família de Amy Winehouse demarca-se de documentário sobre a cantora
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Amy, do inglês Asif Kapadia, vai ter estreia mundial no próximo Festival de Cannes.
TEXTO: A família da cantora inglesa Amy Winehouse, precocemente desaparecida em 2011, aos 27 anos, demarcou-se do teor do documentário que o realizador Asif Kapadia dedicou à intérprete de Back to Black, e que terá antestreia mundial no próximo festival de Cinema de Cannes. Num comunicado emitido no início desta semana, e citado pela AFP, um porta-voz da família classifica Amy como “um documentário enganador”, e anuncia a sua decisão de se “demarcar do filme” que vai sair sobre a “muito saudosa e amada Amy". Acrescenta ainda a nota de imprensa que a família de Amy Winehouse vê no filme de Kapadia “uma oportunidade falhada de celebrar a sua vida e o seu talento”, além de o considerarem “enganador” e contendo “inverdades básicas” – sem, no entanto, especificar em que consistem. “Há alegações precisas contra a família e contra o management, que são infundadas e desequilibradas”, diz ainda o porta-voz da família da cantora que morreu no dia 23 de Julho de 2011, na sua casa londrina em Camden, vítima de excesso de álcool. Asif Kapadia e a equipa responsável por Amy – que, como o documentário Senna (2010), foi produzido por James Gay-Rees – já reagiram às críticas da família da cantora. “Quando nos reunimos para fazer o filme, começámos por ter o apoio total da família Winehouse e abordámos o projecto com uma total objectividade, como o fizemos em Senna”, disse o realizador, também citado pela AFP. Asif Kapadia acrescenta que fez uma centena de entrevistas "com pessoas que conheceram Amy": amigos, família, velhos parceiros e membros da indústria musical que trabalharam com ela. “A história que o filme conta é o reflexo daquilo que encontrámos a partir destas entrevistas”, explica e defende-se o documentarista. Anunciado há dois anos, o projecto sobre Amy Winehouse tornou-se um documentário especialmente esperado, após o sucesso daquele que Kapadia dedicou ao campeão brasileiro da Fórmula 1. Quando, no início deste mês de Abril, teve acesso ao trailer do filme, o jornal The Guardian noticiou que ele conta a história de vida de Amy, desde a infância no bairro de Southgate, a norte de Londres, até à morte inesperada e prematura há quase quatro anos. E confirma o recurso a inúmeros testemunhos para a recriação da vida da cantora, desde os seus familiares, incluindo o seu ex-marido, Blake Fielder-Civil, e amigos de infância até elementos do meio e da indústria musical. O filme mostra uma Amy ainda teenager a posar para vídeos caseiros, a gravar o segundo álbum, Back to Black (2006), que lhe valeu vários Grammy, e a fugir dos paparazzi junto à sua casa londrina em Camden. “Eu não quero ser uma star, quero apenas ser música”, diz uma ainda jovem Amy, acrescentando não acreditar que viria a ser “totalmente famosa”. “Implícito no trailer está uma Winehouse vítima do seu próprio sucesso”, acrescenta The Guardian. “Os seus problemas tornaram-se as suas canções, que se tornaram a sua imagem, que fizeram dela – para o melhor e para o pior – um ícone”, acrescenta. Aquando da apresentação do projecto do documentário, há dois anos, Asif Kapadia classificou Ami como “um talento que aparece uma vez numa geração, que capturou a atenção de toda a gente”. “Ela escreveu e cantou com o coração, e toda a gente se rendeu ao seu feitiço”. O ponto alto na carreira de Amy Winehouse surgiu com a gravação de Back to Black, que vendeu mais de 12 milhões de cópias em todo o mundo e venceu inúmeros prémios, entre os quais vários Grammy. Asif Kapadia, nascido em Londres em 1972, assinou já dezena e meia de filmes, entre curtas, longas-metragens (em Portugal, passaram O Guerreiro e O Regresso) e documentários. Nestes, o mais notado foi Senna, em que conta a vida (e a morte) do automobilista brasileiro Ayrton Senna, filme que conquistou inúmeros prémios, entre os quais o BAFTA de melhor documentário em 2012. Amy está incluído na selecção oficial do Festival de Cannes (13 a 24 de Maio), fora de competição. Será a primeira presença do realizador inglês no festival francês.
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Palavras-chave morte gay cantora
O génio é a sua maldição
Como é que os músicos vêem D'Angelo? Extraordinário vocalista, exímio compositor, conhecedor dos clássicos, inventivo, com bom gosto e muito coração. Mas acima de tudo, um clássico que os tocou profundamente. (...)

O génio é a sua maldição
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Como é que os músicos vêem D'Angelo? Extraordinário vocalista, exímio compositor, conhecedor dos clássicos, inventivo, com bom gosto e muito coração. Mas acima de tudo, um clássico que os tocou profundamente.
TEXTO: “No final dos anos 1990”, ainda a fadista Ana Moura não era a fadista Ana Moura – o seu disco de estreia, Guarda-me A Vida Na Mão, só surgiu em 2003 –, “depar[ou-se] com a sonoridade” de um estreante chamado D'Angelo. “Identifiquei-me logo com aquela nova soul”, diz. “Toda a vida tinha ouvido e admirado os grandes artistas da soul”, de Marvin Gaye a Otis Redding, passando por Sam Cooke. E ali estava um da mesma igualha. No passado fim-de-semana, Ana foi a Londres vê-lo: “Adorei”, exclama. São muitos os músicos que mantêm uma relação intensa com a obra D'Angelo. Tendo idades diferentes, trabalhando em géneros distantes, descobriram D'Angelo em momentos e de maneiras diferentes, escolhem como preferido discos diferentes, apesar de Voodoo, de 1999, ser o mais citado, mas acabam todos por destacar a sua voz e a sua tremenda capacidade de criar melodias. A maior parte conclui o mesmo: quando surgiu podia até parecer novidade, mas D'Angelo é um clássico – e Black Messiah não os desiludiu. Carlão, isto é, Carlos Nobre, conhecido por Pacman quando era o MC de serviço nos Da Weasel apanhou-o “mesmo do primeiro disco”. “Foi na altura do primeiro disco da Erykah Badu”, recorda, e havia uma série de artistas a fazerem um som semelhante “a que chamaram nu-soul”, rótulo que segundo Carlão “caiu em desuso”. Na altura Carlão “escrevia para o Blitz e fazia umas coisas na rádio e as editoras mandavam discos” e foi assim que o descobriu – aquilo a que chama o método clássico, antes dos mp3. Com Voodoo Nobre manteve “uma relação altamente emocional”. Ainda assim, e apesar de já ser fã, “quando o disco saiu” o clique “não foi imediato”. “Lembro-me que as pessoas diziam 'O que é isto?'. Depois, passado um mês ou dois, não largas mais o disco”. Não podia ser mais oposta a relação de Tiago Miranda, ex-Loosers e DJ no LUX. Não se recorda “se ouvi[u]” Brown Sugar, o disco de estreia, de 1995, “numa loja ou na rádio”, mas sabe que “foi imediato” e pensou “Isto é muito bom, tenho de comprar este disco”. Se Carlão se fascinara com “um gajo com muito talento e de 19 anos a tocar piano, cantar e fazer uma soul para a qual na altura ninguém estava virado”, Miranda não sabia nada sobre a personagem: “Ao início pensava que ele era um cantor. Porque sempre tive a impressão que estes gajos não escreviam as canções. E achava genial na mesma, não diminuía em nada o meu gosto pelo disco”. Ou seja: nem sempre o contexto determina a nossa relação com um músico. Às vezes é simplesmente a música que nos toca. Mais tarde Miranda apercebeu-se “que o gajo fazia quase tudo” e “aí sim, fiquei fascinado”. Note-se que quando Tiago descobriu a multiplicidade de capacidades de D'Angelo, “já o gajo não estava a fazer música nenhuma e não havia informação sobre ele – nem sabia que ele estava agarrado às drogas”. Selma partilha do fascínio: para ela, D'Angelo é “um artista completíssimo, com uma voz incrível , uma presença impecável, com um gosto admirável na fusão de géneros musicais tão particulares, que arranja, escreve, compõe, produz”. A idade faz diferença na forma como chegamos aos objectos – Joaquim Albergaria, que é um pouco mais novo que Carlão e Miranda não ouviu pela primeira vez D'Angelo, viu-o. “Na TV, o vídeo da Untitled (how does it feel) parecia desacelerar o tempo”, recorda. Albergaria não conseguiu libertar-se daquele falsete, “herdeiro do Marvin Gaye e do Prince” mas “a acrescentar algo mais ao legado, que [D'Angelo] sabia de cor e coração”. Quando Albergaria ouviu o seu primeiro D'Angelo, que foi Voodoo, fê-lo “em repeat”. “À primeira escuta senti-me analfabeto”. Dificilmente se pode ser mais sincero: “Não sabia que a música podia ser assim. Havia qualquer coisa de intrinsecamente cru e dorido e ao mesmo tempo e de igual forma, sofisticado e suave. Quem também sentiu “amor à primeira vista” foi a cantora Selma Uamusse, que começou a ouvir D'Angelo em 1997 por “incentivo de um namorado apaixonado pela neo-soul e ouvíamos os discos em repeat”. Vivam os ex-namorados: nessa altura, a aparelhagem de Selma “alternava o Baduizm da Erykah Badu e o Brown Sugar”, de modo que o seu ouvido “estava muito condicionado a beber tudo o que fosse nu-soul”. D'Angelo era o rei, a Erykah a rainha e pelo meio “havia sempre lugar para Angie Stone, Bilal, JDilla, Raphael Saadiq. ”A soul é estar despidoMas qual a razão de todo este amor? Sendo cantora, Selma destaca a voz, claro – coisa que todos o fazem. Mas Angel Deradoorian (ex-Dirty Projectors, actualmente faz parte do trio Slasher Flicks, no qual se inclui Avey Tare e actua a solo como Deradoorian), realça um ponto importante: “Ele tem bom gosto. É subtil e usa apenas o que é certo para cada canção. Não sente necessidade de mostrar todo o seu talento a todo o momento. Cada inflexão vocal é pensada e bem colocada, o que aumenta o prazer de ouvir o seu canto doce”. Deradoorian admira “a profundidade artística de D'Angelo, o seu medo e a sua intrepidez”, o que parece, mas não é, uma contradição. Carlão também toca na questão da “profundidade”, usualmente associada às palavras que se cantam – ou como se cantam as palavras. “Há um lado genuíno e super-emotivo nele”, começa, antes de proceder a um pequeno raciocínio lógico: “Há gajos que são pirosos a falar de emoções e outros que são genuínos e mesmo que rocem o piroso aquilo é muito bom”. Dá exemplos: “Há temas do R Kelly que até gosto mas aquilo é meio piroso e para mim torna-se um guilty pleasure. Há outros gajos que se calhar estão a ser genuínos e acabam por soar azeiteiros”. Tudo isto para chegar aqui: “O Marvin Gaye sempre esteve na linha entre o genial e o piroso – e o D'Angelo também”. Carlão e Albergaria têm um fascínio pelo vídeo de Untitled – Deradoorian também. “Talvez o tenha ouvido na rádio antes, mas eu era nova e não me recordo disso. [Do que me lembro descobri-o] com o vídeo para Untitled (How Does It Feel), que é inesquecível”. Carlão acredita que esse vídeo “sintetiza o que é a soul”. Tentem recordar-se, como Carlão o faz: “Ele todo nu em frente a uma câmara, e aquilo para mim é soul: um gajo despido. A soul é isso: estar despido, sem roupa, sem truques, sem artifícios, sem outra coisa que a voz e a verdade”. Também é possível assistir a D'Angelo e ceder aos instintos: Selma não consegue deixar de realçar “a belíssima figura e a voz quente”. Clássico, clássico, clássico: todos usam esta palavra. Para Tiago Miranda D'Angelo “é um clássico”, “por causa das melodias”. Ana Moura conta que Untitled (How Does It Feel) a fez “reviver os eternos clássicos. Parecia que aquelas canções frescas também já eram clássicos! Porém, com uma nova roupagem adaptada aos tempos mais modernos”. E é curioso pensarmos isto hoje – porque em 1995 D'Angelo era fora do comum. “É estranho”, reflecte Carlão, “que ainda o vejamos como uma lufada de ar fresco quando ele usava instrumentos convencionais. Mesmo a gravação era old-school, soava a analógico numa altura em que o digital já tinha grande importância. Seduziu-me esse lado de ir recuperar uma coisa mais orgânica”. Por mais clássico que fosse não deixou de, em Voodoo e segundo Selma, alcançar “a combinação perfeita da espiritualidade do gospel com a complexidade do jazz, a beleza da soul, a ousadia e a crueza do hip hop”. Também se pode amar um bombo, e esse é o caso de Joaquim Albergaria: “O D'Angelo pedia [ao seu baterista] para falhar beats, oscilar, para embebedar o bombo (é o anti-Whiplash, valha-nos o cosmos). Percebi o apelo desta incerteza, a verdade do groove – o bombo do D'Angelo é o bombo mais próximo de todos os corações, imprevisível mas fiável, surpreendente e familiar, nenhum metrónomo o percebe mas nós sim, nós ouvimo-lo”. Está bom de ver que para Albergaria isto não é apenas uma questão de bombo mas sim de fazer “música como uma extensão da singularidade de cada músico”, de criar “um vocabulário que quanto mais único, mais imperfeito, quanto mais imperfeito, mais humano, quanto mais humano mais universal”. Melodias que soam clássicas, beats aparentemente errados mas que tornam a canção mais humana, a capacidade de transmitir uma emoção com palavras simples fazem com que (dizem os músicos) estes discos não soem datados. Quem canta assume influência directa do músico – outros como Carlão ou Miranda mantêm simplesmente uma relação emocional. Albergaria, claramente, começou a ouvir discos de maneira diferente à conta de D'Angelo. Pelo que tem de haver “um lugar num pódio qualquer” para D'Angelo, na expressão de Tiago Miranda para quem “muita gente que não é melómana gostaria dele se fosse exposta à sua música”. Ele sabe do que fala: “Só muito recentemente ouvi o Voodoo. Na altura não estava virado para a música”. Albergaria diz que “D'Angelo é para sempre”. Esteve quase para não ser, como é sabido. O que raio terá acontecido ao homem a quem chamam Rei para se ter perdido em mais de uma década de crack?“Ele tem algo de génio atormentado”, diz Carlão. “No Voodoo há um texto no libreto, que não sabemos a quem é dirigido mas que só pode ser para o Prince, em que o D'Angelo fala da desilusão do gajo enquanto fã perante aquilo em que o seu ídolo se tinha tornado. Isso é um sinal de que o artista que põe a fasquia muito alta. E depois possivelmente bloqueia porque não quer estar abaixo do que já fez”. Carlão termina com uma frase danada: “O seu génio é a sua maldição”.
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Palavras-chave rainha homem medo cantora