O nosso eterno cavalheiro do rock’n’roll
Soube muito cedo o que queria ser e o punk mostrou-lhe como o conseguir. Sonhador de pés na terra, estrela no palco e cavalheiro fora dele, Zé Pedro foi o guitarrista e a alma dos Xutos & Pontapés. Morreu aos 61 anos. (...)

O nosso eterno cavalheiro do rock’n’roll
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-12-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Soube muito cedo o que queria ser e o punk mostrou-lhe como o conseguir. Sonhador de pés na terra, estrela no palco e cavalheiro fora dele, Zé Pedro foi o guitarrista e a alma dos Xutos & Pontapés. Morreu aos 61 anos.
TEXTO: Zé Pedro, 61 anos, fundador dos Xutos & Pontapés e ícone do rock n' roll nacional, morreu nesta quinta-feira. Doente hepático, tinha feito um transplante de fígado em 2011 e estava doente há vários meses. Subiu ao palco pela última vez a 4 de Novembro, num espectáculo esgotado no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o último da digressão Mar de Outono. O velório realiza-se sexta-feira, a partir das 16h, no antigo Museu dos Coches (e não nos Jerónimos como foi inicialmente anunciado). A missa de corpo presente será no sábado, às 13h30 (meia hora mais cedo do que inicialmente previsto), no mosteiro dos Jerónimos. Parte da infância passou-a em Timor-Leste, na montanhosa Maubisse. O pai, Pedro João dos Santos Reis, oficial do Exército, fora destacado para o país asiático, então colónia portuguesa, e com ele viajara quase toda a vasta família – não pôde seguir viagem a irmã recém-nascida, quinta criança de uma família que será de sete, cinco raparigas, dois rapazes e Zé Pedro como o mano mais velho. Partiram de Portugal no final de 1960 e iniciaram viagem de regresso no Verão de 1963. Zé Pedro recordava-se bem da vida livre timorense, pés descalços sobre a terra em correrias nos pátios e entre a vegetação. Houve um episódio em particular que foi contando ao longo dos tempos. Tinha seis anos e, no regresso de Timor, madrugada alta, veria Hong Kong erguendo-se ao longe, toda luz na escuridão, com néones denunciando vida agitada, urbana. A visão deixou marca profunda. “Foi a primeira vez que reparei na electricidade. Era como se estivesse a descobrir a civilização”, diria em várias entrevistas. O fascínio pela magia das luzes manifestou-se cedo e seria, a ela, à electricidade canalizada em rock'n'roll, que devotaria a sua vida. “Pensas que eu sou um caso isolado/ Não sou o único a olhar o céu/ A ver os sonhos partirem/ À espera que algo aconteça”, escreveria décadas depois, na letra de uma das canções tornadas hino da banda que foi o seu sonho (cumprido). Viajante na infância – de Lisboa para Tomar, de Tomar para Timor, de Timor para Lisboa, daí para a Guiné-Bissau nas férias de Verão, para visitar o pai, e Lisboa novamente, mais propriamente o bairro dos Olivais –, faria dessa deambulação constante modo de vida. Foi cidadão que queria ser do mundo partindo em interrail, na adolescência, para descobrir outras realidades e para testemunhar em carne e osso os sons e a agitação que as revistas e capas de discos sugeriam. Mais tarde, estudioso e eterno apaixonado pela música popular urbana, escolheria as cidades a visitar com o mapa das digressões das suas bandas preferidas na mão. Ainda assim, ou também por causa disso, Zé Pedro tornar-se-ia indistinto do país que o viu nascer e cuja evolução nas últimas quatro décadas testemunhou e documentou, através dos seus Xutos & Pontapés. País para cuja evolução, reformulemos, contribuiu, através de uma banda que se tornou referência máxima do rock em português e um verdadeiro marco cultural. No caderno em que registava a infância dos filhos, a mãe, Olga Helena Ricardo Castro Amaro dos Santos Reis, criou uma entrada para o dia 24 de Novembro de 1957. “O Zé Pedro dançou sozinho”, citou Helena Reis, irmã do músico, na biografia que lhe dedicou, Não Sou o Único (Editorial Presença, 2007). “Tínhamos o rádio aceso e estávamos entretidos a conversar; quando demos por ele, estava a dançar muito convencido”. Não há referência a que tenha iniciado a “actuação” com apresentação tornada icónica em mil palcos deste país – “Boa noite, aqui Xutos & Pontapés!”. Mas, de certa forma, e olhando retrospectivamente, essa apresentação já tinha que estar algures no corpo do rapaz nascido a 13 de Setembro de 1956, registado pela mãe como nascido no dia seguinte para afastar o azar. O grito de guerra do palco já estaria a germinar na criança que procurava ter sempre um rádio por perto, que ouvia o pai deliciar-se com o jazz que consumia avidamente, que descobriu o rock'n'roll e, nele, o que queria fazer da vida, enquanto ensaiava posições de guitarra nas réguas em T que as irmãs usavam no colégio. Já tocava uns acordes quando, “eureka!”, descobriu que não precisava de ser um virtuoso para subir a um palco – assim lho mostraram os Ramones e o punk. Bastava saber o que queria e atirar-se de cabeça para que o que queria se tornasse realidade. Zé Pedro, guitarrista e co-fundador dos Xutos & Pontapés, ícone da música portuguesa, estrela arredia a tiques de estrelato, sempre próxima e disponível, morreu aos 61 anos. Habitualmente, figuras públicas da sua dimensão são sentidas pelo público como alguém próximo, como um amigo ou um familiar. Essa ilusão de proximidade, criada pela presença mediática, na televisão, nos palcos, nos jornais e revistas, e pela presença real, através do palco, de um encontro fortuito numa rua, num bar, num clube (Zé Pedro gostava dos concertos e gostava da noite, e o país é pequeno), parecia ser, no caso específico de Zé Pedro, mais que mero simulacro. Nascido José Pedro Amaro dos Santos Reis no Hospital da Estrela, em Lisboa, tinha em palco o carisma das estrelas rock'n'roll, movendo-se no corpo esguio ao sabor dos acordes simples em que se funda o som da sua banda, e tinha, fora dele, uma genuinidade cativante e calorosa. Como costumava dizer: “Eu tenho sempre tempo para falar de rock'n'roll”. E fazia-o com os companheiros de banda, com camaradas músicos, com técnicos de som e de palco, com anónimos, novos e velhos, que o abordavam na rua para trocar dois dedos de conversa. Zé Pedro tinha sempre tempo. Para a maioria dos portugueses, considerando como muito provável que 90% da população tenha ao longo da vida assistido a pelo menos um concerto dos Xutos, Zé Pedro seria realmente alguém próximo com quem já se trocaram algumas palavras, alguém que acompanhou o que somos e fomos sendo desde o final dos anos 1970, período em que os Xutos irromperam na cena musical em concerto modesto, mas que causou estrondo. Alunos do Apolo, Janeiro de 1979: seis minutos durou o primeiro concerto dos punks Xutos & Pontapés, quando os seus membros estavam longe, muito longe, de sonhar que seriam um dia os primeiros rockers portugueses tornados comendadores da nação, cortesia do então Presidente da República Jorge Sampaio, em 2004. A abertura e empatia perante o outro era uma das marcas distintivas de Zé Pedro. Outra, o prazer pela música, inabalável ano após ano, e guia de todas as suas acções até ao fim. Em 2001, quando uma hemorragia no esófago o deixou às portas da morte – “os médicos disseram-me que se tivesse entrado [no hospital] duas horas depois, não me safava”, contou –, saiu do internamento, ainda naturalmente fragilizado, e poucas semanas demorou até subir a palco novamente. Devia-o à sua banda, a toda a equipa que a rodeava e que tinha nos Xutos o seu ganha-pão, e ao público que esperava vê-lo e que já comprara bilhetes. No último 4 de Novembro, subiu ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para o último concerto da digressão de 2017. A seu lado, os companheiros de sempre, Tim, Kalú, João Cabeleira e Gui. Perante si, os fãs que cresceram ao longo dos anos até se tornarem muitos, muitos milhares. Começaram por ser um pequeno grupo, uns punks da Amadora que, num concerto dos inícios, em 1979, invadiu o palco onde tocavam os Xutos em aprovação da música e do gesto artístico. Aconteceu no Liceu D. Pedro V, quando Zé Leonel, o primeiro vocalista dos Xutos, vitimado por um cancro no fígado em 2011, partiu em palco um gravador que teimava em não funcionar como devia e atirou os pedaços para a plateia – os pedaços foram devolvidos, o palco invadido. Aqueles punks suburbanos que, contava Zé Pedro, adoptaram a banda como sua, seguindo-a concerto a concerto a partir daí (naquela primeira noite, propuseram logo aos Xutos irem juntos partir umas vitrines à privilegiada Avenida de Roma, para consumar a relação), foram os primeiros. Hoje, como naquele Coliseu lisboeta lotado, o público e os fãs dos Xutos & Pontapés são um grupo transversal a faixas etárias, classes sociais e geografias. São de todos e são para todos. Foi por eles que Zé Pedro continuou, mesmo debilitado pela doença hepática que o obrigou, em 2011, a um transplante de fígado, a actuar todas as noites de mais uma digressão dos Xutos & Pontapés. Por eles, pela banda que será sempre a sua, e por si mesmo. Em Conta-me Histórias, biografia da banda assinada por Ana Cristina Ferrão, Zé Pedro recorda a estreia da banda na supracitada actuação nos Alunos do Apolo, integrada numa comemoração dos 25 anos do rock’n’roll. “A assistência que tinha estado a ouvir, a noite toda, o Rock around the clock e outras coisas similares, ficou estática. Quando acabámos não se ouviu nem uma palma, nem um assobio. Não se ouviu nada. Eles não devem ter percebido absolutamente nada e a verdade é que nós também não”. Foram cerca de cinco canções em seis minutos. Foi o início da história conhecida. Pode ter sido curto, pode ter sido um caos, pode não se ter ouvido sequer um aplauso, mas Zé Pedro não teve dúvidas quanto ao que sentira. “Tinha sido muito excitante. Marcámos logo o próximo ensaio”. Em entrevista a Ana Sousa Dias, publicada no Diário de Notícias em 2016, apresentou a sua definição de rock'n'roll. “O rock'n'roll é um estado de espírito, e uma pessoa ou sente ou não sente. Não é preciso ser músico para se sentir, tem que ver com aventura. Pode ter que ver com uns certos limites na vida, mas tem, acima de tudo, que ver com a realização pessoal de uma vida mexida”. A sua foi, verdadeiramente, uma vida mexida, realizada. Em 1969, os pais compraram uma televisão para a família assistir em directo ao grande acontecimento do ano, a chegada do Homem à Lua. Zé Pedro viu Neil Armstrong dar o grande passo, mas a televisão mostrou-lhe outra coisa, um concerto dos Deep Purple, banda que mais tarde encaixaria na categoria de dinossauros, mas que, naquela altura, funcionou como um despertar. A partir daquele momento, começou a procurar as novidades discográficas, a encomendar a imprensa musical que lhe mostrasse o novo que se ia fazendo no cenário musical. Dois anos depois, os pais levavam-no a ver o seu primeiro concerto. Momento histórico: Zé Pedro foi um dos felizardos que, no primeiro Cascais Jazz Festival, assistiu à actuação de Miles Davis. Fascinou-o aquele homem, quase alienígena, certamente alienígena no Portugal de então, na sua roupa colorida, tronco dobrado sobre a trompete e olhar escondido atrás de grandes óculos escuros. Mas assistir ao concerto teve um efeito secundário. Chegar àquele patamar musical parecia tarefa impossível. “Deixei de ter aquele apetite de ser músico depois de vê-lo: ‘Eh pá! Isto dá muito trabalho, chegar aos calcanhares de uma coisa como esta’”, recordou a Ana Sousa Dias. Ainda não havia os Ramones, ainda não havia o punk rock. Ele ainda não tinha ouvido os primeiros e testemunhado a revolução cultural do segundo para exclamar: “Isto consigo e quero fazer”. Sente-se a electricidade no ar, o entusiasmo, no limite da euforia, que rodeava o momento. Ouve-se o clamor do público e percebe-se como esse clamor contagia o palco. Os versos são, várias vezes, em várias canções, cantados por todos, pelo vocalista e pelos milhares que lotaram o Pavilhão d’Os Belenenses nos dias 29, 30 e 31 de Julho de 1988. Os Xutos & Pontapés viviam o seu primeiro auge de popularidade, ascendendo de banda de culto a verdadeiro fenómeno, alicerçados em canções como Remar remar, Homem do leme, Contentores, À minha maneira, A minha casinha ou Para ti Maria, e nos álbuns Cerco, Circo de Feras e 88. O sucesso devia-se tanto ao protagonismo ganho pelas canções quanto à incansável ética de trabalho: os Xutos & Pontapés haviam resistido à saída do primeiro vocalista, Zé Leonel, haviam acolhido novo guitarrista, Francis, viram-no partir para que chegasse aquele que parece pertencer à banda desde sempre, João Cabeleira. Conseguiram-no guiados pela vontade indomável de Zé Pedro, líder sereno mas decidido, tocando onde e quando os quisessem, para 50 pessoas, para cem ou para cinco mil, tocando sempre. “Assumiram que o rock nunca foi um estilo de música mas sim uma atitude e, quer se queira quer não, um estilo de vida”, escrevia Fernando Magalhães no PÚBLICO em 1999, cumpriam os Xutos & Pontapés vinte anos de carreira. Escrevia mais: “Remar remar, Homem do leme, Circo de feras, Contentores, Quero mais, Não sou o único ou Longa se torna a espera são palavras de ordem para quem se alimenta de palavras de revolta, servidas por melodias cuja força e simplicidade formam uma condensação perfeita da fúria, do espanto, da dúvida e da loucura de quem avança sem olhar para trás. Um segredo que se encontra exposto desde o início no próprio nome do grupo”. No Pavilhão d’Os Belenenses, em 1988, nos concertos que resultarão em Xutos Ao Vivo, Tim cederá o protagonismo ao companheiro de estrada e Zé Pedro cantará Submissão em voz crua e ritmo acelerado, punk mais punk não há. Zé Pedro cantará: “Deixei a escola e fui trabalhar/ Mas é pior do que andar a estudar/ oito horas por dia é muito a aturar/ é tanto tempo, tempo que nem dá p’ra pensar”. Há muito tinham desaparecido os receios de há 17 anos, quando assistira pela primeira vez a um concerto e vira o imponente Miles Davis em palco. Eram nove naquele 7. º andar direito, nos Olivais. Os pais, as duas irmãs mais velhas e as três irmãs e o irmão que chegaram depois dele. Núcleo familiar forte, muito unido e sem sinais de conflitos geracionais. Nos anos 1980, muito solicitado para comentar o fosso entre a geração dos pais e a sua, diria vezes sem conta a jornalistas que nada tinha a dizer sobre esse assunto. Que gostava muito da família, que se dava muito bem com os pais, explicava. A mãe, de resto, não só apoiava a carreira musical do filho como marcou regularmente presença nos concertos até à sua morte, tinha Zé Pedro 27 anos, chegando a ser a responsável pela maquilhagem com que a banda subia a palco. Foi a partir do bairro lisboeta dos Olivais que o adolescente Zé Pedro começou a ver mais, a descobrir mais. Tinha 15, 16 anos quando sentiu pela primeira vez o que era a vida na estrada, acompanhando uma banda local, os Ficha Tripla, até um concerto no Algarve. Ao mesmo tempo, ia contactando com a geração do rock português anterior à sua, a dos Petrus Castrus e dos Objectivo, e prestava atenção ao que fazia Filipe Mendes, o grande guitarrista de Chinchillas ou Heavy Band, o bem conhecido Phil Mendrix dos Irmãos Catita. Demasiado irrequieto e desinteressado na escola – olhando para esses anos, descrevia-se como “speed-freak rebelde” –, foi-se sentindo atraído para a acção política que começa a fervilhar imediatamente antes, durante e logo após o 25 de Abril. Semanas antes da Revolução foi, nos Olivais, um dos membros fundadores de um misterioso CRIME – Comité Revolucionário para a Independência da Malta da Encarnação. Interessava-lhe a agitação e acção directa, não tanto a burocracia das reuniões – na política como na música, portanto. Antes de pegar na guitarra em palco, divulgava música na imprensa, escrevendo crítica musical no Diário de Lisboa (o tio, Ruella Ramos, era o director) e colaborando ocasionalmente com a Rádio Comercial. Foi, por exemplo, o primeiro a escrever em Portugal sobre Horses, o histórico disco de estreia de Patti Smith. O momento decisivo chegaria em viagem. A história é bem conhecida. Verão de 1977 e Zé Pedro em interrail pela Europa. Em Amesterdão, decide inverter marcha. Algures numa vilória francesa aconteceria algo que ele não podia perder. Em Mont de Marsan, Sul de França, realizava-se um festival por onde passaram os Clash, os The Damned ou os Police. Na sua conta de Facebook, em Junho de 2017, Zé Pedro partilhou fotos do festival, com bandas e público a conviver unidos nos alfinetes espetados e nas t-shirts esburacadas. “Nesse momento, a minha vida mudaria para sempre”, escreveu num dos posts. Alex Cortez, baixista dos Rádio Macau, guardou bem nítida na memória a primeira vez que viu Zé Pedro, então alcunhado Podrezinho por influência de Johnny Rotten, o vocalista dos Sex Pistols. Foi num 1º de Maio, assim recordado em Conta-me Histórias: “Ele usava um impermeável amarelo cheio de badges de grupos punk da altura e eu lembro-me de achar aquele personagem curioso, no meio dos trabalhadores que davam vivas à Revolução”. Um ano e meio depois de Mont de Marsan, Pedro Ayres Magalhães, com quem Zé Pedro firmara um pacto assinado a sangue em mortalhas coladas – ainda haveriam de ser grandes na música, ditava –, diz ao jovem guitarrista: “Tomem conta do rock’n’roll, que nós temos que ir para outro lado”. Era o último concerto dos fugazes Faíscas, de quem Zé Pedro era manager, e o da estreia dos Xutos & Pontapés. Pedro Ayres Magalhães foi – para a criação dos Corpo Diplomático, dos Heróis do Mar, dos Madredeus. E os Xutos & Pontapés foram também – tomar conta do rock’n’roll. Zé Pedro atravessou toda a celebrada história que se seguiu com a elegância e frontalidade que revelou desde o início. Enquanto guitarrista, tinha a virtude da simplicidade, indo directo ao assunto através de riffs crus e sequências de acordes eficazes – a âncora em que se suportaram as canções da sua banda. Francis, guitarrista dos Xutos & Pontapés entre 1981 e 1983, dizia-o em Conta-me Histórias: “Sendo um guitarrista limitado, tem um balanço desgraçado, ele em ritmo é fabuloso. É ele e o Kalu na bateria. A guitarra do Zé Pedro não é uma guitarra de encher chouriços: a guitarra dele é importante”. Enquanto figura pública, prezou a transparência, sem falsos moralismos. O carisma de estrela em palco, do alfinete espetado na boca às t-shirts apertadas e rasgadas, imagem dos primórdios, aos casacos, sobretudo e pulsos cobertos de pulseiras de metal, qual mestre rock’n’roll, de tempos mais recentes, não tinha equivalência, fora dele, numa pose distante, inatingível. Era um verdadeiro cavalheiro, tão à-vontade com os seus – os músicos, os roadies, os agentes da indústria – como com os admiradores anónimos na rua ou com figuras de relevo na política como Manuela Eanes, fã assumida, ou Jorge Sampaio, o Presidente que agraciou os Xutos com a ordem de comendadores da nação. “Pessoas que gostam do que estão a fazer querem ir o mais longe possível”, disse em 2016 a Ana Sousa Dias. “No meu caso, como músico, acima de tudo, há uma honestidade total em relação à vida que levo. Assumo o que faço e isso é transportado comigo. A andar na rua, a ir às compras, seja o que for, eu também sou o Zé Pedro dos Xutos & Pontapés”. Assim foi. O prazer pela música, pela vida que lhe está associada, foi uma constante. Não só no apoio e no entusiasmo de verdadeiro fã que foi mostrando por bandas das gerações que lhe sucederam, como os Censurados, os Lulu Blind de Tó Trips, que chegou a produzir, os Linda Martini, os Pontos Negros ou os Capitão Fausto. Não só na criação de bandas paralelas aos Xutos & Pontapés, como o Palma’s Gang de revisita rock’n’roll ao cancioneiro de Jorge Palma, os destrambelhados Os Cavacos ou, mais recentemente, Os Maduros e os Ladrões do Tempo. Sempre atento, rodeado de revistas, de DVD, CD e vinil, divulgou música das mais diversas formas: na rádio, em programas que passaram por diversas emissoras; na televisão, através de Viva o Vídeo, onde, ao lado de Xana e de Henrique Amaro, revelou em primeira mão em Portugal o emergente panorama grunge, por exemplo; enquanto DJ, actividade que manteve nas duas últimas décadas; ou no clube Johnny Guitar que co-fundou e, que nos anos 1990, foi o grande centro criativo musical lisboeta, digníssimo sucessor do Rock Rendez Vous onde os Xutos haviam feito boa parte da sua história inicial. Com o passar dos anos, viu como a sua banda cresceu até se tornar verdadeira instituição nacional, saltando dos clubes para os pavilhões, daí para os Coliseus, para o Pavilhão Atlântico, para os eventos de massas que são os festivais de Verão. Nas corridas Portugal fora, em inúmeras digressões, viu as auto-estradas cortarem o país, viu como os fãs de ontem continuavam presentes enquanto novos, por nascer quando os Xutos deram os primeiros passos, se juntavam em coro com a banda. Em 2003, cumpriu um sonho antigo ao tocar na primeira parte do concerto dos Rolling Stones no Estádio Cidade de Coimbra – “Foram a banda que me levou a ser músico e que me levou a tocar guitarra”, contou em Não Sou o Único. Nos anos 1980, ultrapassou um período de dependência da heroína do qual sempre falou com desassombro, sem falsos dramatismos e sem moralidade de pacotilha. Em 2001, foi internado de urgência e viu a morte de perto – mal teve alta, preparou o regresso aos palcos, que não demorou mais que umas curtas semanas. Em 2011, a persistência dos problemas hepáticos – sofria de hepatite C –, obrigou-o a um transplante de fígado e, também nessa altura, não demorou a regressar a palco – podia lá faltar ao concerto no Optimus Alive, onde iria partilhar palco com Iggy Pop & The Stooges. Em 2013, casou com Cristina Avides Moreira. Em 2014, os Xutos & Pontapés editaram o seu 13º álbum de estúdio, Puro. Este ano, quando apenas os mais próximos estavam cientes do seu estado de saúde, fez questão de subir a palco em todas as datas da digressão, com excepção de Toronto (e por imposição dos companheiros). Lembramo-nos de algo que dissera em Conta-me Histórias: “As tournées matam um bocado. Mas o que é giro é que a gente conseguiu passar por muita coisa e ainda ficamos loucos só de pensar em ir para a estrada”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Fragilizado, naturalmente menos comunicativo, tocou noite após noite. Depois da noite de despedida da digressão, emitiu um comunicado. “Como sabem, tenho andado na luta da vida com alguns problemas de saúde… Tentei e tento dar sempre o melhor de mim”, começou por escrever, revelando que iniciaria no dia seguinte um novo tratamento. “Garanto que é para ganhar. Eu sei lutar e acredito”, despediu-se. Zé Pedro ganhou. Zé Pedro, 61 anos, uma vida de rock’n’roll tatuada na paisagem e na memória de um país.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Prelúdio ao início da dança
Emmanuelle Huynh trabalhou sobre a ideia de um tempo em suspensão. (...)

Prelúdio ao início da dança
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Emmanuelle Huynh trabalhou sobre a ideia de um tempo em suspensão.
TEXTO: Tôzai. . . ! é o grito que, desde os bastidores, anuncia o momento inicial do bunkaru (teatro de marionetas japonês, cuja tradição popular remonta ao século XVII), e o movimento de abertura da cortina, arrastada “de oriente a ocidente” por um personagem invisível, enrolado no próprio tecido. O título da peça de Emmanuelle Huynh (França, 1963) resume o gatilho da obra e um dos seus temas criativos recorrentes: o fascínio pela cultura performativa nipónica ancestral (o teatro nô, bunkaru e kabuki) que, resistindo às atribulações do país, conhece hoje derivações que reactualizam os seus dispositivos de narração. Huynh trabalhou sobre a ideia de um tempo em suspensão: a misteriosa transição cerimonial entre “o antes” e “o início” do espectáculo. Uma cortina cinza atravessa o meio do palco durante o primeiro terço da peça; ainda o público se acomodava, e uma intérprete, de calças de treino pretas e camiseta parda casuais, parece perscrutar a cena; o seu movimento, alimenta-se do texto poético narrado em off por uma meia-voz masculina. A luz decai sobre as duas mulheres e três homens que lhe sucederão: a indumentária neutra, rompida por apontamentos coloridos, brilhos ou transparências, acentua as distintas morfologias dos corpos e seus registos gestuais. O longo prólogo, dizia a folha de sala, inspirava-se no protocolar sambaso, figura do bunkaru: a vistosa performance preliminar visa purificar a atmosfera de espíritos nocivos, energizar a actuação de bons auspícios. Coreografia:Emmanuelle Huynh (2014)Lisboa, Grande Auditório da Culturgest, 21h30Sala a um terçoA cortina é, em Tôzai…!, a personagem central. Alusão à grande pálpebra vertical que, no bunkaru sucessivamente cobre e descobre a acção teatral, abrindo profundidades no palco e as camadas do tempo narrativo. O desafio de Huynh era construir uma dança que operasse nesse limbo, entre “o que ainda não é” e o que ”já é”; descolar do seu território referencial e estendê-lo a todo o acto teatral, onde a cortina (real, simbólica) marca o espaço/tempo que distingue a representação (função tendencialmente desempenhada pela luminotecnia nas práticas performativas de hoje). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas a peça não define estratégias claras para ocupar esse lugar volátil, impreciso. Cede a trazer outros referentes que conflituam com a moldura preambular onde se queria instalar. O movimento dos bailarinos evolui para outros imaginários da dança: há, nos braços, esboços de ondulações de cisne, poses helénicas de inspiração modernista, posturas de artes marciais e sugestões animalescas do teatro asiático, meneios casuais ou o formalismo aleatório da dança pós-moderna; envereda-se, ocasionalmente, por instantes de paroxismo. As identidades performativas são, quiçá, demasiado marcadas, e a banda sonora (difusa, no limiar audível), de sonidos electrónicos, ressonâncias de shamisen tradicionais, ecos de passos e vozeares indistintos, convoca espaços paralelos, outras viagens mentais. Se pouco sobrevive do referencial de partida, tal não se seria questionável se Tôzai…! lograsse levar-nos, de modo meramente sensorial ou abstracto, até às subtilezas do espaço/tempo intercalar que quer habitar. A leitura da peça fica algo refém do discurso conceptual da Huynh. O registo errático envolve-nos, todavia, numa serenidade delicada, de sabor oriental que, nos seus melhores momentos, quase materializa o tempo suspenso, fina ansiedade e presságio, antes do espectáculo começar.
REFERÊNCIAS:
A moda e a música juntaram-se no último dia do Portugal Fashion
Mais de 34 mil pessoas passaram pelo evento de moda que esteve no Porto durante três dias. (...)

A moda e a música juntaram-se no último dia do Portugal Fashion
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mais de 34 mil pessoas passaram pelo evento de moda que esteve no Porto durante três dias.
TEXTO: No último dia da 43. ª edição do Portugal Fashion, “costurou-se” moda e música na passerelle da Alfândega do Porto, com modelos a desfilar coordenados Pé de Chumbo com Cuca Roseta a cantar ao vivo; e os Storytailors com a violinista Ian como que a orquestrar o desfile. Num dia dividido entre roupa, calçado e acessórios, que terminou com um divertido desfile de Júlio Torcato que fecha um ciclo de três décadas na moda. Na Alfândega do Porto, por onde passaram mais de 34 mil pessoas, a evocação ao fado começou logo no primeiro desfile do dia com Marta Marques e Paulo Almeida, da Marques'Almeida, com raízes em Londres, que fizeram desfilar vestidos de ganga com mangas balão, aplicações de franjas, saias pretas compridas e fluidas com folhos. O fado continuou mais ao final da tarde, com Cuca Rosetta no desfile de Alexandra Oliveira, da marca Pé de Chumbo, de Guimarães. A designer levou a desfile a colecção de Verão 2019 inspirada no desenho das palhinhas utilizadas no mobiliário, no ouro, nas formas e nas cores do Minho. Alexandra Oliveira apresentou coordenados com muita cor, feitos de seda, algodão e ráfia em texturas encorporadas que criam volumes ou leves e românticas. A designer vende para mais de 20 países. Umas horas antes, João Branco e Luís Sanchez, dos Storytailors, com banda sonora da violinista Ian ao vivo, apresentaram um desfile que foi pensado ao pormenor. “Quisemos espicaçar a imaginação das pessoas para que façam a sua própria interpretação do desfile”, diz João Branco. Os dois têm um registo de contadores de histórias com metáforas na passerelle. Para esta colecção "222", que surge na sequência das duas últimas, os designers inspiraram-se em “sinais que se lêem através da numerologia, de mensagens universais de boa fortuna, concretização”, acrescenta Luís Sanchez. Apresentaram tons pastéis rosas, brilhantes com linhas mais românticas e femininas, e outras peças com cortes que deixam revelar o corpo. Nuno Baltazar também se inspirou na música, mas de Ellis Regina e de Chico Buarque para apresentar "Tatuagem", uma colecção que é de "intervenção". "É também das mais difíceis que fiz até hoje”, desabafa por entre o frenesim dos bastidores no final do desfile. Inspirou-se na forma como os artistas reagiram à censura no Brasil. “Tudo o que está na colecção está por um motivo”, diz enquanto aponta para os cintos que os modelos levam na cintura em alusão à “censura que segurava o artista no Brasil”. O designer fez desfilar contrastes de tecidos muito estruturados, telas de algodão muito duras por oposição a tecidos leves, e ainda sedas muito luminosas com cores vibrantes. A mudança de loja para a Rua do Bolhão, na Baixa do Porto, em Junho deste ano, trouxe-lhe mais vendas, sobretudo de turistas. “Está a correr muito bem. É um Porto mais moderno, com mais energia, diferente”, descreve. E a loja online esta prestes a funcionar. Também Katty Xiomara se inspirou na arte, mas de três mulheres: a pintora Carmen Herrera, a designer gráfica Paula Scher e a arquitecta paisagista Bárbara Stauffacher. A designer levou à passerelle a colecção "BeBold" com detalhes, estampados vibrantes, contrastes de cor, aplicações e bordados e volumes. Luís Buchinho também levou a arte mas japónica, inspirou-se nas gravuras Gyotaku, um método japonês de gravura de peixes. “Surgiu no século XIX e era uma maneira dos pescadores registarem os seus troféus e depois, mais tarde, houve intervenções de artistas”, conta o designer ao PÚBLICO. Conseguiu, então, um efeito de brilho metálico semelhante ao das escamas de peixes com coordenados plissados e enrugados. O criador fez desfilar saias com estampados Gyotaku, calças de cintura alta com riscas em cores contrastantes e molas de pressão nas carcelas laterais e vestidos de Jersey. É precisamente o mercado asiático que tem mais peso nas vendas internacionais, como Tóquio, Hong-Kong e Pequim. Ainda que venda tanto em Portugal como no exterior. Já Luis Onofre fez desfilar a colecção de calçado que levou a Milão, mas com algumas alterações de cores só para o desfile de 36 modelos, dos quais seis foram masculinos. “Vermelho é o tom da estação, depois fui buscar uma tendência mexicana e inspirei-me numa concha rara do México que os Incas usavam muito para bijuteria”, conta. Com fivelas de cowboy cobertas de cristais, entre outros materiais. Um destes modelos pode custar entre 100 e 600 euros. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A noite terminou com um desfile muito animado de Júlio Torcato que quis comemorar 30 anos de carreira de forma diferente, “não num formato de uma colecção para a estação convencional”, explica enquanto mostra os coordenados que pediu 30 pessoas de várias áreas modificarem. Desde os gémeos Guedes, que pintaram dois casacos com graffitis, até Mário Matos Ribeiro, fundador da ModaLisboa. O Portugal Fashion é organizado pela Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) e é cofinanciado pelo Portugal 2020. Contou com a presença do novo secretário de Estado da Defesa do Consumidor, João Torres, que reforçou a importância da iniciativa para reforçar a indústria da moda. E que “mostra ao mundo o trabalho que é feito no país” nesta área, diz ao PÚBLICO.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
Jóias de Elizabeth Taylor vendidas por 87 milhões, quatro vezes acima do valor de licitação
A sua paixão por jóias sempre foi conhecida e até muitas vezes criticada. A actriz Elizabeth Taylor, que uma vez disse que a mulher só precisava de diamantes para ser feliz, tinha uma colecção única de diamantes, pérolas, esmeraldas, rubis e safiras; anéis, brincos, colares, broches e tiaras. A Christie’s levou a colecção à praça na terça-feira em Nova Iorque e, tudo junto, estava avaliada em mais de 30 milhões de dólares (21,2 milhões de euros) mas no leilão rendeu 116 milhões de dólares (87,6 milhões de euros), estabelecendo um recorde. Nunca nenhuma colecção tinha atingido um valor tão alto. (...)

Jóias de Elizabeth Taylor vendidas por 87 milhões, quatro vezes acima do valor de licitação
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-12-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: A sua paixão por jóias sempre foi conhecida e até muitas vezes criticada. A actriz Elizabeth Taylor, que uma vez disse que a mulher só precisava de diamantes para ser feliz, tinha uma colecção única de diamantes, pérolas, esmeraldas, rubis e safiras; anéis, brincos, colares, broches e tiaras. A Christie’s levou a colecção à praça na terça-feira em Nova Iorque e, tudo junto, estava avaliada em mais de 30 milhões de dólares (21,2 milhões de euros) mas no leilão rendeu 116 milhões de dólares (87,6 milhões de euros), estabelecendo um recorde. Nunca nenhuma colecção tinha atingido um valor tão alto.
TEXTO: Elizabeth Taylor pode ter trocado várias vezes de marido, casa e carros mas nunca de jóias. A colecção foi aumentando ao longo dos anos e em nenhuma estreia de um filme, cerimónia, festa de caridade, entrega de prémios, aniversários ou até mesmo nos seus oito casamentos, a actriz apareceu sem um conjunto de jóias, na maior parte das vezes bem vistosas. Quase todas as peças leiloadas superaram em muito os valores previamente estimados. A grande estrela do leilão foi o colar do século XVI conhecido como “La Peregrina” e que foi arrematado por 11, 8 milhões de dólares (8, 9 milhões de euros). O colar decorado com rubis, diamantes e pérolas perfeitamente simétricas tinha um preço inicial de 2 milhões de dólares (1, 5 milhões de euros). Apontado como uma das peças mais cobiçadas do leilão, o anel de diamantes com um aro em platina de 33 quilates, avaliado em 2, 5 milhões de euros, oferecido em 1968 por Richard Burton a Elizabeth Taylor, foi vendido por 8, 8 milhões de dólares (6, 6 milhões de euros). O anel que Richard Burton, apelidado de o grande amor da vida da actriz, com quem se casou duas vezes, comprou num leilão em 1968, pertenceu inicialmente a Maria I de Inglaterra e depois às rainhas espanholas Margarita e Isabel. Segundo a leiloeira, o licitador da peça é um coleccionador privado asiático. O diamante Taj Mahal, também oferecido por Richard Burton quando Elizabeth Taylor fez 40 anos, foi comprado por 8, 8 milhões de dólares (6, 6 milhões de euros), um recorde para uma jóia indiana. O primeiro lote a ser leiloado foi uma pulseira de ouro com pedras preciosas que foi à praça por 35 milhões de dólares (26 milhões de euros) e foi arrematada por 270 milhões de dólares, aproximadamente 204 milhões de euros, dando desde logo um indicativo muito positivo para o leilão. Minutos depois, um colar de marfim e ouro superou em mais de 100 vezes o valor inicial estimado de 1500 dólares (1132 euros) ao ser comprado por 314, 5 mil dólares (237, 5 mil euros). Uma pulseira de diamantes oferecida por Michael Jackson, amigo próximo da Taylor, foi leiloada por 600 mil dólares (453 mil euros), quando o preço inicial estimado era de 30 mil dólares (22, 6 mil euros). Ainda o leilão não ia a meio quando vários recordes já tinham sido batidos, incluindo o da colecção completa, que pertencia à coleccçao da Duquesa de Windsor, leiloada em Genova em 1987 por 50 milhões de dólares (37, 7 milhões de euros). O anterior recorde de uma só jóia vendida em leilão pertencia às Pérolas de Baroda, arrematadas em 2007 por 7, 1 milhões de dólares (5, 4 milhões de euros). Marc Porter, da Christie’s, disse à BBC que o leilão “foi um dos mais extraordinários de sempre”, definindo-o como uma “prova de amor mundial a Elizabeth Taylor”, que não foi esquecida durante todo o leilão que contou com várias ovações. Elizabeth Taylor, que morreu em Março deste ano aos 79 anos, já tinha expressado em vida que quando morresse desejava que os seus preciosos acessórios fossem leiloados. No seu livro de 2002, intitulado “My Love Affair With Jewellery”, onde fala sobre a sua paixão por jóias, a actriz escreve que nunca olhou para as suas jóias como troféus. “Estou aqui para tomar conta delas e amá-las. Quando eu morrer e elas forem leiloadas, espero que quem as compre lhes dê uma boa casa. ”Antes do leilão desta terça-feira em Nova Iorque, as jóias foram expostas em Moscovo, Londres, Los Angeles, Dubai, Genebra, Paris e Hong Kong. O leilão continua esta quarta-feira com a colecção de roupa de alta-costura da actriz, onde estão incluídos os dois vestidos do casamento com Burton, assim como vários vestidos Pucci, Versace e Christian Dior, especialmente criados para Elizabeth Taylor.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
O segredo de José Luís Peixoto
"Em Galveias, numa vila com cerca de mil habitantes no interior do Alto Alentejo, havia uma pessoa muito preocupada com a morte de Kim Jong-il, em Pyongyang." Essa pessoa era o escritor José Luís Peixoto, que em Dezembro de 2011, quando o líder norte-coreano morreu, já estava com viagem marcada para o país mais fechado do mundo. Em Abril de 2012, partiu. "Viajar é interpretar", escreveu. Mas a ficção sobre o que viu, a acontecer, ficará para mais tarde, como contou à revista 2. Agora, publicou o seu primeiro livro de viagens: Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Outros "igualmente inesperados" virão (...)

O segredo de José Luís Peixoto
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2012-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: "Em Galveias, numa vila com cerca de mil habitantes no interior do Alto Alentejo, havia uma pessoa muito preocupada com a morte de Kim Jong-il, em Pyongyang." Essa pessoa era o escritor José Luís Peixoto, que em Dezembro de 2011, quando o líder norte-coreano morreu, já estava com viagem marcada para o país mais fechado do mundo. Em Abril de 2012, partiu. "Viajar é interpretar", escreveu. Mas a ficção sobre o que viu, a acontecer, ficará para mais tarde, como contou à revista 2. Agora, publicou o seu primeiro livro de viagens: Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Outros "igualmente inesperados" virão
TEXTO: O que pode querer dizer um estrangeiro acabado de chegar a Pyongyang a um cidadão norte-coreano? Um guia de conversação comprado num hotel da capital dá umas pistas. Não basta aprender a dar os bons-dias. Considera-se que pode ser útil algo como: "Proponho um brinde à vida longa e à saúde do líder Camarada Kim Jong-il. " Ou: "Quero começar por visitar a estátua de bronze do Camarada Kim Il-sung para exprimir as minhas condolências. " E quem não sentirá vontade de partilhar que "Pyongyang é limpa e bela e parece ter as melhores condições de habitação do mundo"? Ou talvez algo politicamente correcto à luz do regime local: "Os Estados Unidos têm de sair do Sul da Coreia. Não têm quaisquer fundamentos para permanecer no Sul da Coreia. "De facto, para quê aprender a perguntar onde é o restaurante mais próximo se o mais que certo é o guia ter tratado disso, e de tudo o resto. A Coreia do Norte não é um local onde um turista (fará sentido esta palavra num sítio como este?) possa simplesmente ir à procura de um restauranteonde lhe apetece comer, ou decidir o que pretende fazer no resto da tarde. De qualquer forma, José Luís Peixoto não se ocupou de frases apologéticas. Não foi para isso que o escritor português atravessou meio mundo. Ou melhor: se calhar até foi, mas não para as decorar e repetir. Há muito tempo que queria ver uma ditadura de perto. Isto foi em Abril. O escritor ainda não tinha regressado e já começara a escrever o livro Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Não costuma tirar tantas notas, mas desta vez encheu praticamente três blocos. Esta semana, em Lisboa, numa sala de reuniões da sua editora, a Quetzal, José Luís Peixoto conversa com a revista 2, sem pressas. Acabou de chegar da Índia - Goa e Bombaim - mas a entrevista obriga-o a voltar agora à Ásia Oriental e àquela experiência de há meses, quando viu de perto um "país muito extraordinário". Antes de qualquer mal-entendido, convém talvez citá-lo a partir do seu livro e esclarecer:"1 - Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras. 2 - Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras. "Não tinha a ilusão de que iria escapar à realidade que tinha sido encenada para si e para os outros membros do grupo formado para a visita a que a Koryo Tours (que organiza viagens através de Pequim) chamou de "Kim Il-sung 100th Birthday Ultimate Mega Tour". Mega tour porque as visitas são normalmente de uma semana, no máximo, e esta era de 15 dias. Foi um momento de celebração em grande, em mega, por causa, precisamente, dos 100 anos do nascimento de Kim Il-sung, o fundador da nação. Entremos então nesse "país extraordinário", onde a separação entre a realidade e a ficção é uma linha marcada a régua, pelas mãos do poderoso departamento de Propaganda do regime agora chefiado por Kim Jong-un. A menina Kim guiou José Luís Peixoto, o escritor irá agora guiar-nos a nós. "Há uma encenação grande para quem visita, mas há uma encenação maior para quem está lá. Essa é que é a grande encenação ali. Porque aquelas pessoas vivem num país completamente fechado e é tarefa do Estado criar uma ideia sobre todo o mundo que existe lá fora, não é?"Essa tarefa obriga a que telemóveis fiquem na fronteira dentro de um saco de plástico (e em Pyongyang as chamadas para falar com os filhos, em Lisboa, custaram-lhe seis euros por minuto), tal como livros (transgrediu e levou o D. Quixote de La Mancha na bagagem) e outros objectos que possam veicular informação ocidental, num país onde apenas um grupo muito restrito tem acesso à Internet. "As pessoas não têm sequer noção do que é a realidade fora da Coreia do Norte. Por exemplo, não têm qualquer acesso a música que não seja aquela música, que é muito limitada [descreve no livro o género que celebra o regime, o Taejung kayo, em que as canções têm títulos como Iremos seguir-te para sempre; O general é nosso pai e Defenderemos o General Kim Jong-un com as nossas vidas]. Nasceram sem esse acesso e nem concebem que exista outro tipo de música. Nem concebem que existe outra realidade. "A carrinha dos visitantes estrangeiros atravessou o país: de Pyongyang à Zona Desmilitarizada (que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul, num corredor de alta tensão que atravessa toda a península coreana); de Kaesong (também no Sul), onde foi servida uma refeição pouco habitual ("Não é agradável roer ossos de cão"), a Hamhung (a segunda cidade do país) e Pujon, o ponto mais a norte do percurso. Passou ainda por Nampo para visitar a siderurgia Chollima, Sariwon e Wonsan. Pelo caminho formam-se imagens dos campos extensos, cultivados graças à mão-de-obra de centenas e centenas de pessoas agachadas, com pequenos utensílios. E de fábricas a cuspir fumo, com maquinaria pesada e a precisar ainda assim de trabalho humano duríssimo. "Aquela população está num tempo fora deste tempo", diz à revista 2. Realidade em forma de romance"É uma realidade que vem já quase com a forma de um romance, muito delimitada, com personagens-tipo muito caracterizadas: o militar, o guia, a criança pioneira", conta-nos o escritor. "Às vezes andamos numa aldeia do interior [de Portugal] e nem nos apercebemos dos elementos exteriores que ela recebeu. Na Coreia do Norte isso não acontece. Isso faz com que se viva sob uma realidade própria, estagnada. A ignorância do mundo ali sente-se em tudo. Todos os elementos foram pensados. . . Os melhores atletas da Coreia do Norte são os melhores atletas do mundo, porque a Coreia do Norte é tudo o que há. É muito pobre esse imaginário. Os elementos são sempre os mesmos. "A máquina é poderosa e mesmo os muito poucos que viajaram para o exterior não deixam de acreditar no seu Governo. José Luís Peixoto falou com guias que já tinham estado na Europa. "Algumas pessoas consideram que a Coreia do Norte é mais organizada, que existe uma vida melhor. Não sei até que ponto não se obrigam a elas próprias a ignorar uma quantidade de coisas que são a vida real daquele país. Mas é um facto que essas pessoas apontam algumas questões que são muito más, que existem na nossa sociedade e que não existem ali. Como as crianças ou as mulheres andarem sozinhas na rua, à noite, com medo de serem assaltadas ou agredidas sexualmente. Na Coreia do Norte não há essa possibilidade. As pessoas não têm esse medo. "Ali, há razões para fazer a apologia do regime: "A ignorância e a sobrevivência. Ninguém pode apontar o dedo a quem tenta sobreviver, a quem tenta que aqueles que ama sobrevivam. Isso é o que todos fazemos. " E assim como os norte-coreanos "tomam como absolutamente adquirido toda aquela informação que recebem pelas fontes do Estado e da propaganda, eu acho que nós, neste lado do mundo, também tomamos por garantido uma série de informação que recebemos e que se calhar não é tão garantida assim. Todos nós não podemos duvidar de tudo em todos os momentos. Temos de ter a segurança de acreditar em alguma coisa". São muitos os mecanismos de isolamento do "Reino Eremita". Não basta impedir a entrada de telefones ou rádios. O escritor conta-nos uma história. "Fomos aconselhados a dar um presente aos guias que falasse do nosso país. Eu levei duas garrafas de vinho do Porto. Mas avisaram-nos muito sobre as características que esse presente deveria ter: bebida, cigarros ou alguma coisa que se pudesse consumir. Houve um alemão que não sei bem o que é que deu, mas sei que o embrulhou em jornais alemães. No dia seguinte, os guias estavam completamente alterados e a devolver-lhe os jornais e a dizer para ele os levar porque eles não podiam aceitar aquilo. Os jornais, que eram o papel do embrulho. Eram jornais banais, mas esse tipo de coisas são muito ameaçadoras. "É a Propaganda que escolhe o que os norte-coreanos devem conhecer do exterior e por isso "não há verdadeiramente um conhecimento do que é o mundo fora dali. . . Quando existe alguma coisa estrangeira, é muito controlada e muito folclórica. Como, por exemplo, as danças russas. E diz-se às pessoas: "Isto é como eles se divertem na Rússia"". Sociedade militarizadaTambém é a Propaganda que escolhe o que os estrangeiros podem conhecer do país. A menina Kim, a guia desta Mega Tour, é praticamente a única voz norte-coreana do livro - sempre para lembrar os limites e as regras. Quase como se não fosse necessária outra, porque sabemos de antemão que as falas iriam ser, muito provavelmente, as mesmas - inventadas não pelo escritor, que neste livro foi fiel à realidade (já lá iremos), mas pelo regime para serem repetidas à exaustão. Museus, monumentos, locais sagrados (ou seja, relacionados com algum aspecto da vida dos grandes e queridos líderes), fábricas, montanhas e aldeias - tudo faz parte dessa grande narrativa chamada República Popular Democrática da Coreia, onde o questionamento, a existir, está totalmente silenciado. Por isso, talvez, também teve medo: quando no final, o guarda da fronteira quis ver as fotografias que tirou durante a viagem (". . . tive medo que o meu coração se ouvisse a bater", descreve) e quando no hotel Yanggakdo ("o melhor hotel de Pyongyang", com mais de mil quartos, segundo o folheto) o chamaram à recepção depois de um telefonema para Portugal. Afinal, era só uma camisola esquecida na cabine telefónica. É uma sociedade onde a ordem é uma palavra cheia e o Exército é omnipresente. "Vêem-se militares em todos os lugares, sempre, constantemente. Uma em cada cinco pessoas é militar. " É ameaçador? "Não, por ser tão presente. Eles estão muito mal apetrechados, a maior parte não tem qualquer espécie de arma, a única coisa que tem é o uniforme. Mas mesmo os civis muitas vezes se confundem com os militares pelas roupas: muitas vezes são muito próximas de um uniforme militar; e os militares também fazem muitos trabalhos civis. Na televisão há sempre a glorificação dos militares, mesmo as crianças que estão a saudar os militares quando eles passam no desfile, vê-se que elas aspiram a ser militares um dia. Não são uma força que seja sentida como opressiva pelas populações. Na verdade, essa opressão nunca se sente directamente. Nunca ninguém chama a atenção de ninguém sobre nada porque as pessoas entram nos museus a marchar, em filas organizadas. A própria movimentação das pessoas em todos os momentos é sempre muito alinhada. . . Estão sempre muito compostas. "Mais impressionante ainda é o culto cego da personalidade que se dedica aos chefes de Estado. "Tem uma repercussão no quotidiano em aspectos tão prosaicos para um visitante como a impossibilidade de dobrar um jornal com a imagem do líder, ou tirar fotografias onde fiquem cortadas algumas partes do corpo dos líderes. Têm de ser sempre fotografados de corpo inteiro", diz-nos José Luís Peixoto. "São aspectos que são de uma característica que ali é vivida de uma forma muito intensa: a absoluta impossibilidade de pôr minimamente em questão as capacidades e as qualidades sobre-humanas dos líderes. " E por líderes entenda-se a dinastia Kim, ou seja, Il-sung, o Eterno Líder, Jong-il, o Querido Líder, e agora o neto e filho, Jong-un, o Líder Supremo. O culto não se limita a inventar um milagre como o arco-íris duplo que apareceu no monte Paektu no dia em que Kim Jong-il nasceu. Nem aos retratos dos dirigentes, que são os únicos possíveis nas paredes de casa dos norte-coreanos. Ou às flores baptizadas com os seus nomes - "Cheirei as kimilsunguias e as kimjonguilias. Não cheiram a nada", lê-se no livro. Está em todos os momentos da vida pública - e privada - da população. Nos emblemas com as caras de Kim Il-sung ou (e) Kim Jong-il que têm de levar ao peito cada vez que saem de casa. "Não conheço religiões tão vividas como aquele culto. Não há nenhum escape. O culto aos líderes é total. "Como a sopa da mãeEm todo o caso, os movimentos de um ocidental não são tão controlados como o escritor previu. Ainda que a regra de não se poder andar sozinho na rua seja "de ferro, de pedra ou de qualquer outro material de rigidez sem apelo", escreveu. Tirou mais fotografias do que seria seguro e transportou sempre o D. Quixote de La Mancha. "O D. Quixote era um pouco como comer a sopa da minha mãe: encontro palavras que a minha mãe usa corrompidas. Para não falar de todos os paralelismos que é possível traçar: a encenação e a alucinação. É uma questão que colocamos a nós próprios - isto parece mesmo real. Mas a realidade é discutível. Depende muito dos sentidos e os sentidos não são nada objectivos. Dependem de coisas como bebermos a água choca do poço do Kim Il-sung" - que a guia assegurou que fortalecia o espírito, mas que ao escritor estragou algumas partes da viagem. "Esperava na verdade menos liberdade e menos contacto com as pessoas do que aquele que tive", continua. "Houve conversas interessantes (com os guias de museus, às vezes um ou outro falava inglês), que nem incluí no livro, sobre aspectos mais ligados à vida [quotidiana]: como conhecem alguém e se casam, ou sobre os rituais da morte, os funerais. Mas mesmo esse diálogo é muito oficial. A verdade é que se notava sempre a preocupação de não ficar mal na fotografia, sempre a preocupação de dizer que a Coreia é um país extraordinário, que as pessoas vivem muito bem. "Também não sentiu que houvesse ordens expressas para a população não se relacionar com os visitantes. Pôde emocionar-se com "o cuidado dispensado às crianças", lê-se. "Essa ternura, repetida ao longo dos dias, amenizava bastante outros aspectos da paisagem. Não é quantificável, como o Produto Interno Bruto, o número de médicos por mil habitantes, mas acredito que é igualmente uma marca de desenvolvimento civilizacional. "De volta à conversa em Lisboa: "O que eu senti é que há uma barreira enorme, que é a língua. Mas essa barreira existe na maioria dos países asiáticos. Depois, também existe o pouco hábito de contacto com os estrangeiros, o que faz com que os estrangeiros sejam muito olhados, olhados de uma forma que se sente que é curiosa e às vezes amedrontada. Mas também há uma coisa interessante: eu cheguei ontem da Índia, que é um lugar onde as mulheres têm às vezes aqueles brincos enormes, e todos aqueles adornos, e andava muita gente a ver-me as orelhas e os piercings e as tatuagens. Na Coreia do Norte, fui com camisolas de manga comprida e considerei tirar os piercings (embora não o tenha feito) porque achava que podia ser um motivo de mais estranheza e mais distância. Na verdade, cheguei lá e percebi que só o facto de ser estrangeiro já era distância suficiente. Não havia nada que fizesse com que essa distância fosse maior. Inclusivamente, havia pessoas que participaram nessa viagem que eram de outras raças, que à partida podiam causar uma estranheza maior, com tons de pele mais escuros, e isso não se notava. A estranheza era igual. E depois havia estranheza perante coisas que se calhar não tínhamos pensado, como por exemplo peso a mais. Qualquer pessoa com um pouco mais de peso era muito estranha ali porque na Coreia do Norte toda a gente é muito magra. . . [Os líderes] são um pouquinho anafados, mas na rua não se encontra uma única pessoa que tenha um pneu! Toda a gente é mesmo muito magra. Também se pode fazer todo o tipo de especulações acerca disso. A especulação de que a alimentação não é a melhor, na minha opinião, é justificada. Mesmo não andando atrás das pessoas a ver o que elas comem, dá para perceber que a alimentação é muito má. . . Existem carências grandes. "Logo no início do seu relato, José Luís Peixoto escreve que "talvez a decisão de visitar a Coreia do Norte tenha nascido do desejo de estar num lugar onde nenhuma pessoa tivesse a minha aparência. Ou talvez não". No fim, foi precisamente isso que o extenuou. Assistiu ao fogo-de-artifício das celebrações do aniversário de Kim Il-sung, a 150 metros de distância das outras pessoas do seu grupo, sentindo-se um "norte-coreano": "Depois de ser tão apontado e de me sentir tão estranho, sempre tão diferente, tive ali um descanso. Aquele alívio de por um momento não ser notado foi tão grande que senti que voltei a ser uma pessoa como as outras, que eram as que me estavam a rodear e que eram norte-coreanas", explica-nos. Nota-se esse cansaço. José Luís Peixoto assume-o. "Tinha uma epifania quase diária: estou na Coreia do Norte!. . . A primeira metade, vivia-a com grande entusiasmo, a segunda como uma condenação. Foi curioso que a partir de certa altura o objectivo de liberdade se tornasse a China [a ponte para chegar e partir da Coreia do Norte]. Ansiava por poder andar sem ter alguém atrás de mim, escolher o que ia comer, telefonar a quem eu quisesse, mandar mensagens. Sentia saudades de coisas como a publicidade. "Mais perto do jornalismoComo já dissemos: José Luís Peixoto ainda não tinha deixado a Coreia do Norte e já começara a escrever Dentro do Segredo - continuou depois em jornadas de trabalho de 15 horas no Brasil, EUA, Macau; e enviou o livro à editora a partir de Toronto (Canadá). Tinha feito várias leituras antes, tirado muitas notas durante. E desta vez, pela primeira vez, a sua escrita recorreu-se de outros elementos. "As fotografias e os pequenos vídeos que fui fazendo foram muitíssimo úteis" - "uma forma de tirar apontamentos", diz. Porque precisava de ter a certeza de que tudo o que estava a escrever correspondia ao que tinha visto. Porque sentiu a necessidade de se "aproximar do jornalismo", sobretudo da crónica. "Foi uma experiência diferente, que me deu um trabalho diferente de escrita. Se digo que o comboio era de uma determinada cor, ele era mesmo dessa cor. Num romance posso dizer que o comboio é azul porque na verdade não existe comboio. "Talvez o surrealismo deste país dispense a ficção. Ou talvez esta ainda não esteja totalmente afastada. "Posso algum dia tentar fazer. " Por enquanto, a realidade que estava à frente dos seus olhos pedia outra coisa. "Era muito importante que o texto tivesse um carácter documental, sério. Pelo tema e por aquilo que me propunha retratar. . . Nunca se tem completamente a noção do que é a verdade e do que está realmente a acontecer, porque existem versões antagónicas, e ambas às vezes parecem falhar, num ponto ou noutro. Quando colocamos alguma coisa em causa, depois sentimos a tentação de colocar tudo em causa. Por isso, muitas vezes sinto que aquela história não está completamente bem contada. A minha tentativa foi de a contar, mas apercebi-me claramente de que não estava a contar a história final e que certamente haveria muitos equívocos da minha parte. " "Não tive acesso a informação que permitisse acrescentar alguma coisa, mas senti que não havia esse livro: como é estar lá? Foi isso que me levou à Coreia do Norte. "Houve outras. "A necessidade de me afastar de mim próprio enquanto tema" para falar de uma realidade exterior. Em todo o caso, usa a primeira pessoa. Talvez nem fizesse sentido ser de outra maneira, num local onde o confronto com o outro, que passa a ser o estrangeiro, visitado pelo leitor, é tão brutal. "Também é cansativo esse confronto. Não há fuga. "A escrita também saiu do seu processo habitual porque foi espoletada pela viagem, sabendo de antemão que era isso mesmo que iria acontecer. "Vivia aquela experiência de estar lá sabendo que iria escrever sobre ela, e quando voltei, escrevi. O livro foi surgindo, mas eu tinha a intenção à partida de escrever sobre a Coreia do Norte. "Dentro do Segredo será apenas um pequeno fragmento de uma realidade para a qual não existe uma só verdade. "Eu tenho uma vivência desse país que é muito intensa e muito importante para mim, marcante, e que está expressa no livro. No entanto, não é a única, e tenho a certeza de que há muitas histórias para contar e por contar. É um país absolutamente fascinante, apesar de toda a crueldade que encerra e que me parece que é muito evidente. "No final, o escritor dirige-se a um futuro e hipotético leitor norte-coreano. Em coreano. Tradução, por favor: "Digo-lhe que aquilo que ali está é aquilo que eu pude saber neste momento e que ele está numa posição, sob um certo ponto de vista, privilegiada para saber algumas coisas mais do que eu. Mas sob outro ponto de vista, vai ter um conhecimento diferente do meu. " Ou seja, o escritor que visitou a Coreia do Norte em Abril de 2012 ajudará a completar a imagem. "Essa questão pode ser transposta para aqui, para este preciso momento: nós não temos distanciamento para fazer um retrato completo desta sociedade, onde a informação circula de forma diferente e onde às vezes nos parece que temos informação a mais, porque a [falta de] distância não nos permite ter uma perspectiva. Daqui a 50 anos possivelmente vamos ter essa perspectiva, mas vai-nos faltar o cheiro, o contacto directo dos sentidos. Neste livro, em muitos momentos, tenho a preocupação de dizer que foi assim em 2012; não porque eu ache que ele vai ser lido daqui a séculos, mas porque acredito que é um livro marcado no tempo e daqui a dez anos a situação naquele país vai ser certamente diferente, aquilo que se vai saber vai ser certamente diferente, e vamo-nos surpreender com isso. "Também nos iremos surpreender com aquilo que está para vir de viagens futuras, assegurou. "A obra total de um autor pode ser comparada a uma obra mesmo, a uma construção. Este livro abriu uma nova ala. Tenho a intenção de escrever outros livros de viagem. As crónicas [que escreve para a revista Visão] têm sido importantes. Necessariamente torno-me uma personagem. A partir deste livro, o eu já está caracterizado. "Texto publicado na Revista 2 de 18 de Novembro de 2012
REFERÊNCIAS:
A última exposição em vida de Ren Hang
Em plena eclosão criativa e mediática, o fotógrafo chinês Ren Hang morreu prematuramente. Censurado pelas autoridades do seu país, foi no exterior que criou culto com imagens que celebravam uma sexualidade livre. Em Amesterdão, no museu FOAM, está patente a sua última exposição. (...)

A última exposição em vida de Ren Hang
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-03-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em plena eclosão criativa e mediática, o fotógrafo chinês Ren Hang morreu prematuramente. Censurado pelas autoridades do seu país, foi no exterior que criou culto com imagens que celebravam uma sexualidade livre. Em Amesterdão, no museu FOAM, está patente a sua última exposição.
TEXTO: Encontrava-se naquele momento do seu percurso em que era nítido que ia explodir artisticamente. Não que o fotógrafo chinês Ren Hang (1987- 2017) fosse um desconhecido. Mas dir-se-ia que 2017 tinha tudo para ser o ano da consagração. Os meios de comunicação falavam dele assiduamente pelas fotos onde celebrava uma sexualidade livre, desprovida de convenções, com jovens nus interagindo com animais ou objectos do quotidiano. No mundo da arte era celebrado mas também na moda e na cultura pop lhe prestavam atenção. A editora Taschen havia publicado há semanas um volume dedicado à sua obra, algo que não é muito comum para um jovem artista de 29 anos. E em Janeiro o influente museu FOAM de Amesterdão havia inaugurado a exposição Naked, que estará ali patente até 12 de Março. E de repente, a 24 de Fevereiro, soube-se que havia morrido. A um mês de completar 30 anos, em Berlim, onde se encontrava em trabalho, suicidou-se atirando-se do vigésimo oitavo andar de um prédio. A notícia deixou o mundo da arte perplexa, como aconteceu com o compatriota Ai Weiwei, um dos artistas vivos mais influentes, que o apadrinhou. Sabia-se que sofria de depressão. Falava disso com candura, em curtas anotações, onde expunha obsessões e crises existenciais nas plataformas da Internet ou nas redes sociais. “Todos os anos tenho o mesmo desejo: morrer cedo. Espero que isso seja verdade este ano”, escreveu em Janeiro na rede social Weibo. A editora Taschen enviou, antes da sua morte, uma nota de imprensa que o descrevia assim: “É um rebelde atípico, magro, tímido por natureza e propenso a episódios de depressão. ”Tinha imensos seguidores. E a sua morte prematura poderá muito bem gerar um efeito de maior interesse pelo trabalho que deixou. Há dias uma massa de pessoas fazia uma fila para entrar no museu FOAM, em Amesterdão, apesar da chuva. Lá dentro, um espaço labiríntico, magnificamente concebido, acolhe várias exposições de fotografia, como a do japonês Hiroshi Sugimoto, mas a que desperta o maior interesse é a de Ren Hang, disposta num espaço que parece uma pequena biblioteca, com fotos de jovens nus, com gansos, serpentes, peixes ou flores, rodeadas por livros. Existe qualquer coisa de surrealista no que os nossos olhos vislumbram, mas também de experiência poética. Existe quem se demore a fixar algumas das fotos mais icónicas e até quem deixe tulipas debaixo delas, forma de homenagear o artista naquela que acaba por ser a última exposição que concebeu em vida, a par de outra exposição que está em Estocolmo no museu Fotografiska. Nas suas fotos, as raparigas têm invariavelmente a pele branca, o cabelo preto e os lábios pintados de vermelho. Poder-se-ia pensar em encenação, mas ele foi dizendo sempre que as suas sofisticadas composições correspondiam ao sabor do momento. Não havia um ideário estético definido. Mas a verdade é que a intersecção entre corpos nus, animais e os diversos espaços – o telhado de um edifício, um lago, uma floresta ou uma impessoal banheira – acabam por criar o mesmo tipo de ambiente, projectando ideias de juventude, liberdade, idílio ou romance. Nas suas composições de corpos na floresta ou na montanha e nos seus estudos das formas masculinas e femininas, não existem leituras de cariz político ou sexual, mas há nas suas imagens desejo de rebelião. Parece não haver um antes e um depois. Apenas aquele momento. Os protagonistas, as paisagens melancólicas, a natureza e o corpo humano adoptando formas esculturais. “Não creio que a nudez seja desafiante – é algo comum a todas as pessoas”, dizia há dois anos. “Gosto de pessoas nuas e gosto de sexo”, acrescentava. “Utilizo apenas a nudez pelo realismo e sentido de presença. ”Também escrevia poemas. E tal como nas fotos os temas andavam em torno da sexualidade, da identidade, do corpo, bem como do amor e da morte. Preferia fotografar amigos do que modelos profissionais, argumentando que isso lhe dava maior liberdade nas composições, que nem sempre eram as mais ortodoxas, com corpos por vezes em posições desconfortáveis. Na China, os seus livros não eram publicados. Foi preso várias vezes. Viu exposições suas serem censuradas e blogues da sua autoria serem encerrados pelas autoridades chinesas. Não viam com bons olhos o “conteúdo sexual” das suas fotos. “As ideias políticas das minhas imagens não têm absolutamente nada que ver com a China”, defendia-se ele, recusando a ideia de que faria arte politizada, ao mesmo tempo que afirmava: “[É] a política chinesa que se empenha em criar obstáculos ao meu trabalho. ”Nasceu a 30 de Março de 1987, em Jilin, na província chinesa de Changchum e aprendeu a fotografar sozinho enquanto estudava Publicidade na faculdade. Desde os 17 anos que residia em Pequim, sabendo que ali o seu trabalho nunca seria validado. Era no exterior que as suas imagens eram enaltecidas. Ao longo de cinco anos concretizou 20 exposições individuais e participou em 70 colectivas em países como os EUA, França, Israel ou Portugal (na galeria Barbados de Lisboa), ao mesmo tempo que viu serem publicadas várias edições monográficas do seu trabalho. Mas esse reconhecimento que foi crescente nunca o tranquilizou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não era apenas o mundo interior que o conflituava. Os acontecimentos políticos globais também. “O êxito? Não sei o que significa”, dizia recentemente, acrescentando que “gostava que a vida corresse sem sobressaltos, suavemente”. Os seus desejos não se cumpriram. Depois de uma trajectória meteórica que o levou a obter o reconhecimento do mundo da arte, da indústria editorial, do universo da moda e da cultura pop – chegou a colaborar com o cantor Frank Ocean na fanzine Boys Don’t Cry –, deu-se a sua morte prematura, em plena eclosão criativa e mediática. Em Amesterdão está patente a sua última exposição em vida, mas tudo indica que ainda iremos ouvir falar muito dele nos próximos anos. A sua obra visual impactante e a sua morte prematura podem muito bem servir para o nascimento de uma lenda contemporânea.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Hermès e o novo homem
Do coração da maison francesa temos vista para o que há de mais especial na moda masculina actual: produtos por medida, exclusividade, mas também para um novo mundo. O da emancipação fashion do homem. (...)

Hermès e o novo homem
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.136
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Do coração da maison francesa temos vista para o que há de mais especial na moda masculina actual: produtos por medida, exclusividade, mas também para um novo mundo. O da emancipação fashion do homem.
TEXTO: Há uma caneta de ponta fina a aproximar-se de um dos preciosos lenços carré da Hermès. Cai sobre a seda tingida à mão e, sem hesitações, risca-a. Está feito. Um peso de metal mantém a vítima hirta para o próximo passo. Ludovic desenha uma linha, cingido à régua, e define o ponto de corte. As mãos experientes do costureiro da Hermès procuram agora a tesoura. Corta, a olho, entre as panteras desenhadas no carré. É um aparente sacrilégio, este ataque a uma das mais emblemáticas peças da maison francesa. Mas na verdade este risco, e este corte, simbolizam a Hermès. E em parte a viragem actual na moda masculina. Tudo isto acontece numa sala dos Ateliers Hermès, num de vários edifícios da casa de luxo que ocupam quase um quarteirão da comuna de Pantin. Ficam tão perto do Parc de la Villette que não parece que estamos para lá da fronteira oficial de Paris. Mas, como se prova na sala onde funciona o atelier de camisas à medida, ultrapassar limites não é coisa rara na Hermès. Num desses prédios, branco e indistinto, estão Ludovic, Liliane, Pierre, Sabine, Sophie ou Nadia — alguns dos 11 nomes de bastidores que criam obras únicas para clientes únicos num atelier que partiu de uma ideia de Véronique Nichanian, uma das únicas mulheres a dirigir linhas masculinas ao mais alto nível da moda parisiense. Homens de todo o mundo — e, por vezes, também mulheres, mas lá iremos — escolhem colarinhos, punhos, tecidos ou lenços, botões e suas casas para terem uma camisa perfeita e só sua. Transformam-se peças clássicas em camisas sérias ou em peças extravagantes para homens que têm o estilo como prioridade — e eles são cada vez mais, sobretudo nas grandes cidades do Ocidente e do Oriente. É um serviço procurado em todo o mundo mas que só está disponível a partir de 11 das lojas Hermès no globo. A mais próxima de um cliente português é mesmo a do centro de Paris, onde iremos a seguir nesta curta viagem pelo longo caminho que a moda masculina fez nos últimos anos. Vivemos um momento em que se fala de “menaissance”, a junção dos termos ingleses para “homens” e “renascimento”. A moda de homem está a crescer, ou mesmo a renascer, pulsante, e o interesse sobre ela também. Eles compram mais, os designers desenham mais para homem, as grandes marcas abrem lojas só para eles, a imprensa dedica-se-lhes, os blogues multiplicam-se e as maisons clássicas posicionam-se com a segurança de jogar em casa num mercado que há muito conhecem. A Hermès, fundada em 1837 e que se mantém maioritariamente familiar, é conhecida pelas raras malas Birkin, pelos lenços carré, pelos perfumes, relógios e pela moda desenhada no passado recente por nomes como o exuberante Jean Paul Gaultier ou o discretíssimo Martin Margiela. Mas também por estes serviços customizados, à medida, só para eles. “Há muitos anos tinha muitos actores, gente do cinema, cantores que me pediam para desenhar coisas únicas e especiais. Algo que fiz”, conta à Revista 2 Véronique Nichanian, que tem um cargo com um título de peso estratosférico — é a directora artística do universo masculino da Hermès e está há mais de 25 anos nesta maison que começou como uma casa de arreios para carruagens. “E um dia disse a mim mesma que seria muito interessante fazê-lo também para um senhor não conhecido mas que tinha anseios, sonhos — e meios”, reconhece. “Criei os ateliers de camisas, de malhas, de pele, para realizar encomendas especiais e excepcionais. São as encomendas particulares — o luxo está aí. Não é só poder pagar, é poder fazer coisas únicas. ”O seu quarto de século na moda masculina da Hermès — “reivindico-o”, ri-se —, nada comum em cargos que tendem a ser tão efémeros quanto as chamadas “tendências”, dá-lhe um posto de observação especial sobre a masculinidade. “O meu trabalho é como um estudo sociológico, é a evolução dos homens, dos seus desejos”, explica na sala no topo do edifício de esquina da Rue do Faubourg de Saint Honoré. “Em 20 anos, vi os homens mudar, refinar-se, sofisticar-se no bom sentido do termo — sem preciosismo. A dar mais atenção a coisas essenciais na escolha do vestuário que constituam a sua maneira de ser, que signifiquem algo e não uma vida social, uma posição social. E não só no mundo profissional, mas em geral. Estão talvez mais atentos ao seu corpo, ao seu físico. Usam cor ou peças diferentes, vejo um misturar de coisas que são do sportswear e acho isso muito estimulante porque me interesso muito pela inovação, pelas novas tecnologias e novas fibras. ”Formada em Paris e com um percurso que começou no masculino italiano da Cerruti, chegou à Hermès como directora artística do pronto-a-vestir masculino em 1988. A pesquisa de materiais é um dos seus traços distintivos. Acredita que, da borracha ao neoprene passando pelo papel, “é um terreno de experimentação sem fim e que tem ainda muitas, muitas coisas a dizer aos homens”. No seu escritório, com as paredes brancas e luz natural, há grandes boiões de vidro, como os das antigas farmácias, cheios de mechas de tecidos coloridos. Uma parede junto à secretária assume “Je Suis Charlie” num papel afixado entre amostras de tecido, papéis ou coisas “ternas e inspiradoras”. Uma jarra transborda de frésias brancas frescas. Fala do homem desafiante que é o cliente Hermès, impossível de definir numa só descrição, e da aliança entre os valores “ancestrais da marca com a modernidade, inovação, novos fios têxteis, novas tecnologias e novos tecidos” numa “mistura que se parece com a mescla da sociedade de hoje, de cores de pele, etnias, culturas diferentes”. A paisagem social mudou, o homem mudou e depois tudo passa à costura e aos ateliers. O serviço sur-mesure das camisas e fatos Hermès remonta a 1991 mas, em sintonia com a sofisticação e emancipação do gosto masculino aliado ao aumento da procura, foi muito mais recentemente, em 2011, que passou a estar disponível para todo o vestuário masculino da marca, explica à Revista 2 a coordenadora do Atelier des Chemises, Wedad Arfa. Em 1998, a moda masculina representava 38% do mercado total de vestuário; em 2013, o número subiu para os 42%, segundo a consultora internacional Euromonitor. “Historicamente, a moda tem sido o domínio da roupa feminina”, atesta Dylan Jones, editor da GQ britânica, ao site de referência Business of Fashion. O ritmo das colecções e tendências no mercado masculino era mais lento, as “mudanças muito conservadoras” e tudo parecia uma espécie de segunda liga, prossegue Jones, que também é o presidente da semana de moda London Collections: Men, fundada apenas em 2012 apesar da ligação histórica de Londres à alfaiataria. O english gentleman veste-se há séculos em Saville Row, mas o mercado só agora se agitou o suficiente para lhe criar uma montra oficial. Ainda mais fresca é a New York Fashion Week: Men’s, nascida em Abril para acompanhar as cidades-epicentro do sector — Milão e Paris. Nos últimos dois anos, o crescimento continuou. As vendas mundiais de roupa de homem aumentaram 4, 1%, valendo 91 mil milhões de euros. É um número que tem de ser lido a par dos do gigante feminino — a roupa para mulher vende sempre mais, segundo a consultora Euromonitor, mas cresce menos. No mesmo período, cresceu 2, 8% para um valor de 134 mil milhões de euros. Olhando mais para a frente, a força do mercado de moda de homem não deve parar: espera-se que nos próximos dois anos aumente 8, 3% e que o seu valor atinja os 98 mil milhões de euros em vendas. “O crescimento futuro deve ser conduzido pela Ásia-Pacífico”, diz Magdalena Kondej, da Euromonitor. No atelier de camisas da Hermès, essa segmentação é visível na duplicação do número de pessoas da equipa nos últimos anos e nos armários que pontuam a sala branca de janelas altas e vidros foscos. No meio da austeridade laboratorial das mesas de trabalho há um armário para os clientes japoneses e franceses, outro para americanos, chineses e para Hong Kong, ainda um outro para o Dubai. Tanaka. Fan. Guillaume. Yamamoto. São os arquivos por apelido onde se guardam os dossiers de todos os clientes, explica-nos Wedad Arfa, mensurados a partir de uma primeira marcação. Naquelas pastas está tudo sobre a sua vida Hermès e, em parte, sobre a sua morfologia. Todas as medidas e também todas as encomendas, para facilitar não só a recuperação de uma velha compra mas também a coordenação de uma nova — se monsieur já tem há anos a camisa xis, o futuro fato poderá ser da cor ípsilon. Nessas “consultas” são registadas 13 medidas diferentes do cliente, tantas quantos os diferentes punhos disponíveis (só colarinhos há 14). Botões exclusivos que desenham em linha um H de Hermès, com ou sem monograma bordado à mão, 1500 tecidos franceses ou italianos à escolha. Pedaços desses tecidos são guardados na pastinha do cliente durante dez anos para que se possam reparar os colarinhos ou os punhos, mais expostos à passagem do tempo. Como os homens são consumidores de maratona, as peças querem-se duráveis, com potencial de herança, que possam “atravessar o tempo”, como poetiza Véronique Nichanian. “Um bom pullover que se guarda durante anos, um blusão de pele que se conserva. Um amigo disse-me um dia: ‘Tu és uma abrandadora do tempo. ’ É um dos mais belos elogios que me fizeram e procuro inscrever de facto um outro tempo” na moda — um tempo contemplativo e resistente. O processo demora meses — uma a duas semanas para criar a tela-molde, depois quatro a seis semanas para terminar a camisa de algodão ou seis a oito semanas para finalizar uma de seda, mais uma a três semanas para a entrega ao cliente em qualquer parte do mundo. Pelo meio há provas, lavagens para que a camisa nunca, nunca se altere, ou medições minuciosas. Nadia mede uma camisa que parece estar pronta e aponta numa ficha as distâncias em milímetros entre costuras e punhos, por exemplo. Noutra mesa cosem-se as margens das casas dos botões, abertas à mão por um cinzel que golpeia de uma vez só um virginal tecido branco. Noutro posto de controlo, um fio azul está a mais na trama alva de algodão. Uma pinça ou alfinete retira-o de cena. Tudo isto parece anacrónico na era da moda rápida e da reprodução instantânea. “Na Hermès temos um tempo diferente”, frisa Véronique Nichanian. “O luxo está aí. O tempo de fazer bem as coisas para construir um saco, uma mala de viagem, um lenço de primeira qualidade, uma peça de vestuário — a partir do momento da escolha do fio têxtil, da tecedura, do desenho do tecido para realizar essa peça levo tempo para fazer exactamente o que sonho para a Hermès. ”Pierre costura à máquina um colarinho, ponto a ponto e tão lentamente que a habitual canção mecânica martelada das máquinas de costura não se ouve. É um dos raríssimos momentos em que há algo automático envolvido na confecção orgulhosamente artesanal. Nem são usados computadores. O resultado final e a vontade e possibilidade de obter estes produtos alinham-se com os seus preços. Ludovic continua de volta dos carré que serão uma camisa felina, estuda alinhamentos — as costas do animal vão ficar nas mangas. Há sete anos na marca, amanhã poderá fazer outra coisa qualquer no atelier. Pede-se-lhes “muita versatilidade”, explica Wedad Arfa. São dez ou 12 horas para fazer uma camisa de algodão, ou 17 horas se for uma camisa de seda. Uma camisa simples custará cerca de 590 euros, uma de seda pode custar entre 800 e mil euros, a que acresce o preço dos cinco carré usados para a fazer (cada um com preços a partir dos cerca de 250 euros). “Excepcionalmente, para os bons clientes”, diz Arfa, “há mulheres que têm camisas sur-mesure Hermès”. “As que vêem as camisas dos maridos”, exemplifica, notando o caso recente de “um casal que escolheu os mesmos carré” para camisas a condizer. A própria Véronique Nichanian recebe-nos no centro de Paris com as suas sandálias e calças cigarrette pretas e uma camisa de seda com tons verdes e brancos. Tudo “à moi”. Como quem diz: peças que desenhou para as colecções de homem. “Visto-me quase essencialmente em versões mini das minhas criações. Eles sabem o meu tamanho”, sorri. Os peritos e quem trabalha no sector — e mesmo o consumidor mais distraído que nota apenas que o espaço para homem nas lojas de moda rápida aumentou — identificam uma espécie de “oscilação cultural” que fez com que mais homens invistam na sua aparência. Fala-se do advento do metrossexual há quase duas décadas, da influência de séries de TV elegantes como Mad Men, do contágio das redes sociais, de blogues como o Sartorialist, das políticas de género cada vez mais variadas, abertas e miscigenadas. E de millennials, os nascidos entre finais de 1980 e inícios de 2000, uma geração flexível que se destaca em trabalhos criativos ou nas empresas tecnológicas e que não vive vidas binárias lazer/trabalho. As consultoras dizem que eles, os “yummy” — o acrónimo brincalhão de “young urban male” — gastam muito mais com roupa, e em roupa com estilo. É tudo “muito mais interessante do que quando existia o ditado de fatos clássicos durante a semana, jeans para o fim-de-semana. Esta forma de fazer zapping no vestuário para ter uma identidade própria, e uma mensagem, é apaixonante”, entusiasma-se Véronique Nichanian. Que, para o stylist português João Pombeiro, se vê na silhueta e nas peças, que também já não são assim tão binárias, e que alimentaram em parte esta emancipação fashion do homem. Skinny jeans, casacos de pele de motoqueiro, camisas compridas. São peças unissexo, tal como certas silhuetas mais soltas, como as praticadas pelos portugueses Marques’Almeida, que se prestam para o menino e para a menina. “Tivemos homens a comprar os nossos vestidos-T-shirt para usar como uma T-shirt. E os nossos calções para mulher eram bastante boyish”, disse à Revista 2 em Junho Paulo Almeida. Pombeiro, ex-bailarino clássico, é responsável pela construção dos looks de várias actrizes portuguesas, faz styling para produções de moda em revistas como a Edit ou a Bless ou para campanhas de criadores como Luís Carvalho e Nuno Baltazar. Há qualquer coisa de rock’n’roll nas suas inspirações, mas quando é preciso citar influências ou ícones de moda de homem no momento fala do omnipresente rapper Kanye West — conhecido também por desenhar moda ou por usar peças da feminina e respeitadíssima Céline —, ou no blogger espanhol Pelayo — muito ligado à moda. “Os homens são apaixonantes porque, ao contrário das mulheres, demos-lhe menos frequentemente a palavra [na moda]”, sublinha Véronique Nichanian. “E desde há quatro ou cinco anos as revistas masculinas — na verdade todas as revistas — falam dos homens, dão-lhes a palavra e eles descobriram que é esperado deles que tenham necessidade de uma vestimenta, que anseiem por roupa, que se vistam por desejo. Intelectualmente libertou-se um novo estado de celebração, uma nova atitude masculina. Mais feliz. ”Wonder Magazine, V Man, Modern Men, Fashion For Man, Another Man. Dapper Dan, Grind, 10 Men, A Man About Town ou Port Magazine, enumeramos com o blogger português João Jacinto, que acredita que há um elemento de “revolução social e sexual” nesta agitação da moda masculina. “Há muitos homens a viver sozinhos, há uma certa independência do homem em relação às escolhas da mulher, da gravata que ela compra para ele”, exemplifica. “Gay ou hetero, as marcas diversificam os seus targets, identificando esse consumidor”, diz João Jacinto, embora Pombeiro acredite que o público gay tem mais poder de compra e, por vezes, um olhar mais arrojado para peças especiais. As revistas masculinas de estilo que nos últimos anos enchem as bancas tanto são sintoma de um mercado inflamado quanto o influenciam. Este mês regressou a edição portuguesa da GQ, numa parceria entre a casa-mãe, a Condé Nast, e a editora Light House. O New York Times inaugurou em Abril a secção de Men’s Style, o cada vez mais importante site Business of Fashion criou um espaço só para o menswear e a semestral Fantastic Man continua numa espécie de pedestal mundo fora. Esta publicação holandesa é, para um dos mais influentes e frescos designers de menswear actuais, o irlandês Jonathan Anderson, “causadora de uma viragem no mercado editorial e no menswear”. “É possível ver a influência deles a coincidir com a [maior e nova] importância do menswear na indústria da moda”, disse o designer, que fez a capa mais recente, ao New York Times sobre a revista, que se destaca pelas entrevistas, fotografia e grafismo. O que lá aparece ou a forma como é apresentado tende a surgir em novos sites de venda de moda de alta gama. A Hermès, por seu turno, lançou a 8 deste mês o MANifeste, um novo site para todo o universo masculino com listas e “castelos na areia”, nas palavras de Nichanian, para chegar “com humor” e muito jogo “aos homens que talvez não tenham o tempo ou sintam timidez de vir às lojas Hermès”, mas também a “pessoas que estão longe das lojas” — é o luxo de homem a chegar-se às compras online. A tecnologia também se cinge ao pulso: em Outubro chega um novo Apple Watch Hermés. A moda feminina parece o emprego expectável para um designer que termina a sua formação. Há mais marcas, mais emprego, mais variedade. Mas talvez também mais saturação. Fazem-se mais colecções por ano (as estações intermédias de resort e pre-Fall ainda não se aplicam ao menswear), sente-se uma “autofagia” criativa, como identifica o blogger português João Jacinto, que em Janeiro de 2013 criou o Gentleman’s Journal, em contraste com “o refresh na moda masculina” nas ideias. Um sector que, para o crítico de moda Alexander Fury, “está a gerar talentos que verdadeiramente questionam o statu quo”, como escreveu na revista T do New York Times há um ano, citando novamente Jonathan Anderson, Rick Owens ou Craig Green. E alguns dos maiores nomes da moda autoral actual vêm do menswear — de Raf Simons (Dior) a Hedi Slimane (Saint Laurent). Véronique Nichanian deu por si a trabalhar em moda masculina “por acaso. E sinto-me muito afortunada”. A moda feminina “é outra coisa. Nunca fiz, talvez a faça, talvez nunca a faça”. Quando foi convidada por Jean-Louis Dumas, que presidiu à Hermès entre 1978 e 2006 (morreu em 2010), Dumas disse a Nichanian: “Tens carta branca. ” “Um sonho”, ri-se, de que ainda não despertou. “A moda masculina ainda me diverte mais. ”O mundo em que trabalha é vasto. A caminho do jardim no terraço do edifício, para onde raramente consegue fugir, espreitamos o atelier onde se fazem as muito cobiçadas selas de cavalos da Hermès, por exemplo. A francesa franzina de olhos esverdeados descreve-se como “exigente”. Quer e precisa — e são os verbos que usa — “que tudo seja perfeito” até num email que troque internamente com a sua equipa. Coordena e desenha com o estúdio que desenvolve as colecções de pronto-a-vestir, está em diálogo constante com a divisão de sapatos encabeçada por Pierre Hardy, sabe o que se passa nas sedas, nas peles. É para lá que vamos a seguir, de regresso a Pantin e aos arredores de Paris, para o atelier dedicado às peles num novo edifício Hermès recheado com pátios verdes e ensolarados. Se há matéria-prima imediatamente associada à Hermès, é a pele, a das it bags tão difíceis de comprar que geram listas de espera de anos ou filas serpenteantes nas lojas e as usadas no universo equestre que continua a simbolizar a marca parisiense. O coordenador do atelier de menswear e leatherwear é contagiantemente entusiástico — um embaixador do cool na casa do clássico. Cyril Brandenburg desdobra rolos de peles, costuradas e coloridas, encantado mesmo com o que já conhece. Mostra três cores distintas de pele de cobra — branco, cinzento e vermelho — unidas numa peça que viria a ser um casaco e com um tratamento que lhes dá a suavidade de papel de seda. Amassa-a, arrepanha-a, e ela volta sempre à forma inicial. Foi para a passerelle em Junho. Ali, ouve-se o ruído de metal a roçar no metal, para afiar as peças usadas para cortar um blusão — trabalho que demora 1h30 ou duas horas. Parece tudo mais rápido do que na camisas, mas não é. Aqui faz-se a investigação e desenvolvimento das colecções de pronto-a-vestir, entre 20 e 30 peças por estação, mas também se fazem peças à medida. E “80% do tempo é passado a estudar as peles”. Depois é “ajustar o gesto”, explica o jovem especialista em modelagem, e passar mais de uma hora só a cortar. Gira pela sala carregada — de peles, de cores mais escuras, de maquinaria mais pesada. Entre elas, uma peça tosca com cabo de madeira e metal aguçado na ponta. Tem um ar improvisado. “Estamos em 2015 e ainda trabalhamos com ferramentas assim, que parecem saídas da Guerra dos Tronos”, ri-se sobre as peças velhinhas que se herdam nos ateliers da Hermès e que não têm rival na sua eficácia. Eric faz os moldes, “é o arquitecto da peça, quem lhe dá verdadeiramente vida”. Francis trabalha na cor das peles. Augustin é um dos costureiros. Os martelos açoitam a pele para alisar uma costura. Um camisolão cinzento de pele com bordados de lã relaxa num cabide, como que a ponderar se vai para um vídeo de hip hop ou para uma estância alpina. “Gosto que arrisquemos, que arrojemos na cor, nos padrões. Não é uma casa velha. Tem idade e é uma casa antiga, mas atreve-se”, solta Brandenburg. De dentro de um saco protector macio sai um blusão cinzento-rato com o interior gravado. Na etiqueta lê-se a sua identidade — “Hermès, commande particulière”. O seu futuro dono vai ser o único no mundo com uma peça assim. “O peso, o conforto” das peças “são grandes preocupações” — e destrinça, sobre algo que para ele não é efémero, nem descartável — “porque fazemos menswear, não é bem ‘moda’”. O PÚBLICO viajou a convite da HermèsSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
As vidas trocadas de quatro gémeos
O que acontece quando dois pares de gémeos idênticos descobrem que foram trocados na maternidade — e imaginam o que as suas vidas poderiam ter sido. (...)

As vidas trocadas de quatro gémeos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que acontece quando dois pares de gémeos idênticos descobrem que foram trocados na maternidade — e imaginam o que as suas vidas poderiam ter sido.
TEXTO: Era uma tarde de sábado no Verão de 2013. Janeth Páez e Laura Vega Garzón queriam comprar costeletas de porco para um churrasco. Janeth sugeriu que passassem por um supermercado no Norte de Bogotá, não muito longe do sítio onde a amiga vivia. William, primo do seu namorado e um rapaz muito simpático com um forte sotaque rural, trabalhava lá e era perito a cortar os bifes e pés de porco que os fregueses gostavam de cozer com feijão. Janeth tinha a certeza de que conseguiriam um bom desconto nas costeletas. Quando Laura chegou à secção de carnes, enquanto punha a conversa em dia com Janeth, ficou surpreendida por ver uma pessoa conhecida. Atrás do balcão estava um colega da empresa de engenharia onde trabalhava, a Strycon. Acenou efusivamente, mas ele mal deu por ela. “É o Jorge!”, disse Laura. “Trabalha lá no escritório. ” Jorge era um rapaz de 24 anos, muito popular na empresa, que desenhava tubos de transporte de petróleo e que trabalhava alguns pisos acima do escritório dela. Ficou surpreendida por o ver ali, a atender os fregueses. “Não é, não. É o William”, disse Janeth. William trabalhava arduamente e raras vezes deixava o balcão; só saía dali para ir dormir e seguramente não era empregado da Strycon. “É o Jorge, eu conheço-o”, insistiu Laura. Mas ele não lhe sorria de volta, o que era estranho. Passados alguns instantes, saiu de trás do balcão para um cumprimento rápido, abraçando Janeth, que o apresentou a Laura como William. Laura estava perplexa. Porque é que Jorge fingia ser outra pessoa? Talvez, pensou, tivesse vergonha de ter sido apanhado a fazer um biscate, com o avental ensanguentado e o boné branco de talhante. Janeth insistia que a amiga estava enganada, mas Laura não estava convencida. Era mais fácil acreditar que o rapaz estava a fazer-se passar por outro do que imaginar que pudessem existir duas pessoas tão parecidas. Não era só a cor de pele ou as maçãs do rosto salientes. Era a estatura física, a textura dos cabelos, o trejeito da boca e dezenas de detalhes que ela não conseguia identificar de imediato, mas que tudo somado resultava numa semelhança raríssima. Na segunda-feira seguinte, já na Strycon, Laura contou a Jorge aquele estranho encontro com o seu sósia no talho. Jorge riu e disse que, efectivamente, tinha um irmão gémeo, chamado Carlos, mas que não eram nada parecidos. Naquele instante, Jorge tinha diante de si provas suficientes que indicavam que a sua vida não era aquilo que ele pensava, que a sua família não era aquela que ele pensava. Mas há um ditado que Carlos, homem de muitos provérbios, às vezes aplicava a ele: “O pior cego é aquele que não quer ver. ”A fotografia, a verdadeUm mês depois, Laura disse à amiga que abrira uma vaga no departamento de desenho da Strycon, e Janeth conseguiu o emprego. Pouco depois, foi apresentada a Jorge e compreendeu imediatamente a confusão de Laura no talho. Os dois rapazes tinham os mesmos olhos castanhos e suaves, a mesma forma de andar saltitante, com os pés para fora, o mesmo sorriso alegre e contagiante. Janeth sentiu que não o conhecia suficientemente bem para abordar o assunto, mas mostrou a William uma foto de Jorge. O rapaz riu e mostrou a foto aos colegas do supermercado, divertido com a coincidência. Seis meses depois, Janeth mudou de emprego. Ainda assim, sempre que ela e o namorado encontravam William, questionava-se se não deveria ter falado dele a Jorge. A dúvida perseguiu-a até ao dia 9 de Setembro de 2014, quando decidiu enviar a Laura, por telemóvel, uma foto de William, para que ela a mostrasse a Jorge. Laura subiu ao andar dele, ansiosa por ver a sua reacção. Sorrindo, olhou para o telemóvel. “Mas este sou eu!”, disse, fixando ecrã. William vestia a camisola amarela da selecção colombiana, praticamente a farda nacional em dias de jogos importantes. Jorge usava com frequência uma camisola igual, o que tornava a semelhança ainda mais evidente. Um amigo passou pela sua secretária e Jorge quis ouvir a sua opinião. “Diz-me o que achas desta fotografia”, disse, passando-lhe o telemóvel. “Ficaste bem”, respondeu o amigo. “Só que não sou eu”, disse Jorge, sem conseguir tirar os olhos do telefone. Nesse dia, já não conseguiu trabalhar. Sentou-se com Laura na cozinha do escritório. Talvez o pai dele, que pouco mais era do que um visitante ocasional lá em casa, tivesse tido outro filho, que nunca revelara. Jorge começou a olhar para mais fotografias que William publicara no Facebook, agora no seu próprio telemóvel. Desconcertado, reparou numa foto de William com avental — parecia-se muito com ele próprio, nos raros dias em que tinha de vestir avental no laboratório. Viu também uma foto de William de copo na mão com um amigo. Depois, foi para o computador, para ver melhor as imagens. Voltou a clicar na fotografia de William com o amigo, com o copo de licor. Agora com a imagem ampliada conseguia ver aquilo que incrivelmente lhe escapara quando viu a foto no telefone. Aproximou-se mais, com o nariz quase a tocar no ecrã. Os cabelos do homem estavam penteados para trás como uma crista de galo e a camisa não estava com nada. Mas ali se via o lábio inferior carnudo e os espessos cabelos castanhos que Jorge conhecia bem. Os botões da camisa sofriam uma ligeira pressão de uma barriguinha que lhe era bem familiar. Jorge ficou confuso e sentiu um frio no estômago. O amigo sentado ao lado de seu sósia tinha um rosto que ele conhecia melhor do que o seu próprio: era o rosto de Carlos, o seu irmão gémeo. Jorge e CarlosDepois do trabalho, Jorge caminhou como sempre fazia até à universidade onde estudava à noite. Não conseguiu tirar os olhos das imagens do telefone. Depois das aulas, apanhou um autocarro para casa, para contar a Carlos o que acontecera. Na infância, Carlos era o gémeo que se esmerava com os trabalhos da escola e Jorge o que os copiava. Ambos se safaram. Carlos trabalhava numa empresa de contabilidade durante o dia e à noite estava também na faculdade. O confortável apartamento de dois quartos que partilhavam num bairro de classe média era já um degrau acima em relação ao lar da infância. A mãe, empregada doméstica, criou os dois filhos e a filha mais velha, Diana, numa pequena divisão de uma casa em Bogotá que pertencia à avó deles. Nunca sentiram que lhes faltasse alguma coisa. Enfiaram ali uma televisão e um frigorífico, e as escolas públicas do bairro eram boas. Mas agora viviam melhor – Jorge podia viajar para assistir a jogos de futebol e Carlos gostava de sair à noite. Os três irmãos só lamentavam que a mãe, que morrera de cancro no estômago quatro anos antes, não tivesse vivido o suficiente para que eles lhe pudessem proporcionar uma vida melhor. No autocarro, Jorge tentou pensar naquilo que iria dizer a Carlos. Já tinha falado das fotos a Diana. “Mas não fiques a provocar o Carlos com essa história”, dissera-lhe ela. Ao chegar a casa, encontrou o irmão ao telefone com uma mulher, como era seu hábito. Jorge disse-lhe para desligar. “Não me chateies”, respondeu Carlos. Esta era a dinâmica dos irmãos: Jorge importunava-o, fazia piadas, andava à volta dele, sem o largar. E quanto mais o irmão se irritava, mais Jorge se divertia. Por fim, Carlos terminou o telefonema. Jorge decidiu que tentaria manter o ambiente leve. Arrancou com uma pergunta: “O que é que dirias se eu te dissesse que tens um gémeo idêntico?” Carlos não parecia divertido. Jorge tentou de novo: “Acreditas em telenovelas?”Carlos começava a perder a paciência. Se ele tinha alguma coisa para lhe dizer, que dissesse de uma vez. Jorge conduziu o irmão ao quarto e sentaram-se diante do portátil, começando a clicar nas fotos, mostrando-lhe William com a camisola da selecção e outras, no talho. Carlos riu, atordoado com a estranha semelhança. Então, Jorge clicou na foto de William ao lado do sósia de Carlos, a foto em que aparecem com um copinho de shot na mão. O que é que dirias se eu te dissesse que tens um gémeo idêntico?” Carlos não parecia divertido. Jorge tentou de novo: “Acreditas em telenovelas?Ao contrário de Jorge, cuja primeira reacção fora examinar a foto mais de perto, Carlos deu um salto para trás, como se tivesse sido fortemente atingido no peito. “Quem são?”, perguntou. Estava furioso. O irmão contou a Carlos tudo que Janeth e Laura lhe tinham revelado naquele dia. Os dois jovens da fotografia tinham sido criados numa quinta remota em Santander, uma região predominantemente rural a norte, cujos habitantes tinham fama de ter um temperamento forte e um grande apreço pelas suas armas. De acordo com o Facebook, nasceram, tal como Jorge e Carlos, no final de Dezembro de 1988. Talvez, sugeriu Jorge, tenha havido uma troca no hospital — uma enfermeira pode ter trocado por engano um gémeo idêntico por um bebé do outro par de gémeos. Não disse o que aquilo significava: que um dos dois, ou ele ou Carlos, tinha nascido de outra mãe. Que provavelmente não eram irmãos gémeos nem sequer tinham um parentesco biológico. E nenhum dos dois admitiu o que ambos já sabiam: que se acidentalmente alguém entrou na família, era quase certo que esse alguém era Carlos. Que Carlos nunca se pareceu nem com Jorge nem com Diana era óbvio. Os seus irmãos tinham a constituição física delicada da mãe, as suas maçãs do rosto salientes, os seus olhos. Carlos era mais alto, de constituição robusta, tinha um nariz mais largo e a testa mais ampla. E a diferença não era apenas física: Carlos sempre se sentira um estranho na família, embora preferisse pensar em si como mais independente. Em criança, não se interessava pelas brincadeiras de faz-de-conta da mãe e dos irmãos, as vozes engraçadas que faziam durante horas, a fingir que eram outra pessoa. Desde que a mãe morreu, contactava Diana muito menos assiduamente que Jorge. Era o único da família que se importava com moda e Deus sabe que era também o único que sabia dançar. Os gémeos sempre acharam que Carlos saía ao pai, mas não o conheciam suficientemente bem para ter a certeza. Mas o seu sentimento de distância não diminuiu em nada a sua ligação à mãe. Sempre a adorou: era uma mulher forte, sem ser propriamente dura — quando ele e Jorge andavam à luta, ela batia-lhes com uma pantufa felpuda, o que sempre os fazia rir e era, provavelmente, o que ela queria. Por menos dinheiro que tivesse, ela garantiu que os filhos frequentassem uma boa escola e convenceu-os de que o futuro seria o que eles quisessem que fosse. Carlos sentia que lhe devia tudo o que conseguira até aqui. Sentado ao lado de Jorge, desligou o portátil, em silêncio. Depois, foi para o seu quarto e fechou a porta. Jorge foi atrás dele, dizendo coisas que, Carlos sabia, pretendiam consolá-lo — não importa se um de nós foi trocado, ainda somos irmãos —, mas que só o faziam sentir-se ainda mais isolado. “Olha”, disse ele a Jorge, “vamos esquecer essa história. ” Disse ao irmão para nunca mais voltar a falar-lhe nesse assunto. Naquela noite, Carlos mal dormiu. Nada daquilo fazia sentido. Como é que era possível que a sua mãe não o tivesse gerado? Ele já tinha chorado por ela. Agora voltava a chorá-la, como se a tivesse perdido pela segunda vez. Sentia-se sem chão, impotente, sozinho. Ao fundo do corredor, Jorge dormia como um bebé. William e WilberNo dia seguinte, assim que William abriu o talho, seu primo Brian — o namorado de Janeth — chegou para o seu turno de 12 horas. William, que fora rapidamente promovido a chefe de secção, estava feliz por ter contratado o primo, estudante em part-time. Em muitos aspectos, sentia-se mais próximo dele do que do seu irmão gémeo, Wilber. Brian cresceu em Bogotá, e quando William chegou à capital, em 2009, os dois passavam dias inteiros a fazer e vender bolos de milho na rua, à chuva, debaixo do sol, passando o tempo a rir e a fazer rir os clientes. Já William e Wilber eram incapazes de passar tanto tempo juntos sem se pegarem. Quando mais tarde Wilber trabalhou para William no talho, William ficava irritado por ele estar constantemente com limpezas em vez de atender os fregueses e por não lhe reconhecer autoridade. Wilber tinha humores, pensava William, e era incapaz de suportar uma brincadeira. Enquanto Brian e William organizavam a loja, Brian contou que na véspera Janeth lhe tinha mostrado fotografias de dois jovens que eram iguaizinhos a William e Wilber. William achou piada e ficou intrigado. Lembrou-se de que alguns meses antes Janeth também lhe mostrara a foto do seu sósia. Mas aquela coincidência parecia ainda mais estranha. Enviou uma mensagem a Janeth, pedindo-lhe para ver as fotos. Assim que a primeira delas chegou, William soltou um grito — “Aiiiii!” — e começou a rir. Janeth sugeria, na mensagem escrita, que talvez ele ou o irmão tivesse ficado doente em Santander e tenha sido enviado para um hospital em Bogotá. William entrou em contacto com uma tia, que lhe confirmou que sim, ele tinha sido enviado para um hospital em Bogotá logo depois do parto. Os gémeos nasceram de sete meses, e William teve problemas digestivos. A tia adiantou que foi tratado no Materno-Infantil na cidade. William contou isto a Janeth, que afirmou que iria perguntar a Jorge onde é que ele tinha nascido. Se fosse no Materno-Infantil, então tudo ficava claro: só podia ter havido uma troca. Até aquele momento, William, tal como Janeth, estava enredado no divertimento e no suspense de juntar as peças todas. Mas agora começava a ser invadido por uma onda de ansiedade. Ele sempre tivera um aspecto diferente do resto da família e desejara também coisas diferentes — uma vida para além da quinta. Mas nunca pôs a hipótese de ser de facto diferente — que pudesse não ser um deles. Olhou em volta e mal conseguia distinguir os fregueses, os pedaços de carne ensanguentada, o primo preocupado. Saiu e subiu as escadas para o seu apartamento, no 3. º andar do mesmo prédio. Pôs-se a mandar compulsivamente mensagens para Janeth, para ver se ela já tinha alguma informação sobre o hospital onde Jorge nasceu. William sempre tivera um aspecto diferente do resto da família e desejara também coisas diferentes — uma vida para além da quinta. Mas nunca pôs a hipótese de ser de facto diferente — que pudesse não ser um delesMinutos mais tarde, voltou apressado à loja e mostrou a Brian a mensagem dela: Jorge e Carlos tinham realmente nascido no Materno-Infantil. “Confirmado”, disse. Depois, sentou-se num banco nas traseiras do talho e desatou a chorar. Cada pensamento desencadeava outro igualmente doloroso. Ele tinha sido arrancado de seu lugar de direito. Era um desaparecido de quem ninguém sentia falta. Como iria contar à sua mãe? Ela tinha seis filhos, mas ele é que lhe mandava dinheiro. Era ele que se preocupava quando ela ficava doente e que a animava quando estava triste, enchendo-a de abraços e beijinhos e mordidelas na orelha para a fazer rir. Sabia que a notícia lhe partiria o coração; já estava a partir o dele. Só uma vez na vida, há alguns anos, William falou duramente com a mãe. Tinha terminado o serviço militar e até se saíra bem, ganhando, entre os 92 soldados de seu pelotão, uma bolsa de estudos para se formar como suboficial, um caminho que lhe propiciaria uma educação e um salto significativo em termos de estatuto. Mas afinal os militares não podiam atribuir-lhe a bolsa, porque os pais o tinham tirado da escola aos 12 anos e ele não tinha diploma equivalente ao secundário. “Devias ter-me deixado ir à escola”, gritou com a mãe em casa, em Santander. A escola mais próxima ficava a cinco horas a pé e a família teria precisado de lhe arranjar alojamento, comprar-lhe a farda e pagar as taxas de matrícula — para não falar dos custos de não contar com o seu trabalho na quinta. Ainda assim, William achava que a mãe deveria ter encontrado uma solução, que deveria ter sido mais hábil e lutado com todas as suas forças. Ele próprio teria lutado por isso, mas, aos 12 anos, o que poderia ele fazer?Enquanto chorava sentado no banco, William era levado por sentimentos que apenas com o tempo seria capaz de articular: a preocupação e o sentimento de culpa da mãe; a oportunidade perdida de crescer em Bogotá, onde poderia ter ido à escola, em vez de trabalhar no campo, ajudando na colheita; o pesar por sempre se ter sentido diferente do resto da família, uma família que o amava, mas que ainda assim o provocava por ele não se encaixar nela. Perplexo, Brian, a seu lado, não sabia o que dizer. Não havia frases feitas para uma situação como esta. Para seu alívio, passados dez minutos, William parou de chorar e levantou-se. Sabia trabalhar e era isso mesmo que iria fazer. Voltaram para dentro e começaram a limpar o balcão e a organizar os utensílios, à espera do freguês seguinte. William acabou por enviar uma mensagem a Wilber, que naquele dia estava a trabalhar noutro talho, dizendo-lhe que tinha de ir ter com ele imediatamente. À tarde, quando o irmão chegou, William disse que precisava de lhe mostrar uma coisa — e, no telemóvel, clicou numa foto de Jorge e Carlos. Wilber percebeu imediatamente, com total clareza, o que todos os outros levaram horas a compreender. “Então nós fomos trocados?”, disse, encolhendo os ombros e incomodado com a seriedade com que William encarava a fotografia. “Não me importa quem eles são. Tu és meu irmão e vais continuar a ser até eu morrer. ”Cara a caraDe vez em quando, às vezes horas a seguir à concepção ou, em geral, vários dias depois, as forças que unem células recém-divididas, configurando-as numa única massa coesa, de algum modo cedem. Em vez de se manterem juntas num conjunto que, meses mais tarde, vai formar um ser humano e, por fim, um indivíduo, essas células dividem-se em duas entidades independentes, cada uma com as suas próprias células em frenética divisão. Elas são separadas, mas são também uma coisa só: cada núcleo de cada célula carrega o mesmo DNA. Gémeos idênticos começam as suas vidas como acidentes fortuitos, resultado extraordinário de uma falha sistémica. A formação de gémeos falsos é mais prosaica. Dois espermatozóides distintos encontram dois óvulos diferentes e dão origem a dois bebés. Os gémeos falsos não são mais geneticamente parecidos que dois irmãos quaisquer. O que é singular neles é apenas a simultaneidade: são concebidos e nascem quase ao mesmo tempo. Cada um dos quatro jovens de Bogotá foi criado como gémeo falso, com uma identidade própria. Agora, davam-se conta, cada um tinha um gémeo idêntico, fazia parte de um par perfeito. Antes ainda de os quatro se conhecerem, já estavam a alinhar-se, sem o saber, com o gémeo com quem tinham partilhado o útero. Carlos e Wilber foram cautelosos, convencidos de que ninguém deveria levar por diante aquela história — quem sabe os problemas que aquelas pessoas poderiam trazer? Pelo contrário, William e Jorge revelaram-se abertos à possibilidade de um encontro — poucas horas depois da revelação, Janeth já estava a fazer diligências para que eles se encontrassem numa praça pública, às nove da noite, assim que William fechasse a loja. Wilber, que no início resistiu à ideia de conhecer os outros irmãos, foi ficando cada vez mais curioso à medida que olhava para as fotografias e acabou por querer ir também. Por volta das três da tarde, William falou com Jorge pela primeira vez e perguntou se, além de Brian e Janeth, Wilber podia ir também. Ficou aliviado quando Jorge disse que sim. Ambos notaram que as suas vozes não eram parecidas. A de William era mais rouca e, claro, tinha sotaque de Santander. Também chamou “senhor” a Jorge, uma formalidade típica das pessoas do interior. Jorge gostou da voz dele; parecia não apenas simpático, mas boa pessoa. À medida que o momento se aproximava, William ia ficando mais nervoso e calado. Saiu do trabalho e foi cortar o cabelo. Vestiu a sua melhor camisola, preta com riscas cinzentas. Levou a arma, hábito que adquirira durante o serviço militar. Andava às voltas. Na outra ponta da cidade, Jorge também estava inquieto. Pedira ao irmão que fosse com ele, mas Carlos tinha um compromisso com uma rapariga e não quis cancelá-lo. Quando encontrou um amigo da faculdade, Jorge pediu-lhe que fosse com ele, para dar apoio moral. Na hora marcada, Jorge já estava na praça, olhando em volta. Tinha as palmas das mãos suadas e mal conseguia respirar por causa da pressão que sentia na barriga. Em poucos minutos, um grupo apareceu a caminhar na sua direcção. Lá estava William — tinha a cara de Jorge, o mesmo andar, o mesmo ritmo, com os pés para fora. Brian filmou o encontro com o telemóvel. Com o som desligado, sem se ouvir as palavras nervosas, o vídeo mostra Jorge e William numa espécie de pantomima coreografada e ritualizada. William olha fixamente para Jorge, enquanto Jorge desvia o olhar; a seguir, é William quem volta a cabeça para o outro lado, como se, intuitivamente, desse a Jorge a oportunidade de olhar fixamente para o seu rosto, o que ele, de facto, faz, analisando-o de cima a baixo. Os dois olham-se directamente nos olhos — há um momento de contacto visual que é de uma intimidade incrível e uma troca de sorrisos — e depois cada um deles olha rapidamente para o lado. Nesta troca de olhadelas um para o outro, parecem um par de apaixonados no momento em que está prestes a confessar a sua mútua paixão. Jorge recompõe-se e dirige, enfim, um olhar de avaliação a William; como mastiga pastilha elástica, o queixo não pára de trabalhar. Depois, leva a mão à bochecha, pressionando a própria carne. Sim, este sou eu. Aquela pessoa ali é ele. William está calado, apoiando-se ora numa perna, ora na outra, o que dá a impressão de estar a balançar. (“Foi como olhar num espelho e ver, do outro lado, um universo paralelo”, Jorge diria mais tarde. )Para Jorge, era claramente mais fácil encarar Wilber, o sósia de Carlos — olha-o e abana a cabeça. Wilber tinha visto as fotos de Carlos, que usava óculos. “Só me faltam os óculos!”, disse, com um risinho agudo que fez Jorge sentir outra vez aquela pressão no peito: era o riso de Carlos. Depois de ter visto como William era parecido com Jorge, Wilber ansiava agora conhecer Carlos. Jorge telefonou para o irmão, avisando que estavam a ir para lá, e o grupo apanhou dois táxis rumo ao apartamento de Jorge e Carlos. Por volta das dez da noite, Carlos ouviu o toque da campainha. Caminhou até a porta e ali ficou, paralisado: mal conseguia abri-la. Sabia que era Jorge com aqueles rapazes das fotos. Aquelas pessoas não eram apenas estranhas, eram mais estranhas que estranhos: eram personagens de uma história sobre a sua vida que ele não controlava. “Abre a porta!”, Jorge ordenou. Carlos ouviu uma risadinha. Era a sua própria, mas não vinha dele — ou talvez viesse. “Não quero”, Carlos respondeu. “Tenho medo. ” Passaram-se segundos, Carlos ria nervosamente de um lado, Wilber do outro. “Carlos, abre!”, repetiu Jorge. Não se pode tapar o sol com a peneira, costumava dizer a mãe deles. Carlos abriu a porta e o grupo entrou, como uma procissão num sonho. Ali estavam Jorge e seu sósia — um Jorge com uma camisola estranha; era Jorge, mas mais calado, sem a sua confiança. Ali estava uma mulher e um outro tipo. E ali estava ele: Carlos olhava para si próprio, uma visão modificada de si mesmo, uma fotocópia engraçada, uma piada, um pesadelo. Olhou para Wilber, o reflexo da sua imagem. Os dois se entreolharam de relance — ambos soltaram um “ai!” e viraram as costas, tapando os olhos e corando. Wilber começou a falar, mas Carlos tinha dificuldade em entender o que ele dizia. Wilber trocava o “r” enrolado por um “d” pronunciado. O defeito da fala! Carlos também o teve em criança, mas superou-o com terapia. Os quatro começaram a comparar-se, interrogando-se para descobrir as características partilhadas pelos gémeos idênticos. Quem eram os birrentos da família? Carlos e Wilber! E os mais dóceis? Jorge e William! Quem eram os mais organizados? Carlos e Wilber! E os que corriam atrás das miúdas? Carlos e Wilber! E os mais fortes? Jorge e William!Ainda assim, enquanto Jorge só via semelhanças a cada olhar que lançava a William, Carlos procurava as diferenças entre ele e seu duplo de Santander. “Olha para as nossas mãos”, disse. “Não são iguais. ” As de Wilber eram maiores, mais grossas, cheias de cicatrizes da lida com as facas do talho e com as catanas que, quando era mais jovem, usava no campo. Carlos, por outro lado, ia frequentemente à manicure — as suas unhas, como é vulgar entre os colombianos, estavam cobertas de verniz incolor. William perguntou a Jorge sobre a sua mãe biológica. Como era ela? Onde estava? Observando cuidadosamente o rosto de William, Jorge contou-lhe que a mãe deles morrera de cancro quatro anos antes. Mostrou-lhe uma foto dela ainda jovem: cabelos compridos presos na nuca, belos olhos num rosto de expressão doce e séria. Ao olhar para a fotografia, William sentiu uma nova onda de pesar e ficou em silêncio durante vários minutos. Durante a maior parte da noite, o ambiente foi positivo e de arrebatamento. Os rapazes divertiam-se revelando as hilariantes semelhanças, mais fáceis de identificar do que as diferenças. Mas para cada um deles, do outro lado da porta, pairava um profundo sentimento de perda: o tempo perdido com pais e irmãos biológicos, as oportunidades perdidas, os anos perdidos, os perdidos mitos da criação. Jorge parecia determinado a manter afastados aqueles sentimentos, pelo menos por agora. “Tudo que aconteceu”, disse ao grupo, “é que nossas famílias ficaram maiores. ” Alguém perguntou: “Equipa de futebol favorita?” E os quatro gritaram em uníssono o nome de uma equipa popular na Colômbia: “Atlético Nacional!”Por volta da meia-noite, as visitas foram embora, com a promessa de que em breve se reencontrariam. Jorge e Carlos entreolharam-se na sala vazia. Tudo continuava igual, tudo tinha mudado. “E agora, o que é que fazemos?”, perguntou Carlos. Jorge percebeu que ele tinha começado a chorar. Carlos, então, caminhou até Jorge e deu-lhe um abraço apertado. “Eu quero ser seu irmão”, disse. II ParteQuando dois é igual a umGémeos idênticos não fazem muito sentido, do ponto de vista evolutivo. Já os gémeos falsos têm o benefício da diversidade genética, o que aumenta as probabilidades de pelo menos um sobreviver a um eventual infortúnio. Mas apesar desse seu carácter inexplicável, os gémeos idênticos ajudam-nos a elucidar o entendimento mais básico de como e porquê nos tornamos naquilo que somos. Mediante o estudo da sobreposição de características em gémeos falsos (que, em média, partilham 50% dos seus genes) e em gémeos idênticos (que partilham 100% dos seus genes), os cientistas têm tentado, há mais de um século, descobrir quanto da variação que encontramos no interior de uma população pode ser atribuído à hereditariedade e quanto ao ambiente. “Os gémeos merecem uma grande atenção”, escreveu sir Francis Galton, cientista britânico que, no final do século XIX, foi o primeiro a comparar gémeos muito parecidos com gémeos não tão parecidos (embora a ciência da época ainda não diferenciasse os gémeos idênticos dos falsos). “Isto porque a sua história permite-nos distinguir os efeitos das tendências herdadas dos efeitos impostos pelas circunstâncias da vida. ”Galton, que era primo de Darwin, é conhecido tanto por ter cunhado o termo “eugenia” como pela sua análise inovadora dos gémeos (tendo concluído, em parte decorrente da sua pesquisa, que pessoas saudáveis e inteligentes deveriam receber incentivos para procriar mais). O seu sucessor científico, o dermatologista alemão Hermann Werner Siemens, realizou no início da década de 1920 os primeiros estudos com gémeos, não muito díspares daqueles que têm sido efectuados. Mas Siemens também chegou a conclusões que, durante várias décadas, contaminaram a área de investigação que ele liderou, apoiando os argumentos de Hitler a favor da “higiene racial”. Ao procurar as origens genéticas de vários traços considerados desejáveis ou indesejáveis, investigadores como ele pareciam aproximar-se perigosamente da busca por uma raça superior. Mas, apesar de períodos de muita controvérsia, o estudo dos gémeos proliferou. Ao longo dos últimos 50 anos, cerca de 17 mil traços foram analisados, de acordo com uma meta-análise conduzida pela cientista holandesa Tinca Polderman e pelo australiano Beben Benyamin, e publicada este ano na Nature Genetics. Cientistas afirmam ter identificado influência genética em características tão variadas como a posse de armas, a preferência eleitoral, a homossexualidade, a satisfação no trabalho, o consumo de café, a obediência às regras e a insónia. Para onde quer que olhassem, os investigadores concluíram que os resultados dos testes aplicados em gémeos idênticos são mais semelhantes do que aqueles aplicados em gémeos fraternos. As pesquisas apontam para a influência dos genes em quase todos os aspectos de nosso ser (uma conclusão tão abrangente que alguns cientistas concluíram que certamente haveria algum erro fatal na metodologia empregada). “Tudo pode ser herdado”, afirma Eric Turkheimer, geneticista comportamental da Universidade de Virgínia. “Quanto mais geneticamente aparentadas forem duas pessoas, mais semelhanças elas terão em qualquer aspecto que se queira examinar” – quer seja a personalidade, quer seja a preferência por programas de televisão ou a tendência política. “Mas isso pode ser verdade mesmo sem que haja algum mecanismo específico, alguma versão de um gene como o da doença de Huntington. É algo que resulta dos complexos efeitos combinados de um número incontável de genes. ”O ramo mais surpreendente da pesquisa acerca dos gémeos talvez seja aquele que envolve uma classe pequena e invulgar de sujeitos: a dos gémeos idênticos criados separadamente. Thomas Bouchard Jr. , um psicólogo da Universidade de Minnesota, começou a estudá-los em 1979, quando ficou a saber do caso de Jim e Jim, gémeos de Ohio que tinham sido reunidos naquela época, aos 39 anos de idade. Não só eram incrivelmente parecidos, como também passavam férias na mesma praia, em Miami, casaram-se com mulheres com o mesmo nome, divorciaram-se, tornaram a casar-se com mulheres com o mesmo nome, fumavam a mesma marca de cigarros e tinham por hobby construir móveis em miniatura. Parecidos tanto em personalidade como no tom de voz, era como se tivessem sido formados por inteiro na concepção, impermeáveis aos efeitos exercidos por pais, irmãos ou geografia. Bouchard pesquisou mais de 80 pares de gémeos idênticos criados separadamente, comparando-os a gémeos idênticos criados juntos e também a gémeos fraternos criados juntos e em separado. Descobriu que, praticamente em todos os casos, os gémeos idênticos, criados juntos ou não, eram mais parecidos que os fraternos, tanto em personalidade como — resultado ainda mais controverso — em inteligência. Uma descoberta inesperada na sua investigação sugeria que o efeito do ambiente partilhado por um par de gémeos — por exemplo, os seus pais — tinha pouco peso na personalidade. Os genes e as experiências únicas — como um semestre no estrangeiro ou um amigo importante — exerciam mais influência. Do ponto de vista científico, o estudo dos gémeos que não foram criados juntos tem causado problemas aos pesquisadores. Esses gémeos apresentam-se voluntariamente para participar nas investigações ou tornam-se conhecidos através dos media, mais inclinados a cobrir histórias de gémeos idênticos incrivelmente parecidos, que se casaram com mulheres com o mesmo nome e depois se divorciaram, ou que escolheram como hobby uma mesma actividade incomum. É claro que gémeos idênticos que não sejam tão parecidos têm menos probabilidades de ser identificados e reunidos. E poucos estudos com gémeos, criados separadamente ou não, conseguiram incluir irmãos de procedências radicalmente diversas. “Todos os estudos terão os seus críticos”, afirma Nancy Segal, titular da Universidade do Estado da Califórnia em Fullerton, que trabalhou com Bouchard de 1982 a 1991. “Mas estudar gémeos criados separadamente distingue melhor os efeitos da genética e do ambiente sobre o comportamento. ”Segal tem estudado gémeos chineses desde 2003 (fraternos e idênticos, criados juntos ou não). Nos seus livros, a investigadora mistura ciência com histórias de interesse humano, comprovações estatísticas com detalhes anedóticos: as gémeas idênticas criadas longe uma da outra que usavam, cada uma delas, sete anéis; ou as irmãs criadas em separado que coçavam o nariz exactamente da mesma maneira e davam o mesmo nome àquele tique. Em Outubro do ano passado, Yesika Montoya, uma psicóloga colombiana que hoje trabalha como assistente social na Universidade Columbia, viu no Facebook um vídeo de um programa da televisão colombiana (Séptimo Día) que confirmava, mediante testes de DNA, que os quatro rapazes de Bogotá formavam dois pares de gémeos idênticos. Montoya entrou em contacto com Segal, que só conhecia de nome e reputação. Depois, abordou os rapazes, que concordaram em ser objecto de um estudo. Não importa o fascínio que exerçam, os dois pares de gémeos representam uma amostra de apenas dois. Para Segal, porém, as possibilidades eram fantásticas, únicas. Ela não sabia de nenhuma outra família com tantas possibilidades de combinar pares de gémeos para análise e comparação: Jorge e Carlos, Jorge e William, Jorge e Wilber, e assim por diante. “É uma experiência dentro de uma experiência”, disse, comparando-o a matrioskas russas: abre-se uma, há outra dentro, e outra, e outra. Os gémeos sabiam que o estudo exigiria que eles se submetessem, ao longo de toda uma semana de Março, a entrevistas diversas, individuais e em pares, assim como a horas enfiados numa sala, respondendo a questionários. Haveria perguntas sobre as suas casas, as suas vidas, a sua educação, bem como testes de personalidade e de inteligência. Segal contou-lhes que estava interessada em escrever um livro sobre eles (mais tarde, Montoya colaboraria nesse projeto), e os rapazes mostraram-se entusiasmados. William impôs uma única condição para participar: insistiu que as investigadoras visitassem a casa onde ele tinha crescido, em Santander. Sem isso, nunca conseguiriam compreender quem ele realmente era. Preocupava-o, no entanto, que, se dissesse a Segal e Montoya quanto tempo levariam para lá chegar, elas desistiriam. Assim, enrolava e desconversava sempre que surgia o assunto “tempo de viagem”. Quatro ou cinco horas, William dizia, acrescentando então, como quem não quer a coisa, que uma parte tinha de ser feita a pé. Quanto tempo? Um bocadinho, respondia — talvez houvesse alguma lama também. Quanta lama? Bom, podia ser que fosse mais fácil, a partir de certo ponto, seguir viagem a cavalo. E perguntava a Segal se, por acaso, ela preferia fazer aquele trecho a cavalo. Segal, uma mulher de 60 e poucos anos que crescera no Bronx, em Nova Iorque, recusou. O poder da vontadeNo dia 29 de Março, às nove e meia da manhã, três carros entraram em La Paz, uma cidadezinha empoeirada cujas poucas ruas tinham vistas espectaculares para os Andes. O grupo — formado por Segal, Montoya, os dois pares de gémeos, intérpretes, amigos diversos e alguns familiares — já tinha passado seis horas na estrada. Pararam num bar para um pequeno-almoço tradicional, com caldo de carne e chocolate quente. Jorge e William sentaram-se lado a lado à mesa; Carlos ficou à frente deles e Wilber com as investigadoras. Enquanto todos comiam, Carlos pegou no telemóvel para mostrar uma foto dele e de Jorge. “Eu amo o meu irmão, embora só demonstre isso quando estou bêbado”, disse. “Estão a ver?” Na foto, Carlos dava um grande beijo na bochecha de Jorge. Aborrecido, William observava Carlos e pensava como Wilber era parecido: tomava o afecto do irmão como garantido e só muito raramente manifestava o seu — quando, por exemplo, achava que um dos dois podia morrer. No Exército, ambos estiveram no mesmo batalhão, e antes de entrar numa zona especialmente perigosa, Wilber, pálido, dizia a William: “Que Deus te proteja, meu irmão. Amo-te. ”William sabia que Wilber o amava. Mas, tanto Jorge como William gostariam que os irmãos com quem cresceram — Carlos e Wilber — lhes tivessem dado mais apoio, que tivessem demonstrado mais sensibilidade, como acontecia agora entre William e Jorge, que com frequência se telefonavam antes de dormir, só para dar boa-noite. Nesta altura, os quatro rapazes já se conheciam bem. Ao longo dos seis meses anteriores, saíram juntos, partilharam refeições, conversaram sobre mulheres, família, dinheiro, valores. Mesmo semanas depois de se conhecerem, ainda olhavam nervosos e espantados nos olhos do irmão idêntico. Tinham-se medido, avaliado e inspeccionado. De costas um para o outro, compararam as alturas — os que foram criados na cidade eram mais altos que os do campo. Carlos vencera Wilber numa competição para ver quem comia mais. William ganhara a todos no braço-de-ferro. Nas bancadas de um jogo de futebol, Carlos, fascinado, vira William enfiar a mão nas calças de ganga para coçar o rabo: Jorge fazia o mesmo. Uma noite, à mesa do jantar, Jorge notou que Carlos e Wilber se debruçavam no mesmo ângulo estranho sobre os pratos. Jorge sentia-se à vontade para corrigir gentilmente a gramática do seu gémeo idêntico; Carlos levava a sério a responsabilidades de ensinar Wilber a abordar uma mulher atraente num bar de Bogotá ou como beber de um só trago uma dose de tequila. Os gémeos de Santander ficaram espantados com o facto de os irmãos da cidade nunca terem disparado uma arma de fogo, falha que rapidamente remediaram num passeio pelo campo. De facto, Carlos tinha de admitir que se sentiu imediatamente à vontade com o seu irmão gémeo recém-descoberto. Wilber, ao contrário de Jorge, não lhe dizia o que fazer quando ele lhe falava sobre a sua vida amorosa: apenas o ouvia e apoiava. Sim, entendiam-se um ao outro: o orgulho masculino quando estavam com mulheres, a reacção furiosa às provocações incessantes dos respectivos irmãos. Mas era também enervante para Carlos o que Wilber tinha dele. A própria existência do irmão gémeo refutava um conceito que lhe era caro: a percepção da sua singularidade. Tendo crescido com características tão diferentes do resto da família, Carlos sentia orgulho na sua individualidade. Agora, porém, como gémeo idêntico, integrava um raro subconjunto de seres humanos cuja replicabilidade estava embaraçosamente à mostra. Uma vez, Wilber fez um post no Facebook de uma antiga foto dele em Santander, de peito nu à beira de um rio, segurando triunfante duas galinhas que tinha acabado de matar. Com os cabelos molhados e penteados para trás como os de Carlos, o camponês da fotografia estava demasiado parecido com ele. “Tira isso daí”, disse a Wilber. “As pessoas vão achar que sou eu. ”Wilber, ao contrário de Jorge, não lhe dizia o que fazer quando ele lhe falava sobre a sua vida amorosa: apenas o ouvia e apoiavaLonge de acreditar que tinha encontrado a sua metade perfeita, Carlos sentia-se mais só que nunca. Por mais que Jorge negasse, a sua aproximação a William era evidente. Agora os dois usavam ténis iguais e aparavam as patilhas da mesma forma. Nos fins-de-semana, Jorge ia com frequência ao talho de William e punha-se atrás do balcão, à espera da clientela, só para passar mais tempo com o seu gémeo. De vez em quando, dormia no apartamento minúsculo de Wilber e William, deixando Carlos sozinho em casa. Às vezes Carlos consolava-se com um argumento estranho e perverso: ainda bem que a mãe já não estava ali para assistir a isto, porque ele não teria sido capaz de suportar os ciúmes que teria, caso ela acolhesse William como Jorge fizera. Carlos sabia que Jorge estava ciente daquela tristeza e que até procurava ajudar. Mas, sempre que tentavam conversar sobre o assunto, recaíam no velho hábito de se irritarem um ao outro. Para Carlos, era como se Jorge ignorasse as suas preocupações; Jorge, por sua vez, sentia-se frustrado, porque nada do que dizia era capaz de diminuir a sensação de isolamento do irmão. Mas Jorge tentava. Cerca de seis semanas após o primeiro encontro com William e Wilber, pediu uma foto a Carlos. Naquele sábado, foi a um tatuador. Já trazia no peito uma tatuagem da mãe, do lado do coração. Agora, sentava-se numa cadeira para depois de quatro horas dolorosas ter o rosto do irmão desenhado para sempre no seu corpo, a centímetros da imagem da mãe. Ao voltar para casa, levantou a camisa e mostrou a Carlos o seu retrato, sobre a pele ainda ensanguentada e inchada por causa da violência da agulha. Carlos diria mais tarde, com lágrimas nos olhos, que fora o maior presente que recebera na vida. Aquilo trouxe alguma paz. Mas no pequeno-almoço em La Paz, Carlos sentia que Jorge estava novamente a provocá-lo. Logo depois de mostrar a foto, Jorge começou a falar de um assunto delicado, que os dois já tinham discutido em muitas conversas nocturnas: o que seria de Carlos hoje, caso tivesse sido criado em Santander? “Olha à tua volta”, disse Jorge. “Achas mesmo que, se tivesses sido criado aqui, serias contabilista ou outro profissional?”Carlos recusava-se a admiti-lo. Quem poderia garantir que ele não teria arranjado uma forma de ir à escola, de se formar e conseguir um emprego na mesma empresa que, ainda recentemente, o promovera?William não disse nada, mas o seu semblante ficou rígido. Carlos não tinha a mais pequena ideia de até onde a força de vontade podia, ou não, levar uma pessoa. Ele, William, tinha essa força de vontade e procurara exercê-la de todas as maneiras na sua busca pela formação como suboficial. Primeiro, mudara-se para Bogotá, para acabar o liceu. Passou no exame, mas com uma nota baixa — oito meses de estudo árduo não chegaram para compensar todos os anos de part-times fora da escola. Embora só tenha conseguido ficar classificado para a lista de espera do curso de suboficiais, não desistiu. Fez as malas, deixou Bogotá e fez uma longa viagem de autocarro até ao quartel que oferecia o curso. Ao chegar, um comandante reconheceu-o. “Aqueles que têm perseverança, tudo conseguem”, disse-lhe. O comandante mexeu uns cordelinhos para o ajudar, mas, ao mexerem na papelada, descobriram que William já tinha dado baixa e recebera uma indemnização por uma doença contraída na altura em que fizera o serviço. A indemnização não permitia que ele se realistasse. Era o fim, não havia mais nada a fazer. Ele jamais poderia ser um suboficial. Tinha de voltar para casa. Mas o comandante não lhe dissera que quem perseverava conseguia? William ainda permaneceu cinco dias por ali, escondendo-se e misturando-se entre os soldados. Esperava que, de alguma maneira, as coisas pudessem resolver-se. Mais do que isso, não conseguia ir-se embora: partir significava desistir. No sexto dia, um oficial simpático, totalmente armado, acompanhou-o até à rodoviária e pô-lo pessoalmente no autocarro para Bogotá. William sabia que Carlos não conhecia aquela parte de sua história — e que provavelmente também não sabia que, aos seis anos de idade, William costumava caminhar cinco horas com a mãe até esta mesma cidade, La Paz, só para comprar mantimentos. Dormiam na casa de uma mulher simpática e voltavam à estrada, com os mantimentos às costas. Carlos não tinha como saber, nem jamais saberia realmente, quantas horas William, na adolescência, passara a cortar cana, a pele a arder do sol, os talos de cana-de-açúcar picando o corpo. E como carregava 25 quilos de cana de cada vez, um trabalho bruto, doloroso, árduo. Carlos vivera aqueles mesmos anos, e isso William sabia, namoriscando com as meninas numa excelente escola pública, jogando básquete e acumulando pontos de um jogo de vídeo qualquer, que ele não conhecia nem de nome. Longe de acreditar que tinha encontrado a sua metade perfeita, Carlos sentia-se mais só que nunca. Por mais que Jorge negasse, a sua aproximação a William era evidenteCarlos estava errado, William tinha a certeza disso. Às vezes, a força de vontade não chega. Se tivesse crescido em Santander, hoje não seria um contabilista em ascensão. E a insistência de Carlos em afirmar o contrário soava como um insulto a tudo o que William tivera de suportar — àquela vida que ele, na verdade, suportara em vez de Carlos. A cidade vai ao campoDepois do pequeno-almoço, os carros deixaram La Paz e entraram por estradas serpenteantes de terra e pedra, cobertas pela exuberante folhagem das palmeiras e fetos. Finalmente, por volta das onze e meia da manhã, a caravana parou perto de um grande pavilhão no meio de um relvado. Todos saíram. Era altura de caminhar. Nancy Segal empurrava uma mala de rodinhas roxa brilhante, com o material que ela esperava usar nas entrevistas e na pesquisa junto à família de William e Wilber. Ancelmo, o irmão deles, era quem agora vivia na casa, mas os pais e outros parentes também estariam lá para celebrar o aniversário de Ancelmo e rever os gémeos. Logo ficou evidente que aquele caminho não era adequado a uma mala de rodinhas. William, que no passado o percorrera carregando fardos bem mais pesados, pegou nela e levou-a aos ombros. O grupo seguia o seu caminho, subindo por uma colina. William movia-se com rapidez, apesar da mala. Disse que era forte, e que Jorge era tão forte como ele, embora dificilmente aquilo pudesse ser verdade. “Mas Carlos, não”, acrescentou. “Carlos não é tão forte. ” Em seguida, avançou mais alguns passos e, então, voltou-se para trás, como se tivesse tido uma ideia. “Carlos, porque é que não levas a mala?”, perguntou. Dirigiu-se a ele, entregou-lhe a mala e rapidamente tomou a dianteira. O caminho atravessava uma pradaria e, depois, desembocava numa descida íngreme e longa. Em minutos, era só lama — uma lama espessa e, em alguns trechos, com 60 centímetros de profundidade. Carlos, sempre impecavelmente vestido, pisava com cautela. Mas rapidamente os seus ténis Adidas ficaram submersos no lodo. Carlos sentia-se pouco à vontade, emocional e fisicamente. Desde que conhecera os gémeos, estivera duas vezes em Santander. Na primeira, para uma festa de aniversário em La Paz, comemorando o nascimento dos quatro irmãos; na segunda, numa visita aos seus pais biológicos, José del Carmen Cañas (conhecido como Carmelo) e Ana Delina Velasco, na casa onde agora moravam. Mas sentira-se desconfortável em ambas as visitas. Sabia que William achara o seu comportamento grosseiro, resistindo aos gestos simpáticos da família alargada. Mas era gente a mais — vizinhos, primos, cada um querendo tirar uma fotografia, dar um abraço ou estabelecer algum tipo de relação que ele próprio não sentia existir. Como poderia familiarizar-se com os seus pais biológicos se havia sempre uma multidão à volta? Já ao ser apresentado a Carmelo e Ana, no apartamento de William e Wilber, uma equipa de realizadores estava a filmar o encontro para um programa de televisão. Quando abraçou os pais, eles choravam copiosamente. Comovera-se ao sentir o abraço de Carmelo — nunca conheceu o seu próprio pai, que morreu não muito depois da mãe. Mas alguma coisa nas lágrimas de Ana fizeram-no sentir-se distante, calmo. Ele tinha tido uma mãe, e uma mãe muito boa. “Não chore”, disse a Ana, enxugando-lhe as lágrimas. “São os caminhos de Deus. ”O sol estava alto. Carlos avançava pela lama, que salpicava e se pegava às pernas. Foi então que ele — logo ele, Carlos, tão vaidoso com as suas roupas, meticuloso com o modo como lhe caíam, sempre a escovar com a mão as bainhas das calças para tirar algum fio imaginário — soltou um grito. O pé enterrara-se. Devagar, auxiliado por alguém da região que caminhava ao seu lado, começou a libertá-lo. Ouviu-se um ruído forte de sucção. O barro cobria-lhe a perna até bem acima do joelho. Mais de uma hora depois, suado, exausto, imundo, chegou, enfim, onde William e Wilber tinham passado a infância. A casa não tinha casa de banho, nem revestimento ou pintura, apenas paredes de madeira e um fogão a lenha com uma chaminé que saía pelo telhado. Sorrindo, Carlos aproximou-se de Carmelo e ambos se abraçaram calorosamente. Depois, ficaram em silêncio; nenhum deles sabia o que dizer. William, ao lado deles, observava Carlos e o pai. Tinha um aspecto imaculado, não fosse a lama nas botas. Vestia uma camisa roxa com riscas, especial para a ocasião. Carlos usava um boné preto de basebol com o símbolo do Batman, além de um pólo e óculos de sol. Mal tinha recuperado o fôlego, quando sentiu que lhe davam uma batidinha na cabeça: “Tira o boné e os óculos escuros”, disse William. “Tenta estar realmente aqui. ”Carlos observava Jorge, que se movimentava com à-vontade no meio daquela multidão, integrando-se na família de uma forma que ele, Carlos, não era capaz de fazer. Sentia-se incomodado com a conversa do pequeno-almoço. Jorge parecia querer arrancar-lhe uma declaração grandiosa e emocionada sobre a sorte que tivera na troca dos gémeos, sobre o destino bem mais duro que teria sido obrigado a enfrentar. Não que Carlos não tivesse reflectido muito, durante várias noites de insónias, sobre qual seria o seu futuro caso tivesse sido criado com a sua família biológica. Dois dos irmãos de William e Wilber tinham morrido novos: um deles num acidente com uma arma de fogo; o outro numa emboscada durante o serviço militar. Talvez ele nem tivesse sobrevivido, se tivesse crescido ali. Talvez fosse fácil ser um bom tipo em Bogotá. Vivendo em Santander, talvez se tivesse juntado à guerrilha, que uma década antes tinha sido muito popular, mas brutal. Na verdade, Carlos estava longe de acreditar na inevitabilidade do seu sucesso profissional — o que o preocupava era se, caso tivesse tido aquela outra vida, o seu carácter teria resistido às forças que o rodeavam. Mas não, não ia dizer tudo aquilo num pequeno-almoço, à frente de um monte de gente. Ele não era esse género de pessoa. III ParteO mito dos gémeos idênticosNo momento em que um espermatozóide penetra num óvulo, o zigoto unicelular resultante é conhecido como totipotente: é pura potencialidade. Ele traz em si a curva de uma sobrancelha, o músculo de um coração, o poder electroquímico de um neurónio; transporta o complexo manual de instruções que vai comandar a construção e a regulação de cada fibra do corpo. Mas essa célula única divide-se em duas e, instantaneamente, as luzes começam a apagar-se, a sua potencialidade diminui. Para que essa célula única se transforme num minúsculo fragmento de tecido do coração, e não num pêlo de sobrancelha, é necessário que um ou mais sinalizadores genéticos sejam desactivados. O resultado disso é a diferenciação, um processo constante de eliminação que possibilita a construção de universos biológicos complexos. Sempre que um grupo de células se divide, cada uma delas fica mais apta a tornar-se uma coisa e não outra. Quando o embrião atinge cinco ou seis dias de vida (momento em que ocorre a maioria das fatídicas divisões de gémeos), algumas dessas células vão fortuitamente para um ou outro gémeo. Isso significa que a expressão de alguns genes num dos futuros gémeos será, provavelmente e por caminhos subtis, diferente da expressão dos genes no outro gémeo. É a conjectura de Harvey Kliman, director de Investigação Reprodutiva e Placentária da Escola de Medicina de Yale. A partir do momento em que a maioria dos gémeos idênticos se separa, é bem possível que eles passem a ter uma epigenética diferente (o termo refere-se ao modo como os genes são lidos e expressos, dependendo do ambiente). Eles já são produtos distintos do seu ambiente, isto é, das condições uterinas que, de saída, fizeram deles seres diferentes. Um observador leigo ficará fascinado com a semelhança entre gémeos idênticos, mas alguns geneticistas estão mais interessados em identificar tudo aquilo que os distingue, por vezes de forma significativa. Porque é que um gémeo pode ser homossexual ou transgénero e o seu gémeo idêntico não? Porque é que gémeos idênticos, com o mesmo DNA, às vezes morrem de doenças diferentes, em momentos distintos? O ambiente em que vivem há-de diferir, mas que aspecto desse ambiente levou a sua biologia a tomar direcções distintas? Fumo, stress e obesidade são alguns dos factores que os investigadores já conseguiram associar a mudanças específicas na expressão de genes específicos. Com o tempo, esperam descobrir centenas de outros, talvez milhares. A meta-análise publicada este ano na Nature Genetics, resultado de 50 anos de estudos dos gémeos, chegou a uma conclusão sobre o impacto da hereditariedade e do ambiente nas vidas dos seres humanos. Os investigadores descobriram que, em média, cada traço ou doença particular de um indivíduo deriva 50% do ambiente e 50% dos genes, aproximadamente. Mas essa proporção simples não diz tudo sobre os nossos complicados sistemas de circuitos genéticos, o modo como os nossos genes interagem continuamente com o ambiente, sendo activados e desactivados de acordo com o estímulo e as consequências por vezes duradouras, que continuarão a existir no nosso genoma e serão transmitidas à próxima geração. O modo como os genes de um indivíduo respondem a esse ambiente — como se expressam — cria o que os cientistas chamam “perfil epigenético”. Antes de partir para Bogotá, Segal entrou em contacto com Jeffrey Craig, que estuda epigenética no Instituto Murdoch de Pesquisa Infantil, na Austrália, para perguntar se ele analisaria a epigenética de Carlos, Jorge, Wilber e William com base em amostras de saliva que ela colheria. Craig já analisou os perfis epigenéticos de 34 gémeos idênticos e falsos no momento do nascimento, recolhendo amostras do interior das bochechas. Chamou-lhe a atenção que, em alguns casos — não muitos, mas em alguns —, o perfil epigenético de um gémeo recém-nascido pode ser mais parecido com o de outro bebé qualquer do que com o do gémeo idêntico com o qual partilhou o útero materno. Diferenças estruturais no útero seriam uma explicação, afirma Craig — um cordão umbilical mais grosso para um (há, de facto, dois cordões) ou um estranho ponto de ligação do cordão à placenta. Mas Craig reconhece que poderia haver outros factores — quais é ainda especulação. Talvez uma maior distância de um dos gémeos do som constante e reconfortante do coração da mãe possa determinar uma trajectória de vida ligeiramente diferente. Segal e Craig ansiavam por conhecer os resultados dos perfis epigenéticos dos gémeos colombianos. Quais perfis, perguntavam-se, seriam mais parecidos? Os dos gémeos não biológicos que partilharam o mesmo ambiente — Segal chama-os de gémeos virtuais — ou aqueles que têm o mesmo DNA?Uma amostra composta de quatro indivíduos só pode levar a mais perguntas, não a respostas. Mas exames epigenéticos em amostras mais numerosas de gémeos criados separadamente podem, um dia, significar uma ajuda valiosa à ciência epigenética, afirma Kelly Klump, co-directora do Registo de Gémeos da Universidade Estadual de Michigan. “Não se pode observar a forma como o ambiente muda a função do genoma sem ter um genoma constante”, diz ela. “Os gémeos idênticos permitem-nos fazer isso. ”Como é muito difícil encontrar gémeos idênticos que tenham sido criados separadamente, os investigadores que trabalham com epigenética têm-se concentrado sobretudo nos gémeos idênticos que exibem diferenças. Tim Spector, por exemplo, titular de epidemiologia genética do King’s College de Londres, está a criar um gigantesco cadastro mundial de gémeos idênticos, com casos em que, por exemplo, apenas um dos gémeos manifesta diabetes ou autismo. Bouchard teve um papel fundamental para convencer investigadores, e o público em geral, de que parte significativa daquilo que somos se deve ao DNA, facto que estava longe de adquirido quando ele iniciou o seu trabalho. Spector e Craig, por outro lado, têm tentado identificar de que maneira nós nos modificamos em resposta ao ambiente. A sua questão fundamental é outra: como pode a ciência identificar genes que foram activados ou desactivados com resultados potencialmente danosos, para que possam ser revertidos? Se os estudos tradicionais com gémeos eram vistos como investigações interessadas no imutável, já os estudos epigenéticos procuram elucidar o que, em nós, está sujeito a mudança — e, mais especificamente, que mecanismos fazem essa mudança acontecer. Cair no buracoUm político local acompanhava o grupo na sua excursão a Santander. No percurso, tentou convencê-los a visitar uma atracção turística local: o segundo maior hoyo (buraco) da Colômbia, uma fossa cavernosa de 150 metros de largura e 180 metros de profundidade. Os habitantes da zona gostam de se deitar de barriga para baixo, ir arrastando até a borda, para, dali, se debruçarem sobre o abismo. Aquele buraco transformou-se numa piada recorrente entre os irmãos, e, para Yesika Montoya, a psicóloga colombiana, tornou-se também uma espécie de metáfora da experiência pela qual os gémeos estavam a passar. Ela tentava que eles identificassem os seus sentimentos em relação a tudo aquilo que tinham vivido, e parte desse esforço consistia em recordar as sensações físicas que registaram em diferentes momentos. “Senti vertigem”, disse-lhe Jorge sobre o momento em que estava à espera de William no dia em que se conheceram. “Uma pressão. Como aquela que sentimos numa montanha-russa, quando descemos. ”Montoya imaginou esse sentimento como semelhante à sensação de “cair por um buraco e não ser capaz de sentir o chão”. E acrescentou: “Nunca acaba. Mesmo quando se consegue apoiar um pé aqui ou ali, continuamos a cair. ”O tempo passado com Segal e Montoya, partilhando as histórias das suas vidas, teria necessariamente de mudar a forma como encaravam o que lhes estava a acontecer. Carlos pareceu surpreendido quando, em dada altura, Segal lhe pediu para descrever em que aspectos ele e Wilber eram diferentes. “Bem, a questão é que nós sempre olhámos para as semelhanças”, disse ele. “Nunca conversámos sobre as diferenças. ” Parecia feliz por ter, finalmente, a oportunidade de o fazer. Carlos apontou que ele gostava de mulheres mais velhas, enquanto Wilber preferia as mais jovens. Mas a resposta, é claro, era bem mais complicada. Carlos era, em traços gerais, muito parecido com Wilber; mas diferia dele numa série de detalhes infinitamente pequenos: as expressões que passavam pela sua cara, e só na sua; os pensamentos e as preocupações que lhe ocupavam a mente. Para o bem e para o mal, Carlos era mais cínico que Wilber e mais suave. Wilber, por sua vez, era mais alegre quando estava com crianças pequenas, tinha mais facilidade em soltar uma gargalhada. Jorge e William também têm diferenças óbvias. Jorge é um sonhador, um viajante incansável, um optimista que acredita que, “se damos o nosso melhor ao mundo, o mundo vai dar-nos o que tem de melhor”. O rosto de William, mais fino e mais magro, reflecte uma postura bem mais fechada. “Nada é fácil nesta vida”, comentou uma vez, um sentimento que dificilmente imaginaríamos Jorge a manifestar. Essas diferenças tinham sido aprendidas? Reflectiam, algumas delas, diferentes epigenéticas? Talvez Wilber e Jorge dispusessem de uma protecção biológica adicional pelo facto de, ao contrário de Carlos e William, terem sido criados pelas suas mães biológicas. Carlos sabia que tinha sido amado pela mãe que o criara. Mas também sabia que uma prima se tinha mudado para casa deles quando eram bebés, para que cada um dos gémeos pudesse desfrutar do tipo de contacto que, naquela altura, o hospital encorajava. A mãe carregava Jorge num canguru junto ao corpo; a prima levava Carlos. Em Maio, Carlos disse a Wilber que queria visitar a sua família biológica, mas sem a multidão de parentes, psicólogos ou equipas de televisão. Wilber passou o recado a William. Para William, era mais fácil aceitar que as inibições de Carlos naquelas viagens se devessem não tanto a uma reacção à nova família, mas ao carácter público das excursões. Num fim-de-semana de Junho em que, infelizmente, Wilber precisava de trabalhar, William, Jorge e Carlos apanharam um autocarro e foram fazer uma visita mais relaxada e privada a Carmelo e Ana. No autocarro, sentado ao lado de William, Carlos ouvia-o falar dos seus planos de concorrer a um cargo de vereador em La Paz — ele era agora uma espécie de celebridade em Santander. Carlos não nutria grande consideração pelos políticos colombianos, mas a ambição de William impressionou-o e também gostou de ele estar a ter aulas de Word. Pelas perguntas que Segal e Montoya tinham feito, descobrira que Wilber, o seu gémeo idêntico, não pretendia retomar os estudos e isso decepcionava-o, porque esperava falar com ele de outro assunto que não fosse mulheres. Esperava mais para Wilber — esperava mais de Wilber. Mas começava a achar que não o teria. Carlos sabia que Wilber queria passar mais tempo com ele. Mas também sabia que Wilber, a um certo nível, percebia que ele era uma alma solitária. Wilber tinha uma vida própria e uma nova namorada, mãe de duas crianças cujas fotos ele exibia a quem quisesse ver. Aquela experiência toda era para ele menos complicada do que para os outros três irmãos — e isso simplesmente porque, como o próprio Wilber dizia, ele não era uma pessoa muito complicada. Para Carlos, esta quarta visita a Santander foi como um recomeço. Os irmãos chegaram de manhã cedo a casa de Ana e Carmelo, depois de viajar durante a noite. Mas Carlos, gozando a beleza da paisagem, não quis descansar. Foi tomar banho num tanque de água. Ouvia o canto dos pássaros e foi um ouvinte atento do papagaio da família, “Roberto”, que tinha talento para cantar rancheras. Depois, enquanto os irmãos dormiam, foi até a cozinha. Lá estava Ana, uma mulherzinha minúscula — Carlos tinha aquele mesmo risinho dela, disseram-lhe, embora ele próprio jamais o tenha admitido — a limpar uma cabeça de cordeiro para o jantar. Ficou junto ao balcão da cozinha a fazer-lhe companhia enquanto ela trabalhava. Apercebeu-se de que era a primeira vez que estavam sozinhos. Conversaram sobre a saúde dela, as articulações doloridas, a dor nas costas. “Trabalhou tanto a vida toda”, disse-lhe, “está na altura de descansar. Os seus filhos já estão grandes. Porque é que trabalha tanto por eles?” A relação com Ana estava agora mais relaxada, mas não necessariamente mais próxima. Carlos disse a si mesmo que viria com o tempo. Jorge estava sempre a insinuar que havia alguma coisa errada com ele, por não sentir de imediato aquele vínculo poderoso, primordial, aquela força emocional da biologia e do destino que William, o gémeo idêntico de Jorge, parecia sentir em relação à mãe que nunca conhecera. Carlos questionava-se se não se teria aproximado mais de Ana caso a sua própria mãe estivesse viva, para lhe dar algum tipo de permissão. Mas talvez a coisa toda fosse bem mais simples. Talvez ele e William fossem simplesmente diferentes. Andar para a frenteAntes de dar início à sua investigação, Segal não teria ficado surpreendida se cada um dos rapazes apresentasse resultados semelhantes aos do seu gémeo idêntico, independentemente do ambiente. Mas os seus resultados preliminares mostram que, em várias características, os gémeos idênticos são menos parecidos entre si do que ela tinha imaginado. “Fiquei com um grande respeito pelo efeito exercido por ambientes extremamente diferentes”, diz ela. Talvez os resultados indiquem apenas que pessoas criadas em ambientes rurais, com pouca educação formal, encaram testes de uma maneira bem diferente do que aqueles que frequentaram a universidade. William, que administrava com competência um pequeno negócio, às vezes parecia assoberbado pelos testes. Mas Segal considerou que o caso dos jovens seria capaz de instigar novas investigações e inspirar outros investigadores a procurar mais exemplos de gémeos criados separadamente e de formas bastante diferentes. Durante a semana que os rapazes passaram a responder aos questionários de Segal, revisitaram o passado que os ajudou a fazer deles aquilo que eram. Quantos livros tinham em casa na infância? Alguma vez fumaram? Cresceram em famílias onde não se falava sobre sentimentos? Por uma semana, viveram fora do tempo, a olhar para o passado. Mas, assim que Segal fosse embora, cada um retomaria o seu caminho, avançando em direcção a um futuro desconhecido, à mercê do acaso. Às vezes falavam em morar todos juntos; William gostava de pensar que, juntos, os quatro eram mais fortes. Como membros de qualquer outra família, talvez se afastassem e voltassem a reunir-se, ou talvez dessem por eles a voltar para o conforto dos vínculos antigos. Já é invulgar crescer como um gémeo, parte de um par primordial; mas agora cada um deles dispunha de um segundo par raro, uma nova oportunidade de desfrutar de um tipo incomum de proximidade. O que poderá significar esse entrelaçamento — esse duplo emparelhamento — naquilo que cada um deles se vai tornar ou conseguirá na vida?Para comemorar o fim da pesquisa, Segal e Montoya resolveram levar os rapazes a uma famosa churrascaria de Bogotá, com uma espaçosa pista de dança. Jorge e William dançaram com Segal à vez; sorriam animadamente, girando e contorcendo-se sem prestar grande atenção ao ritmo. Carlos, sentindo-se no seu ambiente, ensinou alguns passos a Wilber. Dançavam lado a lado, não propriamente em sincronia — Carlos, com segurança, Wilber, atento aos pés e concentrado. Por vezes, erguia os olhos, como se sentisse a dança no corpo — sabia que logo aprenderia. “O Wilber tem jeito”, disse Montoya, que o observava da mesa, “só precisa de praticar mais. ” Quando os irmãos pararam de dançar e foram sentar-se para mais um trago de aguardente, começaram a flirtar com uma jovem que se tinha juntado à festa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No restaurante, Carlos sentia-se seguro, confiante, sereno. À medida que a noite avançou e bebeu mais, os seus passos foram ficando mais complexos e ousados, até que começou a exibir uma coreografia que ele e um amigo tinham inventado: numa contorção da cintura, as costas inclinam-se praticamente até ao chão, os joelhos ficam dobrados, quase a ceder. Carlos chamava àquele passo “Matrix”, em homenagem a uma manobra parecida que Keanu Reeves executa no filme para se esquivar das balas, num universo paralelo. Carlos estava de tal forma contorcido que parecia prestes a perder o equilíbrio. Wilber, William e Jorge rapidamente o rodearam, ainda a dançar, com uma expressão no rosto que resultava de uma mistura de emoções: divertimento, irritação, preocupação. Mas Carlos não estava a cair. Parecia. E rapidamente se endireitou sozinho. A dança continuou como antes. Os quatro juntavam-se e separavam-se, em diferentes pares e combinações — saíam em busca de mulheres, voltavam para trocar impressões e tomar novamente a pista de dança. Eram uma pessoa só, eram duas, eram quatro, fundindo-se, separando-se e tornando a fundir-se ao som da música pela noite fora. Exclusivo PÚBLICO/The New York Times
REFERÊNCIAS:
No rasto do vampiro
Dalton Trevisan, Prémio Camões 2012, é o mais invisível escritor brasileiro. A repórter do Ípsilon estava no seu rasto, cara na grade da sua casa irredutível, quando ele apareceu. Uma cidade-Lego, uma cidade sem país: Curitiba. Que estoure um samba a lembrar que isto é Brasil. Linhas rectas na horizontal e na vertical, torres separadas por canteiros, nove cores para lixo junto à Livraria do Chain. Foi a esta livraria, em tempos eleita a melhor do Brasil, que a editora Record mandou um fax quando o seu autor Dalton Trevisan ganhou o Prémio Camões 2012. Aramis Chain, o livreiro, serviu de correio. É das poucas pess... (etc.)

No rasto do vampiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Dalton Trevisan, Prémio Camões 2012, é o mais invisível escritor brasileiro. A repórter do Ípsilon estava no seu rasto, cara na grade da sua casa irredutível, quando ele apareceu. Uma cidade-Lego, uma cidade sem país: Curitiba. Que estoure um samba a lembrar que isto é Brasil. Linhas rectas na horizontal e na vertical, torres separadas por canteiros, nove cores para lixo junto à Livraria do Chain. Foi a esta livraria, em tempos eleita a melhor do Brasil, que a editora Record mandou um fax quando o seu autor Dalton Trevisan ganhou o Prémio Camões 2012. Aramis Chain, o livreiro, serviu de correio. É das poucas pessoas que convivem com Dalton, o mais invisível escritor brasileiro. Enquanto Rubem Fonseca, célebre pela reclusão, posa para fotografias, vai à Póvoa de Varzim ser premiado e diz às pessoas que as ama, Dalton Trevisan só é fotografado por paparazzi, enviou a editora para receber o Camões e juntou um bilhete que dizia: "O melhor conto você escreve com a tua mão torta, teu olho vesgo, teu coração danado. "O seu melhor conto não será O Vampiro de Curitiba, mas convém-lhe como biografia. Quem já viu um vampiro? Eu não vim à caça, nem me ocorre vê-lo, só andar no seu rasto por Curitiba. "Quando chegar na livraria, procure a Paula, ela vai lhe mostrar a casa do Dalton", dissera Chain, ao telefone. Estava de saída, voltaria às 18h30, logo nos encontraríamos. São 17h30, sol na cara, na esquina da livraria. Lá dentro há uma prateleira para Dalton Trevisan. Quando pergunto por Paula, ela sai para o passeio. "Ainda ontem estive com ele aqui. Imprimo os emails [que lhe enviam] e deixo num envelope. "Dobramos à direita, subimos à esquina seguinte. "É aquela casa", aponta Paula. Fácil assim, um quarteirão? Ela despede-se, eu olho o nome das ruas, Amintas de Barros com Ubaldino do Amaral, a casa do outro lado: fachada cinza, cortinas pardas, janelas a descascar. Um arranha-céus reflecte no vidro, semáforos de um lado e do outro, jipes, motoboys, mulheres de óculos escuros. A cidade cresceu à volta daquela casa irredutível. Verde para os carros da Amintas, bruá de motores, fumo. Verde para os peões da Ubaldino, atravesso até à entrada da casa. É um portão com grades em cima. Então vejo um prado e quase um bosque, duas filas de árvores. Atrás de mim o trânsito, ao fundo uma torre, e no meio esta miragem verde. Estou assim, cara na grade, quando uma figura entra no meu campo de visão. É um homem de boné, um pouco curvado, mãos atrás das costas, passo firme. Caminha ao longo das árvores como se matutasse, quase falasse com ele mesmo. Vai até ao fim e volta, na mesma cadência. Cai o vermelho, cai o verde, Curitiba roda à volta do seu vampiro. Não me ocorre tirar fotografias nem esconder-me. Ocorre-me que talvez Dalton saiba que eu ia ver a casa. Chain, fiel, não lhe diria? Se disse, terá Dalton saído ao jardim para me deixar com estas perguntas?E nisto o boné desaparece em direcção à casa. Não há campainha nem batente, ainda que eu quisesse bater. Contorno a casa. Cacos de vidro e velho arame farpado no muro, uma porta de garagem. Num documentário sobre Dalton, um amigo conta que ele tem um fusca guardado, outro diz que ele detesta carros e adora andar a pé. É o vampiro flâneur, a caminho dos 88. Não vi um velho, vi um obstinado. Vegetariano"Era ele mesmo", confirma Chain, quando volta à livraria. Tem a certeza? Dalton vive sozinho? E usa aquele boné? Sim, sim e sim. Aramis Chain, 70 anos, 45 de livreiro, camisa engomada, suspensórios, mistura de alemão luterano com ucraniano ortodoxo e libanês xiita. Curitiba não tem tanto cruzamento de português com negro, é outra gente. Para complicar, Chain casou com uma chinesa, e a sua filha, que também trabalha aqui, é o lindo resultado de tudo isto. Voltemos a Dalton: como se conheceram?"Meu irmão trabalhava na TV, em contacto com as artes, e Dalton nesse tempo era advogado e escrevia em revistas, com gravuras desse artista aqui. . . " Mostra a agenda da livraria para 2013, com capa de Poty Lazzarotto. Poty foi parceiro de Dalton na mítica revista Joaquim ("em homenagem a todos os joaquins do Brasil", dizia o subtítulo), que entre 1946 e 1948 teve colaborações de Carlos Drummond, Mário de Andrade, Antônio Cândido ou Vinicius de Moraes. "Lá no centro, no fim da rua XV, tem uma quadra que é a Boca Maldita, onde se reúnem os comerciantes, advogados, pintores. O meu irmão conversava muito com ele lá. O Dalton ainda vai lá. Ele anda bastante, vai a pé umas duas vezes por dia. Está muito conservado de corpo, rosto sem rugas. É vegetariano. "Mas então convive?"Diz bom dia, boa tarde, não fala com as pessoas. " E as pessoas conhecem-no? "Você conhece um vampiro?" O que aconteceria se eu lhe falasse? "Ele ia dizer boa tarde e não ia falar mais. Ele não dá entrevistas. Vem aqui na livraria, às vezes de manhã, às vezes bem de tarde. Quando está a chover, ele espera aqui. " Com quem fala? "Comigo, e tem uma secretária, Fabiana. " A relva estava bem aparada, é ele mesmo? "Acho que deve ter um antigo jardineiro. " E se eu batesse à porta? "Não iria te atender. E é de uma educação refinada. Mas se você falar com o vampiro, o vampiro já não existe mais. "Um concerto de Bach flutua pela livraria. "Dalton aceitou o Prémio Camões com muita honra. " E vieram os prémios Machado de Assis e Portugal Telecom, tudo em 2012. De resto, ele "adora Eça de Queirós", "lê literatura em geral e muitos jornais também", de São Paulo e do Rio. "Às vezes converso alguma coisa de política e ele está a par que é uma coisa impressionante. "Depois, quando Chain repara na pilha de Daltons que comprei, faz a oferta mais inesperada: que o autor os autografe. Incrédula, explico que voo na manhã seguinte para o Rio de Janeiro. Chain insiste, liga à secretária de Dalton a dizer que tem lá uns livros para ele autografar, passa-me o telefone. Fabiana confirma que Dalton terá muito prazer em autografar os livros. Entretanto Chain já tem um plano: que a caminho do aeroporto eu pare na livraria, onde às nove da manhã uma das livreiras já terá ido a casa de Dalton recolher os livros. E vai à porta indicar-me o passeio que Dalton faz. Anoitece, boa hora para a Boca Maldita. Apocalipse jáRua XV, em direcção ao poente, como num filme. Calçada portuguesa igual a Copacabana; calçada vulgar entre paredes de espelho, graffiti, murais; de novo calçada portuguesa, com árvores tropicais, o Teatro Guaíra, a Universidade do Paraná, neo-clássica, branca, fosforescente - e em volta sempre as torres da cidade que quis ser modelo. Ordem em vez de caos e de mistura. Vieram as pichagens, os assaltos, o crack. Dalton Trevisan continuou de ouvido na porta, olho na fechadura. A sua Curitiba vai do vampiro Nelsinho a babar por carne de moça nos anos 50 à drogada que rouba por uma pedra agora, ao par de adolescentes que faz um aborto. É a cidade-rapina em que um homem morre à vista de todos, enquanto tudo lhe é roubado (Uma Vela para Dario). A cidade à beira-rio onde os bêbados lembram elefantes, lentos, disformes (Cemitério de Elefantes). Uma cidade "província, cárcere, lar" contra "a cidade irreal da propaganda", à margem de qualquer beija-mão. Ex-advogado, ex-trabalhador na fábrica de vidros da família, nem cargos no estado nem estátuas, Dalton, o desintegrado, vê Curitiba caminhar para o seu apocalipse: "O pânico virá num baile de travestis no Operário, no meio do riso; o riso não será riso, diz o Senhor, as bicharocas desfilarão diante do espelho, e não darão com sua imagem. Diz o Senhor: Eis que eu entrego esta cidade nas mãos de Baal e dos filhos com rabo de Baal, e tomá-la-ão. "Entre a Igreja Central dos Irmãos Cenobitas e a Sauna Gay Opinião, ambas suas vizinhas de rua, desfaz ambas, ácido, corrosivo, lembrando que Curitiba é a cidade onde o cônsul português Miguel José Fawor foi assassinado em 2000 por garotos de programa, ou seja, prostitutos. Voltou a acontecer dez anos depois com o escritor local Wilson Bueno. E, ao mesmo tempo, Dalton é tão capaz do mais subtil fellatio de rua entre dois homens (Boa-noite, Senhor) como de amar mais as mulheres do que o próprio Vinicius, garantindo que nenhuma é feia, nem aquela sem dentes entre os caninos, boca-banguela na via sacra de Nelsinho (Noite da Paixão, o melhor conto do vampiro). Os libertinos de Dalton conhecem os inferninhos e o próprio inferno, ele leu a Bíblia por eles. De resto, nada do que é humano lhe é estranho: cornos-mansos, ninfomaníacas, violadores em série, mulherzinhas reclamando da baba na almofada, tanto tédio, revelhas queixas. Os seus heróis não vêm da favela nem vão a Paris, são empregados, desempregados, largados na vida, na beira da estrada, gente que vendeu todas as férias que teve. Mas nada do que é humano tornou o amor estranho. O libertino conhece o rouxinol, também chamado de corruíra: "O amor é uma corruíra no jardim - de repente ela canta e muda toda a paisagem. " Ou: "Com ela sonhava e o poder mais forte dos quinze anos me levantava sobre os telhados da cidade. " Ou ainda: "Eras na vida a pomba predilecta, ó doce putinha. " Um Luiz Pacheco. Um João César Monteiro. Um Salomão dos trópicos, diante de um peito de rapariga: "Ó broinha de fubá mimoso. " Língua de arco teso, como quem tira a espinha do peixe. Escrita por extracção, rarefacção, elipse. Crepúsculo em Curitiba. Um mulato empilha num carrinho todo o papelão que juntou. Logo adiante, a Boca Maldita é uma praça cheia de cafés, o que sobrou de arte-nova, torres por cima. Continuo, rua fora, apesar de a rua já não se chamar XV. Em cada esquina um Raskolnikov? O vampiro saberá melhor. Certo é que nesta esquina vejo um retrato de Dostoiévski pousado no chão, à venda. Não sei se Dalton alguma vez escreveu "Raskolnikov sou eu", mas sei que escreveu "Capitu sou eu", e os amigos contam que ele não tem dúvidas sobre o maior enigma da literatura brasileira: Capitu (heroína de Dom Casmurro) traiu Bentinho? Machado de Assis é o herói de Dalton Trevisan (juntem-lhe Flaubert, Tchékhov e cinefilia). Na manhã seguinte paro na livraria a caminho do aeroporto. Lá estão os livros que comprei, todos assinados. E mais dois com dedicatória: oferta do vampiro.
REFERÊNCIAS:
Especial alimentação: Vamos declarar guerra ao glúten?
Devemos comer o que andamos a comer? Não há unanimidade, nem entre os cientistas, sobre muitos dos produtos que fazem parte das nossas dietas. A Revista 2 olhou para alguns deles e para estilos de alimentação que têm dado que falar. (...)

Especial alimentação: Vamos declarar guerra ao glúten?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.357
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Devemos comer o que andamos a comer? Não há unanimidade, nem entre os cientistas, sobre muitos dos produtos que fazem parte das nossas dietas. A Revista 2 olhou para alguns deles e para estilos de alimentação que têm dado que falar.
TEXTO: Logo a seguir ao Dia do Trabalhador, a exposição de produtos Sem Glúten Nem Alergénicos parou um fim-de-semana no Centro de Exposições de Meadowlands. Todos os anos, o evento atravessa o país como um espectáculo de medicina itinerante, enaltecendo-se como a maior apresentação de produtos sem glúten dos Estados Unidos. Há bandeiras presas em tendas com mensagens de boas-vindas, como “A farinha de banana-pão é a nova couve”. A farinha de banana-pão não tem glúten, tal como não tem qualquer dos outros produtos da exposição (incluindo a couve). Há batatas fritas sem glúten, molhos sem glúten, sopas sem glúten e guisados sem glúten; há pães sem glúten, croutons sem glúten, pretzels sem glúten e cerveja sem glúten. Há fusilli artesanal e penne sem glúten produzidos em Itália, e fusilli artesanal e penne sem glúten produzidos nos Estados Unidos. Dezenas de empresas montaram mesas com amostras de queijo, douradinhos, palitos de pão e palitos de soja sem glúten. Um homem distribui pacotes de pão ralado, feito por “mestres padeiros” com certificados de ausência de glúten e de organismos geneticamente modificados e de cozinha kosher. Há até comida de cão sem glúten. O glúten, uma das proteínas mais consumidas no mundo, é criado quando duas moléculas, a glutenina e a gliadina, entram em contacto e formam uma ligação. Quando os padeiros estendem a massa, estão a criar uma membrana que dá ao pão a sua textura elástica e permite aos chefs de pizza rodar a massa no ar. O glúten também apanha dióxido de carbono que, ao fermentar, aumenta o volume do pão. Há pelo menos dez mil anos que os humanos comem trigo e o glúten que este contém. Para pessoas com a doença celíaca — que afecta 1% da população [tanto nos EUA como em Portugal, segundo a Associação Portuguesa de Celíacos; é sobretudo herdada geneticamente] — a mais pequena exposição ao glúten pode desencadear uma reacção imunitária suficientemente forte para causar danos graves na superfície do intestino delgado. As pessoas com doença celíaca têm de estar sempre em alerta com a alimentação, aprendendo a descobrir perigos escondidos em produtos vulgares, tal como proteínas de vegetais hidrolisados e vinagre de malte. Comer em restaurantes requer uma vigilância apertada. Até a reutilização da água usada para cozer massa pode ser perigosa. Até há cerca de uma década, os outros 99% raramente pensavam no glúten. Mas, liderados por pessoas como William Davis, um cardiologista cujo livro Sem Trigo sem Barriga [editado pela Lua de Papel] criou um império assente na convicção de que o glúten é um veneno, de que a proteína se tornou no vilão da culinária. Davis acredita que até os “saudáveis” cereais integrais são destrutivos e tem culpado o glúten por tudo, desde a artrite à asma, até à esclerose múltipla e à esquizofrenia. David Perlmutter, neurologista e autor de outra das obras fundadoras do movimento sem glúten, Cérebro de Farinha: A Chocante Verdade Sobre o Trigo, o Glúten e o Açúcar — os Assassinos Silenciosos do Seu Cérebro [Lua de Papel], vai ainda mais longe. A sensibilidade ao glúten, escreve, “representa uma das maiores e menos reconhecidas ameaças de saúde da humanidade”. Quase 20 milhões de pessoas relataram ter regularmente problemas depois de ingerir produtos que contêm glúten e um terço dos adultos americanos afirma estar a tentar eliminá-lo da sua alimentação. Um estudo que analisa as tendências da restauração americana concluiu que em 2013 os clientes pediram mais de 200 milhões de pratos sem glúten ou sem trigo (também há glúten no centeio e na cevada, e uma dieta sem glúten não pode ter qualquer destes cereais). A síndrome foi baptizada como “sensibilidade ao glúten sem doença celíaca (ou síndrome do intestino irritável)”. “Há quatro anos que não como glúten e isso mudou a minha vida”, disse-me Marie Papp, fotógrafa, na exposição. “Eu tinha dores de cabeça, enjoos, dificuldades em dormir. Sei que sou intolerante porque quando desisti me senti melhor. Provavelmente, esta explicação não é suficientemente científica para si. Mas eu sei como me senti, como me sinto e o que fiz para mudar. ” Continuou: “Sou uma foodie. Há cinco anos que não comia um biscoito. E acabei de comer um aqui, sem glúten. E é óptimo. ”Para muitas pessoas, evitar o glúten tornou-se uma coisa cultural, quase tanto como uma escolha dietética, e a exposição oferece uma rampa de lançamento para um novo estilo de vida. Havia um agente de viagens especializado em férias sem glúten e uma mulher que ajudava a preparar copos-de-água de casamentos sem glúten. Um vendedor mostrava placards onde se lia: “Estou livre de trigo”, “estou livre de mariscos”, “estou livre de ovos”. Também vi um anúncio de hóstias sem glúten. O medo do glúten tornou-se tão visível que, há umas semanas, a série televisiva South Park dedicou um episódio ao assunto. South Park tornou-se a primeira cidade totalmente sem glúten do país. Agentes federais colocavam de quarentena qualquer pessoa que pudesse ter sido “contaminada” numa pizzaria Papa John’s rodeada de arame farpado. Os cidadãos eram obrigados a livrar-se dos seus alimentos pecadores e uma multidão enraivecida incendiava campos de trigo. “Independentemente da doença que vos atacou, vamos culpar o glúten”, escreve April Peveteaux no seu divertido livro Gluten is My Bicth (o mesmo nome do seu blogue). “Se você quer ou precisa de uma dieta sem glúten, bravo! Ponha um travão no malvado do glúten. . . Não tem a certeza de o ‘gluten free’ ser para si? Talvez o glúten apenas lhe cause algum desconforto, mas nunca foi diagnosticado. Então que se lixe o glúten!”O trigo fornece cerca de 20% das calorias mundiais e mais alimento do que qualquer outra fonte. A colheita de 2013, de 718 milhões de toneladas, significou praticamente 90 quilos por cada habitante da Terra. Nos Estados Unidos, o consumo de trigo parece oscilar segundo as tendências nutricionais. Aumentou estavelmente dos anos 1970 até 2000, reflectindo o crescente aumento das preocupações sobre a relação entre a carne e a gordura saturada, colesterol e doenças cardíacas. Desde então, o número de pessoas que dizem que o trigo, centeio e cevada as põe doentes aumentou, apesar de o consumo do trigo ter diminuído. O trigo é fácil de cultivar, armazenar e transportar. As propriedades químicas da farinha e da massa também o tornam versátil. A maioria sabe que é utilizado no pão, massa, noodles e cereais. Mas o trigo tornou-se um ingrediente escondido em milhares de outros produtos, incluindo sopas, molhos, condimentos, snacks, e até em carnes processadas e vegetais congelados. Quase um terço das comidas dos supermercados americanos contém algum componente de trigo — geralmente glúten ou amido, ou ambos. 90 quilos de trigo foram em média consumidos por cada habitante da Terra durante o ano de 2013A pergunta mais óbvia é também a que é mais difícil de responder: como pode o glúten, presente num produto que há milhares de anos alimenta a humanidade, ter-se tornado de repente tão ameaçador? Existem muitas teorias mas nenhuma resposta científica satisfatória. Alguns investigadores argumentam que os genes do trigo se tornaram tóxicos. David afirma que o pão actual não tem nada que ver com o pão que há 50 anos ia parar às nossas mesas: “O que mudou é que os efeitos adversos do trigo na saúde humana foram muitas vezes ampliados. . . A versão do ‘trigo’ que consumimos hoje é um produto que resulta de investigação genética. . . Você e eu não conseguimos de forma alguma as formas de trigo que cultivávamos há 50 anos, muito menos há cem ou dez mil anos. . . Temos de restringir outros hidratos de carbono para além do trigo, mas o trigo ainda se destaca como o pior dos piores. ”Perlmutter é menos restritivo: “Entre nós, 40% não conseguem processar correctamente o glúten, e os outros 60% podem estar a caminho disso. ”Apesar de os padrões de alimentação terem mudado drasticamente no último século, os nossos genes não mudaram. O corpo humano não evoluiu de forma a consumir a dieta ocidental moderna, com refeições cheias de substâncias açucaradas e hidratos de carbono refinados com elevadas calorias. Quase todo o trigo que comemos hoje foi moído para ficar uma farinha branca, que tem muito glúten, mas poucas vitaminas ou nutrientes, e pode causar aumentos consideráveis no nível de açúcar no sangue que frequentemente origina diabetes e outras doenças crónicas. Donald Kasarda, investigador no Departamento de Agricultura dos EUA, estuda há décadas a genética do trigo. Numa investigação recente publicada no Journal of Agricultural and Food Chemistry, não encontrou provas de que uma mudança nas técnicas de cultivo do trigo tenha provocado um aumento da incidência da doença celíaca. “A minha pesquisa às proteínas do trigo americano ao longo de praticamente cem anos não mostra que tenha havido um aumento quando comparamos os dados históricos com os dados recentes”, disse depois numa entrevista. Joseph A. Murray, professor de Medicina e presidente da Sociedade Norte-Americana para o Estudo da Doença Celíaca, também estudou a genética do trigo. Concorda com Kasarda. “O grão de trigo não é muito diferente do que era há 50 anos”, disse-me Murray. “Quimicamente, os conteúdos não se alteraram muito. E há uma coisa mais importante a salientar. O consumo do trigo está a baixar, não a aumentar. Não acho que este seja um problema ligado à genética do trigo. ”Mas algo de estranho está nitidamente a passar-se. Por razões que continuam por explicar, a incidência da doença celíaca quadruplicou nos últimos 60 anos. Inicialmente, os investigadores atribuíram o aumento de casos a um maior esclarecimento do público e a melhores diagnósticos. Mas nenhum deles pode responder totalmente pelo salto desde 1950. Murray e os colegas da Mayo Clinic descobriram esse aumento quase por acaso. Murray queria examinar os efeitos a longo prazo da doença celíaca não diagnosticada. Para o fazer, analisou amostras de sangue retiradas a 9000 recrutas da Força Aérea entre 1948 e 1954. Os investigadores procuravam anticorpos de uma enzima chamada “transglutaminase”; são um marcador fiável da doença celíaca. Murray partiu do princípio de que 1% dos recrutas dariam positivo, correspondendo ao nível actual da doença celíaca. Em vez disso, a equipa descobriu anticorpos no sangue de apenas dois décimos de 1% dos soldados. Depois, comparou esses resultados com amostras retiradas recentemente de grupos demograficamente semelhantes, de homens de 20 e de 70 anos. Em ambos os grupos, os marcadores bioquímicos estavam presentes em cerca de 1% das amostras. “Isto sugere que o que quer que tenha acontecido com a doença celíaca aconteceu desde 1950”, diz Murray. “O aumento afectou da mesma forma jovens e velhos. ” Os resultados apontam para que a causa seja ambiental. Ninguém consegue saber ao certo porque é que o aumento da doença celíaca foi tão rápido. Pode ser por causa da dieta moderna. Também há cada vez mais provas, em estudos com animais e humanos, que o nosso microbioma — as muitas espécies bacteriológicas que habitam nas nossas entranhas — pode ter um impacto significativo num variado leque de doenças. Mas nada disso explica porque é que tanta gente que não sofre de doença celíaca sente necessidade de abdicar do glúten. Gibson publicou as suas conclusões no American Journal of Gastroenterology, mas, juntamente com outros especialistas, pediu contenção na interpretação dos resultados, dado o estudo ser tão pequeno. Ainda assim, milhões de pessoas com sintomas vagos de distúrbios gástricos encontraram de repente alguma coisa concreta pela qual culpar os seus problemas. O mercado prosperou, mas o mistério essencial continua por resolver: porque é que subitamente o glúten se tornou tão perigoso? Talvez, pensaram os investigadores, os agricultores tenham aumentado o conteúdo proteico (e de glúten) no trigo, de tal forma que as pessoas deixaram de o conseguir digerir adequadamente. Mas o trigo não é apenas glúten. O trigo também contém uma complexa combinação de hidratos de carbono, e a equipa australiana interrogou-se se estes poderiam ser responsáveis pelo problema. Gibson e os colegas lançaram um novo estudo: juntaram um grupo de 37 voluntários que aparentemente tinham dificuldades na digestão do glúten. Desta vez, os cientistas tentaram excluir os hidratos de carbono para confirmar que a culpa seria do glúten. Gibson colocou todos os voluntários sob uma dieta que não só não tinha glúten como não tinha um grupo de hidratos de carbono chamado FODMAP, a sigla inglesa para uma série de palavras que poucas pessoas memorizarão: oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis. Nem todos os hidratos de carbono são considerados FODMAP, mas muitos tipos de produtos contêm-nos, incluindo os que são ricos em frutose, como o mel, maçãs, mangas e melão; lacticínios, como o leite e o gelado; e frutanos, como o alho e a cebola. A maioria das pessoas não tem problemas em digerir FODMAP, mas estes hidratos de carbono são osmóticos, o que significa que levam água ao trato intestinal. Isso pode causar dores abdominais, inchaço e diarreia. Quando os hidratos de carbono entram no intestino delgado sem estarem digeridos, deslocam-se para o cólon, onde as bactérias começam a desfazê-los. Esse processo provoca fermentação, e um dos produtos da fermentação é o gás. No novo estudo de Gibson, quando os sujeitos foram colocados sob uma dieta sem FODMAP nem glúten, os seus sintomas gastrointestinais diminuíram. Ao fim de duas semanas, todos os participantes afirmaram que se sentiam melhor. Depois, alguns deles receberam secretamente alimentos com glúten; os sintomas não regressaram. O estudo forneceu provas de que a investigação de 2011 estava errada — ou, pelo menos, incompleta. A causa dos sintomas parecia ser os FODMAP e não o glúten; não foram encontrados marcadores biológicos no sangue, fezes ou urina que sugerissem que o glúten causava qualquer tipo de resposta invulgar do metabolismo. Na verdade, parece mais provável que sejam os FODMAP e não o glúten a causar distúrbios intestinais, uma vez que as bactérias fermentam regularmente os hidratos de carbono e menos frequentemente as proteínas. Apesar de uma dieta sem FODMAP ser complicada, permite às pessoas eliminar temporariamente alimentos individuais e depois reintroduzi-los sistematicamente para determinar quais, se é que algum, são responsáveis pelos seus problemas de estômago. Os FODMAP não estão tão na moda como o glúten e não são tão fáceis de compreender. Mas, biologicamente, o papel que podem ter faz mais sentido, diz Murray. “O primeiro estudo, de 2011, deixou-nos entusiasmadíssimos”, conta Murray. “Fundamentalmente, dizia que as pessoas são intoleráveis ao glúten e baseava-se numa investigação bem concebida, duplamente cega. Quando as pessoas eram desafiadas com glúten, comendo os queques, adoeciam. Não percebíamos. Mas foi então que veio o segundo estudo. Nessa altura, já era quase demasiado tarde para voltar a pôr o génio na garrafa. Há milhões de pessoas por aí completamente convencidas de que se sentem melhor quando não comem glúten — e não querem ouvir nada diferente disso. ”A investigação do FODMAP, apesar de ter sido influente e tida em grande conta, envolveu menos de uma centena de pessoas, não as suficientes para comparar com o número de pessoas que abandonaram os alimentos com glúten. Vários grupos têm tentado repetir esses resultados. Mas esses estudos levam tempo. Actualmente, não há análises ao sangue, biópsias, marcadores genéticos ou anticorpos que possam confirmar um diagnóstico de sensibilidade ao glúten sem doença celíaca. Existiram alguns estudos sugerindo que pessoas sem doença celíaca têm razões para eliminar o glúten da sua alimentação. Mas a maior parte dos dados são pouco claros ou apenas preliminares. Raramente os médicos diagnosticam sensibilidade ao glúten sem doença celíaca e muitos não acreditam sequer que exista. Poucas pessoas se deixaram deter pela falta de provas. “Toda a gente está a tentar perceber o que se está a passar, mas ninguém na medicina, pelo menos não no meu campo, acha que isto compete com o número de pessoas que dizem que se sentem melhor por terem retirado o glúten da sua alimentação”, afirma Murray. “É difícil dar um número para estas coisas, mas diria que pelo menos 70% disto é moda ou desejo. Simplesmente, não há nada directamente relacionado com o glúten que esteja a afectar estas pessoas. ”Dan Barber, chef e co-proprietário dos restaurantes Blue Hill, em Manhattan e em Pocantico Hills, sugeriu-me que visitasse Stephen Jones, um geneticista molecular e director do laboratório. Barber, no seu livro mais recente, intitulado The Third Plate (o terceiro prato), descreve Jones como um salvador do trigo tradicional num mundo que transformou a maior parte das culturas em bens industriais transaccionáveis. Eu estava mais ansioso por saber o que ele tinha a dizer sobre as implicações de se acrescentar glúten extra à massa do pão, uma prática que se tornou rotineira nas padarias industriais. Jones, um homem bem constituído com modos simples, passou os últimos 25 anos a tentar perceber qual a melhor forma de fazer um pão. A quantidade de glúten acrescentado ao pão de fabrico industrial não pára de aumentar, e Jones tornou-se cada vez mais interessado em saber se esse glúten suplementar poderá ser responsável, pelo menos em parte, pelos distúrbios gastrointestinais de que tanta gente se queixa. “O meu doutoramento foi sobre a genética do volume de um pão — olhar para os cromossomas e relacioná-los com a força da massa do pão”, diz Jones, ao cumprimentar-me à entrada do centro de investigação. O aroma convidativo, ainda que incongruente, do pão acabado de fazer enche o edifício. O seu laboratório é único; poucas padarias têm farinógrafos Brabender, que Jones e a equipa usam na pesquisa pelo equilíbrio ideal de glúten e água numa massa, e para medir a força da farinha. Nem tão-pouco existem laboratórios com um forno de cozer Matador, que consegue fazer 12 pães de forma de uma só vez, fazendo circular o ar uniformemente, a temperaturas suficientemente quentes para garantir um pão volumoso com uma crosta o mais forte possível. Há milhões de pessoas por aí completamente convencidas de que se sentem melhor quando não comem glúten — e não querem ouvir nada diferente dissoApesar de todos os utensílios de alta tecnologia no Laboratório do Pão, a operação é sem dúvida antiquada, dependendo de moinhos de pedra de um tipo que não se usa há mais de cem anos, e da filosofia de que tudo aquilo que é necessário para fazer um pão integral verdadeiro e delicioso é tempo, talento, farinha, uma pitada de sal e muita água. Existem fundamentalmente duas formas de transformar a farinha em pão. A primeira é a que foi feita durante a maior parte da história humana: deixar a farinha absorver o máximo possível de água e dar-lhe tempo para fermentar, um processo que permite à levedura e às bactérias activarem a massa. Ao amassar, ligam-se as duas proteínas que formam o glúten. Até finais do século XIX, quando rolos de aço e moinhos industriais começaram a ser usados, o trigo era moído em pedras, um processo lento e impreciso. Já o aço era rápido, eficaz e de fácil manutenção, e permitia aos moleiros separar o gérmen do farelo do núcleo do trigo e depois processar rapidamente o endosperma rico em amido. Isto tornou a farinha branca. Ninguém pareceu reparar, ou preocupar-se, que ao deitar fora o resto do grão os padeiros industriais estavam a retirar ao pão as suas vitaminas, as suas fibras e quase todas as suas gorduras saudáveis. O pão branco foi visto como um luxo comportável. Tal como muitos judeus que chegaram da Rússia na viragem do século XX, o meu bisavô nunca tinha visto pão branco, mas quando viu fez imediatamente aquilo que, pelo menos na minha família, foi referido como uma “sanduíche americana”: pegou em dois pedaços do pão preto que sempre tinha comido e colocou cautelosamente uma fatia de pão branco industrial entre eles. Dizem que ficou deliciado. A equipa do Laboratório do Pão, que inclui o paciente e inventivo padeiro Jonathan Bethony, usa grãos integrais, água, sal e fermento. Nada mais. O pão de farinha integral, mesmo quando é bom, é geralmente denso e elástico, e raramente húmido; o pão de Bethony era incrivelmente fofo e leve. Contém apenas o glúten natural formado pelo amassar da farinha. A maioria dos padeiros, mesmo aqueles que jamais se aproximariam de uma máquina de mistura industrial, junta um aditivo chamado glúten vital do trigo para fortalecer a massa e ajudar o pão a levedar. (Geralmente, quanto mais alto for o teor proteico do trigo, mais glúten ele contém. )O glúten vital de trigo é uma forma potente e concentrada do glúten que se encontra naturalmente em todos os pães. Faz-se ao lavar a farinha de trigo com água até se dissolverem os amidos. Os padeiros adicionam o glúten extra para dar à sua massa mais força e elasticidade necessárias para aguentar o processo muitas vezes brutal das misturas comerciais. O glúten vital de trigo aumenta a vida na prateleira e actua como uma ligação; por ser tão versátil, as empresas de alimentação adicionam-no não apenas ao pão mas a massas, snacks, cereais, bolachas de água e sal, e para engrossar centenas de alimentos e até produtos cosméticos. Quimicamente, é semelhante ao glúten normal e não é mais ameaçador. Mas o facto de ser adicionado à proteína que já existe na farinha preocupa Jones. “O glúten vital de trigo é uma muleta”, diz. “Trata-se apenas de armazenamento e funcionalidade. Nada de sabor. As pessoas agem como se fosse magia. Mas não há magia na comida. ”Jones é um cientista cuidadoso e afirmou mais do que uma vez não ter provas de que uma crescente dependência num único aditivo pode explicar a razão pela qual a doença celíaca se tornou mais comum, ou de tanta gente se queixar de ter problemas com a ingestão do glúten. Mas ele e os colegas têm a certeza de que o glúten vital de trigo faz o pão saber a papa. “Farinha que é cortada e embalada em plástico em menos de três horas — isso não é pão”, afirma. Ele e Bethany Econopouly, uma das suas doutorandas — publicaram recentemente um artigo no Huffington Post no qual argumentam que a definição legal da palavra “pão” perdeu o significado e deveria mudar: “A FDA [organismo que regula os produtos alimentares e medicinais nos EUA] estipula que, para o pão poder ser chamado ‘pão’, tem de ser feito de farinha, fermento e um ingrediente húmido, geralmente água. Quando é usada farinha branqueada, podem ser incluídos na receita químicos como peróxido de acetona, cloro ou peróxido de benzoíla (sim, aquele que se usa para tratar o acne), mascarados sob o termo ‘branqueamento’. Ingredientes opcionais são também permitidos em produtos chamados ‘pão’: gorduras sólidas, adoçantes, soja sem casca, corantes, bromato de potássio. . . e outros fortalecedores (como agentes branqueadores e glúten vital). ”Será que milhões de pessoas poderão simplesmente estar a comer demasiado glúten vital de trigo? Não há dados para responder a essa pergunta, mas Jones não é o único a procurar entender melhor o possível impacto psicológico. Jospeh Murray, da Mayo Clinic, começou a estudar o seu efeito no sistema imunitário. Diz que “este é um componente fundamental do pão que comemos e não sabemos muito sobre ele. É muito importante percebermos o efeito, se é que existe, quando adicionamos glúten extra ao pão”. Paradoxalmente, o consumo crescente de glúten vital de trigo pode ser atribuído, pelo menos em parte, pela procura de produtos mais benéficos para a saúde. Não é possível fabricar, embalar e transportar grandes quantidades de pão integral industrial sem adicionar alguma coisa para fortalecer a massa. (Depois da minha viagem a Seattle, o primeiro pão que vi que se publicitava ter sido feito com farinha 100% integral continha muitos ingredientes. Os primeiros quatro, listados por ordem decrescente de peso e volume, eram farinha de trigo integral, água, glúten de trigo e fibra de trigo. Por outras palavras: glúten, água, mais glúten e glúten fibroso. ) Nos vídeos promocionais do Dave’s Killer Bread, uma marca de pão famosa, o fundador, Dave, fala apaixonadamente das propriedades do glúten. Imagens da fábrica mostram paletes de sacos de 22 quilos de glúten vital de trigo. “Pergunto-me quanto deste glúten adicional pode o nosso corpo digerir”, disse-me Jones quando estive no Laboratório do Pão. “Tem de haver um limite. ”Farinha que é cortada e embalada em plástico em menos de três horas — isso não é pãoNa manhã seguinte, antes de deixar Seattle, passo nos escritórios da Intellectual Ventures, a fábrica de patentes e invenções gerida por Nathan Myhrvold, antigo director de tecnologia da Microsoft. Há muito que Myhrvold é um chef amador sério e tem também sido conselheiro gastronómico do Zagat Survey. Há três anos, publicou Modernist Cuisine: The Art and Science of Cooking, seis volumes e 2400 páginas que rapidamente se tornaram um guia fundamental para chefs em todo o mundo. Desde então, Myhrvold e a sua equipa têm trabalhado num projecto subsequente igualmente ambicioso que para já se chama The Art and Science of Bread. O livro só estará pronto daqui a pelo menos um ano, mas Myhrvold diz que será não só a história abrangente do pão como um guia para o preparar. O chef do projecto, Francisco Migoya, pergunta-me se eu alguma vez comi glúten. Abano a cabeça. Ele coloca uma pequena bola de glúten no micro-ondas e carrega no start. Ao fim de cerca de 20 segundos, o glúten insufla como um balão, ele tira-o, coloca-o cuidadosamente num prato e serve-o. Tem a textura de torresmos. O glúten tem uma longa história culinária e tornou-se um substituto frequente da carne e do tofu. Na Ásia, onde é particularmente popular, é chamado seitan e é frequentemente cozido em vapor, frito ou assado. Naquele dia, Myhrvold não estava na cidade, mas encontrei-me com ele mais tarde. É muito opinativo e adora controvérsia. Dizer-lhe algo como “sem glúten” é como acenar uma bandeira encarnada a um touro. “Quando eu era miúdo, estava sempre a ver os especiais da National Geographic”, conta. “Muitas vezes, viajavam para locais remotos e falavam com xamãs sobre os espíritos maléficos. Era uma altura de verdadeira condescendência; a postura era a de que ‘nós é que sabemos’ e estas pobres gentes são muito nobres, mas acham que há espíritos por toda a parte. É exactamente disto que se trata esta coisa dos sem-glúten. ” Salienta que não se está a referir a pessoas com a doença celíaca, nem questiona que algumas possam ter dificuldades em digerir o glúten. “Para a maioria das pessoas, isto não é diferente de dizer: ‘Oh, meu Deus, fomos amaldiçoados. ’ Estamos a passar por uma coisa que equivale a um ataque de espíritos maléficos: o glúten vai destruir o seu cérebro, vai provocar-lhe cancro, vai matá-lo. Somos aquelas mesmas pessoas que falam com os xamãs. ”“Descobrir o efeito que uma coisa como o glúten tem na alimentação é complicado”, afirma. “Precisamos de estudos de longo prazo e não haverá uma resposta útil durante anos. Por isso, em vez de dizermos às pessoas para fazerem uma dieta sem glúten, que tal dizer — ‘Olhe, estamos a fazer uma dieta à experiência e podem passar anos até sabermos o efeito que terá’? Quanto a si não sei, mas em vez de dizer ‘coma isto porque lhe fará bem’ eu direi ‘boa sorte’. ”A moda das dietas não é nova nos Estados Unidos; é o que as pessoas fazem em vez de comer refeições equilibradas e nutritivas. Cada nova dieta tem os seus 15 minutos de fama até ser posta de parte pela dieta extraordinária que vem a seguir. Raramente são eficazes durante muito tempo. Alguns especialistas em nutrição afirmam que a preocupação actual com os produtos sem glúten lhes faz lembrar a obsessão nacional pelos alimentos sem gordura de finais dos anos 1980. Os produtos low fat estão frequentemente carregados de açúcar e calorias para compensar a falta de gordura. O mesmo acontece com muitos produtos que são anunciados como “sem glúten”. Apesar de não haver dados científicos que demonstrem que milhões de pessoas se tornaram alérgicas ou intolerantes ao glúten (ou a outras proteínas do trigo), existem provas convincentes e repetidas de que os autodiagnósticos alimentares estão quase sempre errados, particularmente quando se estendem a quase toda a sociedade. Continuamos a sentir-nos mais confortáveis em confiar em boatos e na intuição do que nas estatísticas. Desde a década de 1990, por exemplo, que o glutamato de sódio, ou MSG, tem sido vilipendiado. Mesmo agora é comum ver restaurantes chineses a publicitar a sua comida sem MSG. Os sintomas que o glutamato de sódio supostamente provoca — dores de cabeça e palpitações são os mais citados — foram descritos inicialmente como “síndrome do restaurante chinês” numa carta publicada em 1968 pelo The New England Journal of Medicine. A Internet está cheia de sites sobre as fontes “escondidas” de MSG. No entanto, após décadas de estudo, ainda não há provas de que o glutamato de sódio cause aqueles ou outros sintomas. Isto não deverá ser surpresa, uma vez que não existem diferenças químicas entre os iões de glutamato que aparecem naturalmente no nosso organismo e aqueles que encontramos no MSG que comemos. O MSG não é sequer um aditivo: existe no tomate, parmesão, batatas, cogumelos e muitos outros alimentos. A margarina é uma gordura má. Ainda assim, durante décadas os médicos aconselharam o seu consumo, em vez da manteiga, porque a manteiga está cheia de gordura saturada, que era considerada ainda mais perigosa do que a gordura da margarina. A suposição não foi testada até ao início da década de 1990, quando investigadores da Harvard School of Public Health começaram a analisar os dados do Nurses’ Health Study, que seguiu o estado de saúde de 90 mil enfermeiras durante mais de uma década. Concluiu que as mulheres que comiam quatro colheres de chá de margarina por dia tinham mais 50% de risco de doenças cardíacas do que aquelas que raramente ou nunca a comiam. Mais uma vez, a intuição seguida por tanta gente estava errada. Peter H. R. Green, director do centro da doença celíaca da Escola Médica da Columbia University, e um dos médicos mais importantes da especialidade, afirma que a oposição ao glúten seguiu um padrão semelhante e que prejudica tantas pessoas quanto as que beneficia. “Esta é uma doença sobretudo autodiagnosticada”, disse Green quando fui ao seu consultório, no New York-Presbyterian Hospital. “Na ausência da doença celíaca, os médicos geralmente não dizem às pessoas que elas são sensíveis ao glúten. Este tornou-se um dos problemas mais difíceis que enfrento na minha prática diária. ”E continua. “Recentemente, visitei um executivo reformado de uma empresa internacional. Tinha um life coach para o ajudar, e um dos conselhos que lhe deu foi fazer uma alimentação sem glúten. É o que fazem os podologistas, os quiropatas e até os psicanalistas. ” Pára, levanta-se, abana a cabeça como se estivesse prestes a dizer uma coisa que não devia, depois volta a sentar-se. “Um amigo meu disse-me que a mulher andava num psicanalista por causa da ansiedade e da depressão. E uma das primeiras coisas que ele fez foi receitar-lhe uma dieta sem glúten. Isto está a ficar descontrolado. Estamos a assistir a cada vez mais casos de ortorexia nervosa” — pessoas que progressivamente retiram diferentes alimentos esperando uma melhoria no seu estado de saúde. “Primeiro, livram-se do glúten. Depois do milho. Depois da soja. Depois do tomate. Depois o leite. Ao fim de um tempo, já não têm mais nada para comer — e tornam-se proselitistas. O pior é o que os pais estão a fazer aos filhos. É cruel obrigar uma criança a fazer uma dieta sem glúten sem que isso tenha sido prescrito pelo médico. A capacidade de os pais verem melhorias numa criança que não come glúten é ainda menor do que em si próprios. ”A atracção inicial, e o potencial sucesso, de uma alimentação sem glúten não é difícil de compreender, sobretudo para quem tem problemas de estômago. Evitar alimentos que contêm glúten ajuda a reduzir a ingestão de hidratos de carbono, pão, cerveja e outros produtos alimentares muito calóricos. Quando seguidas à risca, essas restrições ajudam as pessoas a perder peso, ainda mais se usarem produtos como quinoa e lentilhas para substituir os amidos que têm andado a ingerir. Mas eliminar o glúten pode ser complicado, inconveniente e oneroso e há informação que nos diz que as pessoas não o conseguem fazer por muito tempo. A dieta pode até ser pouco saudável. “Muitas vezes as versões sem glúten dos tradicionais alimentos com trigo são na realidade junk-food”, diz Green. E isto é algo que se percebe claramente quando damos uma vista de olhos pela composição de muitos produtos sem glúten. Ingredientes como fécula de batata, farinha de milho, tapioca são muitas vezes usadas para substituir a farinha branca. Mas são na verdade produtos com elevado teor de hidratos de carbono refinado que libertam tanto açúcar no sangue como as comidas que as pessoas andam a tentar evitar. “Os nossos pacientes entraram neste carrossel e deixaram a comunidade médica intrigada com o que se passa por aí”, conclui Green. “Sabe, as pessoas deixam-nos frequentemente amostras de produtos sem glúten no nosso consultório. E sempre que os provo arrependo-me. Fico com azia. Sinto-me nauseado. Afinal, o que está na base da alimentação? Sal, açúcar, gordura e glúten. Se quem nos alimenta retira um, mais não faz do que o substituir por qualquer outro que mantenha o produto atractivo para quem o compra. Se não sofrer de doença celíaca, então estas não são as dietas para si. ”Descobrir o efeito que uma coisa como o glúten tem na alimentação é complicado. Precisamos de estudos de longo prazo e não haverá uma resposta útil durante anosMas deparei-me com uma série de problemas. O primeiro foi técnico: não conseguia fazer o trigo levedar. Tinha decidido logo que só ia fazer pão integral, mas a combinação de grãos que eu usava simplesmente não tinha as proteínas suficientes. Muitas vezes o pão parecia um matzo castanho, por isso comecei a pesquisar na Internet e rapidamente me deparei com a solução: glúten vital de trigo. (“Se quer manter o seu pão 100% integral, o glúten vital de trigo é o seu novo melhor amigo”, lia-se numa mensagem num fórum sobre pão. “Isto é uma farinha de glúten superconcentrado e realmente ajuda a dar às massas com pouco glúten uma consistência melhor. ”) Revelou-se ser verdade. Era como injectar ar num pneu vazio. Umas poucas colheres de sopa misturadas na minha farinha e a massa tornava-se elástica e consistente e parecia um pão normal; o glúten vital de trigo tornou-se a minha varinha mágica. Gradualmente, outro problema surgiu, à medida que cada vez mais amigos diziam: “Obrigado, mas eu deixei de comer glúten. ”Contei a Jonathan Bethony, o pasteleiro do Bread Lab, a minha questão com o glúten. Depois, ele contou-me a dele: “Tornei-me pasteleiro porque achava que era toda uma forma de expressão”, afirmou enquanto amassava um pão para colocar no forno no dia seguinte. “Não parava de ouvir coisas sobre essa história do glúten, de como era tão perigoso, e isso estava mesmo a magoar-me. Comecei a perguntar-me: será que estou a tornar as pessoas doentes? Tornei-me um mensageiro da morte?” Começou a pensar em mudar de profissão. “Lembrei-me de um dia, quando estava a trabalhar numa loja de alimentos saudáveis da moda, na Bay Area”, continuou. “A minha mulher chegou a casa e afirmou: ‘Querido, tenho de te dizer uma coisa. O médico disse-me que sou intolerante ao glúten. Não posso voltar a comer pão’. ” Bethony levanta os olhos da massa. “Aguentei enquanto pude, mas rebentei. Tinha trazido um pão para casa, subi as escadas a correr e lancei-o da varanda como se fosse uma bola de futebol. ” Bethony questionava-se se deveria desistir. Mas um padeiro famoso que vivia perto encorajou-o a continuar. Ensinou-o a fazer a massa apenas com farinha integral e muita água, e a esperar muito tempo para deixar o pão fermentar. Os resultados têm sido sublimes. No final dessa semana, apanhei um avião de volta a Nova Iorque, fui para casa e deitei o meu glúten vital de trigo no lixo. Voltei a fazer o pão integral da forma como é suposto ser feito: água, fermento, farinha e sal. Vou tentar viver sem a minha varinha mágica. Mas certamente que não vou viver sem glúten. Parece-me simplesmente uma tolice. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Esta é uma doença sobretudo autodiagnosticada… Tornou-se um dos problemas mais difíceis que enfrento na minha prática diária
REFERÊNCIAS: