FKA Twigs é o doce choque do futuro
É um dos acontecimentos musicais de 2014: LP1, de FKA Twigs, impõe uma pop futurista em câmara lenta e um imaginário visual singular, em cima de uma voz que faz suspender os sentidos. Em entrevista ao Ípsilon, a britânica diz que ao fim do mês ainda pede ajuda aos familiares para pagar as contas. Mas não custa acreditar que isso vai mudar rapidamente. (...)

FKA Twigs é o doce choque do futuro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.175
DATA: 2014-08-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um dos acontecimentos musicais de 2014: LP1, de FKA Twigs, impõe uma pop futurista em câmara lenta e um imaginário visual singular, em cima de uma voz que faz suspender os sentidos. Em entrevista ao Ípsilon, a britânica diz que ao fim do mês ainda pede ajuda aos familiares para pagar as contas. Mas não custa acreditar que isso vai mudar rapidamente.
TEXTO: É franzina, de olhos grandes, e a voz é fininha ao telefone. Fala rápido. Por vezes é quase imperceptível o que diz. Confessa-se obcecada pelo trabalho. Parece saber o que quer e como chegar lá. Aos 26 anos, e com o excepcional álbum de estreia, LP1, a ser lançado em todo o mundo na terça-feira, a inglesa FKA Twigs é a cantora de que se fala. Quando lho recordamos, ri-se, notando que apesar do falatório à sua volta ainda tem dificuldade em pagar as contas lá de casa ao fim do mês. “Queria estar numa posição que me permitisse ajudar alguns dos meus familiares, mas são eles que me ajudam”, diz. É uma questão de tempo. Até agora, Tahliah Barnett (é o seu verdadeiro nome) tem investido: dinheiro, tempo e trabalho. No ano passado já teve retorno, com dois EP, uma série de vídeos e os concertos a darem-lhe alguma projecção. Mas é agora que o grande público vai conhecê-la. A sua música futurista não é fácil. Electrónica retorcida, ritmos inesperados em câmara lenta, muito espaço, com silêncios, ambientes etéreos, orquestrações, linhas de baixo subaquáticas e depois aquela voz que parece suspender os sentidos. Existe qualquer coisa de humanamente vulnerável e de força sensual alienígena na sua música. Podemos imaginar cenários a partir do que fariam os Portishead com D’ Angelo, ou James Blake com Aaliyah, ou os The xx com Kate Bush, ou os Massive Attack com Sade ou The Weeknd com Björk – e mesmo assim não chegaríamos lá. Dizer que a sua música é R&B também é redutor. E colá-la a cantoras contemporâneas, de Kelela a Azealia Banks, não faz grande sentido. Ela é simultaneamente mais singular e mais universal, desafiando comparações. Em termos musicais e visuais, não há ninguém como FKA Twigs. Dificilmente LP1 galgará pelos topes de vendas por esse mundo fora. Mas será quase inevitável falar dela quando se fizerem os habituais balanços musicais do ano corrente. Não tem muito que enganar, parecendo seguro que de cantora de culto passará para um outro patamar nos próximos meses, sem dificuldade. Canta, produz, compõe, dança, teatraliza, imagina imagens e realiza ou co-realiza os videoclipes. É alguém que se pensa como um todo, uma persona, um conceito, uma artista total. FKA Twigs é sem dúvida um dos acontecimentos de 2014. Por enquanto, parece ainda pouco consciente desse facto e prefere vincar que está concentrada no trabalho. “Tudo o que foge da órbita do estúdio, da criação ou dos concertos é algo que vislumbro de forma distante. As entrevistas, os ecos da imprensa, as reacções que vou despertando interessam-me, mas por vezes sinto que me afastam da criação, que é a minha principal motivação. Não gosto de pensar que tudo isso me pode sugar a energia. Talvez por isso, isolo-me muito. ”Tahliah Barnett cresceu no Gloucestershire, pés na Inglaterra rural, entre vacas, sebes, vales e campos verdes a perder de vista. É filha de mãe inglesa de origem espanhola e de pai jamaicano, com quem privou apenas espaçadamente ao longo dos anos. Na escola, “também já não tinha muitos amigos”, afirma, reforçando que será uma solitária. Define-se também como tímida. Alguém que está sempre no seu canto. “Apesar de ter vindo a perceber que isso também pode assustar os outros”, diz-nos, ao mesmo tempo que se ri da sua observação. Perguntamos porquê é que pensa dessa forma e, depois de algum tempo de silêncio, responde: “Porque acabam por te achar misteriosa, o que pode fazer com que as pessoas façam projecções para cima de ti. ”Na Internet, de facto, todos têm uma opinião sobre ela. Até agora, largamente positiva. Mas como acontece sempre nestes casos de grande visibilidade, os detractores também surgirão. Seja como for, o passa-palavra da Internet desempenhou um papel importante na sua afirmação global, mas ela está longe de ser uma adepta do universo digital, não fazendo ideia, por exemplo, do número de visualizações dos seus vídeos virais no YouTube. “Sei que a Internet é muito importante hoje, claro, mas não me interesso muito, talvez porque exista muito ruído à volta, em todos os sentidos, e eu prefira tranquilidade. ” O Facebook ou o Twitter também não lhe dizem grande coisa, mas há uma rede social que frequenta, o Instagram, "porque aí é a imagem que comunica”. Mas, então, o que faz quando não está em estúdio? “Bem, isso vai sendo cada vez mais raro”, responde, “porque sou muito obsessiva e desejo saber tudo sobre os aspectos criativos. ” Mas a sua vida não é apenas música, concede: “Estou com amigos em casa. Não sou muito de sair ou de ir a concertos, por exemplo. Mas gosto de ouvir música em casa com outras pessoas. E acima de tudo, durante a semana, continuo a ter aulas de dança. ”A dança é uma paixão de sempre. Na infância e adolescência, em casa, a mãe, uma antiga professora de dança, cantava com ela ao som de temas de Billie Holiday, Marvin Gaye ou Ella Fitzgerald. Influenciada pela progenitora, desde muito cedo Tahliah se interessou pelas artes do corpo, acabando por rumar definitivamente até Londres aos 17 anos, para estudar diversos estilos de dança – do ballet clássico ao hip-hop. Em paralelo à dança, foi surgindo a música. Desde os 16 anos que cantava, mas nada de muito assumido. No final de 2012 começou a dar nas vistas. Foi então que assinou pela britânica Young Turks, a subsidiária de prestígio da XL Recordings, (para a qual gravam também nomes como os The xx ou SBTRKT), onde lançou dois magníficos EP de quatro temas cada (EP1 e EP2). O emergente produtor Arca, de origem venezuelana – que acabou por tornar-se conhecido depois de participar no álbum Yeezus, de Kanye West –, coproduziu com ela o EP2. Mas mais até do que as canções, foram os videoclipes que acabaram por criar um efeito de contágio junto do público mais atento às novidades da música. As incríveis imagens digitalizadas de Water me, uma criação conjunta com o artista Jesse Kanda, ou a narrativa surreal do tema em parceria com a dupla Inc. , inspirada, segundo ela, no filme Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci, constituem dois desses exemplos. Para ela tudo faz parte do mesmo universo criativo: “As canções, os vídeos, os concertos, enfim, até a roupa que visto, acabam por fazer parte do mesmo corpo de trabalho”, afirma. “Faço questão de investir toda a minha energia em tudo o que faço, seja lá o que for. ” ViragemHoje parece claro que essas horas de trabalho não foram em vão. Existe nitidamente um universo FKA Twigs. “Passei muitos anos à procura da minha identidade artística, umas vezes sozinha, outras colaborando com outras pessoas, e agora sinto que cheguei a algum lado. A forma como escrevo neste álbum e a sonoridade das canções não foram fruto do trabalho de apenas alguns meses, mas sim de muitos anos de procura. ”Cantar e dançar para ganhar a vida fazem parte da sua rotina há muito tempo. Há alguns anos era possível vê-la a dançar, como bailarina profissional, em vídeos de Kylie Minogue ou Jessie J, ou até no circuito londrino dos cabarés. Na actualidade, quando olha para o passado recente, não tem dúvidas em dizer que foi um período crucial para aquilo que é hoje. “Para se chegar a algum lado é preciso insistir, falhar por vezes, e tentar retirar o melhor dessas experiências. Nessa fase da minha vida aprendi imenso – a estar em palco, a tentar ter o controlo sobre o público à minha frente, a colaborar com outros, ou a vislumbrar o trabalho de bastidores, nas luzes ou no som. E a encarnar personagens, a deixar de ser eu, sem nunca deixar de o ser. ”E agora aí está o álbum de estreia, um disco em que volta a colaborar com alguns cúmplices, como já acontecia nos EP e nos vídeos, mas sempre em regime de coautoria. Percebe-se que deseja manter o controlo artístico sobre todos os processos em que se envolve e está cada vez mais interessada em trabalhar sozinha. Desde que começou, já recorreu aos serviços de alguns dos mais criativos produtores do momento (Haynie, Arca, Clams Casino, Dev Hynes ou Paul Epworth), mas a sua assinatura sonora mantém-se inalterável, sintoma de que sabe bem o que quer de cada um deles. Independentemente dos nomes que convoca para estúdio, prevalece sempre o seu ideário. A palavra final é sempre dela. “Colaborar com alguém pode ser interessante se as duas pessoas forem capazes de se estimular mutuamente, acabando por alcançar zonas que de outra forma nunca seriam capazes de atingir”, reflecte. “Neste álbum compus todos os temas e produzi algumas canções sozinha”, explica, embora também existam colaborações em regime de coautoria. “Há canções em que colaboro e noutras estou sozinha. É por aí que me apetece ir, cada vez mais. Às vezes tenho de explicar de forma tão minuciosa o que quero que acabo por chegar à conclusão de que mais vale ser eu a fazê-lo. ”Quando lhe perguntamos como comunica com outros músicos ou produtores acerca da sua música, irrompe em risos. “É uma mistura de detalhes técnicos sonoros, de frequências, de programações, de graves e de botões, com imagens de vulcões, de espaço, de água transbordante, de cores fortes, de céu carregado ou de carros que chocam entre si e coisas desse género. É qualquer coisa que mistura a técnica e muitas imagens da minha mente. E nos vídeos acontece também o mesmo. ”Já as letras das canções falam de desejo, luxúria e obsessão. De lutas de poder no espaço das relações amorosas. Da linha por vezes ténue que separa submissão de dominação, ou o prazer da dor. Tudo isto sustentado por uma sensualidade melancólica, que ela prefere não esmiuçar muito, dizendo que se entrasse em detalhes iria encerrar a possibilidade de cada um ter a sua própria interpretação. “Escrevi dezenas de canções para o álbum, é algo que gosto de fazer, e as escolhas nem sempre recaíram na sensualidade”, limita-se a dizer, como se não quisesse ficar fechada em qualquer prateleira mais óbvia. Não tem nada a temer. Os vídeos transmitem uma imaginário quase irreal. Como se ela fosse uma personagem de BD. Mas nos concertos percebe-se que é bem real. Alguém capaz de se expor à flor da pele. Aliás, nos próximos tempos o seu grande desafio serão os espectáculos ao vivo, em que revelará as canções do álbum de estreia. Dir-se-ia à primeira vista que a complexidade e o intimismo da sua música têm poucas possibilidades de se exprimir de uma forma convincente em palco. Mas não é assim. A sua voz enche o espaço. Os seus movimentos são lânguidos. E sabe comunicar com o público. Fá-lo pouco, mas sempre a propósito. E depois existe o som. Uma guitarra que só se insinua de vez em quando, uma percussão minimalista constante e sintetizadores que impõem um clima luxuriante. Há quase sempre uma suspensão próxima do silêncio e momentos de pausa, num espectáculo sem grande rede, onde a sua voz está desprotegida e não pode nunca vacilar. A audiência pode dançar, se estiver para aí virada, mas a música de Twigs é mais introspectiva do que extrovertida. Não existem grandes pirotecnias. E a música não é propriamente articulada, procurando ângulos inusitados. Dir-se-ia serem canções para ouvir solitariamente e não tanto para desfrutar em colectivo. Mas Twigs aponta que as duas soluções podem complementar-se. “Algumas canções entram em territórios negros e exigem concentração para serem desfrutadas, mas ao vivo creio que a maior parte delas ganha uma sonoridade mais solta. ” É verdade. Mas a contenção e a fluidez serena dos seus movimentos marcam os concertos. Os próximos tempos vão ser determinantes para ela. Por enquanto a mãe e o padrasto têm dificuldade em perceber como é que alguém que está em todas as revistas e cujos vídeos têm milhões de visualizações ainda há pouco tempo lhes pedia dinheiro emprestado. A verdade é que os tempos são outros. A indústria da música mudou. E como fazer dinheiro com a música é hoje em dia uma equação com imensas variáveis, nenhuma delas certeira. Mas ela não está preocupada: “Claro que desejo continuar a fazer música e para isso é necessário pagar as contas, mas poder partilhar ideias já é qualquer coisa de fantástico. ”É certo que FKA Twigs nunca será uma Beyoncé. Mas não custa perceber que o momento de viragem para ela chegou. A cantora de culto do YouTube vai mesmo dar o salto para o infinito e não será nos próximos meses que vai conseguir parar para descansar. “Não tenho férias há anos e anos e não vai ser ainda desta vez, porque vou entrar agora em digressão”, diz-nos entre o resignado e o divertido. “Mas tenho quase a certeza de que todo este esforço vai valer a pena e um dia haverei de conhecer as praias portuguesas. ” Alguém duvida?
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha escola concentração social género corpo cantora
Lady Gaga: Se isto é uma estrela
Sempre soubemos, mas decidimos ignorar: as celebridades tornaram-se muito chatas. Não Lady Gaga: ela é toda humor e brincadeira, provocando acontecimentos surreais para nosso gozo diário. Esta é a história da criação - voraz e acidental - do maior fenómeno pop dos nossos tempos. Chega para lá, Madonna.Vanessa Grigoriadis/Exclusivo PÚBLICO/New York Magazine (...)

Lady Gaga: Se isto é uma estrela
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-04-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sempre soubemos, mas decidimos ignorar: as celebridades tornaram-se muito chatas. Não Lady Gaga: ela é toda humor e brincadeira, provocando acontecimentos surreais para nosso gozo diário. Esta é a história da criação - voraz e acidental - do maior fenómeno pop dos nossos tempos. Chega para lá, Madonna.Vanessa Grigoriadis/Exclusivo PÚBLICO/New York Magazine
TEXTO: Há exactamente um ano, Lady Gaga chegou ao átrio sombrio do Hotel Roosevelt, uma relíquia pomposa de estilo espanhol na zona turística de Hollywood, para uma entrevista. Just dance, o single de avanço do seu primeiro álbum, The Fame, tinha atingido o primeiro lugar do top na Austrália, Suécia e Canadá no início de 2008, mas em Março de 2009 ela ainda era uma pretendente a artista na América: tinha uns quantos milhares de ouvintes no MySpace, uma página de Internet genérica, e uma curta digressão como suporte dos New Kids on the Block. Contudo, Gaga tinha um vídeo. "Os meus colegas que trabalham com as rádios nesses três países concordaram em apoiá-la se eu fizesse um videoclip", diz Martin Kierszenbaum, o presidente do A&R (Artistas & Reportório) da Interscope, a editora dela. O vídeo de Just dance, filmado a poucos quilómetros do Roosevelt, mostra Gaga cantando e dançando com uma bola de espelhos na mão enquanto os seus amigos relaxam num sofá ao lado - embora quase todos fossem figurantes, não amigos a sério. Ela não conhecia muita gente na costa oeste. "Não gosto de Los Angeles", disse-nos. "As pessoas são horríveis e tremendamente fúteis, e todas querem ser famosas mas ninguém está disposto a fazer o que é preciso. Eu sou de Nova Iorque. Estou a disposta a matar para obter o que quero. "Antes do encontro, parti do princípio de que alguém com um nome artístico como "Lady" (o seu nome verdadeiro é Stefani Joanne Germanotta) seria algo retraído - em todo o caso, essa é a estratégia adoptada por muitos jovens músicos quando dão a sua primeira entrevista a sério. Mas nunca pensei que ela fosse realmente encarnar Lady Gaga. Por estes dias, contam-se pelos dedos os artistas que confundem os media como Bob Dylan, ou que nunca saem da personagem que criaram para o mundo, como Mark Mothersbaugh, dos Devo, fez no início da sua carreira. Nos dias de hoje, com documentários sobre a vida privada das estrelas na televisão, uma cultura de tablóide e reality shows, os músicos têm noção de que se devem mostrar aos jornalistas com o máximo de detalhe mundano que conseguirem. "Mas Lady Gaga é o meu nome", disse ela, espantada por eu poder imaginar outra coisa. "Se me conhecer, e me chamar Stefani, é porque não me conhece de todo. "Gaga instalou-se confortavelmente num sofá de pele castanha com a graciosidade possível dada a roupa que trazia vestida, um fato-macaco branco e hirto com enormes chumaços que subiam até às orelhas. Com 1, 57m de altura e 45 quilos, e o cabelo loiro com um corte à tigela anos 60, parecia saída de uma rigorosa dieta de fome. "As estrelas pop não deviam comer", proclamou. Era jovem, magra e loira, mas tinha um proeminente nariz italiano, o tipo de nariz que raramente sobrevive numa starlet. (Isto aconteceu durante a fase em que Gaga compunha o cabelo num laço - ou seja, antes da fase do chapéu de cabelo e do telefone de cabelo - e quando lhe perguntei o que era feito do laço, ela pousou a cabeça sobre as mãos como se fossem uma almofada e disse: "Está a dormir. ") Na ala junto à sua mesa, famílias de turistas tiravam fotografias umas às outras, inconscientes da presença dela, e ela retraía-se dramaticamente a cada flash. "Oh, câmaras", disse, protegendo os olhos. "Não suporto as câmaras. " Quando começámos a conversa, Gaga falou cuidadosamente num sotaque bizarro - numa mistura entre Madonna na sua fase britânica e um robot, uma afectação agravada pelo facto de se recusar a remover os óculos escuros ao longo das duas horas. "O que eu descobri", disse a robótica Gaga, posicionando o rosto como se lhe fossem tirar uma fotografia, "é que na arte, como na música, há a verdade e há a mentira. O artista cria essencialmente o seu trabalho para fazer dessa mentira uma verdade. A pequena mentira é o que eu procuro, é onde me quero situar. É o momento em que o público se apaixona. "Nesse instante, Gaga estava muito excitada com o seu novo vestido de bolas, e falámos da sua irrealidade, da beleza que existe no imaginário. Toda a gente queria esse vestido, que não era sequer um vestido - era um aglomerado de bolas de plástico transparentes. "Na minha digressão", declarou a cantora, "vou usar o meu vestido de bolas num piano feito de balões, e cantar sobre o amor, a arte e o futuro. Gostaria que cada pessoa acreditasse nesse momento, e isso valeria mais do que um disco chegar ao número um do top. " Ela deixou cair o sotaque naquele instante - a rapariga real, sem artifícios, estava praticamente visível - e inclinou-se para a frente. "Posso ter recordes de vendas todos os dias, mas que raio é que isso interessa?", disse. "Daqui a um ano posso desaparecer, e as pessoas podem pensar: "O que é feito daquela rapariga que nunca usava cuecas?" Mas como será maravilhosamente memorável se daqui a 30 anos elas disserem: "Lembram-se de Gaga e das suas bolas?" Por um minuto, toda a gente naquela sala irá esquecer todas as coisas tristes e dolorosas nas suas vidas, e viverá apenas na bolha que eu criei. "Um ano depois, a transformação está terminada: com seis êxitos que chegaram ao número um no último ano, Lady Gaga é a maior estrela pop do mundo. Por definição, uma estrela pop é fabricada - as estrelas rock não o eram, pelo menos até meados dos anos 70, e talvez tenha sido por isso que o rock se tornou pop - e de certa forma é devedora de um modelo de produção de estrelas muito tradicional, uma das últimas competências das grandes editoras discográficas. Mas o sucesso pode ter mil autores. Várias pessoas reclamaram créditos por descobrirem Gaga, 24 anos, por a terem modelado, baptizado, ou feito dela o que ela é: Rob Fusari, que co-escreveu e produziu as suas primeiras canções, processou-a há três semanas em 30 milhões de dólares [cerca de 22 milhões de euros], alegando, entre outras queixas, que o seu contrato estabelecia que 15 por cento das receitas de merchandising iriam para ele. Claro que Gaga reclama todo o crédito para si própria. "Eu passei por muito em termos de revelação criativa e artística, aprendizagem e afinação para me tornar no que sou", explica. "Queria tornar-me na artista que sou hoje, e isso levou anos. "Em parte, todos têm razão. Mas, por outro lado, ela foi um acidente, um fenómeno que aconteceu em Nova Iorque na primeira década de um novo século. Um ícone do nosso tempoE que acontecimento. Numa altura em que não reconhecemos os rostos das pessoas que fazem a maior parte da música que ouvimos (quem são aqueles tipos dos Vampire Weekend, mesmo?), Gaga é visualmente icónica; na era do Twitter, a distância que cultivou desde o primeiro sopro de fama tornou-a uma estrela ainda maior. Ela vira definitivamente a página da futilidade que dominou a última década, roubando a ribalta a mulheres que fizeram carreira admitindo que não tinham nada para dizer, como Paris Hilton e Jessica Simpson. Ela também fecha um período estranho na pop cantada por mulheres, com talentos emergentes incapazes de atingir a supercelebridade (Rihanna, Katy Perry), concorrentes dos Ídolos, estrelas mais maduras (Gwen Stefani, Fergie dos Black Eyed Peas), estrelas adolescentes, e cantoras populares que não são puramente pop, como Taylor Swift (fusão pop e country) e Beyoncé (que procura a miscigenação com sonoridades urbanas). Ela é arrebatadora em qualquer língua, com letras que constituem o seu próprio Esperanto - o que lhe confere um fácil alcance global. A presença de Gaga também introduz a anteriormente inimaginável ideia de que Madonna, outra rapariga italiana voraz, pode estar realmente, e finalmente, de saída. O seu novo visual é uma apropriação de Madonna circaThe Girlie Show e Blonde Ambition (as sobrancelhas escuras, o cabelo loiro platinado, os lábios vermelhos), e o realizador dos seus videoclips, Jonas Akerlund, tem sido um grande colaborador de Madonna nos últimos anos. Mas as duas são muito diferentes: Madonna perdeu o seu sentido de auto-ironia depois dos anos 90, ao passo que Gaga é toda humor e brincadeira. Na sua essência, ela é uma jovem estudante de Belas-Artes, cheia de optimismo e boa-fé, com um maravilhamento pueril perante as recriações artísticas do mundo. Apesar de provavelmente não ser bissexual - dos vários amigos pessoais entrevistados para este artigo, nenhum se lembra de ela alguma vez ter tido uma namorada ou estar sexualmente interessada numa mulher -, a sua política é inclusiva, e ela quer promover imagens de todas as combinações sexuais possíveis à face da Terra. Gaga diz que é uma rapariga que gosta de rapazes que se parecem com raparigas, mas ela também é uma rapariga que gosta de se parecer com um rapaz - ou, melhor dizendo, um travesti, um rapaz tentando passar por rapariga. Poucas coisas lhe dão tanto prazer quanto o boato persistente de que é hermafrodita, um rumor que surgiu na Internet com base no escrutínio de um vídeo com pouca qualidade de imagem. Isto não é a Madonna. A Madonna nunca fingiria ter um pénis. Mas esse é o génio de Lady Gaga: o seu voluntarismo para ser um mutante, uma caricatura. Ela tem um incrível sentido de humor, irradiando minúsculos momentos surreais para todo o mundo para nosso gáudio diário - como o laço gigantesco feito de cabelo com que enfeitou a cabeça no ano passado. "Um dia disse à minha equipa criativa: "O Gaultier fez laços, vamos fazê-lo de uma forma nova"", conta. "As ideias começaram a ir e vir, e às tantas eu disse [estala os dedos]: "Laço de cabelo". " Dá uma gargalhada. "Toda a gente ia morrendo. Não custou um cêntimo, e parecia uma ideia brilhante. É uma daquelas coisas. Sou muito arrogante em relação a isso. " Os seus vídeos são epifenómenos globais, como o tarantinesco Telephone, com a sua temática de prisões de mulheres e a participação especial de Beyoncé. "Gaga não se preocupa muito com a parte técnica, mas envolve-se em todos os aspectos criativos", diz Akerlund. "Nós permitimo-nos ser muito idiotas um com o outro, e é assim que surgem ideias como os óculos de sol feitos de cigarros [usados no vídeo de Telephone]. "Gaga também nos atira à cara uma coisa que sempre soubemos mas que decidimos ignorar: as celebridades americanas tornaram-se muito, muito aborrecidas. (O facto de ter feito isto e, ao mesmo tempo muita da sua música ser ela própria aborrecida, é um outro feito. ) Um dos seus pontos fundamentais é que a celebridade deveria pertencer a criaturas bizarras, como Grace Jones quando colaborou com o designer Jean-Paul Goude, e a sua mascote, Klaus Nomi, figura de culto dos anos 80 algures entre a ópera e a new wave, que morreu de sida aos 39 anos. Para Gaga, a nossa cultura de videojogos, redes sociais e obsessão com o telemóvel tornou-nos a todos mais pequenos, mais normais, menos interessantes, e - não importa quantos seguidores no Twitter ou quantos amigos no Facebook - famosos para ninguém, ao fim e ao cabo. "Sinais de aprovação no MySpace? O que é isso?", diz ela, cuspindo as palavras. "Isso não é emblemático do que eu estou a falar. Estou a falar de criar um espaço genuíno e memorável para nós próprios no mundo. "Católica e boa raparigaA história de Gaga é a história de ser jovem em Nova Iorque. Stefani Germanotta cresceu num duplex no Upper West Side, num dos quarteirões eclécticos entre as avenidas Columbus e Amsterdam feitos de uma mistura de edifícios pré-guerra, apartamentos e condomínios modernos. O pai dela dirigia uma companhia que instalava Wi-Fi (Internet sem fios) em hotéis, e a mãe trabalhou durante uns tempos como vice-presidente da empresa de telecomunicações Verizon. Eles mandaram Gaga e a sua irmã mais nova, Natali, 18, para o Sagrado Coração, uma pequena escola católica para raparigas uma rua acima do Museu Guggenheim. "O Sagrado Coração pode ser prestigiado, mas era frequentado por todo o tipo de raparigas", resume Gaga. "Algumas eram extremamente ricas, outras dependiam da Segurança Social e de bolsas, e algumas estavam no meio, que era o caso da minha família. Todo o nosso dinheiro ia para a educação e para a casa. " As suas colegas de escola dizem que a família dela era muito unida. "Quando John Kerry era candidato à presidência, Stefani apoiava-o e o pai dela não, e ela dizia piadas sobre isso", conta Daniela Abatelli, da classe de 2005. Gaga era uma das poucas estudantes que trabalhavam depois das aulas, como empregada de mesa num restaurante de Upper West Side. Com os seus primeiros ordenados comprou uma bolsa Gucci. "Fiquei tão excitada porque todas as raparigas do Sagrado Coração tinham sempre as suas bolsas de marca, e eu tinha não importa o quê", explica. "A minha mãe e o meu pai não me compravam bolsas de 600 dólares. "Como os pais lhe disseram que se tinham sacrificado pela sua educação, Gaga levou a escola a sério desde muito cedo. Uma das suas memórias preferidas de infância é ter tocado piano num concerto no Sagrado Coração com oito anos. "Havia uma fila de 20 raparigas sentadas, todas vestidas para a ocasião, e cada uma de nós tocou", diz ela, alegremente. "Eu fiz um óptimo trabalho. Fui bastante boa. " Aos 11, começou a frequentar um dia inteiro de aulas de representação aos sábados. "Lembro-me da primeira vez que bebi café de uma caneca imaginária", diz, cerrando os olhos. "É a primeira coisa que nos ensinam. Também consigo sentir a chuva quando não está a chover. " As pestanas dela abrem num disparo. "Não sei se isto é demasiado para a vossa revista, mas eu consigo provocar um orgasmo a mim própria mentalmente. " Sibila ligeiramente, como um dos vampiros desviantes da série Sangue Fresco. "Sabe, a memória sensorial é muito poderosa. "No 8. º ano, já tinha percebido que representar era uma maneira de conhecer rapazes e começou a fazer audições para peças conjuntas entre o Sagrado Coração e a escola Regis High, na Rua 84, perto de Park Avenue. Conseguia sempre ficar com o papel principal. Raparigas invejosas relegadas para o coro começaram a chamar-lhe "o Germe". "Elas falavam sempre nas costas dela, do género: "Ela é o Germe! Ela é nojenta!", conta uma colega. Gaga mencionou várias vezes que era marginalizada no liceu, mas à excepção de troças adolescentes como esta, as suas amigas não partilham da mesma recordação. "Ela sempre foi popular", diz Júlia Lindenthal. "Não me lembro de ela ter qualquer problema de socialização ou bizarria. "À época, ela tinha um certo gagaísmo incipiente: podia ser exageradamente dramática, mimada, pretensiosa, mas também era uma rapariga simpática (para não dizer boa rapariga), lembrada por muitos como amável e generosa - uma miúda do teatro que começava a exprimir os seus sentimentos através da escrita de canções. Fã dos Pink Floyd e dos Beatles, formou uma banda de versões de temas clássicos de rock e começou a cantar em noites de microfone aberto para amadores no Upper West Side. Chegou mesmo a fazer uma gravação com baladas românticas, e os seus pais distribuíram cópias na grande festa do seu 16. º aniversário, no Columbus Club. "Toda a gente ouviu a gravação e pensou: "Uau, ela vai ser uma estrela"", diz Justin Rodriguez, finalista da High Regis School em 2003. "Ela era de longe a pessoa mais talentosa no liceu, mas era muito atenciosa em relação aos outros, como quando dizia: "Estás a cantar muito melhor, estás a esforçar-te imenso e eu noto-o". Ela não era, de todo, uma diva. "Como muitas alunas de escolas privadas, aos 15, Gaga tinha um bilhete de identidade falso de Delaware comprado na MacDougal Street. Também começou a namorar com um empregado de mesa grego de 26 anos do restaurante onde trabalhava. "Essa é uma das razões por que eu precisava de ter um emprego depois das aulas", diz. "O meu pai não me dava dinheiro para sair ao fim-de-semana porque ele sabia que eu ia para a Baixa e que me iria portar mal. " Rapidamente, fez a sua primeira tatuagem: o símbolo musical do dó na zona lombar. ("Antes de fazer o meu primeiro grande vídeo, decidi refazer essa tatuagem", diz. "Não podia enfrentar o mundo com um carimbo ordinário. ") Ela ainda se portava bem na escola, apesar de ter problemas com as professoras de vez em quando: não pelas saias muito curtas mas pelas T-shirts inconvenientes. "Eu tinha sete a nove quilos mais do que tenho agora", explica Gaga. "Usava T-shirts de corte subido, e as professoras diziam-me que não as podia usar, e eu apontava outra rapariga que estivesse a usar a mesma coisa. "Bom, mas nela tem outro aspecto. " Não era justo. " Gaga sacode um pouco os ombros. "Nesse tempo, os meus seios eram muito maiores, mais firmes e deliciosos. "Depois do ataque às Torres Gémeas, chorou durante dias e vestiu-se de preto, como se estivesse de luto. "Quando ela subiu a igreja para receber a Eucaristia na missa especial do 11 de Setembro, os passos dela tinham uma cadência muito grave", diz uma amiga. "Ela costumava maquilhar-se muito, mas nesse dia não tinha nada. Lembro-me de ter pensado: "Uau, ela é tão exagerada". " Gaga também tinha o estranho hábito de recusar que os outros actores que entravam nas suas peças a tratassem pelo seu nome verdadeiro nos bastidores. "Se lhe tentassem dizer "Ei, Stefani", ela fazia a voz da sua personagem e respondia: "Não, eu sou a Ginger"", conta um amigo. "Era tão bizarro, nós não passávamos de miúdos. "Terminado o liceu, Gaga mudou-se para um dormitório da New York University na Rua 11 e inscreveu-se na Tisch [faculdade de artes] mas rapidamente sentiu que estava mais avançada em termos criativos do que alguns dos seus colegas. "Depois de aprendermos como é que se pensa sobre arte, podemos ensinar-nos a nós próprios", diz. Durante o segundo semestre do seu primeiro ano, comunicou aos pais que não voltaria à escola - iria ser uma estrela rock. Alegadamente, o pai concordou em pagar-lhe a renda durante um ano sob a condição de que voltaria à escola se o seu plano falhasse. "Deixei a minha família, arranjei o apartamento mais barato que consegui encontrar, e comi porcaria até alguém me ouvir", diz. Gaga mudou-se para um apartamento no Lower East Side, com um futon a fazer de sofá e um disco de Yoko Ono pendurado por cima da cama. No liceu ela tinha madeixas loiras e deixava os caracóis livremente à solta, mas agora pintara-o de preto e começara a alisá-lo. Formou a Stefani Germanotta Band com uns amigos da New York University (NYU) e gravou um EP com baladas à Fiona Apple num estúdio por debaixo de uma loja de álcool em New Jersey. "Stefani tinha um grupo de 15 a 20 seguidores em cada concerto", diz o guitarrista Calvin Pia. O seu manager da altura, Frankie Fredericks, diz: "Nós tocávamos, improvisávamos, e embebedávamo-nos. Ela disse que queria ter um contrato discográfico quando chegasse aos 21 anos. "Era um objectivo ambicioso. O que estava a faltar, completamente, era uma ideia de como lá chegar. Como Madonna, ela tinha um forte carisma sexual. Mas enquanto Madonna parecia ter calculado todos os passos, todas as colaborações, todas as viragens estilísticas na sua busca pela celebridade, a história de Gaga resume-se, em parte, a juventude à deriva, esperando que o momento certo caia como um relâmpago, que o acidente brilhante aconteça. No entanto, Gaga tinha uma coisa que faltava a Madonna: uma grande voz. O nascimento de uma estrelaA licença sabática de Gaga terminava em Março de 2006 - o pai estabelecera o seu aniversário como data-limite. Uma semana antes, a Stefani Germanotta Band actuou no mesmo clube que Wendy Starland, uma jovem cantora e compositora na veia de Peter Gabriel. Starland tinha estado a trabalhar em temas com Rob Fusari, 38 anos, um produtor de New Jersey conhecido pelo seu sucesso com êxitos de R&B para as Destiny"s Child e Will Smith. Ele mencionara a Starland que estava interessado em encontrar uma cantora para liderar uma banda como os Strokes - ela não precisava de ser bonita, nem sequer uma grande cantora, mas tinha de ter qualquer coisa que impedisse as pessoas de tirarem os olhos dela. "A autoconfiança de Stefani enchia a sala", diz Starland. "Ela tem uma presença enorme. E é uma pessoa sem medo. Eu fiquei atenta à escala, ao tom e ao timbre da voz dela. Será que ela era capaz de produzir uma dinâmica de escalas? Será que conseguia ser suave e, de repente, explodir? Senti que ela era capaz de fazer tudo isso e, ao mesmo tempo, soltar uma energia muito poderosa. "Gaga irrompeu em risadinhas quando Starland a abordou depois do concerto e lhe disse: "Estou prestes a mudar a tua vida. " Deixaram o clube juntas, e Starland ligou a Fusari do seu telemóvel. "O Rob disse: "Por que me estás a acordar?" Disse-lhe que tinha encontrado a rapariga. "O quê? Olha que é uma num milhão. Como é que ela se chama?" Stefani Germanotta. "Hum, deves estar a gozar comigo. Como é que ela é?" Não te preocupes com isso. "Ela tem algumas canções de jeito?" Não. "Como é a banda dela?" Péssima. " Starland ri-se. "Eu não estava a promover um produto. Eu estava a promover a rapariga. "Quando Fusari conheceu Gaga, ele pensou que ela era "uma versão feminina do John Lennon, para ser franco. Tinha um talento bizarro". Gaga começou a apanhar o autocarro para se encontrar com ele no seu estúdio de New Jersey às dez da manhã, compor canções viscerais com riffs à Led Zeppelin ou Nirvana ao piano e cantar as suas letras maneiristas por cima. "Eu sou uma hippie por natureza, e um dia o Rob e eu fizemos umas tatuagens", diz ela. "Eu queria uma tatuagem do símbolo da paz, em memória do John e da Yoko. Adoro que eles tenham viajado pelo mundo dizendo "Give peace a chance" [Dêem uma oportunidade à paz], e quando lhes pediam para explicar, eles só respondiam: "Não, dêem uma oportunidade à paz. " Eles julgavam que a simplicidade dessa frase podia mudar o mundo. É tão bonito. "Os dois trabalharam em canções rock durante quatro meses, mas a reacção entre os seus colegas foi negativa; também experimentaram a via cantora-compositora, na senda de April Lavigne, mas isso também não colava. Stefani concordou que o seu nome não ia a lado nenhum: Fusari gostava de cantar Radio Ga Ga dos Queen quando ela chegava ao estúdio, ela argumenta que se lembrou de Lady Gaga graças a isso. (O sucesso tem, de facto, muitos autores: Fusari diz que o inventou inadvertidamente num sms; Starland diz que o nome foi resultado de discussão colectiva. )Até que, um dia, Fusari leu um artigo no New York Times sobre a artista de folk-pop Nelly Furtado, cuja carreira estagnara desde o seu êxito de 2000, I"m like a bird: Timbaland, o produtor mais solicitado do momento, reconverteu-a numa sedutora artista de música de dança. "Nós não íamos convencer nenhum A&R com um disco de rock feminino, e a música de dança é muito mais fácil", diz Fusari. Gaga reagiu mal - não acreditas em mim, disse-lhe ela - mas, desse dia em diante, começaram a trabalhar com uma caixa de ritmos. Também começaram a ter uma relação, o que tornou a sua colaboração artística tumultuosa. Quando Fusari não gostava dos seus refrões, ela ficava de lágrimas nos olhos e gritava-lhe que não valia nada. Mas ele também era duro com ela. Gaga não se interessava pela moda nessa altura. Ela usava leggings e camisolas largas, com um ocasional ombro à mostra. "Umas quantas vezes, ela chegou ao estúdio com calções de licra e eu disse: "Não posso acreditar, Stef", conta Fusari. "E se o Clive Davis [conhecido produtor e executivo discográfico, que lançou as carreiras de gente como Alicia Keys ou Whitney Houston] estivesse aqui hoje? Eu devia marcar uma sessão com ele neste momento. O Prince não vai a uma loja de conveniência comprar gelado vestido como se fosse o Chris Rock. Tu és uma artista agora. Não podes ligar e desligar isso. "O problema era que ela não sabia como ligar isso: apesar de querer ser uma estrela, não tinha uma ideia clara do que era uma estrela, ou para onde corriam as tendências principais da cultura pop. Foi nessa altura que começou a estudar a sério. Gaga arranjou uma biografia de Prince, começou a comprar roupa na American Apparel, e ficou obcecada pela bíblia new age dos anos 2000, O Segredo, segundo amigos. Como uma rapariga de uma escola católica, ela interpretou os reparos de Fusari como uma admoestação para tornar as suas saias mais curtas e mais apertadas, até ao dia em que desapareceram completamente: tudo o que sobrava era a roupa interior, por vezes com collants. Um começo difícilPrestes a rebentar de confiança, Gaga estava pronta para ser transformada. A cena da música de dança que ela tinha sido obrigada a gostar revelou-se a fórmula perfeita para a sua energia altamente sexualizada de rapariga católica - ela era uma performer, mais do que uma mera cantora. Mas o negócio em que se estava a lançar era mais difícil do que nunca. Por estes dias, só existem quatro grandes editoras; a EMI está à beira do abismo e, se falhar o pagamento das suas dívidas em Junho, o Citigroup (grupo bancário) irá ser dono de uma editora discográfica. Em 2006, as editoras estavam a assinar "contratos de 360 graus" com os artistas: em vez de financiarem o disco de um artista e ficarem com os direitos das gravações originais, elas queriam partilhar os direitos que originalmente pertenciam ao artista, como o merchandising, receitas dos concertos e os royalties de licenciamentos. E eram cautelosas em relação a qualquer artista que não tivesse um séquito comprovado de seguidores na Internet - a aposta era em estrelas do MySpace como Paramore ou Panic at the Disco! - e aqui estava Gaga, tentando entrar pela porta grande. Mas ela tinha um bom espólio. Beautiful, dirty, rich, uma canção sobre os seus amigos da NYU que pediam dinheiro aos pais, convenceu managers potenciais a irem vê-la num concerto na Baixa - toda a gente tinha de vê-la ao vivo, caso contrário não iam perceber o que estava ali. Também foi convidada para a editora Island Def Jam, perto de Times Square. O produtor L. A. Reid entrou na sala quando ela estava a tocar piano e começou a acompanhá-la percutindo numa mesa. "O L. A. disse-me que eu era uma estrela", conta Gaga. Assinou um contrato com a Island Def Jam no valor de 850 mil dólares [630 mil euros], segundo um membro da sua equipa, mas, depois de ela produzir as canções, a editora deixou de atender os telefonemas. Três jantares foram combinados com Reid, mas ele cancelou cada um deles. Por fim, Gaga recebeu um telefonema do seu representante de A&R na Island Def Jam: ele tinha tocado um dos temas numa reunião, e ao fim de alguns minutos Reid fez um gesto imitando uma lâmina a cortar o pescoço. (A Island Def Jam não respondeu aos pedidos para comentar a história. ) Ela saiu da editora. Gaga ficou devastada. "Ela nem conseguia falar quando me contou por estar a chorar tanto", diz Fusari. Ao contrário de muitos artistas aspirantes, ela preferiu recusar parte do avanço que recebera de forma a poder levar as suas gravações consigo (dois dos seis êxitos encontram-se nesse disco original). Esta foi a primeira vez que Gaga passou por sérias dificuldades - o primeiro momento na sua vida em que pensou realmente que poderia fracassar. "Voltei para o meu apartamento no Lower East Side, e estava tão deprimida", diz. "Foi aí que comecei a ter uma verdadeira dedicação à minha música e arte. "Ao contrário de Madonna, que gravitou para a marginalidade artística da Baixa nova-iorquina e levou-se a si própria com a maior seriedade, Gaga, seguindo o seu instinto, foi direita a uma cena que era abrangente e divertida mas não estava particularmente na moda. Em 2007, a moda era ouvir bandas criativas de folk-rock saídas de Brooklyn, como os Grizzly Bear e os Animal Collective; Gaga preferiu o hard rock e a cena artística trash. Apaixonou-se desesperadamente por Luc Carl, um baterista de 29 anos e manager do bar de rock St. Jerome"s, em Rivington Street. Foi aí que ela conheceu Lady Starlight - maquilhadora, DJ e artista performativa - que ainda faz espectáculos por 60 dólares [45 euros] mas tem um vasto conhecimento da música rock e da história do estilo. Starlight tivera muitas encarnações, de mod a cantora de cabaret, até uma imitação dos Judas Priest, toda vestida de cabedal. "Starlight e eu sentimos uma afinidade imediata, graças ao seu amor pelo heavy metal e ao meu amor por rapazes que ouvem heavy metal", diz Gaga. "Nesses dias, eu acordava ao meio-dia no meu apartamento com o meu namorado e o seu cabelo comprido e espetado à Nikki Sixx [baixista e compositor da banda de heavy metal Motley Crue], os jeans espalhados no chão, os ténis sujos. Ele tinha a T-shirt vestida, sem boxers. A seguir íamos fazer as contas do St. Jerome"s. Eu punha vinis do David Bowie e dos New York Dolls na cozinha, e compunha música com a Lady Starlight. A certa altura, ouvia uma buzina na rua: era o velho descapotável verde dele com uma capota preta. Eu descia as escadas a correr, e a gritar: "Amor, amor, liga o motor", e nós íamos até à ponte de Brooklyn, encontrávamo-nos com amigos, tocávamos mais música. " Ela inclina-se para a frente. "O Lower East Side tem uma arrogância. A nossa vaidade é uma coisa positiva. Ela fez de mim a mulher que sou hoje. "Gaga começou a tocar as suas canções com Starlight em pequenos clubes, e a praticar dança erótica debaixo de uma luz vermelha no Pianos - ela usava um biquini e as luvas pretas sem dedos do namorado, demasiado grandes para as suas mãos pequenas. Dançar, comprimidos dietéticos e uma única refeição a sério por dia permitiram-lhe perder peso finalmente, segundo uma amiga. "Eu estava nua num bar com dinheiro a sair das minhas mamas e do meu rabo", diz Gaga. (Ela tem falado abertamente de como tomou cocaína durante esse período, mas nenhum dos seus amigos da altura se lembra de qualquer consumo de drogas; eles dizem que ela lhes contou que apenas usava cocaína quando estava sozinha. ) Ela e Starlight começaram a fazer a primeira parte da banda de glam-rock Semi Precious Weapons. "Gaga e eu costumávamos ir às compras juntos", diz Justin Tranter, cantor da banda. "Qualquer loja de produtos eróticos com 99 por cento de DVD e brinquedos sexuais e um por cento de roupa era o nosso sítio preferido para fazer compras. "Gaga estava a divertir-se e, como é hábito, espalhava a sua energia positiva à volta. "Ela tentava fazer com que toda a gente se sentisse bem", diz Brendan Sullivan, ou DJ VH1, que trabalhou com ela nos espectáculos iniciais. "Eu ia ao apartamento dela com o meu romance inédito, e ela dizia-me que eu era o escritor mais brilhante da minha geração. Mais ninguém fazia isso por mim. " Ela não andava a falar muito com Fusari - a relação amorosa tinha acabado -, mas ele assistiu a um espectáculo dela com Starlight e ficou estarrecido. "Era uma mistura de Rocky Horror com uma banda dos anos 80, e eu não consegui perceber nada", diz. "Disse à Stefani que conseguia arranjar-lhe outro DJ, mas ela respondeu: "Estou bem, não é preciso". "Mas Fusari infiltrou-se de novo, na Primavera de 2007, quando ouviu que o seu amigo produtor Vincent Herbert tinha assinado um contrato com a Interscope para arranjar novos artistas. Numa questão de dias, Herbert meteu-os num avião para conhecerem o patrão da Interscope, Jimmy Iovine. Gaga foi à reunião com uns calções muito curtos, botas de cano alto e uma T-shirt de alças, mas Iovine não apareceu; eles voltaram para Nova Iorque, e foram chamados duas semanas mais tarde. Iovine, um empresário musical que ganhou reputação no gangster rap com Dr. Dre e mais tarde tirou proveito da onda de soft metal dos anos 90, é conhecido por ter bom ouvido, e depois de ouvir uns quantos temas no seu escritório, levantou-se e disse: "Vamos tentar isto". Lições de Andy WarholGaga tinha receio de que a editora pensasse que ela não era suficientemente bonita para estar num palco. Herbert chegou a gastar dinheiro do seu bolso para a mandar para o festival Lollapalooza, em Chicago, e começou a pensar que a aparência dela estava errada - alguém no público gritou "Amy Winehouse" e isso deixou-o nervoso. "Eu disse-lhe que ela tinha de pintar o cabelo de loiro, e ela fê-lo imediatamente", diz Herbert. "Deus abençoe aquela rapariga, ela ouve o que lhe dizem. "De férias nas ilhas Caimão com Luc Carl, Gaga provocou uma discussão, e ele disse-lhe que não tinha a certeza de que ela conseguisse atingir o sucesso. "Um dia, não vais conseguir entrar num café sem me ouvires cantar", cuspiu ela de volta. De regresso a Nova Iorque, sentou-se a uma mesa do Beauty Bar [mistura de bar com salão de beleza) com Brendan Sullivan, infeliz. "Vou fazer uma operação ao nariz", disse. "Vou ter um nariz novo, e vou mudar-me para L. A. , e vou ser enorme. " Ele apelou à razoabilidade dela. Como uma verdadeira nova-iorquina, Gaga nem sequer sabe guiar. "Quero lá saber", respondeu ela. "Tenho o dinheiro. Só quero começar de novo. "Sullivan falara-lhe no quadro de Andy Warhol com dois narizes, Before and After I, antes e depois de uma rinoplastia, com uma palavra que parece "RAPED" (violada) no canto superior esquerdo. Ela foi ao Metropolitan Museum uma tarde e parou diante do quadro. Comprou livros sobre Warhol, o que a ajudou a encontrar um sentido no seu percurso ao mesmo tempo que lhe providenciou um novo vocabulário para falar das suas criações. "Os livros de Andy tornaram-se a bíblia dela", diz Darian Darling, uma amiga. "Ela sublinhava-os com uma caneta. "Para Warhol, a celebridade era uma forma de arte em si mesma, e o irradiar de imagens vazias uma das forças mais importantes. A pessoa por detrás da máscara podia ser tão amável e vulgar quanto Stefani Germanotta - e ainda assim ser enorme. Antes de Warhol, ela estava na categoria genérica de cantora rock. Ele libertou-a para se reinventar, como tantas outras antes dela, para se expandir, para fazer de si mesma um espectáculo. Ao compor uma canção de dança chamada Just dance, Gaga tentou alargar a sua superfície, remodelando-se como uma diva loira da era espacial, uma miúda fabulosa do tempo da Factory. A música era uma batida global para festas - ritmos acelerados, sintetizadores, com uma ética que apelava ao seu coração de hippie. "Gaga e eu acreditamos que o mundo precisa desta música, que ela é uma forma de união", diz RedOne, produtora marroquino-sueca que compôs algumas das canções com Gaga. Não era o tipo de música que a América estava a ouvir naquele momento, mas podia vingar no estrangeiro e a América talvez fosse atrás. Subitamente, as nuvens dissiparam-se. Um dos grandes artistas da Interscope, Akon, um cantor R&B do Senegal com enorme sucesso global, ouviu a canção e perdeu a cabeça com ela. Iovine premiu o botão. Ela começou a trabalhar a sério com uma coreógrafa: "Ouvi dizer que ela era a nova Madonna, portanto disse: "Ok, vamos lá"", diz Laurie Ann Gibson. Ela gravou no estúdio caseiro de Kierszenbaum, o director do A&R da companhia. "Gostei que ela falasse nos arranjos, no estilo e na apresentação do Prince", diz ele. "O interesse no Prince é uma coisa que aparece e desaparece, e há dois anos, era uma coisa rara. Os artistas diziam: "Aqui está o meu álbum e a capa do disco", não falavam de pôr ecrãs em palco. " Ela começou a usar as suas loucas roupas disco em todo o lado. "Ela nunca estava sem o uniforme, se quiser", resume Kierszenbaum. Gaga também deu um mergulho pessoal: o dia em que filmaram o vídeo de Just dance foi o mesmo em que deixou finalmente o namorado. O seu coração podia estar destroçado, mas esta era a sua nova vida. (Os amigos dizem que não se voltou a apaixonar desde então, e que a morte ritualística dos amantes nos seus últimos três vídeos tem a ver com esta separação. )A recentemente libertada Gaga não sentiu que tivesse de exprimir a sua sexualidade de uma forma tipicamente feminina, e tornou-se obcecada pela androginia, pelo visual de Liza Minnelli. Ela adorava a expressão livre dos travestis - queria vestir as mesmas roupas que esses tipos, cobrir-se de purpurina, usar uma peruca. Apesar de não vir da cena nocturna gay, os seus managers começaram a mandá-la para pequenos clubes em todo o país. Gaga já não se limitava a pensar em si mesma como uma superestrela - ela estava a servir de médium do próprio Andy Warhol. Adoptou os seus óculos escuros redondos e as suas perucas e começou a declamar a sua filosofia. "É como se eu tivesse andado a gritar a toda a gente, e agora basta sussurrar e toda a gente se inclina para escutar", diz. "Tive de gritar durante muito tempo porque só me deram cinco minutos, mas agora tenho 15. O Andy disse que só eram precisos 15 minutos [de fama]. " Ela até começou a sua própria Factory, ou a "Haus of Gaga", como gosta de se referir à sua equipa. Para além de Akerlund e de Gibson, a coreógrafa, há o seu manager, Troy Carter, a equipa da stylist Nicola Formichetti, e o seu colaborador principal Matt Williams, um licenciado da Faculdade de Belas-Artes que ela trata por "Dada" (nos últimos anos, eles têm acabado e recomeçado uma ligação amorosa). Em Maio de 2009, depois de ela lançar Paparazzi, um vídeo de sete minutos - atirada do alto da sua mansão por um namorado, ela renasce como o robot de Metropolis de Fritz Lang -, ela tornou-se na mascote mundial da alta-costura. "Gaga tinha algumas peças vintage do Thierry Mugler, mas depois de Paparazzi tudo mudou", diz um antigo membro da Haus. "Aconteceu num abrir e fechar de olhos. Subitamente, todos os estilistas de moda do mundo estavam a mandar-lhe e-mails com propostas. "Como Warhol na Factory, quando Gaga gosta de alguém dá-lhe trabalho; quando, criativamente, já não precisa da pessoa, fecha-lhe a porta. Quando Fusari a processou em 30 milhões em meados de Março, exigindo uma percentagem do merchandising e das vendas discográficas, ela respondeu imediatamente através dos seus advogados, dizendo que ele trabalhara como um agente de emprego independente, apresentando-a a Herbert. "Eu desenvolvi uma artista para crescer com essa artista", diz Fusari, numa voz dorida. Ela mudou o número de telemóvel, e a maioria dos seus amigos já não consegue chegar a ela. "Ela costumava mandar mensagens a toda a Nova Iorque a convidar toda a gente no Lower East Side para os seus espectáculos, e muito poucas pessoas apareciam", diz Sullivan. "E agora, depois do treino vocal, da dieta, do exercício físico, e tudo o resto, toda a gente quer aparecer. Isso chateou-a: "Por que não vieram antes?"" Ele faz uma pausa. "Sabe, assim que ela explodiu, e toda a gente queria um pedaço, deixámos de lhe chamar Gaga. Começámos a tratá-la por Stef outra vez. "Antecipar a quedaEste Verão, Gaga irá percorrer os Estados Unidos com a sua digressão em estádios - é uma das poucas artistas pop que consegue encher um espaço tão grande nos dias de hoje. Gastou imenso dinheiro para atingir esse ponto - a sua digressão tem tido perdas no valor de três milhões de dólares, segundo fontes da indústria musical, porque ela se recusa a ceder em qualquer aspecto do espectáculo. "Gastei todo o adiantamento que recebi pelo meu primeiro álbum na minha primeira digressão", conta. "Tive pianos enormes que são mais caros do que um ano inteiro de renda. " Mas os lucros estão a caminho. "A equipa de Gaga sabe qual é a data exacta este Verão em que a situação se vai inverter", diz uma fonte. Com o seu contrato de 360 graus, Lady Gaga não detém tanto de Lady Gaga quanto se possa imaginar. Basicamente, trata-se de uma joint-venture entre Iovine, o administrador da Universal Music Doug Morris, e o patrão da editora Sony/ATV, Marty Bandier. É uma boa fórmula para o negócio: um grande visual e grandes singles são os novos álbuns-monstro. Por estes dias, Gaga já não fala muito de Warhol - ela está a encarnar completamente o papel que forjou. "Ela quer ser louca, quer fazer statements, criar arte, transmitir o passado, fazer experiências com a performance art, experimentar tudo", diz o fotógrafo David LaChapelle, um colaborador e amigo. "Em Paris, ela reservou quatro horas em quatro dias para visitar museus. Isso não é o que uma estrela pop faz no início da carreira - não quando está numa bolha, quando só existe ela. " Ela ainda é exageradamente dramática - as conversas sobre monstros, a tentativa de antecipar a sua queda cobrindo-se de sangue, a actuação nos Video Music Awards da MTV suspensa no ar por um cabo. "Sinto que, se mostrar o meu fim ao público de uma forma artística, consigo curar a minha própria lenda", explicou recentemente. Recusa a maior parte dos pedidos de entrevista, interessando-se pouco em combater os equívocos sobre a sua obra. "Andy disse que os críticos tinham razão", diz, encolhendo os ombros. É uma ascensão improvável, e um nome improvável, e uma imagem absolutamente irreal. Mas o que é a realidade? "Acredito que qualquer pessoa pode fazer o que eu faço", diz Gaga, abrindo os braços. "Qualquer pessoa pode aceder às partes que nela são fabulosas. Sou apenas uma rapariga de Nova Iorque que resolveu fazer isto, ao fim e ao cabo. Controlem o mundo! De que vale a vida se não o controlarem?"Texto publicado na edição da revista Pública de 18 de Abril de 2010
REFERÊNCIAS:
Discurso perante a Real Academia Sueca: "De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz"
O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. (...)

Discurso perante a Real Academia Sueca: "De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.25
DATA: 2010-06-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher.
TEXTO: Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava. . . No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprias filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver. Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia. . . Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encontraria?"Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga. . . À minha árvore genealógica (perdôe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia. Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H. , protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio. Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundistas, gente permanentemente vigiada pela policia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o começo do século até a Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de Levantado do Chão, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá. Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI que compôs as "Rimas" e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de "Os Lusíadas", que foi um génio poético absoluto, o maior da nossa literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que estivesse à minha medida, nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida todos os autores tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreverem as redondilhas de "Sôbolos rios". . . Entre fidalgos da corte e censores do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará nunca mais a perturbar os sentidos das damas do paço, que eu pus a viver no palco da peça teatro chamada Que farei com este livro?, em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a ter resposta suficiente: "Que fareis com este livro?". Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo. Humildade orgulhosa também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros. . . Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que escondido estava. . . E também se aproxima uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar. . . Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia: "Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu". Que assim seja. De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres de arte poética nas longas horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhasse com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis começou a ser escrito. . . Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - "Atena" era o título - em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis ("Para ser grande sê inteiro/Põe quanto és no mínimo que fazes"), mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e ignorante, que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso este verso cruel: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo". Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das "Odes" alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: "Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Disfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria. . . "O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melancólicas: "Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera". Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem aos menos inimagináveis: só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais. . . Foi então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal. . . ), o romance que então escrevi - Jangada de Pedra- separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, "massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais", a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens. . . Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais géneros e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra- duas mulheres , três homens e um cão - viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros. . . ). Isso lhes basta. Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisões de provas de livros e que se na Jangada de Pedratinha, por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamaria História do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo um livro do mesmo título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um "sim" um "não", subvertendo a autoridade das "verdades históricas". Raimundo Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. Assim: "Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de história, Não sendo propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidactas, mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor é um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor". Escusado será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição da dúvida. Já não era sem tempo. Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. É certo, e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito de uma ilusão de óptica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não se tratava de olhar por trás das páginas do "Novo Testamento" à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família. Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado de Herodes. . . Nesse "Evangelho", escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O "Evangelho" do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer. Jesus, que herdará as sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz do alto da cruz: "Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez", por certo referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético "Evangelho" escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: "A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba". Se o imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi novamente a máscara horrenda da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prémio ou o castigo que mereceram as suas acções na terra, Deus, se em suas decisões se rege por algo parecido à lógica humana, terá de receber no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio. . . Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se "Todos os Nomes". Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos. Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo. Por José SaramagoEstocolmo, 7 de Dezembro de 1998
REFERÊNCIAS:
Moura acusa Cavaco de não querer debater com os outros candidatos
Defensor Moura vê o mandato presidencial como a oportunidade de exercer uma “magistratura de influência cívica e moral”. O candidato à Presidência da República aproveitou a sua presença hoje, no chat online do PÚBLICO, para dizer que “Cavaco Silva está em campanha há 30 anos” e que é evidente que o actual Presidente da República “não quer debater com os adversários”, porque não gosta do “contraditório”. (...)

Moura acusa Cavaco de não querer debater com os outros candidatos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.12
DATA: 2010-12-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Defensor Moura vê o mandato presidencial como a oportunidade de exercer uma “magistratura de influência cívica e moral”. O candidato à Presidência da República aproveitou a sua presença hoje, no chat online do PÚBLICO, para dizer que “Cavaco Silva está em campanha há 30 anos” e que é evidente que o actual Presidente da República “não quer debater com os adversários”, porque não gosta do “contraditório”.
TEXTO: Em resposta a diversos leitores, Defensor Moura disse ainda que gostava de ver Cavaco Silva “sentado num bar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a responder sozinho a este inquérito”, tal como fez o candidato. Questionado sobre o casamento e a adopção por casais homossexuais, o candidato afirmou que votou a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo e que é igualmente a favor da adopção. Afirmou-se contra o aborto, mas “ainda mais contra a criminalização das mulheres que, tantas vezes com sofrimento físico e moral, são impelidas a executá-lo”. A regionalização também esteve presente nas perguntas dos leitores do PÚBLICO. Esta é uma das suas principais bandeiras de campanha e, perante a crise económica que o país atravessa, o deputado socialista considerou que o tema é “urgente”, justamente porque Portugal se defronta com dificuldades e o centralismo já provou a sua “ineficácia”. E lembrou que “os países desenvolvidos estão regionalizados”. Em resposta a um dos leitores sobre a candidatura do também socialista Manuel Alegre, Defensor Moura disse que se tratam de opções bem diferentes para o país, “embora ambas compatíveis com o modelo PS”. Sobre a necessidade de uma revisão constitucional, o candidato propôs que o Presidente da República cumpra um único mandato e insistiu na importância da Declaração Universal dos Direitos dos Animais e na preservação das espécies, como direitos que devem estar constitucionalmente consagrados. Como médico, considerou ainda o SNS – “uma das principais conquistas do regime democrático” –, como “o melhor serviço público do país” e gostaria de ver essa qualidade na justiça, na educação e na agricultura. Apontou o “centralismo, a corrupção e o clientelismo” como sendo os “três cancros da democracia portuguesa”. Crítico relativamente às medidas do Orçamento do Estado para 2011, Moura considerou que as medidas afectam "grupos mais desfavorecidos" e disse que é "incompreensível " não tributar a antecipação de dividendos e "admitir a anómala compensação nos Açores". Segue-se o candidato Fernando Nobre, esta quarta-feira, entre as 10h e as 11h, no PÚBLICO online, para responder em directo às questões dos leitores.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
Marcel Proust e as paixões do narrador
Neste último texto a propósito dos 100 anos de Em Busca do Tempo Perdido, António Mega Ferreira lembra que este é também um romance de amor e de esquecimento. E que a escrita de Proust é uma escrita do desejoAlém de muitas outras coisas, Em Busca do Tempo Perdido é também um romance de amor; ou rigorosamente, um romance sobre o Amor. Marcel, o Narrador inventado por Proust, é um ser amável e amante. Na desencantada visão do autor, que o leitor é levado a partilhar, é tanto menos amável quanto mais amante; e torna-se mais amável quando menos amante. As três grandes paixões do Narrador, que não dispensam inúmeras "... (etc.)

Marcel Proust e as paixões do narrador
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Neste último texto a propósito dos 100 anos de Em Busca do Tempo Perdido, António Mega Ferreira lembra que este é também um romance de amor e de esquecimento. E que a escrita de Proust é uma escrita do desejoAlém de muitas outras coisas, Em Busca do Tempo Perdido é também um romance de amor; ou rigorosamente, um romance sobre o Amor. Marcel, o Narrador inventado por Proust, é um ser amável e amante. Na desencantada visão do autor, que o leitor é levado a partilhar, é tanto menos amável quanto mais amante; e torna-se mais amável quando menos amante. As três grandes paixões do Narrador, que não dispensam inúmeras "fraquezas" mais ou menos erotizadas (uma camponesa apercebida no caminho nos arredores de Balbec, uma empregada de restaurante em Doncières a quem o Narrador paga para consentir as suas carícias, ou a famosa prostituta "Rachel quand du Seigneur"), são, a partir da infância, Gilberte, a filha de Swann e Odette; a duquesa de Guermantes, Oriana; e, por fim, a Albertine de que ouvira falar em Combray, que conhecera em Balbec e que acaba aprisionada no seu apartamento de Paris. A primeira deixa de lhe interessar quando visivelmente o rejeita por afastamento: servira--lhe como iniciadora nos jogos infantis onde se pressentem as primeiras pulsões eróticas, tanto quanto como mediadora para o acesso à casa dos Swann, que era, antes mesmo de mitificar os Guermantes, o horizonte de aspirações sociais do jovem Marcel. A segunda, divinizada pela fantasia barroca do Narrador adolescente, torna-se uma fada destronada quando Marcel passa a frequentar o salão dos Guermantes: o choque da realidade mundana que a envolve desfaz a fantasia, o mito esboroa--se no confronto com a sua representação. Há hoje poucas dúvidas de que Alfred Agostinelli, o motorista que lhe serviu brevemente de secretário, constituiu o ingrediente afectivo que permitiu a Proust compor, em toda a diversidade de efeitos de que a sua escrita era capaz, o romance de amor do Narrador por Albertine, exaustivamente narrado no quinto volume da obra, A Prisioneira. Porém, nem no nome, nem na ambiguidade sexual sugerida por alguns críticos, Alfred pode ser assimilado a Albertine. Menos ainda, tanto quanto sabemos, na tocante docilidade de Albertine, que aceita a sua condição de prisioneira do Narrador, ou, inversamente, na sua reiterada prática da mentira e do disfarce, o que não parece ter acontecido com Agostinelli. Mas as circunstâncias denotam um paralelismo de situações que só pode querer significar que Proust, como em tantas outras ocasiões, se apropriou de um episódio da sua vida para o fazer figurar, por transposição e expansão, no romance que estava a escrever. Em primeiro lugar, porque Proust faz brotar a paixão do Narrador por Albertine de uma reminiscência do passado, tal como o reaparecimento na sua vida de Agostinelli vai irromper como a revelação de uma paixão a que, talvez com exagero, se referirá mais tarde como a maior da sua vida. Intensa, mas presumivelmente não correspondida como tal, a paixão de Proust estava condenada a não durar muito: manteve Agostinelli aperreado durante seis meses no apartamento do Bulevar Haussmann - exactamente o mesmo tempo que Albertine aguenta, no romance, a prisão dourada em que o Narrador a encerra; desdobrou-se em tentativas para o fazer voltar, tal como faz o Narrador, em A Fugitiva; escreveu uma carta em que lhe anunciava a compra de um aeroplano e de um Rolls-Royce - e retoma essa carta (o aeroplano transforma-se em iate), quase ipsis verbis, no romance; enfim, Agostinelli morreu num desastre de avião, em maio de 1914 - e Albertine sai da vida do Narrador porque cai dum cavalo em Combray. As coincidências são demasiadas para o serem simplesmente. Tal como Proust está no Narrador sem o ser verdadeiramente, assim também Agostinelli está em Albertine - mas não é Albertine a não ser como motivo inspirador, e provavelmente apenas depois da sua trágica morte. O "crescimento" de Albertine como personagem maior do romance de Proust vai influenciar retrospectivamente a reescrita e expansão de À Sombra das Raparigas em Flor, que ganha autonomia e acabará por se tornar o segundo volume da obra. Ao mesmo tempo, a eclosão do episódio amoroso vai permitir ao escritor, qual organista tocando simultaneamente diversos teclados, iniciar o trabalho de composição de A Prisioneira e de A Fugitiva, ao mesmo tempo que trabalha em O Lado de Guermantes e refunde substancialmente o seu plano inicial para Sodoma e Gomorra - tudo isto enquanto dura a guerra. Mas o seu método de trabalho (que nunca é linear, relembremos) permite-lhe dominar todos estes teclados com a mesma intensidade de escrita, tornando a estrutura do romance cada vez mais flexível e distendida e a sua harmonização, embora não despida de anacronismos e contradições, verosímil e consistente com a sua ideia fundamental. Não anunciara ele, no primeiro volume, que Gilberte, filha de Swann e de Odette, viria a casar-se com Robert de Saint-Loup? Pois bem, ao iniciarmos a leitura do último volume, O Tempo Reencontrado, aí está Gilberte, já casada, mas nem por isso muito amada, com Robert de Saint-Loup, que fora amigo do Narrador e de quem este entretanto se desgostara por lhe ter descoberto inclinações homossexuais semelhantes às do seu tio, o barão de Charlus. Numa longa nota escrita em novembro de 1915, Proust dá conta dos diversos passos da relação do Narrador com Albertine (incluindo a cena final, em que Françoise anuncia a Marcel que a prisioneira decidiu partir), o que quer dizer que a estrutura de A Prisioneira (e certamente grande parte do texto) já estava definida então. E, na mesma nota, certas citações extraídas de Sodoma e Gomorra mostram que a escrita deste volume já ia bastante adiantada. O Narrador vai construir uma relação ambivalente com Albertine, ora desejando-a, ora aborrecendo-a, em obediência ao "ritmo binário que o amor adopta em todos aqueles que por demais duvidam de si mesmos para acreditar que uma mulher possa alguma vez amá-los, e que também eles possam amá--la verdadeiramente. " O clímax é atingido quando o Narrador arranca a Albertine a admissão de que conhece desde há muito a filha do compositor Vinteuil. Decide então romper com ela; mas, num volte-face próprio de um ser inseguro de si mesmo, possuído pelo ciúme, para impedir que Albertine vá parar aos braços de Mlle. Vinteuil, resolve casar-se com ela. Paris tornar-se-á então a prisão de Albertine. Em A Prisioneira, assistimos à transformação de Albertine, que começara por ser uma rapariguinha estouvada e "atlética" (o adjectivo é de Proust), e se vai tornando, em cativeiro, "uma mulher elegante", mas não frívola: "Lia muito quando estava sozinha e lia para mim quando estava comigo. Tornara-se extremamente inteligente. " E, em consequência, à cristalização do amor de Marcel, que tem formas excêntricas e munificentes de se manifestar, como quando cobre a sua amada com os vestidos inspirados em quadros de Carpaccio e desenhados por Mariano Fortuny, um costureiro de origem veneziana. Em páginas inesquecíveis, observa o sono de Albertine, com uma tão poética e magoada sensibilidade que não deixa de lembrar um quadro pré-rafaelita: ". . . o sono dela realizava em certa medida a possibilidade do amor; a sós, podia pensar nela, mas ela faltava-me, não a possuía. Presente, falava com ela, mas estava demasiado ausente de mim próprio para poder pensar. Quando ela estava a dormir, já não tinha que falar, sabia que já não estava a ser olhado por ela, que já não precisava de viver à superfície de mim mesmo. Ao fechar os olhos, ao perder a consciência, Albertine despira, um após outro, os seus diversos caracteres de humanidade que me haviam decepcionado desde o dia em que a conhecera. Apenas a animava a vida inconsciente dos vegetais, das árvores, uma vida mais diferente da minha, mais alheia, e que, contudo, me pertencia mais. "Porque, acordada, diga o que disser, faça (ou não faça) o que fizer, Albertine é um motivo bastante para incendiar o ciúme do Narrador. O ciúme de Marcel tem o nome de Gomorra, que agora, parece-lhe, alastra a todo o mundo, ao mesmo ritmo e com a mesma enigmática eficácia com que a peste se disseminava, em tempos antigos. A ressonância bíblica do tema de Sodoma e Gomorra encontra aqui motivos concretos (ou como tal imaginados por Marcel) que lhe permitem traçar um cenário de pré-apocalipse e o forçam a guardar Albertine: "Porque o meu prazer de ter Albertine a morar em minha casa era muito menos um prazer positivo que o de ter retirado do mundo, em que todos por sua vez poderiam fruir dela, a rapariga em flor que, se não me dava grande alegria, ao menos dela privava os outro. " Por isto, ou porque acabou por se aperceber de que o Narrador não a amava verdadeiramente, Albertine põe-se em fuga. O Narrador tenta fazê-la regressar. Mas Albertine morre em Combray, mas margens do rio Vivonne, e inicia-se o trabalho de luto, pelo qual Marcel se desliga, com rapidez que a ele próprio surpreende ("o monstro cuja aparição fizera estremecer o meu amor, o esquecimento, acabara efectivamente por devorá-lo, tal como eu pensara"), e não sem algum sentimento de culpa, da memória da sua amada, por cuja morte se sente responsável, como muito antes pela morte da avó: é o tema central de A Fugitiva. A Prisioneira e A Fugitiva constituem, em tempos e com ritmos diferentes, um romance de amor e de esquecimento, de ciúme e de indiferença sucessivos. E, pela sua intenção, vibração psicológica (nunca teremos conhecido melhor o Narrador do que nestas secções do romance), acabam por constituir um eixo fundamental de toda a narrativa. São, também, a preparação do Narrador para a grande etapa final, a que se inicia com a viagem tanto tempo adiada a Veneza, a descida aos infernos proporcionada pela guerra e pela cena no bordel de Jupien em que Marcel observa os jogos masoquistas de Charlus, e, no caminho para a recepção da princesa de Guermantes, a revelação da sua mais íntima vocação: só agora o romance pode começar a ser escrito. Essa epifania tem lugar quase no fim do último volume, O Tempo Reencontrado. Marcel anuncia-nos enfim que vai começar o que Proust está prestes a concluir: a escrita de Em Busca do Tempo Perdido. O que o leitor acaba de ler é como "um Nilo da linguagem, que transborda nas planícies da verdade, para fertilizá-las" (Benjamin); e esse processo de fertilização, a um tempo orgânico e visionário, socorre-se de tudo, das cores, das plantas, do céu e do mar, dos tiques e das taras, dos objectos e dos gestos, dos tecidos e dos trajes, dos aromas e dos sabores, para nos dar uma verdade ainda mais verdadeira, um "hiper-realismo" dos sentidos que nos faz ver mais, ouvir mais, querer mais. A escrita de Proust é uma escrita do desejo. Daí, a sua atracção encantatória, a sua música peculiar.
REFERÊNCIAS:
A viagem do sr. Olhos Grandes ao Japão
Uma semana dá para uma vida inteira a ter vontade de voltar. Vamos por Tóquio, Quioto, Hiroxima, pela natureza de Hakone, pela beleza da ilha de Miyajima, por vislumbres de Osaka. Uma viagem íntima sob o encanto do Japão. (...)

A viagem do sr. Olhos Grandes ao Japão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma semana dá para uma vida inteira a ter vontade de voltar. Vamos por Tóquio, Quioto, Hiroxima, pela natureza de Hakone, pela beleza da ilha de Miyajima, por vislumbres de Osaka. Uma viagem íntima sob o encanto do Japão.
TEXTO: Fiz sushi e meditação, recebi uma lição de vida em Hiroxima, lições de filosofia de um artista, conversei com meninas que pareciam desenhos animados, vi Godzillas e robots a dançar, neóns do tamanho do mundo, gritos de karaoke, pus umas orelhas de coelho. Andei por ruas com milhões, ruelas e bares para seis convivas, cruzei o país em comboios-bala, parei o tempo em jardins zen, flutuei em templos e edifícios, fui rebaptizado como Sr. Olhos Grandes, fiz amigos. Eu vi plantar um clone de uma cerejeira com 400 anos. Tenho que voltar para ver a minha árvore. E se de repente um viajante aterrar em Tóquio por volta do meio-dia vindo doutra ponta do mundo, trazendo no corpo umas 20 horas de voos e aeroportos e um salto de oito horas no seu fuso horário natural? O que fazer? Descansar? Era o que faltava. A minha guia, no seu português aprendido no grande bairro japonês fora do Japão (o da Liberdade, em São Paulo), treme no sorriso e no relógio, que o tempo aqui é mesmo regulado ao segundo. É chegar ao hotel, arregalar os olhos para a cidadela que é a minha casa por duas noites, um dos grandes hotéis da cidade com as suas torres – que afinal são apenas mais duas nesta área de Shinjuku dominada por prédios de tirar o fôlego –, perder-me logo entre elevadores e pisos e os 1500 quartos. Tenho 20 minutos para mudar de roupa, descansar, tomar duche. Preparados?Um pé na rua e Tóquio abalroa-nos de imediato. A exuberância da megametrópole é impactante a cada passo por este bairro onde está a mais movimentada estação de comboios do mundo, uma aventura por si própria – junte-lhe o imenso metropolitano e temos o caos instalado (na nossa cabeça). Os olhos fogem-me para os céus, arranham os prédios, caem-me no chão à procura de espaço para o corpo. “Tóquio vem do futuro”, li algures. Seguimos pelas ruas de Shibuya, por Harajuku, olimpos das compras, tento sobreviver à corrente humana que pulsa pela capital japonesa. É complicado e o jet-lag só complica mais. Mas consigo seguir Naomi para o nosso encontro com umas das maiores embaixadoras do Japão no primeiro “templo” de muitos desta viagem. Este é especial e a religião é outra: chama-se KiddyLand e conheço muito boa gente que passaria de bom grado o resto da semana aqui. São seis andares sob o mote “paraíso dos brinquedos”. Há bonecada, japonesa e americana e etc. , para todos os gostos, mas Hello Kitty é omnipotente e omnipresente. A birra aérea faz-me resistir à sedução da gatinha-menina e fujo da loja a sete pés, cruzando fãs da bonecada, piso a piso, que se exaltam a cada novo personagem, a cada nova roupagem, a cada nova Kitty, até com o Charlie Brown (tenho selfies que provam isto tudo). Como hei-de aprender rapidamente, atrás das grandes avenidas sobrepovoadas há sempre algures, nos interstícios do gigantismo do betão – enquanto um “Big in Japan” continua a tocar-me em loop na cabeça –, umas ruelas para respirar fundo antes de voltar a mergulhar na multidão. “Por aqui, por aqui”, vai-me dizendo a minha nova amiga Makiko, jornalista e auxiliadora de visitantes lost in translation (sim, para a lenda da viagem, ela será a Scarlett deste filme). “Por aqui há uma ruazinha com uma esplanada onde se pode beber um cafezinho e fumar” – atenção fumadores: Tóquio é praticamente toda proibido-fumar, bairros inteiros, em todas as ruas; é preciso encontrar a smoking area ou ir a um bar ou restaurante com espaço de fumos. Cá fora, lá vamos nós, num desfile de prédios de “arquitectura zen”, como me diz Makiko, “uma tendência linda muito actual”, tipo minimal high tech meets zen. São belos, de facto. Além fica Omotesando, zona de modas, grandes marcas, galerias, forças gourmet. A meio da tarde, exércitos de trabalhadores deslizam os fatos mais afinados que me já foram dados a ver e fazem caminho neste caos ordenado, por entre grupos de jovens onde cada subcultura é marcada por uma identidade tão única quanto colectiva – feita de símbolos, roupas e bonequinhos, tatuagens, cortes e cores de cabelo do arco-da-velha. Eles sabem os passos todos, eu é que ando sempre a embater nesta cacofonia, como se estivesse num videogame qualquer, o pacman provavelmente, a tentar sobreviver no labirinto até conseguir devorar tudo o que me seja possível devorar, até devorar o Japão. A calma só vai chegar com uma aula de sushi com o sr. Sushizanmai, na escola Kiyomura Juku – na zona de Tsukiji, onde fica o mais espantoso e movimentado mercado de peixe. Entro com Naomi, Makiko e Junko (também da rede de apoio a jornalistas a precisar de ajuda como eu) para Tsukiji, zona onde está o grande mercado de peixe local e um dos maiores do mundo – eram horas impróprias para visitas nem a agenda o permitiu, mas numa próxima viagem é obrigatório. Ora que melhor zona que esta para um rapaz sem jeito para a cozinha nem gosto especial pelo sushi se tornar um sushimaster pronto-a-servir? Bem-vindos às cozinhas da Kiyomura Juku, a escola gerida por um afamado restaurante, Sushizanmai. E seguem-se mais peixes fatiados (carapau, atum, salmão), para dispor em camadas sobre bolinhas de arroz (nigiri sushi, sublinhe-se). E no fim, enquanto toda a sala – chefe, alunos de um lado para o outro, guias – se riem do meu muito jeito, comemos todos aquele opíparo manjar. E assim nasceu um novo fã de sushi, eu próprio, porque o meu estava uma delícia. Quem diria que o sushi pode saber a orgulho?A noite cai sobre Tóquio e a cidade começa a vociferar em neóns, embora, obviamente, a capital japonesa até dispense a escuridão para acendê-los. É todo o santo dia. Milhões deles, uma poesia visual que nos invade. Ando a catrapiscar entre gigantescos anúncios e ainda hoje sonho com desenhos de luzes, bonecos e caracteres japoneses. Naomi e Makiko vão-me guiando por este caleidoscópio que deixa qualquer português rendido pelo choque contínuo. “E por que anda tanta gente de máscara na boca e nariz?”. “Oh, uns é porque estão gripados, outros porque não querem gripar”. O certo é que é opção de muitos e refira-se que, para a dimensão, Tóquio até tem uma qualidade de ar satisfatória, segundo as medições oficiais. Vamos por Ginza, coração vibrante da riqueza japonesa, sítio fino, milhões pelas ruas, como sempre, os prédios a faiscarem de neóns. Vamos num entra-e-sai de lojas e damos por nós no Dover Street Market, grandes armazéns que albergam luxos de Prada a Vuitton e que são também uma instalação artística. Há ali uma escultura dum grilo gigante a olhar-se no espelho que me vidra. Há vendas e exposições, artes e a fina nata da vanguarda da elite japonesa cool e com muitos ienes na carteira. Para não sentir palpitações, é melhor desviar o olhar dos preços nas etiquetas, é melhor descer à cadeia japonesa Uniqlo, mais em conta, ou subir ao último piso. “É um segredo”, diz-me Makiko. No topo, a céu aberto, um jardim nos ares com um santuário xintoísta, Tenku Jinja, que, embora na localização mais moderna da cidade segue todo os preceitos tradicionais. Um sossego com vista para o desassossego de Tóquio. Respira fundo, desce de novo à terra. Cá em baixo, entramos no fabuloso e exclusivíssimo supermercado, de onde entre cogumelos a centenas de euros e vegetais que nunca os meus olhos tinham visto a preços idem, ibidem, surge uma prendinha doce para mim. Makiko compra-me uma fatia de kasutera, melhor dizendo castella, melhor dizendo o pão-de-ló japonês que deve tudo ao pão-de-ló levado pelos portugueses. E por acaso aqui pela zona fica um dos restaurantes preferidos de Makiko, sim é português (há muitos mais pela cidade e país) e chama-se Manuel (há mais Manuéis ou um Caravela) e até tem fados. Querem melhor final feliz para a primeira noite?Está bem. Entramos no colossal prédio da Nissan, o Nissan Crossing, onde brilham exemplos extraordinários da indústria automóvel japonesa. Algures por um dos pisos, uma diversão maravilhosa: um portal de realidade virtual permite-me, com os óculos especiais, conduzir um Nissan pelas curvas de Monza. Quem diria que o jet-lag faria de mim tão bom condutor?Depois desta adrenalina e de novo mergulho na noite de Tóquio, enquanto os meus 14 milhões de vizinhos parecem ainda estar todos na rua, conduzo-me até ao meu hotel-cidadela. Entre HelloKittys, sushis, hightechs, neóns, a imparável vida desta cidade, a minha cabeça é um farol. Foi longo o primeiro dia, naturalmente, e termina comigo a olhar das janelas do meu quarto no 33º andar para a vizinhança da frente, um portento do poder local. É o prédio do governo metropolitano. Sobe a 243 metros e duas torres. Num longo dia de corridas para o passado e para o futuro, eis aqui os sinais do futuro que se segue. A decoração deste titã são apenas dois cartazes onde se lê Tóquio 2020, sob anéis olímpicos. O futuro está à porta. Reerguida das cinzas, destruída pelas bombas da 2ª Guerra Mundial, esta cidade, toda ela novíssima, é deslumbrante nas suas idiossincrasias. E por que nós portugueses nos vamos dando tão bem com os japoneses, pergunto-me? Desconheço a resposta, mas com mais língua ou menos língua (o inglês é, ao contrário do que se possa pensar, pouco frequente), há um qualquer elo secular. Será porque chegamos ao Japão já lá vão quase cinco séculos? Está bem que foi particularmente para cristianizar e negociar (foco: espingardas), é um facto. Mas há uma relação qualquer de afecto aqui, garanto-vos, e isto deixou heranças na língua, na gastronomia, na cultura. “Porque toda esta gente do Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversável”, já escrevia Fernão Mendes Pinto na sua seminal Peregrinação (lembra-te de fazer sempre uma vénia bem inclinada a cada cumprimento e despedida) – só é pena a maioria falar naturalmente japonês. Mas o segundo dia é passado pela mão de Masatoshi Watanabe, que fala português, espanhol e catalão e aprendeu isto tudo na também minha Barcelona. Isto vem a propósito daqueles momentos inesquecíveis que cada um de nós tem nas suas viagens. Sabem aquela de um português e de um japonês num comboio-bala a uns 300km/hora (sendo que o extraordinário Shinkansen pode acelerar ainda mais) pelo Japão fora a cantarem o hino da Catalunha num catalão quase perfeito? Pois. É o que vai acontecer mais logo. Por agora, Luís e Watanabe vão pela Tóquio mais tradicional, pelos vestígios do que sobrou. O programa aqui é mais convencional, com obrigatória e abençoada paragem nos jardins do Palácio Imperial (que só se pode espreitar em ocasiões especiais), onde reside a família imperial, outrora o castelo da era Edo, tempo do poder dos shoguns até estes serem superados pelo imperador, na altura em que a antiga capital, Quioto, foi trocada pela nova, Tóquio, em meados do séc. XIX. Além, as cerejeiras em série, que na Primavera são um espectáculo sakura por si só. Aqui, um parque imenso, pulmão de Tóquio, por onde espiamos pontes, jardins e jardineiros, sumptuosas portas de entrada, casas de guardas – e até, por entre a folhagem, nós e demais turistas nos entretemos a ver à distância os agentes em vestes tradicionais nos seus treinos marciais, no caso, kendo, quis-nos parecer pelo tak-tak tak-tak das espadas de madeira. É um passeio demorado e prazenteiro que abre o apetite, por isso, para interligar a História imperial e actual, vamos agora por Nagatacho, no centro político do país - zona do Parlamento e da residência do primeiro-ministro - e por muito do imaginário do Japão à mesa. Porque saltamos logo a seguir para um restaurante de cinema, o Kurosawa. Sim, precisamente como o grande Akira, que tanto Japão deu ao mundo nos seus filmes – e que no meu caso é muito do meu olhar para este país. Sapatos à porta (como em todos os locais que usam tatami, o tapete japonês), casa rústica de madeira que parece saída das películas, salinhas quase íntimas, este Kurosawa, ligado à família e equipa do realizador, presta homenagem ao mestre, confesso apaixonado pela gastronomia. Ora aqui, cercados por grupos de profissionais a almoçar (por acaso nem dei por turistas, “vêm aqui muitos políticos e famosos”, segreda-me Watanabe), passados corredores decorados com posters e memorabilia de filmes do criador (olha os Sete Samurais, o Ran, o Yojimbo) é tempo para deleite, soba (massa japonesa), shabu shabu (um cozido, porco, vaca), sopa de miso ou muito especialmente de tempura, mais uma herança lusa, tipo peixinhos da horta, aqui em edições vegetais ou de mariscos. Duas bolas de perfeito gelado de chá verde selam o filme do almoço, um chá serve de brinde ao sr. Kurosawa que à saída deste cenário me observa com um semisorriso de fotografia e óculos escuros e a quem rapto um envelope com uma dúzia de belos postais com imagens de storyboards dos seus clássicos. A sua bênção, mestre. A tarde será passada noutra estranha mistura de tempos, da religião ao universo anime (a animação japonesa que mudou para sempre a nossa infância e a forma como vemos o Japão), melhor espelho duas faces do Japão é difícil. Bem tentaram os portugueses e particularmente São Francisco Xavier no séc. XVI, convencer os japoneses que o cristianismo é que era. O budismo e o xintoísmo venceram mas a pregação do jesuíta deixou marcas. A ilha do sol nascente, um dos poucos países asiáticos a escapar ao colonialismo europeu – o que lhe terá dado força anímica, bélica e espiritual para tornar-se uma força colonizadora e imperialista – optou cedo pelo budismo e pelo seu particular culto do xintoísmo, embora inicialmente tenha recebido bem e guardado boas memórias e ensinamentos de Xavier e companhia – “São Francisco de Xavier é ainda hoje em dia mais conhecido no Japão que o Cristiano Ronaldo”, hão-de garantir-me, se bem que, na minha viagem, o jesuíta tenha perdido com o futebolista 2-0 o jogo da fama: zero referências para Xavier, um belo par de anúncios de Ronaldo. As duas religiões dominantes convivem no dia-a-dia, beberam e bebem uma da outra. O xintoísmo é uma crença animista praticada no país desde a Antiguidade, uma devoção à Natureza, aos antepassados, a muitos (muitos) deuses, que abarca o tudo e o todo – lembremos aqui que este moderníssimo país superindustrializado com mais de 127 milhões de pessoas, um dos maiores e com maior densidade populacional do mundo, é sistematicamente afectado por catástrofe naturais, por terramotos e tufões. O budismo japonês, repartido por várias correntes e seitas, convive diariamente com a prática xintoísta, “o caminho dos deuses”, tanto nas casas, como nas ruas, como nos templos das duas fés, que frequentemente são vizinhos. Deuses e espíritos são kami. E kami pode ser qualquer coisa (“temos oito milhões de deuses”, diz-me Watanabe). É no centro dessa união de fés que estamos agora, em Asakusa, bairro tradicional onde ainda se sente o passado e afluem milhares de turistas. Porque aqui está o imponente templo budista Sensoji, o mais antigo da capital, que remonta ao séc. VII. Toda a gente quer fotografar-se na bela porta de Kaminarimon, um ícone com os seus pilares decorados, divindades e gigantesca lanterna vermelha. Às portas do templo e do pagode, reconstruídos após a Segunda Guerra Mundial, crentes e visitantes aglomeram-se pela velha rua comercial de Nakamise, centro de peregrinação dos fiéis dos souvenirs e dos petiscos – há-os para todos os gostos e vale a pena também dar um salto às lojas das redondezas por Shin-Nakamise e Kappabashi. Ali pelo caminho, um painel de Omikuji dita-nos o destino: é meter uma moedinha, abanar um tubo, receber um número, retirar da respectiva gaveta o papelinho. A mim, sai-me uma “sorte regular” e fico a saber que “se for um bom guerreiro, poderia conquistar e controlar um país inteiro com apenas uma flecha” (espero que seja uma metáfora, que o teclado é mais forte que a flecha). E que “é boa altura para começar uma viagem”. Se a sorte lhe sair má, faça um nó com o papelinho e deixe-o ali amarrado, “para imobilizar os maus espíritos”. Eu trouxe a minha, que os deuses sabem muito. E sabem até conviver: mesmo ao lado do templo, por onde agora vejo a brincar um menino japonês vestido de Super-Homem (os EUA estão por todo lado), está o santuário xintoísta de Asakusa, muito mais calmo e sóbrio nos seus mais de três séculos. Passeiam-se grupos de meninas em quimonos coloridos, vistosos, floridos, visão rara nos dias de hoje. “Turistas”, explica-me Watanabe, “quase todos os que vires de quimono são turistas que alugam a fatiota para se divertirem e fotografarem, os quimonos dos locais são muito discretos e de cores sóbrias”. Outro Japão espera-nos em Akihabara, bairro feérico para onde se encaminham todos os nerds, fãs das tecnologias e electrónica, todos os otakus – que centram a sua vida no culto obsessivo de algo, especialmente da manga e do anime. Ainda para mais muitos deles vestidos como os personagens que veneram. Meninas vestidas de heroínas anime, meninos à dragon ball, é um sem-fim de animação. Esta é a Cidade Eléctrica. Prédios com neóns? Aqui há neóns com prédios. Rolam vídeos, sopram desenhos animados, rodopiam antropomorfias e efeitos especiais. Luzes, câmaras, animação! Os meus olhos fazem zappings imparáveis. Cumprimento o Super-Mário, espreito a Sega, bancas de revistas, faíscam salas de videojogos, máquinas, lojas de gadgets e toda a panóplia tecnológica imaginável. “É o paraíso da fantasia”, resume Watanabe. Ora para habitar tanta faiscante fantasia, onde nos poderemos sentar? Talvez num dos muitos cafés-fantasia do bairro, como o Maidreamin Heaven's Gate, onde tudo fofinho, querido, cute, moe moe, e as meninas se vestem de criadas “inocentes”. Cá fora, a cidade parece-me agora saída do Blade Runner. Para logo a seguir, parecer-me dos tempos dos samurais, mal entramos no Sengoku Buyuden, um izakaya (a taberna japonesa), por Shinjuku. O que é natural, é mesmo um restaurante que homenageia os guerreiros, entre armaduras e reservados com pinturas que imitam as dos seus castelos e retiros. É neste cenário de filmes (mesmo) que relaxamos entre sashimis e espetadas (eu vi ali carne de cavalo na ementa?). Umas cervejas e uns sakes preparam-nos para o acontecimento seguinte, que bem vamos precisar de uns copos. Sentemo-nos numa “terra dos sonhos”, num “paraíso da inocência”, no Maidreamin Heaven's Gate, portal onde entras num desenho animado. Ah, e as maids, que parecem todas ter 10 ou 12 anos (são maiores de 18, isso é certo), vestem-se de criadas antigas à francesa, dir-se-ia, com ligeiros retoques anime. As comidas e bebidas parecem todas ter sabores e decorações infantis. O corrupio de gente e barulho por Kabukicho, tradicional bairro da luz vermelha de Shinjuku, é uma obra de arte e hoje em dia centro de atracção para turistas, hipsters, viciados em doses várias da má vida (infelizmente, não tivemos agenda para inspeccionar os verdadeiros red ligth spots…). Por ali, um ovni cintila numa musiqueta repetida à exaustão e em luzes popcirco. É o Robot Restaurant que, apesar do nome, é afamado pelo dito show e não pela comida (aliás nem comemos), top das atracções para turistas pelo seu espectáculo maluco com robots, bailarinos e músicos. A parede da entrada cintila, barafusta, mostra já robôs, efeitos de luzes e visuais. Na casa à frente vai-se buscar os bilhetes reservados (a “bom” preço: cerca de 70 euros, comprados online). Entra-se então para o prédio deste projecto que terá custado milhões e milhões de euros – fala-se em mais de 100 milhões, faz parte da lenda –, partilhado com outras atracções e bares mais, quis-nos parecer, “aluzvermelhados”. Dentro do Robot Restaurant, a festa continua numa sala, montra-aperitivo do que aí vem: toda ela brilha em espelhos e espécies de vitrais com dragões e raparigas. É quase preciso pôr os óculos de sol. Há shows a cada hora e quase cem por cento são turistas – o meu guia apontou uns três ou quatro japoneses numas centenas de pessoas. Quando é dado o sinal, a clientela começa a descer escadas e mais escadas até atingir uma cave gigantesca onde o palco é uma passagem central e os espectadores ficam encadeirados dos dois lados, com paredes-vídeo a lançarem miríades de imagens. Compreendam-nos, acabamos de levar com uma droga forte e ninguém consegue raciocinar. “É capaz de ser o melhor pior espectáculo do mundo”, digo eu, que sou um poeta. “É isso! Sim! Sim!”. Riem-se e vão à sua vida, ainda cambaleando pela rua, soltando um último grito: “Mas quanto mais bebíamos melhor ia ficando o show!”. Depois disto, por favor, dêem-me um sake ou um whisky japonês (do melhor do mundo) num qualquer barzinho das ruelas da Golden Gai (cidade dourada, por sinal), dois dedos de conversa (pode ser no Kodoji, bar de fotógrafos) e estou arrumado. Esta Tóquio é uma confusão maravilhosa e um jogo de cintura contínuo entre a alta tecnologia e a tradição enraizada nos corpos. Enquanto sigo Makiko que, no seu vestido vermelho, rola a sua bicicleta por ruelas e pela noite, sei bem que esta Tóquio de filme ainda me vai dar insónias. E saudades. No Kodoji, vizinho de centenas de espacinhos íntimos e semelhantes pelas ruelas e becos da noctívaga Gai, entro seguindo Makiko por corredores e escadas estreitinhas. É um dos bares mais pequenos do mundo numa das maiores cidades do mundo. Devem caber umas seis pessoas bem contadas. Mas as suas estantes, balcão, pessoas e paredes, tornam-no um dos maiores bares do mundo. Porque é o bar duma comunidade de fotógrafos e nas paredes está uma exposição de fotografias de Natureza por outro Japão. Ao balcão está Aya Okabe. Por sinal, claro está, fotógrafa. E que lançou um livro com uma capa que não me sai dos olhos, “Appare”, onde um rapaz seminu (de calções de sumo, uns mawashi) segura uma grande melancia nas mãos enquanto uma árvore cresce atrás dele. Durante toda esta semana outonal é o calor que impera neste nosso Japão. Depois de Tóquio, precisamos de paz e frescura. E a escolha é Hakone, no parque natural de Fuji-Hakone-Izu, caldeira em monte vulcânico (nota: activo, hoje calmo, há notificações diárias). De vez em quando vislumbro o vizinho Monte Fuji, mas hoje está enevoado e só o pressinto, ainda assim, de vez em quando, catrapisco esse deus natural. O romântico comboio Romance Car (é mesmo romântico, bendito) leva-nos pelo campo – acompanhados de muitos grupos de senhoras idosas a papaguear, afinal vamos para as termas – até à verdura montanhosa de Hakone em hora e meia. E deixa-nos à beira do rio Haya-kawa, onde me perco a ver uma garça pesqueira nas pedras a tentar apanhar um peixinho na corrente. Parece o rapaz do Karate Kid em posição de ataque. Temos montanhas, grande lago, fontes termais a pulular por toda a região, complexos hoteleiros baseados nas águas, ryokans (os tradicionais albergues para dormir em futons), banhos públicos, bons ares (tirando o cheirinho a enxofre, particularmente no vale vulcânico, beleza infernal e fumarenta). Um descanso. Vivida a lufa-lufa toquiota, acredite, vai saber muito bem pelo menos um dia de paz em Hakone. Ora a nossa serena agenda passa por passeio de autocarrozinho a serpentar curvas acima até à Hamamatsuya (Hakone-machi), área de artesãos e seus ateliers, onde está uma metáfora da região: marchetaria, artesanato de origem demarcada. A primeira paragem dá-nos a calma da oficina do sr. Ichiro, onde brilham caixas e caixinhas secretas com muitos segredos…A arte chama-se Yosegi Zaiku, uma arte de trabalhar a madeira com embutidos, mosaicos em madeira inacreditáveis incluindo – para mim, a atracção maior – aquelas famosas caixinhas secretas, cada uma com o seu segredo para abrir, tipo cubo mágico (pequena, a minha custou 50 euros). Trouxe uma que por mais que tente ainda estou por conseguir abri-la, e eu que vi e ouvi o artesão, o mestre Ichiro Ishikawa, descendente já em sétima geração da mesma família a dominar a arte, a explicar-me, cercado de pedacinhos e folhas de madeira, tudo sobre a arte e os segredos das caixas, obras que demoram meses e meses de paciência. Ah, turista!Ainda com o som da madeira a ecoar nos tímpanos, vamos embalados pela brisa e pelo arvoredo, spirited away, animados até à origem do curso do rio, o lago Ashinoko, na parte ocidental da caldeira do vulcão. Espera-nos um cruzeiro breve em barco turístico que cruza o lago. O cruzeiro imita um veleiro (em kitsch puro) algo entre descobridores e piratas – há estátuas de capitães e à Barba Negra por aqui, os turistas disparam selfies como se fossem a Mona Lisa. Mas há que dizer que as vistas do lago – mesmo que agora em cenário enublado –, margens verdes e montanhas, templos e casinhas, são admiráveis. Chegados à margem, o ideal seria apanhar o teleférico, que vemos ali pelos ares, para arregalar ainda mais os olhos. Mas está em manutenção. Vamos de autocarro até avistarmos o vale vulcânico de Owakudani. Aposto que em dia limpo a paisagem é ainda mais impressionante. Num dia como hoje, sob um céu de chumbo, cortina de nuvens, fumos vulcânicos a escalarem o vale, só nos resta a imaginação até onde a vista alcança, a dois palmos de distância. E provar os, esses sim, estranhos ovos negros (kuro tamago) locais. São cozidos nos fornos do vulcão e têm direito a um teleférico que os carrega até às “cozinhas”, proibidas para seres humanos. Caixas vão pelos ares, desaparecem nas nuvens e nos fumos e voltam tempos depois com os ovos cozidos e pretos. Ovos das furnas, digamos. O enxofre q. b. fará bem à saúde? É que dizem que comer os ovos dá-nos sete anos extra de vida. Já vos direi um dia destes. Isto é toda uma arte por si própria. A próxima – a que chegamos no delicioso comboio de montanha – Hakone Tozan, vai de Hakone-Yumoto a Gora num passeio cénico – é mais convencional e mescla artes de jardins com as da Natureza e com as da mão humana. No Hakone Open Air Museum integram-se a céu aberto mais de uma centena de grandes esculturas, de Miró a Rodin e Henry Moore, incluindo uma galeria de Picasso. Vais passeando e surge-te uma Vénus, uma gigantona miróana, um ícaro a subir aos céus por entre as árvores, um rosto tamanho casa caído num jardim. Toda uma experiência orgânica nascida graças a um controverso Balsemão/Berardo japonês, o sr. Shikanai, já falecido, milionário que fundou o gigantesco grupo media Fuji Sankei e se tornou um megacoleccionador de arte. O passeio é visceralmente gratificante. “Todos os dias passeio hora e meia logo de manhãzinha, por trabalho e prazer. Todos os dias descubro uma perspectiva, algo novo e admirável”, sorri-me Tsujii Yuri, responsável do museu – o grupo tem outro espaço ao ar livre em Nagano e outro museu em Tóquio. “A colecção é muito grande”, diz-me Tsujii. Acredito. Aqui mesmo em Hakone, a cada temporada muda a Natureza (a região esgota para ver as cores outonais ou primaveris) e podem mudar também obras e exposições. Com o museu a fechar, ao lusco-fusco, há algo de fantasmagórico e belo em tudo isto. À noite, adormeço num quarto com grandes janelões que só deixam ver árvores. Ao longe oiço as águas correrem. Uma bonança que antecipa a chegada àquela que é a (minha) meca desta odisseia japonesa, a eterna Quioto. Confissão íntima: sempre sonhei ver Quioto. Por isso é com uma alegria infantil que salto do comboio-bala e me sinto em casa. Coisas do mundo, dos homens e dos deuses – e, não em vão, estou certo, o que vivi em Quioto ainda vai criar asas no futuro. Antiga capital, Quioto (perdoem o cliché) tem um charme irresistível, entre o zen global, os templos e natureza, os bairros de dimensão humana. Esse charme, e importância histórica e artística mundiais, tê-la-á salvo de danos maiores na 2GM. Os nossos primeiros passos na cidade são para a modernidade (no caso, o cool hotel New Miyako). Os seguintes são para a intemporalidade. No bairro de Kamigyo-ku, pelas ruas estreitinhas, casinhas baixas, ambiente de aldeiazinha, catrefada de fios a cortar os céus, oficinas e frutarias, mercearias e lojinhas, há um Japão que vive na Tondaya, velha casa e património, onde se pode entrar pela História adentro e fazer parte de actividades icónicas, como a venerada cerimónia de chá. Sacralizados pela cerimónia, estamos prontos para cirandar pela Quioto eterna, abençoada pelas águas e cercada por montanhas, que começa a mostrar a sua exuberância natural de telas outonais, um avermelhado ali, uma folhagem a amareceler ali. Hai. Em cada canto parece haver uma nova beleza e um Património da Humanidade – e em cada canto há um turista, fazemos todos parte da multidão, Ainda assim, tirando as grandes atracções, dos templos idílicos aos jardins zen, nem é muito difícil encontrar recantos pacatos. Na Tondaya, Ayano, 23 anos, recebe-nos no seu quimono segunda pele. Tondaya é uma casa tradicional, por gerações criadora de quimonos, hoje Património Cultural Nacional. Construída no séc. XIX é um primor de salas e tatamis, jardins zen e poços, santuários budista e xintoísta, materiais e madeiras nobres, pedra e bambu, majestosa sobriedade. Como é o caso, apesar de concorrido, do Castelo de Nijo, epicentro da cidade tão grande que permite escapar, aqui e ali, às massas. É que Quioto é a cidade mais popular do Japão para os turistas, com mais de 50 milhões de visitantes anuais para uma cidade de milhão e meio de habitantes. Sendo que, aliás, a política de crescimento do turismo local é promessa lapidar dos governantes, em particular do presidente da câmara. Parecia um dia de Verão do séc. XVII, quando andávamos a passear por este complexo nascido nesse mítico período dos senhores da guerra: foi a residência do primeiro shogun do período Edo, depois palácio imperial, sempre uma das mostras mais belas dos tempos feudais. Do Castelo de Nijo, verde mundo, séculos de história nos contemplam em 28 hectares. Passadas as suas muralhas de pedra e os seus imponentes portões, admira-se o palácio de Ninomaru, feito de cinco edifícios separados, em cipreste, interligados por rangentes corredores a que chamam “soalho rouxinol” e que têm a sua melodia – portas deslizantes, tectos e paredes de decorações e pinturas que são obras-primas. Conquistam-se os seus infindáveis jardins e lago, catrapisca-se o icónico vestígio do palácio de Honmaru, contornam-se o lago e os infindáveis jardins de miríades de folhagens e árvores, de pinheiros a ameixeiras e ginkgo e centenas de cerejeiras (sempresempre as cerejeiras). E até se podem de súbito avistar monges e figuras de poder a passearem-se por Nijo, cruzando os tempos. Estávamos nós a deambular quando percebemos que num jardim estavam reunidos autoridades locais, monges e sacerdotes, figuras presumivelmente importantes (e jornalistas). No centro, uma covinha e um monte de terra, com pás à espera, uma mesinha para um qualquer ritual, um microfone. “Vão plantar um clone de uma árvore histórica”, descobre-me Watabe. Retrato do Japão: em 1598, o daimô Hideyoshi, senhor feudal que uniu o país mas que também é reflexo de uma época de disputas e sague, plantou uma cerejeira essencial no templo budista de Daigo-ji. Morreria pouco depois, tendo sido sucedido por um inimigo da família, o shogun Ieyasu. Hideyoshi é o homem que fundou o castelo de Nijo, onde estamos. Se Nijo é uma das maiores atracções da cidade, a seguinte é até o seu ícone. Duas palavras: Pavilhão Dourado. É o monumento que se segue e o postal mais célebre de Quioto, esplendor de beleza originador de obsessões como a que Yukio Mishima – um homem com outras tantas obsessões e ideais que o levariam ao mais célebre e marcante dos suicídios, o harakiri dos samurais – compôs para um monge budista no livro com o nome do monumento. Este Kinkakuji (ou Rokuonji) é templo zen renascido, coberto a folha dourada, com uma fénix dourada a coroá-lo, circundado por um lago-espelho, envolto por exuberantes jardins e caminhos. Os elementos unem-se para a harmonia; os olhos, a alma, o corpo, rendem-se à beleza. Retiro do shogun Yoshimitsu, vindo do séc. XIV, como acontece pela História e por muitos monumentos do país, ardeu e voltou a ser reconstruído (e outra vez e outra vez), sendo que cada piso tem um estilo arquitectónico próprio. O que estamos a ver data de trabalhos da década de 1950. Quem diria, hein? Faltam as palavras, há que ver para crer, enquanto olhamos para as estátuas eternas dos seus poderes, Buda e Yoshimitsu. O neto deste último, Yoshimasa, noutra época conturbada, inspirou-se no avô e deu-nos outra formosura que veremos só amanhã (mas que merece entrar já na história), o Ginkaku-ji, que por contraponto, além de ficar na parte leste da cidade, no sopé do monte Tsukimachi (algo como monte de esperar a Lua), é o Pavilhão Prateado. Agora repare-se que o Ginkaku-ji – apesar de oferecer belas vistas para a cidade e garantir passeios por jardins que são uma lição histórica de arquitectura de paisagem – não tem prata nenhuma. Surge-nos assim, a meio da tarde, entre o castanho acinzentado, com um cone de areia construído há séculos como pináculo para o luar. É que é precisamente a lua, no caso, a artista maior: o pavilhão resplandece em fulgurante prateado quando o satélite sobe pelo monte e lança a sua luz sobre Ginkaku-ji. Falta-nos a lua (há que voltar, já sei) mas facilmente apreendemos o poder, o mistério e arte de tudo isto. No recinto está também um essencial salão de chá: é considerado o auge da perfeição de tais espaços e as suas medidas, linhas, desenho e tudo o mais são o padrão para as salas cerimoniais. Por aqui e ali, vou espiando muitos turistas, até casalinhos de mão dada, vestidos de quimono tradicional. E pelas ruas, de vez em quando, uma senhora japonesa mostra, indiferente, a elegância viva do traje. O quimono é um mundo e uma arte, por isso mesmo é o mote da nossa próxima paragem, onde nos aguardam surpresas e inesperados afectos. Venha daí a Arashiyama, nos arredores da urbe, ambiente de vila protegida pela montanha homónima, cenário idílico em redor do rio Katsura, cruzado por uma icónica ponte de madeira, Togetsukyo (algo como ponte para a lua). Ele é floresta, é água, é templos – o zen Tenryuji fica aqui, tal como a floresta de bambu de Sagano, locais imperdíveis que iremos perder em nome do imprevisto – é calma. E casas tradicionais, aquelas obras-primas de madeira e delicadeza, como a de Yusai Okuda, pintor e mestre de uma redescoberta arte de pintar quimonos, tecidos e telas, um artista que já representou o Japão até numa célebre exposição no Louvre de Paris. Descendente de gerações de especialistas no tingir de tecidos, Yusai Okuda, respeitando o xintoísmo de que vive imbuído, foi mais longe que os seus antepassados. Com 66 anos, magrinho, estatura mediana, só vos digo que é imponente na quietude da sua voz, no conhecimento, na filosofia e no humor que invade a sala através das nuvens dos nossos cigarros. A sua arte explica-se em segundos, mas é preciso ver, as palavras naufragam: basicamente, as obras pintadas e tingidas de Yusai parecem de uma determinada cor mas estão vivas e mudam conforme a luz. Dois dias para Quioto é nada, isto precisava de uma vida. Mas vá, tenho um dia mais, vou imaginando que atrás do tempo tempo vem, hei-de voltar com tempo. E, agora, tenho uma guia em inglês que me dará uma lição contínua de História em movimento, arte, quotidiano e detalhes da cidade e do país. Com Hiroko Kara, faço o percurso do turista tradicional local por alguns dos sítios indispensáveis no mapa leste de Quioto. Depois do naturalismo de Yusai à noite, a manhã começa prazenteira e budista no templo de Nanzenji, protegido pelas florestas da montanha de Higashiyama, tendo à porta os pilares de um curioso aqueduto moderno (bom, do séc. XIX). Este é um coração zen do rito Rinzai, complexo de templos e jardins, desde o séc. XIII. Como sempre, guerras e martírios destruíram partes, entretanto reconstruídas. Chegamos cedinho, felizmente há pouca gente, que o que vamos ver dispensa multidões. Passado o grande portal de Sanmon, é deambular. Templos, salas e pinturas são admiráveis mas a minha meca é numa espécie de clímax espiritual: cheguei aos jardins zen dos meus sonhos. As palavras tomam forma de árvores, pedra, água, musgo, terra, gravilha a ondular, a Natureza humana e divina em substância de jardins zen, repletos de simbolismo e perspectivas. Hiroko Kara sabe tudo sobre isto e coloca-me nos sítios exactos para a visão precisa. Ondulo os olhos pelos detalhes e continuo a encantar-me ao som repetitivo de uma cana de bambu que ora bate na bica de uma fonte e se enche de água ora descai, cheia, e se esvazia batendo na pedra. Ploc, silêncio, ploc. E repete. Isto é sagrado, isto é ciência. O passeio leva-nos depois por Okazaki, e logo a começar por um contraponto xintoísta, o santuário Heian (o antigo nome de Quioto). Tem pouco mais de um século mas é um achado, dedicado às almas do primeiro e último imperadores na cidade (Kammu, Komei). Passas o enorme portal torii e abre-se espaço por todo o lado. É dia de passeio para muitas famílias, que trazem aos deuses os seus filhos, vestidos de forma tradicional. Sim, é fofinho. E real e religioso. Respeitamos os ritos e, após uma passagem pelo vizinho (e moderno) Miyako Messe, com o Centro de Artesanato de Quioto – que é museu e loja e vale mesmo a pena para ter de uma vez só uma ideia de tudo o que estas mãos fazem, da caligrafia à madeira –, mudamos de filosofia. Vamos de passeio pelo Passeio do Filósofo, em Higashiyama, por entre cerejeiras (na Primavera isto é, garante-me Hiroko, uma beleza) e pelas margens do canal. O caminho chama-se assim porque era usado para meditar-a-andar pelo filósofo Nishida Kitaro, um dos mais importantes pensadores do séc. XX japonês, um homem que analisava as filosofias ocidentais e orientais para encontrar caminhos. Esse entrecruzamento é vivido por mim e por muitos turistas (ocidentais, sim, muitos), que agora repisamos os passos de Kitaro por este belo cenário tornado atracção turística. Portanto, logicamente, pontuado por lojas em série. O sítio mais pacífico da zona está mesmo a dois passos e é um passeio particular: um cemitério revela-se por entre o arvoredo da montanha, num respeito de pedra e símbolos. Para ganhar forças logo a seguir, udon: uns noodles rápidos e deliciosos ao balcão de um sítio de referência e de bom agouro, o restaurante Omen, especialista em massas. Depois, para sobremesa, cruzamos Quioto para doçuras especiais. E portuguesas. À tarde, ainda teremos tempo para mais passeios, pelo Pavilhão Prateado e pelo templo de Kiyomizu-dera, um apuro budista em vários edifícios num complexo que remonta ao séc. VIII e se eleva em madeira por entre as árvores e jardins, cataratas e santuários, onde se vislumbram águas com poderes para dar sorte e vida. As vistas desde Kiyomizu-dera, assinale-se, são belíssimas. Em volta, ruas cheias até ao tutano de lojas e turistas. É seguir pelas ladeiras e escadinhas de Ninenzaka e Sannenzaka. Ali abaixo, vemos os riquexós puxados por rapazes com corpos de aço, hoje em dia ímanes turísticos. “Ei, isso não cansa?”, pergunto eu a Yuta Sado, 32 anos, ar de 20, desportivo fato ergonómico e botas Tabi nos pés, botas em que o dedo grande do pé está separados dos outros (nota mental: pôr na lista de compras um par destes engenhosos cascos). “Não, habituas-te, até dá saúde”. “Mas há-de chegar uma idade que já não dá…”. “Pelo contrário”, contrapõe ele, férreo, “é para sempre”. Ainda assim, o que ele preferia ser era guia turístico, o que de certo modo já é, convenhamos, dá é mais corpo ao manifesto. Uma fuga doce deixou-me o dia mais luso: fugi ao programa japonês para ir a Portugal. Porque ali pelo centro fica outro reino, o da pastelaria Castella do Paulo. Juro que nem queria acreditar, mas quando o pastelinho entrou quase todo de uma vez só na minha boca rendi-me: é bom, bom, bom, é pastel de nata, é suave, cremoso e estaladiço, é português, é delicioso, derrete-se na boca em Quioto como se em Portugal. Verdade seja dita que pastéis de nata à portuguesa há muitos pelo Japão, até há mais casas de mote luso pelo país mas, desculpem-me, esta é especial. Esta nasceu em Lisboa, onde acabaria por fechar portas e mudar-se de armas e bagagens, de donos e doçarias, para Quioto. Quando chego à pastelaria e vejo a bandeira portuguesa a ondular por cima da porta por entre dois candeeiros de rua dos nossos, não resisto, confesso, a sentir aquele orgulho. Que se há-de fazer? Nós somos assim – e ainda mais no Japão, onde Portugal faz parte da História e da lenda, até com algumas boas recordações. Daqui é um salto até outro bairro mitológico, Gion, a terra das gueixas. Estas muitas vezes incompreendidas artistas do entretenimento continuam de saúde, muito graças, actualmente, ao turismo (e a obras como Memórias de uma Gueixa, que mantém a lenda viva e trazem aqui milhares e a cenários como o templo de Fushimi Inari Taisha). “Actualmente, há umas 200 gueixas – geiko – e 70 aprendizes, as maiko”, conta-me Hiroko. Espiamos pelas janelas as casas tradicionais de madeira, as casas de chá, os espaços das vidas das gueixas, as suas escolas, ruelas e travessas que albergam um fascínio irresistível. Variações das artes do entretenimento e de outras tradições japonesas estão todas no espectáculo que nos espera, no Gion Corner, sala de espectáculos a que acorrem maioritariamente os turistas para, por uma hora, apreciarem sete (sete!) quadros artísticos. Aos meus olhos, uma cerimónia do chá, uma sessão de harpa koto, até de arranjo de flores (kado), música dos tempos da corte Gagaku, teatro cómico vetusto (kyogen), a dança elegante kyo-mai das gueixas de Gion, o teatro de bonecas (bunraku). Uma hora de imersão rápida. Ideal para aperitivo do jantar, um luxo num banquete sagrado chamado Kaiseki, com direito à visita de uma futura gueixa. Enquanto volto a acelerar no comboio-bala, agora rumo a Hiroxima, é inevitável que as memórias dolorosas da bomba nos acompanhem. Para distrair-me a mente, compro mangas (gigantes, centenas de páginas cada revista), dos quais, naturalmente, não percebo uma palavra, mas vou admirando lutadores de sumos, paixões pueris, aventuras de animais, labirintos urbanos e deuses enquanto o Japão moderno se pinta numa tela a alta velocidade na minha janela. Chove em Hiroxima quando chego com a minha guia, Yasuko Noguchi. É um dia cinzento e lacrimejante. Houve que me perguntasse, já em Portugal, se a cidade não estava ainda “meio destruída”. Realmente o Japão é muito longe. A resposta é, pouco niponicamente, um rotundo não. É uma cidade viva e vibrante. Visito-a pela memória mas sinto-lhe essa vida a cada passo. Nada se esquece mas a vida continua, apesar desses letais momentos de há sete décadas, quando a cidade e Nagasaki sofreram bombardeamentos atómicos na 2GM. Chegamos até a tempo de uma celebração mundial de vida e sobrevivência: o almoço. Primeira paragem, Okonomimura, um prédio que é um paraíso do okonomiyaki, estilo tradicional de comida rápida em pequenos recantos e onde a mesa central para todos é uma chapa quente na qual o chefe faz uma espécie de deliciosas panquecas, com vegetais, ovo frito, massas e o que mais vier à rede. Este é um almoço até baptismal, porque foi aqui que fui repabtizado graças à simpatia esfuziante da dona (e dos restantes clientes): Me-me san, algo como Senhor Olhos Grandes. A madrinha foi a senhora Hisashi, que, aos 82 anos, com o marido, dá comida e boa disposição ao seu pequeno restaurante que não passa de uma mesa-chapa-quente redonda e que tem o nome do filho, notoriamente o orgulho da família, Hiro Chan, “é professor! professor!”. A mãe olha para mim e vai daí: “Olhem para esta cara linda, de bebé grande, olhem para estes olhos, grandes, grandes, lindos, me-me san, senhor olhos grandes”, traduziu-me a minha guia, rindo-se a bom rir, juntamente com os demais comensais (aliás todo o almoço foi uma festa familiar). Há que dizer que comparando com os cidadãos japoneses (e com praticamente todo o resto do mundo) os meus olhos são grandes. Agora, Me-me san forever. Se esperávamos só melancolias em Hiroxima, estávamos muito enganados. Houve tempo até para mais alegrias, entre passeio bucólico pelos jardins e “castelo” reconstruído como museu, em brincadeiras com samurais em versão pop a actuar para as fotos, a cruzar a cidade de eléctrico e a ver templos e museus, a entrar num hotel-cápsula e a ver os prédios high-tech ou a saborear a boa vida nesta cidade no delta do rio Ota, cruzada veneziamente por canais, bebendo uma cerveja numa esplanada ribeirinha. Ao jantar, mesmo, numa outra casa tradicional, uma izakaya, a saborear a especialidade de uma carne de vaca Wagyu (uma das mais celebradas do mundo), por nós grelhada em chapa e a sorrir perante a surpresa de na carta haver um vinho alentejano, um Porco Tinto de seu nome, com que brindamos ao caos que é o mundo e a vida em geral. Sim, o nosso dia nesta Hiroxima levantada do chão, embora cinzento e chuvoso, não é feito de guerra. É feito de paz. Mas, sim, o passeio central do dia, esse foi mais doloroso. Fomos pelos locais atómicos, epicentro de todas as visitas. Pelos espaços da memória, pela ponte em T que serviu de alvo à bomba – que matou mais de 80 mil pessoas com sequelas e mais mortes por anos fora de muitos mais milhares. Pelo espaços e vistas da Cúpula da Bomba Atómica, Genbaku, antigo pavilhão de feiras e exposições comerciais que, embora descarnado, se manteve de pé após a bomba, com a sua cúpula esvaziada a erguer-se nos céus, o único e maior prédio a ficar de pé na zona. Todos os que estavam dentro dele morreram, a estrutura ficou. Como um corpo derretido cujo esqueleto permanece altivo. Por todo o território do Memorial e Museu da Paz, onde a cada passo, estátua, monumento, sino, chama ardente, somos lembrados do martírio mas também da esperança de que não volte a acontecer. Pela cidade, cada passo nosso traz essa memória. E o medo nuclear continua bem presente, como sabemos – até por acidente, como o recente caso da central nuclear de Fukushima veio lembrar ao Japão e ao mundo. “Frágil, sinto-me frágil. Nós achamos sempre que somos fortes, parece que é sempre tudo para sempre. Mas depois isto acontece e tudo acaba, tudo desaparece. A beleza é destruída de repente. O ser humano não é muito forte. Acabei de sair do museu e o que sinto é isso, fragilidade. Temos que nos unir para que isto nunca mais aconteça no mundo. (Rina Arai, 16 anos)Big in Japan? Não, sinto-me muito pequeno enquanto oiço Rina. Ela, como nós, acaba de sair do Museu e Memorial da Paz, as expressões do rosto da minha guia japonesa denotam uma mescla de surpresa e emoção. Eu observo as duas enquanto as minhas perguntas são traduzidas para japonês e as respostas chegam daquele pequeno corpo em fato colegial que só deixa o movimento das mãos, do pescoço e do rosto pesado ao ar livre. É com um nó na garganta que a minha tradutora me entrega as frases de Rina e é com o mesmo nó na garganta que as oiço e aponto. Rina, 16 anos, estudante do secundário em Kasukabe – a quase mil quilómetros daqui, perto de Tóquio -, acaba de fazer uma visita de estudo com os seus colegas ao enorme complexo que regista, reconstrói e mostra, imagem a imagem, o apocalipse nuclear de Hiroxima a 6 de Agosto de 1945, cidade-mártir com direito a uma entrada fatal na História como a primeira cidade do mundo a ser arrasada por uma bomba atómica. “Frágil, sinto-me frágil. Nós achamos sempre que somos fortes, parece que é sempre tudo para sempre. Mas depois isto acontece e tudo acaba, tudo desaparece. A beleza é destruída de repente. O ser humano não é muito forte. Acabei de sair do museu e o que sinto é isso, fragilidade. Temos que nos unir para que isto nunca mais aconteça no mundo. Manhã cedo, dia a clarear, um comboio e um ferry vão pôr-nos em menos de hora e meia algures no Mar Interior do Japão, mar que separa três das ilhas japonesas. Aqui ficamos na paz dos anjos, em Miyajima – na verdade, oficialmente é Itsukushima, mas toda a gente a conhece pelo outro nome, que significa a ilha do santuário. A bela vista desde o barco explica logo porquê: uma gigante porta, torii, resplandece ao sol no meio das águas, onde, lá atrás, parece flutuar um santuário (ilusão mas realista: é palafita). Não é uma porta qualquer, é sagrada e, acima de tudo é um dos postais ilustrados de referência do país. À chegada, alguns dos seus melhores anfitriões vêm logo receber-nos ao cais. Os veados. Dezenas e dezenas de veados vivem livremente pela peregrinante ilha. Quem é que consegue resistir a isto?Pode dormir-se na ilha em cenário romântico, saborear as especialidades (enguias e ostras, entre elas), passear pelos campos e montanha, fazer a volta dos santuários, que são muitos. Do portal de toda a ilha, o santuário Itsukushima, ao templo budista de Daisho-in, um espaço repleto de vida, onde até se pode aprender a meditar. Pensamento: meditar abre o apetite. Com espaço para uma paragem posterior numa banquinha com pastéis de enguias, rumamos pelas ruas repletas de lojas e restaurantes seguindo as ostras, acepipe local afamado. No Yakigaki-no-Hayashi, devoro estes moluscos que sempre odiei. E, desta feita adorei. Deliciosas, suaves, vinham no prato com uma miniatura da porta sagrada da ilha. Abençoadas ostras. A nossa peregrinação, com direito a festinhas a cada veado que vejo, aflui no grande santuário. Xintoísta, ali está ele a flutuar e até nós parecemos caminhar pelas águas ao longo desta enorme construção em madeira sobre estacas. Os caminhos estão molhados, sinal de que a maré já por ali passou hoje. Há quem tire selfies ininterruptamente e há quem reze recatadamente numa cerimónia privada com um sacerdote. Ao fundo, no meio das águas, a omnipresente porta. Ali ao lado, eu faço as minhas próprias rezas, calças arregaçadas até aos joelhos, vou pela areia e entro pelo mar adentro. Uma viagem é sempre um novo baptismo, certo?É com pena de não ficar a relaxar pela ilha – onde a noite, dizem-me, é peculiarmente pacífica e meditativa – que partimos para o ponto final da aventura japonesa. Osaka acolhe-nos com a mesma trepidação de Tóquio. Confesso que não fazia ideia mas com mais de 2, 5 milhões numa área urbana (a segunda maior, depois da capital) de 20 milhões, é natural que isto volte a faiscar gente e neóns por todo o lado. Na foz do rio Yodo, a cidade parece-me o ponto ideal para o fim, embora, tendo chegado ao anoitecer, já só dê mesmo para vislumbrar luzes e vibrações nocturnas. Passeamos pelo centro do entretenimento, pela área de Namba (Minami), por avenidas que cruzam canais e mais prédios-néon, ruelas da boa e da má vida, admiramos a fachada do velho teatro Shochikuza – um templo do teatro kabuki, arte obrigatória para admirar em próxima visita, enervamo-nos num prédio de centenas de máquinas de jogo tipo slot machines (mas com umas bolinhas que redundam em 10 euros perdidos numa festarola ruidosa), paramos numa tasca para comer petiscos como se não houvesse amanhã (a menos de um euro cada, um sem-fim de variações de tempuras, vegetais e peixinhos, camarões e companhia) bem regados de cerveja. Para sentir toda a Osaka, metrópole da arquitectura contemporânea, agora iluminada como árvore de Natal ao longo da baía, vamos fazer as despedidas num ícone especial, que daqui a poucas horas, pela madrugada, começa o calvário do regresso, que se prolongará por quase 24h, com direito às 8h de, neste caso, regresso ao passado. Vamos despedir-nos via Jardim Flutuante. O Floating Garden Observatory do Umeda Sky Building (na área de Umeda, precisamente) é uma obra extraordinária num dos edifícios mais extraordinários do mundo. São duas torres envidraçadas de 40 andares, ligadas por pontes e nos topos por uma plataforma, que sobem a 173 metros sobre o coração económico de Osaka, projectado por um dos grandes arquitectos do país, Hiroshi Hara. O seu jardim flutuante panorâmico permite-nos, por um chão de pedrinhas e luzes fosforescentes, com recantos para fotografias amorosas e perfeitas, circular em redor do topo como se caminhássemos pelos ares. Aos nossos olhos, é Osaka by night 360º até aonde a vista alcança. Daqui parece que vemos toda a cidade. Para mim, um horizonte sobrepontuado de luzes de onde parece que vejo todo o meu Japão com estes olhos grandes que o céu há-de comer. (…)Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. p. s. – «Chieko descobriu as violetas que floresciam no velho tronco de carvalho. “Floriram também este ano. ” Com estas palavras foi ao encontro da doce Primavera. (Yasunari Kawabata, Kyoto [1962])», citação de abertura do novíssimo livro de valter hugo mãe, “Homens Imprudentemente Poéticos”, passado no Japão. E por nipónica coincidência o livro que comecei a ler assim que voltei desta viagem. É um livro onde não surge a palavra Não. "A palavra Não sublinha um traço impróprio no Japão, porque difere da relação cerimoniosa que estabelecem uns com os outros. Os japoneses evitam dizer por norma Não e optam por uma expressão para essa negativa que, traduzida à letra, terá o significado de "isso é difícil", disse o escritor esta semana a João Céu e Silva, no DN, descobridor da particularidade literária. "Essa negativa intermédia que os japoneses usam acaba por ser a solicitação do entendimento do outro sem que a conversa atinja o seu limite. Coisa que entre nós acontece muitas vezes, levando com o Não o diálogo ao limite". (Lembro que os “não” citados neste artigo chegaram praticamente todos via tradução). No Público, um vídeo leva-nos ao Japão, e a uma "floresta dos suicídos", central para o livro, com valter hugo. Sim, é o livro que aconselho, a quem chegou até aqui, para continuar a viagem. A Fugas viajou a convite do Turismo do Japão, Japan National Tourism Organization - (o organismo não tem gabinete em Portugal: está sob a alçada de Paris – info@tourisme-japon. fr)O nosso voo foi feito via Lisboa – Londres – Tóquio (British Airways 2h35 + 11h35), Osaka-Tóquio-Paris-Lisboa (JAL - Japan Airlines 1h+12h35, Air France 2h30). Mas há muitas variações (de preços a companhias e horários – lembre-se da diferença horária, GMT +8h/9h) à escolha, embora, infelizmente, nenhum voo directo de Portugal. As companhias oferecem rotas variadas e preços entre cerca de 600 e 800 euros (pesquisa base para Tóquio na Primavera), da British à Air France/KLM, Lufthansa, ANA ou JAL, da Turkish (via Istambul) à Emirates (via Dubai). O motor skyscanner. com pode ajudar. Nas agências, um programa de sete noites pelo país custa a partir de 2000/2500 euros. É à escolha: à volta da Primavera, para o deslumbre das ameixeiras (segunda quinzena Fevereiro) e especialmente cerejeiras (sakura) e do desabrochar da Natureza (a arte da contemplação chama-se hanami)? No Outono pelas belas tonalidades da vegetação e folhagem, (admirar a paisagem outonal também tem nome: momijigari)? Ou prefere as neves? Qualquer altura é boa, não se esqueça de verificar os calendários de festividades. Em Junho, chuvas (calor e muita humidade). De Julho a Outubro pode ser época de tufões em algumas áreas. Keio Plaza Hotel: cidadela de 1500 quartos luxuosa perto da estação de Shinjuku, um mundo e com restauração e pequeno-almoço de primeira. 2-2-1 Nishi-Shinjuku, Shinjuku-Ku. 160-8330 - Tóquio. Tel:+81 3 3344 0111. Preços: desde cerca de 250 euros. www. keioplaza. comRestaurante Kurosawa: 2-7-9 Nagatacho, Chiyoda-ku. 104-0045 – Tóquio. (estação: Tameike-Sanno). Tel: +81 3 35449638. Preços: 5000. www. 9638. net/nagata/eng_osakaOutras informaçõesMoeda: 1 euro = 113, 29 ienes (JPY)Preços indicativos (em ienes)Café: 100/150 (mas pode ir a 400) Cerveja: 500 Pequeno-almoço: 350/500 Almoço: entre 700/1000 a 2000 Jantar: 3000/4000 Hotelaria: em Tóquio 7000/10000, Quioto é mais caro, Hiroxima 5000/6000. Um hostel ficará em redor dos 20/30 euros. Metro: 160 a 210 (conforme cidade) Passe um dia: 600 Comboio bala (Shinkansen): Hiroxima-Quioto 2000, Tokyo-Osaka: 14000 Passe para transportes em Hakone: 4000 (Hakone free pass - http://www. odakyu. jp/english) Tabaco: 450 Táxi: 500/700 (2-3 km) Do aeroporto (Tóquio): autocarro 3000, Táxi 30000 Museus: 500/2000Sites e guiasO país é um manancial de atracções a cada passo e a diversidade é garantida. Além dos parcos exemplos vividos no texto, há muito mais. Nestes sites pode recolher muitas ideias e informações. Lonely Planet, Rough Guides ou Frommers têm também bons guias de viagens. Embaixada de Portugal Turismo do Japão: JNTO, (JNTO em português Brasil), dicas oficiais para um Japão mais económico Guia: Japan Travel Guia: Japan Guide Tóquio - site oficial Quioto - site oficial, Quioto Travel - guia, Inside Quioto - guia Hiroxima - site oficial Hakone - site oficial Osaka - site oficialTrês livros para companhiaO Japão é um lugar estranho. (Wrong about Japan). Peter Carey (2005), trad. Carlos Vaz Marques. Col. Literatura de Viagem, ed. Tinta da China (2010). Lost Japan Last Glimpse of Beautiful Japan. Alex Kerr (1993), ed. Lonely Planet / Penguin Books (2015). Sushi Bar – Nós e os japoneses. Eduardo Kol de Carvalho. Ed. Tágide (2005)10 Expressões japonesasBom dia – Ohayoo (gozai masu) Boa tarde – Kon nitiwa Boa noite – Konbanwa Adeus – Sayonara Obrigado – Arigatoo (ou sumimassen), doomo arigatoo Sim – Hai Não – Iie Com licença – Sumimassen Desculpe – Gomen nassai (ou sumimassen, domoo sumimassen) Por favor - Onegai shimasu10 CostumesSapatos: descalçar em qualquer sítio com tatami (boas meias sempre, portanto) Reverência: inclinar cabeça (“15 graus”, segundo meu amigo Hiro) em cada cumprimento e despedida e várias vezes se for preciso Táxis: largue a porta do táxi, ela abre e fecha automaticamente e é controlada pelo motorista Filas: Nem se atreva a furar ou posicionar mal na fila, incluindo no metro ou comboio (escolha a porta, ponha-se na bicha) Filas em andamento: nas escadas rolantes atenção: ponha-se à direita em Tóquio, à esquerda em Osaka Fumar: apenas nos locais com dístico smoking área, nem pense deitar um cigarro para o chão Comida: se lhe oferecerem comida, prove sempre, nem que seja um bocadinho Cartões-de-visita: se os tem, leve-os, é uma obsessão nacional: receba-os com as duas mãos, detenha-se a lê-los, entregue o seu com as duas mãos Pagar:ponha o dinheiro nas bandejinhas indicadas, não fica bem entregar em mão Condução: é à esquerda, à esquerda!AgradecimentosEste trabalho deve muito ao auxílio à preparação de Ikuko Nagao (Turismo do Japão); a Makiko Segawa e Junko Yamada (JFJN); à paciência e desenvoltura (e traduções) dos guias Naomi Kimura, Masatoshi Watanabe, Hiroko Kara e Yasuko Noguchi; e, muito especialmente, ao apoio (antes, durante e depois), de Carla B. Ribeiro, Susana Veiga e Hironori Ando.
REFERÊNCIAS:
Old Spice, o cheiro e o frasco que guarda os anos 70 e 80
Um aftershave resumiu uma visão do masculino a partir da prateleira da casa-de-banho. Tornou-se sinónimo de conservadorismo — ou será de conforto? Renasce mas continua a cheirar a homem, a anúncio com surfistas e ópera. Cheira a pai. Na segunda série Objectos (quase) Obsoletos olhamos para o que foi substituído, eliminado ou transformado nas casas portuguesas nas últimas décadas. (...)

Old Spice, o cheiro e o frasco que guarda os anos 70 e 80
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um aftershave resumiu uma visão do masculino a partir da prateleira da casa-de-banho. Tornou-se sinónimo de conservadorismo — ou será de conforto? Renasce mas continua a cheirar a homem, a anúncio com surfistas e ópera. Cheira a pai. Na segunda série Objectos (quase) Obsoletos olhamos para o que foi substituído, eliminado ou transformado nas casas portuguesas nas últimas décadas.
TEXTO: Quando se menciona o Old Spice, a resposta varia. “Carmina Burana!”, e começa o trautear de O Fortuna, da cantata de Carl Orff que marcou a publicidade do famoso aftershave nos anos 1980. “Smell like a man, man”, papagueia-se da campanha que o ressuscitou no mercado dos EUA e no YouTube do mundo. Ou lá vem a frase que encerrava a publicidade em qualquer país, “the mark of man”. É de homem, o Old Spice, um frasco leitoso e emblemático que vaporizava as casas e os homens do Portugal das últimas décadas do século XX. Descreve os anos 1970, de Serge Gainsbourg a O Tubarão, e finca-se nos anos 1980. No fundo, “é o perfume de uma geração”, como postula o perfumista Lourenço Lucena. É, para muitos, sinónimo de “pai”. A nove mil quilómetros de Portugal, Adam Tschorn escreve sobre o frasco de Old Spice do pai que guardou após a sua morte. O cenário caseiro era o mesmo que em qualquer casa de banho portuguesa de há três, quatro, cinco décadas. Um frasco de Old Spice, uma lâmina de barbear robusta, um pincel de pêlo. Aquele frasco de loiça em forma de bóia, nascido há precisamente 80 anos numa empresa que começou por fazer um Old Spice destinado a mulheres, guardava em si o aftershave transversal. A colónia Old Spice seguia o mesmo caminho. Em Los Angeles ou em Lisboa, ou numa aldeia da Covilhã, era paisagem caseira. “As recordações do meu pai tornaram-se ainda mais fortes, deixadas a flutuar por um frasco vintage — e ainda meio cheio — de Old Spice”, escreve Tschorn no Los Angeles Times sobre um frasco com 50 ou 60 anos que mereceu uma crónica no último Dia do Pai. Umas gerações mais novo que Tschorn e que o seu pai, o fotógrafo beirão Marco Gil resumia afectuosamente o seu progenitor numa crónica no P3 sobre a memória e os sentidos: “O meu pai é isso e umas peúgas cinzentas de algodão com quase tanto borboto como tecido, é também Old Spice e uma camisa de flanela só para os domingos”. Old Spice é um cheiro e um objecto, e tinha um lugar tão central nos hábitos portugueses que com os anos se tornou também num instrumento para recuar no tempo. Ou para descrever quem ficou preso nele. Outra resposta quando se fala do Old Spice, criado por Albert Hauck em 1938 para a Shulton Company e que desde 1990 pertence à gigante Proctor & Gamble, pode ser um olhar inquisitivo e uma ideia vaga do que representou de facto na época. Vende-se há 80 anos mas o clímax da sua relação com a cultura foi há décadas. Apesar de uma bem-sucedida campanha de relançamento em 2010/11, e de se manter no mercado com outra retórica, para quem viveu a era Old Spice ele também pode cheirar a conformismo. Como quando “às cinco e meia uma invasão de Old Spice anuncia o despejo de dezenas de funcionários públicos com tendências conservadoras”, como descreve Valério Romão no seu livro Dez Razões para Aspirar a Ser Gato (2015). Ou quando é usado pelo cronista José Diogo Quintela como um adereço para recuperar Salazar nos tempos da austeridade: “É ir então ao Vimieiro e desencovar o que sobra do tirano, borrifá-lo com Old Spice e pô-lo em contacto com a troika”, atirava. Foi nas décadas Old Spice que Lourenço Lucena viveu, como recorda, as suas “primeiras experiências olfactivas”. Hoje, “a dimensão do mercado é bem maior do que há 40 ou 50 anos”, contextualiza ao PÚBLICO. É um nez, um nariz profissional, um compositor de perfumes e o único português membro da restrita Société Française des Perfumeurs. Grato pelas memórias, não as trocaria pelo momento actual, “muitíssimo mais interessante do que há 30 ou 40 anos, no tempo em que o Old Spice e Aqua Velva tinham a sua hegemonia”. Um anúncio português da concorrente do Old Spice, datado de 1966, intrigava-se: “Há ‘qualquer coisa’ naquele homem: ‘Aqua Velva!’”, respondia a mesma publicidade sobre o rosto de uma mulher perspicaz envolto pelas mãos de um homem. O anúncio era para ele — e a aplicação do aftershave era, garantia-se, sinónimo de “um dia. . . ou uma noite. . . de sucesso”. De Aqua Velva ao Drakkar Noir nascido já em 1982, as mensagens destes perfumes acessíveis e aftershaves imprescindíveis eram claras. O homem era assertivo, o seu público — feminino — ficava rendido. Nos anos 1980, o Old Spice era vendido para o homem à séria, que arreia um cavalo num instante ou surfa ondas de quatro metros, “para quem gosta de um desafio… ao sucesso” como dizia o anúncio de 1987 que passava na RTP. O objectivo era sempre esse, o sucesso. Esse homem todo poderoso até dá a volta ao planeta num veleiro — em 2000, o iate que assinalou a circum-navegação de Sebastião Elcano e Fernão de Magalhães chamava-se precisamente Old Spice. O Old Spice terá sido “dos primeiros perfumes ditos para o grande consumidor — e na época era mais fácil vender mais aftershaves do que perfumes. Era um aftershave com um aroma muito característico, muito fresco. A fórmula clássica é uma composição marinha com notas aquáticas frescas e notas aromáticas bastante evidentes”, recorda Lourenço Lucena. Era o que “se procurava nesse segmento na época — perfumes muito frescos, com notas de madeira bastante masculinas, o vetiver, as madeiras aromáticas como o cedro, mesmo o sândalo. Porque os perfumes masculinos eram muito masculinos”, no sentido mais convencional. Evoca outros perfumes coevos como o Aramis ou o Azzaro, “muito amadeirados, muito aromáticos, um aromático denso, masculino, com uma personalidade masculina vincada — chegava e sentia-se que estava a chegar”. Era um cheiro acessível e forte, um cheiro para todo o serviço. Steven Spielberg que o diga. Quando pôs Roy Scheider num barco em Tubarão (1975) a arranjar isco para atrair o predador do filme que mudou o cinema, a personagem do chefe Brody encharcou um pano em Old Spice para se proteger com o mítico aroma, um escudo olfactivo contra o cheiro aviltante do balde onde vasculhava. O realizador voltaria a confirmar o frasco com um navio azul e letras vermelhas como ícone dos anos 1970 e 80 quando, explorando o seu habitual tema dos pais ausentes, os meninos Mike e Elliott cheiram, saudosos, as camisas dos pais cada vez mais distantes em E. T. - O Extra-Terrestre (1982). “Old Spice”, inspira Mike. O objectivo de Serge Gainsbourg era diferente. Internado em 1973 com o primeiro dos seus dois enfartes, a primeira coisa que o poeta da canção francesa pediu à mulher, Jane Birkin, para ter no hospital foi o seu frasco de Old Spice. Como ela recordou à Vanity Fair, achou que “ele estava a tornar-se muito caprichoso” com tais pedidos e vaidades, mas afinal o que Gainsbourg queria era camuflar o cheiro dos cigarros que continuaria a fumar no hospital. Hoje, e sobretudo depois do seu relançamento em 2010 com uma campanha forte e premiada em Cannes e nos Emmys que espalhou o musculado Isaiah Mustafa e o ainda mais trabalhado Terry Crews pelas televisões e pela Internet, o Old Spice está em franca recuperação. Antes dessa campanha, revistas especializadas como a Ad Age escreviam que “a Old Spice está a esfumar-se na história”, depois dela tinha o canal mais popular no YouTube. Em Portugal, e como disse ao PÚBLICO a gestora de marca da Unibrands Teresa Coelho, “é uma das marcas mais conceituadas para o público masculino” e o seu aftershave, que foi mudando de fórmula, ganhando declinações, nova embalagem e frasco, é este ano o aftershave com maior crescimento de vendas. “Oscila entre a 2. ª e a 3. ª posição na categoria” e “tem aproximadamente 10% de quota de mercado”, estando “presente na generalidade das lojas de grande consumo que representam cerca de 15 mil pontos de venda em Portugal”, diz a empresa de gestão e distribuição de marcas, que tem a Old Spice no seu portefólio. Nos hipermercados, lá está ele, com o vermelho a dominar agora a sua identidade. Lourenço Lucena recorda outro contraste com o passado: “Era um produto que encontrávamos sobretudo nas drogarias, em espaços que também se perderam, outra coisa que também se tem vindo a evaporar com os novos modelos de grande distribuição. Encontrávamos aguarrás, petróleo ou os sabões para lavar as escadas mas também produtos de toilette, como era hábito denominá-los”. Ainda se encontra nas drogarias e lojas de utilidades das cidades, da Rua do Benformoso lisboeta às grandes superfícies de todo o país, porque a sua história não é de um desaparecimento. O seu mercado, e o seu homem, é que mudaram. “Era um tempo em que as escolhas eram muito mais limitadas e isso levava a que existisse uma massificação maior dos hábitos. Hoje, com a multiplicidade de perfumes, marcas e ofertas a individualidade ganhou outra importância. Hoje é muito mais fácil termos uma identidade olfactiva própria, que não faça lembrar o nosso pai, o nosso amigo ou o nosso colega de trabalho”, congratula-se Lucena, também CEO da agência criativa Blug. Neste negócio milionário, muitas marcas clássicas foram recuperadas, os fundos de investimento entraram no sector e marcas mais estáticas perderam terreno. “O fim dessa hegemonia vem com a modernização e evolução da indústria da perfumaria nos últimos 30 anos”, explica o perfumista. Outras recuperaram, também graças a campanhas como a do regresso da Old Spice, que se dirigia sobretudo às mulheres apresentando “the man your man could smell like” — “o homem a que podia cheirar o seu homem”. Do clássico sedutor à Corto Maltese dos anos 1960 e 70 passou-se ao surfista corajoso para yuppie ver nos anos 1980, e os navios transformaram-se em iates elegantes. Marcas como a Axe entraram no mercado dos sedutores olfactivos, homens cheirosos nos transportes públicos e nas ruas publicitárias, ímanes de mulheres indefesas. Portugal assistiu ao relançamento da Old Spice em 2011 com a campanha “Homem que é Homem”, que além de ter Terry Crews e Isaiah Mustafa na Internet pôs por escrito que “Homem que é homem não usa roupa interior. Usa cueca” ou “Homem que é homem não apanha fruta. Abana a árvore” nos jornais. A masculinidade redefiniu-se e além de mais individual, ri-se da sua hipérbole. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não há pai para a marca do pai, parecem querer dizer os publicitários, apostados no exagero nos anos da metrossexualidade, da pansexualidade, dos lenhadores sensíveis e das barbas rijas mas meticulosamente tratadas. Entre o passado e o presente, num mundo heteronormativo onde outros modos de vida tentam afirmar-se igualitariamente, a sua abordagem de hipermasculinidade não tem sido isenta de críticas. Em altura de campanhas de Natal, Miguel Esteves Cardoso defendia há uns anos que a melhor água-de-colónia masculina é a Old Spice, embora o seu aroma tenha mudado um pouco. Mas lamentava: “No Natal de 2013 precipitou uma crise de masculinidade. O Old Spice, antigamente, era o after-shave de quem não pensava nessas coisas. Hoje, pelos vistos, precisa de reafirmar, ridiculamente, essa masculinidade”. As mudanças do Old Spice tornaram um frasco branco clássico em desodorizantes ou gel de banho vermelhos com nomes novos como "Bearglove" ou "Wolfthorn". Em paralelo, os coleccionadores guardam e trocam frascos vintage no mercado da nostalgia. A sua hegemonia material e olfactiva é uma história de outros tempos. Por isso se diz “o Old Spice cheira a memória”, como escreveu Alan Stokes no jornal australiano Sydney Morning Herald. A memória, o pai, um objecto ou um cheiro que nos leva a casa são constantes de que precisamos. Que por vezes procuramos para viver. Las Vegas, 2010. Glenn Harrington, de 44 anos, vivia nos túneis daquela cidade norte-americana e o Los Angeles Times acompanha-o na recordação de quem deixou para trás quando finalmente saiu das ruas. “Começou a listar as coisas que os seus antigos vizinhos não tinham. Um frigorífico. Desodorizante Old Spice. Comida quente, duche quente, café quente. O sentimento de dignidade que acompanha tudo isto. ”
REFERÊNCIAS:
Tecnologia à flor da pele com Arca
O que é que Björk, Kanye West e FKA Twigs têm em comum? Um produtor de 24 anos, natural da Venezuela, chamado Alexandro Ghersi, ou seja Arca, que se estreia agora com o álbum Xen. (...)

Tecnologia à flor da pele com Arca
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que é que Björk, Kanye West e FKA Twigs têm em comum? Um produtor de 24 anos, natural da Venezuela, chamado Alexandro Ghersi, ou seja Arca, que se estreia agora com o álbum Xen.
TEXTO: Alguns dos temas mais aventureiros de “Yeezus”, o último álbum do rapper Kanye West, têm o seu toque, e as canções de EP2 de FKA Twigs, o disco do ano passado da cantora britânica que antecipava o seu estoiro em 2014 com o álbum LP1, eram produzidas por ele. Também a sempre atenta Björk deu por ele e convidou-o para co-produzir o seu nono e novo álbum. No entanto não é crível que muitas pessoas saibam o seu nome. Acontece com alguns dos melhores produtores. Mas Alejandro Ghersi, nascido na Venezuela, de 24 anos, mais conhecido por Arca, não vai ficar na sombra. E para o provar aí está a assinar o primeiro álbum a solo, Xen. Até aqui era conhecido por providenciar sonoridades bizarras e futuristas a figuras que se movimentam no centro do mercado, ou com potencial para o virem a fazer – para além dos mencionados, poder-se-ia falar também da cantora americana Kelela ou de Mykki Blanco. Dito assim, poder-se-ia imaginar alguém com um estilo especial capaz de agradar a uma larga fatia de ouvintes, mas não é por aí. A sua música é alienígena, com qualquer coisa de elástico, viscoso e metálico. É um som de configurações digitalizadas retorcidas, ângulos rítmicos inesperados, muito espaço, orquestrações com qualquer coisa de glaciar e uma adrenalina sensual alienígena. O álbum agora lançado é como reunir aleatoriamente um acervo de microrganismos digitais que foram arremessados ao chão, e depois de repescados, o resultado final produzir sentido. Mais pensar do que dançar“O que é isto!!?”, “isto não é sequer humano!” ou “que doideira de música!” são algumas das expressões de estranheza mais correntes que se podem ler a acompanhar a sua música e vídeos na internet. Ele costuma dizer que a última coisa que deseja é que a sua música seja recebida passivamente e está a consegui-lo. Faz parte de uma geração de misteriosos produtores (de Actress a Oneohtrix Point Never ou Andy Stott) que começaram por fazer híbridos electrónicos no quarto, mas os seus temas são ambíguos, desviando-se das convencionais noções de melodia e ritmo, fazendo mais pensar do que dançar. Deu-se a conhecer com os EPs Stretch 1 e Stretch 2, vagamente inspirados no hip-hop, a que se seguiria a mixtape “&&&&&” o ano passado. Nessa altura ainda habitava em Nova Iorque. De há um ano a esta parte está em Londres, uma mudança operada por querer estar perto do namorado (o fotógrafo e artista multimédia Daniel Sannwald), mas também do artista e videasta Jesse Kanda – responsável por alguns dos notáveis vídeos de FKA Twigs – de quem é amigo e colaborador. Parte da adolescência passou-a em Caracas, a capital da Venezuela, ouvindo Aaliyah, Autechre ou Nine Inch Nails, antes de ser admitido, aos 17 anos, na Escola de Artes e Ciências da Universidade de Nova Iorque. Ali começou a criar canções electrónicas inspiradas pela vida e música de Arthur Russell ou pelas composições mais estranhas de Aphex Twin ou Björk. Depois surgiu o convite de Kanye West. Ao lado de Evian Christ e Hudson Mohawke, ele era a carta electrónica do artista de massas que não receia rodear-se de agentes das margens. Nas raras entrevistas que tem dado refere que quando foi convidado a enviar música ao americano optou pelo material mais estranho que tinha. O rapper gostou e deu-se então o encontro. Com FKA Twigs a junção foi mais instantânea. Conheceram-se em Nova Iorque e, segundo ela, quinze minutos depois de começarem a conversar resolveram de imediato trabalhar em conjunto. “Entendemo-nos naturalmente”, afirmou ela, acrescentando que até aí todas as pessoas que lhe haviam sugerido melodias ou letras, tinham levado uma nega. Dizia-lhes: “peço desculpa, são as minhas canções, escrevo as letras e componho as melodias. ” Mas com ele foi diferente. “Com Alejandro senti de imediato que podia existir uma relação de confiança e abertura mútua e ficámos grandes amigos. ”No álbum de FKA Twigs existem estilizações que remetem para Arca ou vice-versa. Mas o álbum de estreia dele é outra coisa. Ainda se vislumbram vestígios de hip-hop por entre ritmos desorientadores e alguns fragmentos vocais, mas a maior parte são temas instrumentais desafiadores, tão contemplativos quanto singulares, qualquer coisa de pós-humano, numa construção desengonçada de orquestrações e teclados sintéticos. Em termos sonoros e visuais movimenta-se nos interstícios: entre apresentar um som enegrecido ou de clarões brancos, entre ser homem ou mulher, entre ser inteligível ou alienígena. A sua relação com Jesse Kanda faz lembrar a de Aphex Twin com Chris Cunningham, música e imagens participando no mesmo imaginário. Para Arca, como já havia feito com FKA Twigs, o canadiano Jesse Kanda cria imagens distorcidas, corpos ambíguos, robotizados ou hiper-humanos, dependendo da interpretação. Não é difícil perceber porque é que a islandesa Björk se deixou enredar na sua música. As suas inquietações filosóficas tocam-se e existe a mesma vontade de dotar a música popular de qualquer coisa de novo. Numa altura em que o acesso instantâneo ao passado criou a ideia que tudo é derivativo, eis Arca a criar uma identidade sonora singular. A forma como trabalha a tecnologia é diferente, qualquer coisa de tangível, sensual, à flor da pele. No cinema a possibilidade de experimentar uma nova sexualidade, maquinal, já havia sido ensaiada, por exemplo em Crash (1996) de David Cronenberg. Dir-se-ia que, agora, Arca consegue-o com música, através da erotização das máquinas, numa lógica de moldagem onde os corpos sonoros retorcidos expõem uma música sensual de superfície metálica.
REFERÊNCIAS:
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E afinal o que é um livro infantil?
“O que pode um livro?”, perguntámos a profissionais do sector. “Tanto, tanto”, “abrir o mundo”, “segurar a casa”, “dar músculo”, “ser o colo da mãe”, “um livro pode tudo”. Que livros são estes? (...)

E afinal o que é um livro infantil?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: “O que pode um livro?”, perguntámos a profissionais do sector. “Tanto, tanto”, “abrir o mundo”, “segurar a casa”, “dar músculo”, “ser o colo da mãe”, “um livro pode tudo”. Que livros são estes?
TEXTO: Livros ilustrados, álbuns, livros-jogos, livros-brinquedos, histórias (só) visuais, livros-objectos, pop-ups, livros interactivos e livros-livros enchem, nas livrarias e nas grandes superfícies, os espaços cada vez mais alargados dedicados ao público infanto-juvenil. O livro infantil está diferente, mas continua a ser um bom primeiro olhar sobre o mundo. “Em 2015, as editoras da Leya editaram cerca de 200 livros infantis e juvenis, aproximadamente mais 30% do que em 2014”, informa por email a direcção de comunicação daquela empresa. Vítor Silva Mota, editor da ASA infantil, que pertence ao grupo, acrescentou mais tarde que no ano passado a facturação no infanto-juvenil “foi de 10, 8 milhões de euros”, correspondendo este valor “a 25% da facturação global da Leya”. E concluiu: “Estamos bem, em curva ascendente no mercado. ”Para a sua principal concorrente, a Porto Editora, o negócio também se mostra positivo. “A aposta no infanto-juvenil tem corrido bem”, diz Paulo Gonçalves, responsável pelo Gabinete de Comunicação e Imagem. Informa que em 2015 editaram 98 livros, mais quatro do que em 2014, mas não fornece dados de facturação nem do peso deste segmento no total da editora. Dizer a “percentagem no conjunto das edições é muito complexo, considerando a abrangência do nosso trabalho, que chega a praticamente todas as áreas editoriais”, justifica. As mudanças na oferta e na procura neste sector motivaram a 5. ª edição dos encontros O Que Um Livro Pode, que decorreu no final de Novembro em Lisboa e teve como título Os Livros não Têm Idade. Durante três dias, o mercado nacional do livro infantil esteve em discussão, no que foi acompanhado pela mostra de ilustração para a infância Rodapé, comissariada por Pedro Moura e com a particularidade de os trabalhos estarem expostos a um metro do chão, ao nível do olhar das crianças. David Guéniot, da organização dos encontros e editor da Ghost (especializada em livros de artista), não tem dúvidas de que “houve um grande boom nos últimos dez anos” no segmento da edição destinada às crianças. E conta que cada vez mais encontra “livros de editoras portuguesas nas livrarias de Paris, de Londres e de outras cidades, prova do reconhecimento da qualidade do que se faz aqui”. Para este francês que escolheu viver em Portugal, “o livro infantil representa a utopia do livro” e quis, neste “passeio ilustrado pela infância”, mostrar “que hoje há um tratamento mais arriscado e arrojado em termos de construção do livro infantil e também maior cuidado na própria produção”. José Oliveira, editor responsável pela literatura infanto-juvenil das Edições Caminho até 2011, recordou, naqueles encontros, a forma “algo amadora” como iniciou nos anos 1990 “a primeira colecção de livros para crianças da Caminho com ilustrações a cores, Histórias Tradicionais Portuguesas, cada uma delas ilustrada por seu ilustrador”. Ao mesmo tempo que ia relatando processos, motivações e limitações desses tempos, mostrava os livros, começando por Os Anéis do Diabo, com texto de Alice Vieira e ilustrações de André Letria. “Como vêem, isto é muito quadrado. Tanto quanto me lembro, até era eu que fazia umas maquetes, no Pagemaker, e punha o texto. ” Depois, com o espaço que sobrava, dizia ao ilustrador: “Você que se arranje!”Divertido, contou: “Eu não conhecia o André, mas tinham-me dito que era ‘um rapaz com muito jeito’. ” Ouviram-se risos na sala e entre os oradores, onde se encontrava o próprio André Letria, convidado enquanto ilustrador, mas também como editor da Pato Lógico. José Oliveira mostrou outros títulos da mesma colecção, com ilustrações de Alain Corbel (“o primeiro livro dele em Portugal”, O Pássaro Verde, 1994) e Henrique Cayatte (Rato do Campo e Rato da Cidade, 1992). Neste último caso, contou, houve uma solução “mais solta e mais livre, ele passou por cima das minhas maquetes iniciais, fez bem”. Com o tempo, foi “aumentando o interesse e o cuidado na ligação entre texto e imagem”. José Oliveira enumera algumas das decisões que se esperam de um editor: “Conforme o formato, isto é, as dimensões, o ser de capa mole ou capa dura ou o tipo de ilustrações que se usa, o livro ganha uma ou outra natureza, e o horizonte de recepção que nós esperamos modifica-se. ”Houve mudanças que resultaram de “questões técnicas”. Exemplo: “Deixou de haver livros de 16 páginas, as tipografias que os faziam já não existem. Os livros maiores, com 32 págs. , ganharam outro fôlego de ilustração. Essa alteração e as crescentes preocupações com o design levaram a Caminho a iniciar uma colaboração com o atelier de Danuta Wojciechowska para a colecção Histórias Tradicionais Portuguesas. ” José Oliveira “livrou-se” das maquetes. Há uma obra que editou, uns anos mais tarde, que lhe dá grande satisfação, “juntou tudo o que eu queria fazer como editor”, diz. É o Romance do 25 de Abril, com texto de João Pedro Mésseder (alter ego de José António Gomes) e ilustrações de Alex Gozblau. “Um livro sobre o fascismo e sobre o 25 de Abril, com um texto bastante concreto, sob a forma de um romance como a ‘Nau Catrineta que tem muito que contar’. Um texto narrativo que nos conta a história da repressão do fascismo e depois a libertação. ”João Pedro Mésseder não conhecia Alex Gozblau. “Fiz essa ponte [entre eles] e trabalhei muito de perto com o ilustrador. Trabalhámos muito a caracterização dos rostos: o rosto deste militar deve ser plano ou deve ser rugoso? O Alex tem tendência para o escuro. . . foi tudo muito negociado”, conta com orgulho e entusiasmo. Esta obra materializa em pleno o editor que quis ser (e foi), gostando e valorizando “aquilo sobre que se escreve, o modo de escrever e a ilustração”. Mais um pormenor que muito agrada a José Oliveira, as guardas do livro (fólio que acompanha a parte interior de cada uma das capas do livro encadernado). “Quando abrimos a primeira guarda, não sabemos o que é [vê-se apenas um traço verde]; na guarda final, revela-se e conclui-se a história [o traço verde é o pé de um cravo vermelho]. ”Esse livro — idealizado por um editor que sempre se preocupou em dignificar o trabalho dos ilustradores, acautelar as suas condições de trabalho e garantir-lhes remuneração por direitos de autor — ganhou o Prémio Nacional de Ilustração em 2007. Se continuasse a editar, era ao livro ilustrado que se dedicaria. E afinal o que é um livro ilustrado? Dora Batalim, coordenadora da Pós-Graduação em Livro Infantil da Universidade Católica, divide as obras em três categorias, com base no “observar do comportamento da imagem”: o livro “imagiário” (palavra que cunhou do francês), em que “a imagem é absolutamente referencial — uma bola é uma bola, a Miffy é a Miffy e está a chorar”; o álbum, “em que a imagem tem preponderância sobre o texto, mas já tem valores de construção, jogos semânticos e conotativos”, e o livro ilustrado, em que “o texto tem preponderância sobre a imagem”. Para esta doutoranda de Literatura Infantil na Universidade Autónoma de Barcelona, “o mercado nacional está bom, no sentido em que está melhor, surgiram algumas editoras, pequenas, com critérios de qualidade e muito cuidado na parte gráfica”. Refere ainda que “se trazem para cá expoentes de qualidade”, através de compras de direitos de livros internacionais. Não quer nomear editoras em particular, mas vai dando exemplos de livros e autores que sabemos pertencerem, por exemplo, à Planeta Tangerina, à Bruaá, à Kalandraka ou à Gatafunho. Dora Batalim interessa-se em particular por livros dos 0-3 e dos 0-5 anos e diz que há muito pouca produção nacional para essas idades. A Edicare e a Gatafunho são dois exemplos onde a Revista 2 encontrou livros de qualidade para bebés, mas confirmou terem origem externa. A também professora na Escola Superior de Educadores de Infância Maria Ulrich (Lisboa) nota que, “de repente, chegaram ao mercado, ao mesmo tempo e por via de várias editoras, muitos livros-jogos, livros para brincar, para mostrar o que está escondido”. Recorrem a lupas, óculos para ver em 3D, encaixes, etc. Conclui que estas apostas resultam da presença das editoras portuguesas nas feiras internacionais. “O conceito de ‘livro inteligente’, não são pop-ups, foi premiado na mais recente Feira Internacional do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, é natural que se aposte em formatos desta natureza”, mas surpreende-se com o facto de não haver produção digital, “zero”. Sente algumas faltas no mercado: “Estamos a perder a palavra. Precisamos de histórias de várias latitudes e diferentes universos. Também falta poesia, texto poético, há excesso de álbuns. ” Reclama a ausência de “narrativas tangíveis, onde se conjuguem o insólito, o inesperado, o humor e até o humor negro”. Gostava que houvesse mais abordagem de alguns temas sociais e contemporâneos, “mas sem pendor educativo, dos que exigem que todos sejamos bondosos e piedosos”. Prefere abordagens feitas “com subtileza, mas que saibam comunicar e formar”. Perguntamos-lhe “o que pode um livro?” “Tudo. Pode ser o colo da mãe, que ali não está e fica materializado. Pode ser o primeiro olhar para o mundo registado, com o peso de um volume e de um papel. ” Mas avisa: “É preciso ter cuidado com o que se dá. Porque é uma voz próxima e um primeiro olhar. Não tem a velocidade frenética da televisão. São momentos ao teu ritmo, tu danças com ele [o livro], usas quando tu quiseres. Impõe-se como noção de leitura da criança. É preciso cuidar de que os canais estejam sempre limpos: o informativo, o imaginário, o imaginário maravilhoso, o da palavra, o da esfera do visual e o do texto. ”Dora Batalim observa que “os pais estão confusos” perante tanta oferta nas livrarias, nas grandes superfícies e na Internet. Sobre a orientação que o Plano Nacional de Leitura (PNL) pode dar, legitimando alguns títulos, diz: “Os selos do PNL são estritamente escolares. É um olhar, mas não o único. ”Quem acredita que “o PNL foi o melhor que aconteceu para criar hábitos de leitura nas escolas” é Paulo Gonçalves, da Porto Editora. “A nossa estratégia junto das escolas passa pela educação, mas também pela fruição, dando a conhecer obras literárias, do 1. º ao 12. º ano, produzidas com grande cuidado editorial. ”A editora quer “promover hábitos de leitura nos mais novos, já que serão os leitores do futuro, a próxima massa crítica”. E tentam “associar o lúdico ao educativo”. Editam “histórias para diferentes ambientes” e daí integrarem a chancela digital Cool Books, “que está a correr bem”. Segundo Paulo Gonçalves, têm “uma colecção única no país, a Educação Literária, onde se reúnem todas as obras de alguns escritores e obras obrigatórias ou recomendadas no ensino básico e secundário”. Como tendências, enuncia: “Temos vindo a apostar nos autores nacionais com obras adequadas à criação de leitores, claramente nos consagrados — Sophia de Mello Breyner Andresen, Álvaro Magalhães, Luísa Ducla Soares, Maria Alberta Menéres —, mas também em autores de ficção de grande qualidade que fazem incursões nesta área, como Valter Hugo Mãe, Richard Zimmler ou Mário de Carvalho. ”A promoção de autores menos conhecidos e mais jovens também faz parte dos objectivos da editora: “Carlos Garcia (Cancioneiro da Bicharada), Miguel Morais (colecção O Ano mais Estúpido do Meu Irmão mais Novo), Isabel Ricardo (O Coelhinho Avarento) e Ana Rita Faustino (O Cotão Simão, distinguido com o Prémio Branquinho da Fonseca — Expresso e Fundação Calouste Gulbenkian). ”Para o pré-escolar, os livros-objectos são a prioridade, “ajudam [a criança] a familiarizar-se com as palavras e o som, por exemplo, são livros que respondem a essa necessidade de estímulos nas idades mais baixas”. Depois, passam a “histórias com uma forte presença da ilustração”, o livro-álbum. “À medida que a idade avança, o livro vai dando primazia ao texto, em detrimento da ilustração”, conclui Paulo Gonçalves. A Porto Editora tenta “um equilíbrio entre autores portugueses e estrangeiros, mas com prevalência para autores portugueses”. À pergunta “o que pode um livro?”, aquele responsável de comunicação responde: “Pode tanto, mas tanto. Um excelente meio de se conhecer o mundo em que se está. O livro abre-nos o mundo. ”A direcção da Leya não tem dúvidas de que “a importância das edições infantis e juvenis é decisiva, porquanto se trata do principal motor da criação de hábitos de leitura e de construção de futuros leitores, tendo um importante peso económico e cultural”. E faz uma aposta clara deste segmento nos países lusófonos: “O facto de a Leya estar presente em Angola, Moçambique e Brasil tem permitido um trabalho muito relevante de promoção e publicação dos autores portugueses naqueles países, sobretudo no Brasil, onde alguns autores já encontram um maior número de leitores do que em Portugal. ”Ao mesmo tempo que promovem autores e ilustradores lusófonos, também representam “marcas internacionais de referência no âmbito das edições infantis e juvenis, como DK, Disney, Enid Blyton ou Roald Dahl”. As apostas são divididas em “interactividade (formatos e recursos que contribuam para enriquecer a experiência de leitura, como realidade aumentada, paginação criativa e passagem para o mundo digital), conhecimento (novos e bons livros que, sem serem as enciclopédias visuais de antigamente, conseguem captar a atenção dos mais novos por terem uma forma organizada e cativante de apresentar a informação) e colecções juvenis (geradoras de leitores de longa duração e fiéis às suas colecções preferidas)”. O editor da ASA infantil reconhece como principal concorrente “no segmento juvenil, sobretudo em livros traduzidos no domínio da ficção, a Editorial Presença”, editora que não aceitou falar com a Revista 2 para este artigo. A Leya existe desde 2008 e, sobre a junção das várias editoras, Vítor Silva Mota, que já integrava os quadros da ASA, recorda que “se fizeram ajustamentos, pois eram muitas as disparidades entre as diferentes editoras”. No entanto, considera que “houve sensibilidade e cuidado para não ferir susceptibilidades perante os hábitos e procedimentos de cada editor”. Conta ter havido “uniformização de critérios, mas preservando a identidade própria de cada uma das editoras”. As escolas são um dos caminhos para o sucesso das editoras e do mercado do livro para os mais novos. Explica Vítor Silva Mota: “A literatura infantil e juvenil é muito importante no ensino. A existência de textos de autores lusófonos nos manuais escolares, por um lado, e a presença física dos autores nas escolas de todo o país, por outro, são dois factores de grande relevo para a formação dos alunos, bem como para fazer com que conheçam os autores portugueses e para que cultivem o gosto pela leitura e pelo conhecimento. ”A Leya promove “mais de 650 encontros de autor por ano nas escolas portuguesas, o que resulta numa média superior a três encontros por dia de aulas”. Adélia Carvalho, editora da Tcharan e livreira da Papa-Livros (Porto), considera que “as escolas estão muito sobrecarregadas” na busca de espaços para “escoamento de todo o tipo de livros”. Em conversa com a Revista 2, chamou “poluição das escolas” à constante investida, “sobretudo por parte de quem faz edições de autor”, para mostrar e vender livros sem critérios de qualidade. Não se referia às grandes editoras, mas “às que exploram o sonho de quem quer ter um livro editado”. Olha para o mercado com optimismo e reconhece que houve “um aumento de qualidade e um crescimento brutal no álbum, que revolucionou o conceito da ilustração e transformou o livro num objecto mais bonito”. Para Adélia Carvalho, que é também autora, “um livro pode com uma casa, pode fazer com que a casa mude de sítio e pode encher a casa de gente”. A Tcharan edita três a quatro livros por ano (com tiragens de 1500 exemplares, mais cem exemplares em espanhol e outros cem em inglês, para representações em feiras e vendas internacionais). No mercado nacional, teve um crescimento de 15% em relação ao ano passado, e no internacional cresceu 30% (com venda de cinco livros para o Brasil, Coreia, Colômbia, Espanha e Alemanha). A editora mantém parcerias com a Vista Alegre (Era Uma Vez Um Cão, Adélia Carvalho e João Vaz de Carvalho; Chá, Café e Etc. , Rui Reininho, Armando Teixeira e Marta Madureira), a Cruz Vermelha Portuguesa (A Inocência das Facas, vários), Câmara Municipal do Porto (Wonderporto, Adélia Carvalho, Cátia Vidinhas, e Senhoras e Senhores, Meninos e Meninas, Bem-Vindos ao Palácio de Cristal, vários), Direcção Regional da Cultura do Norte (Era Uma Vez Um Castelo) e o Colégio do Sardão (Abrigos, Adélia Carvalho e Maria Remédio). A Papa-Livros não teve crescimento face ao ano passado, “talvez porque agora a cidade do Porto tem mais oferta e o público dispersa”, justifica a livreira, que se queixa da plataforma que a Fnac criou para a gestão dos livros, em que “cobra pacotes de mensagens online sobre as vendas e penaliza em 5 euros, desde Novembro de 2014, o envio de factura em papel”. O fim do Plano Nacional de Leitura é visto como um problema, porque “os pais, os educadores e os professores seguiam as listas que saíam e compravam alguns títulos”. Agora, “com o fim do Ler+, vamos ressentir-nos com certeza”, diz. Por isso, vai continuar a organizar exposições, actividades e lançamentos na Papa-Livros. Nestes últimos, consegue, por vezes, “vender logo 50 livros”. Os lançamentos da Planeta Tangerina rendem mais, como nos conta Isabel Minhós Martins, autora e editora, “são sempre grandes festas com belos lanches”. Aí, aproveitam para “conhecer os novos leitores e conviver com os amigos”. Nesses dias, conseguem vender mais de uma centena de títulos. “Levamos outros livros já editados, mas também os nossos postais e cartazes. Normalmente, vendemos bastante. E ajuda a pagar o lanche…”Para esta editora nacional pioneira em projectos de concepção de álbuns em articulação directa e de raiz entre autores e ilustradores, “o negócio não piorou em relação ao ano passado, nem nas livrarias portuguesas nem na loja online”. Continuam a apostar na “venda de direitos na Feira de Bolonha” e têm “títulos que não morrem”. Segundo Isabel Minhós Martins, “tem sido um processo de internacionalização lento e gradual, agora temos vendas para a Alemanha e Suécia”. Embora já estejam na Holanda, Brasil, Coreia, no Reino Unido e EUA, “Espanha, aqui ao lado, é um país que não está muito explorado”, afirma. “Mas continuamos a precisar do mercado nacional. ” Começaram a actividade como atelier e editora em 2004 e até hoje publicaram 50 títulos. A partir de certa altura, começaram a editar seis livros por ano. “A editora tem vindo a tomar mais espaço e já traz mais retorno do que o atelier”, revela. Quando lhe falamos da forma como a Planeta Tangerina contribuiu para a mudança na oferta dos livros para a infância em Portugal, explica: “Nós construímos um modelo que tem que ver com auto-edição, que nos torna mais ágeis e permite uma relação mais próxima com os leitores. Conseguimos fazer álbuns. Foi aí que fomos inovadores. ”Fazem tiragens de 1500 a 2000 exemplares e algumas reedições, com um preço médio de capa de 13, 60 euros. “Neste primeiro semestre houve melhorias. Tivemos um volume de negócios de 350 mil euros e fechámos 40 contratos de venda de direitos. ”Para Isabel Minhós Martins, o aparecimento de outras pequenas editoras de qualidade foi bom e melhorou o panorama da edição. “É melhor o negócio estar distribuído por muitos do que concentrado em poucos”, diz, considerando que “o mais interessante que está a acontecer é feito pelos projectos mais pequenos, as grandes editoras têm apostado em livros mais clássicos”. Depois da edição do livro Lá Fora (sobre a natureza), que foge ao álbum, estão a planear o Lá Dentro (sobre o cérebro e as emoções). “Queremos fazer livros informativos e rigorosos, mas um pouco diferentes. Também temos um projecto sobre o consumo”, conta. Na parte das edições para jovens, lembra que prevalece a importação de títulos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. À pergunta “o que pode um livro?” preferiu responder por escrito: “Mesmo quando nos encolhem e entristecem, os livros são capazes de nos aumentar, naquele sentido em que nos dão mais vidas (como num jogo de computador). Os livros conseguem preencher essa lacuna, essa falha que é não podermos viver mais, ainda mais. Dão-nos a possibilidade de calçarmos as sandálias do outro, de vestirmos outras peles e de nos tornarmos um pouco mais completos. Os livros também nos dão músculo, ferramentas e força para lidar melhor com a realidade. Os livros podem ser um lugar onde nos refugiamos quando a realidade não nos preenche ou nos fere, mas para mim, mais do que isso, podem ser como lanternas que iluminam zonas escuras. Hoje, mais do que nunca, pode ser no silêncio de um livro, afastando com os dois braços toda a poluição que nos rodeia (visual, sonora, comunicacional), que conseguimos ver as coisas de uma forma mais límpida. Menos baça. Mais luminosa. ”O Que Um Livro Pode continuará o debate à volta da edição de livros infantis, de 11 a 13 de Março, em Lisboa (Espaço Rua das Gaivotas, 6), mas centrando-se em projectos internacionais. A organização é partilhada pela editora Ghost, a associação de artes gráficas Oficina do Cego, a plataforma Tipo. pt e a livraria Stet.
REFERÊNCIAS:
O segredo do donut de David Lynch
Espaço para sonhar é a nova biografia de David Lynch, escrita num pingue-pongue entre o cineasta e a jornalista e crítica de arte Kristine McKenna. Um capítulo dela, um capítulo dele, e uma conversa com ela para perceber como é ser avatar ou intérprete circunstancial de David Lynch. Todos os detalhes, nenhuma explicação, e um donut. (...)

O segredo do donut de David Lynch
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento -0.4
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Espaço para sonhar é a nova biografia de David Lynch, escrita num pingue-pongue entre o cineasta e a jornalista e crítica de arte Kristine McKenna. Um capítulo dela, um capítulo dele, e uma conversa com ela para perceber como é ser avatar ou intérprete circunstancial de David Lynch. Todos os detalhes, nenhuma explicação, e um donut.
TEXTO: David Lynch é magnético. Tem o porte do homem mais simples e mais especial – pelo menos é o que parece ao longe, nas entrevistas, nas aparições, nas conversas dos outros e nos ecrãs distantes. Kristine McKenna é a sua biógrafa, suficientemente amiga para ter sido autorizada a entrar na sua mente e para não insistir em falar do que ele não quer. Sim, sobre o bebé perturbador de Eraserhead ou sobre a animada vida amorosa. A escritora americana é momentaneamente o seu avatar nas conversas sobre Espaço para sonhar, o livro com capítulos dela e capítulos dele, “basicamente uma pessoa a ter uma conversa com a sua própria biografia”. Andar à procura do sr. Lynch, num livro ou num festival de cinema, é pura pornografia Lynch. “Ele tem um ego de artista ferozmente forte. É indómito no que toca ao seu trabalho e sabe o que deve ser e ninguém lhe pode dizer o contrário”, diz Kristine McKenna numa manhã límpida de Lisboa, convidada pela editora Elsinore e pelo Leffest – Sintra & Estoril Film Festival a vir a Portugal para apresentar Espaço para sonhar e participar num festival de cinema com duas exposições sobre o cineasta (em Sintra até final de Dezembro), um cartaz e um programa intitulado “Waiting for mr. Lynch” - afinal, ele até veio em 2007, mas não voltou em 2018. “Noutros aspectos, é muito humilde. Gosta de viver de forma simples. Gosta de varrer. Gosta de mexericar com coisas. Adora arranjar coisas. É tão engraçado, estava com ele numa coisa há dois meses e o meu sapato estragou-se. Os olhos dele iluminaram-se e ele disse ‘posso arranjar-te isso’. Fui para casa só com um sapato e ele levou o meu sapato para casa dele e arranjou-o. ”É nesta dualidade que vive Espaço para sonhar, cuja estrutura - um capítulo da jornalista e crítica de arte seguido de um capítulo do realizador e pintor, apenas ordenados cronologicamente - foi ideia de McKenna, para dar proeminência à voz de David Lynch. Dá espaço ao fétiche Lynch - a frases ou revelações com o encanto corriqueiro de quem procura num génio os traços do dia-a-dia. Em Junho, numa rara e longa entrevista à revista New York, o entrevistador até da sanita tão especial de David Lynch fala com enlevo. Haverá, por isso tudo, dois livros em Espaço para sonhar? “É uma pergunta interessante… Se fossem só os meus capítulos, o David pareceria ausente. E se fossem só os capítulos do David, o leitor não teria muitos factos – o David não se interessa nem se lembra de coisas como orçamentos, datas, esse tipo de coisa. E eu queria que fosse um livro definitivo. ” Kristine McKenna esteve na origem de Espaço para sonhar e “não foi preciso nada para o convencer. Fiquei muito espantada. Tive a ideia de fazer o livro, telefonei-lhe e disse ‘há toneladas de livros sobre ti, estas pessoas estão a fazer dinheiro com a história da tua vida, porque é que não fazemos o nosso próprio livro. Será a tua versão, e tudo estará correcto e tu farás algum dinheiro com ele’”. E ele disse que sim. ”A partir daí, trabalharam. Entre sandes repetitivas e a honra. “Ele cumpre sempre com a sua palavra. ”O jogo foi aparentemente simples e dele saem muitas pepitas Lynch sobre as primeiras namoradas, a sexualidade, os filmes e a televisão que o influenciou, a infância em Boise, no Idaho. O nascimento de alguns dos seus vocábulos estéticos - “Quando visualizo Boise na minha cabeça, vejo o optimismo cromado e eufórico dos anos 1950” - ou a mulher nua e ensanguentada que viu na rua e que “apesar de estar traumatizada, era linda”. Quando tiveram de se mudar de Boise, “a música parou”. A obsessão por café, cigarros e batidos do Bob’s, os quatro casamentos, ter estado no leito mortal de Federico Fellini, a sua teoria sobre quem matou John F. Kennedy (o vice-presidente Lyndon B. Johnson, que sucedeu a Kennedy na presidência), ou aquela noite em que conduzia com amigos e ficou hipnotizado pelos traços da auto-estrada até parar em plena via, num preview de Lost Highway: Estrada Perdida (1997). Ter a primeira filha, Jennifer, “não foi como ter um cão, mas como ter uma nova textura em casa”. As dificuldades com Anthony Hopkins na rodagem de O Homem Elefante (1980), a cuja estreia nem foi de tão nervoso que estava. O amor da sua vida: o cão Sparky. Os muitos empregos e biscates, a entregar jornais ou a fazer suportes para paus de incenso, quando o cinema não lhe dava sustento. Ou como foi aos Óscares perder “para Oliver Stone, que ganhou com Platoon – Os Bravos do Pelotão”, mas como nessa festa de derrota de Veludo Azul (1986) conheceu e beijou demoradamente, numa primeira de várias vezes, Elizabeth Taylor, o seu sonho. É expansivo quanto a Duna (1984), uma adaptação do clássico de ficção científica que foi um flop a todos os níveis, e graças ao qual nasceu um novo Lynch, que só filmava o que podia controlar do princípio ao fim. “O [produtor do filme] Dino de Laurentiis não entendia conceitos abstractos nem poéticos, de forma nenhuma – ele queria acção. (…) O Dino queria ganhar dinheiro”, diz Lynch em Espaço para sonhar. “Só quando se tratava de filmes é que eu e o Dino não nos entendíamos. O Dino ama o cinema, mas não o meu tipo de filme. ” Lynch e McKenna conversam sobre as marés, os elogios e a perda dos favores da crítica, a importância de encontrar o público certo, a fama depois da televisão. Estes relatos, e os que McKenna coligia falando com toda a gente desde os primeiros agentes, melhores amigos de infância, mulheres, Sting ou Mel Brooks, compuseram-se em duas mesas. “Eu fazia um capítulo, dava-lho e ele supostamente lia-o. Mas nem sempre o fazia”, ri-se a autoria no Chiado lisboeta. “Depois encontrávamo-nos, ele almoçava – eu levava-lhe o almoço, uma sandes de salada de ovo, ele comia sempre a mesma coisa ao almoço - e era suposto ele responder [ao capítulo anterior] no [seu] capítulo. Mas às vezes ele nem sequer o lia. E noutras vezes, mesmo que o tivesse lido, simplesmente ia para outro lado. É assim que ele é. ” Na entrevista à New York, apura-se que o tema alimentar mudou ligeiramente. “para almoço, como uma fatia de pão torrado com maionese e frango. Só isso. Depois, ao jantar, como uma fatia de pão com maionese e frango e como sopa de legumes. Todos os dias. ”McKenna esteve em todas as filmagens de David Lynch desde Veludo Azul. “Foi simplesmente mágico, estar lá. Porque foi uma rodagem muito longa para eles, durante nove meses, ficaram todos muito próximos, o David estava felicíssimo por estar a fazer aquilo depois de Duna. Na noite em que levam Jeffrey Beaumont [Kyle MacLachlan] de carro, Dennis Hopper beija-o e borra-o de baton - nessa noite foi espantoso estar lá. Estava muito frio, a [stripper] Bonnie estava a dançar em cima do carro, foi espectacular. ”O sorriso não se desvanece. “Em Coração Selvagem, a cena no Palomino em Los Angeles, em que Lula [Laura Dern] e Sailor [Nicolas Cage] estão a dançar e é um speed metal, louco, lembro-me muito bem disso. ” Mais recentemente, para televisão: “Em Twin Peaks: O Regresso, estava lá em algumas das filmagens na Sala Vermelha. Os plateaus dele são divertidos”. Uma sala vermelha também seria o centro do trailer que David Lynch, cineasta com mais de 80 créditos como realizador que não toca numa longa-metragem para o cinema desde 2006, com Inland Empire, fez para Dangerous (1991), 30 segundos para o álbum de Michael Jackson. “Tudo o que ele queria fazer era falar do Homem Elefante”, escreve Lynch. A ausência de descodificação de uma obra é tudo menos invulgar no cinema, ou nas artes em geral, mas num autor como David Lynch, que tanto toca o culto quanto atinge o mainstream, essa despreocupação didáctica no seu trabalho torna-se num mistério. E um mistério é algo a descodificar, a resolver, é um puzzle com satisfação garantida. Há mais biografias de Lynch, e livros onde se tenta descobrir mais sobre como foi feito o bebé de Eraserhead - No céu tudo é perfeito (1997), “esse Santo Graal dos obsessivos de Lynch”, como descreveu o crítico do Guardian John Patterson, e Kristine McKenna está consciente das leituras e duplas leituras de Espaço para sonhar. E também está ciente das críticas ao livro que assina com Lynch e que, em alguns casos, lamentam uma suposta ausência de profundidade. “Todos ansiamos compreender-nos, particularmente aos artistas. São fascinantes. Sinto que as pistas estão lá. Mas não as disse directamente nem as sublinhei. Algumas críticas disseram que é um livro superficial, mas… quando ele era criança experienciou violência, o pai era uma espécie de rancheiro, havia armas, tiros em animais. E também era doido por raparigas desde o jardim-de-infância e essas duas coisas ainda estão no seu trabalho. Acho que passa a ideia de quem ele é. ”Assinar um livro com Lynch, o Godot do Leffest e de tantos outros eventos que com gostariam de contar com o homem que tem um toque de agorafobia e pouco sai da sua rotina americana, é saber em parte que será lido em busca de pistas, que o subtexto será tão importante quanto o discurso à superfície? “Não é que o David tenha segredos que está a proteger, não está é interessado em explicar-se nem em explicar a vida. Vê ambos como inexplicáveis e isso é central no seu trabalho. Ele não quer que o seu trabalho seja uma experiência de ligar dos pontos, quer que seja experiencial, não uma ferramenta didáctica. Está perfeitamente confortável com o facto de haver aspectos do seu trabalho que as pessoas não compreendem. ”McKenna, que já entrevistou e compilou em vários livros conversas com Brian Eno ou Leonard Cohen e fez a crónica, nos anos 1970, da cena punk de Los Angeles, recorda como mergulhou nos adereços que Lynch faz à mão para todos os filmes. “De Twin Peaks: O Regresso há um frasco de feijões. Perguntei-lhe: ‘O que é isto, por que é que fizeste isto?’. E ele disse: ‘Bom, é uma pista’. ‘Queres dizer que pode ser descodificado?’. E ele diz: ‘Sim, claro, tudo pode ser descodificado’. O que significa que tudo o que ele faz tem um significado mais profundo. Mas ele não vai dizer-te o que é. ”No livro, McKenna resume a certa altura, a propósito de o próprio Lynch não entender inteiramente a história de Veludo Azul, durante cujas filmagens andava sempre com M&Ms de amendoim nos bolsos: “Lynch prefere operar na fenda misteriosa que separa a realidade quotidiana e o reino fantástico da imaginação humana… Quer que os seus filmes sejam sentidos e experienciados em vez de compreendidos”. Na vida, por vezes, repete frases que o próprio Lynch emprega. “A vida não pode ser explicada. Simplesmente não pode. ” Di-lo quando falamos sobre se o fascínio colectivo por David Lynch residirá em parte nessa ausência de explicações, nesse mistério sem chave. Essa impossibilidade de explicar “esse ciclone de beleza e horror” que é a vida - “e todos lutamos para passar por ela” -está no trabalho do realizador. O rio que corre entre as linhas de Espaço para sonhar afinal sempre esteve à superfície, recorda Kristine McKenna. “O David quereria que o subtexto fosse: ‘você devia meditar’. É a mensagem dele na vida, que toda a gente estaria melhor se meditasse. Isso está no livro até certo ponto, mas ele falaria sobre isso largamente e eu não o deixei. ” O hinduísmo e suas crenças filtram a forma como se retrata e como se conduz na vida. Acredita no karma, na reincarnação. “É muito tolerante. Não tem qualquer problema em dizer ‘aquele gajo é uma besta’, mas também é muito tolerante com as pessoas, não acalenta rancores. Não o conhecia antes de começar a meditar, conheci-o em 1979 e ele começou em 1973. Era uma pessoa muito zangada antes, mas ainda se zanga. Não gosta que ninguém mexa com o trabalho dele. Ele é uma pessoa muito pacífica e amorosa, é invulgar nesse sentido. É por isso que toda a gente que trabalha com ele o adora. ”Em Estrada Perdida, a personagem Fred Madison comenta: “Gosto de me lembrar das coisas à minha maneira”. “David lia as recordações dele de outras pessoas e dizia ‘Não me lembro disso dessa maneira’, mas percebia. [Só] houve um par de casos que disse ‘isso não aconteceu’. Esses cortámos”, explica Kristine McKenna, que vive na mesma Los Angeles cuja luz tanto enfeitiça David Lynch, sobre o processo de edição do livro. A área verdadeiramente sensível para tratar em Espaço para sonhar foi a vida amorosa “incrivelmente complicada” de Lynch, confirma McKenna. David Lynch é focado e concentrado a trabalhar, e as suas mulheres e namoradas testemunham a sua facilidade em apaixonar-se, um homem disponível para a alegria e para o encantamento em todos os aspectos da vida, mas também de se desligar. Delas, de um casamento, de um longo namoro como o que terminou com Isabella Rossellini com um seco telefonema. O trabalho está sempre primeiro e, como diz a sua mulher actual, a actriz Emily Stofle, “ele é muito egoísta”. “E ele sabe que é”, diz Kristine McKenna. “Tenho o olhar fixo no donut, não no buraco do donut”, escreve Lynch. A sua história é uma história americana. “Lynch é, em primeiro lugar, um artista americano, e embora os temas do seu trabalho sejam universais, o território das suas histórias é a América – onde foram impressas, de forma indelével, as memórias da infância que caracterizam o seu trabalho; e onde Lynch viveu os casos amorosos e arrebatadores da sua juventude, que moldaram as suas representações subsequentes do amor romântico como um estado de exaltação. Depois, há o próprio país: as árvores enormes do noroeste do Pacífico; os bairros suburbanos do centro-oeste e o som dos insectos nas noites de Verão; Los Angeles, onde o negócio do cinema devora as almas; e Filadélfia, a terrível provação em que foi forjada a sensibilidade estética do realizador durante a década de 1960. ”É assim que Kristine McKenna resume, em parte e em Espaço para Sonhar, o seu biografado. Esse terreno é o da imagem de Lynch, e inscreve-se na sua linguagem: “A cena precisa de um pouco mais de vento”, diria a certa alguma num plateau. A autora acrescenta-lhe “o fascínio pela complexidade do corpo humano”, desde Eraserhead a Um Coração Selvagem passando pelo pedido, dentro da sua obsessão por texturas, a Raffaella de Laurentiis sobre se podia ficar com o seu útero depois de uma histerectomia (os médicos não deixaram). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Jennifer Lynch, que colaboraria com o pai e passou parte da infância nas filmagens, lembra a McKenna nas páginas de Espaço para Sonhar que “o seu cérebro funciona segundo a ideia de que as coisas devem acontecer de uma certa forma e de que existem pequenos milagres. O seu interesse por matrículas de carros e superstições? Tudo isso são estratégias que ele usa para fazer algo mágico e transformador. Foi sempre assim”. David Lynch produz aforismos com facilidade, e sempre o fez nos seus 72 anos de vida. “Podemos dizer que a Laura Palmer é a Marilyn Monroe e que Mulholland Drive [2001] também é sobre a Marilyn Monroe. Tudo é sobre a Marilyn Monroe. ” Ou: “sinto que há muito de rock ‘n’ roll em Um Coração Selvagem. O rock é ritmo e amor, sexo e sonhos, tudo junto. Não é preciso ser-se jovem para o apreciar, mas o rock é uma espécie de sonho de juventude sobre aproveitar a vida em liberdade”. Parte do fetichismo sobre a personagem David Lynch é deliciar o leitor com os seus hábitos - afinal, era um adolescente que andava sempre de blazer e gravata, ou laço. “Sempre apertei o primeiro botão das camisas porque não gosto de sentir o ar no pescoço e não gosto que ninguém toque no meu pescoço. Deixa-me louco, não sei porquê. ”Kristine McKenna, amiga de décadas de David Lynch, sabe que está a falar nesse lugar onde se procura outrem. “Tento representá-lo como ele quereria ser representado, mas ele é tão imprevisível. É muito difícil saber o que ele vai dizer a cada minuto. ” Quis contar a sua história “de uma forma com a qual ele conseguisse viver. E tentar transmitir quão cómico ele é, porque ele tem um óptimo sentido de humor”. Quem é David Lynch? “David Lynch é uma pessoa mesmo boa. É generoso e dado. Isso, e arranjou-me o sapato. ”
REFERÊNCIAS: