Governo apresenta hoje segundo programa de acção contra Mutilação Genital Feminina
O Governo apresenta hoje o II Programa de Acção para Eliminação da Mutilação Genital Feminina, essencialmente “um programa de continuidade”, mas com “algumas novidades”, segundo a secretária de Estado da Igualdade. (...)

Governo apresenta hoje segundo programa de acção contra Mutilação Genital Feminina
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.033
DATA: 2011-02-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Governo apresenta hoje o II Programa de Acção para Eliminação da Mutilação Genital Feminina, essencialmente “um programa de continuidade”, mas com “algumas novidades”, segundo a secretária de Estado da Igualdade.
TEXTO: A propósito do Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina (MGF), que se assinala anualmente a 6 de Fevereiro, a secretária de Estado Elza Pais, o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Manuel Pizarro, e o secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Domingos Simões Pereira, entre outras personalidades, vão estar esta manhã na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, para apresentar o II Programa de Acção para Eliminação da MGF 2011-2013. Este será sobretudo “um programa de continuidade”, mas com “algumas novidades”, disse à agência Lusa Elza Pais, frisando que é necessário “consolidar a estrutura de referenciação” para sinalizar “eventuais casos” de MGF. A escolha da Maternidade Alfredo da Costa para apresentar o programa de acção não foi um acaso, inserindo-se na sensibilização dos profissionais de saúde, realçou Elza Pais. As linhas de actuação para os profissionais de saúde que atendem mulheres mutiladas ou em risco de o serem estão em elaboração há anos, sem que daí tenha ainda resultado um documento comum. Mas Elza Pais garante que um “sistema de indicadores” sobre a MGF está já “em fase de conclusão” e vai ser “progressivamente” integrado no site da Direção Geral da Saúde. O grupo de trabalho intersectorial sobre a MGF passa também a incluir mais dois ministérios, Justiça e Administração Interna, que se juntam aos da Saúde e da Educação, para que também os profissionais da justiça e da polícia possam saber “como lidar com estas situações”, que representam “uma grave violação de direitos humanos”, frisou a secretária de Estado. A MGF -- uma prática corrente em cerca de 30 países, sobretudo africanos, mas também importada por comunidades imigrantes na Europa -- já afectou mais de 130 milhões de mulheres, segundo a Organização Mundial de Saúde, sendo que outros três milhões estão em risco todos os anos.
REFERÊNCIAS:
Entidades CPLP
Strauss-Kahn declara-se inocente e abre caminho a julgamento
Texto publicado originalmente na secção Mundo do jornal, no dia 07/06/2011A estratégia da defesa já o fazia prever, e o francês Dominique Strauss-Kahn confirmou-o de viva voz. "Inocente", disse o ex-director-geral do FMI (Fundo Monetário Internacional), quando ontem, no Supremo Tribunal de Nova Iorque, foi confrontado com as acusações de crimes sexuais que o levaram à cadeia. A declaração de inocência, feita em inglês, seguiu-se à leitura da acusação pelo juiz Michael Obus e abre caminho a julgamento. (...)

Strauss-Kahn declara-se inocente e abre caminho a julgamento
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2011-07-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Texto publicado originalmente na secção Mundo do jornal, no dia 07/06/2011A estratégia da defesa já o fazia prever, e o francês Dominique Strauss-Kahn confirmou-o de viva voz. "Inocente", disse o ex-director-geral do FMI (Fundo Monetário Internacional), quando ontem, no Supremo Tribunal de Nova Iorque, foi confrontado com as acusações de crimes sexuais que o levaram à cadeia. A declaração de inocência, feita em inglês, seguiu-se à leitura da acusação pelo juiz Michael Obus e abre caminho a julgamento.
TEXTO: A audiência de ontem marca o início do que pode ser um moroso processo legal e um julgamento por um júri, em que Strauss-Kahn incorre numa pena de até 25 anos de prisão por sete acusações que incluem tentativa de violação, abuso sexual e sequestro de uma empregada de hotel. A próxima sessão foi marcada para 18 de Julho, data em que poderá ser marcado o início do julgamento. Até lá, segundo o diário “Le Monde”, as partes deverão trocar documentos e provas. Caso se tivesse declarado culpado, o que seria uma surpresa, face às repetidas declarações de inocência dos seus advogados e do próprio, Strauss-Kahn poderia negociar uma redução da pena. Essa possibilidade mantém-se, mas não parece fazer parte da estratégia da defesa. Na carta de demissão do FMI, que se seguiu à detenção, DSK, como é conhecido em França, rejeitara já "com a maior firmeza" as acusações de crimes sexuais. Aquele que era, até há poucas semanas, um dos homens mais influentes do mundo, chegou ao tribunal de fato e gravata azuis-escuros, de braço dado com a mulher, a jornalista Anne Sinclair. De acordo com a descrição das agências noticiosas, passou por dezenas de repórteres e de trabalhadoras de hotel vestidas com farda de empregada de quarto, que lhe gritaram: "Envergonhe-se". Os protestos, promovidos por uma organização sindical, prolongaram-se durante a audiência e podiam, segundo a AFP, ouvir-se na sala onde decorreu a audiência, no décimo segundo andar do tribunal. "Ela é nossa irmã, nós apoiamo-la", explicou à Reuters Peter Ward, da New York Hotel Workers Union. A audiência de ontem, numa sala repleta de jornalistas, principalmente franceses, durou apenas sete minutos, ainda que Strauss-Kahn tenha permanecido no edifício do tribunal durante cerca de uma hora. Foi a terceira vez desde a detenção, a 14 de Maio, que, acompanhado pelos seus dois advogados, esteve perante o juiz. O antigo homem forte do FMI, de 62 anos, saiu de mão dada com a mulher, de regresso à luxuosa residência do Sul de Manhattan em que está, sob prisão domiciliária, com pulseira electrónica e sob vigilância permanente. No exterior do tribunal, tendo a imprensa como intermediário, os advogados esgrimiram argumentos e deram indícios sobre a sua estratégia. Um dos defensores de DSK, Benjamin Brafman, disse que a declaração de inocência foi "forte e eloquente" e que "vai ficar claro que não há indícios fortes de [que a mulher] que tenha sido forçada" a ter relações sexuais. A afirmação foi vista como uma resposta a um dos advogados da empregada de hotel, Kenneth Thompson, que considerou "absurda" a alusão de que a mulher tivesse mantido relações sexuais de livre vontade. "É uma mulher digna e respeitável", que foi vítima de uma "agressão sexual terrível", declarou. "A vítima deseja que saibam que todo o poder, dinheiro e influência de Dominique Strauss-Kahn não impedirá [que se apure] a verdade sobre o que fez nesse quarto de hotel", disse, segundo a AFP. Caso se concretize o julgamento, a mulher testemunhará contra ele, garantiu. Benjamin Brafman, uma estrela da barra dos tribunais, está, contudo, optimista. "Não posso por agora entrar em detalhes, mas estou confiante, não acho que o senhor Strauss-Kahn seja culpado dos factos que lhe são imputados, e prevejo que será libertado", disse no fim-de-semana à estação televisiva francesa M6. Acusado de ataques sexuais a uma imigrante africana de 32 anos, empregada do luxuoso Hotel Sofitel, em Manhattan, Dominique Strauss-Kahn foi detido pela polícia a bordo de um avião da Air France quando se preparava para deixar Nova Iorque a caminho de Paris. O antigo ministro francês, um dos homens mais influentes do mundo, devido ao cargo no FMI, era considerado um forte candidato à Presidência da República nas eleições do próximo ano.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Uma ré silenciosa no maior julgamento de neonazis da Alemanha
Os crimes da célula de Zwickau deixaram a Alemanha chocada. Mas há quem diga que uma desconfiança latente em relação aos imigrantes continua a marcar a acção da polícia e que nada mudou. O maior julgamento de neonazis da Alemanha e um dos processos judiciais mais importantes no país desde o final da II Guerra Mundial começa hoje em Munique. A principal figura do processo é Beate Zschäpe, 38 anos, a única sobrevivente do grupo auto-intitulado "Nacional-Socialista Clandestino" (NSU). Zschäpe prometeu não quebrar o silêncio que tem mantido desde há ano e meio. No banco dos réus estão ainda quatro cúmplices de uma re... (etc.)

Uma ré silenciosa no maior julgamento de neonazis da Alemanha
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Os crimes da célula de Zwickau deixaram a Alemanha chocada. Mas há quem diga que uma desconfiança latente em relação aos imigrantes continua a marcar a acção da polícia e que nada mudou. O maior julgamento de neonazis da Alemanha e um dos processos judiciais mais importantes no país desde o final da II Guerra Mundial começa hoje em Munique. A principal figura do processo é Beate Zschäpe, 38 anos, a única sobrevivente do grupo auto-intitulado "Nacional-Socialista Clandestino" (NSU). Zschäpe prometeu não quebrar o silêncio que tem mantido desde há ano e meio. No banco dos réus estão ainda quatro cúmplices de uma rede de 129 pessoas que terão ajudado, directa ou indirectamente, o trio do NSU. E a polícia e os serviços de informação interna da Alemanha vão estar de novo a ver escrutinadas as suas falhas na investigação dos crimes. O trio terá levado a cabo uma onda de assassínios entre 2000 e 2007: sete turcos ou alemães de origem turca, um grego, e uma agente da polícia. As autoridades investigaram os assassínios um a um, sem suspeitar de um motivo racista. Muitas vezes, apontaram para possíveis crimes das vítimas, ligações a grupos mafiosos, actividades ilegais que explicassem ajustes de contas. "Sinto que o meu pai foi morto duas vezes", sintetizou Semiya Simsek, filha de Enver Simsek, a primeira vítima. "Parece que os neonazis dispararam contra ele, mas as autoridades alemãs mataram-no uma segunda vez. " A mãe chegou a ser suspeita. "Durante 11 anos, não tivemos o direito de ser vítimas. "Esta foi uma das questões levantadas por estes casos - cuja resolução aconteceu por acaso, em 2011, numa perseguição policial a dois homens que levaram a cabo um assalto, falhado, a um banco, em Eisenach (ex-RDA). A polícia conseguiu estabelecer um cerco à zona de um parque de campismo para onde tinham fugido, e, ao pressentirem que seriam apanhados, os dois morreram num aparente pacto de suicídio. Tratava-se de Uwe Mundlos, então com 38 anos, e Uwe Böhnhardt, 34. Na caravana - à qual tinham pegado fogo - a polícia encontrou uma pistola Ceska, a arma com que tinham sido mortas todas as vítimas, sempre à queima-roupa. E um DVD, pronto a enviar a órgãos de comunicação social, mostrando imagens dos crimes e reivindicando a sua autoria. Pouco depois, Beate Zschäpe terá visto o suicídio nas notícias e incendeia o apartamento em que os três viviam na cidade de Zwickau, também no Leste da Alemanha, e foge. Quatro dias mais tarde, aparece numa esquadra de polícia e diz: "Sou aquela que procuram. "E, desde então, pouco mais disse. Negou os crimes de que é acusada - apesar das provas, desde a arma do crime ao DVD com a reivindicação (em que uma pantera cor-de-rosa aponta os locais do crime, intercalada com imagens das vítimas). "Toda a Alemanha sabe o seu nome, mas ninguém sabem quem é", resumia o diário Die Welt. Sabe-se que Zschäpe, nascida em Jena (então na RDA), foi afectada pelo alto nível de desemprego na região que se seguiu à reunificação da Alemanha. Mudou de apelido várias vezes no primeiro ano de vida - o pai, provavelmente romeno, nunca assumiu a paternidade - e aos investigadores disse que os dois companheiros eram a sua família. Terá sido com eles que começou a sua radicalização e teve ligação romântica com ambos. Descrita como uma rapariga normal, terá sido quem evitou suspeitas sobre o grupo. Explosivos na garagemOs três viviam em clandestinidade desde 1998, quando a polícia descobriu bombas caseiras com 1, 4 quilos de TNT numa garagem alugada por Zschäpe, uma espingarda e um jogo chamado Pogromly (uma versão neonazi do Monopólio) em sua casa, segundo a revista Der Spiegel. Desde então, o grupo viveu de assaltos a bancos (a polícia disse entretanto que lhes poderia imputar uns 15 assaltos) e com relativa impunidade. As autoridades foram fustigadas por uma série de erros. Um dos mais preocupantes terá sido um racismo inculcado que as fez sempre suspeitar primeiro das vítimas e nunca ponderar um motivo racista. Uma frase de um documento interno do estado de Baden-Württemberg de 2007 ficou agora tristemente célebre: o assassino não poderia ser da Europa ocidental. "Porque na nossa cultura a morte de seres humanos é um grande tabu. "Gurcan Daimaguler, advogado que representa algumas das vítimas (77 familiares aparecem como queixosos no processo), diz que na Alemanha "há uma desconfiança em relação à comunidade imigrante". O facto é que a polícia parece ter dificuldade em ver motivações racistas em crimes. Segundo o Ministério do Interior, houve 63 assassínios racistas entre 1990 e 2012. Mas o semanário Die Zeit e o diário Tagesspiegel documentaram pelo menos 152 mortes por criminosos de extrema--direita no mesmo período. Activistas da defesa dos direitos de imigrantes dizem que pouco mudou, mesmo depois de o país acordar, chocado, para a violência deste trio. Biplab Basu, activista de um grupo de ajuda a vítimas de violência racista em Berlim, contou um caso recente à revista Der Spiegel: um jovem negro tinha sido agredido no bairro berlinense de Neukölln. Ao chegar ao local, a primeira coisa que a polícia fez foi algemar o jovem, achando que era ele o criminoso.
REFERÊNCIAS:
Preto no Porto
O racismo pode ser reduzido à irrelevância se formos vigilantes e ativos no seu combate. Ele não vai desaparecer sozinho. (...)

Preto no Porto
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 10 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.16
DATA: 2018-07-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: O racismo pode ser reduzido à irrelevância se formos vigilantes e ativos no seu combate. Ele não vai desaparecer sozinho.
TEXTO: No último livro de Jacinto Lucas Pires, o romance A Gargalhada de Augusto Reis, há um jovem poeta chamado Djalma dos Santos, nascido de mãe cabo-verdiana e pai angolano num dos bairros africanos dos subúrbios de Lisboa, que vai trabalhar para o Porto e que escolhe aí fazer a sua vida. Uma das suas ficcionais antologias de poesia chama-se Preto no Porto. Na subtileza de que é feito o romance, sempre construído em torno de um respeito pelos não-ditos das personagens, ficamos sem saber muito sobre o que teria a dizer aquele Preto no Porto. Mas se o título é evocativo, é porque há nele um comentário implícito a uma coisa que já foi mais rara do que hoje é: ser negro na segunda maior cidade do país. Não é preciso ir mais longe do que os anos 90 para nos lembrarmos como as notícias sobre crime em Lisboa traziam sempre consigo o subentendido racista de serem notícias sobre imigrantes negros ou afrodescendentes em Lisboa. Foi assim que se foi criando uma imagem que teve consequências nos abusos policiais na Cova da Moura, por exemplo. Por detrás dessa imagem estava também um tratamento dúplice em relação ao crime noutras partes do país. Nessa época, por exemplo, o crime no Porto nunca era associado a imigrantes ou afrodescendentes e por isso nunca era alvo do mesmo aproveitamento político ou mediático. Se o crime de portugueses brancos era só crime, o crime de imigrantes ou portugueses negros era notícia e “caso político”. Por detrás disso tudo havia uma fácil constatação: ambas as cidades tinham as vantagens e dificuldades que têm as grandes áreas metropolitanas, mas no Porto não havia o mesmo mosaico humano que havia em Lisboa. Em particular, no Porto havia menos negros que em Lisboa. Só que hoje o Porto é também uma cidade cada vez mais atrativa e diversa: há mais estudantes de todo o mundo, há mais estrangeiros, e há também mais portugueses negros. Por isso o título do livro inventando por Jacinto Lucas Pires para Djalma dos Santos é evocativo. Em Preto no Porto há uma vontade, até um desafio: que se comece a falar mais sobre a experiência de se ser negro em todo o país, incluindo no Porto ou nos Açores (começando por ouvir mais o que têm os nossos concidadãos negros para nos dizer acerca das suas experiências). Estava eu com estes pensamentos quando vejo nas redes sociais um apelo. Uma jovem que se auto-identificava como “preta”, por acaso no Porto, e uma sua amiga de nacionalidade colombiana mas vivendo em Portugal desde criança, tinham sido agredidas com gravidade por um segurança de transportes públicos na noite de São João. Segundo o seu testemunho, para o qual pedia corroboração de outras pessoas que tivessem assistido ao sucedido, o agressor ter-lhes-ia lançado o insulto “pretas de merda” e impedido de entrar no autocarro, tendo acabado por agredir repetidamente uma delas. Sabemos hoje como ficou a cara dessa vítima: a foto do seu rosto cheio de hematomas está em todos os jornais. Sabemos também que a polícia demorou três dias a agir neste caso, e que apenas o fez por pressão exterior. Não foi o primeiro caso de agressões preconceituosas em transportes públicos: em 2014 uma mulher lésbica foi agredida num táxi depois de se despedir da namorada, também no Porto. E não foi, é claro, o primeiro ataque racista no país — e infelizmente poderia ter ocorrido em qualquer outro lugar, de Lisboa à Madeira — mas foi talvez o primeiro caso ocorrido no Porto que atinge esta dimensão de indignação. E a indignação serve para alguma coisa. Para unir as pessoas na solidariedade com as vítimas. Para avançar no caminho de erradicar este tipo de fenómenos no nosso país. Sobre o racismo há dois tipos de coisas que hoje se dizem muito e que, a meu ver, sendo contraditórias, são ambas erradas. A primeira é a de que o racismo é hoje pouco prevalente (é um argumento que agora se usa muito em política: “tantos por cento de pessoas que votaram em partidos racistas não podem ser todas racistas”; bem, todas talvez não sejam, mas nesse caso parece estranho que tantas pessoas não-racistas fossem votar ao engano em partidos racistas). A segunda é que esse racismo supostamente pouco prevalente é, porém, impossível de erradicar: como se houvesse uma “natureza racista” inevitável entre os humanos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ambas as percepções estão erradas. O racismo é ainda hoje mais prevalente do que muita gente está preparada para admitir, até porque o racismo mais evidente como o das agressões físicas e verbais a estas jovens no Porto é apenas um dos obstáculos que os negros em Portugal são obrigados a ultrapassar (o agente imobiliário que diz que a casa que um negro tenta arrendar “já está ocupada” não aparece nas notícias do jornal, mas praticamente todos os negros que conheço ou de quem sou amigo têm histórias destas para contar). Por outro lado, é possível erradicar o racismo ou torná-lo tão irrelevante que ele já não tenha de fazer parte das preocupações quotidianas de quem hoje o vive, como em tempos foi possível erradicar preconceitos tão absurdos quanto a crença de que certas mulheres eram feiticeiras ou de que católicos e protestantes tinham de se massacrar mutuamente na Europa. Quer dizer, ainda há quem acredite em tais coisas e em certos cantos do mundo, mesmo desenvolvido, tais fenómenos duraram até à nossa geração, mas é possível acabar com eles. Com uma condição: o racismo pode ser reduzido à irrelevância se formos vigilantes e ativos no combate ao racismo. Ele não vai desaparecer sozinho. Mas se formos vigilantes, ativos e solidários, perto estará o dia também implícito no título daquele livro imaginário, Preto no Porto: o de que ser negro, e viver no Porto, significa a possibilidade de se ser mais um portuense feliz numa cidade magnífica. Foi essa possibilidade que foi brutalmente retirada a duas jovens negras na noite de São João. E só se agirmos todos — concidadãos, forças policiais, justiça, políticos — é possível fazer com que essa brutalidade não seja mais do que uma injustiça que pode ser corrigida. É com a solidariedade de todos que conseguiremos restituir às vítimas deste ataque e a todas pessoas que poderiam ter estado no lugar delas o sentido da segurança e a felicidade de serem jovens, mulheres e negras no Porto e em todo o país que é delas. O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime humanos ataque mulher negro racismo criança mulheres racista agressor lésbica
O deserto do Sara mata ainda mais migrantes do que o Mediterrâneo
Argélia abandona milhares de pessoas no deserto expulsando-as para o Níger. (...)

O deserto do Sara mata ainda mais migrantes do que o Mediterrâneo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-06-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Argélia abandona milhares de pessoas no deserto expulsando-as para o Níger.
TEXTO: O mar Mediterrâneo tornou-se o símbolo das travessias perigosas, dos barcos apinhados, dos migrantes e refugiados mortos, embora o verdadeiro número nunca se saiba, provas de naufrágios e as suas vítimas davam, por vezes, à costa. A rota é tida como a mais mortífera. Mas há um local em que se estima que morram ainda mais pessoas, a maior parte das vezes sem deixar vestígios: o deserto do Sara. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) e o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) têm vindo a alertar para este fenómeno. “Ainda não temos uma estimativa do número de mortos no deserto” do Sara, declarou há meses o director para a África Ocidental e Central, Richard Danziger, numa conferência em Genebra. Poderão ter morrido no deserto, perdidas, com sede, exaustas e sob um calor de mais de 40 graus, até 30 mil pessoas desde 2014. Sozinhas, com filhos, em pequenos grupos. O que se sabe é através de pessoas que fizeram a viagem e sobreviveram. Algumas, que conseguiram manter os seus telefones, gravaram o que aconteceu para responsabilizar as autoridades. Porque muitas vezes o facto de estas pessoas se encontrarem no meio do nada tem um responsável: as autoridades fronteiriças de países, sobretudo da Argélia. Ju Dennis, da Libéria, filmou a sua deportação com um telefone que conseguiu manter escondido no corpo, conta a agência Associated Press que recolheu uma série de testemunhos. Foi levado num camião junto com dezenas de outros durante horas por quase estradas de areia, e deixado num local chamado “ponto zero”, onde guardas armados lhe indicaram a direcção do Níger – e lhe ordenaram para seguir viagem. Sem água, sem comida, sem orientação. Há relatos de guardas a disparar quando os expulsos não andam suficientemente depressa. São por vezes grupos de centenas de pessoas, mas depressa começam a dividir-se. “Houve pessoas que não aguentaram. Sentaram-se e deixámo-las”, contou pelo seu lado Aliou Kande, senegalês de 18 anos, que fez uma viagem semelhante mas a partir do Mali. Nunca mais as viu. A Argélia não publica dados sobre as expulsões de migrantes. Mas a OIM diz que desde que começou a contar, em Maio de 2017 – quando 135 pessoas foram deixadas perto da fronteira para andar até ao Níger – que os números não param de aumentar. Em Abril deste ano foram 2888. No total deste período, sobreviveram 11. 276 pessoas. “Chegam aos milhares”, comentou Alhoussan Adouwal, responsável da OIM na localidade de Assamaka (Níger), a mais perto da fronteira com a Argélia, encarregado de dar o alerta quando chega um grupo. “A escala das expulsões que estou a ver agora, nunca tinha visto nada semelhante”, disse à agência de notícias norte-americana. “É uma catástrofe”. A OIM e o ACNUR têm equipas a correr o deserto, e por vezes conseguem salvar quem encontram a vaguear no calor. Algumas pessoas vagueiam dias seguidos antes de serem salvas. Muitas outras não aguentam. Por vezes as equipas encontram mortos – em 2013, num caso que chocou o país, durante cinco dias foram sendo encontrado cadáveres. No final eram 92 corpos, incluindo de 33 mulheres e 52 crianças. Alguns estavam em pequenos grupos, outros morreram sozinhos. No Níger, os migrantes também se arriscam a ser abandonados pelos traficantes. “Por vezes são enganados pelos traficantes, que fogem com o seu dinheiro, deixando-os no meio do nada, num país que não conhecem, a tentar ganhar dinheiro para continuar viagem ou voltar a casa”, descrevia Guiseppe Loprete, responsável pelas operações da OIM no Níger, à agência de notícias das Nações Unidas. Um recente combate ao tráfico de pessoas das autoridades do Níger levou a que os traficantes evitem agora parte da rota mais popular, usando desvios e aumentando o perigo. Com a crescente penalização, também os que lucram com a viagem são cada vez mais traficantes também de armas e droga. Dos que se cruzam com as patrulhas das organizações humanitárias, a maioria opta por seguir de autocarro até Arlit, a seis horas numa estrada de areia de Assamaka. Daí vão até Agadez, a cidade do Níger na rota de comércio há gerações, e que está agora no centro de vários tráficos. Em Agadez, quem é resgatado pelas equipas de socorro e faz a viagem de regresso para o seu país (ou a sua terra, muitos são naturais do Níger) transforma-se muitas vezes num porta-voz dos perigos da viagem quando se cruzam com quem chega ali para na viagem para norte. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Daniel, dos Camarões, é um deles. Aos 26 anos saiu do seu país com o irmão gémeo e o tio e sofreu nas mãos dos traficantes entre o Níger e a Líbia, a paragem que se segue ao deserto do Sara. Na gradação de infernos pelos quais é possível passar a Líbia e as torturas dos traficantes está num lugar cimeiro. Depois de lhes contar a sua história, de ser preso e espancado por não ter mas dinheiro para dar aos traficantes, não sabe o que decidem. “Isso é com eles, mas fiz a minha parte ao avisá-los”, conta no site do ACNUR. Na cidade, a Associated Press descreve como todas as segundas-feiras à noite dezenas de carrinhas passam o posto de controlo para a abandonar, cheias de pessoas com uma carga de garrafas de água para enfrentar o Sara, de olhos fixos no que está em frente. A partir dali, só se vê pó.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Marceline Loridan-Ivens (1928-2018): a cineasta que escreveu sobre o que é amar e desejar depois de sobreviver a Auschwitz
Uma mulher de uma força extraordinária, uma cineasta atenta, uma escritora de uma intensidade rara: os elogios sucedem-se nos obituários e testemunhos da imprensa francesa. Marceline Loridan, que enfrentou os horrores dos campos de concentração nazis, começou por se culpar por ter sobrevivido e, depois, viveu para testemunhar. (...)

Marceline Loridan-Ivens (1928-2018): a cineasta que escreveu sobre o que é amar e desejar depois de sobreviver a Auschwitz
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-12-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma mulher de uma força extraordinária, uma cineasta atenta, uma escritora de uma intensidade rara: os elogios sucedem-se nos obituários e testemunhos da imprensa francesa. Marceline Loridan, que enfrentou os horrores dos campos de concentração nazis, começou por se culpar por ter sobrevivido e, depois, viveu para testemunhar.
TEXTO: Chegou a Auschwitz em 1944 e tatuaram-lhe no braço o número 78750. Foi lá que “viu tudo da morte sem nada conhecer do amor”, escreveria mais tarde. E foi essa experiência de sobrevivência nos campos de concentração nazis que marcou todo o seu percurso de 1945 em diante. Um vida de resistência, de denúncia permanente dos horrores do Holocausto e de todas as guerras, uma vida de uma imensa liberdade que agora chegou ao fim. Marceline Loridan-Ivens morreu a 18 de Setembro, em Paris. Tinha 90 anos. A notícia foi avançada à AFP pelo advogado Jean Veil, filho da intelectual e política francesa Simone Veil (1927-2017), uma amiga de longa data que, como ela, sobreviveu a Auschwitz. Escritora e produtora, infatigável e combativa, Marceline Loridan-Ivens teve uma carreira como cineasta que é indissociável daquele que foi o seu segundo marido, o documentarista holandês Joris Ivens (1898-1989), 30 anos mais velho do que ela. Dessa parceria nasceriam projectos como O Paralelo 17 (1968) e Comment Yukong Déplaça les Montagnes, uma série de 12 títulos rodados entre 1972 e 1976. Para fazer o primeiro, o casal viveu durante dois meses de 1968 entre os camponeses de uma pequena aldeia na chamada zona desmilitarizada entre o Vietname do Sul, controlado pelas tropas americanas, e o do Norte, em luta pela independência com o apoio da China, da União Soviética e de outras nações comunistas. Marceline e Joris acompanharam estes habitantes no seu dia-a-dia, passado, em boa parte, nas galerias subterrâneas em que se refugiavam dos bombardeamentos norte-americanos. O segundo, composto pelos tais 12 filmes que, no total, formam um documentário de 12 horas, centra-se na revolução cultural chinesa e valeu-lhes a reprovação da mulher do próprio Mao Tsé-Tung, Jiang Qing, e uma saída apressada do país. “Estive lá, vivi a guerra vietnamita e o horror dos bombardeamentos”, contou a cineasta ao PÚBLICO em 2000, quando esteve no Porto para acompanhar a exibição de O Paralelo 17 e de duas das mais importantes obras de Joris Ivens, Terra de Espanha (1937) e Os 400 Milhões (1939). “Foram meses a madrugar para fugir às bombas e a escapar por um triz à morte”, disse, lembrando que um dos operadores de câmara morreu e que outros, como ela, ficaram feridos. Na mesma entrevista recordou ainda que foi por causa de Terra de Espanha, que viu pouco tempo depois de ser libertada do último campo de concentração onde esteve detida, que se interessou pelo cinema de Ivens. “Quando se volta de um lugar como aquele, em que se viu tamanho horror, em que tantas vezes a morte esteve por um triz, não é fácil encontrar um lugar. Por isso envolvi-me na luta pela libertação dos povos: era uma maneira de fazer qualquer coisa da minha vida. E acabei por partilhar o destino atribulado do meu marido. ”Marceline Loridan-Ivens nasceu Rozenberg em Março de 1928 em Épinal, França, numa família judia oriunda da Polónia. Com a chegada dos nazis ao território francês entrou para as fileiras da resistência e com ela colaborou até que foi presa pela Gestapo, a polícia secreta de Hitler. Com o pai, foi deportada para Auschwitz-Birkenau (Polónia) em 1944, onde viria a encontrar Simone Veil. Transferida primeiro para o campo de Bergen-Belsen (Alemanha), foi libertada em Maio de 1945, quando o exército soviético abriu os portões de Theresienstadt, na actual República Checa, e durante muito tempo teve dificuldade em aceitar que estava entre os que tinham sobrevivido a algo inimaginável. Escreve o Figaro que, depois da guerra, Marceline passou a frequentar a Cinemateca Francesa e a trabalhar para o sociólogo Roland Barthes, que haveria de a apresentar aos dois homens que lhe abriram a porta do cinema – o filósofo Edgar Morin e o antropólogo e cineasta Jean Rouch. A escritora é a mulher que aparece a falar sobre as deportações durante a Segunda Guerra no célebre monólogo da Praça da Concórdia no filme que Morin e Rouch realizaram — Crónica de um Verão (1961) — e que é o verdadeiro manifesto do cinema-vérité, movimento que questionava a capacidade do cinema para captar a realidade. Foi neste filme que, contou ao PÚBLICO, Joris Ivens a viu pela primeira vez. E o impacto, ao que parece, foi grande: “Virou-se para o Jean Rouch e prometeu: ‘Se algum dia me cruzar com esta rapariga, apaixono-me. ’” E assim foi. Com ele partilhou o sexto andar do número 61 da Rue des Saints-Pères, a sua casa nos últimos 40 anos. “Joris aceitou a minha liberdade e eu aceitei a sua", disse ao jornal francês Le Figaro. Marceline, que até à morte usou os apelidos dos seus dois maridos – o engenheiro Francis Loridan, de quem se divorciou, e o cineasta holandês, com quem permaneceu de 1963 até 1989, ano da morte do realizador – dedicou uma parte da sua vida ao cinema e outra à escrita, nunca deixando de dar testemunho da sua experiência nos campos de concentração, fosse nos filmes, nos livros, em festivais e conferências ou nas salas dos liceus. “Quando dou o meu testemunho nas escolas peço que se mostre um filme aos alunos. Para que as crianças vejam do que se trata e não se fiquem só pela linguagem, na abstracção. A imagem tem uma força que a palavra não tem. É preciso testemunhar sempre e é por isso que eu escrevo e faço filmes”, dizia a cineasta, para acrescentar em seguida que nem sempre esta urgência de falar sobre o que acontecera aos judeus na Segunda Guerra Mundial era bem vista, até mesmo por membros da sua família, que preferiam que Marceline tivesse optado pelo silêncio. Mas a escritora e cineasta nunca se calou. Entre as memórias que recuperava com frequência nas suas sessões nos liceus está a imagem das crianças que eram levadas para as câmaras de gás, a quem diziam que tomassem bem conta da sua roupa depois de se despirem para que a pudessem recuperar depois, e a da menina que se recusava a deixar a sua boneca para trás. “Os bebés e os velhos eram enviados [para as câmaras] primeiro”, lembrava muitas vezes aos alunos. Nos últimos anos foi na escrita, no entanto, que Marceline Loridan-Ivens se concentrou. Et tu n’es pas revenu (Grasset, 2015), escrito com a jornalista e romancista Judith Perrignon, é um livro-testemunho que vários críticos consideraram de uma intensidade rara em que a cineasta, uma das últimas sobreviventes de Auschwitz-Birkenau, se dirige ao pai, deportado no mesmo dia que ela e um dos que sucumbiram àquela que foi a mais mortífera rede de campos de concentração nazis. Evocando uma breve nota que o pai conseguira fazer-lhe chegar às mãos em Auschwitz e de que recordava apenas a primeira linha (“Ma chère petite fille”) e a assinatura (“Shloïme”), Marceline disse a Perrignon que estava na altura de lhe responder, conta a ensaísta num texto publicado esta quarta-feira no diário francês Le Monde e em que a ela se refere como “uma filha de Birkenau. Matrícula 78750 no braço”. A Et tu n’es pas revenu seguir-se-ia a sua última obra, também escrita com Judith Perrignon. Em L’amour après (Grasset, 2018), Marceline Loridan-Ivens dedicou-se a um tema-tabu ao falar sobre o que é amar e desejar alguém depois de Auschwitz. E fê-lo à sua maneira – desassombradamente, contando com precisão de que forma o seu corpo se recusava a obedecer àquilo que a sua mente tinha já decidido, e sem deixar de mencionar os nomes dos homens que passaram pela sua cama (da lista dos amantes fazem parte Georges Perec ou Edgar Morin) e as duas vezes que tentou pôr fim à vida (dois dos seus irmãos, Henriette e Michel, suicidaram-se). “Eu não sei render-me, não gosto que me toquem, não gosto de me despir. ”É também nesta derradeira obra, publicada aos 89 anos, que a autora admite que foi nos campos que conquistou “uma certa forma de liberdade” – as palavras são suas, numa entrevista que deu à revista Madame Figaro em Março deste ano – de que nunca mais abdicou: “Esta liberdade construída nos campos perseguiu-me depois. Jamais qualquer pessoa seria capaz de me impor o que quer que fosse. ”L’amour après é um livro confessional e delicado em que o relato de um longo caminho de regresso ao amor e ao desejo é, ao mesmo tempo, o testemunho de um regresso à vida, escrevia em Janeiro deste ano Jérôme Garcin, jornalista e editor de Cultura do semanário francês L’Obs. Quando foi libertada, Marceline tinha 17 anos e um “corpo seco”, lembra nesta última obra. Nos dois anos que passara em trabalhos forçados, sob o olhar dos nazis, nudez fora sinónimo de humilhação, de “violação colectiva”. “O meu corpo de mulher desenhou-se ao mesmo tempo que era condenado. Em Auschwitz. Que fazer dele depois de ter sobrevivido? Seria ele capaz do desejo, do prazer… De amar simplesmente?”, pergunta-se na capa da edição da Grasset esta mulher que, de acordo com os relatos da imprensa francesa, manteve até ao fim os cabelos vermelhos, uma elegância natural e um tom acutilante. Foi na altura do lançamento do livro que contou ao jornal regional Ouest France que cedo começou a ter amantes, em parte para se libertar do controlo da mãe, e que na maioria das vezes foi ela quem os deixou. De muitos guarda cartas e outros objectos numa mala que foi essencial no processo de escrita deste L’amour après. “Quem amei um dia, amo para sempre. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O cineasta português Sérgio Tréfaut, também ele habituado ao documentário, quis homenageá-la e o resultado, ainda que longe da intenção inicial, é Treblinka. “Num dos seus livros ela diz que, mesmo passados 70 anos do final da Segunda Guerra, é como se todos os comboios a levassem a Auschwitz”, disse Tréfaut ao PÚBLICO na altura da estreia do filme. Marceline não esqueceu mas, como escreve esta quarta-feira Judith Perrignon no Monde, também não deixou que a proximidade da morte lhe arrancasse a alegria da vida, a capacidade de resistir, mesmo quando o seu corpo começava a dar conta de que o fim, provavelmente, não estaria longe. No lançamento de Et tu n’es pas revenu em Jerusalém, Marceline deixou de ver. Assim, de repente, de um só golpe, diz Perrignon. No dia seguinte, em vez de ficar sossegada e deprimida por causa da cegueira, quis ir dançar, beber e fumar a um bar de que gostava muito em Telavive. “L’amour après é um hino à liberdade. Ela não tinha idade. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens guerra filha cultura campo concentração filho mulher violação corpo rapariga deportado
As primeiras imagens de Anne Frank por Ari Folman
Nas imagens reveladas pelo israelita Cinemascope podemos ver os bonecos e parte da equipa, assim como a sua versão final em 2D. (...)

As primeiras imagens de Anne Frank por Ari Folman
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nas imagens reveladas pelo israelita Cinemascope podemos ver os bonecos e parte da equipa, assim como a sua versão final em 2D.
TEXTO: A história de Anne Frank, a rapariga que viveu escondida dos nazis num anexo em Amesterdão, já foi várias vezes contada. O seu diário já foi várias vezes adaptado. Mas aos cinemas nunca chegou nada sobre o tema como o filme que Ari Folman agora prepara. A começar pela forma como o cineasta israelita trabalha, numa animação com técnicas stop-motion como aconteceu em Valsa com Bashir (2008), e a acabar na história em si. Aqui a protagonista não é Anne Frank mas Kitty, a sua amiga imaginária. As primeiras imagens do filme já são conhecidas. Ari Folman está de regresso a temas desconcertantes. O cineasta israelita reconta a história, terrores pessoais, através da animação. Já o tinha feito em Valsa com Bashir, no qual relata o inferno colectivo de toda geração de israelitas que viveu de perto os massacres de Sabra e Chatila. Um inferno colectivo que era o seu também. Folman contou a invasão de Israel ao Líbano, em 1982, mergulhando nas suas memórias da época. O filme, que acabou em várias listas dos melhores de 2009, era assumidamente autobiográfico. Agora, o israelita está de volta à biografia e à tragédia com uma história que ainda hoje emociona o mundo, a de Anne Frank, que morreu aos 15 anos num campo de concentração. O filme focar-se-á em Kitty, a amiga imaginária a quem Frank escreve no seu diário. Ari Folman imagina Kitty a descobrir o diário. À medida que o vai lendo a história de Frank é contada. À semelhança do que já aconteceu nos seus últimos filmes, Ari Folman prepara um híbrido de animação e imagem real, contando com isso com cenários e bonecos que são depois filmados em stop-motion. Para a criação dos bonecos, o realizador contou com Andy Gent, que trabalhou, por exemplo, com Wes Anderson em The Grand Budapest Hotel e O Fantástico Senhor Raposo. David Polonsky, com quem Folman trabalhou em Valsa com Bashir é o director de arte e ilustrador. Nas imagens reveladas pelo israelita Cinemascope podemos ver os bonecos e parte da equipa, assim como a sua versão final em 2D. Em 2013, quando anunciou este novo filme, Folman, que é filho de pais judeus sobreviventes do Holocausto, destacou a importância de manter viva a memória de Anne Frank através de novas formas artísticas para se chegar a gerações mais novas. Para fazer o filme, o israelita teve acesso integral e ilimitado aos arquivos do Fundo Anne Frank, criados em 1963 pelo único sobrevivente da família de quatro judeus alemães que se refugiou num anexo em Amesterdão, Otto Frank, e desde então depositados em Basileia. São documentos que permitem fixar o antes e o depois dos acontecimentos narrados no diário publicado postumamente, em 1947, acompanhando a mudança dos Frank para a Holanda e a deportação de Anne, primeiro para Auschwitz e depois para Bergen-Belsen, onde morreu de tifo poucas semanas antes da libertação do campo pelo exército britânico.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave campo concentração filho rapariga deportação
Josef Mengele devorou-se a si próprio
La disparition de Josef Mengele é um brilhante mergulho na intimidade de um monstro nazi, nos seus anos de fuga na América do Sul. Ao entrar no quotidiano, inicialmente ostensivo depois sórdido, do “médico” de Auschwitz, o autor explica como ele escapou à justiça dos homens durante 40 anos mas como foi castigado: devorando-se. (...)

Josef Mengele devorou-se a si próprio
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-12-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: La disparition de Josef Mengele é um brilhante mergulho na intimidade de um monstro nazi, nos seus anos de fuga na América do Sul. Ao entrar no quotidiano, inicialmente ostensivo depois sórdido, do “médico” de Auschwitz, o autor explica como ele escapou à justiça dos homens durante 40 anos mas como foi castigado: devorando-se.
TEXTO: O Anjo da Morte, como lhe chamam, exerceu um fascínio perturbante. Em Auschwitz, mais tarde quando conseguiu fugir e desaparecer e depois da sua morte, quando o mundo descobriu a ignomínia das suas actividades. O doutor Mengele, médico sinistro que inflingiu sem piedade os maiores sofrimentos a milhares de deportados nos campos da morte, em nome da experiência médica e do apuramento da raça ariana, era afinal um miserável e obscuro capitão das SS proveniente da burguesia bávara, cobarde, frio e obsessivo, e que se conseguiu esconder na América do Sul durante tantos anos depois do final da II Guerrra graças à acção conjunta do dinheiro da sua família, das cumplicidades locais, tanto na Baviera como nos países de acolhimento, da solidariedade dos exilados nazis e da complacência de governos como o de Perón na Argentina, mas também do Paraguai ou Brasil. Isso permitiu ao “médico” de Auschwitz viver alguns belos anos nas melhores condições, com estreias de ópera, jantares elegantes e soirées de deboche nos bordéis chiques de Buenos Aires. O nome “Anjo da Morte”, o seu desaparecimento quase sobrenatural, as numerosas lendas que o rodeiam, hipnotizaram as pessoas e anestesiaram percepções. É elevado a encarnação maléfica demoníaca. Ou não. Olivier Guez recusa de forma vibrante esta transfiguração de Mengele, que segundo o autor é um homem como os outros, mais normal do que quereríamos que fosse, tragicamente humano, na verdade, que obedecia às ordens, que construía a sua pequena carreira, vaidoso e indiferente ao sofrimento que o rodeava. Até ao fim viu-se como executor de ordens, obediente e ao serviço da grandeza alemã. O grande interesse do romance de Olivier Guez (porque é um romance de não ficção, ou seja, muito fiel à realidade e abundantemente documentado) é que relata com precisão os protagonistas e os factos da fuga do criminoso de guerra como uma câmara de espionagem: o autor infiltra-se o mais possível perto de Mengele. Este vai meter-se, de forma inexorável, num longo caminho da cruz feito de solidão, de terror, de raiva e paranóia. Uma lenta queda começa nas várias quintas que o aceitaram esconder a troco de somas exorbitantes. Doente e insomne, afunda-se. A sua decadência mental e física, o isolamento e abandono, o seu fim longe do seu país, entregue aos seus demónios em condições materiais sórdidas: tudo isto foi o castigo terrestre, aquele que a justiça dos homens não soube dar-lhe. Mengele acabou por se devorar a si próprio. Na altura em que o mundo ocidental assiste ao ressurgimento dos populismos e à dissolução dos ensinamentos da paz forjados sobre as cinzas de milhões de vítimas da barbárie, Olivier Guez conclui assim a sua obra: “A cada duas ou três gerações, quando a memória se esvai e quando as últimas testemunhas dos massacres precedentes desaparecem, a razão eclipsa-se e os homens recomeçam a espalhar o mal”. Olivier Guez, 43 anos, nascido em Estrasburgo, é escritor, jornalista, ensaista. Co-escreveu o filme “Fritz Bauer, un héros allemand” sobre o procurador que encontrou os traços Adolf Eichmann, o cérebro do Holocausto. Fascinado pelos períodos dos pós-guerras, expõe nesta conversa o seu método, a sua intenção literária. Este livro, de uma atmosfera cirúrgica e que soa como uma premonição, vinda do passado, acaba de receber o Prix Renaudot. Como é que organizou o seu trabalho?Há dez anos que trabalho sobre os pós-guerras, quer seja na Europa, na Alemanha ou na América do Sul, portanto não descobria todas estas questões trabalhando sobre Mengele. Tinha escrito “L’Impossible Retour, une histoire des juifs depuis 1945» [O Regresso Impossível, a história dos judeus desde 1945], onde contava a história dos judeus na Alemanha depois da guerra e, sempre em espelho, a relação dos alemães com o seu passado, seja a nível político ou simbólico, mas também de ponto de vista judicial. De seguida escrevi [com Lars Kraume] o argumento do filme “Fritz Bauer, un héros allemand” [Fritz Bauer, um herói alemão], onde se contava como esse grande procurador tinha colaborado com a Mossad, pois é ele que lhes dá a informação da presença de Eichmann na Argentina. E ao trabalhar na preparação do filme, li muito sobre a Argentina dos anos 50 e nesse momento “cruzei-me” várias vezes com Mengele. Disse a mim próprio que ainda havia alguma coisa para fazer relativamente aos nazis na Argentina. Toda a gente sabe que muitos nazis partiram para a América do Sul, mas não se sabe grande coisa, é pouco nítido. Nem tudo tinha ainda sido dito. Existe uma grande bibliografia, mas aqui não conhecemos muito bem o contexto sul-americano. Pensei que havia uma história para contar. Mengele não foi preso, não foi julgado, e morreu velho em 1979. Então existe este mistério: por que razão nunca foi ele preso? Depois há também todas as histórias que se contava sobre ele (por exemplo, as aldeias de gémeos que teria criado), tudo isso é uma treta. Faltava-me separar o verdadeiro do falso. E depois há a questão mais filosófica: é verdade que ele não foi julgado, mas terá ele sido castigado em algum momento? O que é que a vida lhe reservou? Quem é o “Mengele após Mengele”?Que tom quis dar ao texto? Como classifica o ambiente estilístico do livro?Queria qualquer coisa seca, áspera, tensa, não era necessário que o livro fosse uma zona de conforto para o leitor. Nenhum desvio, nenhuma grande demanda onde o autor se coloque em cena, nada de metáforas, nada de grandes descrições. Realmente qualquer coisa muito seca, como a dissecação de Josef Mengele na América do Sul. Encontrou, na bibliografia e nos relatórios de entrevistas, matéria suficiente para reconstituir com precisão as conversas, os estados de espírito, os acontecimentos do dia-a-dia? Ou teve que entrar no campo da ficção? Não existe diálogo no livro, ou somente discurso indirecto. Não coloquei as personagens a dialogar. Não tinha vontade de as fazer viver dessa maneira. É talvez a minha paixão por Thomas Bernhard [dramaturgo austríaco] que me levou a ter vontade de usar esse tipo de narração. Depois, na bibliografia encontra-se mesmo assim muita coisa. Vou dar-lhe um exemplo. A ligação entre Mengele e Gita Stammer [mulher do casal húngaro que durante vários anos o albergou na sua fazenda no Brasil]. Pelo que pude ler, tiveram uma relação. Onde, quando, como, durante quanto tempo, em que condições, ninguém jamais o saberá. Pelo que a partir do momento em que tenho 95 por cento de certeza que existiu uma ligação confirmada por diversas fontes, aí o romancista apodera-se da matéria e vai “inventar”, entre aspas, as condições dessa ligação. Ou seja, teve mesmo que entrar na ficção…Sim, claro, porque a vida de Mengele na América do Sul é totalmente de romance, a sua comitiva é de romance, a sua família é incrivelmente de romance, e consegui recolher muitas informações. Depois há também uma formatação que é ainda romanesca. Existia já uma quantidade de obras e de estudos “sobre a pista de Mengele”. O que acha que trouxe de novo? A forma de romance permite tapar lacunas ou abrir novas vias?O meu modelo foi “A Sangue-Frio” de Truman Capote, onde, após ter acumulado enorme quantidade de informações, ele escreveu um objecto literário sublime que ninguém contesta que seja literatura. É um romance verídico ou um romance de não-ficção. Foi o que tentei fazer. Um romancista tem mais liberdade do que um historiador ou um ensaísta. Um historiador necessita de uma carta ou um arquivo que confirme cada uma das suas frases. Eu tenho a minha própria objectividade, depois de ter lido imenso, após ter passado tanto tempo com Mengele, tinha a minha própria opinião sobre o seu perfil psicológico, mas tudo isso suportado por factos concretos. A partir do momento em que coloquei Mengele no título, tinha uma responsabilidade directa com os leitores. Senão teria que criar uma personagem de ficção completa ou contar uma outra história. Aí está a vantagem do romancista para desenhar o retrato do criminoso em fuga. Durante toda a segunda parte brasileira Mengele já não é de todo um actor da história, ele esconde-se, e isso fornece um cenário fechado que é uma matéria literária formidável. Você recorre frequentemente ao facto histórico como trama ou objecto dos seus livros. Por quê?Sou obcecado pelos pós-guerras. No plural: 1914-1945 forma um período completo que é o suicídio da Europa. Há 85 milhões de mortos na Europa nesse período. É alucinante. E creio que ainda hoje vivemos nesse após. Estamos talvez na fase 2 ou na fase 3, mas penso que a Europa não consegue recuperar rapidamente de um tal trauma. Basta ver a quantidade de produção literária, cinematográfica, audiovisual, etc. , sobre a guerra e o que se seguiu a ela. Assim, considerando que estamos sempre aí dentro, a fronteira entre a História e o presente é extremamente ténue. E vê-se bem na história de Mengele que ele entra na nossa modernidade. Por exemplo, enquanto ele escuta as suas peças de música clássica no gira-discos no seu terraço – aí está o velho nazi que escuta a sua música clássica –, quando vira as costas e vai embora, os adolescentes vão para lá ouvir Beatles. Eis o encontro com a nossa época. Mengele morreu em 1979, os seus restos mortais são descobertos em 1986, quando estamos já no tempo presente. À escala da História é apenas um grão de areia. Sim, interesso-me pela História, mas não escrevo sobre a Idade Média. Creio que a nossa Europa contemporânea é em larga medida constituída pelo que se passou entre 1914 e 1945. Por que razão pode Mengele ser uma personagem de romance? O tema é delicado. Não se corre o risco de se dissolver o Mengele histórico naquele do romance, de fornecer contornos da verdade tão frágil e cruel, mais nebulosa, menos tangível, tornando-a ficção no tempo de um livro?Desde já, não ficciono o Mengele de Auschwitz. Depois, conto a sua vida na América do Sul à minha maneira mas não atraiçoo a verdade histórica. Em terceiro lugar, invento bastante menos do que tudo aquilo que foi escrito sobre Mengele durante muito tempo. Não é por ter a palavra “romance” por baixo que se transforma numa ficção completa. É uma técnica literária [o romance de não-ficção] para contar uma história verdadeira. Será que os contornos do Mengele de romance são mais fluidos? Não tenho essa ideia, o retrato que faço do homem e da sua cobardia é importante: eu queria mostrar que Mengele era um homem. Detesto quando se apresenta os nazis como marcianos, ou monstros, “o Anjo da Morte”, essas expressões – isso é bastante mais fácil e não é olhar de frente a verdade. E Mengele é um excelente exemplo da mediocridade do mal, que vai ainda mais longe que a banalidade do mal. Era muito importante mostrar quem se escondia por trás dessa personagem do mítico “Anjo da Morte”. Não tenho a impressão de que os seus traços sejam muito mais fluidos, na medida em que respeito a verdade histórica, não faço dele um herói, não há a menor empatia com a personagem, não estou dentro da sua cabeça, ponho-me antes ao lado dele e persigo-o como um detective para mostrar a sua ruína. Diz-se que o «Anjo da Morte» exercia, e talvez ainda exerça, um fascínio sobre o público. Será que o escritor e também investigador que você é também se sentiu fascinado por ele? De que forma o mal pode fascinar o escritor? E o público?Há um mistério Mengele: por que é que ele não foi apanhado e onde é que ele se escondeu durante todos esses anos? O livro responde a isso, existem outros livros, evidentemente, e não tenho a certeza de que muita gente tenha lido as biografias de Mengele publicadas nos anos 80, que são as melhores; digamos então que Mengele se tornou o símbolo da barbárie nazi. Apesar de não ser mais do que um médico entre centenas de médicos, é um simples capitão das SS, não é, por exemplo, um Heydrich [Reinhard Heydrich, conselheiro próximo de Hitler e um dos planificadores do Holocausto]. O que ele fez em Auschwitz enquanto médico é uma traição quádrupla: há as experiências, há a triagem no cais de chegada [dos comboios de prisioneiros], há a falência absoluta das elites alemãs, o horror do que foi feito em nome da Alemanha, e depois há a sua fuga, donde o mito que foi mantido por, entre outros, Simon Wiesenthal [“caçador de nazis”]. Pessoalmente não tenho nenhum fascínio por ele, pelo que não utilizo a expressão “Anjo da Morte” no livro, excepto quando há outras personagens que a usam. Recuso esse fascínio. Trabalhar longas semanas neste contexto pesado teve influência no seu estado mental, e isso alterou-o? Ou, pelo contrário, você trabalhou com o mesmo distanciamento de um cientista (ia dizer de um médico…)?Isso pesou no início, quando ataquei verdadeiramente a sua biografia e o médico nazi nos campos de concentração. A partir do momento em que compreendi como iria contar esta história, a sua derrota, e como este homem era tão pequenino, e talvez o facto de nunca ter sentido a menor empatia com ele, isso permitiu-me sentir-me como um marionetista. O nome de Mengele causa um sentimento de pavor, como uma aranha, ou qualquer coisa infecta nesse nome, naquilo que ele evoca. Mas a sua ruína, e a partir do momento em que compreendi quais eram os seus traços, permitiu-me tornar-me este marionetista. Qual é a sua opinião pessoal, na medida do conhecimento que tem sobre o assunto, sobre o que se descobriu graças a si: a família, o círculo mais íntimo, os amigos, os cúmplices de todo o género, a Argentina, etc. ? A inacreditável facilidade com que todos aceitaram, anulando toda a empatia e toda a compaixão pelas vítimas de Mengele? Primeiro: que é evidente que o nazismo não morreu em 1945. Segundo: que sem dinheiro ele não teria ido muito longe. Terceiro: que, no fundo, ninguém verdadeiramente perseguiu os nazis após a guerra. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O que iria fazer sofrer mais Mengele no fim da sua vida – e o cúmulo da ironia para quem trabalhava sobre genética, filiação, raça – é o seu próprio filho. E também o facto de ter tido como últimas companhias mulheres não-arianas (uma húngara e uma brasileira, ainda por cima ambas pouco submissas). E o facto de ter sido privado do seu trabalho. Acha que Mengele recebeu na América do Sul um castigo pelos seus crimes? Que de alguma forma pagou, como numa roda de karma, pelo mal que infligiu?Estou convencido de que se tivesse sido preso e julgado pelos alemães ele safar-se-ia. Já tinha escapado à incerteza que o roía durante 20 anos. Com os meios da sua família ele teria tido os melhores advogados da Alemanha. Depois, teria adoptado a linha de defesa de Eichmann, “uma ordem é uma ordem, e para além disso eu salvei vidas” (com efeito, ele não enviava directamente toda a gente para as câmaras de gás), e que não passava de um simples capitão. A sua família poderia vê-lo, a sua segunda mulher. . . Penso que ele se teria safado muito melhor se tivesse sido preso pelos alemães. Ele não teria tido que viver com essa paranóia, essa angústia que o engolia todos os dias. Já com os israelitas teria sido diferente. Muito diferente. Eles ter-lhe-iam feito pagar caro, muito caro, num processo como o de Eichmann. Teria certamente sido condenado à morte. Em parte, sim, ele foi castigado. Mengele autodevorou-se. Talvez seja esse o tema do livro. Como Mengele se autodevorou. Corroeu-se, corroeu-se. Sozinho. Porque no final ele era muito pouco procurado. Ele só foi verdadeiramente procurado durante três ou quatro anos. Em 30 anos isso não é nada. Mas nos anos 50 ele persuadiu-se de que por trás de cada palmeira da savana brasileira se escondia um agente da Mossad. E isso constitui uma matéria literária fascinante. O seja?. . . Os ataques de paranóia, de demência? Do monstro que se volta contra si próprio?O espaço fechado. A loucura. É preciso compreender que Mengele não é um aventureiro, é o filho de grande burguês e depois da guerra ambicionava ser professor na universidade. Fui a todo o lado. Descobri uma das fazendas no Brasil, onde ele passou dez anos. A não ser para uma estadia em viagem, você percebe o inferno que isso é para um burguês europeu. É um inferno: a humidade, o calor, os bichos, os mosquitos, as cobras…
REFERÊNCIAS:
Simone, a mulher que fez do sofrimento uma força
Simone Veil não deixou que as feridas do passado a impedissem de reconstruir a sua vida. (...)

Simone, a mulher que fez do sofrimento uma força
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Simone Veil não deixou que as feridas do passado a impedissem de reconstruir a sua vida.
TEXTO: Conheci Simone Veil em Auschwitz-Birkenau no dia 27 de Janeiro de 1995, 50 anos depois da libertação do campo. Era a primeira vez que eu ia ao símbolo maior da indústria de morte nazi e a viagem, organizada pelo Congresso Judaico Europeu, integrava membros de parlamentos nacionais, de governos e do Parlamento Europeu. Entre eles encontrava-se Simone Veil, à época ministra de Estado de França. Era a primeira vez que esta sobrevivente do Holocausto voltava ao local para onde fora deportada pelos nazis a 13 de Abril de 1944. Simone Jacob — era este o seu apelido de solteira — chegou a Auschwitz com a idade de 16 anos, acompanhada pela mãe Yvonne e pela irmã Madeleine. A família fora apanhada pela Gestapo em Nice e levada para o campo de Drancy, perto de Paris, um dos três maiores campos da Europa de reagrupamento dos prisioneiros, antes de serem deportados pelos nazis. O pai e o irmão, Jean, foram enviados para o Forte IX em Kaunas, na Lituânia, de onde nunca regressaram, e Simone, a mãe e a irmã para Auschwitz-Birkenau, onde chegam a 15 de Abril à noite. Seguindo o conselho de um prisioneiro, na selecção inicial, Simone afirma ter 18 anos de forma a evitar ou pelo menos adiar as câmaras de gás. O número da matrícula tatuado no seu braço é 78651 e o trabalho a que é forçada consiste em descarregar pedras de camiões, cavar trincheiras e aplanar o solo. Meses mais tarde, perante a chegada iminente do exército soviético, os alemães obrigam os prisioneiros a abandonarem Auschwitz levando-os no que ficou conhecido como as “Marchas da Morte” até ao campo de Bergen-Belsen, na Alemanha. A sobrelotação deste campo, a falta de higiene e de cuidados médicos provocam uma terrível epidemia de tifo que contamina a mãe e a irmã de Simone: a primeira morre a 15 de Março 1945, e a irmã salva-se por um triz devido à chegada das tropas britânicas a 15 de Abril de 1945. Simone sobrevive e chega a França a 23 de Maio, com a irmã Madeleine. A ela, junta-se a outra irmã Denise que entrara aos 19 anos na Resistência, tendo sido deportada para o campo de Ravensbrück. As três são as únicas sobreviventes de uma família que antes da guerra contava com seis pessoas. Nessa manhã gélida de 27 de Janeiro de 1995, Simone Veil regressava ao campo onde enterrou a adolescência. O seu rosto fechado não revelava nem emoção nem tristeza. Pressionada pelos jornalistas, manteve-se em silêncio a maior parte do dia. Mas no final da tarde, numa cerimónia solene junto do Memorial Internacional de Auschwitz-Birkenau, a tensão daquela jornada acabou por explodir depois das palavras do bispo polaco dissertando sobre os “holocaustos “ que aconteciam pelo mundo fora. . . Era quase noite, o frio intenso e estávamos perto dos antigos crematórios e câmaras de gás. Simone Veil não se conteve: “holocaustos”? Como pode o senhor falar em “holocaustos” no abstracto e no plural, neste dia e neste local onde foram assassinadas mais de um milhão de pessoas, entre as quais centenas de milhares de crianças?Não me lembro da resposta, se resposta houve. Mas ao longo dos anos, e apesar de ter voltado várias vezes a Auschwitz e visitado muitos outros campos de concentração e extermínio, nunca me esqueci daquela tarde no maior e mais sinistro cemitério do mundo em que a ministra de Estado despiu o manto oficial e falou por todos aqueles que nunca conheceram uma sepultura. Simone não deixou que as feridas do passado a impedissem de reconstruir a sua vida. Era jovem, lindíssima e cheia de vida. Casa em 1946 com Antoine Veil e o primeiro dos seus três filhos nasce em 1947. Mas os anos iniciais não foram fáceis: os sobreviventes não eram bem recebidos, poucas eram as pessoas disponíveis para ouvir histórias que lhes lembravam a sua própria passividade ou mesmo colaboração. Numa época em que todos se proclamavam “resistentes”, as vítimas eram estigmatizadas ou ignoradas por “olhares fugidios que nos tornavam transparentes”. Na sua autobiografia, Une Vie, Simone conta que logo a seguir à guerra, numa recepção em homenagem à irmã que fora resistente, a única vez que alguém se dirigiu a ela foi para lhe perguntar se o número que trazia tatuado no braço era o seu número de bengaleiro: “Depois disto fui chorar para a casa de banho”. . . Simone formou-se em Direito, foi ministra da Saúde do Governo de Giscard d’Estaing, presidente do Parlamento Europeu, membro do Conselho Constitucional e da Academia Francesa. Da sua experiencia no inferno nazi ela tirou lições que deram origem aos combates que nortearam a sua vida: contra a discriminação e a humilhação, nomeadamente das mulheres, no qual se inscreve a Lei Veil em 1975 contra a penalização da interrupção voluntária da gravidez, inédita na época em quase todos os países da Europa; a convicção de que o projecto europeu poderia “ser um símbolo da reconciliação franco-alemã e a melhor forma de virar definitivamente a página das guerras mundiais”, convicção que norteou a sua candidatura ao Parlamento Europeu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A memória foi outro dos seus combates: Veil teve um papel fundamental no reconhecimento, sem precedentes, por Jacques Chirac em 1995 da responsabilidade da França na colaboração com o regime nazi. As suas funções como presidente da Fundação da Memória da Shoah foram igualmente decisivas para o reconhecimento nacional dos “Justos”, em 2007. Acima de tudo, Simone Veil soube manter a sua humanidade e a esperança: “Continuo a acreditar que vale sempre a pena lutar. Apesar do que se diz, a Humanidade está hoje bem melhor. . . ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra lei campo concentração mulheres discriminação
As pegadas de um filme a evitar a câmara de gás
É um filme que não (nos) sossega. Mesmo parecendo resolver o dilema de como filmar o horror absoluto. Intimidante e frio: como se só com a frieza do dispositivo - tal como o Sonderkommando Saul se concentra na repetição maquinal dos seus gestos - fosse possível sobreviver por aqui. (...)

As pegadas de um filme a evitar a câmara de gás
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um filme que não (nos) sossega. Mesmo parecendo resolver o dilema de como filmar o horror absoluto. Intimidante e frio: como se só com a frieza do dispositivo - tal como o Sonderkommando Saul se concentra na repetição maquinal dos seus gestos - fosse possível sobreviver por aqui.
TEXTO: De certa maneira já conhecíamos Saul Ausländer, a personagem do Sonderkommando de Auschwitz que está em O Filho de Saul. Chamou-se Abraham Bomba, que não é personagem de ficção e foi Sonderkommando em Treblinka. O cineasta Claude Lanzmann localizou-o em Israel. Barbeiro de profissão, não queria recordar o seu trabalho nas câmaras de gás do campo, onde cortava o cabelo às mulheres antes de elas serem gaseadas. Perante a relutância da memória em iluminar os gestos, Lanzmann orquestrou, com pré-determinação algo cruel, o seguinte: seriam os gestos de Abraham a fazer deflagrar a memória. Alugou espaço e tempo numa barbearia – passou-se na rodagem de Shoah (1985), filme-documento e filme-monumento, toda uma vida na vida do cineasta –, deu a tesoura a Abraham, um “cliente” disponibilizou o cabelo e o realizador começou a fazer as perguntas. “O que é que sentiu na primeira vez que viu todas aquelas mulheres a entrarem nuas?”. Abraham Bomba não é personagem de ficção, foi Sonderkommando em Treblinka. O cineasta Claude Lanzmann localizou-o em Israel. Barbeiro de profissão, reformado, recordou o seu trabalho nas câmaras de gás do campo, onde cortava o cabelo às mulheres antes de elas serem gaseadas. É uma das inspirações para a personagem de SaulAbraham começou a falar. Descreveu e pormenorizou, como se estivesse ausente de si próprio, protegido da emoção: como os cabelos eram cortados com uma ou duas tesouradas e já estava, como é que era a câmara de gás, como é que as mulheres se sentavam. . . Os gestos sucediam-se sobre os cabelos do voluntário, os olhos de Abraham não pousavam, o olhar não se deixava aprisionar, fugia, resistia. “Mas eu perguntei-lhe e não me respondeu: qual foi a sua primeira impressão na primeira vez que viu aquelas mulheres nuas a chegarem com as suas crianças? O que é que sentiu?”. Realização:László Nemes Actor(es):Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs RechnAbraham cedeu finalmente, tomado pela memória, devorado pela emoção. “Digo-lhe uma coisa. Sentir alguma coisa ali. . . era muito difícil sentir alguma coisa, porque trabalhar dia e noite entre mortos, entre corpos, os sentimentos desaparecem, somos mortos. ” (Lanzmann pediria desculpa, mas o pedido era protocolar: a memória colectiva precisava da caça à dor de Abraham Bomba e de todos os outros que supostamente sobreviveram). Estamos todos mortosSaul Ausländer, personagem de O Filho de Saul, Sonderkommando que em Auschwitz aguarda os deportados, que lhes tira as roupas, que espera que eles morram, que remove os cadáveres e lhes tira o ouro dos dentes antes de os arrastar para o crematório, diz o mesmo que Abraham Bomba: “Estamos todos mortos. ” Saul é inspirado em Abraham. László Nemes, cineasta, incorporou os tempos de Abraham, a sua concentração na mecânica dos gestos, a determinação em relação ao fragmento que o obceca e que lhe possibilita desligar-se do insuportável que é o todo, na construção de Saul. Encontrou nessa respiração um dispositivo: o espectador acede a fragmentos, vê o que Saul escolhe ver, apenas o que Saul pode incluir no seu campo de visão se quiser sobreviver, desfoca-se o irrepresentável, o espectador fica com Saul, com os gestos e com a sua obsessão. Que não é nem a solidariedade em relação aos companheiros do Sonderkommando nem em relação às vítimas (“Estamos todos mortos”). É organizar um ritual para uma criança, o filho que diz ter encontrado no campo. É seu filho? Saul concentra-se nisso. Talvez essa loucura seja a possibilidade de algo de humano sobreviver. É como se Nemes tivesse ficcionado a partir do documentário Shoah. Como uma adaptação. Claude Lanzmann aprovou, o que não deixou de causar espanto, tratando-se de um moralizador em relação aos interditos de reconstituição do Holocausto. Pode ser um mito urbano Lanzmann ter abençoado Nemes em Cannes (“Tu és o meu filho. ”) Mas disse, numa entrevista à Télérama, que o cineasta “inventou alguma coisa. E foi suficientemente hábil para não tentar representar o Holocausto. Ele sabia que não podia fazê-lo nem o devia fazer”. Como espectadores, somos “filhos de Shoah”. E da autoridade moral de que Lanzmann se investiu quando, reagindo à série Holocausto (1978) por exemplo, declarou que o horror absoluto é intransmissível, que a ficção é crime, trivializa. Definiu um ponto de equilíbrio entre o dever da memória e o silêncio, demarcou uma zona de inacessibilidade, uma área de que o cinema tinha de se abster sob pena de obscenidade. Em 1961, num texto para o número 120 da revista Cahiers du Cinéma, Jacques Rivette pulverizava Kapo, de Gillo Pontecorvo, vendo no travelling sobre o corpo de Emmanuelle Riva crucificado no arame a impressão digital do grotesco e do voyeurismo de que o cinema é culpado quando julga possível o realismo absoluto sem questionar o gesto. Texto fundador: em 1982, Serge Daney, que o lera aos 17 anos, assumia que passara a ser esse o seu “dogma”, com ele adquirira a sua primeira certeza de futuro crítico cinematográfico. O Filho de Saul é filho dessas restrições, dos dogmas de Shoah – nove horas com a memória, sem imagens de arquivo, só com as vozes dos sobreviventes e com o testemunho silencioso dos espaços – e da interdição do “travelling de Kapo”: O Filho de Saul não faz um “travelling de Kapo”. Pára à entrada das câmaras de gás. É a mais recente etapa de um processo de negociação do cinema, da possibilidade das imagens existirem depois dos campos, a partir dos campos ou rondando os campos, que já originara discussões célebres. Como as que receberam A Lista de Schindler (1993) – Lanzmann e outros não perdoaram a Spielberg ter reconstituído o que ninguém pode reconstituir porque ninguém de lá regressou: a câmara de gás – e A Vida é Bela (Roberto Benigni, 1997), fantasia que reacenderia a discussão sobre a legitimidade de ficcionar, polémica que dividiria Lanzmann e um antigo deportado em Buchenwald, Jorge Semprún (1923-2011), este a defender não só a legitimidade mas a necessidade de ficção para honrar a memória (como argumentou: os depoimentos dos sobreviventes, uma vez que eram memória, já continham, em si, possibilidades de ficção). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nemes faz com toda essa discussão e demarcação de interditos a carapaça de O Filho de Saul, defendendo-se de passos em falso. Leu, filmou. É provável que a certa altura passe a ser isso a alimentar o filme: demonstrar que ele é possível. Mais: é provável que o virtuosismo com que se armou passe a ser o “espectáculo” – intimidante, e a certa altura clínico. Experimenta-se até um perturbante efeito de suspense perante o desafio: como vai O Filho de Saul evitar os passos em falso? Por isso, e mesmo que involuntariamente, este filme é tanto um filho de Shoah como parente do espectáculo de A Lista de Schindler e de A Vida é Bela – há coincidências curiosas, os filmes de Nemes e de Benigni saíram premiados de Cannes, depois do festival ter preparado com cuidados as duas selecções, e a partir daí caminharam para os Óscares (A Vida é Bela venceria, O Filho de Saul está nomeado). Não é estranho, aliás, se se achar as personagens de Saul e de Roberto Benigni (um pai que ficciona, para o olhar do filho, um cenário fantasioso a partir da máquina de morte) coincidentes na obsessão, na loucura, na forma como inventam a sua revolta. Talvez tenha sido essa promessa de superação – conciliar, sem violar a zona do inacessível, Shoah e A Vida é Bela – que Lanzmann intuiu quando decretou que Nemes inventara “alguma coisa” (é claro que Lanzmann também terá passado pelo seu próprio processo pessoal a partir do puritanismo e do rigor iniciais) Uma outra etapa no processo de negociação. . . Talvez. . . E no entanto. . . Há pegadas do cinema por todo o lado em O Filho de Saul. . . O som, que continua o que as imagens não mostram, é sugestão mas é também representação (um dos pontos que repugnaram a crítica americana Manohla Dargis foi a forma como as vítimas, o seu clamor, ficam condenadas a um “borrão” sonoro em fundo). As acções, os gestos, os cenários desfocados tiveram de ser interpretados por actores e figurantes, sobre eles houve ficção e reconstituição – é dos aspectos que o realizador mais tem mantido na zona de segredos, isso da fabricação do que ficou em off. São brechas que podemos forçar, se nos quisermos inquietar, na armardura de um filme importante. Que é um filme que não resolve, que não (nos) sossega mesmo se aparenta ter estabilizado tréguas no irreconciliável. Como se só com a frieza do dispositivo – tal como Saul se concentra na repetição dos gestos alienando-se da dor – fosse possível sobreviver por aqui.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime morte campo concentração filho criança mulheres corpo deportado