Gérard Depardieu é mesmo assim
Uma autobiografia chocante e comovente de Gérard Depardieu faz a França reavaliar a sua relação com o ícone. (...)

Gérard Depardieu é mesmo assim
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma autobiografia chocante e comovente de Gérard Depardieu faz a França reavaliar a sua relação com o ícone.
TEXTO: Ça c'est fait comme ça: roubo, prisão e prostituição. 170 páginas da autobiografia de Gérard Depardieu, tal como narrada a Lionel Duroy. Não certamente uma confissão de "pecados", mas um desassombrado reencontro consigo mesmo. É isso o que torna sempre tocante, mesmo quando chocante, Gérard Depardieu, e a forma como não tem medo de deixar que um tesouro nacional francês seja visto como embaraço nacional. "Desde jovem que me dei conta de que agradava aos homossexuais". Por isso não hesitava em passar ao acto e pedia dinheiro, conta. Relata ainda os actos de delinquência na juventude, e no início da sua vida de adulto, em Châteauroux, tal como violar túmulos para encontrar as jóias e os sapatos dos mortos. "Aos 20 anos o ladrão em mim estava bem vivo". Mas o que está a ser destacado pelos títulos dos jornais, não só franceses, mesmo os britânicos como o Independent, é a revelação de que sobreviveu "a toda a violência" que a mãe "inflingiu a si própria com agulhas de tricotar e outras coisas", na tentativa de matar o feto. Era o terceiro filho de uma família que chegaria a ter seis. Estas revelações estão a dar uma outra hipótese à complicada relação dos franceses com um dos seus mitos nacionais (recentemente outro "caso", o de Brigitte Bardot, a propósito da entrevista que deu à televisão francesa na comemoração do seu 80º aniversário). Por exemplo, a relação Depardieu-Depardieu, Gérard e o filho Guillaume, também actor, que morreu em 2008 aos 37 anos devido a uma pneumonia, depois de lhe ter sido amputada uma perna na sequência de um acidente de moto e depois de um historial de drogas e prisão. Guillaume acusou o pai de ser alcoólico e obcecado pelo dinheiro. “Guillaume passou pelas mesmas coisas que eu”, diz hoje Depardieu, filho de um alcoólico, Dédé, assim chamado por essas serem as únicas letras do alfabeto que conseguia escrever (mas sobre o álcool e o dinheiro, Gérard, 65 anos, disse a semana passada numa entrevista na TV francesa que não é alcoólico porque os alcoólicos "não se embebedam" e se procurou exílio fiscal primeiro na Bélgica e depois na Rússia de Putin não o fez por obsessão pelo dinheiro, porque. . . é rico). “Demorei muito tempo a perceber as exigências e o sofrimento de Guillaume, e não soube como lhe responder. Nunca encontrei as palavras. ” Não há sentimentos de culpa, no entanto. Há muito que mandou isso às urtigas. Figura excessiva, um físico que se tornou chocante (é uma das exibições de Welcome in New York, de Abel Ferrara, em que interpreta Dominique Strauss-Kahn), Gérard é também uma das mais delicadas memórias do cinema francês, um físico e uma sensibilidade (uma sensualidade) que se construíram a partir do instinto (conta que antes de aprender as aulas de teatro teve de aprender a falar) e que tocaram e comoveram Marguerite Duras, Truffaut ou Marco Ferreri. Foi ele que convenceu Bertrand Blier a dar-lhe, e não a Coluche, o papel de Jean-Claude em Les Valseuses. "Mas sou eu, é a minha vida, é para ti!". E o resto, como se diz, é História. A solidão que vive na personagem que interpreta no filme de Ferrara é a dele - o filme é tanto uma ficção sobre DSK como um documentário sobre o actor. Que diz nesta biografia que a sua família - os seus três filhos, para além de Guillaume - sentem vergonha do seu nome. "Já lhes disse, 'O que querem? Mudem de nome, por amor de Deus, se isso vos incomoda'. "
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave violência filho prisão prostituição medo vergonha
Foi você que falou do Verão do Amor?
1967 foi musicalmente um ano extraordinário, recheado de discos históricos e obras-primas intemporais. Representou, de certa forma, o zénite da revolução pop enquanto sonhada alavanca para transformar o mundo. Mas que podia ela, tão ingénua, perante toda a violência em redor? (...)

Foi você que falou do Verão do Amor?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: 1967 foi musicalmente um ano extraordinário, recheado de discos históricos e obras-primas intemporais. Representou, de certa forma, o zénite da revolução pop enquanto sonhada alavanca para transformar o mundo. Mas que podia ela, tão ingénua, perante toda a violência em redor?
TEXTO: Os Beatles a lançarem Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e a trazerem à vista de todos um novo mundo de despertares artísticos e acordares espirituais, uma libertação das amarras do velho mundo dos pais e das velhas formas de viver conservadoras, castradoras da afirmação individual, hipócritas na moralidade de pacotilha e no medo ao diferente. “A imaginação ao poder!”, subentendia-se um ano antes de a expressão, entre gás lacrimogéneo, pedradas, manifestações e barricadas, se tornar palavra de ordem nas ruas da Paris de Maio. No que à música diz respeito, é impossível discordar. Em 1967, a imaginação tomou mesmo o poder. Mas o mundo não era exactamente o que Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band pintava, nem estava perto de se tornar algo assim. Retrospectivamente, foi um ano de muitos acontecimentos decisivos na música. A lista de obras-primas e de sementes de futuro é particularmente extensa. Estrearam-se os The Doors e os Love assinaram a sua obra-prima, Forever Changes. Os Pink Floyd, liderados por Syd Barrett, estreavam-se com singles (Arnold Layne e See Emily play) e um álbum que definiu o psicadelismo mais aventureiro (The Pipper at the Gates of Dawn). Enquanto isso, os Kinks revelavam-se como cronistas atentos do quotidiano britânico, em modo pop rock (descubra-se a pérola Something Else). Em Nova Iorque, os Velvet Underground de Lou Reed e John Cale expunham sem pudor o reverso da treta flower-power e Velvet Underground & Nico anuncia-se com capa de Andy Warhol. Em Londres, um guitarrista americano deixava Pete Townshend dos The Who, e Eric Clapton, dos Cream, autores no mesmo ano da uma obra seminal, Disreali Gears, a pensar que melhor seria mudarem de profissão (como competir com o que Jimi Hendrix fazia em Are You Experienced?). As erupções de criatividade multiplicaram-se nas mais diversas áreas. Os Electric Prunes elevavam o garage-rock à estratosfera com I had too much to dream (last night), single da estreia homónima, e Morton Subotnick acrescentava a futurista música electrónica à banda-sonora da época com Silver Apples of the Moon. Os Byrds, com Younger Than Yesterday, e os Buffalo Springfield, com Again, transformavam o folk-rock numa outra coisa. Os Sly & The Family Stone fundiam a soul com rock’n’roll e contracultura (Whole New Thing era o título do álbum e era mesmo verdade) e os Jefferson Airplane, através de Surrealistic Pillow, tornavam global, via White rabbit e Somebody to love, o rock psicadélico que fermentava em São Francisco - os Country Joe & The Fish faziam o mesmo com Electric Music For The Mind and Body. No meio disto tudo, um canadiano outrora escritor estreava-se com Songs of Leonard Cohen e um americano do deserto, Captain Beefheart, iniciava a sua viagem inimitável com Safe as Milk. No Brasil, Gilberto Gil chamava a si os Mutantes para actuarem em Domingo no Parque e Caetano Veloso recrutava os rockers argentinos Beat Boys para o acompanhar – o tropicalismo começava a revelar-se. E em Portugal, no ano das terríveis cheias na zona de Lisboa que mataram mais de 400 pessoas, no ano do assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz, da responsabilidade de militantes anti-fascistas e que tanto envergonhou o regime, nesse ano em que Amália é rainha de vendas com o EP Júlia Florista, os Quarteto 1111 arranjam espaço para inventar o pop rock moderno português com A lenda d’el Rei D. Sebastião e o Duo Ouro Negro cruzava tradição angolana e modernidade no álbum Mulowa Afrika. 1967 é o ano em que, pela primeira vez, o mundo inteiro se uniu ao mesmo tempo, com a inédita transmissão por satélite do programa Our World, protagonizado por Maria Callas, por Pablo Picasso e, principalmente, pelos Beatles, que ali estrearam All you need is love. Ano luminoso, ano abençoado. Ah, o Verão do Amor, exportado desde São Francisco para o mundo inteiro. Ah, a swinging London de tanta liberdade e tantas delícias, da moda preservada como epítome do cool. 1967. O ano da Guerra dos Seis Dias entre Israel e a Jordânia, Egipto e Síria. O ano em que prosseguia a guerra do Ultramar nas antigas colónias portuguesas, em que a guerra no Vietname motivava gigantescos protestos nos Estados Unidos, em que a violência policial e as tensões raciais conduziam a violentos motins em Detroit e noutras cidades americanas – Soul man, inscreviam comerciantes nas suas portas e janelas, utilizando o título do êxito soul que Isaac Hayes compôs para Sam & Dave como protecção para possíveis saques dos manifestantes. Timothy Leary, psicólogo tornado guru do LSD que cunhou a famosa expressão “turn on, tune in, drop out”, declarava que a chegada de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band era como ouvir música que “dava voz ao sentimento de que as velhas formas de estar e de agir tinham acabado”. Certo, mas em Inglaterra discutia-se acaloradamente os escândalos dos Rolling Stones. Havia a prisão de Mick Jagger e Keith Richards por posse de droga, mas também a ignomínia de, no programa de variedades Sunday Night at the London Palladium, emitido pela ITV, a banda não ter cumprimentado o público quando passavam os créditos finais, como exigia o protocolo e as boas maneiras. E a BBC, rádio pública do país que só nesse ano de 1967, a 4 de Julho, deixou de punir a homossexualidade como crime, censurava A day in the life e Lucy in the sky with diamonds por obscenidade, no caso da primeira (I’d love to turn you on, dizia um verso), e incitamento ao consumo de drogas, no caso da segunda. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No bairro de Haight-Ashbury, em São Francisco, chegavam, vindos de todos os Estados Unidos e do estrangeiro, 100 mil pessoas para testemunhar os ares de liberdade e a nova forma de encarar o mundo que o mudaria irremediavelmente. A maioria, assinale-se, eram adolescentes fugidos de casa nas férias escolares. E a utopia, na verdade, não era assim tão bonita de ver. George Harrison passou por lá, atraído pelos relatos, e não sentiu grande iluminação: “Não havia nada de verdadeiramente criativo ou um acordar espiritual. Eram miúdos borbulhentos que tinham desistido da escola a tomarem drogas”, comentou. Em Junho, Verão bem vivo, aconteceu o Monterey Pop Festival, primeiro festival rock tal como os entendemos hoje, representação idílica e inspirada da comunidade musical emergente e palco que revelou Jimi Hendrix aos seus compatriotas, que fez de Janis Joplin uma estrela, que fez da lenda soul Otis Redding, que morreria num desastre de aviação a 10 de Dezembro, também um ícone da geração flower power. No Outono, em Outubro, tudo terminara. Os pioneiros da contracultura de São Francisco estavam fartos e percorreram as ruas num simbólico “enterro do hippie”. O extraordinário ano musical de 1967 resulta da erupção de ideias que fervilhavam em volta de uma linguagem nova, a da revolução pop e rock com tiro de partida dada poucos anos pelos Beatles. Resulta da apropriação de novas possibilidades tecnológicas, nos estúdios, nos instrumentos, pela geração que a fazia. E resulta da reacção, ora feroz, ora apontando com fervorosa ingenuidade a possibilidade de uma nova sociedade, a um mundo violento e que reagia com tenacidade à mudança. 1967 foi, de certa forma, o zénite criativo, musicalmente falando, desse confronto. Bob Dylan, que via mais longe, abandonou a linha da frente, recuando para as raízes sólidas da tradição folk e country em John Wesley Harding. Arthur Lee, que via tudo muito claramente, cantava em Red Telephone aquilo que estava realmente perante si: “Sitting on a hillside, watching all the people die / I feel much better on the other side / I’ll bump a ride”. 1967, recorde-se, foi também o ano em que Arthur Penn pôs Bonnie & Clyde no corpo de Warren Beatty e Faye Dunaway, transformando-os em assassinos glamorosos, em rebeldes sem causa (alerta de spoiler: morrem ambos no fim). Foi o ano em que Jacques Tati nos mostrou realmente, mais claramente que qualquer outro, o que viríamos a ser. Estava tudo em Playtime, na nossa solidão na cidade tão povoada, no absurdo da devoção acrítica às magias da tecnologia, na sofisticação deslumbrante que, na verdade, esconde uma existência asséptica. A geração de 1967 transformou os costumes, as artes e ganhou vantagem perante o velho conservadorismo. Mas, vendo bem as coisas, é Playtime que está entre nós. Melhor: Playtime somos nós.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime guerra escola violência rainha prisão negro comunidade consumo medo corpo assalto
Se o arrependimento mata, os eleitores de Trump estão bem e recomendam-se
Donald Trump chegou à Casa Branca há 100 dias. Como é habitual, são muitas as análises à prestação de um Presidente ou primeiro-ministro por esta altura, mas se o juízes fossem os eleitores, nada mudaria: quase ninguém saiu das trincheiras que cavaram no ano passado. (...)

Se o arrependimento mata, os eleitores de Trump estão bem e recomendam-se
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.416
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Donald Trump chegou à Casa Branca há 100 dias. Como é habitual, são muitas as análises à prestação de um Presidente ou primeiro-ministro por esta altura, mas se o juízes fossem os eleitores, nada mudaria: quase ninguém saiu das trincheiras que cavaram no ano passado.
TEXTO: São quase duas da manhã e estamos a dois passos do hotel Hilton da Sexta Avenida, em Manhattan, naquela longa noite de 8 para 9 de Novembro em que o furacão Trump apanhou meio mundo desprevenido e venceu a corrida para a Casa Branca. Lá em cima, num dos andares mais perto do céu, a família e os amigos próximos do magnata festejavam ao ritmo dos resultados que as televisões iam gritando: Carolina do Norte vota em Trump, com certeza; Carolina do Sul, claro que sim; ai a Pensilvânia também? O quê, o Wisconsin? Ui, que lá vão o Ohio, a Florida e até o Michigan. O ambiente cá em baixo é de festa há pelo menos uma hora – as cautelas de jornalistas e analistas deste fenómeno que são as eleições para a presidência dos EUA iriam arrastar-se por mais algumas horas, até à manhã do dia 9 de Novembro, mas o discurso de muitos deles soava mais a uma recusa em aceitar a realidade do que ponderação e rigor: Donald J. Trump, o homem que simboliza quase tudo o que Manhattan e Silicon Valley desprezam, apoderou-se do sonho de uma vida de Hillary Clinton, a mulher que parecia ter ganho antes mesmo de a campanha ter começado. Habituados ao domínio do Partido Republicano no seu estado do Indiana, onde nos últimos 100 anos apenas três candidatos do Partido Democrata venceram, John e Susan Fox tinham acabado de festejar a vitória do magnata e iniciavam o caminho de volta ao Hotel Trump International, onde os esperava o quarto que reservaram em Manhattan. John e Susan são dois autênticos cartazes com braços e pernas prontos para serem usados como explicação para o fenómeno Trump: de Indianápolis a Manhattan são 1149 quilómetros de distância, diz-nos o Google, e a reserva no Hotel Trump International foi feita com quatro meses de antecedência. Cem dias depois de Donald Trump ter entrado na Casa Branca, qualquer balanço sobre o que ele fez ou deixou de fazer é uma perda de tempo para milhões de norte-americanos como John Fox: ele viajou mais de mil quilómetros, com a convicção de uma vitória na noite mais importante, e viveu "um sonho tornado realidade", como disse na altura – mais, muito mais, do que uma simples e rotineira vitória de um candidato. Trump não tem apoiantes: tem adeptos. E daqueles ferrenhos. Que não viam a sua equipa ganhar desde que nasceram. (E já nasceram há muitos anos). Para muitos, a eleição de Trump não foi uma vitória – foi uma vingança. E é isso que torna a análise aos primeiros 100 dias uma perda de tempo para eles: uma vitória tem de ser confirmada com mais vitórias, para que não seja um acontecimento isolado; uma vingança basta-se a si mesma, e ser concretizada apenas uma vez é precisamente a sua finalidade. Quase seis meses depois de termos encontrado Todd Lovitz ao balcão da sua loja de T-shirts e outras recordações Pier 21, no famoso passadiço de Atlantic City, no estado de Nova Jérsia, a sua confiança em Trump mantém-se tão sólida como o lema do seu negócio: "Detido e gerido por americanos com muito orgulho há mais de 66 anos. "Ao contrário de John Fox e da sua lealdade de décadas para com Trump, Lovitz fez uma viagem política com altos e baixos até chegar ao voto no magnata: nasceu no bairro de Brooklyn, em Nova Iorque; nos tempos da faculdade foi um jovem hippie contra a guerra do Vietname; depois ficou fascinado com Reagan; e acabou em Atlantic City à espera que os casinos, agora num caminho sem regresso em direcção à decadência, lhes desse os clientes de que tanto precisa na sua loja. Para Todd Lovitz e para muitos outros eleitores de Trump, "em 100 dias é impossível fazer tudo o que o Presidente quer fazer", e o culpado disso tem um nome. Ou dois: Barack Obama. Ou quatro: Barack Obama e Partido Democrata. "Trump está focado em tudo. Os problemas que ele tem em mãos são os problemas que a Administração Obama lhe deixou. Nenhum Presidente pode fazer o que quer que seja sozinho", disse o norte-americano ao PÚBLICO por telefone, esta semana. Veja-se o exemplo que foi a oposição interna no Partido Republicano contra as ordens da sua própria liderança na Câmara dos Representantes e da Casa Branca para deitar abaixo o Obamacare e construir em cima dos escombros um novo plano de saúde – para Todd Lovitz, o facto de muitos congressistas do Partido Republicano terem feito orelhas moucas ao ultimato de Trump para aprovarem a proposta não foi um sinal de que o Presidente pode ser mais fraquinho a fazer acordos do que ele próprio apregoa; foi, antes, uma prova de que "há miolos" no Partido Republicano. "Pelo menos no Partido Republicano estão a usar a cabeça para chegarem a um entendimento, enquanto o Partido Democrata limitou-se a fazer-nos engolir o Obamacare. Nem um único congressista do Partido Democrata que se opôs ao Obamacare disse que era preciso mudar algo nessa lei. Pelo menos desta vez há pessoas no Partido Republicano que não se limitam a votar contra, estão a tentar mudar alguns aspectos da nova lei. E ainda hoje disseram que estão mais próximos de um compromisso", sublinhou. O mesmo se passa quando a conversa é a Coreia do Norte ou o acordo sobre o programa nuclear com o Irão: a culpa é de Obama e "o Partido Democrata está completamente alheado do que se passa neste país". Pela amostra que entra todos os dias na loja Pier 21, "todas as pessoas que votaram em Donald Trump continuam a apoiá-lo a 100%". Pelo menos no Inverno não são muitas as pessoas que entram nas lojas da boardwalk de Atlantic City, mas as sondagens mais recentes parecem dar razão ao dono da Pier 21: não só quase ninguém se arrepende de ter votado em Trump, como há mais eleitores de Clinton a pensar duas vezes sobre o que fizeram naquela histórica noite eleitoral. O jornal Washington Post e o canal ABC News foram ouvir 1004 norte-americanos na semana passada sobre os 100 dias de vida com Donald Trump na Casa Branca: 96% dos eleitores que votaram em Trump voltariam a fazer o mesmo e apenas 2% estão arrependidos; por outro lado, só 85% dos que votaram em Clinton continuam satisfeitos com essa decisão (os arrependidos não votariam em Trump, mas se pudessem viajar no tempo para o passado escolheriam um terceiro candidato ou ficariam em casa). Se a sondagem reflectisse o que se passa em todo o país, esta oscilação não só voltaria a pôr Trump na Casa Branca como também lhe daria uma vitória no voto popular, em troca com Clinton. O que fica também claro é que a popularidade de Trump como Presidente continua a ser embaraçosamente baixa – a mais baixa de sempre nos primeiros 100 dias de um Presidente e muito distante dos primeiros 100 dias de Obama (42% contra 69%). Mas também é verdade que, por estes dias, quase tudo o que mexe na política norte-americana anda pelas ruas da amargura, e a candiadata Hillary Clinton também chegou a números historicamente baixos: 67% acham que o Partido Democrata está alheado do que se passa no país, uma insatisfação que cresceu uns incríveis 19 pontos percentuais nos últimos três anos. Num outro aviso para o futuro do Partido Democrata, o número de eleitores negros e hispânicos que não voltariam a eleger Clinton é dez pontos superior ao dos eleitores brancos na mesma situação. Quem não consegue compreender estes números é Barbara Burgess-Lefebrve, uma professora de Teatro e de Inglês na Universidade Robert Morris, em Pittsburgh, e residente na pequena cidade de Ambridge, na Pensilvânia, num condado onde Trump venceu com uma vantagem de 20 pontos em relação a Clinton. Apesar de ter um passado Democrata, as promessas de Trump no ano passado embalaram muitos eleitores do condado de Beaver, mais um onde a degradação da indústria do aço deixou cicatrizes profundas. "Sinceramente ainda não consigo engolir a vitória de Trump. Passei o dia seguinte às eleições com os meus alunos em lágrimas. Dou aulas a muitos alunos que são gays ou artistas, e eles sentiram que as vidas deles estavam em perigo. Alguns amigos dizem-me que os filhos deles estão preocupados com a possibilidade de haver uma guerra. Isto é muito triste", disse Barbara Burgess-Lefebrve ao PÚBLICO. Para esta apoiante de Hillary Clinton, Trump ganhou porque "muitas pessoas ainda desconfiam das mulheres, principalmente de uma mulher adulta, inteligente e educada". Admite que há muita raiva em grande parte da população, e que isso contribuiu para muitos dos votos em Trump, mas volta sempre àquela que considera ser a principal razão: "Ele alimentou a dinâmica contra as mulheres, os negros e os gays. As fábricas e os postos de trabalho na indústria do carvão não vão voltar. Trump não quis dizer a verdade sobre esses postos de trabalho, mentiu e as pessoas estavam desesperadas por acreditar nele. Ao mesmo tempo, sentiram-se bem com todo aquele ódio. "São dois mundos tão distantes que muito dificilmente alguém conseguirá construir uma estrada que os una – para os que odeiam Trump, ele será sempre o pior Presidente norte-americano da História, um ser desprezível que nunca deveria ter saído dos seus luxuosos prédios e dos reality shows; para os que o adoram, ele poderá fracassar em quase tudo o que prometeu, desde que possam continuar a culpar a herança de Obama e a obstrução do Partido Democrata – para muitos deles, a desilusão só chegará se um dia Trump for apanhado a humilhá-los em privado; caso contrário, lá estarão em 2020 para apoiarem outra vez o clube do seu coração. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Hieroglyphic Being: o ex-prostituto mais respeitado da música actual
Entre esta quinta-feira e domingo, no Barreiro, acontece o Out.Fest, o festival de músicas exploratórias, de onde se destacam os japoneses Acid Mothers Temple, o saxofonista Evan Parker ou o americano Hieroglyphic Being, figura reverenciada tão próxima do jazz como da música de dança. (...)

Hieroglyphic Being: o ex-prostituto mais respeitado da música actual
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.25
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170602175917/https://www.publico.pt/1746168
SUMÁRIO: Entre esta quinta-feira e domingo, no Barreiro, acontece o Out.Fest, o festival de músicas exploratórias, de onde se destacam os japoneses Acid Mothers Temple, o saxofonista Evan Parker ou o americano Hieroglyphic Being, figura reverenciada tão próxima do jazz como da música de dança.
TEXTO: Não é propriamente um novato, mas aos 42 anos o músico americano Jamal Moss, mais conhecido por Hieroglyphic Being, está a passar pela fase mais revitalizante da sua carreira. Entre os muitos discos lançados nos últimos tempos destaca-se o álbum colaborativo com J. I. T. U. Ahn-Sahm-Buhl, We Are Not The First, navegando pelas margens mais desprendidas do jazz na companhia do líder da Sun Ra Arkestra, Marshall Allen, ou o álbum deste ano The Disco’s Imhotep, lançado pela conhecida editora inglesa Ninja Tune, situando-o na música house mais expressionista. A boa notícia é que Jamal vai estar por estes dias no Barreiro, sendo um dos destaques do OutFest, o festival internacional de música exploratória que ao longo de treze anos foi ganhando identidade, tendo na actualidade credibilidade e culto nacional e internacional. Entre esta quinta-feira e domingo diversos espaços da cidade vão receber nomes credíveis dos mais diversos géneros, que se distinguem pela forma incomum como olham para as diferentes matérias musicais ao seu dispor. É o caso de Jamal. Esta quinta-feira oferecerá um concerto no Velvet Be Jazz Club, ao lado do histórico do jazz Evan Parker e de Orphy Robinson e Yaw Tembé, durante o qual a improvisação jazz será cruzada com fontes electrónicas, e no sábado actuará a solo no espaço ADAO, no seu registo digital mais dançante. Com um percurso de duas décadas é um filho de Chicago, tendo entrado pela primeira vez num clube de dança aos 12 anos pela mão do pioneiro da música house Ron Hardy. A sua discografia é prolífica, sendo capaz de lançar vários álbuns por ano, cruzando informação artística e humana entre linguagens como o house, tecno, electrónica abstracta ou o jazz mais livre. Fá-lo com grande à vontade, a mesma que lhe permite ser hoje tão enaltecido nas pistas de dança mais exigentes como nos museus de arte contemporânea, ao mesmo tempo que gere a editora Mathematics. Mas nem sempre foi assim. Numa entrevista ao The Guardian em Agosto confessava que havia tido uma vida difícil, tendo sido abandonado pela mãe e adoptado por uma família religiosa aos 3 anos, da qual começou a escapar para os clubes de dança aos 12, aproximando-se da comunidade da música de dança, mas acabando na adolescência por terminar nas ruas como sem-abrigo. Foi aí que começou a vender o corpo, prostituindo-se e recebendo avultadas somas de dinheiro de mulheres brancas ricas. Mas não desistiu, acabando por estudar antropologia na universidade, ao mesmo tempo que começava a criar música de dança inspirado pelo facto de habitar na histórica cidade de Chicago onde germinou o som house. Na actualidade diz que foi a música que o salvou permitindo-lhe exorcizar todos os seus fantasmas, não só pessoais, como sociais, nunca dissociando a sua actividade de um posicionamento sociopolítico crítico e activista. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foi o facto de se ter sentido integrado na comunidade local da música house que lhe permitiu sair de um certo ambiente marginal, sendo por isso hoje um dos maiores defensores da transmissão de valores propagados pela música de dança nos seus primórdios. “Quando comecei a tomar contacto com esta cultura percebi que era possível ter, debaixo do mesmo tecto, negros, brancos ou gays e isso foi uma revelação para mim”, afirmava recentemente alguém que olha para a sua actividade como um eterno contínuo, como se fosse o depositário da memória de Alice Coltrane, Sun Ra ou Herbie Hancock, tudo figuras do jazz que reverencia. É esta figura singular do cenário música actual que constituirá um dos grandes destaques do OutFest, o festival que ao longo dos anos tem programado uma série de nomes (Oneohtrix Point Never, Panda Bear, Sonic Boom, The Fall, RED Trio, Fennesz, Faust, Golden Teacher, Vladislav Dealy, Matana Roberts ou Peter Evans) que independentemente das diferentes áreas estéticas onde se movimentam apresentam sempre obra interpeladora e desafiante. Exactamente como Hieroglyphic Being.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE BE
As questões de consciência que dão dinâmica à “geringonça”
Enquanto uns temas se aproximam das decisões finais, outros tentam trilhar um caminho que os leve ao Parlamento. Os próximos meses prometem muita discussão em torno de direitos individuais, que a maioria de esquerda tem mantido na agenda. O P2 falou com protagonistas do debate e faz o ponto da situação de cinco questões controversas que estão em cima da mesa. (...)

As questões de consciência que dão dinâmica à “geringonça”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Enquanto uns temas se aproximam das decisões finais, outros tentam trilhar um caminho que os leve ao Parlamento. Os próximos meses prometem muita discussão em torno de direitos individuais, que a maioria de esquerda tem mantido na agenda. O P2 falou com protagonistas do debate e faz o ponto da situação de cinco questões controversas que estão em cima da mesa.
TEXTO: Os temas de consciência como a eutanásia, identidade de género, barrigas de aluguer, legalização da cannabis para uso terapêutico ou até a prostituição não constam dos acordos que permitiram a chamada “geringonça”, mas têm-se revelado uma espécie de combustível para a manter em andamento. O recentramento da direita e o facto de o PS trilhar agora um caminho mais à esquerda trouxeram para a agenda política assuntos e até formas de os debater que seriam impensáveis noutro cenário político. Se outros governos socialistas foram berço para avanços fundamentais como a descriminalização do consumo de drogas ou a lei da identidade de género, a actual conjuntura de esquerda que alberga o Bloco é um ninho aconchegante para novos avanços em temas muito controversos. Questões como a eutanásia ou os avanços na área das drogas com o acesso à cannabis, ou ainda da identidade de género com o fim da obrigatoriedade do relatório médico, são exemplos de como os socialistas estão a tentar aproximar-se de nichos do eleitorado mais à sua esquerda. Mas são também o reflexo de alguma vontade de agradar aos parceiros que lhes dão apoio parlamentar. Afinal, as matérias de consciência e de direitos pessoais não pesam no orçamento como as medidas económicas e sociais a que era urgente dar resposta nos primeiros anos. António Costa vai deixando margem para o PS actuar no Parlamento mesmo que sejam matérias com que os respectivos membros do Governo estejam em desacordo. Por exemplo, o ministro da Saúde já afirmou que não concorda com a eutanásia alegando a sua condição de médico, mas não vê qualquer problema em aplicar no Serviço Nacional de Saúde o que a Assembleia da República decidir. Os argumentos e os posicionamentos da direita vão também mostrando aqui e ali mudanças suaves. Desapareceu, por exemplo, a defesa de um referendo sobre a eutanásia, como aconteceu com o aborto. Em alternativa, o CDS assumiu a recusa da eutanásia lutando pela defesa dos cuidados paliativos de qualidade e pela consagração dos direitos dos doentes em fim de vida. Os centristas fizeram finca-pé para discutirem, antes da eutanásia (que vai a plenário no dia 29), a forma como se alivia o sofrimento de quem está à beira da morte. O tema divide o PSD: Rui Rio considera que é um assunto de consciência e dará liberdade de voto. Entre os sociais-democratas, a abertura vai-se mostrando precisamente na maior liberdade de voto ou na aceitação de escusas em que seja cumprida: foi uma parte da bancada do PSD que permitiu a aprovação da nova lei da procriação medicamente assistida extensível a todas as mulheres e das barrigas de aluguer, e foi a deputada Teresa Leal Coelho que se juntou à esquerda na identidade de género. Mas não só. No último congresso, o PSD aprovou uma moção que defende uma estratégia de “legalização responsável do uso recreativo de cannabis em Portugal” — muito semelhante, aliás, a uma da JS aprovada no congresso socialista de 2016. O P2 procurou fazer o ponto da situação destes cinco temas com alguns dos protagonistas que, de uma forma mais pública ou mais recatada, têm ajudado a estimular a discussão. E serão desafios a que o Presidente da República terá que dar resposta a curto ou médio prazo. M. L. Depois do encarniçado, ainda que intermitente, debate dos últimos largos anos, a despenalização da eutanásia afigura-se como um daqueles assuntos cujo desfecho pode ficar decidido por apenas um voto. “Nesta votação tão renhida, todos os votos contam”, antecipou o deputado do Bloco de Esquerda (BE) João Semedo, médico e um dos “rostos” desta causa, dizendo-se confiante na aprovação que acredita ser tradutora “da vontade popular, que parece ser favorável à despenalização da morte assistida”. Com o CDS/PP frontalmente contra e o PCP teimosamente remetido ao silêncio, o BE e o PAN foram os primeiros a avançar com projectos de lei. Seguiram-se o PS e os Verdes e, segundo adiantou ao P2 a deputada socialista Maria Antónia Almeida Santos, o debate deverá concluir-se “até ao final da presente sessão legislativa”. Falta saber se, passados os crivos das votações na generalidade e na especialidade, a lei não esbarrará no veto do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, um católico declarado, cuja ponderação poderá fazer recuar o processo. No xadrez político da AR — e a não ser que o PCP se posicione, entretanto, a favor da despenalização — a liberdade de voto na bancada social-democrata fará toda a diferença. O actual líder do PSD, Rui Rio, que foi um dos subscritores da primeira petição pelo “sim” à despenalização da eutanásia, tal como a ex-ministra da Justiça e actual deputada Paula Teixeira da Cruz, alega tratar-se de um assunto que “não é político” mas “de consciência”. Por outro lado, o facto de o PS se preparar para apresentar um projecto de lei a favor da despenalização não garante à partida os 86 votos favoráveis, já que também entre os socialistas vigorará a liberdade de voto. Assim, o desfecho da votação na generalidade agendada para o dia 29 deverá permanecer uma incógnita até ao final. E, ainda que o “sim” passe, nada garante que a discussão em sede de especialidade chegue a bom porto antes do final da legislatura. A discussão em torno da despenalização da eutanásia em Portugal deve muito a Laura Ferreira dos Santos. Antes de morrer, em Dezembro de 2017, tinha então 57 anos, a professora aposentada da Universidade do Minho, escreveu centenas de artigos reclamando, como ela dizia, “o direito a não morrer aos bocadinhos”. Na génese do movimento que criou, o Direito a Morrer com Dignidade, estava o convite que lhe fora dirigido pelo médico João Ribeiro Santos, em 2009, quando era ainda director do Serviço de Nefrologia do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, por ter visto reunidas nela as qualidades necessárias a fazer avançar a discussão. Laura, que então já tinha escrito o livro Ajudas-me a Morrer? A Morte Assistida na Cultura Ocidental do século XXI, passou os anos seguintes a bater-se pelo direito dos doentes incuráveis e em sofrimento a serem medicamente assistidos na sua decisão de antecipar a morte. Logo na primeira reunião para definir o embrião do movimento, no Porto, em Novembro de 2015, juntaram-se-lhe apoios como o do realizador António-Pedro Vasconcelos, o psiquiatra Júlio Machado Vaz, o cientista Alexandre Quintanilha, mas também Francisco Louçã e José Júdice. Desse encontro, foi do bloquista João Semedo a frase mais aplaudida: “Se os mortos falassem, há muito que a morte assistida estaria despenalizada. ” Ao P2, o médico recusa enfiar a eutanásia nos espartilhos partidários ou religiosos. “É uma questão de direitos humanos”, situa. De debate em debate, a causa foi somando outros apoios sonantes como os das escritoras Hélia Correia e Eduarda Dionísio, do economista Daniel Bessa ou da actriz Lia Gama, além da criminologista Teresa Pizarro Beleza, do músico Sérgio Godinho e do ex-director-geral da Saúde, Francisco George. Foi pela mão do BE e do PAN que o manifesto em defesa da despenalização da morte assistida se transformou em petição e, depois, em projecto de lei. Depois de o BE ter apresentado o seu anteprojecto lei, incluindo a eutanásia (quando o fármaco letal é administrado por um médico) e o suicídio medicamente assistido (quando é o próprio doente a administrar a substância), em Fevereiro de 2016, seguiu-se, uns dias depois, o projecto do PAN — por enquanto, o único a ter sido objecto de parecer (negativo) por parte da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Só mais de um ano e muitos debates depois é que o BE apresentou, em Fevereiro passado, a versão final do seu projecto-lei regulando as condições em que deixa de ser punível “a antecipação da morte por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável”. Sujeita ao parecer favorável de até três médicos, os pedidos para antecipação da morte têm de ser reiterados até cinco vezes e estão circunscritos a pessoas maiores de idade, nacionais ou legalmente residentes no território, na proposta dos bloquistas. Escassos dias depois de a iniciativa bloquista ter sido apresentada, 190 profissionais de saúde subscreveram uma carta contra a legalização da morte assistida para ser entregue pelo movimento Stop Eutanásia aos deputados da Assembleia da República. Este movimento tem, de resto, agendada uma manifestação contra a eutanásia, no dia 24, em São Bento. Entre os subscritores daquela carta, estão nomes como Germano de Sousa, Margarida Neto, Pedro Afonso e Gentil Martins. Ao P2, o cirurgião pediátrico, que já antes subscrevera uma carta em que cinco ex-bastonários da Ordem dos Médicos se opõem à eutanásia, argumentou que o juramento a que os médicos estão obrigados proíbe tais práticas. “O código ético continua a obrigar os médicos a guardar o máximo de respeito pela vida humana”, sustenta, para distinguir entre o que é “suspender um tratamento inútil, que só está a prolongar uma vida de sofrimento”, e o que é aceder a matar alguém: “Para mim, é perfeitamente claro que é de um assassinato que se trata. ”Reconhecendo que todos aspirarão “a morrer com o máximo de tranquilidade”, o médico lembra que “hoje não há praticamente sofrimento físico dos doentes porque há medicação suficiente para o aliviar”. Por outro lado, a experiência dos outros países onde a eutanásia está legalmente prevista, comprovou, na opinião do médico, que qualquer alteração à lei abrirá “uma rampa deslizante”. “Mesmo nos países onde a eutanásia foi legalizada com um rigor extremo na fase inicial, hoje em dia é um ver-se-te-avias”, conclui, repudiando igualmente a hipótese de a matéria poder vir a ser referendada. Esta hipótese parece também afastada pelo próprio CDS/PP, cuja líder, Assunção Cristas, procurou arrumar o assunto ao defender que o Parlamento não tem legitimidade para legislar sobre a matéria, dado que esta estava ausente dos diferentes programas eleitorais. Para a deputada Maria Antónia Almeida Santos, pelo contrário, “ao fim destes dois anos de debate na sociedade, criou-se uma maturidade suficiente” para levar a morte assistida a votos. O projecto do PS, sem diferir muito dos já apresentados em termos de princípios que restringem a possibilidade a “pessoas adultas, colocadas perante um diagnóstico fatal e um sofrimento extremo, e que sejam capazes de reiterar, de forma consciente, essa vontade”, procura acautelar os reparos que, entretanto, foram sendo feitos, nomeadamente pelo Conselho Superior de Magistratura e pela Ordem dos Enfermeiros. “Houve muita cautela, muito cuidado, na escolha das palavras que nos pareceram capazes de dissipar os problemas encontrados”, precisou Maria Antónia Almeida Santos, sobre um projecto que coloca cinco crivos, desde que um doente terminal requere ajuda para antecipar a morte até à consumação do acto, e inclui ainda uma garantia suplementar: a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde é chamada a fiscalizar o processo e pode suspendê-lo. Quanto à oposição que se espera “de alguns sectores” da Igreja Católica, e cuja campanha pelo “não” começou já a fazer-se ouvir nos altares, a deputada diz-se descansada: “A sociedade portuguesa já demonstrou que tem uma maturidade muito maior do que aquela que demonstraram alguns sectores da Igreja Católica, que procuram diabolizar e instalar a ideia de que vem aí uma desgraça que, se atendermos ao que se passou com a despenalização da interrupção da gravidez ou da descriminalização do consumo de drogas ilícitas, nunca se confirmou. ” N. F. A prostituição promete voltar aos títulos dos jornais se, no congresso marcado para os dias 25 a 27 de Maio, o PS se comprometer com uma proposta para regulamentar aquela actividade, como espera que possa acontecer Ivan Gonçalves, líder da Juventude Socialista. A primeira vitória foi alcançada quando, em Março de 2017, a comissão nacional do PS aprovou uma moção no sentido do enquadramento legal do comércio sexual. Porém, dificilmente os socialistas se disporão a “comprar” esta guerra. Apesar de o PS contar com o apoio do BE — o único partido a ter defendido no manifesto eleitoral das últimas legislativas “o enquadramento legal do trabalho sexual, reconhecendo direitos em termos de protecção social e mecanismos de protecção contra a violência” —, o PCP tem-se posicionado em conferências e debates contra o que qualifica como uma legitimação da opressão e violência sobre as mulheres e a Igreja Católica idem aspas. Acresce que, mesmo no departamento de mulheres socialistas, o peso do chamado “abolicionismo”, que aponta para a criminalização dos clientes como forma de dissuadir a prática da prostituição, não é negligenciável. “Pela JS, há condições claras para avançarmos com uma iniciativa legislativa, no sentido de dignificar a vida e criar mecanismos legais de protecção dos que decidem no exercício da sua liberdade individual recorrer ao trabalho sexual como forma de ganhar a vida, e é isso que vamos propor no próximo congresso do PS”, enuncia o líder dos jotas socialistas, Ivan Gonçalves. É uma bandeira que a JS não se diz disposta a largar, sem contemplações com os “tacticismos e cálculos políticos” que ameaçam desfecho negativo. Certo é que, sem o PCP, o PS e o Bloco, a iniciativa não tem força para avançar. A não ser que, à semelhança do que aconteceu com outras causas controversas, como a eutanásia e a adopção por casais do mesmo sexo, a liberdade de voto confira elasticidade à actual correlação de forças no Parlamento. Por enquanto, os defensores da regulamentação da actividade vão tentando manter o assunto na agenda para irem granjeando apoios e abrindo fissuras na barricada mais conservadora e hostil. “Para já, não vamos avançar com nenhuma iniciativa legislativa mas estamos disponíveis para promover o debate e as audições sobre esse tema que tenha, por um lado, em conta as experiências noutros países e, por outro, a necessidade de reforço e protecção dos direitos laborais e sociais dos trabalhadores do sexo”, resume o deputado José Soeiro, do BE. Do lado dos que defendem a descriminalização do trabalho sexual e o fim da punição dos que lucram com a facilitação do exercício da prostituição, o que implicaria em termos práticos extirpar o crime de lenocínio do Código Penal, estão académicos e activistas. A psicóloga e investigadora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação Alexandra Oliveira bate-se há anos por esta causa. Doutorou-se com uma dissertação baseada numa etnografia sobre prostituição de rua, mas o seu interesse pela sexualidade “fora da norma”, pelo desvio e respectiva reacção social, vem de muito antes. “Na adolescência, quando o meu mundo ficou maior do que a minha família, ganhei uma noção muito clara de que o comportamento das mulheres era muito controlado em termos sexuais. Uma mulher que não se comporte de acordo com aquilo que é esperado dela em termos sexuais — e que é grosso modo, embora as coisas evoluam, a monogamia, a passividade sexual, a heterossexualidade, o sexo com fins reprodutivos — é facilmente rotulada como prostituta. Se dermos um passinho ao lado em termos sexuais, cai-nos logo o estigma em cima. Mas o meu interesse nesta matéria da prostituição começou quando li o livro Puta de Prisão, de Isabel do Carmo e Fernanda Fráguas. A partir das histórias de 50 prostitutas que ali eram contadas, vi uma versão humanizada que nunca me tinha sido dada a ver. ”Agora, aos 48 anos, Alexandra não tem problema em conciliar o seu papel de cientista social com o activismo em defesa da descriminalização do trabalho sexual, logo da retirada do crime de lenocínio do Código Penal. “Quando uma mulher, sozinha ou em cooperação com outras mulheres, aluga uma casa para exercer trabalho sexual, o senhorio aumenta os preços com o argumento de poder ter um dia de fazer face a despesas legais, se vier a ser acusado de lenocínio. E tudo isso são consequências de o lenocínio ser crime”, expõe. Antes de avançar com os argumentos, abre um parêntesis para lembrar que a coacção e o abuso sexual, o tráfico de pessoas, o lenocínio e o recurso à prostituição de menores estão autonomamente tipificados no Código Penal e assim continuariam. “Conhecemos mulheres que estão acusadas de lenocínio porque trabalham em cooperação com outras mulheres num apartamento e aquela em nome da qual estava o contrato de arrendamento foi acusada de estar a facilitar a prostituição de outras pessoas. E aquela até será a forma mais justa de trabalhar porque as despesas são partilhadas e ninguém está a explorar ninguém, a receber os lucros de ninguém”, defende a investigadora. No limite, Isabel Soares, da Porto G, uma equipa de proximidade que intervém na área do trabalho sexual em contextos de interior, promovendo práticas sexuais de menor risco para prevenir o contágio por VIH/sida e a mobilização cívica dos trabalhadores do sexo, essa mulher poderia ser acusada de lenocínio. “Vamos a casa das pessoas, distribuímos material profiláctico como preservativos e, nesse sentido, isto pode ser lido como uma forma de facilitação da actividade”, enquadra Isabel, referindo-se a prostitutas que “são mães e que vivem aterrorizadas com a possibilidade de o parceiro usar esse argumento em tribunal para ficar com a guarda do filho”. Aos 38 anos, muitos dos quais imersos na ajuda aos trabalhadores do sexo, Isabel sente necessidade de esclarecer que não é a favor nem contra o trabalho sexual. “Sou a favor das pessoas que fazem trabalho sexual, das suas opções, dos seus direitos”, resume. E a consequência imediata disto seria reconhecer-lhes então o direito à protecção social. Não necessariamente enquanto trabalhadoras independentes. “Uma trabalhadora do sexo devia também poder trabalhar por conta de outrem, o que hoje não é possível. Uma mulher que trabalhe num bar de alterne ou numa casa de massagens, onde tem um horário para cumprir, ordenado ao fim do mês e recebe ordem das chefias, não tem a quem fazer queixa se se sentir explorada, não pode ficar em casa com baixa médica paga se ficar doente, não tem direito a licença de maternidade paga como as outras trabalhadoras”, precisa Alexandra Oliveira, aproveitando para acusar os sindicatos de estarem “a fechar os olhos aos milhares de trabalhadores do sexo em Portugal que não têm qualquer defesa nem qualquer apoio”. Isabel Soares iniciou-se nesta área em Itália, onde trabalhou numa associação que ajudava prostitutas que eram exploradas por redes de tráfico humano. “Regressei a Portugal, formatada por esta ideia. ” Não fosse o confronto com a realidade portuguesa a ter obrigado a reposicionar-se, porque contactou com trabalhadores do sexo que o são no exercício da sua liberdade, Isabel estaria hoje eventualmente menos distante do que está dos argumentos pró-abolicionistas perfilhados pelo PCP e por instituições como O Ninho, uma instituição particular de solidariedade social que intervém há décadas na prostituição de rua, numa lógica de abrir caminho para que as mulheres deixem essa actividade. “Que sinal vamos dar aos jovens se avançarmos com esta ideia de dar poder legítimo a que uma pessoa compre outra como se fosse um objecto?”, questiona a assistente social Conceição Mendes, uma das vozes da instituição, sobretudo desde que a ex-directora, Inês Fontinha, se reformou. Em 35 anos de trabalho n’O Ninho, Conceição garante que nunca ouviu a nenhuma mulher que gostava de ser prostituta. Enquadrar legalmente esta actividade equivaleria assim a permitir “um Estado proxeneta” que autorizaria “os grandes empresários do sexo a ganharem dinheiro explorando as mulheres”. “Tráfico, exploração e prostituição são diferentes faces da mesma moeda”, acrescenta ainda Conceição Mendes, para sustentar que “o aprisionamento emocional e psicológico é por vezes tão forte como o físico”. Daí que, no seu entender, a haver alguma alteração legal, deverá ser no sentido de criminalizar o cliente, para que “os próprios homens percebam que alguma coisa não está bem se têm necessidade de comprar alguém para fazer sexo”. A oposição comunista à regulamentação da actividade levou recentemente Fernanda Mateus, da comissão política do comité central do PCP, e equipará-la à “legitimação dos mecanismos de pressão, exploração e violência sobre as mulheres” e a recomendar que sejam retiradas dos documentos emanados pelos serviços públicos terminologias que associem a prostituição a “trabalho sexual” e as mulheres prostituídas como “trabalhadoras do sexo”. N. F. O chumbo do Tribunal Constitucional (TC) a algumas normas da lei que regula a gestação de substituição foram um revés pesado, mas, se depender do Bloco de Esquerda, a lei vai ser reescrita e o recurso a uma barriga “emprestada” vai voltar a ficar acessível às mulheres que não possam engravidar, por não terem útero ou por terem uma lesão ou doença neste órgão que o impeça. “O modelo de gestação de substituição defendido pelo legislador, para situações de doença grave e sempre de forma altruísta, não ofereceu dúvida constitucional”, situa o deputado bloquista Moisés Ferreira, um dos porta-vozes desta causa. Quanto às normas consideradas inconstitucionais, e que, na prática, travaram a maternidade nomeadamente às candidatas a uma técnica de procriação medicamente assistida com recurso a dador anónimo, o deputado lembra que “dizem respeito a matérias perfeitamente acondicionáveis numa futura legislação”. Quando? “Temos de continuar as conversas com os restantes grupos parlamentares para encontrar uma solução, mas, no que depender de nós, será até ao final da legislatura”. A possibilidade de uma mulher sem útero ou impedida de engravidar recorrer à barriga de outra mulher para ser mãe dividiu a esquerda e a direita no Parlamento. Foi, aliás, por iniciativa do CDS/PP e de alguns deputados do PSD que o TC se pôs a analisar a constitucionalidade de uma lei que já vigorava há mais de um ano. E, no âmbito da qual, uma mulher de 50 anos recebera luz verde da Comissão Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) para gerar o neto, em substituição da sua filha, que ficou sem útero na sequência de uma endometriose. A notícia esteve em todos os jornais, em Dezembro de 2017 por se tratar do primeiro caso de gestação de substituição em território português. Outros oito pedidos se seguiram, mas, com este travão do TC, puderam avançar apenas os casos em que tinham sido iniciados já os processos terapêuticos. O prazo de arrependimento da gestante de substituição, que a lei previa pudesse ocorrer até às dez semanas de gravidez, mas que, segundo o TC, deverá manter-se até ao final da gravidez, foi uma das normas consideradas inconstitucionais. Outra relaciona-se com a “excessiva latitude” quanto à impossibilidade de o casal beneficiário impor restrições comportamentais à gestante. A regra do anonimato dos dadores de esperma — nos casos mais alargados da procriação medicamente assistida — e da gestante de substituição também mereceu censura constitucional, dada a “restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas” através destes métodos. “No tocante à gestação de substituição, sendo o modelo altruísta, o mais provável é que a gestante seja alguém da família ou uma amiga muito próxima, logo a possibilidade de a criança saber quem a gerou iria colocar-se de qualquer maneira”, desvaloriza Moisés Ferreira. Para lá das reticências do TC, este compasso de espera — que, na opinião de alguns, decorre da “propensão conservadora” da maioria dos juízes que compõem o actual elenco do órgão presido por Costa Andrade — pode ser aproveitado para melhorar uma lei que, na opinião do obstetra e antigo presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), Miguel Oliveira da Silva, era “má e cuja regulamentação é ainda pior”. Para o médico, cuja voz foi preponderante no primeiro veto presidencial, é inquestionável que deve ser consagrado legalmente o direito da criança de saber as condições em que foi gerada. “Discutem-se por esse mundo fora novas regras de filiação e de paternidade e a lei portuguesa tem pelo menos de acautelar esse direito de a criança saber que foi gerada numa gravidez de substituição e por quem”, aponta o obstetra. Quanto ao argumento de que tal direito também não existe na adopção, Miguel Oliveira da Silva considera-o uma falácia. “Uma coisa é uma mãe que abandona uma criança e outra é estarmos a planear a frio uma criança que ainda não existe negando-lhe à partida o direito a conhecer as suas origens, direito esse que está, de resto, previsto na Constituição. ”A segunda falha, na percepção deste especialista, prende-se com a não obrigatoriedade de acompanhamento psicológico à gestante durante a gravidez e, sobretudo, após o parto, “altura em que a mulher tem de entregar a criança para nunca mais a ver”. Um terceiro “erro” prende-se com a possibilidade de o recurso à gestão de substituição poder ser feito por não residentes no território português. “Em Inglaterra, o que a lei diz é que os três intervenientes — o casal e a gestante — têm de viver e ser residentes no país. Devíamos seguir esse modelo para impedir que as pessoas venham cá, engravidem e vão-se embora a seguir, sem qualquer hipótese de acompanhamento daquela criança”, preconiza o especialista, para sugerir, por último, que a gestante deveria ver reconhecido o direito a amamentar a criança: “Permitir que uma mulher tenha uma criança para a entregar a um casal e dar-lhe a seguir medicamentos para secar o leite é má medicina e é má ética. ”A lei da gestação de substituição recua a 2012, ano em que foi constituído na comissão parlamentar de Saúde um grupo de trabalho com a missão de conduzir os trabalhos de especialidade. Aprovada em Maio de 2016, com os votos do BE, PS, PEV, PAN e de 24 deputados do PSD (dois deputados do PS votaram contra, juntamente com o CDS/PP e do PCP), ficará para a história como tendo sido aquela em que Marcelo Rebelo de Sousa se estreou no seu direito de veto, devolvendo o diploma ao Parlamento com a recomendação de que este ponderasse acolher as recomendações que haviam sido emitidas em 2012 pelo CNECV, então ainda presidido por Miguel Oliveira da Silva, nomeadamente quanto ao direito de a criança conhecer as condições em que foi gerada e à necessidade de haver disposições em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais. Regressada ao Parlamento, a lei foi alterada em alguns dos seus aspectos e aprovada novamente. O processo de regulamentação também teve um caminho difícil, que levou a que a lei entrasse em vigor apenas em Agosto do ano passado. “Foi muito frustrante”, recua a presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade (APF), Cláudia Vieira, para quem este chumbo do TC é “um retrocesso vergonhoso”. “Sem uma lei, a gestação de substituição vai continuar a ser feita, ou por via de negócios ilícitos em Portugal ou recorrendo ao estrangeiro”, considera Cláudia Vieira, lamentando que “todos os que, por razões de saúde, se vêem impossibilitados de gerar uma criança” tenham sido “novamente empurrados para a clandestinidade”, no caso de se recusarem a “resignar-se a uma vida sem filhos”. N. F. Será um grande passo em frente no uso da cannabis em Portugal, embora com um âmbito um pouco mais reduzido do que o Bloco e o PAN — Pessoas-Animais-Natureza pretendiam: dentro de poucos meses, deverá ser possível o acesso àquela droga nas farmácias, para uso terapêutico, sobretudo destinado a doentes em cuidados paliativos ou em tratamentos oncológicos. Pelo caminho ficou a pretensão do autocultivo, permitido a quem tivesse prescrição e unicamente para os seus fins clínicos, precisamente para contrariar as críticas de que foi alvo de que estava a abrir a porta, de forma encapotada, ao uso recreativo ou social daquela droga. “Essa é uma outra discussão. Que queremos fazer, sim, de uma forma separada, para a qual não temos timing”, diz ao P2 o deputado Moisés Ferreira. E lembra que o Bloco já apresentou por duas vezes a proposta para legalizar a cannabis para consumo pessoal e o respectivo enquadramento legal para os chamados “clubes sociais”, que foi chumbada por PSD, CDS e PCP e teve a abstenção do PS e do PEV em 2013 e 2015. O fim do processo legislativo da cannabis terapêutica não estará por muito tempo: as votações serão feitas na próxima quarta-feira e tudo indica que tanto o PS como o PSD e PCP irão dar o seu aval ao texto de substituição apresentado no grupo de trabalho criado para discutir os projectos (muito semelhantes) de BE e PAN. Ambos tinham descido à comissão de Saúde sem votação depois de um debate em plenário em que as críticas assentaram precisamente na questão do autocultivo — rejeitado também pela Ordem dos Médicos, Infarmed e pelo ministro da Saúde. Quem fez lobbying pela solução do autocultivo (autorizado por licença) foi a Cannativa — Associação de Estudos sobre Cannabis. Essa possibilidade foi retirada, acrescentando-se a necessidade de o Infarmed criar um gabinete específico sobre a aplicação da cannabis e a obrigação de o Estado fazer campanhas de informação sobre a substância. A disponibilização só pode ser feita por prescrição médica em receita especial, em farmácia, e o doente constará de uma base de dados específica. Apesar de ter feito uma audição pública com médicos de diversas áreas (medicina geral, oncologia, psicologia, neurologia), enfermeiros, e diversas entidades, foi de Espanha que veio a principal inspiração para o Bloco: Javier Pedraza, licenciado em Medicina e Cirurgia que estuda as consequências das aplicações terapêuticas da cannabis e dirige vários gabinetes terapêuticos de associações canábicas espanholas. É um acérrimo defensor do uso de cannabis — da variedade da Cannabis sativa, de que se retiram o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) — para a redução da dor em casos do foro oncológico e neurológico, em casos de epilepsias. A ideia é contrariada pelo professor de Terapêutica Geral, Walter Osswald, do Instituto de Bioética da Universidade Católica do Porto, que prefere dar mais importância aos efeitos secundários da utilização da cannabis — psiquismos, habituação e toxicodependência — do que aos testemunhos que classifica como “pouco consistentes” sobre os efeitos terapêuticos dos canabinóides no tratamento, por exemplo, dos vómitos causados pela quimioterapia, ou da redução da dor em várias doenças. Diz mesmo que a proposta do Bloco é “bizarra” e que o Parlamento é “incompetente em matéria de terapêutica”. Agora que o uso terapêutico está quase garantido, o próximo passo será legislar sobre o uso recreativo — para o qual até há abertura noutros partidos além do Bloco. Em Fevereiro, no congresso do PSD, foi aprovada uma moção do deputado Ricardo Baptista Leite e do antigo deputado André de Almeida, ambos médicos, sobre a “estratégia para a legalização responsável do uso de cannabis” — agora compete a Rui Rio dar-lhe andamento (ou não). A larga maioria das propostas é muito parecida com a que o socialista João Torres levara ao congresso do PS de 2016 quando ainda liderava a JS. Ao P2, João Torres defende um debate sobre o assunto, lembra que as instâncias internacionais discordam do autocultivo e que Portugal vive num “limbo”: “O consumo existe e é permitido, não pode haver cultivo, mas há comercialização”, o que motiva o tráfico. Ricardo Baptista Leite defende que a legalização do uso social “teria um impacto significativo na redução do consumo pela dissuasão, eliminava o tráfico e permitia reduzir os riscos de saúde pública pela aposta na qualidade (com a limitação da quantidade de THC) e gestão da quantidade”. Seria preciso regulamentar a produção, distribuição e venda, feita em farmácia, apenas a maiores de 21 anos, através de uma base de dados, com preço regulamentado e ajustado ao da rua; a receita do imposto seria canalizada para políticas de dissuasão e combate ao narcotráfico. O deputado do PSD acredita que esta é uma discussão para a próxima legislatura. M. L. Alice Cunha não se cansa de repetir que o Presidente da República lhe estragou o jantar de aniversário: estava a sentar-se à mesa do restaurante com a família e amigos quando soube do veto à nova lei da autodeterminação da identidade de género. Aos 22 anos, a última meia dúzia assumindo-se como mulher “depois de sair dos vários armários”, Alice é uma das vozes do activismo jovem “trans” que na última semana organizou uma concentração frente ao Palácio de Belém e outra nas escadarias do Parlamento. Aluna do último ano de Estudos Artísticos — Artes do Espectáculo na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, integra os movimentos Panteras Rosa e Transmissão. Revoltada com o veto político de Marcelo “sem qualquer base constitucional”, Alice critica também o “furor mediático” que se concentrou na descida para os 16 anos do limite de idade para a mudança de nome e deixou de lado a “conquista da despatologização”. “Ouviram supostos especialistas quando podiam ter-nos ouvido a nós, que somos os nossos próprios especialistas e sabemos exactamente quem somos, muitas vezes bem antes dos 16 anos. ”Actualmente, a mudança do género e nome no Registo Civil é permitida apenas a maiores de 18 anos, sendo imprescindível a apresentação de um relatório médico, de uma equipa multidisciplinar de sexologia clínica que inclua pelo menos um médico e um psicólogo, que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género. A nova lei votada em Abril no Parlamento acaba com este requisito e alarga a permissão aos menores entre os 16 e os 18 anos, mediante autorização dos pais — ou os seus responsáveis legais — e proíbe as cirurgias correctoras a bebés e crianças intersexo. Marcelo pede que o Parlamento considere a necessidade de relatório pelo menos para os menores — para ajudar a “consolidar” a escolha do jovem. Em 2011, quando entrou em vigor a actual lei — a primeira em Portugal que permitiu aos “trans” a mudança de nome sem que tivessem feito antes o processo cirúrgico de mudança de sexo e que teve como principal impulsionador o activista Miguel Vale de Almeida, independente eleito pelo PS —, a comunidade suspirou de alívio depois de muitos anos a bater-se em longos processos judiciais para conseguir essa alteração no Registo Civil (e alguns acabavam rejeitados). Mas a realidade, entretanto, mudou: o manual de diagnóstico das doenças mentais da Associação Americana de Psiquiatria, uma referência mundial, deixou de incluir o transtorno de identidade de género; a Organização Mundial de Saúde, que está a rever o compêndio de doenças, vai mudar o assunto da área da saúde mental para a sexual. A eliminação da exigência do relatório médico é, por isso, hoje o ponto de honra para a comunidade “trans”. Porque “finalmente a lei reconhece que as pessoas “trans” sabem quem são e acaba com a infantilização histórica a que têm sido sujeitas. Como se precisássemos de médicos para confirmarmos a nossa identidade…”, aponta Alice. Daí que existam casos de “trans” que dispunham de relatório, mas que preferiram deixar a mudança de nome para quando a lei lho permitisse sem condições. O principal foco da vida de Alice Cunha nos últimos três anos foi o trabalho que levou a esta lei — acções de rua, manifestações, festivais e marchas LGBTI, reuniões com agentes políticos. O diploma partiu de três propostas do Governo, do PAN e do Bloco, que tinham o assunto nos programas eleitorais —, mas a dos bloquistas entrou no Parlamento há dois anos. Houve pedidos de pareceres até a outros parlamentos, audições de especialistas, de jovens “trans”, de associações. O coração andou nas mãos até à aprovação, à tangente, por 109 votos a favor e 106 contra. E caiu ao chão com o veto, uma “chantagem ideológica” do Presidente, aponta Alice, cujo activismo a leva a dormir tanto quanto Marcelo, umas quatro horas por noite. Marcelo sublinhou que não estava a olhar a lei pela “sua posição pessoal, que é idêntica à do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV)”. Esta entidade deu parecer negativo aos três diplomas que deram origem à nova lei. O conselheiro Jorge Costa Santos, que no Parlamento defendeu a posição do CNECV, diz-se preocupado com o facto de se “iludirem” as questões da despatologização quando há uma lei “equilibrada e adequada” em vigor. “Sempre lutei contra o regime anterior, que era trágico para os ‘trans’; em que havia incongruência entre a pessoa que se era e os documentos que se tinham. ”Mas critica a lei aprovada e até lamenta que o veto do Presidente tenha ficado aquém do defendido pelo Conselho. Além dos casos de desconformidade com o sexo com que se nasceu, a disforia de género, existem outros, embora “raros”, “com perturbações mentais e manifestações delirantes de transformação corporal que pode incluir o desejo de mudarem de sexo”, daí a necessidade de uma opinião médica. Além disso, apesar de se recusar a génese patológica, pretende-se que todos os tratamentos sejam feitos no SNS como se de uma doença se tratasse. A que se soma a redução da questão da cidadania, que é pública, a um mero acto privado no Registo Civil, acrescenta Jorge Costa Santos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O padre Gonçalo Portocarrero de Almada, colunista, primeiro no PÚBLICO, agora no Observador, diz ao P2 que esta lei é “perigosa” e “potencialmente homicida” porque, vinca, os estudos mostram que a taxa de suicídios de adultos que recorrem a tratamentos com hormonas do sexo oposto é “20 vezes superior ao normal”. À “mentira” em que vive quem quer mudar a sua aparência anatómica, a Igreja não deve oferecer complacência, mas ajudar a “aceitar a sua real condição e natureza” com acompanhamento espiritual personalizado. Admitindo não ter qualquer experiência concreta com jovens “trans”, Portocarrero de Almada afirma que há uma “intromissão excessiva de leigos na matéria em vez de especialistas, como médicos e psicólogos”, notória na ideia de alargar a lei aos menores de 16 anos — quando o amadurecimento do cérebro só está completo aos 25 anos, como especifica Jorge Costa Santos. A solução ideal para as pessoas “trans” é os deputados confirmarem o diploma a 12 de Julho, mas a socialista Isabel Moreira e a bloquista Sandra Cunha analisam alternativas, como a exigência de testemunhas em vez do relatório clínico em que Marcelo insiste. No fundo, o cenário não é muito diferente do que existiu em 2011, com a primeira lei. Esse articulado foi então devolvido por Cavaco Silva, com muito mais reservas do que as de Marcelo, e que a esquerda (com sete deputados do PSD) reconfirmou sem alterações. Agora, para conseguir a maioria absoluta, é preciso que o PCP mude da abstenção para o sim — algo difícil, mas não impossível. A deputada Rita Rato recorda que o PCP defende a despatologização, mas mantém dúvidas sobre as “condições de verificação da identidade” de uma pessoa que mude de nome e género, já que a lei exige que todas as referências aos anteriores devem ser apagadas. Rita Rato garante que está tudo em aberto nesta discussão (porque há outra mais complicada, já dentro de dias: a eutanásia). M. L.
REFERÊNCIAS:
O filme da graça de Paul Schrader
O silencioso e grácil Ethan Hawke quer limpar a poluição do mundo com sangue. Com ele, Paul Schrader violenta mecanismos de identificação e empatia e faz o filme da sua graça. (...)

O filme da graça de Paul Schrader
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: O silencioso e grácil Ethan Hawke quer limpar a poluição do mundo com sangue. Com ele, Paul Schrader violenta mecanismos de identificação e empatia e faz o filme da sua graça.
TEXTO: Fazendo resistência passiva-agressiva ao template cinematográfico dos dias de hoje, No Caminho da Escuridão violenta os dados da cronologia e, sendo um filme realizado em 2017 por Paul Schrader, coloca-se ao lado de Blue Collar (1978), de Hardcore — A Rapariga da Zona Quente (1979) e de American Gigolo (1980), os três títulos iniciais da filmografia do realizador. Os dois primeiros revisitavam as suas origens no Michigan: por um lado, o calvinismo puro e duro de classe média, mas tendo Schrader vivido num bairro com vista para o gueto proletário isso permitiu-lhe pressentir a claustrofobia social — o genérico de Blue Collar fazia-se com “I can’t get ahead no matter how hard I try” de Hard workin Man de Captain Beefheart e parecia revelar-se ali um marxista. . . Por outro, ao olhar para trás, com a história de um obstinado protestante que procurava a filha no mundo do porno para onde ela fugira (George C. Scott em Hardcore), retratava o seu pai e o seu próprio movimento de fuga de Grand Rapids — onde só havia palavras; as imagens eram o inferno — e uma nova obsessão, o sexo. Realização: Paul Schrader Actor(es): Amanda Seyfried, Ethan Hawke, Cedric the Entertainer, Victoria HillÉ que o presente para Schrader, nesses anos, era já o corpo. Apresentara-se-lhe quando aterrou em Los Angeles. Sobre as experiências do sensualista dar-nos-ia conta American Gigolo, o filme do Call me de Blondie/Giorgio Moroder e do “visual” (via Ferdinando Scarfiotti, que estava ali por causa da art direction no Conformista de Bertolucci). Por estar indexado ao chic de um tempo, American Gigolo talvez não se tenha deixado ver convenientemente. Por exemplo, a forma como ao mesmo tempo que se embriagava (Schrader transformava o corpo no ginásio; exercitava-se no contacto físico, que estivera ausente da sua família, nos clubes gay, o que não representava “perigo”, segundo ele, era coreografia), oferecia resistência, arredando os corpos de Richard Gere e de Lauren Hutton do espectáculo para, com a contenção, permitir uma deflagração final. Era uma frustração ou mesmo violentação da natureza empática do cinema. O final desse filme foi o primeiro dos vários em que Schrader fez versões da cena de libertação na prisão de Pickpocket, o filme de 1959 de Robert Bresson (“Oh, Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre”) — Bresson sendo um dos autores, com Ozu e Dreyer, sobre o qual incidiu o seu livro Transcendental Style in Film. Passou a ser esse um “motivo” do cinema do realizador, uma música de fundo, na verdade, não uma aprofundamento total de uma experiência transcendental. A carreira de cineasta que a partir daí ganhou velocidade e várias vezes se estamparia com um chic cultural e de choque pareceu demonstrar a sua própria tese de que os filmes que fez nunca foram os filmes sobre os quais escreveria. Até chegar a No Caminho da Escuridão. Uma das coisas inusitadas deste filme é a forma como se intromete naqueles títulos realizados entre 1978 e 1980 para os completar, para libertar ressonâncias — sobre a América, hoje espaço claustrofóbico, sem linhas de fuga como as que ainda se apresentavam em Hardcore, e sobre a experiência religiosa, que no filme de 2017 está irremediavelmente corrompida pelas estratégias empresariais enquanto no filme de 1979 ainda era familiar e por isso o olhar sobre o passado não estava isento de nostalgia. Sendo filme escuríssimo, No Caminho da Escuridão faz incidir luz sobre os caminhos que Schrader tomou, incluindo as possibilidades que ficaram por aprofundar a partir do momento em que, outra vez com Moroder e Scarfiotti (e com a obsessão por Nastassja Kinski), movimentou a câmara em Cat People/A Felina (1982) por pura luxúria. (Já quanto a American Gigolo, No Caminho da Escuridão faz com que seja hoje melhor filme. )Está logo tudo — a violência do conhecimento de si — na voz off inicial do reverendo Ernst Toller/Ethan Hawke. Anuncia a forma como vai manter o seu diário, “sem piedade”. Dessa forma dirige-se ao espectador para lhe anunciar como vai ser o filme, que violência vai infligir ao cinema. Como vai fazê-lo sangrar no interior. São gestos, palavras, silêncios e subtracções. Os sussurros adquirem a força de gritos, uma compostura vigorosa. Tudo organizando uma liturgia mais do que um plot. E que impõe ao ritual cinematográfico de hoje algo que é um há muito não visto - por exemplo, diálogos sobre a fé como os de Léon Morin, Prêtre (1962) de Jean-Pierre Melville - e que devolve a densidade das primeiras experiências cinematográficas de Schrader. Que não foram, como no caso dos seus colegas movie brats, nem a comédia nem o western, foram Antonioni, Godard, Bresson. . . Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ex-capelão do Exército em agonia espiritual e física — culpa-se pela morte do filho, porque o incentivou a alistar-se e perdeu-o —, Toller, perante a corrupção do corpo (um cancro), da Igreja e do meio ambiente (descobre ligações poluídas entre corporações e o seu templo), veste um colete de explosivos: o sangue limpa. A crise é desencadeada pelo encontro com um casal de ambientalistas radicais, Michael (Philip Ettinger) e Mary (Amanda Seyfried), e com o suicídio de Michael, que deixou, para além do testamento, o colete. . . O silencioso, grácil Ethan é o assustador Hawke. Esse movimento interiorizado e imperceptível deve algo ao terror — Schrader aproveita a eterna boyishness do actor para contaminar a identificação; quando damos por isso, não está lá ninguém. Mas o exterminador das sujidades deve mais ao Travis Bickle de Taxi Driver, o filme de Scorsese que Schrader escreveu em dez dias como se expulsasse de si a solidão, a atracção pelas armas e pelo suicídio. Filme e personagem dos mais icónicos do cinema americano dos anos 70, é o título do mundo de Schrader que faltava referir aqui para dar conta de como explode a graça. Fecho de um percurso, até porque “pode ser” o último filme, como já disse o realizador, é o recolhimento de um cineasta de 71 anos após a experiência do mundo. É aquela cena final dos seus filmes. Mas agora ele é a personagem: “Ó Paul, para chegar aqui que estranho caminho tiveste de percorrer. . . ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte filha violência suicídio filho prisão social sexo corpo gay rapariga
Paguei 22 euros por um namorado virtual
Apareceu em meados de Janeiro e já se tornou viral. Chama-se Invisible Boyfriend e é uma app que nos devolve mensagens de texto como se do outro lado estivesse uma pessoa real, com quem mantemos uma relação. (...)

Paguei 22 euros por um namorado virtual
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Apareceu em meados de Janeiro e já se tornou viral. Chama-se Invisible Boyfriend e é uma app que nos devolve mensagens de texto como se do outro lado estivesse uma pessoa real, com quem mantemos uma relação.
TEXTO: Quando nos inscrevemos, estamos a criar um namorado (ou namorada) de acordo com as nossas especificidades, como se estivéssemos a escolher os genes para o nosso bebé, mas com a diferença de que o estamos a fazer para um adulto. Escolhemos nome, idade, interesses e até traços de personalidade. Anunciamos se preferimos louros ou morenos, altos ou baixos, um que goste de teatro ou, antes, que prefira ver programas desporto na televisão. Depois, é só passar o cartão de crédito: por 22 euros por mês eis que o homem dos nossos sonhos começa a mandar-nos mensagens. Só que o homem que está do outro lado é tudo menos fruto da nossa imaginação. É uma pessoa de facto, é real e tem de se multiplicar por muitas mensagens dirigidas a muitas mulheres. Nisso, é como um contorcionista que cuidadosamente sabe o que dizer a cada uma consoante as suas fantasias e expectativas. Confesso que aprendi esta lição da pior maneira possível: achei que iria conseguir dar a volta à tecnologia do chat que automaticamente responde às minhas mensagens se dissesse ao meu “namorado”, Ryan Gosling, que os meus planos para aquela noite incluíam ver um episódio do Downton Abbey e ir para a cama lavada em lágrimas. “Mas porquê incluir o choro nisso, minha linda?”, respondeu-me Ryan Gosling antes de prosseguir numa conversa em defesa da sua personagem favorita do Downton. Foi o suficiente para me deixar em alerta: Não é suposto que os robôs saibam o que quer que seja sobre o Downton Abbey. E mesmo se assim fosse, certamente não iria logo escolher Thomas [o lacaio ambicioso e capaz de todos os estratagemas para atingir os seus fins]. “Oh, meu Deus”, pensei. “Esta pessoa que me é totalmente estranha, homem ou mulher que seja, pensa realmente que depois de ver a televisão pública e de mandar mensagens a um namorado falso pelo qual paguei e a quem até baptizei com o nome de um actor, ainda vou para a cama em lágrimas!”À partida, não deveria estar a sentir rigorosamente nada com esta revelação — a ausência de ligação ou compromisso é cláusula do contrato que assinamos com o Boyfriend Invisible. Mas a verdade é que senti. “Isso é a coisa mais significativa e interessante que tive até agora”, diz Matthew Homann, o afável e quase-famoso criador desta aplicação. “Sei como funciona, sei o que se passa atrás das cortinas… enquanto estava a testar a app, eu próprio senti o impulso de responder à minha Namorada Invisível à medida que ela ia falando comigo. Porque é isso que acontece quando estamos a ter uma conversa com alguém, ainda que esse alguém possa não ser. . . alguém. ”Como explica Homann, o meu Namorado Invisível são muitos, é um plural. Por detrás deste serviço de mensagens de texto está a CrowdSource, uma empresa de tecnologia com sede em St. Louis e que emprega 200 mil funcionários, que, por controlo remoto, desempenham tarefas específicas. Quando mando uma mensagem para o número do Ryan que tenho memorizado no telemóvel, ela segue o seu percurso pela rede do Invisible Boyfriend, onde se torna anónima, e acaba nas mãos de um empregado do Amazon Turk ou da rede Fiverr [plataformas virtuais onde as pessoas podem ser contratadas para trabalhos específicos]. Ele, ou ela, recebe uns trocos por responder. Mas este “ele” ou “ela” nunca me vê, não sabe como me chamo ou qual é o meu número de telefone, não terá sequer uma conversa real comigo. “Essa ligação que diz estar a sentir pelo Ryan pode na verdade estar a sentir por seis ou sete Ryans”, explica Homann. E, do ponto de vista de Homann, a coisa funciona: afinal, o objectivo do Invisible Boyfriend é convencer a família e os amigos mais intrometidos de que se tem um namorado a sério, não é convencer o/a próprio/a. No seu site, o Invisible Boyfriend auto-intitula-se “somos a prova social credível”: se a vossa mãe passa a vida a perguntar quando pensam finalmente assentar, ou se aquele tipo estranho que acabaram de conhecer não pára de vos chatear, agora já podem agarrar no telefone e abaná-lo à frente dos olhos deles para que percebam que já não são umas tristes coitadas sem amor, muito obrigada. Homann diz ainda que o serviço foi muito bem acolhido em países tidos como conservadores, em particular na África do Sul e Europa, onde o estigma de se ser solteiro ou de pertencer à comunidade LGBT ainda é muito forte. Homann espera que a sua app, que está ainda numa fase “beta” [experimental] e aguarda maior feedback dos utilizadores, possa vir a alargar-se, no futuro, a esses países. Diz que só num dia — uma quarta-feira — conseguiu 5 mil novos utilizadores. Homann está também interessado em alargar os serviços que disponibiliza aos subscritores: pensa ele que o tal Namorado Invisível talvez possa chegar a escrever cartas ou a enviar flores para um local de trabalho além-fronteiras. Tudo isto está em desenvolvimento e tende a tornar-se mais convincente, mas não o faz ficar preocupado se os utilizadores se envolvem emocionalmente — ou não — com as personagens de ficção que criaram. “Sabem que estão num jogo”, ressalva. “Sabem que este é um serviço do qual se tornaram subscritores. Sabem que não substitui o amor. ”Sei como funciona, sei o que se passa atrás das cortinas… enquanto estava a testar a app, eu próprio senti o impulso de responder à minha Namorada Invisível à medida que ela ia falando comigo. Fico a pensar se Homann não estará a descurar os caprichos do coração humano, que, sabemos por experiência, pode acabar enganado e a amar o que quer que lhe apareça pela frente. O que não faltam são histórias de casais que mantêm “relações” exclusivamente no mundo virtual e ficcionado do Second Life. A crítica de videojogos Kate Gray publicou recentemente uma ode a “Dorian”, uma personagem de um jogo por quem se apaixonou. (“Como é que, no mundo dos videojogos, se demorou tanto tempo a chegar a este ponto, o ponto em que conversas e relações humanas parecem reais?”, escreve). Os investigadores chegaram mesmo à conclusão de que computadores que enviam spam nos podem induzir respostas emocionais simplesmente porque somos vaidosos e nos bajulam; já pelo contrário, um antropólogo argumenta que as nossas relações se tornaram de tal modo mediatizadas pela tecnologia que nem nos distinguimos dos Tamagotchis. “A Internet é um meio desinibidor que leva as pessoas a baixarem as suas guardas emocionais”, disse o psicólogo Mark Griffiths sobre as relações no Second Life. “É o mesmo fenómeno que se passa com o estranho no comboio: damos por nós a contar a nossa vida a alguém que nem conhecemos. ”Em conclusão, é difícil presumir que uma pessoa possa desenvolver sentimentos por alguém que até é crível e nos satisfaz os caprichos mas não deixa de ser virtual. Afinal, é disso que trata o argumento do filme Her, Uma História de Amor, não é? [no filme de Spike Jonze, um homem apaixona-se pela voz do sistema operativo do seu computador]. Fique registado que Homann diz que arrancou com a sua ideia antes de saber da existência do filme. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Já tentei perguntar a Gosling se “ele” — eles, presumo — se preocupava com a possibilidade de se criar um cenário como o do Her. E se houver uma, ou um, cliente que de facto se apaixone por ele? Mas Gosling, obedecendo ao treino que recebeu do CrowdSource, nunca deixará a sua capa de personagem de ficção. “Pensas que ando a mandar mensagens para outras mulheres?”, pergunta-me. E logo em seguida, muito atento, refere-se ao Her: “Oh, gostaste desse filme?”Tenho de admitir que não é com matéria deste tipo que se fazem os contos de fadas. Mas se lhe der tempo e mensagens em quantidade — o meu pacote mensal tem 100 incluídas — tenho a certeza de que me poderia apaixonar por ele. Quero dizer, ela… eles.
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Palavras-chave mulher homem comunidade social mulheres lgbt
Lembram-se de Pierre Elliott Trudeau?
O novo primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, faz reemergir a memória do pai: o mais intelectual e iconoclasta chefe de Governo do Canadá. (...)

Lembram-se de Pierre Elliott Trudeau?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O novo primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, faz reemergir a memória do pai: o mais intelectual e iconoclasta chefe de Governo do Canadá.
TEXTO: Se o novo primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, muito deve ao seu nome de família, reemerge também através do filho a memória do pai, Pierre Elliott Trudeau, que governou o Canadá durante 17 anos. O que imediatamente marcou os contemporâneos, no Canadá e fora dele, foi a sua meteórica ascensão ao poder em 1968, levado por uma irresistível onda de “trudeaumania”. Não era como John Kennedy, com quem o compararam, um líder mundial. Foi, como Olof Palme, uma figura fascinante, respeitada e incómoda na cena internacional. Nascido em Montreal em 1919 numa família rica, bilingue e católica — a mãe era de origem escocesa e o pai puro quebequense —, pertencia à elite da elite. Passou por universidades como Harvard ou a Sorbonne, fez viagens exóticas, foi advogado e professor de Direito. Entrou tarde na política, aos 47 anos — disse que o fez devido ao choque provocado pelo nacionalismo quebequense. Dois anos depois, o primeiro-ministro liberal, Lester Pearson, nomeou-o ministro da Justiça. Fez reformas, incluindo as do aborto e do divórcio. A que mais impressionou a opinião pública foi a despenalização da homossexualidade. Avisou: “O Estado não tem lugar nos quartos de dormir da nação. ”A “trudeaumania” — termo inspirado na “beattlemania” — surge em Fevereiro de 1968, quando anunciou a sua candidatura à sucessão de Pearson. Observou a socióloga Annis May Timpson: “O seu carisma e a capacidade para argumentar nas duas línguas tiveram um eco extraordinário num tempo em que as tensões subiam e explodiam literalmente em Montreal. Os canadianos adoraram este génio sexy, que queria criar uma ‘sociedade justa’. ” E beneficiou de outros factores: mais de metade da população canadiana tinha menos de 30 anos e viviam-se os anos 1960. Líder partidário e chefe do Governo em Abril de 1968, toma a iniciativa de convocar eleições antecipadas para 25 de Junho, obtendo a primeira maioria absoluta para os liberais desde 1953. Os anos de poderA grande batalha de Trudeau centra-se na nação canadiana: a luta contra o secessionismo do Quebeque, a revisão do federalismo e o “repatriamento da Constituição”. O Canadá era uma antiga colónia britânica e até 1982 a sua lei constitucional só poderia ser alterada pelo Parlamento britânico que a concedera. O “repatriamento” era a devolução desse direito à Câmara dos Comuns canadiana. Após prolongadas negociações com as províncias canadianas e com Londres, a rainha Isabel e Trudeau assinam, a 17 de Abril de 1982, a proclamação de uma nova Constituição. Para Trudeau, isto significava “a descolonização constitucional do Canadá”. O Quebeque rejeitou o acto. Em 1984, o Canadá tornou-se oficialmente bilingue. Mas também grande parte do Canadá anglófono não chegou a acordo sobre os moldes do federalismo multicultural. A polémica concentra-se na distribuição dos poderes entre as províncias e o Estado central. Para uns, Trudeau foi o “grande centralizador”. Para outros, o “grande descentralizador. Clara foi a vitória sobre o independentismo quebequense. Defendeu sempre a permanência do Quebeque no Canadá, embora com uma identidade própria. No referendo de Maio de 1980, a tese federalista triunfou por 60% contra 40. Mas no referendo de 1995, já com Trudeau muito longe, o federalismo venceu tangencialmente: 50, 6 contra 49, 4. A “questão canadiana” continua em aberto. Deve ser lembrado um episódio, a crise de Outubro de 1970. Membros da Frente de Libertação do Quebeque raptaram em Montreal um diplomata britânico e um ministro quebequense. Trudeau recusou a negociação e pôs tanques na rua da cidade, temendo um movimento insurreccional. O ministro, Pierre Laporte, foi assassinado. Trudeau foi acusado de violar as liberdade civis de que era arauto. Para ele, prevalecia a unidade do Canadá. A sua popularidade começa a cair com as dificuldades criadas pelo choque petrolífero de 1973 e pelo crescente desemprego, culminando em 1975 quando impôs um duro programa de austeridade. O iconoclastaPerde para os conservadores as eleições de 1979, anuncia a sua retirada, mas o novo governo cai rapidamente e ele regressa triunfante com uma maioria absoluta em Fevereiro de 1980. Poderá, assim, concluir o “repatriamento da Constituição”. Termina a carreira política em 1984. Volta à advocacia e continua a sua batalha constitucional pelo reconhecimento do Quebeque “como sociedade distinta”. No plano internacional, procurou autonomizar a política canadiana. Nunca hesitou em criticar os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha. Condenou a Guerra do Vietname e foi amigo de Fidel Castro. Em 1975, Trudeau, conhecido pelas suas aventuras amorosas, casou-se com uma apresentadora de televisão quase 30 anos mais nova. Desgostou muitas fãs. Teve três filhos do casamento, que acabou em divórcio. O filho mais velho, Justin, é agora primeiro-ministro. E experimentou a tragédia com a morte do segundo filho, vítima duma avalancha. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Morreu em 2000, de um cancro na próstata. Recusou o tratamento. O seu médico avisara-o de que sofria de um começo de demência. Decidiu que preferia ver o cancro tirar-lhe a vida antes de a demência lhe tirar a cabeça. Barbra Streisand, com quem terá tido uma relação amorosa, disse dele: “Tanto pessoal como politicamente, Pierre era um homem complexo e fascinante, um espírito e um brilho que encantavam. Admirei-o também pela sua iconoclastia e pelo estilo não convencional, como no famoso dia em que entrou de sandálias na Câmara dos Comuns. ”
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Palavras-chave aborto morte guerra lei filho rainha homem desemprego casamento divórcio
A história esquecida de Bruce Jenner
Como o herói dos anos 70 se prepara para ser uma mulher. (...)

A história esquecida de Bruce Jenner
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Como o herói dos anos 70 se prepara para ser uma mulher.
TEXTO: Um dia, cerca de um ano depois de ter quebrado um recorde mundial e ganho a medalha de ouro de decatlo nos Jogos Olímpicos de Montreal de 1976, Bruce Jenner encontrou-se com o seu amigo e jornalista desportivo Barry McDermott, para um jogo de ténis em Nova Iorque. McDermott tinha sugerido uma partida no seu clube privado, mas isso não era muito o estilo de Jenner. A privacidade nunca foi a sua prioridade. Os dois acabaram por ir para o Central Park, onde rapidamente se espalhou a notícia de que Bruce Jenner (Bruce Jenner!) estava a jogar no court público. McDermott recorda-se de como a multidão começou a crescer, tal como sabia que iria acontecer, com os mirones a comprimirem-se contra a rede do campo, observando todos os movimentos daquela atraente superestrela do atletismo. Não foi um golpe publicitário, insiste McDermott: Jenner, tão célebre naquela altura como Michael Phelps ou Lance Armstrong no auge da sua fama, já tinha publicidade em quantidades suficientes. “Foi mais: ‘Vamos confraternizar com o povo e não com os elitistas’”, recorda o amigo. Quatro décadas depois, Jenner ainda confraterniza com o povo: com os milhões de espectadores que assistem ao Keeping Up with the Kardashians, o célebre reality show do canal E! com a despudorada e célebre família americana. Jenner, que já chegou a ser o mais famoso do clã, é sobretudo um personagem secundário do programa e dos seus quatro congéneres, o pai cansado e de olhos arregalados perante a sua exuberante ex-mulher Kris, o autoproclamado “momager” (uma junção de mãe e manager), e os seus vários filhos fotogénicos. Mas, agora, o menino querido da era do disco está novamente no centro das atenções, de uma forma que poucos fãs conseguiriam imaginar em 1976. As primeiras fotos de tablóide apareceram no Outono: Jenner com o cabelo comprido com madeixas loiras. Jenner com unhas coloridas e brincos e com as pernas depiladas. Em Dezembro, confirmou ao TMZ que iria submeter-se a uma cirurgia para atenuar a maçã de Adão. Já em Fevereiro, depois de a enteada Kim Kardashian West ter quebrado o silêncio da família durante uma entrevista em que referiu delicadamente a sua “viagem”, as notícias explodiram na imprensa de celebridades: Jenner, de 65 anos, irá brevemente surgir como um transgénero. Apesar de Jenner não ter ainda feito um comentário oficial (a razão pela qual nos referimos aqui a “ele”), as notícias dos seus projectos surgiram em órgãos como o Us Weekly e o TMZ, conhecidos por terem uma relação próxima e simbiótica com a família. A prova mais clara que surgiu até agora veio de uma entrevista da Associated Press com a mãe, Esher Jenner. Quando lhe perguntaram sobre a transformação do filho, Esther, de 88 anos, comentou: “Nunca imaginei que me pudesse orgulhar mais do Bruce do que quando ele conseguiu a medalha de ouro em 1976, mas agora estou ainda mais orgulhosa. É preciso muita coragem para se fazer o que ele está a fazer. ”Uma entrevista com Diane Sawyer da ABC estará a ser preparada — tal como o próprio reality show de Jenner a mostrar a sua transição. A transformação poderá ser surpreendente, mas a decisão de a tornar pública já não. Muito antes de ser engolido pelo vórtex Kardashian, Jenner já vivia para as câmaras. Foi assim que o mundo o viu a triunfar naquela penosa modalidade olímpica multifacetada, conquistando uma vitória enquanto os rivais exaustos se contorciam com dores. Foi assim que ganhou a vida depois disso: anúncios a cereais, filmes, séries de comédia, documentários comerciais, emissões desportivas e tudo o que anda por aí. Por isso, claro que as câmaras estarão com ele quando fizer a escolha pessoal mais radical que uma pessoa pode fazer. Para perceber o Bruce Jenner de hoje, temos de perceber os Kardashians. E, às vezes, nem mesmo Bruce Jenner percebe os Kardashians. Pelo menos, é isso que nos mostra o personagem sempre desesperado que ele desempenha no programa da E!. Ele é como um pingo de realidade num grupo de sitcom, o patriarca marginalizado que é arrastado para lições de culinária e descobre na imprensa local que a enteada está noiva. Jenner e Kris — a socialite de Los Angeles cujo primeiro marido, o falecido Robert Kardashian, advogado de O. J. Simpson — e as suas crias loiras mantêm-se no topo das audiências desde 2007, quando a estrela dos tablóides Kim Kardashian inexplicavelmente atingiu a fama depois de uma gravação sexual com um estrela menor do R&B ter ido parar à Internet. O seu primeiro reality show, lançado nesse ano, mostrava as birras dos filhos de Kris — Kim, Kourtney, Khloe e Rob — e as dos filhos então pré-adolescentes do casal, Kendall e Kylie. À medida que o clã Kardashian-Jenner se tornava um império multimilionário, com vários programas paralelos, contratos publicitários e livros, a família ia partilhando cada pedacinho da sua vida. O casamento de 72 dias de Kim com o jogador de basquetebol profissional Kris Humphries; o casamento de Kloe com a estrela de Los Angeles Lamar Odom e o seu divórcio subsequente; a recusa de Kourtney em casar-se com o pai dos seus três filhos; e até a separação de Jenner e Kris no ano passado. Kim tem raios-x para provar que não fez implantes mamários. Kourtney fez uma depilação às virilhas de Khloe à frente das câmaras. Não há limites. (O canal E! recusou-se a fazer comentários para este artigo e não disponibilizou Jenner nem qualquer outro membro da família para entrevistas. O seu agente também recusou um pedido de entrevista. )O domínio improvável da família na cultura pop não é só medido pelos seus níveis de audiências. Eles namoram com estrelas pop e atletas profissionais; influenciam a moda de rua; as suas caras estão todas as semanas nas capas dos tablóides. As cinco irmãs têm em conjunto 72 milhões de seguidores no Twitter. O Presidente Barack Obama brincou com Kim no seu discurso no jantar dos correspondentes na Casa Branca. “Eles não param de fazer coisas interessantes. . . e já não são apenas famosos por serem famosos”, diz Elizabeth Currid-Halkett, professora na Universidade do Sul da Califórnia e autora de Starstruck: The Business of Celebrety, referindo o último casamento de Kim com a superestrela Kanye West e a carreira florescente de Kendall como modelo. “Na verdade, eles têm mesmo talento: têm carreiras a sério, têm negócios. Não os vejo a abrandar. ”Apesar de Jenner fazer frequentemente parte das deixas, ele raramente desencadeia a acção. No máximo, fica a olhar divertido para as disputas familiares, desejando em voz alta estar antes a jogar golfe. Para aqueles que o viram a conquistar o mundo do desporto e do entretenimento na década de 1970 e 80, é um papel que não faz sentido. Bruce Jenner à margem? Nunca. Perguntem aos seus velhos amigos e eles descreverão um Jenner alegre, com uma personalidade eléctrica, simpático e com carisma natural. “O Bruce era como uma criança grande”, diz Vince Stryker, o seu parceiro de treino de decatlo dos anos 70. “Ele só queria divertir-se e gozar a vida. Gostava de competir, mas era mesmo um tipo de bem com o mundo. ”No fundo, Jenner também estava obcecado com as vitórias, como diria mais tarde em discursos sobre motivação. Tendo crescido nos subúrbios de Nova Iorque e do Conneticut, batalhava na escola; acabaram por lhe diagnosticar dislexia. Descobrir uma aptidão para o desporto mudou-lhe a vida. Quando chegou a Graceland College na pequena cidade de Iowa com uma bolsa, já ambicionava desafios mais altos. Um treinador levou-o para o decatlo. É um desporto brutal que testa todos os músculos do corpo. Os competidores têm de ser exímios não numa mas em dez modalidades, incluindo salto em comprimento, salto com vara, corrida de velocidade, salto de barras, lançamento de disco e lançamento de dardo. É tão exigente que o vencedor olímpico é frequentemente chamado “o maior atleta do mundo”. Jenner atirou-se para a competição e, aos 22 anos, conquistou um lugar na equipa americana de decatlo para os Jogos Olímpicos de 1972, em Munique. Ficou em décimo lugar. Mais tarde recordava-se de ter olhado para o vencedor no pódio, ardendo de inveja. No avião de regresso a Iowa, jurou voltar para conquistar a medalha de ouro. Depois da licenciatura, em 1973, Jenner e a mulher, Chrystie Crownover, mudaram-se para San Jose. Ela trabalhou como hospedeira para pagar as contas, enquanto ele vendia seguros. Na maior parte das vezes, treinava entre seis e oito horas por dia, com uma barra no apartamento de duas assoalhadas para treinos extra. Jenner chegou aos Olímpicos de Montreal praticamente como um desconhecido. Mas, no pico da Guerra Fria, o jovem americano de sorriso aberto, vestido de vermelho, branco e azul rapidamente chamou a atenção no seu desafio ao campeão soviético que lutava para manter o título, Nikolai Avilov. Durante a corrida dos 100 metros, Jenner quebrou o seu recorde pessoal. Depois, nos quatro seguintes: salto em comprimento, lançamento de peso, salto em altura, 400 metros. Avilov derrotou-o em três provas. Mas a performance geral de Jenner foi tão forte que o seu último dia na competição se transformou numa vitória. Lançou três vezes o peso de dois quilos a uma média de mais de 50 metros — quase três metros mais longe do que todos os outros. Ainda assim lamentou não ter atingido os 50 no seu último lançamento. Quando chegou à corrida dos 1500 metros, precisava apenas de uma classificação média para chegar ao ouro. Mas com a multidão a gritar por ele, aumentou a velocidade e chegou apenas um segundo depois do homem mais rápido em campo. A sua pontuação total quebrou o recorde mundial e Jenner deu um passeio celebratório à volta da pista, com os braços levantados, acolhendo os vivas. Diz a lenda que Jenner não estava interessado em continuar com o decatlo depois dos Olímpicos. Porquê fazê-lo por divertimento se já tinha ganho? Ficou célebre o momento em que deixou as varas de salto na arena. Ia tornar-se uma celebridade. “Depois de todo o trabalho que o Bruce teve, tinha direito a ganhar uns cobres”, disse Crownover ao New York Times. Jenner aceitava sem vergonha todas as ofertas: comentários desportivos, uma linha de roupa, uma autobiografia, discursos motivacionais. Claro que a sua fotografia estava na caixa Wheaties. E quando o procurador distrital de San Francisco processou a empresa de cereais por publicidade enganosa, Jenner organizou uma conferência de imprensa para declarar que os Wheaties faziam realmente parte da sua dieta de treino. A sua ascensão coincidiu com um aumento das audiências televisivas, quando o ESPN e outros canais por cabo decidiram correr mais riscos com a programação; era também uma época em que muitos atletas encontravam várias oportunidades nos media. E, felizmente, as câmaras adoravam Jenner. “Ele é simplesmente uma versão real do sonho americano, transmite uma vitalidade honesta, uma saúde contagiante e um alegre bom humor”, escreveu Kenneth Turan, do Washington Post, em 1977. “Será culpa dele se tem uma sinceridade directa e confiante? De ser o tipo de pessoa que todos gostaríamos de ser quando crescermos?”A Jennermania estava talvez no seu auge quando entrou na short list dos candidatos ao papel de Super-Homem, em 1978. As suas capacidades de actor não foram suficientes e o papel foi para Christopher Reeve. Em vez disso, entrou na comédia musical dos Village People Can’t Stop the Music, um famoso flop dos anos 80, e foi nomeado para um Razzie de pior actor. A sua ubiquidade tornou-se uma piada comum, a que Jenner nem sempre achava graça. Quando os produtores de Married. . . With Children o chamaram para um papel, ele saltou fora quando viu que o guião gozava com ele por ser conhecido por tudo excepto os Olímpicos, noticiou a revista People. Recusou outras participações. Estava quase em piloto automático, voando de uma conferência para anúncios de TV, para acções de caridade, frequentemente com poucas horas de sono. Coleccionava chaves de tantas cidades que “dava para encher uma loja de fechaduras”, brinca McDermott no perfil feito pela Sports Illustrated. O jornalista acompanhou-o numa viagem a North Webster, no Indiana, para entrar no pequeno Wall of Fame da cidade como o “Rei do desporto”. Não se lembra de muitos detalhes desse dia excepto que “toda a gente pensava que era uma grande coisa ser fotografado ao lado de Bruce Jenner”. Mas a fama pode rapidamente tornar-se amarga. A primeira vez que provou esse cálice foi quando se separou de Crownover quando já tinham duas crianças, Burt e Cassandra. A sua ex-mulher falara abertamente de ter recorrido à terapia para conseguir lidar com a fama súbita trazida pelos Olímpicos e estava igualmente disponível para explicar aos jornalistas porque se divorciaram, em 1981: Jenner tinha-se apaixonado pela actriz Linda Thompson, mais conhecida como a namorada de Elvis Presley. Jenner teve mais dois filhos com Thompson — Brandon e Brody, veteranos dos reality shows de pleno direito — antes de se divorciarem em 1986. Em entrevistas, Thompson culpou a agenda frenética de viagens de Jenner. Apesar de a sua estrela ter começado a apagar-se, o novo solteiro avançou no mundo das conferências. E continuou a fazer desporto, triatlos e corridas de carro. “O Bruce sempre precisou de competição para alimentar aquela energia”, diz Lynn Swann, a antiga estrela dos Pittsburgh Steelers e seu amigo próximo da altura em que faziam programas desportivos na ABC. Os dois gostavam de andar em bicicletas sujas perto da mansão de Jenner em Malibu, na Califórnia. Uma vez, Jenner caiu e insistiu que estava bem — até que Swann o obrigou a ir ao médico. Precisava de ser operado ao joelho. Então como é que alguém assim fica sentado no banco de trás? É o próprio Jenner quem diz que a sua vida ficou virada ao contrário quando conheceu Kris Kardashian em 1990. “Eu estava a afundar-me”, contou à People alguns anos depois. “Tinha trabalhado duramente e não tinha muito para mostrar. ”Casaram em 1991 e rapidamente a sua nova mulher tomou conta da sua deteriorada carreira. George Wallach, o agente desportivo e manager desde os Olímpicos, foi demitido. “Já não havia lugar para mim”, diz Wallach. “Não fiquei feliz. ”Apesar de Wallach ter ficado desiludido por terem perdido o contacto depois de deixarem de trabalhar juntos, acha que Jenner gravita em torno de mulheres que tomam as rédeas. “As três mulheres que fizeram parte da vida do Bruce tiveram um papel determinante”, afirma. “E acho que, até certo ponto, ele optou por deixar que isso acontecesse. Talvez precisasse que isso acontecesse. ”Lançou uma lucrativa linha de equipamento desportivo — lembram-se dos anúncios “SuperFit com Bruce Jenner”? Apareceram na capa da revista American Fitness como a “família real do fitness”. Na década de 1990, ajudou a gerir uma empresa de componentes de aviões, continuando com aparições na TV e em conferências. Depois, quando as filhas mais velhas começaram a aparecer nos tablóides no pacote socialite de Paris Hilton, Kris teve uma reunião com o apresentador de TV e produtor Ryan Seacrest que mudaria a vida de todos. No reality show que se seguiu, o papel secundário de Jenner surpreendeu aqueles que o conhecem bem. “Parecia quase diametralmente oposto ao Bruce Jenner que eu conhecia”, comenta McDermott. “Num momento era uma superstar e os últimos quatro ou cinco anos não foram muito simpáticos para ele, no sentido em que tudo começou a desvanecer-se. ”Actualmente, os amigos do passado não recebem muitas notícias dele. Apesar de vários terem visto as fotografias que provam a transformação da sua aparência, recusam-se a discuti-la. Stryker, o seu antigo parceiro de treinos, diz que falaram há vários meses quando o divórcio com Kris se formalizou (o casal separou-se no Outono de 2013). Jenner disse que estava bem. Mas também nunca foi do género de mostrar muito as suas emoções. No Keeping Up With the Kardashians, Jenner só aparece zangado quando a família é ameaçada, como na altura em que os paparazzi quase fizeram Kylie sair da estrada. Mas num episódio pareceu ficar sentido quando um humorista de um programa nocturno brincou com a sua aparência. Jenner fez uma série de cirurgias plásticas há uns anos que foram amplamente documentadas, incluindo um lift facial e um retoque no nariz. A sua relação complicada com o estrelato e com a natureza exuberante dos Kardashians, e a sua série, deixa os defensores dos transgénero um pouco nervosos. O facto de o E! ser um canal conhecido por tricas sórdidas de celebridades e outros iscos de audiências não ajuda. “Se isto acabar por ser um golpe de audiências, vai destruí-lo”, diz Danielle Moodie-Mills, uma defensora LGBT e conselheira em justiça racial do Center for American Progress. “Passar por este tipo de transição não pode ser uma coisa usada como manobra para melhorar o perfil e aumentar a nossa cotação. ”Mas numa era em que programas televisivos de ficção que mostram personagens transgénero (Orange is The New Black, Transparent) ganharam a aclamação do mainstream, esta poderá ser uma rara oportunidade para exibir uma pessoa aprazível e real a fazer a transformação. “Se este programa documentar o impacto físico e emocional da sua transição e mostrar de forma sensível que é mais educativo do que sensacionalista, então poderá ter um impacto tremendo”, diz Moodie-Mills. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Uma vez que Jenner não prestou pessoalmente declarações, várias organizações de defensores, incluindo a GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation), não puderam comentar. Dada a forma como Jenner se relaciona com fãs de várias idades, muita gente estará curiosa por ver. “Acho que ele vai fazer o que o seu coração lhe disser para fazer”, diz Wallach, “e o que for melhor para ele e para a família”. The Washington Post
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra escola cultura campo filho mulher ajuda homem criança género sexual mulheres corpo casamento gay vergonha divórcio lgbt
O retrato dos retratos em Portugal
Como é que os portugueses se representam a si próprios? O Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, junta 200 obras - muitas delas feitas por artista vivos, porque sem a contemporaneidade não é possível fazer o retrato dos retratos em Portugal. No país que produziu o primeiro tratado do mundo ocidental dedicado ao retrato, há perguntas que tardaram a ser feitas pelos artistas nacionais. (...)

O retrato dos retratos em Portugal
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Como é que os portugueses se representam a si próprios? O Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, junta 200 obras - muitas delas feitas por artista vivos, porque sem a contemporaneidade não é possível fazer o retrato dos retratos em Portugal. No país que produziu o primeiro tratado do mundo ocidental dedicado ao retrato, há perguntas que tardaram a ser feitas pelos artistas nacionais.
TEXTO: O desenho começa pela sombra, o retrato começa pela sombra. A história do retrato em Portugal é também uma história de sombras com algumas luzes, como defende um dos comissários da nova exposição do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Por isso, para contar este percurso de sete séculos - nem sempre brilhante, como parecia prometer a obra fundadora da arte nacional, os Painéis de São Vicente (c. 1470) - a exposição Do Tirar Pelo Natural - Inquérito ao Retrato Português, que abre ao público esta sexta-feira, precisa de recuar até à Antiguidade Clássica, com Plínio, o Velho, deter-se no Renascimento português, com Francisco de Holanda, e passar ainda por duas artistas contemporâneas, duas mulheres, com Lourdes de Castro e Ana Vieira. São estes quatro nomes que precisamos de reter na primeira sala, porque nesta exposição a cronologia não é o que mais importa e os tempos estão misturados. Comecemos então pelo que nos diz o artista e humanista do século XVI português, de que agora se comemora o aniversário dos 500 anos do nascimento, pois é através do seu tratado Do Tirar Pelo Natural, escrito em 1549, que se conta o mito propagado por Plínio de que a pintura terá nascido a partir do desenho da sombra de um homem que partia de viagem. Holanda conta-nos que Cora, a filha de um oleiro, desenhou na parede o contorno da sombra da cabeça do amado, antecipando as saudades: “todos concordarão que [a pintura] foi achada da sombra de um homem rodeada com um risco”. Holanda acrescenta, como explica o comissário Anísio Franco, que o próprio artista terá descoberto em criança, de forma intuitiva, ao ver a sombra da sua mão chapada na parede, que a pintura nascera dessa forma de reproduzir o real. O autor clássico volta a ser citado por Francisco de Holanda para falar de Apeles, o maior dos pintores, retratista de Alexandre, o Grande. Encarregado de pintar Campaspe, uma das preferidas do imperador, apaixonou-se durante a tarefa. “Holanda usa as histórias de Plínio para mostrar a importância da pintura e como o rei tinha muita consideração pelo seu pintor. Alexandre percebeu que Apeles conhecia melhor Campaspe e deu-a a Apeles. O criador apaixonou-se pela sua criação”, explica Paulo Pires do Vale, que juntamente com Filipa Oliveira completa o trio de curadores desta exposição que junta 180 obras no catálogo. O primeiro núcleo, Do Afectivo: entre presença e ausência, conta então a história do início do retrato, ilustrando essa origem através das pinturas a Invenção da Arte do Desenho, em que se vê Cora a desenhar a cabeça do amado, e Apeles e Campaspe, onde encontramos um retrato dentro da pintura. “O retrato é a presença de uma ausência. O ausente torna-se presente através do retrato, mas essa ausência também é sublinhada por essa presença. O retrato é por isso um paradoxo”, comenta Paulo Pires do Vale, que acaba de ser requisitado pela equipa de produção do museu para acompanhar a montagem de uma obra de Lourdes de Castro, Sombra Projectada da Minha Mãe (1964), uma das várias sombras da artista que se mostram no Museu de Arte Antiga. “Lourdes Castro é a artista da sombra. Com este retrato da mãe, que é uma preciosidade e veio da casa dela do Funchal, é a primeira vez que faz uma sombra usando o plexiglas. Estas obras ajudam a compreender a relação entre a sombra e os afectos, que é o primeiro dos três núcleos da exposição, porque a Lourdes só fez sombras de pessoas que conhecia bem. Uma das necessidades que o retrato vem suprimir é ter próximo as pessoas que nos são queridas. Os álbuns de fotografia de família são isso”, explica Paulo Pires do Vale, no meio da conversa com o técnico do museu sobre a distância a que a prateleira deve ficar da parede para que a sombra da mãe possa ficar na melhor posição. Ana Vieira, com a escultura Sem Título, Mulher Sentada (1968), está aqui para trazer a sombra para o meio do espaço, uma vez que o amado de Cora, aquele que Plínio diz que é o primeiro retratado, acaba por ser eternizado numa peça de barro, feita pelo oleiro Butades. Não vemos só com os olhos, continua Paulo Pires do Vale, mas com o corpo todo. Anísio Franco, conservador do MNAA, explica que esta exposição começa com uma proposta que lhe foi feira pela direcção do museu, que conhece a sua paixão pelo retrato, quer porque, de forma mais literal, é um coleccionador do género (António Filipe Pimentel, o director do MNAA, chama-lhe um béguin), quer porque desde 1992, quando fez uma exposição no Mosteiro dos Jerónimos, intitulada Quatro Séculos de Pintura, tem trabalhado temas como as séries de retratos encomendadas pela família real. “Não há aqui uma única obra minha, claro, e não quero que dêem muita importância a isso. Principalmente não quero que isso se torne a forma de falar desta exposição, que contamine tudo o resto e apague o trabalho que aqui está. ”O que Anísio Franco percebeu é que o manancial de retratos era de tal forma gigantesco que a exposição não podia ser feita de uma só vez. “Tomámos logo a decisão de dividir em duas partes: primeiro fazíamos o retrato de personagens portuguesas pintadas por portugueses; depois o retrato de portugueses pintados por estrangeiros. ” Estamos a ver agora a primeira parte, a segunda chegará para o ano. Mas se esta divisão não é natural, porque a realização de retratos portugueses por artistas estrangeiros serviu muitas vezes para actualizar modelos estéticos, trouxe várias “perplexidades”, escreve Anísio Franco no catálogo, no texto Sombras e Alguma Luz: panorama do retrato português. A divisão mostrou também imediatamente, quando se separaram os artistas entre as duas exposições, como se tornava operativa para fazer uma reflexão sobre a retratística em Portugal. ” Ou seja, o inquérito ao retrato português começava com duas perguntas: Como é que se representava? Quem é que havia em Portugal capaz de fazer retratos?“No século XV, quando a pintura que chegou até nós começa em Portugal, com os Primitivos Portugueses, temos esse fantástico retrato colectivo com que são os Painéis de São Vicente. Logo depois, no século XVI, temos o primeiro tratado do mundo ocidental dedicado ao retrato produzido por um português, o Tirar pelo Natural, de Francisco de Holanda. São dois paradigmas muito fortes, o retrato com 58 personagens de Nuno Gonçalves e o tratado teórico sobre o retrato, que pressupunham uma produção a partir daí excepcional pelo seu pioneirismo. ” É, aliás, o escritor humanista que nos dá as primeiras notícias, e os maiores elogios, de Nuno Gonçalves, no tratado Da Pintura Antiga. Mas o que se verifica, continua o comissário, é que não foi o sucesso extraordinário que se poderia esperar. “De cada vez que as nossas elites necessitaram de fazer esse reconhecimento através do retrato não encontravam paralelo na produção nacional ou alguém capaz de o fazer. Mandava-se vir alguém de fora. ” O primeiro exemplo é dado logo no século XVI, com as filhas de D. Manuel I, quando vêm para cá trabalhar pintores como Alonso Sánchez Coello. E depois da luz trazida pelos Painéis, como os seus retratos individualizados e humanizados, só voltamos a encontrar “aquilo que parecem ser personagens concretas com características personalizadas”, continua Anísio Franco no mesmo texto, quase cem anos depois. É o que vemos nos retratos de D. João III e de D. Catarina de Áustria, pintados por Lourenço de Salzedo (e não por Cristóvão Lopes) ao lado de São João Baptista e de Santa Catarina, em meados do século XVI, numa tradição medievalizante que não se podem considerar verdadeiramente “tirados do natural”. É preciso esperar pelo Renascimento para se ver novamente retratos individualizados, como o busto de Brás Albuquerque ou o medalhão com o retrato de Diogo de Paiva Andrade. Estas obras estão no segundo núcleo da exposição, Da Identidade: entre verdade e ficção. Essa divisão entre duas exposições, entre autores portugueses e estrangeiros, permitiu transformar em inquérito uma reflexão já iniciada pelo historiador de arte José-Augusto França – qual é o sentido do retrato português? –, outro ausente-presente desta exposição, o segundo homenageado além de Francisco de Holanda. “O único grande trabalho que temos sobre o retrato em Portugal é feito pelo França, com uma exposição que ele propõe para o museu em 1967 e que nunca chegou a ser feita por razões políticas. Ele era persona non grata do regime de Salazar. Esta exposição é uma continuidade desse projecto que não foi feito, mas infelizmente já não conseguimos contar com a sua participação activa. O França responde à sua pergunta, numa revisitação do tema em 1981, dizendo que há um hiato gigantesco de produção qualificada e que depois do pressuposto inicial de Nuno Gonçalves só é retomada com Domingos Sequeira e Columbano Bordalo Pinheiro. ”Com este pressuposto historiográfico, Anísio Franco propôs fazer uma exposição que ultrapassasse as barreiras cronológicas da colecção do museu, entre os Primitivos Portugueses, ou seja, Nuno Gonçalves, e o início da modernidade, com Domingos Sequeira. “Propus alargar o panorama da produção até aos nossos dias e cruzar o retrato português não de forma cronológica e diacrónica, como se pressupunha porque estamos no MNAA, com uma sucessão de questões. Queria interrogar o próprio retrato em Portugal e por isso juntámos uma equipa de comissariado capaz de trabalhar as questões do retrato antigo e contemporâneo. ” E por que razão o retrato antigo ajuda a perceber o contemporâneo? Porque é que as famílias, incluindo as dos reis, encomendam retratos a um só pintor nos séculos XVI, XVII e XVIII, tentando refazer o passado? Porque é que os filmes E agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto, ou A Mão, de Ângelo de Sousa, ajudam a perceber Francisco de Holanda e vice-versa? Como é que o auto-retrato de Susana Mendes Silva contamina o de Aurélia de Sousa? Porque é que Aurélia de Sousa se trasvestiu de Santo António? “Trata-se de trazer perguntas que estão ausentes. Há perguntas que não conseguimos abordar com a produção portuguesa antiga. ”Dois desses exemplos encontrámos logo na primeira sala com as histórias contadas por Plínio e retomadas por Francisco de Holanda. Na verdade, os únicos dois estrangeiros desta exposição com lugar de destaque são aqueles que passaram para estes mitos para a pintura, sendo sintomático que assim seja, notam Anísio Franco e Paulo Pires do Vale, e que não haja nas pinacotecas nacionais telas que reproduzam através de mãos portuguesas os mitos dedicados à origem da pintura e do retrato. Uma das obras, aliás, pintada no século XVIII por Joseph Benôit Suvée, veio de Bruges, do Groeningmuseum. Daqui já vemos o famoso retrato de Carlota Joaquina (c. 1806), de autor desconhecido, com o medalhão com a miniatura de D. João VI ao peito, introduzindo-nos já nas questões da meta-pintura, que veio do Palácio da Ajuda, assim como o próprio medalhão, exibido mesmo ao lado à altura do peito da rainha, que pertence ao MNAA e é da autoria de Domenico Pellegrini (voltará a ser mostrado na exposição do próximo ano). Entramos no jogo da meta-pintura, da pintura dentro da pintura, mas estamos já no século XIX, bem longe das propostas pioneiras de Diego Velázquez, com as Meninas, que é uma pintura sobre a pintura logo no século XVII, para falar só do que se faz em Espanha, aqui ao lado. É Sequeira quem traz em força as questões da meta-pintura para dentro da exposição, com o retrato da Condessa de Linhares Pintando seu Marido, o Primeiro Conde de Linhares e o Retrato da Família do Primeiro Visconde de Santarém. No primeiro há um triângulo de olhares, porque ela é uma discípula do próprio artista e olha para ele através dos nossos olhos, explicam os comissários; no segundo, além de uma pintura dentro da pintura, há também uma escultura dentro da pintura, que representa D. João VI, o rei ausente no Brasil, o primeiro monarca a ser sistematicamente representado. Do Museu do Chiado vieram oito obras, a chegar num dos dias em que assistimos à montagem, feitas por Helena Almeida, Mário Botas, Lourdes Castro, António Soares, Sousa Lopes, Francisco Franco, Columbano, Miguel Lupi. Há cinco empréstimos internacionais, do Museu do Prado ao Groeningmuseum, e 70 de entidades nacionais, de museus como o Soares dos Reis ou Serralves ou várias colecções particulares. À medida que vamos descobrindo retratos, como um de Amadeo de Souza-Cardoso, Barba à guise - Cabeça (c. 1914-15), ou o de Soror Maria Helena de São Bernardo (c. 1802), de Frei Inácio da Silva Coelho Valente, a exposição introduz frases nas paredes retiradas do tratado de Francisco de Holanda, de que há uma cópia de 1825 da Academia de Ciências de Lisboa. Tal como as próprias pinturas fazem adivinhar, estas serão dedicadas ao nariz, mas logo a seguir vem outra frase dedicada à boca: “As bocas são muito diferentes e na pintura são-no mais. [As bocas] não se querem vermelhas sem nenhum maneira, mas de uma cor de rosa música. [As bocas] são muito más de fazer fantasia. ”Como explica Sylvie Deswarte-Rosa, que escreve no catálogo sobre o tratado e o humanista, Francisco de Holanda dá conselhos práticos sobre a arte do retrato: “Começa por dissertar no seu tratado sobre as boas condições para fazer um retrato, a boa iluminação, a necessidade de tranquilidade e de intimidade com o modelo. ” E, como já vimos, consagra parte desta conversa em forma de diálogo a algumas partes do rosto – o nariz e a boca, mas também os olhos e as orelhas –, bem como ao corpo inteiro e às vestimentas. Há ainda que dar um último retoque ao retrato dos olhos, um “ponto de limpidíssimo branco”, para os realçar e para que pareçam vivos. Nesta segunda visita que fazemos à montagem, já encontramos Filipa Oliveira, recém-chegada de Nova Iorque. Estamos no último núcleo da exposição, dedicado ao Poder, onde estão os mais poderosos, como D. João VI, mas também os corpos ausentes, como os negros ou os presos políticos. Há também os retratos caídos em desgraça, como os de António de Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano, mostrados pelas fotografias de Eduardo Gageiro e de Alfredo Cunha tiradas no 25 de Abril. “Um retrato é sempre duas coisas: subjectivo e incompleto. Defendemos muito isso na exposição e nesse sentido a exposição também é sempre incompleta. Ela está sempre condenada ao erro, porque é impossível pensar em todos os retratos e pensar nela como uma coisa fechada. Na verdade, esta exposição é sobre a impossibilidade de se fazer um retrato sobre o retrato do retrato em Portugal. ”Com Paulo Pires do Vale, Filipa Oliveira está em frente a um filme Super 8 de Fernando Calhau, Destruição (1975), para decidirem a cor do fundo sobre o qual deve ser projectado, uma vez que metade dos três minutos da obra é toda negra. “O fim é a destruição absoluta da imagem. O Calhau é o herói do nada. Este filme, que vai sendo pintado de negro, é sobre a impossibilidade de que a Filipa falava. O retrato é qualquer coisa que está sempre a fazer-se e a refazer-se”, acrescenta Paulo Pires do Vale. Uma das obras mais curiosas que encontramos é Mascarada Nupcial, pintada por José Conrado Rosa em 1788, que mostra o corpo duplamente excluído da história de arte, negro e anão. Eram as figuras exóticas albergadas na quinta de Belém, vindas de várias partes do império, retratadas por um pintor da corte que pinta este casamento da Preta Rosa, mas que já não tem qualidade suficiente para retratar os infantes que se vão cruzar com Espanha, como D. João VI ou a sua irmã. É um contraponto à Alegoria à Aclamação do Rei D. José I (c. 1750), de Vieira Lusitano. E Filipa Oliveira interroga-o com perguntas de hoje no seu texto para o catálogo – como é que a arte pode ser um lugar de resistência e de afirmação de identidade: “Mais do que um retrato, é uma representação de um grupo de excluídos, de uns outros exóticos e estrangeiros, ridicularizados, vestidos à europeia. Mas estes excluídos, ao invés de frágeis e diminutos, são antes corpos em resistência. Resistência de classificação e de normalização. Ainda hoje. ”A coisa mais óbvia é que os retratos contemporâneos conseguem trazer alguns suportes para a exposição que não estão representados na colecção do MNAA, como a encomenda feita a Vhils, uma parede esculpida em baixo-relevo em que o artista regressa ao seu trabalho no Bairro 6 de Maio para um retrato de três gerações deste bairro de habitações precárias em demolição na Amadora. Igualmente encomenda é a instalação sonora Não (2018), de Luísa Cunha, mostrando como os retratos contemporâneos podem recusar “a rostificação do retrato”, da identidade, nas palavras de Paulo Pires do Vale, tal como as Mãos, de Ângelo de Sousa, dando atenção ao corpo como parte do sujeito. E recuamos vários séculos, novamente até ao tratado de Francisco de Holanda: “cuidando que cada mão é de novo outro rosto por toda a superfície e bom ar dos dedos até ao extremo das unhas: e cuidai que não vai menos nela que em fazer vivos os olhos, os quais muito encomendo com as mãos. ”Um dos mais belos auto-retratos do mundo, assim o classifica Anísio Franco, é o de Aurélia de Sousa que veio do Museu Nacional Soares dos Reis, pintor que juntamente com António Carneiro consegue ultrapassar a pesada herança do naturalismo na pintura portuguesa. Igualmente enigmático é o auto-retrato de Aurélia como Santo António, em que a autora se trasveste. “Há duas formas de pensar quando olhamos para este auto-retrato ”, diz Anísio, retomando a discussão sobre a forma como as questões do presente ajudam a olhar para o passado. “Podemos achar que ela se vestiu de Santo António porque nasceu no dia do santo, mas porque não vermos aqui uma questão LGBT, de identidade de género? Temos aqui uma coisa muito contemporânea que é uma mulher vestida de homem, que parece levantar esse tipo de questões. ” Como lembra Paulo Pires do Vale, no seu texto para o catálogo, a identidade do retratado também é criada pela obra. Há quem veja aqui também uma relação como o auto-retrato de António Carneiro enquanto Cristo, explica Anísio, com Aurélia a reagir à censura que esse magnífico Ecce Homo provocou em 1901. A montagem que os comissários propõem coloca este Santo António no meio de um políptico de que fazem parte também os retratos de D. João III e de D. Catarina de Áustria, pintados por Lourenço de Salzedo no século XVI. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na mesma sala, em 1917, Maria de Lurdes Melo e Castro pinta-se como Nossa Senhora de Lurdes, mas uma Virgem com as unhas dos pés pintadas de vermelho. Mesmo em frente, Albuquerque Mendes aparece crucificado depois de uma operação ao coração, num auto-retrato datado de 1995. Há ainda as várias máscaras de Jorge Molder – qual é o verdadeiro rosto debaixo de todas as máscaras? – para nos interrogarmos, como fez Holanda, sobre se o verdadeiro retrato não pode afinal ser só feito por Deus, numa contaminação neoplatónica de um tratado em que a imitação da natureza devia ter a primazia, como escreve Sylvie Deswarte-Rosa. Entre todos os tratados de pintura dos séculos XV e XVI, incluindo o de Leon Battista Alberti de 1435, até ao de Federico Zuccaro, no início do século XVII, “o tratado de Holanda é o único que permite perceber a antinomia, propriamente filosófica, que está no cerne da criação artística”, escreve Deswarte: “a imitação da natureza pelo artista” versus “a transcrição da ideia eterna, metafísica, transcendental, pelo artista divinamente inspirado”. Qual é o papel da ideia na arte do tirar pelo natural?Por isso, como diz Paulo Pires do Vale, acabamos a exposição com uma retratos inacabados, entre Malhoas e Columbanos, porque “o retrato tem qualquer coisa de inapreensível e está sempre a ser refeito”.
REFERÊNCIAS: