Vimos uma nova luz nos The xx e ouvimos todas as vozes para Zé Pedro
A banda britânica era a mais aguardada da noite e mostrou-se confiante e celebratória como nunca. Neles se concentraram todas as atenções no arranque do Super Bock Super Rock, marcado também pelo tributo em família ao guitarrista dos Xutos & Pontapés. (...)

Vimos uma nova luz nos The xx e ouvimos todas as vozes para Zé Pedro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.268
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: A banda britânica era a mais aguardada da noite e mostrou-se confiante e celebratória como nunca. Neles se concentraram todas as atenções no arranque do Super Bock Super Rock, marcado também pelo tributo em família ao guitarrista dos Xutos & Pontapés.
TEXTO: “Gostei”, diz um amigo ao outro enquanto se sentam ambos num muro à saída da Altice Arena, em Lisboa, hora já avançando madrugada dentro. “Gostei porque sabia o que ia ver”, sentencia. Era uma forma de enquadrar aquilo a que acabarámos de assistir, ou seja, era uma forma de descrever o concerto dos The xx, o mais aguardado da primeira noite do Super Bock Super Rock 2018, no Parque das Nações, em Lisboa. Num pavilhão preenchidíssimo de público – foi o único momento do dia em que todos pareceram escolher o mesmo destino –, o trio britânico ofereceu realmente aquilo que o público esperava. Hold on, Crystalised, Shelter, Say something loving, VCR ou Angels. Todas elas passaram pelo palco maior do festival que esta quinta-feira recebeu também todos os muitos convidados da celebração conjunta, familiar, de Zé Pedro (tributo baptizado, de forma que o homenageado certamente aprovaria, “Who The F*ck is Zé Pedro”). Um festival que aplaudiu à noite, com toda a justiça, sob a pala do Pavilhão de Portugal, um grande soul man chamado Lee Fields, precisamente no mesmo local onde, às 17h, os Parkinsons, os primeiros a actuar, avisaram a certa altura, só para enganar, “a próxima é uma balada” (claro que não era, que os Parkinsons são banda punk'n'roll sem temperamento para coisas dessas). Um festival, continuemos, que, ultrapassadas as duas horas da madrugada, continuava a dançar no pavilhão o som tonitruante dos Justice – dois homens e sua maquinaria, uma barreira imponente de amplificadores e luzes a faiscar enquanto os franceses libertavam batidas saturadas, insufladas de prog e rock e funk e mais patifaria sónica da boa. Apesar da generosa quantidade de t-shirts com a famosa cruz que fomos vendo durante o dia, o equivalente, nos Justice, à icónica língua que se confunde com os Rolling Stones, a verdade é que no arranque do Super Bock Super Rock, tudo pareceu convergir para os The xx. “Gostei porque sabia o que ia ver”, disse-se então quanto tudo terminara. Num concerto iniciado às 23h30, uma hora e quinze minutos depois do inicialmente previsto (o início do tributo a Zé Pedro foi alterado das 20h para as 21h, adiando todas as actuações no palco principal), ouviram-se as vocalizações partilhadas entre Romy Madley Croft e Oliver Sim, ouviram-se os ecos da guitarra daquela flutuarem pelo ar, ouviu-se Jamie xx agindo como propulsor rítmico da banda. Isso era o esperado. Mas, e isto não sabíamos que iríamos ver, viu-se também um trio que, no último concerto da digressão europeia e depois de quase dois anos na estrada, como referiram durante a actuação, já não é aquele casulo de timidez que conhecemos nos primeiros encontros. A música continua a ser espaço para confissão de intimidades, mas também se liberta, efusiva, para transformar o pavilhão numa pista de dança gigante. A delicadeza de um sussurro continua a ser o tom assumido, mas eles encaram-nos agora de frente, Romy Croft dançando livre e confiante, Oliver agitando-se nos calções de napa enquanto Jamie xx põe a máquina em movimento. Ao longo do tempo, do homónimo álbum de estreia (2009) até chegarem, depois de Coexist (2012), ao mais recente I see you (2017), a banda londrina foi caminhando em direcção à luz, procurando fazer da insularidade inicial uma celebração conjunta, quase festiva. A forma como o demonstraram, tão seguros de si, aproximou-os ainda mais de um público que, de qualquer forma, parecia rendido à partida. Começaram intimistas e envolventes, num início em que se ouviu, por exemplo, Say something loving e, pouco a pouco, as texturas electrónicas feitas névoa fantasma foram ganhando corpo e intensidade. Serenámos para que Romy Croft, depois de juras de amor à cidade e ao país em que actuavam, dedilhasse Performance a solo mas, pouco depois, quando Oliver Sim dedicou Fiction à comunidade LGBT - “vejo-vos, são lindos, sou um de vocês” -, o tom alterou-se definitivamente. Chegaram raios laser, Jamie xx empolgou-se na função e até se ouviu uma das canções do seu percurso a solo, Loud places. O público das bancadas levantou-se definitivamente dos lugares para dançar (chegara On hold) e mesmo a sentida e delicada Angel, a da despedida, teve o seu quê de celebração. Sabíamos o que íamos ver, mas não estávamos à espera que os The xx nos encarassem desta forma, tão livres e confortáveis no palco. O arranque do festival, que contou com os Vaccines, curioso caso de culto em Portugal, com a elegância disco-house dos Mirror People de Rui Maia, com o inspirado riot-qurrr, chamemos-lhe assim, de Vaiapraia E as Rainhas do Baile e com as novas de Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo, foi também marcado pelo psicadelismo barroco dos ingleses Temples ou por uns curiosos Parcels, australianos radicados em Berlim que parecem o resultado de uma estadia dos Daft Punk e dos Chic nas mediterrâncas Ilhas Baleares. Por eles e, claro, por Lee Fields, homem de carreira tão vasta – começou nos anos 1960, conviveu com Solomon Burke, aprendeu com James Brown – quanto grande é o seu talento para dar vida à soul. De impecável fato branco debruado a brilhantes e acompanhado pelos Expressions, banda ágil e sábia, gingou pelo funk de We can make the world better, ergueu a voz numa dor de alma feita matéria apoteótica em Faithful man. Antes, falara de companheiros tombados cedo demais, dedicando a sua Wish you were here a Sharon Jones e a Charles Bradley, falecidos em anos recentes e, como ele, heróis tardios da soul. Poderia tê-la dedicado também à memória do homem que, à mesma hora, reunia dezenas de músicos na Altice Arena – e a razão pela qual nos foi impossível ver todo o concerto de Fields. Sucederam-se as imagens – Zé Pedro nas várias fases da vida, os seus heróis musicais, os seus companheiros de percurso -, sucederam-se os músicos, sucederam-se as canções. A primeira de todas, London calling, clássico punk dos Clash e uma das canções da vida do guitarrista dos Xutos & Pontapés, deu o mote. Tocou-a uma banda residente que era verdadeira banda família: Fred, director artístico do concerto e filho de Kalú, Marco Nunes, sobrinho do baterista dos Xutos, Sebastião e Vicente Santos, filhos de Tim, João Nascimento, filho de Gui, Joel Cabeleira, sobrinho de João Cabeleira. No baixo, Nuno Espírito Santo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois da memória dos Clash, um a um, foram surgindo cúmplices como Tó Trips, que recuperou Submissão, Rui Reininho, que lhe dedicou Morremos a rir, ou João Pedro Pais, que cantou uma És do mundo que, confessou, compôs com Zé Pedro no pensamento. Ao longo das duas horas, vimos Manuela Azevedo cantar Amor com paixão e, com a companhia de Tim, Conta-me histórias. Manel Cruz entregou-se ao clássico Circo de feras e, antes dele, Tomás Wallenstein atacou Morte lenta na companhia de António Reis Colaço, sobrinho de Zé Pedro, e partilhou Este mundo é teu e Esquadrão da Morte com Carlão. Ainda ouviríamos Paulo Gonzo, surgido em palco de muletas erguidas, cruzadas num xis de Xutos, e ainda se veria Jorge Palma e os reunidos Palma's Gang (chegou assim Esta cidade e Portugal Portugal), bem como os Ladrões do Tempo. Para o fim ficaram eles mesmos, os Xutos & Pontapés. Para o adeus, Tim, João Cabeleira, Gui e Kalú chamam todos os participantes a palco. Foi uma multidão a cantar “Remar remar”. Dando justa medida à dimensão do homenageado, Carlão dissera que, “se tivéssemos em palco toda a gente da tuga que gosta do Zé Pedro, tínhamos que fazer três dias de Super Bock Super Rock” – se pecou, não foi por excesso, mas por defeito. O Super Bock Super Rock continua esta sexta-feira com foco centrado no hip hop e tem Travis Scott, Anderson . Paak, Princess Nokia ou Slow J como protagonistas. Termina no sábado, dia em actuarão no Parque das Nações Benjamin Clementine, Julian Casablancas, The The ou Stormzy, entre outros.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Pouco menos do que uma lenda
É uma estrela rock à antiga, mas à dimensão da nossa era. Mergulhou na memória do seu passado, criança na década de 1980, e recriou-o distorcido pela passagem do tempo. No processo, inventou uma nova forma de canções. Pom Pom é o novo álbum de Ariel Pink. (...)

Pouco menos do que uma lenda
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.17
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: É uma estrela rock à antiga, mas à dimensão da nossa era. Mergulhou na memória do seu passado, criança na década de 1980, e recriou-o distorcido pela passagem do tempo. No processo, inventou uma nova forma de canções. Pom Pom é o novo álbum de Ariel Pink.
TEXTO: E eis então Ariel Pink, que acaba de editar Pom Pom, um dos álbuns mais aguardados neste final de ano, a dizer o seguinte: "Com sorte, assistiremos à morte da música daqui a um ano. Esperemos que seja isso que aconteça. " A morte da música? Não toda, corrige. “A música gravada. Já não faz sentido, porque as pessoas não querem saber. " Mais tarde, enquanto abordamos a escandaleira on-line em se que tem visto envolvido nas últimas semanas (aparentes elogios à homofóbica Westboro Baptist Church; declarações sobre Madonna consideradas misóginas), Ariel Marcus Rosenberg, nascido em Los Angeles, ano 1978, dirá que o problema é um e um apenas: “As pessoas pensam que eu estou a gozar em 90 por cento do que digo, quando na verdade estou quase sempre a ser honesto. Não, não estou a gozar. Essa é a ironia em mim. "Pom Pom é o novo álbum do músico que pegou na história pop e transformou a memória que o bom gosto esqueceu (não só, mas numa escala considerável) em Santo Graal para respigadores de despojos do passado (e foi ver o soft-rock, as baterias sintéticas e os teclados foleiros dos anos 1980 ganharem credibilidade indie, o lo-fi a renascer enquanto género e afectação, e uma nova nomenclatura a brotar de estúdios caseiros: ainda nos lembramos da chillwave?). Estávamos em meados da década passada e Ariel Pink reeditara The Doldrums, obra caseira registada em 1999 e descrita como uma viagem imaginária pelo FM de Los Angeles no início dos anos 1980 – daí o ruído que parecia cobrir as canções de estática. Ariel Pink, que como contado pelo própio compôs a primeira canção aos dez anos, quando ainda não sabia tocar qualquer instrumento mas vivia já obcecado com o rock, o seu imaginário e a sua estética, e foi descoberto 15 anos depois disso pelos Animal Collective, que o contrataram para a recém-criada Paw Tracks (que reeditaria The Doldrums), era então incompreendido pela maioria do público que lhe via os concertos na tangente entre a performance e a cacofonia. “O público apupa-me em todo o lado… Nem esconde o seu desprezo”, contava então. Uma minoria, porém, estava atenta e viu nele algo de inspirador. Subterraneamente, Ariel Pink era instigador de novas vagas no universo da música popular urbana. Assim continuou até 2010. Foi nesse ano que editou Before Today. Gravado com uma banda que reuniu e que baptizou de Haunted Graffiti, trouxe-o do underground à cristalina superfície do mundo da pop. Esse álbum magnífico, de som ainda enublado de poeira sónica e feito de memórias sabotadas da década de 1980 (de Michael Jackson a funk robótico e a hard-rock), mas recheado de canções de corpo inteiro, transformou-o numa estrela à escala das pequenas comunidades melómanas do nosso tempo. “É muito pouco provável que alguém consiga ser hoje uma estrela rock, mas é óptimo que não tenhamos de passar 20 anos na escola”, comentará Ariel Pink. “Tens de ter mais que um interesse passageiro e, se o mantiveres, eventualmente algo acontecerá. "Amor-ódioMisto de poster boy glam e figura excêntrica da LA de glamour e decadência, Ariel Pink tornou-se um músico inescapável do presente pop. Deixou de ouvir apupos nos concertos (tudo era agora adoração). Em 2012 chegou Mature Themes, um álbum desequilibrado em que o talento para a síntese e a marca de água musical de Pink conviviam com uma indulgência desapontante. A aura, no entanto, manteve-se intocada. Dois anos depois, Pom Pom, disco em que enterrou os Haunted Graffiti e a que, ao contrário do habitual, devotou longos nove meses e todo o tempo do mundo, chegou quando a aura de herói independente e farol criativo do presente estava sob ameaça. Nos meses anteriores, contara num programa on-line, em tom de paródia confessional, uma história que envolvia uma saída à noite, ele e uma rapariga a borrifar-lhe os olhos com um spray Mace no final. Choveram acusações de misoginia pela Internet em artigos inflamados (os do dia). Depois, numa entrevista a um jornal australiano, Ariel revelou que fora contactado pelo management de Madonna para, de acordo com o citado, revitalizar a carreira da cantora. Pelo meio, disparou que, a partir do primeiro álbum, a criatividade da dita “Rainha da pop” fora desaparecendo progressivamente mas que ele, com as suas canções, poderia ajudá-la – o management de Madonna desmentiu, ele queixou-se de ter sido mal citado e, entre uma coisa e outra, mais acusações de misoginia a choverem on-line. Enquanto tudo isto se desenrolava ao longo do mês passado, chegou outra entrevista, na qual declarava gostar da Westboro Baptist Church, um ajuntamento de conservadores homofóbicos americanos que fazem questão de se envergonhar inadvertidamente a cada manifestação. Resultado? “Ariel Pink é o homem mais detestado do indie-rock”, lia-se por todo o lado (na tal da Internet). A tentativa de defesa não correu bem. “E se eu me suicidasse e twitasse 'Obrigado, pessoal. Tinham razão'?. . . Foi assim que o Ruanda aconteceu”, começou a justificar-se à New Yorker, antes de concluir: “Todos são vítimas, menos os pequenos e simpáticos tipos brancos que só querem deixar as suas mães orgulhosas e tocar numas maminhas. "Note-se, ainda assim, que Ariel Pink não manifestara particular apreço pela Westboro Baptist Church. Defendera que ouvir a agremiação gritar na rua a intolerância que grita era uma recordação importante de que vivia num país onde existe liberdade de expressão. “Gosto de colocar questões, mas acho que não há respostas”, diz agora ao Ípsilon. “Não acredito no certo e no errado. O mundo é muito mais complexo e eu sou uma pessoa… tradicional. " Tradicional? “Sou conservador e acho que devemos manter as coisas como eram em vez de pensar nas transformações maravilhosas que podemos fazer. A mudança acontece por si só, quer tentes fazê-la ou não. Assim sendo, é inútil tentar consegui-la. Mas faz parte do espírito inquieto do nosso tempo”, diz o conservador que canta Nude beach a go-go ou Sexual athletics. Um intruso no passadoÉ portanto neste contexto, o da parangona “o homem mais odiado do indie-rock”, que o encontramos. Mas o Ariel Pink que conversa com o Ípsilon não está preocupado com o contexto. “Não há nada de stressante em tudo isso”, diz descontraído. “Isso é só o Twitter a funcionar”, ri. E sim, levem-se mais ou menos seriamente as declarações, há muito de histeria internética na história do último ano de vida de Ariel Pink. Algo que não existe no álbum que agora editou, Pom Pom. Nele ouvimos, uma vez mais, um músico no seu casulo. As suas canções vêm, de facto, de um lugar peculiar. “Todo o meu projecto de carreira tem sido agir como um intruso na visão do passado, do meu passado. Quando ouço música, tento apreciá-la como quando tinha cinco anos. Estou constantemente a pegar naquele miúdo de cinco anos de forma a não o esquecer. Se eu o esquecer, ele desaparecerá completamente. Porque já não está cá. "Pom Pom conta, entre muitos outros, com a colaboração de Jason Pierce, dos Spiritualized, ou do mítico músico e produtor Kim Fowley (produto acabado da LA de toda a energia criativa e de todos os excessos, figura de culto desde a década de 1960). Fowley deu a Ariel Pink títulos de canções e excertos de melodias a partir da cama de hospital onde luta com um cancro. “Nasceu ao fundo da minha rua, mas ele tem 75 anos e eu tenho 36. E ele é uma lenda e eu sou um pouco menos do que uma lenda. "O álbum, longo de 17 canções, é uma colecção de experiências pop com assinatura sónica vincada, e habita um universo sonoro tão misterioso quanto descaradamente envolvente – brilho sintético, calor orgânico e aura de fantasma. Sendo desequilibrado, mantém-nos sempre longe do aborrecimento ou do desinteresse (esta música pode ser desconcertante, nunca aborrecida ou desinteressante). Nele, 68 minutos eclécticos o suficiente para acolher pop solar extraída dos anos 1960 (Plastic raincoats in the pig parade), indie muito twee (Put your number in my phone), hard rock de laca bem doseada (Not enough violence), experimentação vanguardista falhada (o final de Dinosaur Carebears), pop sátira à Frank Zappa & The Mothers Of Invention (Nude beach a go-go), histórias patetas de strippers e adolescentes que acabam mal (o funk sintético, 80s totalmente 80s, de Black ballerina). Pom Pom é o álbum de um provocador ocasional e de um excêntrico inadvertido que inventou uma linguagem pop perante a qual reagimos primeiro intrigados. Chegados a este disco, não deixámos de ficar intrigados, mas a música ganhou uma curiosa familiaridade. Vivemos o presente de um passado que nunca existiu. Só não deslindámos se é rosto mesmo a máscara de Ariel Pink. Nem quando se despede assim. “Não há um Ariel Pink e um Ariel Rosenberg. As pessoas pensam que estou a interpretar uma personagem, mas só mudei o nome para encaixar num projecto musical. Quando fala comigo, fala com Ariel Rosenberg. Não sou um actor. " Interessa sabermos?
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte escola rainha homem género sexual minoria corpo rapariga animal cantora
Não deve ler esta entrevista (contém palavreado altamente ofensivo)
Pertence ao grupo de um milhão e duzentas mil pessoas que ouviram Uma Nêspera no Cu? O podcast de Bruno Nogueira, Filipe Melo e Nuno Markl é um exercício de liberdade. (...)

Não deve ler esta entrevista (contém palavreado altamente ofensivo)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.16
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pertence ao grupo de um milhão e duzentas mil pessoas que ouviram Uma Nêspera no Cu? O podcast de Bruno Nogueira, Filipe Melo e Nuno Markl é um exercício de liberdade.
TEXTO: Se há ocasião em que a palavra “destravado” se justifica, é esta. Os humoristas Bruno Nogueira e Nuno Markl e o pianista Filipe Melo não têm travão. Dizem as coisas que as pessoas não devem dizer e que, na prática, todas dizem mais ou menos. Esta entrevista, como o programa Uma Nêspera no Cu, passa-se num mundo onde a estupidez tem lugar. Um mundo onde é proibido proibir e os limites são quase nenhuns ou nenhuns mesmo. Um mundo onde se volta à criança que folheia uma revista pornográfica (que sacou, quiçá, da mesinha-de-cabeceira dos pais) e descobre que não é a única a fazê-lo. Eles são amigos, trabalham episodicamente juntos. O espectáculo que os juntou, Deixem o Pimba em Paz, de Bruno Nogueira, volta ao Teatro São Luiz, em Lisboa, de 3 a 12 de Julho, de fato de gala e Orquestra Metropolitana. Os arranjos são de Filipe Melo e de Mário Laginha. Depois de lerem a entrevista, vão poder imaginar as coisas que dizem na carrinha, nos camarins, a maluqueira que não pretende salvar o mundo mas que os diverte. Última advertência: nesta entrevista dizem-se coisas impensáveis. É melhor ir a outro balcão se não gostar de gelado de nêspera. Vamos começar com um dilema? Como fazem no vosso programa. O meu é: não poder rir nunca mais na vida ou viver para todo o sempre, não com uma nêspera, mas com uma nespereira no cu. NUNO MARKL – Espera: mas com as raízes metidas dentro? A folhagem cá fora? Isso é decisivo. A folhagem para fora. BRUNO NOGUEIRA – Raiz por dentro? Nunca mais rir. Escolho nunca mais rir! Porque as raízes vão a sítios que ninguém imagina. MARKL – O não poder rir: era uma coisa biológica, ou vias uma coisa que faz rir e tinhas de [faz o som de engolir o riso]?BRUNO – Markl, não estás a perceber: a alternativa era teres uma nespereira no cu. NUNO – Tens razão. Eu não queria uma nespereira no cu. BRUNO – Mas o Filipe queria. FILIPE MELO – Estou a pensar que é possível viver sem rir. Olha o nosso Presidente da República. . . E se ríssemos por acidente, nascia uma nespereira? Temos unanimidade: ninguém se ria mais. MARKL – Imagina, estás no cinema, a ver um filme que é cómico, começas-te a rir e nasce-te uma nespereira. . . E as pessoas: “Sai da frente!”Cómicos, pessoas que vivem do humor, que se fizeram no humor, escolhem não rir mais? Como é que podem passar sem rir?BRUNO – É difícil, mas a outra hipótese é viver com uma nespereira no cu. Uma nêspera, já é o que é. Ele [Filipe] é da música. Aguentava melhor do que nós. FILIPE – Ou não. Estamos no mês das nêsperas. As nespereiras estão carregadas. Supunham que eu ia trazer uma nêspera (ou da família da nêspera) para começar a entrevista?MARKL – Não. Mas isto faz de ti uma séria candidata a estar no Uma Nêspera do Cu. No programa, já percebemos que sempre que uma das opções é meter alguma coisa no rabo, tentamos evitar essa. Isso é uma piada homofóbica?TODOS – Não!BRUNO – Tenho muito MARKL – Eu, supositórios, já meti. Em que é que estão a pensar? Um supositório age mais depressa do que um comprimido (para certas coisas). FILIPE – Alka Seltzer, usas?MARKL – Já não uso supositórios há uns 20 anos. Ou 30. Os dilemas de que toda a gente foge e que estão relacionados com ter alguma coisa no rabo: porquê?BRUNO – O título do programa surge de um dilema que envolvia, justamente, meter uma nêspera no cu. Há outros que envolvem inserir um pau de incenso. Nós fazemos isto em bolha. Não tínhamos noção da dimensão que ia ter. A única ideia era divertirmo-nos. Às vezes visamos pessoas, nos dilemas, com quem, depois, nos cruzamos. E é um bocadinho desagradável. Já se cruzaram com a Júlia Pinheiro ou a Teresa Guilherme, com quem se metem num dos dilemas?MARKL – Já me cruzei com a Teresa Guilherme. Não toquei no assunto. Fiquei com a sensação de que ela não tinha ouvido. BRUNO – Penso que agora vai ouvir. . . MARKL – É interessante ver as reacções das pessoas. O Guilherme Leite teve grande fair play. O Fernando Pereira: nós achávamos que tinha tido grande fair play. Convém esclarecer qual era o dilema que envolvia Fernando Pereira, o imitador. FILIPE – Esgalhar uma ao Fernando Pereira (tinhas direito a estar com um fato e uma máscara de ski). Contacto meio astronauta. Ou. . . Qual era a outra?MARKL – Não sei. O Fernando Pereira escreveu um texto engraçado no Facebook, que partilhámos. Mas estive com ele no 5 para a Meia-Noite, fui agradecer-lhe o fair play que tinha tido perante o nosso dilema e ele, sempre a sorrir, disse: “Gosto muito do trabalho dos humoristas, e respeito. Vocês têm um grande poder. Entristece-me quando o usam para a estupidez. ”BRUNO– Respondeste bem. MARKL – “Ó Fernando, a estupidez às vezes também é precisa. ” Acredito mesmo nisto. Acreditas mesmo que a estupidez também é precisa?MARKL– Acho que sim. FILIPE – Senão não existia o Lord of the Voices, o espectáculo [de Fernando Pereira]. MARKL– Filipe Melo o disse. Há muita gente que gosta de ouvir a Nêspera e comenta: “Aquilo é só cocó e xixi, rabo e não sei o quê. Podiam meter alguma crítica social. ” O que eu respondo: “Não, não. O que é giro na Nêspera é ser infantil, estúpido, e sacar esse lado às pessoas. ” Tipo ao [António] Zambujo e ao Rodrigo Guedes de Carvalho. Como é que a Nêspera surgiu? A sementinha é qual?FILIPE – Eu não tenho a pressão de vir do humor, não é?És um respeitado pianista. FILIPE – Não propriamente respeitado. Sou um pianista. Na verdade, sou um erro de casting. Mas está tudo bem. A razão pela qual estou aqui é esta: nós estivemos a fazer um espectáculo, que foi uma ideia do Bruno, chamado Deixem o Pimba em Paz. O Nuno Markl tinha no espectáculo um número de strip-tease. Vinha connosco para a estrada no papel de stripper. MARKL – Vamos deixar isto assim, sem mais explicações. Eu vi. E não eras o George Clooney. MARKL – Não. FILIPE – As nossas conversas de carrinha eram dilemas destes. Foi o Nuno Markl que disse: “Isto daria um óptimo podcast. ”Explica aos infoexcluídos o que é um podcast. BRUNO – Um podcast é uma emissão áudio de um programa que só é emitido na Internet. Descarregas e ouves na Internet. FILIPE – Tenho a impressão de que nenhum de nós acreditava que isto dava um óptimo podcast. Estávamos cépticos. BRUNO – O “preferias isto ou aquilo” tem décadas. É daqueles jogos que toda a gente joga. Não tem autoria, que se conheça, e ainda que alguns colegas nossos se tentem apropriar dela. Isto não tinha nada de original. E funcionava na carrinha. No nosso microcosmos. Depois o Markl insistiu e experimentámos. Correu bem. Acho que tem que ver com isso: não tem um objectivo. Não pretende salvar o mundo ou mudar o país. É desprendido de tudo. É divertir o pagode?BRUNO – É para nos divertir a nós, acima de tudo. FILIPE – Sobretudo no meio em que o Bruno e o Markl se movimentam, o humor e a exposição mediática estão muito ligados a dinheiro. Nós, com este podcast, não ganhamos um tostão. Isso deu-nos uma liberdade. . . Eu sempre tive essa liberdade, mas eles, talvez por estarem mais ligados ao mainstream, não podem utilizar palavras ou expressões como arraial de cona. [gargalhada geral] Ou comedor de esmegma. Onde é que foram descobrir essas expressões?BRUNO – Foi num almoço. Isto que o Filipe disse é muito importante. Nós não temos nenhuma marca associada. MARKL – Há uma sede de gozo. BRUNO – É-nos cedido o estúdio muito gentilmente pela TSF. A liberdade é total porque não temos de prestar contas a ninguém. MARKL – Houve algumas empresas que consideraram a possibilidade de patrocinar isto. E desistiram. BRUNO – Só pelo título. MARKL – Se algum dia tivermos um patrocínio, a nossa preocupação é pagar àquele que de nós tem mais trabalho, o João Pombeiro, que faz as animações. Dá um trabalho imenso. Há uma versão só áudio no iTunes. As animações [visíveis na versão do YouTube] deram um certo carisma aos episódios. FILIPE – Os estudos e os interesses do João Pombeiro têm muito que ver com as artes plásticas. Embora pareçam umas animações absurdas, são feitas por uma pessoa que tem um cuidado extremo com aquilo, com o pormenor. Não responderam: o comedor vem de onde?BRUNO – Comedor de esmegma. Tínhamos recebido algumas queixas no Facebook por causa do tipo de linguagem que usamos. Então decidimos fazer um aviso antes do episódio seguinte a dizer que não utilizaríamos termos tais como. . . MARKL – Foi uma lista! O processo de criação dessa lista foi fascinante. Enquanto almoçávamos num restaurante japonês, na Expo. Fino. BRUNO – Finíssimo. MARKL – Estamos a comer sushi e a sugerir coisas porquíssimas. São, para reproduzir as vossas palavras, reles, doentios, e usam palavreado do feio. Usam-no normalmente?MARKL – Sou bastante regrado a dizer palavrões. O que faz com que as pessoas fiquem muito surpreendidas. “Não sabia que o Markl dizia. . . ” Mas eles são porcos, não é?BRUNO – Eu uso muito. Alivia-me bastante. MARKL – O Filipe consegue conter-se até ao momento em que diz uma caralhada desumana. Mas és um tipo pacato. FILIPE – Na minha auto-análise, diria que digo muitos palavrões. O Bruno claramente ganha, na liberdade de utilização. BRUNO – É muito raro usar em trabalho. Na vida pessoal, dá-me prazer. Vamos lá ver: toda a gente (ou quase) diz palavrões? Homens e mulheres, de todas as idades, de todas as classes sociais. Temos a ideia de que há palavras que não se dizem. Ensinamos às crianças que não se dizem asneiras. Logo, palavrão é asneira. BRUNO – Acho que toda a gente diz. MARKL – Há sempre uma altura em que sai qualquer coisa. Nem que seja quando uma pessoa se queima numa torradeira. Uma vez disse: “Foda-se” em frente do meu filho. Logo a seguir: “Ah, atenção, isto não se diz. ” Nesse mesmo dia, ele ia a deitar-se, deu uma cabeçada na cama e disse: “Foda-se. ” Fez um cálculo: “Se há dor envolvida, pode-se dizer isto. ”BRUNO – O palavrão não tem de ser só associado a situações de tensão. Na alegria também deve existir o palavrão. Conheces o texto do [Miguel] Esteves Cardoso sobre os palavrões? Há palavras que ditas com o termo técnico — por exemplo, pénis — são bem mais ofensivas do que. . . MARKL – Caralho. BRUNO – Portanto, eu uso em ambiente controlado. MARKL – Uma vez, numa estação de serviço, estavam a ouvir O Homem Que Mordeu o Cão. A rir e a dizer: “Grande cabrão. ” É muito português: insultarem as pessoas que as fazem rir. Talvez porque intrinsecamente sejamos um povo que está sempre triste. Então, quando há alguém que faz piadas, diz-se: “Filho de uma grande puta. ” É quase um elogio. Do que é que se gosta? Da transgressão? De alguém dizer o que aquele que está a ouvir não ousa dizer?BRUNO – O segredo da Nêspera é só este: é completamente livre. Sente-se, nos projectos que o Markl faz, que eu faço, que, por muito livres que sejamos, como estamos a trabalhar para um canal [de televisão] ou estação de rádio, há sempre uma barreira. Numa época em que está tudo muito formatado, em que é tudo muito previsível, o facto de se estar à beira de um abismo [é estimulante]. A mim, dá-me vontade de fazer. MARKL – Há as pessoas que ouvem porque se riem e gostam genuinamente. Há as pessoas que ouvem para se irritarem e porque têm o lado voyeurista do: “Deixa ouvir estes gajos que dizem coisas horríveis que não podem dizer em mais lado nenhum. ”Têm programas formatados na TSF (Tubo de Ensaio) e Rádio Comercial (O Homem Que Mordeu o Cão). Estão sempre nos primeiros lugares do top dos mais ouvidos. Foram suplantados pela Nêspera. MARKL – [com tom de locutor sensacionalista] Também no Brasil!Já lá vamos, ao Brasil. A pergunta: temeram que os vossos formatos de sucesso, confirmados pelo público, patrocinados pelas empresas, pudessem ser beliscados por este arraial de maluqueira?MARKL – Tu, Bruno, no Tubo de Ensaio, és mais terrorista do que eu. Eu tenho crianças a ouvir, que gostam muito do que faço. Também faço dobragens de desenhos animados [riso]. Há um lado explosivo. . . Pensei que se calhar ia perder trabalho. Ao mesmo tempo sentia que era uma coisa que valia a pena fazer. FILIPE – Um episódio real: no outro dia, a minha namorada estava num bar e falavam da Nêspera na mesa do lado. Diziam que era feito pelo Bruno Nogueira, pelo Nuno Markl e por aquele gajo que ninguém sabe quem é. Isto é uma grande vantagem: não tenho absolutamente nada a perder. Os meus amigos são humoristas ou estão dedicados ao humor. O Nuno Markl vejo-o mais como o grande defensor de todos os nerds. Um dia disse-lhe, quando estava verdadeiramente alcoolizado, não ele mas eu, que me surpreendia como é que tinha ascendido a uma posição de tanta exposição e continuava a ser um verdadeiro nerd. O Bruno, sendo um humorista, sendo alguém que me faz rir imenso, mesmo quando está fora do ar — é uma pessoa que tem graça natural. . . MARKL – É verdade. FILIPE – O que quero dizer: como tenho muitos amigos dedicados ao humor, tenho pensado, temos falado sobre o limite do humor. Qual é o seu limite?FILIPE – O humor deixa de fazer sentido quando ofende alguém que não está a pedi-las. Ouço o Tubo de Ensaio. Vejo as coisas que o Markl mete no Facebook. É um nível de cascanço. . . Mas, se pensarmos bem, é sempre alguém que está a pedi-las. Nesse aspecto, o humor acaba por ser uma forma de fazer justiça. Passo o tempo a pensar nestas coisas, no limite. É o intelectual do grupo? Também pensam nos limites do humor?BRUNO – É o intelectual, é. Olha a barba. Cofia o bigode, como um personagem de um romance do século XIX. BRUNO – Põe cera. FILIPE – Não ponho cera. MARKL – A discussão sobre os limites do humor dá pano para mangas. Nunca se chega a uma conclusão. Se tem graça, realmente, é de fazer. FILIPE – E quando destróis alguém que não está a pedi-las?MARKL – Não é a minha corrente de comédia. Mas o Bruno é o humorista que usa o bastão. Foi assim que apareceu, num espectáculo no Teatro São Luiz, de bastão. Continua a fazer um humor demolidor. MARKL – O Bruno é um justiceiro. BRUNO – Em relação ao Tubo de Ensaio, [que faço] com o [João] Quadros [co-autor dos textos]: muitas vezes terei errado. Muitas vezes apontei ao alvo errado. Mas o que aquelas pessoas [visadas no programa] fizeram, e que deu origem ao Tubo de Ensaio, não é menos grave do que aquilo que ali dizemos. E em 90% dos casos, são ilibadas, o caso prescreve. Não sei se passamos tanto o limite ou não. Reconheço que esticamos um bocadinho a corda. Que fazemos uma coisa arriscada. Não direi que é justiceira. Nem é esse o nosso objectivo. Mas é por sermos um país conservador que isto é visto assim. Queria dizer outra coisa sobre os limites do humor. . . ah. . . já não me lembro. A vossa mãezinha fala-vos dos limites? Ocorreu-me a mãe do Herman José, que lhe dizia: “És um bom artista. Não havia necessidade. ” A frase foi depois adaptada pelo próprio Herman no Diácono Remédios, como se sabe. MARKL – Não, não. A minha mãe adora ouvir a Nêspera. Faz likes na Nêspera. BRUNO – Ternurento. Os meus pais, também. O meu pai, curiosamente. . . Muito do meu humor vem do meu pai. Que é do Norte, de Penafiel. Em relação à Nêspera, disse: “Aquilo às vezes é um bocado forte, hã. . . ” Uma pessoa que já me ouviu a dizer de tudo!Dizes de tudo à frente dos teus pais?BRUNO – Sim. Tenho imenso respeito, mas isso não interfere com a liberdade que sinto. FILIPE – A minha mãe gosta imenso. Tenho a impressão de que a utilização da Internet para o meu pai tem mais que ver com os forwards de fraude nas bombas de gasolina. Que é isso?MARKL – São aqueles forwards que avisam: atenção há seringas infectadas nos bancos dos cinemas. O teu pai é um grande propagador disso. FILIPE – Sim, e de power points da natureza. Mas a minha mãe gosta da Nêspera. Nunca disserta muito sobre o assunto, mas sei que ouve. MARKL – Há o orgulho das mães, nisto. Há mesmo? Não sentem embaraço quando vão ao café com as amigas?MARKL – Não. Conseguimos, neste curto espaço de tempo em que durou a primeira série de Uma Nêspera no Cu, criar uma espécie de mainstream do cu. Tornou-se estranhamente aceitável e não muito censurável que três pessoas e um convidado estejam ali a expelir aquele vernáculo. FILIPE – Não podem dizer: aquilo não tem graça. O nosso objectivo não é ter graça. Onde quero chegar: não há muito por onde atacar. Juntamo-nos para nos divertirmos, e não obrigamos ninguém a ouvir, não é?Há uns efeitos colaterais. Os visados da Nêspera. Já falámos de alguns. MARKL – As pessoas não levam tão a mal quanto isso. Ou então fomos nós que ainda não fomos suficientemente brutos. BRUNO – O Ricky Gervais diz que podes fazer comédia que vem de um sítio bom ou de um sítio mau. Aqui, verdadeiramente, vem de um sítio bom. Sim, há pessoas pelas quais não nutrimos assim tanta simpatia. Mas, regra geral, já envolvi pessoas em dilemas que. . . Nós também nos envolvemos. FILIPE – [Em tom de troça, para Markl] Ele é o Nilton, não é?Nilton é apresentador, como Markl, do 5 para a Meia-Noite. MARKL – Dizerem isso é um clássico. Nós começamos por nos sovar de uma forma agressiva uns aos outros. Sobretudo o Bruno. O Bruno é um grande bully que eu tenho. Vou para casa a pensar: “Devia ter respondido melhor. Tenho 43 anos e ele tem para aí 20. ”Tens quantos anos, afinal?BRUNO – Tenho 33. A idade do próprio. Fazemos isso porque há confiança e amizade entre nós. Ah, já sei o que é que ia dizer em relação aos limites do humor: ninguém pergunta quais são os limites da música, os limites das novelas. Lembro-me de um primeiro episódio de uma novela da TVI. O Pedro Granger estava numa cadeira de rodas, era homossexual e morria numa explosão. Não vi ninguém dizer que aquilo era contra os homossexuais, contra os deficientes motores. . . Na novela, como há o rótulo da ficção, pode-se fazer tudo. No outro dia, uma mulher tentava atropelar o pai. Que é que importa? Se fazes isso no humor, acham que estás a incentivar as pessoas a atropelar, a matar homossexuais que andam em cadeiras de rodas. . . MARKL – A discussão sobre os limites do humor não é muito fértil. Na cabeça das pessoas há uma associação entre comédia e maldade. O humor já é o lugar da subversão. Tiveram necessidade de transgredir ainda mais, como se também o humor estivesse a ficar aprisionado ou formatado. MARKL – Sim, mas isto não foi uma decisão muito cerebral. Estou num formato e muito feliz nele, mas tenho cuidado. Não há qualquer pressão por parte da Rádio Comercial, não dizem: “Não fales sobre isto, sobre aquilo. ” Sou eu próprio que penso numa família que me diz: “Gostamos muito d’O Homem Que Mordeu o Cão”, e na notícia sobre uma máquina de venda automática de vibradores. . . Começas a ver o teu filho do outro lado, a ouvir sobre a máquina de venda automática?MARKL – Não sei se isto não é um macaquinho no meu sótão. Miúdo pequeno, assistias a este palavreado? A Nêspera parece um grupo de miúdos que se diverte porque apanhou uma revista pornográfica. . . BRUNO – A ideia é essa. MARKL – Chegámos a esta idade a pensar: “Vamos lá outra vez abrir a Gina. ”A saudosa revista Gina?MARKL – Não é saudosa porque ainda há. E continua a ser muito cara. Bruno, pensas nas crianças a assistir? Esse é o grande travão?BRUNO – Tenho esta vantagem em relação ao Markl. Pura e simplesmente não visualizo o lado de lá. Só tento divertir-me. Depois, como numa gelataria, há vários sabores. Não queres um, não és obrigado a comer. A Nêspera nem é um acto de rebeldia: é só um acto de liberdade. Podemos controlar do princípio ao fim aquilo que faríamos se não estivesse lá nenhum microfone. FILIPE – É também um exercício de criatividade. Semanalmente pensamos nos dilemas. Inventámos jogos — como o famoso Azar do Caralho. Que jogo é esse?FILIPE – Foi um jogo inventado, mais uma vez, pela mente perversa e doente do Bruno Nogueira, quando estávamos nos camarins do Deixem o Pimba em Paz. Consiste em escolher um contacto aleatório do teu telefone. Tens de ligar a essa pessoa num prazo de 20 segundos e utilizar uma palavra dada. Palavras inócuas, imagino. MARKL – O grande desafio está em arranjar palavras que não sejam javardice pura. FILIPE – Por exemplo, expectoração. MARKL – O Bruno teve de usar “berimbau” [instrumento musical]. BRUNO – Faz-se assim: dás-me o teu telemóvel e eu faço um scroll na tua lista de contactos. Dizes stop, eu paro. FILIPE – Caso não ligues, tens de pagar uma coima. Eu ligo e digo simplesmente “berimbau”?MARKL – Não, não. Tens de manter uma conversa normal. BRUNO – Ah, vamos jogar, vá lá! Dá-nos o teu telemóvel. Anabela, Anabela. Continuando. MARKL – Imagina. Sai-te o Jardim Gonçalves. Tens de ligar do teu telemóvel. Ele atende: “Então, Anabela, como está?”BRUNO – E tu: “Estou com um bocado de expectoração. ”MARKL – Disseste expectoração? Pumba, já ganhaste. Mas não podes desligar logo. BRUNO – Nem podes ligar de novo a explicar que aquilo era um jogo. O nosso próximo passo é fazer o Azar do Caralho by night. À meia-noite, fazer o mesmo jogo. E aí pareces um psicopata ou um tarado sexual. MARKL – Se receberes um telefonema nosso à meia-noite, já sabes. BRUNO – A reacção é estranha. Cerca de 90% das pessoas que te calham são pessoas com quem não falas regularmente. Na tua lista tens oito ou nove pessoas com quem falas regularmente e a quem podes ligar a qualquer hora. Qual é o número mais precioso da vossa lista de contactos? E o mais poderoso? O Cavaco?MARKL – Não tenho telefones de ninguém superpoderoso. Não tenho mesmo. Tenho assim de algumas supervedetas. Ricardo Araújo Pereira. Bruno Nogueira. FILIPE – Nilton. [risos]BRUNO – O meu número mais precioso é o de casa. O mais poderoso, não sei. MARKL – O mais poderoso? Nuno Artur Silva, que é administrador da RTP. FILIPE – Eu tenho o número de telefone do Marante. BRUNO – Eu tenho do Nel Monteiro. Para além do número do Marante. Anabela, queres jogar ao Azar do Caralho?Falem-me agora da criança que foram e que apanhou umas revistas pornográficas. MARKL – Tenho memórias vívidas de folhear a Gina, na Escola Secundária de Benfica. Havia um que comprava. Não havia Internet e íamos para umas arcadas comentar. BRUNO – Porque é que ias com um amigo teu?MARKL – Íamos — em grupo — para umas arcadas. Para não estarmos na escola. Folheávamos e dizíamos: “Eh, pá, olha para ela. ” Virávamos a página. “Ehhh, olha o que está a acontecer aqui. ”BRUNO – Enquanto faziam isso, tinham erecções, ou não?FILIPE – Havia esgalhanço?MARKL – Entre amigos? Não!FILIPE – Negas aqui e agora que houve esgalhanço colectivo? A minha mãe era presidente do conselho directivo quando tu andavas na Secundária de Benfica. Portanto isso passou-se sob o reinado dela. BRUNO – Eu lembro-me, eu lembro-me. . . [riso] Não sei porque é que vou contar isto. Eu passava as férias grandes na aldeia, em Mogofores. Terra do José Cid. A malta ia para becos esgalhá-la. Um aqui, um ali. Era a mesma coisa que ir a um bairro de drogados e, em vez de se estarem a injectar, estavam a. . . Quando perguntei pela criança, não pensava que íamos dar a este sítio. Vamos tentar pôr alguma ordem nisto. Vocês não perdem nada com a Nêspera, mas eu tenho muito a perder. MARKL – Chegámos todos a um momento das nossas carreiras em que podemos fazer isto. As consequências não serão muito nefastas. Sim, vai haver alguém a dizer: “Isto não é para mim. ” Senhoras. Mas isto deu-me uma certa aura punk. A Nêspera é uma brincadeira de rapazes?MARKL – Tivemos, entre os convidados, a Rita Blanco. Foi a única mulher. Há esse preconceito: fica mal (e a expressão é esta) a uma mulher dizer Uma Nêspera no Cu. FILIPE – Ainda existe?BRUNO – Por muito que queiramos ter mais mulheres, há esse lado. A própria convidada não se sente confortável para usar determinada linguagem. Mas há sempre maneira de contornar isso. Como? Não tens de usar palavrões. FILIPE – O conteúdo é muito infantil. Talvez por isso as pessoas achem graça e se identifiquem. E tem continuidade. Acaba o podcast e as pessoas estão no seu local de trabalho, começam a desenvolver os seus próprios dilemas. Fizemos com que todas as segundas-feiras se falasse daquilo. O pior dilema de todos, para mim, foi o do gatinho. De um lado, havia um gatinho, ao qual tínhamos de nos afeiçoar, e por fim matar numa pedreira. Do outro, um tipo que tem a suástica desenhada na testa e que vai para a Cova da Moura. FILIPE – Para mim, também é o pior. MARKL – Eu sacrifiquei-me pelo gato. Este dilema, ao contrário de quase todos os outros, não tem palavrões, não tem que ver com sexo. É de longe o mais violento. MARKL – É sangrento e mau. Roça o evil. BRUNO – Gosto mais quando é um dilema elaborado e perverso. Dá-me mais quentinho aqui no estômago. Especialmente sabendo que eles adoram gatos. MARKL – A Rita Blanco também é defensora dos animais. BRUNO – Como eu sou. Mas a Rita tem animais. O Filipe tem dois gatos com sida. MARKL – Têm a sida dos gatos. Mas está controlado. BRUNO – Não passa de gato para humano. Mas neste caso passou de humano para gato. [gargalhada] Eu tenho um cão. Gosto deste tipo de dilema. Os palavrões: só se servirem um propósito. MARKL – Quando vamos para a badalhoquice, a ideia é que, mesmo na badalhoquice, haja alguma imaginação. Para não ser, simplesmente, um arraial de palavrões. MARKL – Sim. O Carlos Vaz Marques propôs duas opções. O efeito era o mesmo: em ambas acabávamos a levar no cu. A grande escolha era entre um humano e uma máquina sofisticada. Este dilema podia ser só porco, e contado de forma resumida as pessoas ficam a pensar: “O Carlos Vaz Marques? Enlouqueceu. Um jornalista respeitado. ” Mas teve tanta graça. É poética a maneira como descreve a máquina, o funcionamento. A imaginação. . . Isto faz da Nêspera uma jam session de disparate puro. Há uma certa recorrência nesse tema. . . MARKL – Por mais que se diga, acho que o cu é uma parte muito engraçada do corpo humano. BRUNO – [Em tom filosófico] Penso que sim. Se isto for uma psicanálise, somos capazes de descobrir coisas interessantíssimas. O título já puxa a dilemas que vão para esse lado. De onde vem o título?MARKL – “Brainstormamos” muito por SMS. Lembro-me de chegar um SMS do Bruno que propunha: “E se fosse Uma Nêspera no Cu?”FILIPE – A produtora do espectáculo Deixem o Pimba em Paz estava a tentar arranjar algum tipo de apoio para esta ideia. Ao Bruno, dava-lhe gozo especial pensar que ela ia a uma reunião e que tinha de dizer que o título era Uma Nêspera no Cu. Porquê nêspera?BRUNO – Porque gosto da palavra. Sabem como se diz nêspera no Porto? Magnório. BRUNO – Um magnório no cu!MARKL – Podíamos fazer a versão nortenha disto só com convidados do Porto. Não sei explicar, mas é mais engraçado chamar-se assim, e não Um Ananás no Cu ou mesmo Um Pêssego no Cu. Fizeram oito programas, após o que interromperam para pensar o futuro do programa (escreveram isto no Facebook). Estes programas foram ouvidos por quantas pessoas?BRUNO – Um milhão e duzentas mil. Não estávamos à espera. Na verdade, estávamos à espera de deitar isto cá para fora. O caroço. MARKL – Estar em primeiro lugar no iTunes do Brasil é bizarro. BRUNO – Agora não sei se estamos. Mas estivemos. Alguém falou disto. De repente, no Twitter comecei a ter uma série de seguidores brasileiros. Aos milhares por dia. Até que percebi que um tipo. . . MARKL – “Anticast”. BRUNO – . . . que tem um podcast no Brasil (que está sempre no top), partilhou. FILIPE – Os brasileiros acham graça ao sotaque. Já que falámos em Brasil, trago a Porta dos Fundos, cujo projecto começou por só existir na Net. Há algumas semelhanças. É por não terem nenhum patrocínio, é por não estarem ligados a uma rádio ou televisão que podem fazer tudo o que quiserem. Sem compromisso. Inspirou-vos?BRUNO – Neste caso específico, não. Até porque a ideia inicial era ser só um podcast. Em qualquer caso, é incrível o poder que a Internet tem. Trata-se sempre de liberdade. Trata-se de saber, enquanto espectador, que aqueles artistas não estão condicionados. MARKL – A Nêspera representa a ideia de estarmos numa plataforma em que vale tudo. Se há sítio onde se pode experimentar e ter liberdade absoluta é o podcast. É quase como as rádios piratas nos anos 80. FILIPE – Verdade, boa comparação. MARKL – Eu estive numa rádio pirata nos anos 80. BRUNO – Com amigos?MARKL – Sim, fazíamos masturbação colectiva. [riso]Quando é que volta a Nêspera?BRUNO – Em Setembro. Se calhar vamos profissionalizar um bocadinho a coisa. FILIPE – E o espectáculo ao vivo? É um plano que temos. MARKL – O ideal seria reiniciar isto com um espectáculo ao vivo. Uma coisa bonita, com quarteto de cordas. O Filipe tem bons contactos ao nível do quarteto de cordas. E terminarmos com um dilema? Saído agora. BRUNO – Eh, pá. MARKL – Não consigo. Demoro muito tempo a pensar. [Alguma conversa fiada pelo meio]FILIPE – Já tenho um bom. Vocês são pais. A primeira opção: estão a fazer amor com a Alcione. . . MARKL – Onde é que ele vai buscar a Alcione?FILIPE – Ela abre os vossos braços, uma cena dominatrix, e vomita-vos em cima. A outra opção: vão ter de deixar durante dois dias os vossos filhos ao cuidado da Alcione. MARKL – Mas estamos com a Alcione todos os dias?FILIPE – Um dia, só. Mas vomita-vos na boca. MARKL – Na boca? Há bocado não disseste que era na boca. BRUNO – Na boca? Isto é uma entrevista! Eu escolho a primeira. Nunca deixaria a minha filha com a Alcione. MARKL – Eu também. Amor de pai. MARKL – Tens de ter algum heroísmo pelos teus filhos. FILIPE – Fui muito hardcore?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
E se trocássemos umas ideias sobre vida de casal?
O psiquiatra José Gameiro trabalha sobretudo com casais em crise. Não gosta de dar receitas, mas prescreve algumas. Por exemplo? Ouvir. Mesmo que estejamos fartos da velha conversa. E baixar a bolinha e criticar menos.Entrevista de Anabela Mota Ribeiro. (...)

E se trocássemos umas ideias sobre vida de casal?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O psiquiatra José Gameiro trabalha sobretudo com casais em crise. Não gosta de dar receitas, mas prescreve algumas. Por exemplo? Ouvir. Mesmo que estejamos fartos da velha conversa. E baixar a bolinha e criticar menos.Entrevista de Anabela Mota Ribeiro.
TEXTO: José Gameiro nasceu em 1949. É psiquiatra. No consultório onde nos encontramos, numa manhã de terça-feira, há maples individuais e um sofá onde cabem dois. Há casais que o consultam e se sentam longe um do outro. Outros repetem que continuam a gostar da pessoa com quem vivem, não sabem é ser felizes com ela, no todos os dias. O problema é o todos os dias. O problema é o outro ter outro. O problema é o outro ser inaturável, criticar de mais, ter uma família de origem chata. Consultam-no a ver se ainda conseguem ser felizes. Alguns separam-se, outros reconstroem-se. Porquê, para ele, a terapia conjugal? “O meu fascínio profissional pelos casais tem tudo a ver com a história dos meus pais, ainda que o encontro com a terapia familiar tenha sido causal. ” O que é que um terapeuta conjugal faz, exactamente? “Trabalho a possibilidade de o amor ser vivido. ”A maior parte das pessoas está para as duas coisas. Ser amado é tão satisfatório como amar. As duas coisas são complementares. Mas ser amado é mais uma construção do que amar. Posso sentir que sou amado, e se perguntar à outra pessoa, ela pode achar que não me ama tanto, ou que me ama mais do que sinto. Para mim, individualmente, é fundamental. Já conheci pessoas que amaram com a sensação de não serem amadas da mesma forma e que conseguiram viver essa situação. Se vivem sem sofrimento, tudo bem. Também já vi muita gente que, em fases críticas de uma relação, achou que, para trás, nunca tinha sido amada, ou que nunca tinha amado. E alguém que está deprimido pode achar que faz sentido não ser amado porque não presta para nada. Sim. Há pessoas que vivem relações de 30 anos sempre a pensar: “Mas o que é que eu tenho para esta pessoa gostar de mim?” E começam à pesca das coisas que têm ou não têm. Gosta-se porque se gosta, ama-se porque se ama. Quando amamos alguém, não sabemos muito bem porquê. Quando deixamos de amar, arranjamos 30 razões para dizer porquê. Completamente. Já há muitos anos que desisti de perceber porque é que gostamos de outra pessoa. Há quem diga que é o cheiro. É uma coisa irracional. Isto não tem nada que ver com a relação ser mantida. Se viver com alguém, tenho de me adaptar, e vice-versa, à pessoa. E as cedências, as negociações, são feitas em nome daquilo que sinto e que a outra pessoa sente. Se queremos estar juntos, não temos outro remédio senão adaptarmo-nos. Ou então separamo-nos. Separarmo-nos de uma pessoa de quem gostamos, e que gosta de nós, é estúpido. Parto do princípio, porque mo dizem, que continuam a gostar um do outro. Isso é uma coisa que não trabalho. O amor não é trabalhável. Trabalho a possibilidade de o amor ser vivido. Aí tem que ver com os comportamentos. A definição que vou dar é um bocadinho egoísta. É gostar de estar com a pessoa. Isto não chega. . . Mas é gostar de estar com a pessoa de uma forma bastante permanente. É gostar de ir ter com ela. É sentir necessidade de estar com ela. É sentir falta quando não se está. E é também uma espécie de solidariedade e de intimidade que se cria com alguém. Não posso estar com alguém com quem não estou solidário. Posso ter opiniões diferentes, mas tenho de ser solidário. Se a minha mulher vem falar da sua vida, do seu trabalho, ela não espera que me comporte como um colega. Espera que eu perceba qual é o seu ponto de vista. Não há objectividade numa relação amorosa, não pode haver. Os casais que trabalham juntos podem ser um problema. O problema maior é a vida conjugal ser invadida pela vida laboral, e as discussões conjugais serem trazidas para a vida laboral. É uma situação especial, não aconselho. Mas há quem sobreviva bem a isso. A competição pela pressão social é sobretudo um problema dos homens. As mulheres estão cada vez mais em lugares de destaque, de maior visibilidade. Depois, há a questão do dinheiro. Um homem ganhar mais do que uma mulher não é um problema, uma mulher ganhar mais do que um homem é, muitas vezes. Se falar de mim, não. Sou um filho de pais separados. A relação conjugal que vi foi sempre de tensão e conflito. No entanto, o meu modelo de relação conjugal não é de modo nenhum esse. Vivo muito mal numa relação conjugal conflitual. Não tenho dúvidas de que a história pessoal influencia, mas com a idade e a experiência clínica acho cada vez mais que as pessoas se podem libertar da sua história passada. O meu fascínio profissional pelos casais tem tudo a ver com a história dos meus pais, ainda que o encontro com a terapia familiar tenha sido causal. Os meus pais casaram-se em 1944. Nasceu a minha irmã em 45 e eu em 49. É uma história de amor que durou até ao fim da vida dos dois, ainda que com a separação. Pode ser uma construção minha, mas tenho dados objectivos. O meu pai era um filho-família do Ribatejo, com algum poder económico. Sim. Gente da Escola Agrícola de Santarém. Era o filho mais velho de três irmãos, com uma relação fusional com a minha avó (era o filho claramente preferido). Conheceu a minha mãe, que era filha única de um casal de origens pobres, da zona de Tomar. O meu avô materno foi para África em 1914 ou 1915, quando casou, e ganhou muito dinheiro no Lobito, com um negócio de venda de carros. A minha mãe nasceu lá. Vinha cá muitas vezes. Marcaram-me as histórias das viagens de barco da minha mãe. As viagens duravam um mês, do Lobito a Lisboa. Ia a bailes todas as noites, dançava, falava. Fez 15 ou 17 viagens. E num Verão conheceu o meu pai, na Nazaré. As pessoas do Ribatejo iam muito à Nazaré, à praia. Apaixonaram-se. Não tinham nada a ver um com o outro. A minha mãe estudou piano e falava Francês, literalmente. Sim. O meu avô vem de África, reforma-se. Comprou prédios em Lisboa, que ainda são nossos, e vivia dos rendimentos. Penso que também emprestava dinheiro, que funcionava como financiador das construções dos chamados “patos bravos”. Casam contra a vontade dos meus avós maternos. A história que ouvi é que receberam informações de que era de boas famílias, mas um bocadinho levantado. Mulherengo. Sempre foi. Foram viver para Torres Novas, onde era a quinta dos meus avós. Não sei. A minha mãe tinha uma paixão muito grande pelo meu pai. Desde cedo correu mal. O meu pai ia a Lisboa quase todas as noites. Estamos a falar dos anos 40, as estradas eram como eram. Dizia que ia tomar café e ia passear com os amigos. Tinha três carros. Um com o qual ia, um em Lisboa para o caso de o outro se avariar, e outro para um amigo, para o desenrascar. O meu pai tem histórias, tem aventuras, mas a minha mãe aguentou sempre. Sempre. Sabem sempre. Aos meus oito anos, a minha irmã tinha 12, o meu pai apaixonou-se e saiu de casa. Uma das minhas memórias mais fortes é a saída do meu pai de casa. A minha mãe tenta que o meu pai não saia. “Não te vás embora!” Ofereceu-lhe de presente um estojo de barba muito bonito. Os meus avós ficaram muito contentes. Não gostavam do meu pai. E o meu pai achava os meus avós uma seca. Ao domingo tínhamos de ir todos passear o Mercedes para o Estoril. “O senhor do Mercedes”, como ele dizia, era o sogro. Mais tarde falámos muito disto e o meu pai sempre disse que a minha mãe era controlada pelos pais, que não conseguia libertar-se daquilo. Passados dois ou três anos, há um processo em tribunal. Os meus avós resolvem fazer uma separação. Não havia divórcio. Aliás, nunca se divorciaram. O advogado da minha mãe é o Azeredo Perdigão, que dá cabo do meu pai. Mas não provocaram a separação. Acontece que a minha mãe se torna. . . uma espécie de namorada do meu pai. Mantêm uma relação, clandestina aos meus avós. Havia um problema importante, o económico. O meu pai tem uma relação com o dinheiro complicada. Ora tinha, ora não tinha. Era um tipo generosíssimo, mas muito irresponsável. Durante anos não nos deu um tostão. A minha mãe tem de ir ter com os meus avós para receber uma mesada. Quando a minha mãe e o meu pai começam a sair, de vez em quando saíamos os quatro no carro. A minha irmã e eu não percebíamos nada. Não podíamos dizer nada aos avós. Isto durou uns tempos. Não. O meu pai era regente agrícola, depois começou a vender imobiliário, depois voltou a ser regente agrícola. Teve uma vida profissional sempre oscilante. Várias vezes diz à minha mãe que quer voltar. A minha mãe diz sempre a mesma coisa: “Podes voltar, mas larga essa mulher. Vives sozinho durante uns tempos e depois voltas. ” Parece uma coisa de bom senso. A determinada altura, penso que por dificuldades económicas, decide ir para São Tomé e Príncipe. Disse à minha mãe que ia sozinho, mas não foi. O meu pai não conseguia estar sozinho. Há-de confessar-me que não conseguia dormir sozinho. Sim. Em São Tomé tem um AVC, com 49 anos. Faz uma depressão violentíssima. Volta passado um ano e a situação mantém-se igual. Nunca consegue separar-se da mulher. Acho que a relação com a minha mãe nunca passou disto, não estou a ver que fosse uma relação íntima. A minha mãe era muito especial nisso. Pode ser a minha visão, não sei. Não me faria confusão nenhuma, até achava graça, mas não acredito. O meu pai: deixou de trabalhar, herdou, fazia uma vida boémia. Ia para o Gambrinus todos os dias lanchar. Era o poiso dele na Baixa com os amigos. E muitas vezes, já com um copo a mais, telefonava à minha mãe. Há vários interregnos nisto. Depois nasce a minha sobrinha, e a partir daí começam a encontrar-se na casa da minha irmã. Uma relação familiar. Mas nunca com a senhora. O meu pai nunca tenta impô-la. Conhecia-a desde sempre, ia lá a casa de vez em quando almoçar, jantar. A minha irmã, menos, tinha mais dificuldade nisso. Mas o meu pai ia muito a minha casa, no meu primeiro casamento, e a senhora nunca ia. Depois da separação, há longos períodos em que ele desaparece. Mais tarde explica que desaparece porque não tem dinheiro. (O meu pai separa-se em Outubro ou Novembro e vai no Natal lá a casa oferecer-me um comboio eléctrico. O primeiro que tive. Ainda hoje tenho comboios eléctricos. ) Mais tarde a relação normaliza-se. Estou com ele frequentemente. Tiro a carta e empresta-me o carro, depois dá-me um carro. Inverte-se a relação: sou um bocadinho pai dele. Tem problemas de saúde, é hipertenso, come e bebe bem. O meu pai fazia as suas rábulas, dizia: “Tem juízo. ” Mas nunca foi o meu educador. A minha mãe é a figura importante desse ponto de vista. O meu pai é o chamado “gajo porreiro”, de quem gostei muito, a quem perdoei o abandono. Não tenho nenhum conflito com ele neste momento. Na verdade, nunca cheguei a ter. Eu dava-lhe conselhos. Abria-se muito comigo, contou muita coisa dele. Sim. Que nunca tive com a minha mãe. Era uma relação fortíssima, sofri muito com a morte dela em 2008. Foi um luto que demorou muito tempo a resolver-se. Mas é uma pessoa com quem quase não falei de mim. É paradoxal. A minha mãe não permitia muito isso, queria que estivesse tudo bem e tudo calmo. Separei-me e levei muito na cabeça. Nunca teve disponibilidade para ouvir o que sentíamos, como é que estávamos. A minha mãe tinha uma relação connosco muito pela comida e pela casa. Uma coisa muito primária. Sinto imenso a falta dela. Não para falar com ela. Para ela estar ali. Costumo dizer a brincar: tive pais separados quando ninguém tinha, tive um pai que foi irresponsável durante muito tempo, e estou aqui, não estou muito mal! [risos]Percebo que se pretende trabalhar com os pais nas suas dificuldades funcionais. Mas educação parental é uma coisa que não faz nenhum sentido. Há 20 mil maneiras de se ser pai. Aquilo que é o modelo de uma família funcional não existe. Pode haver famílias aos nossos olhos disfuncionais, em que os miúdos ficam sozinhos e não tomam banho, e que são funcionais. Os técnicos têm uma imagem e estão cheios de preconceitos. E muitas vezes aplicam estes preconceitos a famílias a que não faz sentido que sejam aplicados. Sim. E o sentir-se amada pode ser de 20 mil maneiras. Uma criança para crescer e para ter alguma saúde mental tem de ter sido amada. Não tem de ser amada pelo pai e pela mãe, pode ser amada só pelo pai, só pela mãe, por uma tia, uma avó ou por uma figura muito importante. Alguém que seja contentora. Se isso tem de ser feito numa família tradicional? Nem pouco mais ou menos. A adopção por casais homossexuais: a questão que ponho é social. Como é que um miúdo na escola vive isso? É uma treta dizer-se que o miúdo precisa de uma figura masculina e de uma feminina. Eu posso ser uma figura feminina, apesar de ter pénis. No sentido de ser aquilo que é tradicional na figura feminina: mais acolhedor, mais colo. Não tem de passar pela anatomia das pessoas, muito menos pela orientação sexual. De mais. Não. Quem entra aqui está sofrer. Raramente uma pessoa entra aqui só para se conhecer a si própria, sem que tenha havido um gatilho de sofrimento. Isso é verdade. As pessoas muitas vezes vêm aqui e dizem: “O que estou a sentir é isto. É normal?” As pessoas não são tão diferentes como isso em relação ao sofrimento. Quando percebem que aquilo que estão a sentir não é nada do outro mundo, que não estão sozinhas, e que é uma coisa que é trabalhável e ultrapassável, ficam mais tranquilas. Há pessoas que querem ser normais, formatadas, e há outras que não querem. Querem ter a sua individualidade e a sua maneira de estar. Não querem é sofrer com isso. Veio o 25 de Abril, o meu pai podia ter-se divorciado e nunca se divorciou. A minha mãe também nunca quis o divórcio. O meu pai morre bastante tempo antes da minha mãe. Tem um AVC e fica com uma demência vascular durante quatro ou cinco anos. Morre em 1987. A minha mãe faz um luto complicado. Nunca foi vê-lo, nunca conheceu a mulher com quem ele vivia. A história acaba assim. Até esse AVC a relação deles é muito frequente, quase todos os fins-de-semana se encontram. Creio que não tinham encontros só os dois. Não sei dizer. Ela arranjava-se sempre bem. Havia um charme, tanto quanto a minha mãe conseguia ser charmosa. A vida fê-la dura. O meu pai esbanjava charme. Não havia nenhuma mulher que não gostasse dele. Mais tarde soube muita coisa através do Ayala, que foi secretário do meu pai. O Ayala tinha sido secretário do Humberto Delgado. Nunca disse ao meu pai que trabalhava na oposição. O meu pai era apolítico. Era contra o Salazar, mas não tinha actividade política. Venho a encontrar o Ayala quando estou na Câmara de Lisboa, com o Jorge Sampaio [foi assessor do ex-Presidente]. Quis. Eram sobretudo histórias de relações com mulheres. E histórias de dificuldades económicas que teve. Houve. Uma vez o meu pai tentou falar da relação íntima com a minha mãe, a meio de um almoço já bem regado. Disse: “Pai, isso não quero. ” Foi a única vez que me lembro de ter sentido incómodo. Nunca falei com a minha mãe sobre isso. Não. Quando se fala de dizer tudo, normalmente fala-se de relações extraconjugais. Não é disso que estou a falar. Um exemplo: se a minha mulher, numa conversa com a mãe dela disser mal de mim, não quero saber. E a minha mulher terá o bom senso de não me dizer. Pode ser um desabafo do momento e vai inquinar a minha relação com a minha sogra e dificultar a minha relação conjugal. Será que preciso de saber que a outra pessoa teve uma relação ocasional com alguém? Se não souber, não me importo, se souber, importo-me. O que sei é que algumas relações conjugais estão paradas no tempo porque uma das pessoas tem uma relação fora do casamento e essa relação não é clara. A outra pessoa não sabe, ou se desconfia, [faz de conta que] não sabe. E a relação não avança nem recua porque há uma energia amorosa que não está investida ali. Digo às pessoas — e são muitas as que me procuram numa situação desse tipo —, individualmente: “Há duas hipóteses: ou você diz e há uma crise, e a partir daí as coisas ficam diferentes, e não vai ser fácil; ou você não diz e isto não mexe. ” O problema de uma pessoa que é casada e que tem uma relação extraconjugal, já com algum tempo, e que não consegue nem dizer nem sair da relação, é que aquilo fica parado. O sistema equilibra-se num certo sentido, tornando a relação conjugal numa relação tensa, sem resolução. É apanhada. Não diz. O ser apanhado é bom no sentido da evolução. O casamento pode rebentar. A maior parte das vezes não rebenta. A partir daí nada será igual. O dizer tem duas consequências: a primeira é o medo que a outra pessoa lhe ponha as malinhas à porta. A outra: perde também a clandestinidade. Dá uma força às relações, a clandestinidade. . . Quando alguém se apaixona de facto fora de casa, é difícil manter uma energia na relação em casa. Se é uma relação “só física” (com todas as aspas), aí sim, pode trazer energia à relação de casa. Menos. É. Os filhos não gostam que os pais se separem, mas sobrevivem. Sobrevivem mal é ao conflito depois da separação, se ele é violento e longo. Contudo, há quem fique porque acha que isso é traumático para os filhos. E há muita gente que adia cada vez mais a separação (agora os filhos têm um exame, depois vão fazer anos, depois há o Natal). Há pessoas a quem faz muita impressão que os filhos fiquem sem os pais juntos. Sim. Hoje os pais mudam a fralda, limpam o cocó, dão banho. O vínculo que se cria com as crianças é muito mais forte. Tenho homens na consulta que sofrem horrores com a ausência dos filhos. E que se culpabilizam da separação. Às vezes, é verdade, outras vezes é uma grande treta [risos]. Às vezes, a relação física em casa mantém-se muito boa. E ambas as relações físicas são muito boas. Alguém que está sozinho e que tem uma relação com um homem ou com uma mulher casada vai acreditando que ele ou ela se vai separar. Até que há uma altura em que começa a não acreditar. E depois leva muito tempo a conseguir separar-se. A vida das pessoas é à base dos bocadinhos, das fugas, das coisas rápidas. Essas pessoas isolam-se muito para estarem sempre disponíveis. Têm vergonha em relação aos amigos. As relações de amantes têm uma semivida que não é eterna. Mas é muito difícil manter uma relação deste tipo durante muito tempo. Nos primeiros meses há projectos de vida em comum. Depois há um tempo em que, se esses projectos não se concretizam, a relação começa a decair. Há um tempo útil para a separação, após o qual é muito mais difícil separarem-se porque se instalam na situação. É muito raro, da minha experiência clínica, um casamento que acabe ao fim de anos de relação extraconjugal. É a relação extraconjugal que vai acabar ou que se vai espaçando. Não. O grande problema das relações conjugais é as pessoas deixarem de gostar uma da outra, obviamente. Hoje as pessoas separam-se porque são infelizes na relação conjugal. E são infelizes quando deixam de gostar ou quando deixam de sentir que a outra pessoa gosta delas. As razões por que isso acontece podem ser várias, mas é o que desencadeia a relação. E quer se queira, quer não, continuamos a acasalar para o resto da vida. Mesmo que estatisticamente isto seja um disparate. Quando as pessoas se juntam com alguém, nunca há a ideia da separação. E quando se confrontam com a situação de que são infelizes começam a pôr a relação em causa. Isso é um luto que tem de se fazer. Não é fácil para ninguém separar-se. Sim. Mesmo que queira separar-me (já passei por isso), mesmo que seja um alívio, é um falhanço. É uma coisa que não resultou. As relações falham porque as pessoas não conseguem adaptar-se a viver em comum. Viver em comum não é nada fácil. Há pessoas que estão sempre a criticar, a culpabilizar, a apontar defeitos. A coisa mais devastadora numa relação conjugal é a crítica. Isto está estudado. É muito diferente dizer a uma pessoa: “Não ponhas a camisa aí, põe ali”, ou não dizer nada e mudar a camisa. Ou então dizer: “És uma besta, és desarrumada”, e atacar a pessoa por causa da porcaria de uma camisa. Numa relação conjugal, é muito fácil criticar porque conheço a pessoa muito bem, sei onde é que vou atingi-la. Desde as coisas mais íntimas, ao nível da sexualidade, até às coisas banais do dia-a-dia. Ninguém sobrevive a um ataque sistemático. Posso gostar muito de alguém, mas não consigo aguentar estar sempre a ser posto em causa. Gostar é gostar de estar com a pessoa. Isto não chega. . . Mas é gostar de estar com a pessoa de uma forma bastante permanente. É gostar de ir ter com ela. É sentir necessidade de estar com ela. É sentir falta quando não se está. E é também uma espécie de solidariedade e de intimidade que se cria com alguém. Não tenho dúvidas de que a história pessoal influencia, mas com a idade e a experiência clínica acho cada vez mais que as pessoas se podem libertar da sua história passada. Costumo dizer a brincar: tive pais separados quando ninguém tinha, tive um pai que foi irresponsável durante muito tempo, e estou aqui, não estou muito mal!Viver em comum não é nada fácil. Há pessoas que estão sempre a criticar, a culpabilizar, a apontar defeitos. A coisa mais devastadora numa relação conjugal é a crítica. A relação com as famílias de origem. Se tenho uma relação difícil com a família da minha mulher, ela está metida num conflito de lealdades. Na cultura latina, as relações com a família são muito importantes. Há sogras muito intrusivas, difíceis de controlar. Se uma sogra chega a casa e começa a mandar palpites, aquilo ao fim de pouco tempo está estragado. E o marido, coitado, fica ali entalado no meio. As sogras não são controláveis. Ninguém consegue controlar uma mãe quando ela tem o nariz empinado. São pessoas de uma certa idade que acham que fazem tudo muito bem. Tem de se viver com isso e aceitar que aquilo que a sogra diz, paciência, disse. Outra questão: os modelos diferentes de educação dos filhos. Quando se tem um filho adolescente que começa a querer sair, e um é mais liberal, e outro mais repressivo, há uma negociação que não é fácil. Uma negociação que passa muitas vezes pelo não verbal. (Nos casais o não verbal é muito importante. Posso estar a desqualificar o que a minha mulher está a dizer sem abrir a boca. São coisas muito finas, não explícitas, e que dão conteúdo à relação. )E que a outra pessoa não tem disponibilidade, não tem pachorra, ou que está farta de a conversa ser sempre igual. Em relação a isso, dou uma receita. Digo isto mais aos homens do que às mulheres. As mulheres têm mais pachorra para ouvir, gostam de dar palpites. “O casamento tem uma folha de serviços, que varia de casamento para casamento, mas há uma tarefa que tem de se habituar a fazer: ouvi-la. ” É quase uma perspectiva machista. “Ela está a falar do trabalho, você tem de ouvir. E tem de ouvir sem ler o jornal ao mesmo tempo, com a televisão desligada e com um ar atento, mesmo que seja a maior seca. Segunda coisa: não pode criticá-la nessa altura, mesmo que ache que aquilo é uma parvoíce. Mais tarde, fora desta conversa, se achar que há coisas que deve dizer, diz. ” Pode dizer que isto é paternalismo. Por um lado, sim, por outro, não. Tenho de fazer muita coisa na relação conjugal em nome da outra pessoa. Desculpe a brutalidade do que vou dizer: qual é a diferença entre ter de ouvir a minha mulher e mais tarde ela ter de me lavar o rabo quando for velho? São duas coisas que podem não ser agradáveis, mas que devem ser feitas em nome da relação. Não é possível um casamento sem fretes. Por exemplo, está-se com uma pessoa para quem é muito importante todas as semanas almoçar com a família. Até se acha a família simpática, mas não se tem grande conversa. Pode-se ir só uma vez por mês, se isso for possível e não for um problema. Se para ela for importante que o outro vá, e se não ir for sentido como uma coisa de desprezo pela família dela, tem de ir. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há pessoas que entendem isto como engolir sapos e há pessoas que sentem isto como uma coisa que faz parte. [riso] Enquanto são casais, são felizes. Alguns já se separaram, voltaram a casar. Hoje, mais do que antigamente, a maior parte dos casais que estão em casal são felizes. Uma grande parte dos casais que estão infelizes, ao fim de um tempo, separam-se. Isto não quer dizer que não haja momentos de infelicidade na vida dos casais. Com esta crise económica, muitas pessoas estão infelizes no trabalho, estão desempregadas, e cada vez mais a casa, a família, o casamento, é o local da sua felicidade. O casamento tornou-se uma coisa muito mais viva, muito mais forte do que era.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens filha escola cultura filho tribunal educação ataque mulher homem adolescente social criança medo espécie sexual mulheres sexualidade casamento feminina luto vergonha divórcio pénis
McQueen selvagem
Savage Beauty, a exposição que celebra a obra de Alexander McQueen, é como a picada de uma aranha — não nos mata, mas é tóxica (...)

McQueen selvagem
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Savage Beauty, a exposição que celebra a obra de Alexander McQueen, é como a picada de uma aranha — não nos mata, mas é tóxica
TEXTO: A beleza do mundo de McQueen é de facto agreste, indomesticada, não assimilada. É bravia, nómada, às vezes rude. Nos momentos mais extremos, chega a ser bárbara. Por outro lado, tem sempre lá dentro uma sombra fetichista, qualquer coisa de mórbido e grotesco, qualquer coisa de fantasmático e assombrado. Todas essas características sobrepostas tornam-na muitas vezes inquietante. Aterrorizadora, mesmo. Que dizer, por exemplo, da mulher negra de cabelos escorridos e unhas enormes que vemos agora com as pernas e os braços agrilhoados a um enorme quadrado de ferro enquanto tenta penosamente descer uma escadaria?Estamos no coração de Savage Beauty no Victoria and Albert Museum, em Londres. E — tal como há quatro anos, no Metropolitan Museum (Met), em Nova Iorque — o coração de Savage Beauty na capital britânica é uma sala relativamente pequena mas com um pé direito altíssimo. É nesta sala que toda a gente pára e se senta, como se precisasse de respirar fundo depois das salas anteriores. Só que, quando a beleza que nos devora é selvagem, não há descanso possível. Em momento algum. No coração de Savage Beauty, estamos no interior de um gabinete de curiosidades. A toda a volta, do chão ao tecto, há informação visual. Fazemos parte de uma estante habitável e os nossos olhos percorrem um compartimento após outro. Dentro de cada um, uma peça. Vestidos, sapatos, corpetes, máscaras, toucados… Depois, pelo meio, há ainda monitores por onde passam registos videográficos de alguns dos desfiles de McQueen. A bizarra mulher negra de que falávamos surge num desses registos. Foi em 1997 e o desfile chamava-se Bellmer La Poupée — era a colecção de Primavera/Verão e a mulher era a manequim Debra Shaw, quase nua sob um vestido de rede preta, franjas a baloiçar em volta do corpo magro, seco e longilíneo, o grilhão de ferro a tolher-lhe todos e cada movimento. De tal maneira que não parece completamente humana. Há qualquer coisa de macabro nesta grande marioneta saída de um filme de terror. E o cenário que a rodeia só contribui para o arrepio: desfila sobre uma passerelle inundada de água, como um calabouço esquecido e húmido, ali onde um mal se esconde e nos espreita, pronto a atacar. Quando Savage Beauty foi inaugurada em Nova Iorque, tornando-se um inesperado blockbuster — mais de 600 mil visitantes em menos de três meses (filas sem fim, manhãs e noites de abertura especial, encerramento adiado por toda uma semana…); uma rival directa de recordistas históricas como Mona Lisa (1963) e Os Tesouros de Tutankamon (1978) —, o Met recolheu testemunhos junto dos que acompanharam o percurso de McQueen. Alguns dos que em 1997 assistiram ao vivo a “Bellmer La Poupée” passaram nota de ter sido doloroso ver Shaw evoluir lentamente pelo espaço. Mas eram opiniões recolhidas nos Estados Unidos, onde o grilhão sobre o corpo de uma manequim negra foi visto como uma referência à escravatura. Talvez. Mas a leitura esquece o título da colecção, que referencia directamente o artista alemão Hans Bellmer. Nascido em 1902 em Kattowitz — hoje Katowice, na Polónia —, Bellmer foi um frontal opositor ao regime nazi. Na década de 1930, as suas bonecas de corpos macabramente reconfigurados foram uma declaração de força contra o culto do corpo e do ideal físico ariano — uma escolha que terá sido influenciada pela leitura de Oskar Kokoschka, o artista, poeta e dramaturgo austríaco cuja obra foi banida pelo III Reich sob o selo “Arte Degenerada”. ? Não. Não com Bellmer. Nem com McQueen. Com McQueen mente e o corpo são sempre virados do avesso, nunca perseguem o cânone positivista. Com McQueen, a única sanidade reside na capacidade e coragem de trazer à superfície os recantos esconsos e descontrolados do reprimido. Por muito negros que sejam — e com ele são quase sempre. . . Com McQueen, trata-se de revelar a ferida escondida, de saber — e mostrar — que toda a luz implica sombra. E que a sombra é densa. É a profundidade a vir à tona. E é isso que nos rouba o ar enquanto avançamos por Savage Beauty, a exposição — aqui, estamos sempre nus frente ao espelho; e o espelho não foi polido até reluzir. Ou, por outra: talvez na verdade não seja um espelho, mas, antes, a superfície turva de uma visão oracular — o que vemos quando nos debruçamos sobre a bacia de sangue. “Há qualquer coisa de sinistro no que eu faço”, disse um dia McQueen. Explicando: “Há uma certa tristeza [na minha obra], mas acho que a tristeza é romântica. Suponho que sou uma pessoa melancólica. ”Foi ele também quem disse: “Acho o grotesco belo, como a maioria dos artistas. ”Alguns. Sim. Bellmer e Kokoschka, Horst P. Horst e List, mas também nomes vindos muito mais de trás, como Bosch, Vesalius, Campin, Hinz, Aldrovandi, Amusco, Muybridge, e contemporâneos, como Rebecca Horn, Damien Hirst, Jake e Dinos Chapman, Matthew Barney… A todos — e muitos outros — McQueen foi buscar qualquer coisa. McQueen não foi o primeiro nem será o último nome da moda a mergulhar nas artes plásticas e a voltar de lá com uma obra densa de evocações, referências e citações. Mas fê-lo com uma verve e irreverência raras. Fê-lo quase sempre em relação a autores que partilham a sua paixão pelo lado mais negro do romantismo. E fê-lo no momento certo. Donde o culto suscitado pela sua obra. É a antítese dos anos do american cool de autores como Calvin Klein, traduções de uma sociedade racionalista, onde as pessoas são vistas como elos idênticos de uma cadeia que tem de funcionar sem solavancos, sem ameaçar jamais a funcionalidade da economia de mercado. McQueen é o contrário dessa sensibilidade dada a regras e emoções temperadas, sem desvios nem picos. Na linha de batimento cardíaco, McQueen é o momento do AVC — o momento em que entramos em falência e vamos ser ressuscitados. “Pagámos um preço suficientemente alto pela nostalgia do todo e do individual, pela reconciliação do conceito e do sensível, do transparente e da experiência comunicacional”, escreveu o filósofo Jean-François Lyotard. Para concluir: “Na viragem do século XX [para o século XXI], sob a demanda geral de apaziguamento, podemos ouvir os murmúrios do desejo pelo regresso do terror. ”O terror — infinitamente sublime — é uma forma de voltar a sentir. E com McQueen é tudo sentimento e êxtase. Com ele, deixamos o mundo moderno das ruas luminosas e dos arranha-céus de vidro, viramos costas à tecnocracia e às filas de trânsito. Visitamos ruínas, perdemo-nos em florestas, enterramo-nos em pântanos e travamos batalhas históricas. Com McQueen, não estamos aqui, agora — estamos em todo o lado sem estar em lugar algum, somos tudo e não somos nada: viajamos para a frente e para trás no tempo a matar e morrer, uma e outra vez. Fizemos um longo caminho até poder viver isto. A moda fez um longo caminho na moldagem da sensibilidade do seu público para poder apresentar-se assim. Foi preciso passar primeiro por gente como Vivienne Westwood e Thierry Mugler — porventura os dois nomes mais próximos do imaginário de McQueen. Um dos vestidos de McQueen tem um corte do peito à pélvis e está pintado de negro e vermelho em volta, como uma ferida. Uma das noivas em renda branca tem um toucado de hastes de veado cobertos por uma imensa rede em balão, a esconder o rosto — ela caminha, mas podia estar morta. Como a manequim de corpete de plástico coberto de vísceras. Ou aquela outra de cabedal preto e mascarilha que aparece dependurada de cabeça para baixo, como um vampiro. E depois há os Cristos na cruz, os palhaços com lágrimas de sangue, as asas arrancadas inteiras a pássaros grandes, as borboletas…McQueen não esteve sozinho em tudo isto, a invocar sempre dor. Na mesma década de 1990, no teatro britânico, nomes como Sarah Kane, Mark Ravenhill e Anthony Neilson levaram à cena incesto e violações, depressões, mutilações e suicídios, infanticídios e pactos de morte. “Se se aborda a masculinidade, então mostram-se violações; se se está a tentar falar sobre sexo, então mostra-se fellatio e penetração anal; quando a nudez está em questão, então a humilhação também está; se se quer violência, encena-se tortura; se as drogas são o assunto, mostra-se adição. Se os homens se portam mal, então as mulheres também”, escreveu o crítico de teatro Alek Sierz. Era a geração In-Yer-Face — onde tudo era um murro na redescoberta de um espírito de indignação, aparentemente. Mais havia mais filhos do “thatcherismo”. Como a geração Young British Art, com a qual tudo era também estratégia de choque e murro no estômago — camas desfeitas e sujas, animais fatiados e conservados em formol, corpos decepados…McQueen faz parte destas famílias. E a imensa beleza disso é de facto selvagem. Será que alguma vez conhecemos Alexander McQueen? Será que precisamos de o conhecer nalguma versão do que foi a sua intimidade? Quão profundo pode ou deve ser o olhar sobre a vida de um designer que sempre anunciou que o seu trabalho era eminentemente autobiográfico? Estas são algumas das perguntas que se levantam perante os dois novos livros lançados no Reino Unido semanas antes da inauguração de Savage Beauty, a exposição dedicada a “um artista que calhou trabalhar em vestuário”, como descreveu a reputada crítica de moda Suzy Menkes no elogio fúnebre de McQueen. Menkes, então editora de moda do International Herald Tribune (agora é editora internacional da Vogue), é apenas uma de dezenas de figuras da indústria, das relações pessoais e espectros do passado que surgem tanto em Alexander McQueen, Blood beneath the skin (ed. Simon & Schuster), de Andrew Wilson, quanto em Gods and Kings (ed. Allen Lane), de Dana Thomas. E foi Menkes que, no púlpito da Catedral de São Paulo, em Londres, na homenagem prestada ao designer em Setembro de 2010, recuperou uma recordação perturbadora — a de uma conversa em que o criador falava de si no passado. “A raiva no meu trabalho reflectia a inquietude na minha vida pessoal. ” Lee Alexander McQueen suicidou-se aos 40 anos, uma semana depois da morte da sua mãe por cancro — uma das mulheres mais importantes da sua vida e que “pode ter sido a única pessoa a quem obedecia”, como escreve Thomas. O relato de Wilson, que já biografou as escritoras Sylvia Plath e Patricia Highsmith, avisa na capa: “Escrito com o apoio da família McQueen. ” É o único. Gods and Kings, escrito pela colaboradora da T Magazine do New York Times e que explora a ascensão e queda de McQueen e de John Galliano, não contou com tal luz verde. É Wilson quem vai mais longe no esgravatar de algumas feridas na sua versão “autorizada” da história do rapazinho do East End londrino que se fazia de extremos e contradições. Lee, como era conhecido no seu círculo mais próximo, era relutantemente proletário nas suas origens mas desconfortável na abundância que o sucesso profissional lhe trouxe, uma figura arrogante e tímida com uma mente na alta cultura e trato pouco sofisticado que encontrava a sua eloquência, superlativa, na criação de moda. E em particular nos seus desfiles, que atribuíam contexto e densidade a peças de enorme beleza (e, frequentemente, violência). “O que vêem no trabalho é a pessoa em si”, reiterou à Harpers Bazaar em 2007, citado por Thomas. E essa pessoa foi vítima de abusos vários. É graças a Wilson e aos familiares de McQueen que se nomeiam e descrevem alguns desses abusos com mais detalhe. Resumindo: McQueen foi violado na pré-adolescência. “Ele roubou-me a inocência”, diz o designer, citado por terceiros, sobre o cunhado, que agredia também a sua irmã mais velha. A psicologização da revelação vai desde a sua relação com o sexo e as suas preferências (fonte de algumas entradas voyeuristas em ambas as obras) até ao efeito que a indústria teve na sua (fatal) insegurança — tese parcial dos dois livros. E essa ligação da narrativa pessoal à expressão artística passa ainda por um elo inevitável à mulher que Lee Alexander McQueen vestia nos seus sonhos e pesadelos. Na adolescência, Lee fazia vestidos para as suas irmãs e aconselhava-as no vestir. “Estava sempre a tentar fazê-las parecer fortes e protegidas”, dizia, citado em Gods and Kings. As três irmãs eram o seu arquétipo, o seu símbolo de mulher. Um feminino vulnerável mas resiliente, “um sobrevivente” como escreve Andrew Wilson — “Esta era a mulher que ele queria proteger e empoderar através das suas roupas. ” Um mergulho em Savage Beauty ou um folhear de imagens na Internet mostra a sua interpretação tortuosa do corpo. Da mulher social, com ou sem roupa. Mas sempre com carga, estética e conceptual. McQueen é dramático. Cinco anos depois da sua morte e com a sua crescente ascensão no panteão da moda, há muitas histórias contadas sobre ele — e muitas pelo próprio, minadas pela subjectividade do fabrico de uma personagem pública — mas também muitas lacunas. Os dois livros surgem na crista dessa onda, talvez não como biografias na pura acepção da palavra, mas como colecções de polaróides de figuras extintas (uma delas, a de Galliano, agora renascido na casa Margiela depois do escândalo que o afastou da Dior em 2011). São as revelações sensacionalistas (encontros sexuais, paranóia securitária, consumos e dependências) que mais críticas suscitaram aos dois livros. Afinal, “Lee é Marilyn Monroe. Ele é James Dean”, como disse recentemente Sarah Burton, amiga e número dois na casa McQueen e que viria a tornar-se sua sucessora na marca, ao diário britânico Telegraph. Morreu jovem, talentoso, paga o preço da imortalização com o garimpo de sinais, sintomas e chaves para o mistério da mente criativa. Lee era um génio atormentado, um rapaz disléxico que desde criança sabia ser gay, vítima de bullying, eterno envergonhado pelo peso ou pela dentição torta. Mas foi também um skinhead temporário ou um brincalhão que dizia ter escrito obscenidades nos forros dos casacos para o Príncipe Carlos quando era aprendiz de alfaiataria em Saville Row. E ainda “uma criatura verdadeiramente aterrorizadora”, “pouco claro, abrasivo e simples”, “e absolutamente brilhante”, como recorda o editor da Vogue EUA, Hamish Bowles, sobre um encontro com o designer no início da década de 1990. econtam histórias do rapaz que pôs o seu cabelo nas etiquetas das suas primeiras peças, que misturou a fotografia de hermafroditas de Joel-Peter Witkin e o filmenuma colecção (Dante, 1996), ou Van Eyck e garrafas de cerveja partidas noutra (, 1993). Esta última, aliás, carregada como muitas das suas primeiras criações em grandes sacos pretos de lixo, foi perdida quando, após o seu primeiro desfile no calendário da Semana de Moda de Londres, os escondeu atrás de contentores para ir para a discoteca. Na manhã seguinte, quando se lembrou deles, já não estavam lá. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No estágio com Romeo Gigli, em Milão, aprendeu “o poder da narrativa. O poder dos arquétipos”, diz Lise Strathdee, assistente do designer italiano, a Dana Thomas. Regressado a Londres, impressionou Bobby Hillson, responsável pelo programa de mestrados da Central Saint Martins mesmo sem cumprir os requisitos académicos. Entrou. Enquanto estudava, ia a Paris ver desfiles para os quais não tinha convite e tentou mesmo estagiar na maison Martin Margiela, um dos nomes que mais admirava na moda contemporânea, mas o belga achou “que ele era demasiado talentoso para trabalhar como estagiário”, escreve Thomas. Voltou para Londres, onde fazia roupas para videoclips e o pai lhe dizia para “arranjar um emprego a sério”. Já conseguia identificar a modelagem, as entranhas, a planta do edifício que é um vestido, a olho nu. A sua importância em termos de corte e silhueta para a história da moda já é reconhecida, embora não unânime — há Galliano, a quem sucedeu na Givenchy em 1996. Em 2001, é um McQueen mais adulto que sai de Paris já com o grupo Gucci no capital da sua marca. Fará o desfile da colecção VOSS, que se torna um dos seus grandes feitos, a usabilidade das roupas aumenta. Os capítulos do sucesso nos dois livros são mais curtos, mais rápidos ou diluídos em detalhes da vida pessoal. McQueen não foi sempre compreendido — e, até certo ponto, terá gostado disso. A sua estranheza e desconforto intrínsecos, a mente perversa de que se orgulhava, a falta de confiança e a arrogância combinavam-se em declarações ácidas sobre os colegas de profissão ou a imprensa (Menkes incluída). Numa parede do caleidoscópio que é Savage Beauty, e onde está uma versão de muitos best of possíveis das imagens que criou, deixa a sua ambição por escrito: “Quero ser o fornecedor de uma certa silhueta ou de uma forma de cortar, para que quando estiver morto as pessoas saibam que o século XXI foi começado por Alexander McQueen. ”
REFERÊNCIAS:
Fazer rir sem fazer rir
Nanette, o especial de comédia da australiana Hannah Gadsby mostrado em Junho, tem tido um impacto grande. Será que há uma tendência de comédia que não é necessariamente orientada para fazer rir? O Vulture, site da New York Magazine, chama-lhe "pós-comédia". O que é que quem trabalha no meio pensa sobre isso? (...)

Fazer rir sem fazer rir
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.3
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nanette, o especial de comédia da australiana Hannah Gadsby mostrado em Junho, tem tido um impacto grande. Será que há uma tendência de comédia que não é necessariamente orientada para fazer rir? O Vulture, site da New York Magazine, chama-lhe "pós-comédia". O que é que quem trabalha no meio pensa sobre isso?
TEXTO: No ano passado, a australiana Hannah Gadsby decidiu, antes de se reformar da comédia, fazer um último espectáculo. Nanette começou no palco e chegou ao Netflix em Junho de 2018. Feito de histórias da sua vida pessoal como mulher lésbica, um alvo habitual de piadas, dos abusos que sofreu e de uma crítica à comédia, o especial teve um enorme impacto logo que saiu: fez colegas de profissão questionarem o seu trabalho, levou Gadsby ao palco dos Emmy, e travou a anunciada reforma da humorista. Nanette é um espectáculo intenso, ultra-pessoal que é por vezes irado e triste e que, durante trechos significativos, decide abandonar por completo as piadas, a cómica pensa não só sobre o que é fazer rir, mas também sobre a auto-depreciação, a saúde mental e a romantização dos problemas psicológicos na arte em geral e como esta não tem, ao longo da História, sido muito branda para com quem não é um homem branco. A hora e dez de stand-up faz parte de uma série de conteúdos diferentes entre si, sejam especiais experimentais, alguns filmados, ao contrário do que é normal, sem público ou comédias no cinema e na televisão que parecem não estar necessariamente interessados em suscitar risos, preferindo parar para reflectir sobre a própria comédia ou o absurdo da vida, contar histórias ou tratar temas sérios. Mas será que são comédias? Em Setembro, o Vulture, site de cultura pop da New York Magazine, agrupou esta tendência, com destaque para Nanette, e chamou-lhe “pós-comédia”. A peça inaugural da série de artigos sobre o assunto, de Jesse David Fox, perguntava logo no título: “Quão hilariante é que a comédia tem de ser?” Ao P2, o autor fala de como o ensaio foi recebido no mundo da comédia: “Enviaram-me mensagens a dizer que a indústria se estava a distanciar ainda mais de piadas do que eu tinha feito parecer. Posto isso, como são cómicos, muita gente só fez piadas sobre isso, a apontar o absurdo do termo, o que eu compreendo. Também houve críticas, exclusivamente de pessoas que leram mal o texto como um argumento para esse género ser melhor do que outros, por oposição ao argumento que faço, que é o de que o fenómeno existe. ”Uma das críticas mais habituais a Nanette é que não é stand-up. Que lhe faltam piadas. A própria autora gozou com isso no Twitter: “Não tenho problema com todos os homens zangados a dizerem-me que não tenho piada. Só desejava que eles pelo menos tentassem exprimir os seus sentimentos desproporcionais sobre comédia de uma maneira mais humorística. ”Essa visão negativa não é partilhada pelos profissionais de comédia com quem o P2 falou. Laraine Newman, do elenco original de Saturday Night Live, declara: “Eu diria que é um novo formato. É certamente teatral, mas a entrega dela é completamente stand-up. ” Chris Schleicher, que escreve para a vindoura adaptação televisiva de Quatro Casamentos e um Funeral, concorda que Nanette tem “um número significante de piadas bem escritas”. Prossegue: “Tem muita piada, particularmente nas partes sobre história da arte”. “As secções dramáticas podem ser o destaque”, mas ele, “que não é de riso fácil”, esteve “o tempo todo” a rir-se. Ainda assim, confessa que acabou “a chorar” lágrimas “catárticas”: “Ela estava a articular muitos sentimentos que eu nunca tinha dito em voz alta, particularmente o custo psicológico da auto-depreciação e à rejeição do impulso de transformar o trauma queer em histórias engraçadas para públicos heterossexuais. ”Nos anos 1980, Merrill Markoe foi a principal arquitecta do Late Night de David Letterman – e uma das poucas mulheres a alguma vez ter escrito para o programa –, uma verdadeira revolução na forma como se fazia comédia de late night. Ao P2, defende que gosta de pensar na “comédia como uma forma de arte” e que é preciso “deixá-la evoluir”. “Se se mantiver a mesma para sempre, não é uma forma de arte”, é coisa de “cabotino”. Especifica como, ao longo da história da comédia, os formatos se foram esgotando, primeiro a vaudeville, depois a comédia televisiva e as sitcoms que foram um dia frescas e interessantes, mas se transformaram em lugares comuns. “O mesmo com os talk shows. Eram interessantes até se tornarem uma seca previsível. Depois nós, no Letterman, explodimos com o paradigma, só para preservar a nossa sanidade criativa. ”“Não acho que qualquer forma de arte deva ser uma coisa ou outra”, continua. “Isso é meio caminho andado para ser frágil e inútil e aborrecida. ” Quanto ao epíteto “pós-comédia”, “a história da arte está cheia de pessoas a tentarem criar etiquetas inúteis e categorias para a criatividade, compreendo que é o que os críticos têm de fazer, mas a arte vai para a frente sem estas categorias importarem”. O argumentista Chris Schleicher lamenta que o tipo de comédia com que cresceu, “densa em piadas”, como 30 Rock, tenha sido posto um pouco de lado, mas ao mesmo tempo sabe que é cíclico e gosta “de ver todas estas comédias dramáticas que parecem novas e diferentes”. Mas não acha que retirem espaço às outras séries: “A comédia não é um jogo de soma zero. ”Há vários anos que há pessoas preocupadas com extravasar as margens do que é ou não comédia. Nanette lida directamente com a tensão que leva ao riso e usa uma estratégia que limita e deixa de fora partes importantes das histórias. Steve Martin, no seu livro de memórias Born Standing Up, de 2007, escrevia que, nos anos 1970, se perguntou: “E se não houvesse punch lines? E se não houvesse indicadores [de quando rir]? E se eu criasse tensão e nunca a libertasse? O que é que o público faria com toda essa tensão? Teoricamente, teria de sair nalgum lado. Mas se eu continuasse a negar-lhes a formalidade de uma punch line, o público escolheria o seu próprio lugar para rir, essencialmente por desespero. ”O texto de Jesse David Fox aborda justamente a comédia em que não há lugares claros para rir. Refere, como antecedente, Uncabaret, a noite de comédia alternativa em Los Angeles criada por Beth Lapides que está a comemorar 25 anos. Merrill Markoe também menciona a sua importância. “Temos andado a minar essas fronteiras da comédia incessantemente lá. Adorei o especial da Hannah Gadsby. Ela é fluida e tem uma voz original e autêntica… Mas habituei-me a ouvir sets assim no Uncabaret. A Julia Sweeney desenvolveu lá um espectáculo hilariante chamado God Said Ha!, sobre o irmão dela ter tido cancro, os pais mudarem-se para casa dela e ela própria depois ficar com cancro. Foi uma revelação, comecei a tentar fazer comédia com ter sido agredida sexualmente. Se a Julia podia fazer isso com cancro, bem… O que é que não podia ser comédia? Mais recentemente, o Patton Oswalt fez o espectáculo dele sobre recuperar da morte súbita da mulher. É simplesmente a expansão de um formato que precisava de expansão. ” Gadsby foi só mais uma de uma longa lista de pessoas “a tentarem adicionar alguma profundidade ao formato”. “Fiquei surpreendida com a quantidade de reavaliações críticas que ela causou. Parecem vir de pessoas que achavam que stand-up ainda era piadas sobre sogras e a comida em aviões. ”Laraine Newman é outra habitué do Uncabaret. “Para mim parece ser a génese deste novo formato experimental. Mesmo sendo monólogos e contarem histórias e não piadas, suscitam grandes risos. ” A linhagem é fácil de ver: Maria Bamford, que tem um especial gravado na sua sala de estar em que o público são só os seus pais, frequenta o Uncabaret. Quanto a comédia que não é feita necessariamente para rir, Newman nomeia um filme de Jerry Schatzberg com Faye Dunaway de 1970, Tempo de Viver. “O humor é tão subtil e comportamental, mas tão profundamente hilariante para mim. ” Quanto ao humor nos dias de hoje, “a comédia evoluiu no sentido em que é muito mais pessoal e idiossincrásica. Por causa da internet, os cómicos e intérpretes estão numa posição de serem aquilo que são na realidade. Há um público para isso”, conclui. Eliza Skinner, que faz stand-up e está aos comandos da escrita de Drop the Mic, explica que sempre foi assim: “Não podes manter a atenção das pessoas por uma quantidade longa de tempo sem investimento emocional. Há a ‘comédia de clubes’, mais genérica e densa em piadas, e a comédia alternativa, baseada em histórias, mais pessoal. Para se identificar com comédia alternativa, o público precisa de empatizar com a pessoa no palco e ligar-se à experiência dela. As plateias estão a ganhar mais prática a imaginarem-se no lugar das pessoas que não são como elas, de géneros, raças ou religiões diferentes. ” Jena Friedman, também cómica de stand-up, ex-produtora do Daily Show e alguém que estava a escrever para a nova temporada de Roseanne antes do cancelamento, resume: “É mais fácil fazer pessoas rir do que dizer algo profundo que as faça pensar de forma diferente ou as inspire a agir. Com sorte, os grandes cómicos conseguem fazer ambos. ”Nanette é assertivo sobre a necessidade de haver vozes diferentes na arte, argumentando que “diversidade é força”. O Uncabaret assume-se como “não-homofóbico”, “não-xenófobo” e “não-misógino”. A verdade é que, por muito que certos cómicos gostem de garantir que a comédia nunca foi tão pouco livre, há cada vez mais e diferentes vozes nela, além de muitos meios de comunicação possíveis. Há a ideia de que as mesmas piadas de sempre já não chegam. Será que isto da “pós-comédia” tem directamente que ver com mais oportunidades para grupos que antes não tinham espaço na comédia? Jesse David Fox defende que, apesar de “ser o resultado directo da diversidade de perspectivas”, tem medo de justificá-la com o facto de “haver mais oportunidades para grupos marginalizados”. Sobre o politicamente correcto, o bicho-papão que tantos cómicos gostam de demonizar, o jornalista comenta: “Este exagero animalístico do anti-politicamente correcto é só pessoas a queixarem-se de que não são mais populares. A maioria dos cómicos anti-politicamente correcto não está a quebrar barreiras, mas apenas a pregar aos convertidos. A correcção política obriga a comédia progredir como forma de arte. Força um cómico a ver se a única razão pela qual conseguiu um riso é porque disse uma palavra má. Faz com que trabalhem mais e de forma mais inteligente. É uma coisa boa. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Chris Schleicher demonstra entusiasmo em relação à comédia em 2018, mesmo que admita que é um lugar estranho, entre o sério e o absurdo. “Muitos de nós estão a questionar qual é o valor da nossa comédia enquanto vemos a sociedade a desmoronar-se. Às vezes quero fazer um tweet como ‘colibris são só percevejos disfarçados’ e penso ‘será isto demasiado frívolo? Deverei só lembrar as pessoas de que o presidente é um supremacista branco?’ Normalmente acabo por fazer ambos. ” Jena Friedman é peremptória: “Acho necessário, enquanto escorregamos para o fascismo, sermos lembrados do que tem piada nisso”. Para Schleicher, a diversidade é a melhor parte da comédia em 2018: “A razão pela qual essas vozes estão a ter sucedido é que temos estado esfomeados tanto tempo por elas. Nós, nas comunidades pouco representadas, habituámo-nos a aceitar que a comédia vem do ponto de vista de pessoas que não são como nós que é um pouco chocante ver alguma representação. " Prossegue: "É emocionante já não ter de continuar a acompanhar coisas que me alienam com piadas homofóbicas. " Quanto ao bicho-papão, conclui: "Reviro sempre os olhos quando alguém se queixa de o público ser ‘demasiado politicamente correcto’. É um mercado livre, as pessoas só não compram o velho material que eles estão a vender. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Carta contra o genocídio dos povos da Amazônia
Nós, comunidade internacional, estaremos atentos à vida digna desses povos e que sejam cumpridos todos os acordos internacionais que os protegem. (...)

Carta contra o genocídio dos povos da Amazônia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nós, comunidade internacional, estaremos atentos à vida digna desses povos e que sejam cumpridos todos os acordos internacionais que os protegem.
TEXTO: TuíreKayapó, mulher Kayapó, liderança indígena, diz: “Nós estamos ouvindo uma campanha de ódio. ”Valdenise, da etnia Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, denuncia: “Ontem, dia 12 de outubro de 2018 [. . . ], Jair Bolsonaro usou minha foto na propaganda eleitoral. Eu não admito, não permito; está usando minha foto sem a minha permissão. É mais um massacre, é mais um genocídio: esse tipo de gente quer a nossa morte, nunca vou apoiar, eu repudio essa forma de campanha eleitoral. É isso que eu tenho de falar, eu e meu povo Guarani Kaiowá, o povo indígena no Brasil: nós não o apoiamos, ele não!”Agnaldo, cacique indígena xavante, declara apoio a Haddad e Manuela, que “vão defender os direitos dos povos indígenas”. Nos últimos anos, no Brasil, grupos vulneráveis (indígenas, quilombolas, mulheres, LGBTrans e outros) conquistaram direitos via organização, saíram da condição de atomizados. Negar os direitos de tantos grupos marginalizados não é simplesmente uma forma de criminalização de indivíduos, mas perseguição contra agentes sociais organizados politicamente. Em relação aos indígenas e à terra que eles ocupam, é importante repetir e sublinhar que a região amazônica é o lar de centenas de povos tradicionais. Como já reconheceram cientistas – entre eles a cientista Elinor Ostrom, Prêmio Nobel –, por sua forma tradicional de vida, esses povos mantêm a floresta em pé e os rios limpos, apontando para o futuro da sustentabilidade no planeta. Suas formas de gestão dos recursos naturais têm muito a ensinar à nossa civilização urbana. Os conhecimentos ancestrais que preservam providenciam o equilíbrio, inclusive climático, do nosso planeta beneficiando não somente o Brasil, mas a todos os habitantes da Terra. A Amazônia brasileira ocupa mais de 60% do território nacional. Nessa região vivem aproximadamente 25 milhões de pessoas: muitos povos indígenas com mais de 180 línguas e, portanto, mais de 180 sistemas de conhecimento do mundo, com o potencial de nos apontar o caminho para uma vida ecologicamente equilibrada. Somente em um trecho do Rio Negro, no Alto Rio Negro, há um “arquipélago de saberes”, formado por povos que falam 23 línguas e preservam conhecimentos sobre a floresta que não se encontram em nenhuma outra parte. Além dos povos indígenas, outros povos tradicionais também atuam como guardiões da floresta: os quilombolas, as quebradeiras de coco babaçu (cerca de um milhão e duzentas mil mulheres), os peconheiros (coletores de açaí), os pescadores e ribeirinhos, os castanheiros e seringueiros, extrativistas da terra e das águas e até mesmo os indígenas que não querem contato sistemático com a nossa civilização. As várias formas tradicionais organizadas em harmonia com a floresta geram uma economia lucrativa, demonstrada em estudos minuciosos sobre as unidades de conservação, permitindo a compreensão de que a floresta em pé vale mais que derrubada. Esses grupos produzem uma economia que não causa danos à floresta e perpetuam, assim, condições de vida que mantêm as áreas verdes que, uma vez preservadas, são essenciais para a biodiversidade e para a sociodiversidade. Ao atentar apenas à questão do clima global, já teríamos muitas razões para defender esses povos. E queremos acreditar que a humanidade ainda persegue a preservação da vida e dos direitos humanos. Por isso, repudiamos a candidatura da extrema-direita no Brasil. O candidato Jair Bolsonaro, mesmo antes de sua eleição, propaga uma onda de ódio contra os povos que vivem na floresta. Promete não deixar nenhum centímetro para terras indígenas e, ao falar em quilombolas, equipara-os a animais. Enfim, ameaça de extermínio os segmentos sociais que conquistaram direitos desde a Constituição de 1988, ameaçando com limpeza étnica um país que, sabemos todos, é rico justamente porque composto de centenas de culturas e etnias. Bolsonaro atinge as formas de mobilização: seu objetivo precípuo, antes de estar ligado a qualquer moralidade, é uma estratégia de desmobilização de movimentos sociais para que uma estrutura militar e autoritária assuma o controle político para reproduzir grupos sociais dominantes, vinculados à lógica neoliberal, de privatização e mercado, o que é assustador e genocida como lógica para a Amazônia. De um lado, a possibilidade de reconhecimento das diferenças; de outro, o pensamento monolítico. De um lado, os sistemas de uso comum; de outro, a colocação das terras da Amazônia no mercado. Está em curso na candidatura de Bolsonaro uma articulação genocida de quebra do projeto nacional, especialmente do nacional composto pela diversidade, mas não tão-somente. O projeto nacional está em questionamento inclusive com a ausência da preocupação com a memória dos nossos povos, e tivemos uma tragédia recente irreparável com o incêndio do Museu Nacional, sobre a qual o candidato se limitou a dizer que não havia nada a fazer, sem nem mesmo ter lamentado o ocorrido. E se a memória é o lastro com o qual se pode contar na luta contra o fascismo, o Brasil precisa de apoio. O que dizer, então, da memória de tantos povos da Amazônia – invisíveis nas cidades brasileiras e ignorados na mídia –, com absoluto desconhecimento da riqueza que podem oferecer à sociedade, algo que não pode mais ser tolerado. E, absolutamente, não pode ser ignorado e tolerado o seu extermínio. Os grupos sob o ataque do candidato de extrema-direita, indígenas e quilombolas, sobretudo, são justamente os grupos responsáveis pela preservação da Amazônia, os que se insurgem, com seus corpos e suas formas de vida, contra o desmatamento irresponsável e a favor do equilíbrio do clima no planeta. A convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), exige a “consulta” aos povos tradicionais para qualquer empreendimento a ser desenvolvido em suas terras. No entanto, como a “consulta” não está especificada em sua forma, empreendimentos são levados adiante mascarando a falta de comunicação e, portanto, a falta de uma efetiva consulta aos povos. O rompimento com os acordos internacionais não será problema para Jair Bolsonaro, que já manifestou a intenção de acabar com o Ministério do Meio Ambiente e com o Ministério da Cultura, que abriga o órgão de memória e patrimônio histórico e artístico do País. Os conceitos de civilização que temos estão em jogo nessa eleição, havendo a barbárie como antagonista. E tudo isso pode terminar antes que saibamos quem são os nossos guardiães da floresta: tantos nomes de tantas belas línguas como os Kokama, os Munduruku, os Jaminawa, os Manchinéri e tantos outros. Eles estão lá, resistindo há séculos, e ainda não foram reconhecidos como os donos de suas terras. Por isso lutam uma batalha, quase sempre sangrenta, para seus direitos à terra ancestral – a mãe que lhes dá a vida – e à sua cultura. Unimo-nos, portanto, à luta desses povos da floresta, que guardam, por nós, as sementes da vida em forma de floresta em pé e de um mundo em que a vida humana é irmã da vida dos seres que nela vivem. Declaramos que, independente do resultado das eleições, nós, comunidade internacional, estaremos atentos à vida digna desses povos e que sejam cumpridos todos os acordos internacionais que os protegem. Anabela Mota Ribeiro, jornalistaAna Luísa Amaral, escritora e professora universitáriaAna Paula Coutinho, professora Universidade do PortoAna Vidigal, artistaAnne Marie Métailié, editora EditionsMétailiéBoaventura de Sousa Santos, professor Universidade de CoimbraCatherine Dumas, professora emérita Universidade SorbonneCarlos Magno, jornalistaCarlos Mendes de Sousa, professor universitárioCéline Geffroy, Université Côte d'Azur. Laboratoire d'Anthropologie et de Psychologie. Eduardo Lourenço, EnsaístaErik Pozo-Buleje, Laboratório de Antropologia Social, EHESSFernando Cabral Martins, professor Universidade Nova de LisboaGolgona Anghel, investigadora da Universidade Nova de LisboaGonçalo Vilas-Boas, professor jubiladoHeloïse Toffaloni da Cunha, antropóloga e filmmaker (EHESS)Hugo Monteiro, professorIsabel Allegro de Magalhães, Professora e ensaístaJérémie Voirol, antropólogo, Graduate Institute, Geneva, SwitzerlandJoana Matos Frias, professora Universidade do PortoJoão Teixeira Lopes, professor universitárioJosé Eduardo Agualusa, escritorJosé Mário Brandão, galeristaJosé Soeiro, sociólogo e deputadoJosé Sousa Machado, escritorJulien Blanc, professor no Museu do HomemLídia Jorge, escritoraLuís Quintais, escritor e professorMaria Irene Ramalho, decana Universidade de CoimbraMiguel dos Santos S. Ramalhete, professor Univ. de LisboaPaula Morão, decana da Universidade de LisboaPaula Rego, artistaPaulo de Medeiros, professor Universidade de WarwickPedro Eiras, escritor e professor Universidade do PortoPedro Serra, professor Universidade de SalamancaRosa Maria Martelo, professora Universidade do PortoSusana Anágua, artistaTiago Cação, fotógrafoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Valter Hugo Mãe, escritorZetho Cunha Gonçalves, poeta, autor de literatura infantilZulmira Coelho Santos, professora Universidade do Porto
REFERÊNCIAS:
Esta orquestra é uma ilha
O que faz uma orquestra de jazz numa vila como Rabo de Peixe, nos Açores, que já foi considerada uma das regiões mais pobres da União Europeia? Tenta mudar a vida dos miúdos. (...)

Esta orquestra é uma ilha
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-12-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que faz uma orquestra de jazz numa vila como Rabo de Peixe, nos Açores, que já foi considerada uma das regiões mais pobres da União Europeia? Tenta mudar a vida dos miúdos.
TEXTO: Na noite de 24 de Novembro, o palco do Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, pô-los à prova perante um público mais exigente do que o da vila onde vivem, a 20 minutos de carro, e é por isso que falavam com um misto de receio e de entusiasmo. “E se alguém se engana é que vai ser bonito. Nunca mais tem cara para tocar em lado nenhum”, diz um dos trompetes. Sempre que entram no Micaelense não são apenas os miúdos de Rabo de Peixe. Juntos formam a Orquestra Oi Jazz e sentem-se músicos, tenham dez ou 22 anos. Esperam uma noite para não esquecer, tal como não esquecem aquela conversa em que um dos professores da escola de música os convenceu a experimentar o saxofone ou lhes disse que uma namorada aos 15 anos raramente é para a vida toda. "O público do Micaelense está habituado a ouvir música e se não estivermos à altura vai-se notar”, diz Luís Senra, 22 anos, um dos elementos mais velhos e mais experientes da orquestra. “Não é que não seja preciso tocar bem quando no Verão fazemos um ensaio aberto na rua em Rabo de Peixe, mas na cidade a responsabilidade é maior. ” Sobretudo quando, apenas uma semana antes, passaram pelo teatro os músicos da última edição do Jazzores, um festival que se faz desde 1999 e que este ano teve no programa o New York Ensemble e um duelo de pianos com Raymond King e Charles Gayle. “Mas até lá vamos estar preparados. Temos de estar. ”A um mês e meio do concerto, quando a revista 2 esteve em Rabo de Peixe, faltavam muitos ensaios e os professores prometiam não descansar enquanto o reportório a apresentar não estivesse perfeito. Ou quase. Até lá a orquestra e a escola de música a que pertence desde 2006, ano em que nasceu, ia ainda receber a visita de dois convidados de Lisboa, que trabalham com ela desde 2007, ano do primeiro workshop bienal do Micaelense: o saxofonista Pedro Moreira, também professor da Escola Superior de Música, e a cantora Paula Oliveira. Assistimos a três dias de programa intensivo da Oi Jazz, falámos com músicos e professores, andámos com os miúdos pelos bairros onde moram e conversámos com alguns dos pais. O que faz uma orquestra de jazz numa vila como Rabo de Peixe, que sente ainda o peso de já ter sido considerada uma das regiões mais pobres da União Europeia? Será que a música pode mudar a vida de um jovem a quem o pai não deixou estudar? Em que circunstâncias pode uma flauta transversal ser mais do que um instrumento?Na quarta-feira à noite é dia de ensaio da orquestra e o Cine-Teatro Miramar, sede da Escola de Música de Rabo de Peixe, criada por iniciativa da presidência do governo regional dos Açores em 2001, enche-se de alunos. Uns vêm com os pais ou com os irmãos mais velhos, mas a grande maioria chega sozinha. “Na vila não há perigo”, diz Paulo Soares, 33 anos, funcionário do teatro. “Os miúdos estão habituados a andar sozinhos, alguns até de mais, e sabem que aqui estão em casa. ” No palco, o professor Carlos Mendes, um músico de 31 anos que chegou a S. Miguel em 2004 vindo de Gaia para dar aulas na Escola Básica Integrada (EBI) de Rabo de Peixee hoje é o maestro da Oi Jazz, já está à espera deles. Sentá-los não é tarefa que se cumpra com rapidez — é preciso dar-lhes espaço para se cumprimentarem, para abrirem os estojos dos instrumentos e com eles brincarem um pouco antes de começarem a olhar para as pautas de My funny valentine, enquanto um dos saxofones pede que arranquem antes com “uns minutinhos de blues”. A cada novo standard do jazz, o maestro faz correcções, gesticula com energia e quase dança para lhes dar indicações dos crescendo. Nas filas de cadeiras, organizados por naipes, os mais velhos vão tentando ajudar os alunos mais pequenos, como Iuri Pereira, que só tem dez anos mas já está na orquestra há dois. “Quando se toca numa orquestra, é importante ouvir os outros”, sublinha o maestro. “Não basta ser bom individualmente, é preciso ser bom no conjunto. Sozinhos podem tocar ao espelho, mas uma orquestra não têm em casa — falta-vos os outros”, acrescenta, chamando a atenção de um par de clarinetes que esta noite parece mais interessado em namorar do que em ensaiar. “Um solo precisa de uma ideia. Oiçam este Coltrane com atenção e percebam que é preciso ter cuidado para não lhe perdermos o pulso. ”El sistema em acçãoPassa das dez da noite e os mais novos — sentados nas cadeiras, alguns não chegam sequer com os pés ao chão — abrem a boca de sono. Mas ainda há energia para a bossa nova e Fabiana Couto, 17 anos, brilha na flauta transversal quando chega a Garota de Ipanema ou Samba de uma nota só. Tom Jobim também é um dos preferidos de César Cabral, outro com 17, o baterista que está na orquestra há seis anos a tocar de ouvido (como muitos deles, não sabe ainda ler música) e é fã de Michael Wimberly, percussionista norte-americano que já teve oportunidade de conhecer. Foi Rodrigo Reis, o professor de flauta que é há três anos o presidente do conselho executivo da EBI Rui Galvão de Carvalho, escola a que chegou em 2000, quem aceitou o desafio de criar um espaço onde as crianças e jovens de Rabo de Peixe pudessem aprender música. É ele que diz que a vila mudou nos últimos 12 anos, mas que há ainda muito a fazer para que as coisas possam ser realmente melhores para a maioria dos miúdos. A escola e a orquestra foram criadas, diz à revista 2, tendo por referência El Sistema, o programa de educação que põe a música ao serviço da inclusão social, que nasceu na Venezuela em 1975. Conhecido hoje através das suas orquestras de juventude — as Simón Bolívar — El Sistema tem réplicas em todo o mundo, incluindo em Portugal (chama-se Orquestra Geração e existe em 16 escolas de 11 cidades). A grande diferença, explica o professor de 38 anos que saiu de Macedo de Cavaleiros e “ficou preso” a S. Miguel, é que a Oi Jazz não tem nada a ver com música clássica. O jazz chegou com o colega Carlos Mendes, que por ele se apaixonou mal começou a estudar música no conservatório de Gaia. Quando a escola arrancou, em 2001, tinha apenas 20 alunos e oito instrumentos, com um orçamento de 7500 euros. Hoje tem 150 (por lá já terão passado cerca de 300), nove professores (oito portugueses do continente e uma italiana), uma orquestra com 22 elementos (19 rapazes) e um coro com 26 alunos (seis rapazes). Para contar de cabeça os instrumentos, que são sempre poucos, é preciso fazer um esforço. “Mudou muito, é verdade, mas o nosso objectivo principal mantém-se: fazer desta escola um espaço onde os miúdos vêm aprender música e, com ela, vêm aprender o que é uma comunidade, como se pode trabalhar em grupo, porque é que as regras são essenciais, o que podemos fazer quando outros dependem de nós. . . Esta é também uma escola de cidadania, onde muitos destes adolescentes e crianças, alguns sem estrutura familiar, encontram alguém com quem conversar”, explica Rodrigo Reis. “É óbvio que nos preocupamos com a parte musical, artística, mas essa não é a mais importante. O que queremos mesmo é que eles sejam miúdos felizes, integrados, socialmente capazes”, acrescenta o maestro da Oi Jazz. A avaliar pela forma como falam com os professores — ou como falam deles — pode dizer-se que os alunos sabem que estão entre amigos. Os mais velhos conversam sobre tudo, os mais pequenos penduram-se neles, interrompem a toda a hora e esperam que entrem nas suas brincadeiras. Uma freguesia difícilAna Almeida, do serviço educativo do Teatro Micaelense, a que a escola de música está ligada desde 2005, não tem dúvidas de que se deve à dedicação dos professores o sucesso do projecto. Rabo de Peixe, garante, é uma freguesia difícil em que se tem investido muito através de programas regionais e comunitários, mas nem sempre com grandes resultados. “Este projecto da escola e da orquestra é verdadeiramente transversal porque não se interessa só pela música — interessa-se pela vida destes alunos”, garante. “Educa-se para o respeito, para valorizar a auto-estima, para valorizar os afectos. É por isso que estes professores, que conhecem os miúdos todos, sabem os disparates que fazem, que dificuldades têm na escola de ensino regular e em casa, são também assistentes sociais, irmãos mais velhos. ”Caminhar ao fim da tarde de um dia de semana pela Rua Nossa Senhora de Fátima, entre o Cine-Teatro Miramar e o Largo Frei António do Presépio Moniz, o da igreja matriz, dá para fazer um retrato da vila, não muito diferente do que geralmente é dado pelos jornais e televisões, concentrado nos aspectos mais negativos de Rabo de Peixe: desemprego, pobreza, droga, violência. Os sinos tocam a rebate por causa de um funeral mas poucos são os que parecem preocupar-se. Quando o caixão sai da matriz é vê-los tirar os chapéus em sinal de respeito. “Hoje ele, amanhã eu”, diz um dos pescadores, enquanto uma série de rapazes se ocupa de desmontar o que ficou das festas dos dias anteriores. Dezenas de homens vagueiam pela avenida principal, sem nada para fazer, muitos concentram-se frente à sede do clube desportivo, já fechada. Uns querem meter conversa, outros têm droga para vender, muitos dos mais novos têm o cabelo cortado à Cristiano Ronaldo e até lhe copiam os brincos. Os cafés da rua do Miramar, como o Pereira ou o São Miguel, são escuros, fechados, e têm sempre os mesmos clientes, nunca mulheres. É também a esta hora que os miúdos regressam a casa vindos da escola. Há crianças por toda a parte. As mães trazem pela mão os do primeiro ciclo enquanto empurram o carrinho dos irmãos mais pequenos. Na rua cheira a refogado, já há assadores nos passeios e mulheres a entrar e a sair de casa a pensar no jantar. O minimercado é um corropio. Numa terra de músicosCarlos Ferreira, 61 anos, coordena o cine-teatro desde 2005. Conhece bem a vila e os seus problemas, apesar de viver a dez quilómetros, na freguesia do Livramento. É um açoriano de mãos grandes, voz grossa e sorriso pronto, generoso nos elogios e nas críticas, que foi rádio telegrafista e professor de Educação Física antes de fundear no Miramar, regressado de uma volta ao mundo que durou 22 meses, num veleiro construído a pensar em regatas. Homem do mar e da terra — ainda hoje tem estufas de onde sai o feijão verde para acompanhar a receita de frango no forno que gosta de cozinhar nos almoços de domingo em família —, Ferreira lembra-se bem de estar a chegar ao Egipto quando os americanos entraram em Bagdad em 2003, das praias australianas, dos piratas no Canal do Suez e da recepção agreste que teve na costa da Eritreia. “A viagem foi uma aventura, mas o Miramar, mal cheguei, também”, confessa, entre risos. Antes de começarem as obras que haveriam de o transformar em centro de congressos, em 2003, o teatro estivera 20 anos a servir de armazém. Já renovado, começou por ter três sessões de cinema por semana, mas o programa não resultou. “As pessoas vinham pouco. O cartaz, com muitos realizadores portugueses, não lhes interessava. ”Deixou de ser cinema em 2009, mas a sala de projecção, forrada a cartazes de filmes de Jennifer Lopez e de outros títulos insuspeitos como A Vida Secreta das Palavras, ainda lá está, impecável. Ferreira gosta que o Miramar receba, além de congressos e conferências ocasionais, as actividades da escola de música (ensaios da orquestra às quartas-feiras, entre as 20h30 e as 23h; aulas aos sábados, das 9h às 17h30, concertos de vez em quando). Rabo de Peixe é terra de músicos, como muitas dos Açores. A vila já tinha duas filarmónicas e uma delas até é das mais antigas da ilha. Mas a rivalidade entre as duas era tão grande que, sendo uma de 1867 e outra de 1888, só tocaram juntas pela primeira vez há três anos. E a escola de música também ajudou a acabar com o mau ambiente, porque tem miúdos que tocam na banda velha [Lira do Norte] e outros na banda nova [Progresso do Norte]. ”A vila, explica Ferreira, divide-se entre “baixo” e “cima”: os de baixo são os do mar, por tradição mais pobres; os de cima são os da terra, os proprietários e agricultores. “Antes as duas partes não se misturavam”, lembra Paulo Soares, o funcionário do Miramar. “Uma moça do Caranguejo não ia namorar com um dos de cima. Agora até já casam, mas não é assim à maluca, é de vez em quando. A malta do Caranguejo também não vai aos cafés dos de cima. ” Não há zaragatas (em Rabo de Peixediz-se “arengas”), mas também não há conversa. “Aqui há 15 anos não havia fim-de-semana sem arenga na praça. Agora já não é assim. A rivalidade das famílias passa por competir para ver quem tem a casa mais limpa, mais bem pintada, quem varre melhor o passeio que lhe compete”, acrescenta Ferreira, com quem é difícil passear pelas ruas da vila ou de Ponta Delgada sem que sejamos constantemente interrompidos. As “arengas” já não são tão frequentes, mas ainda acontecem. A importância do RSINum dos dias em que a revista 2 esteve na vila, foram as mulheres que se zangaram e saíram à rua para lutar umas com as outras, entre puxões de cabelos, bofetadas e insultos. Os homens ficaram em roda, a assistir, e nunca se meteram. Os bairros mais problemáticos na parte de baixo, hão-de dizer-nos mais tarde, são o Caranguejo (pescadores), o Biscoito (pastores), o Barreiro e a Cova da Moura (vendilhões de peixe). Para os pescadores — a pesca, a construção civil e a agricultura são as principais actividades económicas de Rabo de Peixe—, subir na vida significa poder comprar uma casa na parte de cima. Tal como Ferreira, a presidente desta junta de freguesia do concelho da Ribeira Grande, uma das maiores dos Açores, conhece a vila por dentro e por fora. Aos 60 anos, Maria do Céu Gonçalves Estrela leva já quase 50 de trabalho em Rabo de Peixe. Começou como catequista, aos 11, para chamar as crianças como ela para a escola, e depois tornou-se professora de 1. º ciclo, sempre envolvida em projectos de educação das mulheres. Eleita há três anos pelo PS, Gonçalves Estrela dirige uma comunidade com nove mil habitantes, 35% dos quais com menos de 18 anos, precisa. O desemprego, para os quais não tem números actualizados, está a deixá-la “em pânico”: “A pesca está muito mal, a agricultura, quase toda mecanizada, já não exige praticamente mão-de-obra, e a construção está parada. Muitas destas pessoas já não têm como sobreviver sem o Rendimento Social de Inserção [RSI]. ”Na freguesia, segundo a Secretaria Regional do Trabalho e Solidariedade Social, há 462 famílias a receber RSI (dados de Agosto). É preciso não esquecer, lembra a autarca, que poucas são as famílias que têm apenas dois filhos e que é comum passarem dos cinco. Foi o RSI, garante, o responsável pelo recuo no abandono escolar nos últimos anos (se as famílias abrangidas não mandarem os filhos à escola é-lhes retirado o apoio) e, por consequência, no trabalho infantil (a secretaria regional assegura que nos últimos cinco anos não há registo de trabalho infantil em S. Miguel). “Há problemas que se mantêm, como a toxicodependência ou a gravidez adolescente. Para os combater, é preciso mudar as mentalidades, o que é muito difícil e requer tempo. Para mudar uma cultura, são precisas pelo menos três gerações. ” Projectos como o da escola de música e da orquestra Oi Jazz são, para Gonçalves Estrela, peças essenciais neste processo de mudança. “Não basta termos o EFTA [European Fair Trade Association, fundo que envolve países extracomunitários como a Noruega e a Islândia] a investir mais de 20 milhões de euros em equipamentos sociais em Rabo de Peixe [2004-2010]. Eles são importantíssimos, é claro, mas é preciso que as pessoas se envolvam e é por isso que esta escola é uma mais-valia imensa para a população. ”Diz Gonçalves Estrela que a comunidade se sente a “menina dos olhos” da orquestra e que acolheu muito bem os ensaios de rua no Verão. O primeiro, lembra, foi no bairro dos pescadores, ao anoitecer: “Foi emocionante. De repente, as pessoas começaram a aparecer, muito curiosas. Vinham de roupão, chinelos, pijama. . . E ficaram. ” Mas, para que a escola e a orquestra possam continuar o seu trabalho, precisam de crescer, defendem professores e alunos, precisa de chegar a mais miúdos e de dar um salto qualitativo. Ana Almeida, do Teatro Micaelense, gostava que uma equipa de investigação universitária agarrasse neste projecto de Rabo de Peixee estudasse o seu impacto real na comunidade, para que todos os intervenientes e potenciais mecenas privados, algo que a escola procura neste momento, possam vir a ter uma noção mais fundamentada do seu valor em termos sociais. “Uma coisa é dizermos que a música é importante para fazer deles pessoas mais responsáveis, mais válidas para a família, a comunidade. . . Outra coisa é demonstrarmos através de um estudo”, diz a responsável do serviço educativo do teatro de Ponta Delgada, através do qual a Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura atribuiu este ano à Escola de Música de Rabo de Peixeum financiamento de 47 mil euros (29 mil para pagar a professores, os restantes para despesas correntes e de actividades). “Os miúdos vêem a escola de música como uma cama fofa. Sabem que há regras e disciplina, que tocar numa orquestra exige saber ouvir e saber esperar, mas também sabem que aqui as pessoas se preocupam com eles a sério. É um espaço de braços abertos que tem de estar constantemente a desafiá-los a fazer mais e melhor. ”É precisamente para os desafiar que Pedro Moreira e Paula Oliveira têm vindo a visitá-los com alguma regularidade e estão em Rabo de Peixea mês e meio do concerto. Quando trabalham nos workshops do Micaelense (2007, 2009 e 2011), que incluem jovens músicos de toda a ilha, sentem mais a pressão porque têm de os preparar para um espectáculo em pouco tempo. Com os Rabo de Peixeé diferente porque conhecem alguns dos miúdos da orquestra e do coro há anos e sabem o que a escola já fez por eles. César, por exemplo, era tão indisciplinado que esteve quase a ser expulso e hoje é um dos elementos mais dedicados, passa tardes inteiras a ensaiar no Miramar e está sempre atento aos mais pequenos que querem começar a aprender bateria. Dias intermináveisNo palco do Miramar, às dez da manhã, Pedro Moreira está imparável. Obriga-os a fazer escalas e a ler pautas, coisa que muitos não gostam de fazer. “Não está bem, repete”, diz vezes sem conta. Está ali para puxar por eles, para ser exigente, e isso nota-se. “O nosso papel — meu, da Paula, do Carlos, do Rodrigo e dos outros professores — é dizer-lhes que podem ser mais, que podem querer mais. Mas sem condescendência. Não quero que se olhe para esta orquestra e que se diga que é boa, tendo em conta que vem de Rabo de Peixe. Quero acabar com essa conversa. Quero que se diga que é boa porque é boa”, defende o saxofonista de 43 anos. Moreira sabe que a vila é sempre associada a pobreza, droga e violência, mas garante que não é só por isso que é “fantástico” que, de repente, haja ali aquela orquestra de miúdos a tocar standards de jazz. “É sempre bom, em qualquer sítio, ver a música fazer parte da educação. Se tivéssemos um país de amadores de música, teríamos melhores orquestras profissionais e melhores públicos. Precisamente porque um amador é, por definição, aquele que ama a música. ”A experiência de Moreira, como músico e como professor, leva-o a dizer que orquestras como a Oi Jazz precisam de mais tempo para crescer e manter um patamar de qualidade. Por agora, ainda funciona por picos: “Há levas de miúdos que chegam que são boas, e depois outras que são mais fracas. ” Daqui para a frente, adverte, o grande desafio da orquestra passa por elevar o nível, mas também pela sobrevivência em clima de crise: “Portugal vive muito do efeito novidade das coisas e a Oi Jazz tem de enfrentar esse risco da banalização. É um projecto único no país, pelo menos que eu saiba, e merece continuar. Há miúdos, como o Luís [Senra], que têm um talento invulgar para a improvisação, mas para que a maioria ganhe ferramentas que lhe permita ir mais longe é preciso um trabalho sustentado. Tenho a certeza de que daqui a dez, 15 anos o nível vai estar mais alto. ”Para alguns dos alunos, estar na orquestra significa ir contra a vontade dos pais ou ter dias que parecem não acabar. Rodrigo Reis, que dirige uma escola com 2400 alunos e 220 professores, que está no penúltimo lugar do ranking nacional dos exames do 9. º ano (em 1320 escolas) apesar dos esforços, está habituado ao desinteresse dos pais: “Muitos destes alunos fazem da rua a sua casa, não reconhecem autoridade no pai e na mãe. Até mesmo aqui na orquestra — 70% dos pais destes miúdos nunca vieram vê-los tocar. ”É o caso do pai de Hugo Laranjo, 18 anos, o guitarrista atlético e de sorriso doce. Faz surf e natação, deixou de estudar no 9. º ano, contrariado, para ajudar a família na pesca. Dizem alguns dos amigos que o pai não gosta que ele aprenda música e que até já lhe partiu uma guitarra, mas Hugo não fala nisso. Estar na Oi Jazz é uma das formas que tem de estar com os amigos e de fugir a uma rotina pesada. É um daqueles pescadores que trabalham em terra porque enjoam no mar. Levanta-se todos os dias às duas da manhã para preparar as armadilhas que o pai e o irmão mais velho levam para a pesca numa garagem sem janelas, com um cheiro intenso por causa do isco. Nas paredes há matrículas do Canadá, país em que os pais estiveram emigrados e de onde foram obrigados a regressar depois de um acidente na construção civil. Vidas a improvisarO trabalho de Hugo só termina lá para as quatro da tarde, já depois de a família regressar da faina. Vai para casa tomar um duche e comer, para sair em seguida em direcção ao clube onde faz natação entre as 18h30 e as 20h30. Nos dias em que há ensaio, às 21h já tem de estar no Miramar, onde fica até às 23h, às vezes mais. “Regresso às onze e tal da noite, janto, e vou para a cama para me levantar depois às duas da manhã e recomeçar. ” Nos fins-de-semana pega na prancha que lhe ofereceu um amigo do irmão e vai até à praia de Santa Bárbara. “Gostava de estudar”, diz, “e tenho o sonho de ser piloto da Força Aérea, mas sei que já vou tarde”. Para ele, a Oi Jazz é um espaço de liberdade em que é possível falar com adultos, sem gritos, recriminações ou violência. Gosta de ouvir heavy metal e rock e tem em César um dos seus maiores amigos. Querem formar uma banda e conhecer mundo a tocar. Luís Senra também. Aos 22 anos, está já envolvido em muitos projectos, actua em várias formações, em bares e festivais. Está no 7. º grau do conservatório de Ponta Delgada (já só faltam dois para terminar) e trabalha numa cadeia de fast food ao mesmo tempo, enquanto o saxofone ainda não dá para ganhar dinheiro suficiente. A irmã, Joana, está no coro da escola de música, dirigido por Rita Resende. Escolheu o saxofone, diz, “porque o instrumento é bonito e tem um som imponente”. A academia de Rabo de Peixepermitiu-lhe entrar para o conservatório logo no quarto grau e o jazz abriu-lhe a cabeça a todos os outros géneros. “Escolhi o jazz porque não é só preciso um papel para fazer música. Tem a ver com as pessoas em particular, com aquilo que sentem, com o seu estado de espírito. Por ser tão forte como forma de expressar os sentimentos é que é importante. No jazz devemos sempre tentar tirar o som que nós queremos. Não há o som correcto, a nossa opinião também conta. ”É por ter mais ferramentas que Luís é dos poucos a acharem que improvisar é tarefa fácil: “A improvisação não é difícil. O que pode ser difícil é abrir a nossa cabeça às ideias e tentar perceber que o que temos de fazer é criar uma melodia. Às vezes as pessoas podem sentir mais dificuldades porque não têm tanta técnica ou porque não têm uma abertura musical tão grande, mas é como eu digo: é fechar os olhos e deixar sair a música. ” É pelo menos o que faz César Cabral. Ler pautas não é com ele e é por isso que Moreira e Carlos Mendes lhe chamam “máquina”. “Ele apanha tudo muito depressa, só de ouvido”, reconhece o maestro. César e Luís, tal como Fabiana Couto, um dos três elementos femininos da orquestra, não têm dúvidas de que a Oi Jazz pode fazer muito pela imagem da vila onde vivem. Entristece-os que Rabo de Peixeseja conhecida pela violência, a droga, o desemprego e o RSI, e atribuem o que de pior existe na freguesia a um “problema de mentalidades”. “A qualquer lado que se vá, Rabo de Peixetem sempre muito má fama”, reconhece Fabiana. “Ou porque há muita droga, ou porque há roubos e crianças que andam pela rua. Acho que não deve ser visto só assim porque todos os sítios do mundo têm as suas coisas positivas e negativas. ” Luís acrescenta: “A vila tem muitos problemas, é verdade, mas diria que o principal é a mentalidade. As pessoas olham muito para si. E depois, claro, os problemas com a droga, o analfabetismo, a gravidez na adolescência. Isso passa muito no noticiário. Mas esses problemas têm tudo a ver com a mentalidade. ”Para o jovem saxofonista, a escola de música pode ajudar muito a mudar as coisas. “Quando toca jazz, a orquestra não está a formar apenas músicos, está a formar pessoas. Tudo isto influencia a maneira como se vive fora da academia. Primeiro começa-se na orquestra e depois traz-se a orquestra cá para fora e faz-se o mesmo trabalho com a família, os amigos e o resto da sociedade. Aprendi na academia a cooperar, aprendi que não se toca sozinho, por melhores que sejamos individualmente. Os conceitos básicos da música podem adaptar-se à sociedade em geral. ”Fabiana toca flauta transversal há oito anos e integra também várias bandas da ilha. No início, os pais não compreenderam a sua inclinação para a música. Hoje aceitam, mas sem grandes entusiasmos. Fabiana diz que a orquestra fez dela uma pessoa diferente: “Sinto-me um caso à parte porque não sou daquelas que ficam em casa sem estudar, à espera dos namorados. Sinto que tanto a orquestra, como as bandas, me deram outra perspectiva das coisas. Se não tivesse começado a tocar, talvez não tivesse aquela vontade de estudar para ser alguém, talvez tivesse ido pelo mesmo caminho de algumas amigas, que deixaram a escola e foram mães aos 15 ou 16 anos. ”Fabiana já quis ser flautista ou actriz, mas agora está mais virada para a Psicologia e pensa em estudar em Lisboa. Todos gostavam de ver a Oi Jazz crescer e evoluir para um patamar superior — mais alunos, mas também mais exigência — que lhe permitisse interpretar um reportório mais complexo, saindo da ilha para participar em festivais, coisa que nunca fez. Para Rodrigo Reis e Carlos Mendes, o desafio passa primeiro por levar os alunos mais velhos a tornarem-se dinamizadores da própria escola. “Ainda estamos muito longe do sucesso social que pretendemos”, reconhece o maestro. “Esse sucesso passa por ver os alunos que estão connosco desde o início a lutar por isto ao nosso lado, a ensinar os mais pequeninos. Rabo de Peixeestá cheio de projectos sociais sem resultados. Este não pode ser um deles. A orquestra já tem credibilidade, mas tem de ser também um agente de mudança na vida destes miúdos. ”Pagar os instrumentosUm dos saxofonistas, com 14 anos, foi há dias para a Casa do Gaiato, conta Mendes com tristeza. Perdeu-se nas férias grandes e andava a dormir debaixo de um barco para não ir a casa. “É por esses mais difíceis que estamos aqui. Gostava que ele continuasse a vir à orquestra. Aprendeu a ler música em três meses e vê-se que gosta de tocar. ”Muitos têm dificuldade em cumprir horários, outros são impedidos de ir aos ensaios como castigo por terem feito um disparate qualquer. Quando entram na adolescência, muitas das alunas deixam de aparecer porque os namorados não gostam, explica Rodrigo Reis. Hugo, o nadador, não compreende a atitude desses rapazes: “O que é que lhes passa pela cabeça para achar que podem mandar na vida delas? Eu não faço isso. Nem a minha namorada deixava que eu fizesse. Eu quero é que ela esteja feliz e se, para isso, tiver de fazer coisas sem mim, não me importo. ” Socialmente, explica o director da escola, a comunidade aceita bem que uma adolescente seja mãe. “A maternidade ainda é vista como o destino primeiro da mulher. Muitas vezes ainda são os homens que decidem por elas. ”Se há alunos dedicados, como César e Luís, outros há que é preciso convencer a não faltar. Noutras alturas, Moreira já foi com Mendes buscar alguns ao porto, onde estavam a mergulhar à hora do ensaio. Aos concertos é que raramente faltam. No sábado à noite, a orquestra foi convidada a tocar numa festa de aniversário de Ponta Delgada e todos se concentraram frente ao Miramar, entusiasmados. À chegada à cidade, o cenário que a revista 2 encontra — um jantar formal, numa estufa envidraçada no meio de um jardim — faz lembrar os serões burgueses de alguns romances do século XIX. O aniversariante gosta de jazz e a mulher quis fazer-lhe uma surpresa e, ao mesmo tempo, ajudar a orquestra — para pagar o concerto, basta oferecer à escola de música de Rabo de Peixeum instrumento (um saxofone de iniciação pode custar 1200 euros e uma flauta transversal, 500). “A maioria dos miúdos não tem como comprar os seus próprios instrumentos e nós temos de procurar formas alternativas de financiamento. Por isso criámos este programa ‘Um concerto, um instrumento’”, explica Rodrigo Reis, acrescentando que o Micaelense está a concorrer a programas paralelos para que seja possível comprar mais clarinetes, saxofones e trompetes, como o que Iuri Pereira leva para casa para ensaiar e quase enlouquecer os pais e os avós. Toca em todo o lado e a toda a hora, garante a mãe, Rita, 36 anos, operadora de caixa desempregada: “Vai para a varanda, para o quarto e o quintal, liga-se ao computador para procurar os músicos de jazz de que ouviu falar na orquestra e põe a tocar. Como são estrangeiros, muitas vezes os professores escrevem-lhe os nomes num papel. ”O quintal tem batata-doce, hortênsias, rosas e oraçais, uns frutos com um cheiro parecido com o do maracujá, mas mais ácidos. É lá também que dorme Max, o pastor alemão que já se habituou ao seu trompete. Iuri é ainda tímido, mas muito decidido para quem tem dez anos. Está na Oi Jazz, mas ainda tem pendurada no armário a farda da Lira do Norte, que deixou para integrar a orquestra, com muita pena do pai, que chegou a tocar na banda do Pico da Pedra, uma freguesia próxima. “O jazz não é uma música esquisita. Eu gosto de tocar e de aprender. Só não gosto de ler nas pautas… Ainda não sei”, diz. Os avós olham para ele com orgulho. Maria de Fátima e Manuel Oliveira são casados há 38 anos. Manuel sabe de cor o dia em que ela lhe disse sim, e garante que foi ele quem saiu a ganhar com o negócio. “Temos muito medo que eles se percam em coisas más”, admite Rita Pereira. “Na orquestra há respeito, os miúdos mais velhos ajudam os mais pequenos como o Iuri. Quando não vai por estar doente, vêm ter comigo e perguntam por ele, sentem-lhe a falta. ”Luís Senra, 48 anos, é porteiro na escola Rui Galvão de Carvalho e pai do saxofonista que está quase a acabar o curso do conservatório. Também tocou numa banda durante dez anos, a Lira do Norte. Quando a revista 2 chega a sua casa, na Alameda do Bom Jesus, que está cheia de crianças a brincar em bandos, está a navegar na Internet para mostrar a filha Joana a cantar num concerto do coro. Viveu sempre num raio de um quilómetro quadrado e gosta de morar no bairro, onde há uma família com 21 filhos. “Eu sei sempre onde os meus andam. Se tivesse 21, era diferente…”, diz. Sabe que tem em casa “uns miúdos responsáveis” que se apaixonaram pela música e que os fazem, a ele e à mulher, muito felizes. Não perdem um concerto da orquestra. “Se o Luís quer seguir música, que siga. Fico contente. A orquestra ajudou-o a escolher, a tomar decisões, a crescer. ”Também a cantora Paula Oliveira reconhece que alguns dos alunos do coro cresceram. Emita-lhes o sotaque, brinca com as notas, pede-lhes que cantem “meiguinho”. Corrige Ângela, uma das solistas, mas olha-a com orgulho. “Ela já conseguiu tanto”, sublinha. “É bom podermos valorizá-los através da música. Alguns destes miúdos fazem um esforço incrível para estar aqui. Querem vir no seu melhor. Hoje soube que uma menina pediu roupa emprestada para o ensaio…”O trabalho de Paula Oliveira e Pedro Moreira com a Oi Jazz é exigente, mas para ambos altamente compensador. “Errar faz parte do jazz — uma das suas belezas é, aliás, permitir o erro”, garante o saxofonista a meio de um dos ensaios. “Dexter Gordon, John Coltrane, Miles Davis e outros virtuosos da história do jazz também erravam e alguns dos seus erros ficaram gravados em discos que são dos que mais amamos. O que temos de fazer é transformar o erro numa coisa musicalmente melhor. ” Para miúdos que não estão habituados a ouvir um adulto dizer-lhes que errar pode ser bom, as palavras de Pedro Moreira são quase uma revelação. Tal como se descobrirem músicos no palco do Micaelense, no próximo sábado, quando a orquestra estiver a tocar Blue Train de John Coltrane.
REFERÊNCIAS:
O destino já não passa pelo casamento e não se rompe com o divórcio
Em 2011, Marvão teve cinco divórcios e dois casamentos. Números que não fazem o retrato do concelho, diz quem lá vive. A 100 quilómetros de distância, Vila de Rei celebrou 15 casamentos no mesmo ano, levando o número de divórcios por 100 casamentos a ser o mais baixo no país: 6,7. (...)

O destino já não passa pelo casamento e não se rompe com o divórcio
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-02-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em 2011, Marvão teve cinco divórcios e dois casamentos. Números que não fazem o retrato do concelho, diz quem lá vive. A 100 quilómetros de distância, Vila de Rei celebrou 15 casamentos no mesmo ano, levando o número de divórcios por 100 casamentos a ser o mais baixo no país: 6,7.
TEXTO: Marvão e Vila de Rei estão separados por 100 kms. Nas estatísticas que compararam o número de divórcios e de casamentos em 2011, em cada município do país, os dois concelhos ficaram separados por mais. Marvão foi o que teve mais divórcios por 100 casamentos no continente. Vila de Rei foi o que teve menos. Ambos têm um número semelhante de habitantes: Marvão tem 3512, Vila de Rei tem 3452. Têm uma população envelhecida e, de acordo com os Censos publicados no ano passado, tiveram quase o mesmo número de nascimentos em 2011: 20 bebés em Marvão, 19 em Vila de Rei. O recenseamento de 2011 também deu os últimos números do estado civil em Portugal: em cada 100 portugueses, 40 são solteiros, 47 são casados, sete são viúvos e seis são divorciados. No âmbito de um projecto de investigação em jornalismo computacional (REACTION), o PÚBLICO recolheu os dados sobre o estado civil de todos os censos. Recuar até ao primeiro, de 1864, é olhar para outra realidade: em 100 portugueses, 63 eram solteiros, 31 eram casados e seis eram viúvos. Os divorciados só viriam a ser contados em 1911, eram 2685. Num século, passaram para cerca de 594 mil e a forma como se vê um divórcio mudou. Também mudou o casamento: hoje tem mais valor emocional e menos valor institucional. Assim, ao longo desse tempo, aumentaram os divórcios, diminuíram os casamentos, sobretudo os católicos. E por trás da diminuição dos casamentos está uma geração mais urbanizada, menos tradicional, nascida entre os anos 1970 e 80. Foi ela que travou o casamento e acelerou a união de facto. "Não há hoje um destino traçado que passe obrigatoriamente pelo casamento", resume a socióloga Maria das Dores Guerreiro, professora do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). Conquistou-se a liberdade individual e o direito a escolher, o que não significa, no entanto, que se goste menos dos outros ou que se seja mais egoísta, pelo contrário. "As pessoas estão mais libertas, com uma proximidade mais genuína, sem sacrifícios", diz Maria João Valente Rosa, directora da Pordata. Quisemos perceber como é que nas pequenas localidades os números se cruzam com as percepções de quem lá vive, mesmo que esses números, de um só ano, não tenham de reflectir uma tendência ou um comportamento. Fomos conhecer quem se casou e se divorciou em Marvão e Vila de Rei. E, apesar da distância que separa os dois concelhos nas estatísticas, percebemos que há mais para além disso que os aproxima. MarvãoMulheres casadas num piso, homens casados noutro: esta noite, cada um vai levar os seus pratos e talheres para o Grupo Desportivo Arenense, em Santo António das Areias, uma das freguesias do concelho de Marvão. É dia do Jantar das Casadas e dos Casados. A tradição já vem dos anos 40, quando um dia um grupo de homens, "à roda de um petisco de farinheiras assadas", decidiu organizar um jantar, a realizar-se no primeiro domingo a seguir ao Carnaval. As mulheres não entrariam. Nem elas, nem nenhum rapaz solteiro. Só estavam autorizados os casados da freguesia, abrindo excepção aos divorciados e viúvos, porque esses, um dia, já souberam o que é um casamento. Mais tarde, um grupo de mulheres decidiu não ficar para trás. Eram poucas, "até porque nesse tempo não era muito comum as mulheres saírem de casa", mas também elas criaram um jantar e escolheram uma ementa. E assim será hoje. É Emília Machado quem escreve sobre as tradições de Marvão. É funcionária da câmara, mas é também uma espécie de relações públicas no concelho. Ali conhecerá praticamente todos os habitantes: eram 3512 em 2011, segundo os Censos do Instituto Nacional de Estatística (INE). Em tempos, Marvão chegou a ter mais de 7 mil habitantes. Hoje, faltam-lhe jovens como a quase todos os municípios do interior (nasceram 20 bebés em 2011, embora 40% dos habitantes tenham mais de 60 anos). Entre a população do concelho, 1834 pessoas são casadas. Só que no total das quatro freguesias, durante os 365 dias de 2011, houve apenas dois casamentos. É o reduzido número de casamentos, comparado com os cinco divórcios registados, que leva Marvão a ser o concelho do continente com mais divórcios por 100 casamentos (o rácio é de 250 divórcios por cada 100 casamentos, só ultrapassado pelo concelho de Nordeste nos Açores, com um rácio de 300). Rapidamente se descobre de quem são os dois casamentos do ano: Vera e José Miguel Magro foram um deles. O outro casal foi viver para Portalegre, onde muita gente de Marvão trabalha. Vera e José recebem-nos em casa, com a filha Matilde de três meses. Vivem num dos pisos da casa dos pais de Vera, naturais de Marvão. É também uma "vantagem económica": não pagam renda e têm ajuda dos avós com a bebé. A casa fica numa pequena localidade dentro do concelho, à qual se chega por estradas estreitas passando por campos onde pastam ovelhas. Não se vê quase ninguém. Matilde vai interrompendo a conversa dos pais e tanto um como outro estão ainda a tentar decifrar cada um dos choros da filha. "Pensámos em casar quando a vida estabilizou. Quem namora acho que tem sempre aquele sonho de casar. " Namoraram 14 anos e casaram-se a 30 de Julho de 2011. Um ano antes, tinham começado a pensar no casamento. Se dá trabalho? "Bastante", diz Vera. "E qualquer coisa custa umas centenas de euros: o aluguer do espaço, o catering, os brindes", lembra José. Um ano antes, pensaram também em comprar casa em Portalegre, só que o preço fê-los mudar de ideia. "Aqui temos outra qualidade de vida. Temos mais tempo e um ordenado dá para mais. "Vera faz o caminho entre Marvão e Portalegre todos os dias. É lá que trabalha num escritório de advogados, depois de ter estudado Direito em Lisboa. José trabalha em Marvão, na área da restauração. "Aqui há trabalho, não há emprego. Há trabalho para andar no campo, não há é trabalho de secretária. " Vera discorda. Até mesmo para quem não procura um "trabalho de secretária" há cada vez menos. "É uma zona rural, há uma única fábrica, há empresas pequenas. Não há perspectivas se um jovem quiser trabalhar cá. "Ambos cresceram no concelho e têm visto os amigos e conhecidos a casarem-se. "Muita gente passa por uma experiência a dois, até devido a condições económicas, e deixam o casamento para mais tarde. " Deixar o casamento para mais tarde ou não casar faz parte da evolução das conjugalidades, como refere Maria das Dores Guerreiro, socióloga e professora do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). Quem está em causa é a "geração da modernidade avançada", dos anos 1970 e 80, jovens com valores modernos, baseados em novos modelos de constituir família, que tendem a apostar na formação individual, não só académica, mas também afectiva, descreve a socióloga. Testar uma vivência a dois, "na qual a sexualidade está mais presente", faz parte das tendências. O desemprego e a precariedade laboral ou uma formação académica mais prolongada também podem ser motivos para deixar o casamento para mais tarde, reflectindo-se na "transição mais tardia dos jovens para a vida adulta" (a idade média do casamento passou de 32 anos, em 2006, para 33 em 2012, segundo dados do Instituto dos Registos e Notariado). Já para quem decide não casar, há outros factores. Atribuir menos valor ao casamento, seja como instituição, como sacramento, contrato ou compromisso, é um deles. Outro é a liberdade individual. "Se o casamento for entendido como uma perda de liberdade, então estar sem vínculo e sem coabitação plena pode ser uma forma de a salvaguardar", diz a socióloga. Olhar assim para o casamento é uma ruptura com o tradicionalismo dos valores, da família e do casamento, dos anos 1950 e 60 da sociedade portuguesa. Foi precisamente nessa altura, a 23 de Abril de 1955, que Maria Helena e João Lourenço se casaram. Estão juntos há 58 anos, hoje têm 78 e 84. Como é que se mantém um casamento tão longo? "Olhe, hoje arranhamo-nos, amanhã beijamo-nos. Sempre nos entendemos, um dia chateia-se um, no outro dia o outro. "São caseiros de uma quinta na encosta do Marvão, onde só se chega com indicações precisas. Ainda vão buscar água à fonte e põem-na em dois cântaros de barro, na cozinha. A casa é pequena e, mesmo à entrada, na sala onde passam grande parte dos dias, têm uma mesa redonda com uma toalha, pesada, até ao chão. Estão pouco mais de três graus e as brasas por baixo da mesa são como um íman. Nas paredes há armários de madeira, sem portas, onde as loiças de cores e tipos diferentes estão pousadas e as chávenas penduradas em pregos. Há uma ou outra moldura (de um casamento ou dos quatro netos da única filha), uma televisão e várias panelas e cafeteiras de alumínio, impecavelmente areadas, penduradas na parede. Cozinham numa divisão pequena, sem janelas: têm um forno a lenha, bancos pequenos, um carrinho com cebolas e batatas. Hoje custa-lhes andar e o único passeio do dia-a-dia de Maria Helena é até ao "mirante", como lhe chama, um miradouro dentro da quinta, com bancos de pedra. João Lourenço, pelo contrário, ainda sobe de vez em quando à vila de Marvão, "a cavalo", ou seja, de carro. Quando se casaram, tinham pouco mais de 20 anos e, quando hoje relembram a idade, resumem tudo em duas frases: "Eu ainda sou uma criança, ele é um jovem. " João corrige, "ela é uma menina". Durante anos, lavraram, cavaram, trataram da horta e da cavalariça da quinta. Em casa, era a mulher quem trabalhava. "Fazia tudo para ele poder trabalhar por fora. " Mas hoje o casamento dos jovens é diferente. "Brigam e cada um vai para o seu canto. Também não vale a pena casarem-se para se separarem", diz Maria Helena. "O divórcio agora é porta sim, porta não. Por acaso eu até pensava que ninguém se divorciava aqui, mas parece que não. Eles é que sabem, é a vida deles, não somos nós que temos com isso. "É uma população "muitíssimo envelhecida" que o pároco de Marvão, Luís Marques, de 69 anos, vê no concelho. Haver menos jovens é a primeira razão que aponta para os poucos casamentos. Mas, se houvesse mais jovens, haveria mais casamentos? "Acho que já não. A culpa é da legislação que temos. É mais fácil para os jovens não casarem, porque lhes dá os mesmos direitos. Não gastam tanto dinheiro e se quiserem divorciam-se. " Para o padre, o que se perde é "a célula base de toda a sociedade humana": a família. "Antigamente, quando um casal pensava no divórcio, interrogava-se quase dez vezes. Mas o divórcio entrou na vida das pessoas. Hoje é com pesar que os velhinhos nos dizem que o seu neto já se divorciou, são eles que mais sofrem. "Em 2011, registaram-se em Marvão cinco divórcios e 149 pessoas divorciadas, segundo o INE. É um número pequeno quando comparado com o total de cerca de 594 mil divorciados em todo o país (59% são mulheres, 41% são homens). Adelaide Martins, de 43 anos, é uma das pessoas divorciadas do concelho. "Nasci, cresci, fui baptizada, casei-me e divorciei-me em Porto da Espada", uma aldeia numa das quatro freguesias do concelho. É lá que está todos os fins-de-semana, escapando da cidade de Portalegre, onde trabalha, na secção de Armas e Explosivos da Polícia de Segurança Pública (PSP), e para onde foi viver quando se casou em 1996. O ex-marido era um colega de escola. "Tínhamos uns 16 anos quando nos conhecemos, namorámos quase dez. " Foi também dez anos depois de se terem casado, já com uma filha de cinco, que lhe pediu o divórcio. "Havia outra. Ainda aguentei dois anos, mas não valia a pena. " Nessa altura tinha 27 anos, distante daquela que é hoje a idade média do divórcio (42 anos, segundo o Instituto dos Registos e Notariado). Até então havia um só divórcio na família. "Foi uma bomba, ninguém estava à espera. O nosso casamento era visto como exemplar porque sempre camuflei o que se estava a passar. Bem basta o que eu sofria. " Os primeiros tempos não foram fáceis. "Era-me difícil dormir à noite, vinha-me tudo à cabeça. " Agora vive com a filha e está numa relação há três anos. Casar-se outra vez? "Não, não ia dar o mesmo passo para sofrer. "Os números de casamentos e divórcios em Marvão surpreendem José Manuel Pires, vereador da câmara. "Não se encaixam com a nossa maneira de ser aqui. " Atrair população jovem é um dos objectivos que os têm levado a investir na "parte social e cultural" do concelho. "Investir num apoio ao casamento não faz sentido porque as pessoas recebem o subsídio e vão-se embora quando podem. " Das opiniões que recolheu sobre os dados do INE, destaca uma. "Chamaram-me a atenção para o facto de a Conservatória ter só dois funcionários, o que pode levar as pessoas a recorrer às conservatórias vizinhas. "Assim foi com Cláudia e Rui Mimoso, de 27 e 26 anos. São ambos de Marvão, onde cresceram e se conheceram aos 16 anos. Namoraram desde então e esperaram que as vidas melhorassem para se casarem, o que aconteceu em Agosto de 2012. O registo do casamento ficou em Portalegre, apenas por uma questão prática: é lá que Cláudia trabalha. Mas viriam a casar-se na igreja da freguesia de São Salvador de Aramenha. Cláudia e Rui surpreendem-se em saber que só houve dois casamentos em 2011. Muitos dos amigos casam-se, embora alguns ainda estejam solteiros, sobretudo rapazes. "As raparigas deslocam-se para estudar e arranjam homem fora daqui", explica Cláudia. Pelo contrário, quem não se surpreende com o número de casamentos é o fotógrafo que o casal escolheu. Nuno Borda d"Água é conhecido na zona e, para quem depende do número de casamentos para o negócio, não restam dúvidas. Se em 2006 fotografava 20 casamentos por ano, no ano passado já só foram cinco. "Há muito menos casamentos também porque há menos gente aqui", aponta. Já o número de divórcios não desperta grande surpresa no casal e a opinião é clara. "Quem comenta o divórcio dos outros é quem não tem nada para fazer na vida. " Dionísia Fernandes, de 37 anos, comprova-o. Quando um dia regressou a Santo António das Areias, aos 27, sozinha com dois filhos, ouviu muita coisa. Ninguém sabia o que tinha acontecido, mas isso não evitou que não se falasse do assunto. "Custava sempre ouvir. As pessoas comentavam: "Não tem vergonha de fugir do marido com dois filhos"?" Dionísia era vítima de violência. Tinha casado aos 21, em Marvão, onde nasceu e só então foi viver com o marido para perto de Portalegre. Quando conseguiu sair de casa, com a ajuda do irmão, regressou a casa dos pais, tinham os filhos dois e seis anos. "Viemos com a roupa que tínhamos vestida, mais nada". Agora os filhos têm 11 e 16 anos, vivem com a mãe numa casa que entretanto conseguiu alugar. Arranjou trabalho e conseguiu ver o processo de divórcio terminado dois anos depois de ter saído de casa. Hoje é diferente: vive em união de facto há seis anos. Já quanto à ideia de voltar a casar, não tem dúvida. "Não é preciso um casamento para sermos felizes. "Contudo, os números mostram que o casamento de divorciados em Portugal tem contrariado a diminuição dos primeiros casamentos. O recasamento aumentou 52% em 15 anos, sendo os homens quem mais volta a casar após um divórcio. Conceber a hipótese de se reconstituir após um divórcio está associado ao "dilatar da vida", na opinião da demógrafa e directora da Pordata, Maria João Valente Rosa. Uma esperança média de vida maior faz com que se imaginem mais projectos. "Isto enriquece a vida de cada um. Deixa de haver a ideia de que não vale a pena dar este passo porque não tenho futuro. Sabemos que podemos ter muito futuro, que ainda há uma possibilidade e que uma relação não tem necessariamente de ser única e para a vida. "Os cinco divórcios de 2011 não são surpreendentes para quem vive em Marvão. E não vêem nesse número, nem nos dois casamentos, um retrato do concelho. Os dados de um só ano são incapazes de reflectir uma tendência. "Os comportamentos vêem-se a longo prazo", sublinha Anália Torres, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e autora de dois livros sobre o casamento e o divórcio em Portugal. O mesmo argumento é apontado para explicar a quebra dos divórcios em Portugal em 3%, em 2011 face a 2010 (a primeira desde 2005). Muitos motivos podem estar por trás dessa oscilação: isolar um não é correcto. "A crise pode jogar nos dois sentidos", refere Maria das Dores Guerreiro, explicando que tanto pode forçar os casais a ficarem juntos, como motivar a separação ao despertar tensões. Outros motivos como a alteração nas leis do divórcio, sublinha Anália Torres, estão também geralmente associados aos movimentos bruscos, de subida ou descida, dos divórcios. Deixar o tempo falar é o que as sociólogas sugerem. E a tradição do jantar dos casados, desta noite em Santo António das Areias, contraria os números. Lá se juntam homens e mulheres, de alguma forma ligados a um casamento. Terminados os dois jantares, vem o "ponto alto" da noite: os homens oferecem farinheira cozida às mulheres (feita pelas cozinheiras que eles contrataram), as mulheres oferecem-lhes arroz-doce. Lêem uns versos uns aos outros e a festa continua. Abrem o baile para quem quiser entrar. Até mesmo para os solteiros de outras freguesias. Vila de ReiPerde-se a rede no telemóvel quando se mergulha no vale onde está Água Formosa, uma aldeia de xisto no concelho de Vila de Rei. É lá que vive Celeste e José António, de 81 e 78 anos. Celeste explica tudo com detalhes, ainda por telefone: "Assim que vê a tabuleta à esquerda, vira à direita, estamos cá mesmo em baixo. " E acrescenta: "Se é para falar sobre os casamentos de hoje em dia, posso dizer já que agora é tudo pela lei do ajuntamento, já poucos se casam. "Há 12 anos, deixaram Lisboa e regressaram ao sítio onde Celeste nasceu. Ir para a terra do marido em Trás-os-Montes foi posto de parte: "É tão longe de Lisboa que o meu filho nunca mais lá iria na vida. " Viveram durante muitos anos em Lisboa, onde os filhos nasceram, "foram criados e casados". "Regressar à terra" era o que fazia mais sentido para os dois. Quando ali chegaram, a casa era pouco mais do que um palheiro, "arrumámos tudo o melhor que pudemos". Hoje têm a casa arranjada, uma horta, três galinhas e o som permanente da água da ribeira a correr ali perto. Estão os dois sentados lado a lado, no sofá da sala, pequena e com pouca luz, onde têm a televisão. Quase sempre se sobrepõem um ao outro quando falam: vale uma cotovelada de vez em quando para acertar o ritmo. "Agora estou a falar", diz Celeste. E se o marido se alarga mais no vocabulário, leva outra. "Deixa-me falar, mulher", é a resposta. "Um casamento de 51 anos dá para tudo. Tem altos e baixos. " Casaram-se quando Celeste tinha 30 anos, José António 27. Celeste precisou de uma semana para aceitar o pedido de namoro do futuro marido. Três meses mais tarde casaram-se porque estava quase a chegar o tempo da Quaresma e Celeste não queria que o casamento coincidisse com essa época. "Achávamos que casávamos para a vida. " Hoje, sabem que é diferente. "Os jovens só se juntam, mas assim os pais também não fazem despesa. "Mesmo que só tenha sido registado um único divórcio em Vila de Rei, em 2011, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), Celeste e José António dizem que hoje os jovens se separam muito e por pouco. "Há pais para quem é um escândalo os filhos divorciarem-se. " Como é também "um desgosto os filhos não se casarem". A visão que partilham coincide com os dados do último recenseamento. O número de pessoas a viver em união de facto passou de aproximadamente 381 mil em 2001 para 730 mil em 2011. Ao mesmo tempo, a percentagem de bebés nascidos fora do casamento passou de 23, 8% para 42, 8% nesses dez anos (se recuarmos a 1970, era de apenas 7, 2%). A idade da maioria das pessoas em união de facto está entre os 25 e os 44 anos. E, do total, 69% têm estado civil legal de solteiro. Só que mesmo assim Vila de Rei teve 15 casamentos em 2011, levando o número de divórcios por 100 casamentos a ser o mais baixo no país (6, 7). O concelho tem uma particularidade quanto ao casamento. Há 13 anos que a câmara dá um incentivo a quem se casa, com o objectivo de fixar os jovens no concelho e contrariar o envelhecimento da população (cerca de 46% dos habitantes têm mais de 60 anos). O apoio começou por ser de mil euros, actualizados para 750 no ano passado. É dado a casais, heterossexuais ou homossexuais, com uma média de idades inferior a 45 anos, mesmo que não tenham casado no concelho. O casal terá é de comprometer-se em manter a sua residência em Vila de Rei pelo menos durante cinco anos. Se não o fizer, tem de devolver o dinheiro. Um dos requisitos da candidatura é o registo de casamento, pelo que quem esteja em união de facto não pode concorrer. "Olhamos para o casamento como a base fundamental da família, embora o objectivo seja procurar que as famílias fiquem cá", explica Paulo César, vereador da câmara. Não se fala em divórcio no regulamento e o vereador diz que nenhum dos 124 casais que o receberam se divorciou. "Em 2011, mudámos o paradigma do incentivo. Como é mais importante o passo do primeiro filho, baixámos o apoio ao casamento. " O apoio à natalidade é de 750 euros pelo primeiro filho, 1000 pelo segundo e 1250 pelo terceiro e seguintes (incluindo para casais que optem pela adopção ou que estejam em união de facto). A condição principal mantém-se: a fixação dos pais com a criança durante cinco anos. "É uma ajuda ou prémio para fazer vida aqui", diz Paulo César. A criação de emprego foi outra das medidas. Os casais mais jovens destacam a maior importância de arranjarem emprego. "Ninguém casa com o valor do subsídio. Aceitamos de bom grado e se calhar até pode ser uma motivação para alguns, mas não é por aí", diz Sandra Carvalho (27) e Filipe Silva (30). Casaram-se em Setembro de 2011, três anos depois de se terem conhecido. Os pais de ambos eram do concelho, embora Sandra tenha nascido em Lisboa, onde estudou Gestão e Administração Pública. Candidatou-se a um concurso de arrendamento de habitação a baixo custo, lançado pela câmara (o aluguer de uma casa no concelho ronda os 250 euros) e mudou-se para Vila de Rei quando conseguiu uma casa. Há dois anos que procurava trabalho e só recentemente assinou um contrato de estágio para os próximos nove meses. Pelo contrário, Filipe fez a tropa em Lisboa e, assim que saiu, conseguiu trabalho nos bombeiros do concelho onde hoje está. Vivem no centro da vila, num apartamento à medida dos dois e, a curto prazo, assim esperam, à medida de um filho também. Foi a falta de trabalho de Sandra que limitou esse passo. "É que as fraldas são caras", ironiza. Casaram pela Igreja, "cá quase todos os casamentos são católicos", dizem. Só que os 15 casamentos registados nas conservatórias contrastam com os cinco casamentos católicos que o padre Manuel Nunes anotou no seu livro de registos de 2011. Significa que apenas um terço dos casamentos no concelho foram católicos. Esse facto coincide com uma das tendências recentes. "Nos últimos dez anos, há uma mudança brutal, sobretudo porque desceram os casamentos católicos. Há uma maior diversidade de escolha da conjugalidade e são poucas as pessoas que assumem o casamento como um sacramento", sublinha a socióloga Anália Torres. De facto, em 2001, 63% dos casamentos foram católicos, 37% foram civis (num total de cerca de 58 mil casamentos). Em 2011, houve cerca de 36 mil: 39, 5% foram católicos e 60, 2% foram civis (as décimas que sobram representam os casamentos celebrados segundo outros ritos religiosos). Se recuarmos a anos anteriores, como 1960, então 91% dos casamentos foram católicos. Ao contrário dessa descida, o número de casamentos civis tem-se mantido sensivelmente o mesmo, numa média de 22 mil por ano, nas últimas duas décadas. Os registos do padre Manuel Nunes, que acompanha quatro paróquias do concelho, algumas desde 1981, não têm só casamentos. No seu escritório, como lhe chama, uma grande estante de madeira ocupa toda a parede: nela estão dezenas de livros de registos de baptizados, profissões de fé, crismas, casamentos e óbitos, todos com data nas lombadas. A secretária enche-se de papéis escritos à mão. Num deles está a lista das bodas de prata e de ouro deste ano: são 22 casais juntos há 25 anos, 14 juntos há 50. Na missa das oito horas da manhã de domingo, o padre continua a ter a igreja cheia, na maioria pessoas "já de uma certa idade". A fé e tradição cristãs que seguem são diferentes nos jovens de hoje. "É o ambiente. A escola, ir para fora, as famílias. A fé apega-se ou então apaga-se. " E como é que hoje se explica aos jovens a forma como a Igreja encara o casamento? "É difícil explicar-lhes, sim. "Os jovens não são muitos em Vila de Rei, o concelho mais central do país. Dos 3452, 922 têm menos de 34 anos. Quanto ao estado civil da população, em 2011, 1662 pessoas eram casadas e apenas 97 eram divorciadas, ou seja, menos de 3% da população. Entre os casais mais jovens, o divórcio é concebido com naturalidade, embora saibam que é difícil que passe despercebido. Contudo, nenhuma das pessoas divorciadas que contactámos quis falar. Exporem as suas histórias, mesmo sem se identificarem, ficou fora de questão. O facto de as pessoas se conhecerem e poderem facilmente reconhecer a história foram as explicações dadas. Porquê o receio? "É natural que as pessoas o tenham. Aqui é um ambiente mais rural, ainda se opõe ao divórcio", aponta o padre. Já o vereador da câmara sublinha que os divórcios são poucos, "a crise ajuda a que não haja mais", mas eles sempre existiram. "Conhecermo-nos todos aqui potencia o "falatório". É isso que incomoda. "Só que há já um século, desde 1911, que os divorciados são contados nos recenseamentos portugueses. Nunca deixaram de aumentar desde então. A primeira lei do divórcio foi promulgada ainda em 1910, pouco depois da implantação da República. Contudo, com a assinatura da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, em 1940, criava-se um obstáculo ao divórcio num casamento feito através da Igreja Católica. Só em 1975, após o 25 de Abril, a revisão da Concordata abriria novamente caminho ao divórcio. E foi nessa altura que houve uma explosão de divórcios e casamentos. "Aquilo que estava a acontecer era como uma panela de pressão. Havia relações artificiais que se mantinham", refere Maria João Valente Rosa. "Havia condicionantes do ponto de vista social. Hoje naturalizaram-se as situações de divórcio, recasamento, filhos de outros casamentos. Isso já não é algo que nos faça corar e a pressão social é menor. "A opinião não é consensual. Pressão familiar é algo que Manuel Peixoto, psicólogo e terapeuta familiar, diz ainda existir hoje. "Há famílias onde o divórcio acontece há três gerações, outras onde nunca houve nenhum e isso tem um peso tremendo. " Também Rita Sassetti, advogada especializada em Direito da Família, que há mais de 20 anos lida diariamente com casos de divórcio, defende ainda existir estigma social, sobretudo em meios pequenos. "Há muita gente que não se divorcia porque não quer que lhe apontem o dedo. Pessoas que estão separadas, vivem em casas diferentes e deixam o divórcio para mais tarde. Muitas vezes ainda mantêm a aliança no dedo. "Em Vila de Rei, é possível não conhecer ninguém divorciado. É o caso de Andreia Domingos. Tem 26 anos, casou-se com Luís Silva em 2011 e vivem numa casa que eles próprios desenharam e decoraram. Na sala, junto à televisão, têm os bonecos do bolo de casamento. Resumem em grande parte a sua história: a noiva tem uma concertina nas mãos, o noivo um computador. É que Andreia está ligada à música e a agenda está sempre preenchida. Durante a semana, trabalha num escritório, ao fim-de-semana actua em diferentes eventos, como festas de arraial. Já Luís trabalha na câmara e, como diz, passa "o dia todo no computador". "Conhecemo-nos num "bailarico" em 2006 e namorámos cinco anos", conta Luís, antes de ser corrigido. "Não foram cinco, foram quatro anos e meio. " Casarem-se fazia parte dos objectivos de vida. Portanto, resumem-no rapidamente: "Foi acontecendo. " Aliás, por ali, acham que quase todos acabam por seguir o mesmo caminho. A opinião é diferente para quem organiza casamentos na zona. Carlos Marçal é dono de duas quintas em cidades perto do concelho. Há 30 anos que organiza eventos e tem a impressão de receber ali cerca de 90% dos casamentos de Vila de Rei. "Não temos uma ocupação inferior ao ano passado, temos é menos convidados por evento. " E cada vez mais as pessoas procuram os preços baixos. Nas suas quintas cobra uma média de 70 euros por convidado, sem reflectir o aumento de 10% do IVA no cliente, lembra. "Estamos a ficar estrangulados e milagres não há. "Foi numa dessas quintas que Luiza e Luís Mendes se casaram, já em 2012. Luiza, que nasceu no estado brasileiro de Espírito Santo, é um exemplo de quem sublinha a sua fé como motivo para um casamento religioso. "Eu, que sou cristã, queria casar no civil como compromisso mas no religioso também. " Veio para Portugal há oito anos e estuda Gerontologia Social em Lisboa, com a ideia de ir trabalhar para Vila de Rei e abrir um negócio próprio. É para lá que vai quase todos os fins-de-semana. Luís Mendes é natural do concelho e trabalha no "negócio da madeira". Vivem em casa dos pais dele, até porque as cidades grandes não o atraem. "Quanto mais pequena, melhor. " Para Luiza, é diferente. "Este é um lugar pequeno, parado e senti a diferença no silêncio e no escuro. " Mas vê vantagens, como viver com menos stress. Casaram-se nove meses depois de se conhecerem. Registaram o casamento em Lisboa, "por uma questão de tempo e de documentos", mas aguardam resposta da câmara à candidatura para o apoio. "É bom recebê-lo, mas não tem muito peso na decisão. Casar era uma questão nossa. " Pensam em ter filhos. "Será um bocadinho mais para a frente, mas não muito", até pelas idades (Luiza tem 38 anos, Luís 45). E é de forma aberta que Luiza, mais do que o marido, encara a realidade do divórcio. "Aqui as pessoas comentam tudo. Mas, se não dá certo, o que é que se pode fazer? Não podem condenar ninguém. "Essa opinião contrasta com as razões apontadas pelos divorciados para não partilharem as suas histórias. Se os casais mais jovens têm uma visão do divórcio mais livre e aberta, também eles partilham a conclusão de que não é um incentivo ao casamento, mesmo sendo uma boa ajuda, que os leva ao altar. Mesmo assim, Vila de Rei foi um dos poucos concelhos onde a população aumentou 2, 9% de 2001 para 2011 e viu nascer 19 bebés em 2011. Só que quanto ao apoio ao casamento, sublinha a demógrafa Maria João Valente Rosa, o que está em causa não é financeiro. "O marco institucional do casamento deixou de ser necessário. Se não é necessário, um incentivo financeiro pode ou não funcionar. O casamento não é um bem de valor económico, é emocional. "Para o pároco Manuel Nunes, continua a haver casais que se mantêm unidos. "Têm dificuldades, mas mantêm-se. " Celeste e José António são um exemplo. Ao longo dos últimos 51 anos, perderam uma filha, que deixou um neto com seis meses. Passe o tempo que passar, isso dói-lhes. Se hoje estão ali bem? "Não me sinto pior do que em Lisboa", responde Celeste, que de vez em quando sai para passear entre as poucas casas da aldeia apoiada em duas muletas. "Já ele está sempre na horta, monta e desmonta, depois senta-se num banco. E é muito amigo das três galinhas", conta a rir. José António aproveita a pausa da mulher, para rematar a conversa. "Depois de tantos anos casados, ainda consegue ter ciúmes. "
REFERÊNCIAS:
Patrice Chéreau, homem total no teatro e íntimo no cinema
Encenador, realizador e actor francês tinha 68 anos e uma carreira de mais de 40 dividida entre o teatro, a ópera e o cinema. Morreu segunda-feira em Paris. (...)

Patrice Chéreau, homem total no teatro e íntimo no cinema
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2013-10-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Encenador, realizador e actor francês tinha 68 anos e uma carreira de mais de 40 dividida entre o teatro, a ópera e o cinema. Morreu segunda-feira em Paris.
TEXTO: Sabíamo-lo doente, mas os planos que mantinha, no cinema e no teatro, pareciam indicar que o encenador francês Patrice Chéreau, que morreu nesta segunda-feira aos 68 anos, em Paris, iria vencer a batalha contra o cancro no pulmão que o assomava há dois anos. A notícia foi avançada pelo jornal Libération esta segunda-feira ao fim do dia e confirmada mais tarde pela Cinemateca Francesa. Patrice Chéreau, actor, encenador e realizador deixa uma obra que se define pelo desejo. Desejo de se exibir, barroca que era na sua construção. Desejo de existir, pelo modo como procurava inscrever-se, ao longo do tempo, através das referências que as personagens usavam como argumento retórico. Em 2008, quando recebeu o Prémio Europa para o Teatro, Chéreau, na vaidade de quem não fugia da glorificação, definia o seu teatro, o seu cinema, as suas encenações para ópera como um contínuo discurso de descoberta. Desde sempre curioso, foi autor de mais de uma centena de encenações e de quase 20 filmes. A sua carreira estendeu-se ao longo de mais de 40 anos. A sua primeira encenação, aos 19 anos, L'Intervention, a partir de Victor Hugo, abriu-lhe as portas do teatro de Sartrouville, onde viria a protagonizar, a partir de 1959, uma verdadeira revolução no teatro francês, onde as tomadas de posição públicas sobre a política nunca procuraram o consenso. Deve-se a Chéreau a descoberta do teatro de Bernard Marie-Koltés, autor que encenou como se fossem suas as palavras. Na Solidão dos Campos de Algodão, que em 1995 se apresentou no na Alfandega do Porto pelo Teatro Nacional São João, é uma das suas mais famosas encenações, precisamente por experimentar um modo de pensar o jogo entre actores como um jogo. Mais tarde, à frente do Theatre National Populaire, seguindo os passos de Jean Vilar, e depois em Amandiers-Nanterre, na periferia de Paris, Chéreau procurou construir um teatro que se implicava com a memória, de modo a que pudesse contrariar a efemeridade que tanto o incomodava. Ficarão na memória, por isso mesmo, encenações como a que assinou em 1976 da tetralogia O Anel do Nibelungo, de Wagner, cuja direcção musical havia sido entregue a Pierre Boulez, criada para o centenário do Festival de Bayreuth. Em 1980, na conclusão da obra, o público, céptico inicialmente, rendia-se a uma visão que se tornaria, senão definitiva, difícil, pelo menos, de superar. O teatro de Chéreau era feito de um excesso que, contudo, nunca se impunha pela sua força física, antes pela demonstração de uma atenção particular a um modo de pensar o palco como lugar de confronto. Já havia sido assim em 1970 com Ricardo II, de que se imporia como uma peça de viragem na abordagem a Shakespeare, depois em 1983 com Combate de cães e negros, de Koltés, e mais recentemente, quando Chéreau descobriu o teatro do norueguês Jon Fosse – Sonho de Outuno (2011) e Sou o vento (2012, que esteve no Festival de Teatro de Almada nesse ano), comparando-o a esses autores. Cinema da intimidadeTambém no cinema se impunha um olhar que dificilmente procurava um consenso. L’Homme Blessé, que escreveria com Hervé Guibert (1983), assumia a sua condição de homossexual num texto que expunha, sem pudor, o amargo fel do vírus da sida num conto, quase fábula, sobre uma Paris quase nada secreta. Muito do seu cinema recusava o filtro da metáfora para se expor, sem concessões, a um olhar que denunciava a fragilidade do ser humano. Em A Rainha Margot (1994, Prémio do Júri do Festival de Cannes), rodado parcialmente em Portugal, as guerras dos Médicis eram vistas como uma condição sine qua non da existência. Expostas, aliás, e como espelho, em Quem me amar irá de comboio (1996), denúncia sobre a falência dos laços familiars. E, no entanto, nunca o seu cinema deixou de ser sobre o íntimo. Filmes como Intimidade (2001, Urso de Ouro do Festival de Berlim), O seu irmão (2003, Urso de Prata em Berlim), Gabrielle (2005), não eram, senão, e de certo modo, recomposições dos jogos entre o comprador e o vendedor que estavam na base de Na Solidão dos Campos de Algodão, de Koltés. Em Julho passado, no festival de Avignon, a sua leitura de Coma, de Pierre Guyotat, havia emocionado o público. De certo modo, em retrospectiva, o adeus de um homem a um corpo que já não lhe obedecia surge agora como premonitório. Ao mesmo tempo, e era esse paradoxo que Chéreau tão bem sabia habitar, a 50 quilómetros, em Aix-en-Provence, a sua encenação da ópera Elektra, de Strauss, mostrava como era ainda possível esperar deste homem uma ideia de teatro total. Chéreau tinha projectos no teatro e no cinema. Em Janeiro de 2014 o teatro Ódeon, em Paris, previa apresentar Como vos aprouver, de Shakespeare, e preparava, para o cinema, uma adaptação do romance Des Hommes, de Laurent Mauvignier, sobre a guerra na Argélia. Em 2011 a Sociedade Portuguesa de Autores prestou-lhe homenagem com um Prémio Carreira. Em 2006 Chérau esteve em Lisboa para ler O Grande Inquisidor, excerto de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky e, em 2010, com A Dor, de Marguerite Duras, apresentou-se no Teatro Nacional Dona Maria II. Notícia corrigida às 16h03: Na Solidão dos Campos de Algodão foi apresentada na Alfândega do Porto
REFERÊNCIAS: