A “Campeã da Terra” que está a criar um retiro para criativos em Portugal
Leyla Acaroglu percorre o mundo para demonstrar como o design pode ter um papel importante na sustentabilidade. Subiu ao palco das TED Talks, foi eleita “Champion of the Earth” pelas Nações Unidas em 2016. Agora, a australiana está em Portugal para transformar uma quinta centenária num retiro para empreendedores e criativos. (...)

A “Campeã da Terra” que está a criar um retiro para criativos em Portugal
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Leyla Acaroglu percorre o mundo para demonstrar como o design pode ter um papel importante na sustentabilidade. Subiu ao palco das TED Talks, foi eleita “Champion of the Earth” pelas Nações Unidas em 2016. Agora, a australiana está em Portugal para transformar uma quinta centenária num retiro para empreendedores e criativos.
TEXTO: Encontrar a quinta de Leyla Acaroglu é mais difícil do que antecipámos. Trazemos as indicações pormenorizadas num e-mail mas perdemo-nos assim que entramos no emaranhado de pequenas localidades em redor de Serra, no concelho de Tomar. Uma senhora há-de guiar-nos até Figueira Redonda, onde dois agricultores interrompem os trabalhos na horta para nos indicar a estrada de terra batida até ao que já foi um lagar de azeite. Nada como um GPS à moda antiga. Na fachada do longo edifício esboroado, um azulejo anuncia a propriedade, agora em escombros, sem telhado nem porta: “Lagar de azeite de Manuel da Eira”. Durante anos, era aqui que cada agricultor da região deixava a colheita para ser transformada em líquido dourado. Nas redondezas, ainda há quem se lembre de ver o lagar a funcionar, conta Leyla, enquanto nos mostra os cantos à ruína. Com o sucessivo abandono das terras, a demanda caiu e o lagar fechou há mais de 50 anos. Agora, promete ser a maior empreitada do projecto que a empresária australiana quer criar à beira do Zêzere. “Preciso de um quarto de um milhão de dólares [205 mil euros]”, diz, com ar de quem reconhece o desafio mas não desarma o optimismo e a convicção de que há-de conseguir. Quer transformá-lo num “boutique hotel para criativos”, com dez ou 12 quartos, um café aberto ao público e uma biblioteca com uma cúpula em vidro para se observarem as estrelas. “Depois quero convidar um astrónomo para vir cá e liderar alguns programas. ”Para já, o projecto ganha forma na quinta centenária ao lado do lagar. Enquanto um dos primeiros workshops sobre liderança decorre na sala de trabalho, conversamos com Leyla no terraço com vista para os pomares, as oliveiras, a horta e os animais. Nove galinhas, quatro ovelhas e quatro cabras, que já fomos cumprimentar com pedaços de laranjas. “Este minúsculo rebento vai transformar-se num pepino. Não é incrível?”Apesar de grande parte da carreira de Leyla Acaroglu estar ligada à luta pela sustentabilidade e pela protecção do meio ambiente, a agricultura ainda é um admirável mundo novo para a australiana, que há cerca de quatro anos trocou Melbourne por Nova Iorque. Até vir para Portugal há um ano para criar o CO Project Brain Spa, um “spa cerebral para criativos optimistas”. Isto é, “um lugar onde se pode vir para recarregar os neurónios”. “Para muita gente, o conceito de relaxar é não fazer nada ou ter alguém que faça coisas por ti, como uma massagem ou uma bela refeição. Mas acredito que quando perdes a criatividade, quando estás em burn out ou exausto é, na verdade, a tua mente que está sem energia”, começa por explicar a empresária. De acordo com a investigação que fez na área das ciências cognitivas, o vazio só se desbloqueia com a “quantidade certa de desafios”. “Damos-lhes algo que os desafia da forma certa para que aprendam algo novo, ao mesmo tempo que se sentem profundamente empenhados no processo. ” Daí que a estadia aqui esteja sempre integrada num programa: bootcamps sobre liderança, “campos de férias”, workshops, retiros temáticos ou residências criativas. Há tempo para relaxar na quinta, cozinhar pizzas no forno a lenha, dar um mergulho na barragem de Castelo de Bode, visitar Tomar ou mesmo receber a tal massagem. Mas “o aspecto único” do conceito é que quem vem cá “quer ser activamente energizado criativamente, pensar de forma diferente e ser inspirado pelo contacto com outras pessoas e pela natureza”. Mas recuemos um pouco. Quem é, afinal, a australiana de cabelo curto e energia contagiante que quer revitalizar a criatividade de quem anda a mudar o mundo numa quinta perdida em Portugal? O percurso académico e profissional de Leyla é o reflexo de quem temos à nossa frente: irrequieto e irreverente. “I was always like this, pushing everyone’s buttons. ”Terminou o secundário sem saber que carreira escolher. “Gostava de tudo, menos de matemática”, recorda. Sabia que queria algo criativo e, em conversa, um amigo sugeriu-lhe o curso de design de produto. “Queria fazer escovas de dentes e telecomandos porque me irritavam de tão mal desenhados”, ri-se. Quando chegou às aulas, no entanto, teve duas revelações. Por um lado, que teria de criar intencionalmente objectos que se estragassem, a bem da economia baseada na produção em massa. Por outro, que “tudo na natureza está interligado” e, por isso, “as decisões que tomasse enquanto designer teriam um grande impacto no planeta”. “Aquele momento mudou a direcção da minha vida”, recorda. O professor de engenharia falava-lhes da Teoria de Gaia e, enquanto ela ficou “chocada”, um colega reagiu de uma forma que ela nunca mais esqueceu. Ainda hoje recorda as palavras exactas: “Não sei por que é que te estás a passar, não é como se estes impactos ambientais catastróficos nos fossem afectar ao longo da vida. Para quê preocuparmo-nos?” Fazer com que os outros se preocupem tornou-se um “objectivo de vida”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A rapariga que “sabia zero sobre como o planeta funciona” desistiu de design para estudar sociologia, com um major em sustentabilidade. Aos 25 anos, fundou a primeira empresa, Eco Innovators, que desenvolvia “ferramentas para educação” que interligavam os temas da comunicação, design e sustentabilidade. Regressou ao design industrial para um doutoramento sobre “como provocar mudanças através do design”. E é isso que tenta fazer desde então, criando jogos educativos, dando palestras pelo mundo — a sua TED Talk tem mais de um milhão de visualizações — e na escola online que fundou em Nova Iorque, a UnSchool, que ganha agora uma base fixa em Figueira Redonda. Em 2016, foi eleita “Champion of the Earth” pelas Nações Unidas. Mas porquê escolher Portugal entre todos os países do mundo? “Vim de férias há oito anos e gostei tanto que em vez de três dias fiquei duas semanas”, conta. “Adorei as pessoas, a comida, o café, o vinho. Toda a gente é tão simpática. Há muito positivismo aqui e isso era algo que eu procurava”, enumera. “Há muitas coisas com que nos devemos preocupar em relação ao mundo, mas nem sempre temos tempo para pensar em conjunto e colaborar. ” Muito menos para ficar a olhar a natureza e vê-la actuar. É esse o grande objectivo de Leyla: criar ferramentas que nos levem a criar as coisas materiais de que necessitamos de uma forma que respeite os ciclos do ambiente. Sem desperdícios. E a quinta é o “laboratório vivo de aprendizagem” ideal. Qual é a figura internacional que mais precisa de um spa cerebral? Só posso escolher um? Não queria um político porque é tão óbvio. Pode ser alguém com quem gostava de conviver no meu spa cerebral? Neil Degrasse Tyson! É o astrofísico mais cool do mundo e eu queria conviver com ele e aprender astrofísica. [risos]Nunca tinha trabalhado numa quinta. O que aprendeu desde que chegou? Que as cabras comem tudo. [risos] E que é muito difícil fazer algo crescer. É mesmo preciso ter as condições certas para a vida existir. Vi muitos vídeos no Youtube sobre macieiras porque estas intrigavam-me. Pareciam mortas e de repente, veio a chuva, depois o sol e boom. Quando vou ao mercado e vejo comida barata não consigo compreender, dá muito trabalho criar aqueles produtos. Alguma coisa está errada no sistema. Estamos a comer o futuro. Que outros projectos tem a decorrer neste momento? Estou a trabalhar no [movimento] pós-descartável. E numa iniciativa ligada aos objectivos globais das Nações Unidas em torno das acções quotidianas que podemos adoptar para ter um estilo de vida mais sustentável. E estou a escrever um livro sobre como provocar mudanças sistémicas através do design. Estou a trabalhar nele há três anos e quero muito terminá-lo. Pensava que ter uma quinta em Portugal ia ajudar, mas acabei a gerir uma obra. [risos]
REFERÊNCIAS:
A memória dos arrozais servida num prato
Pedimos a Bruno Carvalho, chef do restaurante Criatura, que apresentasse três dos seus pratos de arroz e recomendasse três vinhos para os acompanhar. Ele fê-lo, partilhando as suas recordações de uma infância passada no meio dos campos de arroz do vale do Pranto. (...)

A memória dos arrozais servida num prato
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pedimos a Bruno Carvalho, chef do restaurante Criatura, que apresentasse três dos seus pratos de arroz e recomendasse três vinhos para os acompanhar. Ele fê-lo, partilhando as suas recordações de uma infância passada no meio dos campos de arroz do vale do Pranto.
TEXTO: Bruno Carvalho cresceu entre os arrozais. As memórias de infância do chef dos restaurantes Suba e Criatura, no Verride Palácio Santa Catarina, em Lisboa, são todas ligadas ao ritmo da vida numa aldeia – Calvino, em Borda do Campo, Figueira da Foz – rodeada de campos de arroz, no vale do rio Pranto. “O arroz acompanhou-me desde a infância”, conta. “Borda do Campo é uma zona onde há essa constante mudança de paisagem, do espelho de água ao verdejante que surge quando o arroz começa a crescer e parece um manto verde, ao dourado de quando as espigas começam a maturar, até ao castanho do restolho depois da apanha. ” Após a colheita, as palhas ficam a secar nos campos e “há uma altura em que as queimam e estamos a olhar para um campo isolado com fogueiras por todo o lado, durante a noite”. Quando era criança, recorda, o cultivo do arroz era ainda muito artesanal, sem a maquinaria que existe hoje. “O terreno era tratado inicialmente com os bois, a sementeira era à mão, os homens levavam um saco com os grãos de arroz que já tinham germinado em água para os semear. ” Os terrenos eram balizados por canas que as pessoas apanhavam nos canaviais em redor e usavam para fazer corredores. Bruno não teria nessa altura mais do que oito anos, mas não esquece essas cenas, a sementeira, depois a colheita, homens e mulheres avançando pelos campos, de foices na mão, juntando molhos que equilibravam com mestria nos carros de bois para que não caíssem pelos esburacados caminhos agrícolas. Para Bruno e os amigos, a parte mais divertida era quando os adultos se juntavam para tirar as espigas do arroz. “Isso era feito numas máquinas antigas, as descascadoras, ainda movidas a correias. ” A palha que saía da máquina era o grande divertimento para os miúdos, que pulavam para cima dos montes, tentando resistir às comichões e aproveitando para brincar antes de ela seguir para os palheiros onde era guardada para alimentação dos animais. Depois de o arroz colhido, era altura de os miúdos irem para as valas em redor dos campos e, armados com armadilhas de pesca, baterem a água para obrigar os peixes a entrar na rede. Outras memórias de Bruno estão ligadas à transformação do arroz. “O meu avô, que fez agora 95 anos, era moleiro e as pessoas levavam-lhe sacos com o arroz ainda com casca para fazer o descasque na mó de granito, movida a água, ou para fazer a farinha. ”Ainda hoje há quem prefira este processo artesanal porque “o arroz mantém mais alguma goma, não há um desgaste do branqueamento tão profundo como no processo industrial, a fricção que a pedra faz entre o granito e a base de cortiça é inferior. ” Esse arroz saído da mó ficava mais opaco, com um ou outro grão por descascar, alguma impureza agarrada. Era por isso que, antes de se cozinhar, deitava-se água sobre ele, fazendo vir ao de cima as impurezas para as separar. Era do arroz, ou das pescas, que vinha o rendimento da maior parte dos habitantes da Borda do Campo. Hoje, apesar de muita gente na região continuar ligada aos arrozais, as coisas são muito diferentes – quem trabalha os campos são máquinas, os tractores preparam os terrenos, a sementeira é feita por avioneta e a separação acontece imediatamente após o corte, arroz para um lado, palha para o outro, esticada em linhas sobre o terreno que vai, mais tarde, ajudar a fertilizar. Além disso, continua Bruno Carvalho, “hoje os italianos estão a comprar 90% da produção de arroz do vale do Pranto”. O carolino, da variedade aríete, tem características próximas (mas não iguais) às do risotto – é um arroz que fica bem caldoso, porque, ao contrário do agulha, por exemplo, que fica solto, tem capacidade para absorver parte do caldo e todo o sabor. Para o chef do Criatura, o do vale do Pranto tem uma característica que lhe agrada muito: “No interior é suave, mas o exterior do grão oferece alguma resistência inicial, o que evita que, ao cozinhar, se desfaça e fique em papa. ” Quando serve, tem o cuidado de ver se o arroz vai colocado num prato mais raso ou num tachinho – a velocidade de absorção do líquido será diferente e é preciso ter isso em conta para que esteja no ponto quando for comido. Os produtores mais pequenos de Calvino e arredores continuam a guardar sacas de arroz para irem cozinhando ao longo do ano e para fazer as especialidades da região, a mais famosa das quais é o arroz de carneiro com hortelã, que até tem uma festa anual a ele dedicada. Há também o arroz de petingas e, claro, o arroz doce, que a avó de Bruno fazia com um chá de flores de laranjeira colhidas por ela. “Como o arroz tem uma goma grande, essa cremosidade sobrepunha-se a tudo e parecia quase um leite-creme. ”Essas memórias, desde as discussões dos produtores sobre a gestão comum da água para os arrozais até às colheradas de arroz doce quente, ainda na panela, que a avó o deixava tirar, tudo isso é parte integrante da forma como Bruno cozinha hoje, mesmo depois de uma carreira internacional que o levou a Nova Iorque, ao Dubai e às Seychelles. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No Criatura e no gastrobar Suba (no topo do Palácio Verride, com uma vista extraordinária sobre Lisboa e o Tejo) faz uma comida onde junta muitas dessas influências, mas onde o arroz continua a ter um lugar muito especial. Tal como tem para a maioria dos portugueses desde que a sua produção foi introduzida, durante o reinado de D. Dinis. Portugal é o país europeu com maior consumo de arroz per capita (cerca de 16 kg por pessoa por ano) embora nos últimos anos se tenha registado uma quebra e o carolino, o tipo mais produzido nos arrozais nacionais, tenha vindo a perder espaço nas despensas, dando muitas vezes lugar ao agulha (que também se produz em Portugal), ao mais exótico basmati ou ainda ao risotto italiano. O que Bruno Carvalho quer recordar ao trabalhar o carolino, dando-lhe destaque na carta, são as razões que fazem dele, desde sempre, o melhor arroz para a cozinha portuguesa. Bruno de Carvalho apresenta três pratos de arroz, dois dos quais, mais tradicionais, estão na carta do restaurante Criatura, enquanto o terceiro, mais criativo, está no gastrobar Suba. No final, sugere três vinhos para os acompanhar. Arroz de cabidela “É uma cabidela tradicional, a única diferença é que geralmente serve-se a galinha em pedaços maiores. Nós aqui, depois de estufar a galinha, desfiamo-la e envolvemos no arroz. No Calvino, se fizesse assim, era considerado quase um herege, mas no restaurante o que queremos é manter o sabor dando-lhe outra apresentação. ”O vinho: “Para este prato sugiro o Baga, que é das nossas castas mais antigas e durante muito tempo foi muito maltratada. Aconselho um Baga do Luís Pato ou Quinta das Bágeiras. ” Arroz de línguas de bacalhau “É um clássico da cozinha portuguesa, que gosto de trabalhar porque nos lembra outros sabores muito tradicionais como a salga do bacalhau. As línguas vêm de uma salmoura, temos que as demolhar, e gosto de as usar com grelos porque estes dão um lado de acidez um pouco diferente. ”O vinho: “Para este prato escolheria um branco mais forte, da Bairrada ou do Dão. Talvez o Quinta do Carvalhais branco”. Arroz de wakami com atum “Este é um prato que vem das influências da minha vida profissional, das ligações que tive à Ásia. Gosto de fazer a ligação ao mar e as algas passam esse sabor a mar, que é essencial. Usamos as algas, o berbibão e o tataki de atum. As algas dão ainda ao arroz o tom de verde. O carolino tem esta capacidade de absorção não só dos sabores mas das cores. ”O vinho: “Lembrei-me logo de um vinho que acho que vai muito bem com o atum. O Frei Gigante, da ilha do Pico, nos Açores”.
REFERÊNCIAS:
The Woman who Left ganha Leão de Ouro do Festival de Veneza
O júri que deu o prémio ao realizador filipino Lav Diaz foi presidido pelo cineasta Sam Mendes. (...)

The Woman who Left ganha Leão de Ouro do Festival de Veneza
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.199
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O júri que deu o prémio ao realizador filipino Lav Diaz foi presidido pelo cineasta Sam Mendes.
TEXTO: Seis meses depois do Urso de Prata em Berlim, por A Lullaby to the Sorrowful Mystery, o “fenómeno” Lav Diaz marca o Festival de Veneza: The Woman who Left recebeu o Leão de Ouro, decisão de um júri presidido pelo cineasta Sam Mendes. De alguma maneira, o Lido reclama aquilo que também é seu, porque foi em 2007 que o filipino foi exposto ao público e à crítica internacionais, com Death in the Land of Encantos exibido na secção Horizontes. Os filmes de Diaz, as longas durações (The Woman who Left até só dura cerca de quatro horas), tornaram-se rapidamente na coqueluche dos festivais. São experiências sobre o espaço da História filipina, e este é também uma experiência no espaço da História do cinema filipino: uma tradição melodramática que teve num cineasta como Lino Brocka (1939-1991) um incandescente cultor. É a história de uma mulher que sai da prisão onde esteve presa durante 30 anos e regressa à vida, ou a uma aparência de vida, porque ficou condenada a habitar, como super-herói sombrio, o mundo dos fantasmas – o lado mais interessante é este negrume fantasmagórico. É considerado o mais acessível do cineasta, mas não está nada isento de auto-indulgências. Mas alguma coisa fez “clic” entre os festivais e Lav Diaz, chegou a vez de Veneza e não há muito que se possa fazer. Dizia-se, curiosamente, que o filipino não seria “coisa” para um júri presidido por Sam Mendes. Afinal, engano. Mendes em conferência de imprensa revelou que houve um “grande” entusiasmo no júri. Mas deve haver algum mal-entendido nisto: no início da cerimónia no Lido, o presidente do júri elogiou o “extraordinário” festival que foi a selecção dos programadores, o que é uma opinião, mas está longe de ser consensual. Por aqui achamos que foi medíocre. Nos três prémios principais, estão um deficiente vai-e-vem narrativo entre níveis de ficção (Grande Prémio do Júri a Nocturnal Animals, de Tom Ford, muito esforçado, com óbvios e feios raccords, e sem chegar lá), uma versão autoritária, académica, de cinema de autor (Paradise, de Andrei Konchalovsky, que recebe o mesmo prémio, Melhor Realizador, que teve, com o muito diferente The Postman’s White Nights, em 2014), e uma próxima next big thing, ou se calhar já o é, filme desafiante, sim, frustrante, também, mas seco e orgulhoso: o mexicano Amat Escalante, por La Region Salvaje, premiado ex-áqueo com Konchalovski – são temperamentos de cineasta tão diferentes que é uma associação esquizofrénica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Um dos piores filmes do concurso, porque se encosta de forma oportunista a uma série de referências (Tarantino, Lynch. . . ) sem articular, recebeu o Prémio Especial do Júri, e logo esse: The Bad Batch, de Lily Amirpour. Emma Stone, por La La Land, de Damien Chazelle, Oscar Martinez, por Il Ciudadano Ilustre, de Gastón Duprat e Mariano Cohn, foram os intérpretes premiados – o discurso de Martinez, obviamente, mais caloroso e emocionado que o discurso cínico e angustiado da sua personagem, um escritor que recebe o Nobel. O prémio do Melhor Argumento foi para Frank Oppenheimer, por Jackie, de Pablo Larraín. Um dos melhores filmes do concurso, Frantz, de François Ozon, recebeu “apenas” o Prémio Marcello Mastroianni para uma jovem actriz emergente: Paula Beer. Um dos melhores filmes do concurso, Une Vie, de Stéphane Brizé, não levou nada do palmarés oficial (os jurados da FIPRESCI, associação da crítica de cinema internacional, não se esqueceram dele). Do maior filme do concurso, o grande e comovente come back de um cineasta, On the Milky Road, de Emir Kusturica, o júri constituído por Sam Mendes (presidente), pela cantora e artista visual Laurie Anderson, pelas actrizes Gemma Arterton, Nina Hoss, Chiara Mastroianni e Zhao Wei, pelos realizadores Joshua Oppenheimer, Lorenzo Vigas, e pelo argumentista Giancarlo de Cataldo, passou ao lado.
REFERÊNCIAS:
Vinhos feitos de mar, de rocha, de areia e de vento
O Centro de Portugal vai do Atlântico até Espanha passando pela serra mais alta do país, a da Estrela, e tem uma enorme diversidade de terroirs. É uma região para descobrir com calma, por entre brancos, tintos, espumantes e algumas surpresas. (...)

Vinhos feitos de mar, de rocha, de areia e de vento
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Centro de Portugal vai do Atlântico até Espanha passando pela serra mais alta do país, a da Estrela, e tem uma enorme diversidade de terroirs. É uma região para descobrir com calma, por entre brancos, tintos, espumantes e algumas surpresas.
TEXTO: Ainda mal entrámos em Óbidos e já Vasco d’Avillez nos está a falar do mar, dos romanos, dos mouros. E de vinho, claro. Começamos a viagem logo aí, com D. Afonso Henriques a arrebanhar tropas para lutarem ao seu lado e a dar-lhes, em troca, “terra boa para a vinha, pela qual pagam 20% de imposto, ou seja, um quinto, daí o nome de quintas”. E, no Sul, onde, mais tarde, as terras podem ser herdadas, passam a chamar-se herdades, continua, entusiasmado, o presidente da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa. Foram os vinhos que nos trouxeram nesta viagem pelo centro de Portugal, mas, em todas as paragens, eles cruzaram-se com a História e com muitas histórias. De mapa aberto sobre uma mesa, Vasco d’Avillez está lançado: “Toda a região de Lisboa tem uma frente atlântica e por aqui, na zona de Peniche e Óbidos, passa a corrente quente do Golfo, que influencia o clima. Por isso, há nevoeiros nocturnos na Primavera e no Verão, que são chamados de rocío. ” As pérolas de água que se depositam nas folhas da videira de madrugada “são melhores que uma rega”. As uvas criam menos açúcar e ganham maior acidez e frescura. Andamos por Óbidos, guiados por Paula Ganhão, da Câmara Municipal, que nos fala do tempo em que a vila era o “porta-moedas das rainhas”, que, no dia do casamento, a recebiam para gerir e, de como, muito mais tarde, o Estado Novo criou o concurso das janelas floridas para que trepadeiras e flores nas janelas escondessem algum desgaste no exterior das casas. Passamos por algumas das muitas livrarias da Vila Literária, a que fica dentro de uma antiga igreja ou a que partilha o espaço com um mercado biológico, e acabamos a tomar uma ginjinha noutra livraria dentro de uma antiga adega, antes de partirmos, guiados por Vasco d’Avillez, para um almoço no restaurante Dom José, no Bombarral, onde provamos o vinho leve, que existe nesta região e cujo teor alcoólico não ultrapassa os 10º. Apesar de ainda não estar tempo de praia, o mar nunca anda muito longe nesta visita à Região de Lisboa. Na Adega Mãe, a 40 quilómetros da capital para Norte, há um barco de onde de vê a vinha. É o Dori 37 (Dory é o nome de um dos vinhos deste produtor) – que pertenceu ao bacalhoeiro Creoula. Era nestes frágeis barcos que os homens que faziam a pesca do bacalhau passavam o dia inteiro sozinhos, até o terem cheio de peixe e poderem voltar ao bacalhoeiro. E está aqui, no meio de uma adega e rodeado de vinha, porque este é um projecto familiar de Ricardo e Bernardo Alves, os dois irmãos à frente da empresa de bacalhau Riberalves, que fizeram assim uma homenagem aos pais – e, sobretudo, à mãe. Mas o mar tem muito mais a ver com esta história – estas são vinhas que estão a apenas oito quilómetros do Atlântico e as brisas que aqui correm trazem o ar salgado até ao vale. A humidade do solo dá vinhos frescos e é excelente para os brancos, o que levou os enólogos (Anselmo Mendes e Diogo Lopes) a optarem por arrancar as castas tintas e apostar nas brancas (os tintos da Adega Mãe são feitos com uvas que crescem do outro lado do vale). A maresia chega até nós também no hotel Areias do Seixo, onde ficamos hospedados, e protegemo-nos dela bebendo um copo de vinho junto à fogueira no exterior, que todas as noites atrai um grupo de hóspedes que por ali fica à conversa com Gonçalo Alves, o proprietário. No interior, espera-nos um menu de degustação criado por Henrique Mouro, chef do Areias do Seixo, onde pratos tradicionais portugueses, como a sopa à fragateira, o cozido à portuguesa ou um choco frito com arroz de ostra conseguem mostrar-se, ao mesmo tempo, familiares e surpreendentes – tal como é surpreendente a carta de vinhos, com uma colecção de Portos e Madeiras, herança de família de Gonçalo. Na noite seguinte, é ainda com Gonçalo que vamos conhecer um dos mais recentes projectos da região, a Quinta da Boa Esperança, onde Artur Gama e Eva Moura Guedes fazem vinhos handcrafted – chamam-lhes assim por serem uvas colhidas à mão e pelo cuidado que põem em tudo, da vindima ao suave desenho dos rótulos, criados por Eva. Paula Fernandes, enóloga da quinta, fala de cada um, explicando como os monocasta – fazem Syrah, Touriga Nacional, Alicante Bouschet, Fernão Pires, Arinto (além da combinação das duas castas, clássica na região) e Sauvignon Blanc – podem ser didácticos para se perceber as características de cada uma e comparar com outras regiões – o Syrah “muito mais especiado do que no Alentejo”, a Touriga “mais fresca do que no Douro”. E assim, conversamos noite dentro, numa sala de jantar na adega, à luz de um candeeiro que Eva decorou com rosas que balançam sobre as nossas cabeças enquanto provamos os vinhos e comemos ervilhas com ovos escalfados. É preciso deixarmos os olhos habituarem-se à escuridão do espaço subterrâneo da adega da Quinta de Lemos, em Silgueiros, próximo de Viseu, para vermos na rocha granítica que se desfaz quando passamos os dedos sinais das raízes das videiras. Mas, sim, lá estão elas, aparentemente frágeis mas capazes de penetrar a pedra para chegar à água. Estamos a 400 metros de altitude, entre as serras da Estrela e do Caramulo, numa zona de microclima, fustigada por chuvadas grandes nos finais de Setembro. No exterior, as formações da mesma rocha, com 300 milhões de anos, despontam por todo o lado, junto à vinha, e até no meio do restaurante Mesa de Lemos – onde o chef Diogo Rocha inicia o menu colocando na mesa um prato com pequenas pedras de granito, vide e gelo que evoca as geadas primaveris da região. Aqui, nesta quinta do empresário têxtil Celso Lemos, um projecto relativamente recente comparado com muitos da região, fazem-se vinhos em condições especiais: 75% da produção de uva é deitada fora para aumentar a qualidade dos frutos que ficam na videira e foram já construídos lagares em pedra, semelhantes aos antigos, para se poder fazer pisa a pé. Dos 23 hectares de vinha da Quinta de Lemos saem vinhos, na sua maioria tintos, com os nomes das mulheres da família, e a ambição de terem grande longevidade. O melhor mesmo é prová-los no Mesa de Lemos, com a comida de Diogo Rocha. Mas o terroir do Dão está longe de ser todo igual. Depois de jantarmos no Mesa de Lemos, dormimos na Casa da Ínsua, a poucas dezenas de quilómetros, em Penalva do Castelo. Estamos noutra realidade, com solos argilosos além dos granítico-arenosos, e um clima continental, marcado pelo calor seco vindo de Espanha. Já não vemos as grandes formações rochosas e aqui são os ventos quentes que sopram as vinhas. “A região do Dão é muito heterogénea”, explica José Matias, enólogo e responsável agrícola da Casa da Ínsua, enquanto nos mostra as vinhas e nos fala da aventura em que o Grupo Visabeira, o proprietário, se lançou ao começar a fazer vinho em Moçambique. Ao lado das vinhas há um pomar onde as macieiras estão em flor e, a dois passos, os românticos jardins francês e inglês deste palácio barroco que pertenceu a Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, capitão-general de Mato Grosso e Cuiabá. Num pequeno lago, um cisne branco lança-se num semi-voo, batendo as asas na água e estilhaçando os reflexos de luz. Logo à frente, na queijaria, faz-se Queijo da Serra da Estrela e os doces caseiros que comemos ao pequeno-almoço. Mas é tempo de partir porque na Casa de Santar espera-nos Osvaldo Amado, o enólogo do grupo Global Wines, para nos contar que a Casa de Santar produz anualmente 1 200 mil quilos de uvas, faz 140 referências de vinhos e sete milhões de garrafas às quais se somam mais dois milhões no Brasil, onde tem, em Pernambuco, o projecto Rio Sol. Para provarmos os vinhos, vamos até ao vizinho Paço dos Cunhas de Santar, enoturismo que pertence também à Global Wines, onde nos espera um almoço preparado pelo chef Henrique Ferreira, durante o qual percorremos as referências mais emblemáticas, Cabriz, Casa de Santar, Paço do Cunhas, descobrimos experiências como o Touriga Nacional branco (um branco feito com uvas tintas) e ficamos a saber que a casta favorita de Osvaldo Amado é o Encruzado. Para o enólogo, o Encruzado “está entre as cinco melhores castas brancas do mundo, com o Arinto, o Chardonnay, o Sauvignon Blanc e o Alvarinho”. Porquê? “É completamente transversal. Faz um vinho tranquilo para todos os dias, um de guarda, um espumante e um colheita tardia. Esta acidez não se encontra em qualquer lado. ”Para falarmos sobre a Bairrada nada melhor do que começar por um encontro com Luís Pato, o enólogo mais carismático da região, conhecido como o Sr. Baga pelo trabalho que tem feito com esta casta com fama de difícil de domar. E encontramo-nos precisamente noutro dos ícones locais, o restaurante Rei dos Leitões, famoso pelo leitão, claro, mas actualmente com uma carta muito mais variada e de grande qualidade – e sobremesas imperdíveis, da pasteleira Lídia Ribeiro. É ao almoço que provamos o primeiro espumante feito sem sulfuroso, através da micro-oxigenação, uma das muitas experiências que Luís Pato gosta de realizar na adega (como o tinto de uvas brancas que fez para um dos netos ou o vinho de sobremesa colheita antecipada que fez para outro ou ainda o vinho laranja, o Laranja da Madalena, que fez para a neta). Na Bairrada há solos arenosos, mas 80% são argilo-calcários, aqueles que a Baga prefere (é uma casta que se dá melhor aqui do que no Dão por ser muito sensível à podridão). “O clima é parecido com o de Bordéus, mas muito melhor porque o mar é mais frio”, diz Luís Pato, e as noites frias entre dias quentes são boas para a vinha. Depois do almoço, passamos pela adega e Luís mostra-nos os fósseis que foram encontrados nas vinhas e que provam que, no Jurássico, esta região esteve debaixo do mar. Para despedida levamos outra experiência: dois Bagas feitos por Luís Pato, um em vinha de pé-franco (como existia antes da filoxera ter atacado as vinhas europeias no século XIX) no solo arenoso e a outra em pé-franco mas em solo argiloso. Antes de deixar a Bairrada, voltamos a encontrarmo-nos com Osvaldo Amado, da Global Wines, que também tem aqui, a poucos quilómetros de Luís Pato, um projecto de enoturismo, a Quinta do Encontro, numa zona de vinha e eucaliptos, a 20 quilómetros do mar, com solos argilo-calcários a poente e arenosos a nascente e uma adega que desce em espiral até aos frescos subterrâneos onde o vinho fermenta. É entre as ruínas do castelo da Aldeia Histórica de Castelo Rodrigo, numa posição privilegiada para vermos tudo ao nosso redor, que Ana Berliner, a proprietária da Casa da Cisterna, onde ficaremos instalados, e a enóloga Jenny Silva, da Adega Cooperativa de Figueira de Castelo Rodrigo, nos recebem e descrevem o que vemos: estamos entre os rios Douro e Côa, no planalto da Meseta Ibérica, numa terra onde os monges de Cister começaram a fazer vinho logo no século XII. O planalto que se estende à nossa frente está a 600/700 metros de altitude o que, em conjunto com os solos muito marcados pelo quartzo e o xisto mas com bolsas de granito, permite fazer os chamados vinhos de altitude, com “uma acidez e frescura muito natural”. Os Verões aqui são muito quentes e secos e os Invernos extremamente rigorosos e esta dureza beneficia as uvas. A zona escarpada agrada também às aves de rapina (há uma colónia de abutres no Côa), que Ana estuda, no meio de muitas outras actividades. Jenny, por seu lado, dedica-se ao vinho e, nos últimos anos, em particular, ao estudo de um fenómeno que acontece apenas em algumas zonas do mundo e que dá origem a um vinho que neste momento só pode ser produzido pela Adega Cooperativa de Figueira de Castelo Rodrigo: o Pinking. Trata-se de um vinho branco, feito com a casta Síria, uma das mais características da região, com um bonito tom rosado natural que, até há pouco tempo, era atribuído a um defeito das uvas. O que Jenny provou foi que esse tom, que surge no final da maturação, não é um defeito, mas sim o resultado de uma mutação genética que fez com que mantivesse antocianinas das uvas tintas. O Pinking não é rosé porque é de uvas brancas, mas tem um delicado tom de rosa que é natural e que deixou numa casta branca uma memória do tempo em que terá sido tinta. Desde que a descoberta de Jenny foi conhecida, a Adega de Figueira de Castelo Rodrigo é a única que tem, para já, autorização para fazer este vinho, mas a enóloga tem sido contactada por produtores de outros países, como Itália, onde, em regiões específicas e com determinadas castas, o fenómeno também acontece. O que se fazia até agora era correcção de cor, mas quando o Pinking começou a ser engarrafado aqui, algumas pessoas mais velhas disseram a Jenny: “Quando era miúdo, o vinho era desta cor”. É com o Pinking que começamos a refeição, mas depois passamos para outro dos vinhos famosos da região, o Beyra, do enólogo Rui Roboredo Madeira, que se encantou com a ideia de trabalhar a partir de vinhas em altitude nestes solos de xisto, granito e quartzo e neste clima em que a alternância entre noites frescas e dias quentes resulta em vinhos com maior frescura e acidez. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E terminamos com uma sobremesa de doce de ovos com amêndoa, acompanhada por um espumante da Adega de Figueira de Castelo Rodrigo, feito com as uvas Síria e Malvasia Fina, enquanto olhamos o vale e, ao longe, as terras onde os monges de Cister faziam o seu vinho há muitos séculos atrás, deixando aqui uma herança que, até hoje, os homens não esquecem. E, como prova esta história, o vinho também não. A Fugas viajou a convite do Turismo do CentroAreias do Seixo Praceta do Atlântico, Mexilhoeira, Póvoa de Penafirme A-Dos-Cunhados Telf: 261936355 SiteAdega Mãe Estrada Municipal 554, Ventosa, Torres Vedras Visitas todos os dias das 9h30 às 18h30 (domingos das 11h às 13h e das 14h às 18h). Telf: 261950105 E-mailQuinta da Boa Esperança Rua da Moita – Zibreira, Carvoeira Telf: 261742044 E-mail SiteQuinta de Lemos Restaurante Mesa de Lemos Passos de Silgueiros, Silgueiros, Viseu Telf: 961158503 Site E-mailHotel Parador Casa da Ínsua Penalva do Castelo Telf: 232420000 E-mailPaço dos Cunhas de Santar Largo do Paço 28, Santar Telf: 232945452Adega Luís Pato Rua da Quinta Nova Amoreira da Gândara, Anadia Telf: 231596432 Site E-mail Visitas: de 2ª a domingo das 9h às 12h e das 14h às 17h (marcação prévia)Rei dos Leitões EN1, Av. da Restauração nº 17 Mealhada Telf: 231202093 Fecha à 4ªCasa da Cisterna Rua da Cadeia nº 7 e Largo da Igreja Castelo Rodrigo E-mail Telf: 271313515 ou 917618122
REFERÊNCIAS:
Nesta aldeia o tempo é outra coisa e o barro é para todos
Na Lousã há uma aldeia de xisto que esteve abandonada e hoje tem alojamento e uma escola de artes aberta a todos. Na Cerdeira os dias passam mais devagar e ganha-se a serra, o vale. Para os que gostam de experimentar, há cursos de cerâmica, desenho e muito mais. Tudo para nos ligar à terra, à água, aos carvalhos e castanheiros. (...)

Nesta aldeia o tempo é outra coisa e o barro é para todos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na Lousã há uma aldeia de xisto que esteve abandonada e hoje tem alojamento e uma escola de artes aberta a todos. Na Cerdeira os dias passam mais devagar e ganha-se a serra, o vale. Para os que gostam de experimentar, há cursos de cerâmica, desenho e muito mais. Tudo para nos ligar à terra, à água, aos carvalhos e castanheiros.
TEXTO: Ainda de longe, sob a chuva cerrada, é difícil perceber que tamanho tem. Do fim da estrada, no largo onde se deixam os carros e onde há uma capela muito pequenina com as paredes rebocadas, coisa pouco comum para aqueles lados, é impossível dizer quantas casas terá. À medida que se caminha, começa a ouvir-se a água do riacho, de cascatas vigorosas nesta época do ano, e o canto dos pássaros. Se estivéssemos na chamada época da brama (entre Setembro e Novembro), período de acasalamento do maior mamífero da serra da Lousã, talvez pudéssemos juntar os veados a esta banda sonora de boas-vindas a uma das mais bem preservadas aldeias de xisto da região. Rodeada por um emaranhado de caminhos que apetece percorrer, plantada na encosta como se sempre ali tivesse estado, a Cerdeira passou dez anos abandonada, antes de renascer graças ao impulso de dois casais — o dos alemães Kerstin Thomas e Bernard Langer e o dos portugueses Natália e José Serra —, e tem hoje um projecto de turismo rural que inclui uma escola de artes voltada para as práticas manuais como a olaria, a pintura em cerâmica e a tecelagem (Cerdeira, Arts & Crafts School). “O que queremos é que as pessoas venham até aqui para se desligar do mundo que conhecem e para viverem mais perto esta natureza que é tão inspiradora e que, por isso mesmo, pode fazer com que lhes apeteça experimentar o trabalho do barro ou da madeira. Aqui o tempo é outra coisa”, diz Kerstin Thomas, a escultora alemã de 54 anos que descobriu a Cerdeira aos 24, quando estudava em Coimbra e quando tudo o que queria, lembra à Fugas, era um espaço para o seu atelier. Acabou por encontrar um para viver, e isso foi há já 30 anos. Desde então, foi apresentando a aldeia aos amigos e alguns deles estão hoje a ajudar a recuperá-la. “Quando chegámos, a maioria das casas estava muito degradada, não havia saneamento, nem electricidade, a rua que atravessa a aldeia não estava arranjada. Hoje tudo isso está mudado. ” Na parte de cima da Cerdeira Kerstin encontrou o local ideal para montar o seu estúdio e bastou isso para que desse início a um projecto que levou à recuperação de metade das casas. As contas são simples: “A aldeia tem 30 casas, todas em xisto, e nós recuperámos 16, mas nem todas são para ficar — temos a biblioteca, o café, a galeria, a oficina, a casa das artes…”Onde dormirCerdeira Village Lugar da Cerdeira, Lousã Tel. : 239160799/911789605 Site Nove casas de xisto recuperadas que no conjunto recebem até 32 pessoas. A capacidade das casas varia e os preços começam nos 70 euros. Onde comerSabores da Aldeia Aldeia do Candal Tel. : 239 991 393Ti Lena Aldeia do Talasnal Tel. : 911 932 948Casa Velha Praça Sá Carneiro, 14, Lousã Tel. : 239 991 555Nove delas estão preparadas para alojamento e foram recuperadas respeitando técnicas tradicionais e usando materiais locais, tornando a construção tão sustentável quanto possível. Foi a Casa das Artes, que hoje serve de sala de exposições e de trabalho para grupos maiores (a aldeia é também muito usada para “retiros” de empresa) e que tem uma vista soberba sobre o vale, o “balão de ensaio” para o projecto de alojamento que arrancou em 2012 com duas casas. “Para nós era muito importante que as casas fossem muito eficientes em termos energéticos, mas que mantivessem não só a traça arquitectónica, como métodos de construção da região. ” Usar materiais e mão-de-obra locais, estabelecendo modelos para intervenções semelhantes na serra, também estava entre os objectivos. A arte, essa, seria sempre um factor diferenciador. As nove casas que recebem com todo o conforto os hóspedes — o projecto deverá ficar por aqui no que ao alojamento diz respeito — têm intervenções de escultores ou ceramistas. É assim na Casa do Sol, que deve o nome ao facto de ser a primeira a recebê-lo (quando ele se deixa ver) pela manhã, com as portas e janelas de João Gomes; na da Azeitona, em que as criações em têxtil de Vânia Kosta homenageiam animais ligados à aldeia (é lá que ficamos a saber que Branquinha é nome de cadela e que o Azeitona era um gato); na das Vizinhas, em que as esculturas em madeira da própria Kerstin Thomas sublinham a importância das relações porta a porta nestas pequenas comunidades serranas, durante décadas muito isoladas; ou na das Estórias, com as peças de Carmina Anastácio e de Martim Santa Rita a recordarem o papel da oralidade nas noites rigorosas de Inverno, à lareira, ou nas tardes de Verão, à sombra, quando o calor não deixava trabalhar. “As pessoas que vêm não querem só dormir num lugar bonito. Querem mais e nós queremos dar-lhes mais. ”A maioria das 27 povoações abrangidas pela Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto (Adxtur), que envolve também a Cerdeira, não chegou a ser abandonada, lembra Thomas: “Na Cerdeira foi diferente. As pessoas começaram a sair nos anos 1920, mais intensamente depois, na década de 60, até isto ficar vazio. Iam para Lisboa, trabalhar na estiva, ou para os Estados Unidos. ” A escultora chegou a conhecer alguns dos antigos moradores e ainda hoje mantém contacto com os seus descendentes. Os que foram para a capital ficaram quase todos a morar no mesmo bairro. “Repetiam esta comunidade, mas noutro lugar, noutra rua. ”O que fazerPara além dos percursos pedestres e de BTT disponíveis, assim como nove roteiros pela região Centro, na Cerdeira encontra uma oferta variada de cursos e workshops. Há também um festival anual — Elementos à Solta — que transforma a aldeia numa galeria. Tel. : 911789603 SiteComprarNa loja do Candal há mel, vinho, queijos, enchidos e artesanato da região. Estrada Nacional 236 Tel. : 239 991 393Tendo ficado deserta, continua, a Cerdeira perdeu a riqueza humana e tudo o que ela traz: “Não temos os campos cultivados, aqui não se produz azeite, não se faz vinho, nem pão, nem chouriços… As histórias que conhecemos sobre este lugar foram aquelas que conseguimos encontrar fora daqui. Tínhamos à partida uma grande riqueza arquitectónica, é verdade, mas faltavam as pessoas. ” Hoje já não faltam — oito famílias estão a recuperar a aldeia e os planos de alguns dos seus membros passam por viver ali todo o ano. Na aldeia não há televisão, o uso do telemóvel depende do operador que se tiver (só um tem cobertura de rede) e a Internet está limitada ao Café da Videira, onde são servidos os pequenos-almoços e onde se pode ir ler um jornal ou tomar uma bebida a meio da tarde. É também lá que está a chave da biblioteca, um espaço pequeno, mas muito acolhedor, perfeito para trabalhar quando é mesmo preciso roubar algum tempo aos dias ali passados em família ou com amigos. No café estão também disponíveis nove roteiros para descobrir a região, com paragem em locais de interesse histórico e natural, assim como muitos percursos que se podem fazer a pé ou de bicicleta e que levam a aldeias vizinhas, obrigando a serra a revelar-se, devagarinho. Por baixo do Videira fica uma pequena loja, onde se podem comprar peças da autoria de alguns dos artistas que têm vindo a participar no festival que ali se realiza anualmente desde 2006 — chama-se Elementos à Solta e reúne uns 15 criadores nacionais e estrangeiros, que se desdobram em exposições, palestras e ateliers — e que são hoje convidados para dar formação na escola da aldeia (Cerdeira, Arts & Crafts School). Desde o ano passado que Kerstin Thomas organiza na Cerdeira, de forma mais estruturada, cursos de cerâmica ou de desenho que ocupam vários dias, semanas criativas que misturam várias artes e workshops temáticos de três horas em que os participantes podem experimentar a tinturaria natural, a fiação de lã, a talha em madeira de castanho, a construção de casas de xisto em miniatura ou, simplesmente, aprender a preparar uma chanfana, prato típico que é servido em muitos dos restaurantes da região. “Criar este centro na aldeia não tem só a ver com a nossa formação artística, tem a ver com garantir o futuro. Para continuar, a aldeia precisa de ter algo mais do que as infra-estruturas básicas que já tem. A arte dá-lhe uma razão para sobreviver para além da nossa paixão por ela. ”Não se trata apenas de recuperar o passado quando se trabalha em barro ou no tear, defende, trata-se de viver bem o presente e de imaginar o que há-de vir. “Diz o World Craft Council [organização não governamental criada em 1964 e ligada à UNESCO que se destina a promover o desenvolvimento a partir das actividades relacionadas com as artes e ofícios] que o futuro é feito à mão – eu acredito nisso. ”Renato Costa e Silva é ceramista e escultor e um dos formadores com que a escola da Cerdeira trabalha. Deu, com Kerstin Thomas, o curso de iniciação à cerâmica que a Fugas acompanhou em meados de Março. Perante um grupo pequeno de “artistas não profissionais” — dos três formandos, dois eram da área da saúde e o outro arquitecto — Renato recorreu à sua experiência de 40 anos para mostrar, com grande serenidade e um sorriso generoso, as possibilidades infinitas do barro. Começa por explicar como é formado — “microcristais que se organizam de forma lamelar” — para depois poder ensinar a prepará-lo, em camadas, como se fosse massa folhada. “O barro cria memórias”, diz, “se o dobramos de determinada maneira, ele fica com essa memória e depois, mais à frente, quando julgamos estar já a fazer outra coisa, ele vai buscar esse jeito inicial. ”Na oficina onde o curso decorre há duas rodas eléctricas, caixas de barro e de outros materiais, duas mesas de marcenaria com um pequeno torno, cadeiras, peças já terminadas e outras que esperam a sua vez para entrar no forno, e uma salamandra que ajuda a tornar ainda mais acolhedor este espaço onde se pode experimentar sem limites, onde se pode “perder” tempo para se ganharem outras coisas. “A causa-efeito é o vosso guia. Se hoje correu mal não façam outra vez sem perceber por que é que correu mal”, continua Renato, que por vezes parece falar como se estivesse a treinar quem o ouve para a vida e não apenas para o trabalho manual. “Gosto do lado de mistério do barro — haverá sempre muita coisa que eu ainda não sei, que ainda não descobri. E isso torna-me mais atento, mais disponível. É como com as pessoas e as coisas que fazem parte da nossa vida — quanto mais elas nos intrigam, mais nos interessam. ”Filho de um minhoto e de uma alentejana, Renato Costa e Silva começou por estudar arquitectura, no Canadá, mas acabou por regressar à Terceira, ilha onde nasceu e onde passa ainda boa parte do ano. Experimentou esculpir em ferro, madeira, pedra e argamassas de cimento, fez gravura, serigrafia e litografia, mas depois voltou-se para o barro e é esse o material que hoje mais trabalha. Começou sozinho a pegar nele, encomendou uns livros técnicos de cerâmica em Inglaterra e foi explorando. Em meados dos anos 1980, pediram-lhe que fizesse um levantamento dos barros da ilha, que o escultor depois analisava nos laboratórios da Universidade dos Açores: “Demorei algum tempo a perceber que eram barros vulcânicos e que, por causa disso, tinham características muito especiais. ”À Cerdeira chegou pela primeira vez para trabalhar em Setembro de 2015, quando os veados bramavam e não estava ainda construído o forno do japonês Masakazu Kusakabe, um ceramista que há quase 50 anos faz as suas cozeduras a lenha e que estará de regresso à aldeia para mais um curso em Agosto (4 a 11). Enquanto explica como se fazem placas de barro, onde depois se podem imprimir texturas usando rendas, esteiras, folhas ou pedaços de casca de árvore, Renato vai demonstrando por que razão o barro é um material generoso e sustentável, sempre a refazer-se, a renascer. “As únicas normas são ditadas pela reacção dos materiais”, diz o escultor. “A gente pode experimentar tudo e o que não der… Vamos construindo mas, se começarmos a abusar, a peça sente-se, dá de si. Claro que há truques para fazer com que aguente um pouco mais, mas a engenharia tem limites. Uns limites que só descobrimos fazendo, errando. E toda a gente pode pegar no barro, fazer, errar e fazer outra vez. ”Há muitos criadores, diz, que fazem carreira a partir daquilo que para outros não passa de um defeito. “Gosto disto de não haver regras rígidas. É sempre possível corrigir a mão da próxima vez. ” Uma forma de aprender, seja a moldar, a secar, a cozer ou a decorar, é repetir os processos, garante o formador, que começou a trabalhar mais intensamente em escultura há quase 20 anos e que regressa à aldeia para um novo curso com Kerstin já em Julho (7 a 15). A Cerdeira é uma das protagonistas do Craft+Design+Identidade, projecto da Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto (Adxtur) que envolveu nos últimos anos nove escolas superiores de design (como a ESAD de Matosinhos e das Caldas da Rainha ou o Instituto Politécnico de Castelo Branco) e 22 ateliers de criação artística com base nas técnicas tradicionais espalhados pelo país. Este projecto, que toma as 27 Aldeias do Xisto como fonte de inspiração e território de experiências várias, que é coordenado pelo designer João Nunes e que envolveu cerca de 150 pessoas, deu já origem a uma trilogia expositiva que começou em 2013 com Água Musa, continuou no ano seguinte com L4Craft e termina agora com Agricultura Lusitana 2015-18, no Museu de Arte Popular (MAP), em Lisboa, até 30 de Dezembro. Quem for ao MAP poderá ver dezenas de peças contemporâneas que nasceram da interacção de artistas, alunos e professores com o tecido natural e humano de pequenos (uns mais do que outros) aglomerados do interior centro do país, como Janeiro de Cima, Benfeita, Ferraria de São João, Fajão ou Aldeia das Dez. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “A ideia foi levar os alunos destas escolas a mergulhar no espaço e a interpretá-lo. Mas queríamos que o fizessem com tempo, mantendo esta ligação à terra e às pessoas. E uns conseguiram-no melhor do que outros, o que é natural”, diz Kerstin. Na escola da Cerdeira, continua a escultora, também se pretende que as pessoas se envolvam com o que as rodeia, divertindo-se e aprendendo ao mesmo tempo. “A ligação à terra, aos materiais, é absolutamente fundamental para ganharmos equilíbrio. É como fazer BTT ou correr. Trabalhar o barro ou a lã enriquece a nossa vida. É altamente satisfatório fazer uma coisa com as mãos e chegar ao fim do dia e ter um objecto a mostrar-nos o que aprendemos e, ao mesmo tempo, o que ainda não sabemos. ” E é altamente satisfatório fazê-lo num lugar como este. A Fugas viajou a convite da Cerdeira Village
REFERÊNCIAS:
Uma imponente festa nordestina nos coliseus
Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo conquistaram o Coliseu de Lisboa com a celebração dos 20 anos d’O Grande Encontro. Uma imponente festa nordestina. Na primeira parte actuou o pernambucano Almério. (...)

Uma imponente festa nordestina nos coliseus
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo conquistaram o Coliseu de Lisboa com a celebração dos 20 anos d’O Grande Encontro. Uma imponente festa nordestina. Na primeira parte actuou o pernambucano Almério.
TEXTO: Quem vira o DVD já imaginava ao que ia. E quem programou o espectáculo também: os bilhetes para o Coliseu de Lisboa eram de preço único (com acesso a qualquer ponto da sala) e as cadeiras da plateia foram retiradas, para em seu lugar ser improvisada uma pista de dança. Mas uma coisa é ouvir e ver um vídeo, outra é sentir o apelo e a força que um espectáculo como O Grande Encontro tem ao vivo, capaz de “abanar” uma sala. Mesmo assim, convém fazer uma ressalva: o espectáculo que desde 2016 comemora ao vivo os 20 anos do Grande Encontro original, reunindo Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo (Zé Ramalho, que participou nos três anteriores, desta vez não quis), não tem paralelo com as sessões de suada aeróbica a que nos habituaram cantoras como Ivete Sangalo ou Daniela Mercury, é uma outra coisa, mais refinada; um apanhado de ritmos e estilos nordestinos que apelam à dança mas também ao intelecto, num desfile por onde passam o baião, o frevo, o maracatu, a ciranda, a embolada, o xote, numa rica diversidade de géneros que excita os sentidos e também conforta a alma. Há neles um brilho genuíno que teima em não ceder à tentação da frivolidade, um sentido das raízes e das heranças mais celebradas (Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos) que de algum modo nos conduz a um enquadramento histórico dos seus percursos. Alceu Valença, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo Lisboa, Coliseu dos Recreios Quinta-feira, 12 de Julho, às 21h 1. ª parte: Almério Sala quase cheia (repetiu no Coliseu do Porto, dia 13, às 21h)Porque Alceu, Elba e Geraldo mantêm vivas, desde há décadas, carreiras individuais, servindo este reencontro para celebrar a força da música nordestina e dos seus autores. O Grande Encontro 20 anos difere, essencialmente, do primeiro (gravado no Canecão, em Julho de 1996) em dois pontos: onde este era totalmente acústico, vozes e violões, sem cenário pré-concebido, o actual ganha o peso e a força acústica e eléctrica de uma banda de sete elementos, acrescida de cenários coloridos e visualmente sumptuosos; e onde o primeiro era juvenil e transpirava leveza, exibe este uma madura vitalidade. No Coliseu de Lisboa, onde muita gente dançou alegremente (na plateia ou mesmo nas bancadas) ao longo da noite, o alinhamento distanciou-se muito pouco do que foi registado no DVD gravado no Brasil em 2016 (e já disponível nas lojas portuguesas). Começou com Anunciação, desde logo num ambiente de festa, e seguiu o roteiro sem dele se afastar, com Caravana, Me dá um Beijo, Sabiá (tema imortal de Luiz Gonzaga, como imortal é um outro Sabiá, o de Tom Jobim), Papagaio do Futuro, Coco das Serras, Moça bonita, Sétimo céu, Dona da minha cabeça e Dia branco. Primeiro com os três cantores em palco, depois só com Alceu e Geraldo e por fim com Geraldo a solo. Geraldo que, sem ser tão efusivo quanto os seus companheiros desta aventura, cativa plateias com a sua voz envolvente e a profundidade musical e poética das suas canções. Neste sentido, O Grande Encontro é também um espectáculo múltiplo, em trio, duos ou a solo, assomando cada um dos protagonistas à ribalta, à vez. Foi com Sabor colorido que Geraldo cedeu a Elba o protagonismo, juntando-se-lhe em Bicho de 7 Cabeças, Chorando e cantando e O Princípio do Prazer, todas canções com a sua assinatura. Depois ficou Elba a solo, brilhando (e com que voz, já refeita de uma infecção que a tolhera nas vésperas) em temas como Chão de giz, Ai que saudade d’ocê ou o medley nordestino Na base da chinela, Qui nem jiló e Eu só quero um xodó, celebrando a um só tempo Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Dominguinhos, os respectivos autores. Foi uma interpretação electrizante, desde o primeiro tema, chegando Elba a descer à plateia para cantar no meio do público, obtendo deste uma atenção calorosa e vibrante. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois foi a vez de Elba passar o testemunho a Alceu, cantando juntos Ciranda da Rosa Vermelha, e ficando cada qual a agitar um shaker enquanto o outro solava. Quando Alceu se apropriou do palco, começou por um tema (ausente do alinhamento brasileiro) que dirá mais a Portugal do que ao Brasil, até porque foi composto em Lisboa e com várias referências locais: Loas de Lisboa. Vale a pena citar uma parte: “Ao pé de uma praça/ Chamada alegria/ Havia uma rua/ Que responderia/ O porquê dessa chuva/ Sem filosofia, / A grande verdade/ É que a chuva chovia/ A grande verdade/ É que a chuva nascia/ Na rua Mãe d’Água/ Depois se expandia/ lavava Lisboa/ E me comovia. ” Alceu, agitador nato, fez então desfilar alguns dos seus temas “fatais”, aqueles que arrebatam plateias logo aos primeiros acordes: La Belle de Jour, Girassol, Como dois animais, Coração bobo, Cabelo no pente e Tropicana. Com a festa no auge, e já com Elba e Geraldo regressados ao palco, interpretaram os três, e com a banda a todo o gás, Táxi lunar, Pelas ruas que andei, Banho de cheiro e Frevo mulher, esta última criação de Zé Ramalho e forma de o trazer a um palco português, mesmo que fisicamente ausente. Celebração musical e cultural nordestina, apologia de um apelo dançante que não rejeita (pelo contrário) o envolvimento cerebral, O Grande Encontro abraçou Lisboa com o calor que o fez nascer e renascer no Brasil. Chegou tarde? Mas chegou em boa hora. P. S. : – Na primeira parte do espectáculo, actuou Almério, cantor e actor pernambucano que já abrira O Grande Encontro no Rio de Janeiro em 2017. Com 37 anos e dois discos editados (Almério, 2013; e Desempena, 2017), Almério faz lembrar, em palco, um misto do Roger Daltrey do início dos The Who (tronco nu e uma casaca de peles ou tiras) com um émulo de cantores como Ney Matogrosso ou Filipe Catto (pela androginia da voz e da pose, embora longe destes), parecendo ainda alguém que está mais a “fazer género” do que a procurar uma voz distinta no já muito plural panorama brasileiro. Próximo do rock e da performance, decerto pela via teatral, Almério apresentou no Coliseu várias canções do seu repertório, como Trêmula carne, Segredo, Queria ter pra te dar ou Por que você, a par de uma versão pouco apelativa de Fado tropical, de Chico Buarque. A ter em atenção, na sua evolução futura. Ainda em Portugal, Almério vai participar, com o seu grupo, no festival Mimo, em Amarante, no dia 21 de Julho, às 20h.
REFERÊNCIAS:
Entidades NATO
Todos diferentes, todos iguais, todos vários
Neste Dia dos Irmãos, são memórias que bailam comigo. Do meu irmão Fernando e de outros irmãos que fui recebendo ao longo da vida. (...)

Todos diferentes, todos iguais, todos vários
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Neste Dia dos Irmãos, são memórias que bailam comigo. Do meu irmão Fernando e de outros irmãos que fui recebendo ao longo da vida.
TEXTO: A festa dos irmãos, o 31 de Maio, é uma grande festa, uma festa de inesgotável variedade. As relações entre irmãos e irmãs variam muito consoante o seu número, o sexo e a diferença de idades. A observação tem-me mostrado isso. Dois irmãos quase da mesma idade não são iguais a outros de idade afastada, nem iguais a duas irmãs ou a um irmão e uma irmã. Muitos irmãos, como sete, nove ou mais, parece organizarem-se por patamares, gerando subgrupos entre os mais velhos, os do meio, os mais novos. Um irmão muito mais novo de duas ou mais irmãs é um príncipe, uma espécie de boneco adorado. Mas, se for o mais velho de somente irmãs, parece ser-lhes um estranho: nem o entendem, nem o adoram, nem brincam com ele – verdade seja que esse único entre as mulheres também não mostra muita paciência para elas. O quadro é semelhante se for uma rapariga mais nova de só irmãos, em que estes tendem a assumir um papel protector. Mas já se a rapariga for a mais velha, o quadro típico muda: os rapazes, todos mais novos, funcionam à parte; a irmã mais velha tenta, repetidas vezes, papéis de mandona, de segunda mãe, propósito em que costuma ser mal sucedida. Se os irmãos são só rapazes, a cumplicidade é intensíssima. Dois são parelha ideal para a paródia e a asneira, ou núcleo formidável em equipas de bairro, de escola ou de amigos. Quem não se lembra dos irmãos Nunes, ou dos Castrinhos ou dos Sousas? E se são três, quatro ou cinco, todos seguidos nas idades, a coisa pode evoluir para grupos lendários de temível coesão. Se forem só irmãs, o quadro é similar, embora mudem os jogos, as dinâmicas e os temas grupais para os interesses e olhares mais típicos nas raparigas. Se a muitos irmãos, nasce um irmão ou irmã muito mais novo, esse bebé, essa criança tardia muda todo o quadro estabelecido, ganhando novidades e riqueza para toda a vida. Diferentes são as relações se são todos filhos dos mesmos pai e mãe – os irmãos germanos – ou só do mesmo pai ou da mesma mãe, mas, se não há veneno a ser metido, é marcante a unidade como laço que todos querem construir e proteger. Cada um sabe do seu quadro. A minha experiência é a de dois irmãos, a mais simples de todas. Só tive um irmão, um ano e meio mais velho do que eu. Desenvolvemos cumplicidade fortíssima, que ninguém desenhou, nem ensinou. Cresceu connosco e nós com ela. Hoje, nos meus netos, há dois irmãos, ainda muito pequenos (um a chegar aos quatro, outro a caminho dos três anos), com quase a mesma diferença de idades que eu tinha do meu irmão. Tenho dado várias vezes por mim a deliciar-me a observar a forma como, ainda antes das primeiras palavras do mais novo, aprenderam a comunicar entre ambos, a inventar jogos e brincadeiras, a bulhar até partilharem, a construir alianças, a tentar ludibriar o outro, a construir espaço comum e conquistar espaço próprio, ou o mais velho a querer mandar e o mais novo a furtar-se. Os primeiros amigos um do outro, amigos para sempre, amigos para toda a vida. Sendo o mais novo, usei sapatos, calções, camisolas, casacões que tinham sido de meu irmão. Andei nas mesmas escolas que ele, a maior parte do tempo um ano atrás dele: na infantil, na escola primária n. º 24, na secção de Alvalade do Camões, no Padre António Vieira. Estudei pelos mesmos livros que tinham sido dele. Os percursos separaram-se, quando ele seguiu a alínea “F” (engenharias) e eu a alínea “E” (direito). Mais ainda quando ele escolheu a Escola Naval e eu fiquei por casa para ir para a Faculdade. Começámos a fumar praticamente na mesma altura, aí pelos 13 ou 14 anos – um disparate monumental, que fazia parte da cultura do tempo. Ao meu irmão, foi isso que o matou aos 61 anos; a mim, embora já tenha deixado de fumar há uns bons anos, nunca sei. Até ao ensino superior nos separar, incontáveis milhares de quilómetros fizemos a pé, lado a lado, ano após ano, em longas e repetidas caminhadas entre casa e a escola e, depois, o liceu, para ir e para voltar. Dormíamos, brincávamos e estudávamos no mesmo quarto – por vezes, a brincadeira e o estudo transbordavam para outras partes. O Fernando mostrou, entre outros talentos, jeito para a música. A certa altura, comprou uma gaita. E não é que aprendeu a tocar sozinho? Passou a passatempo quotidiano, por vezes um pouco massacrante: não é fácil partilhar o quarto com o Mozart da gaita-de-beiços. Definiu e apurou o repertório para espectáculos familiares ou com amigos. Tornou-se um clássico de grande risota quando actuava ao lado de um cão que tínhamos, o “Dominó”, rafeiro, mas melómano. Quando o meu irmão tocava, o “Dominó” desatava a uivar sentidamente; só se calava quando a harmónica deixava de se ouvir. Nunca ficou inteiramente esclarecido a que se devia o fenómeno: se era protesto, se querer cantar na onda melódica da inspirada gaita. A nota mais dominante da nossa parceria foi a inventiva e a criação. Em S. Domingos de Rana, onde passávamos férias, a garagem foi nosso laboratório social multiusos. Em Verões consecutivos, foi sujeita a múltiplas metamorfoses: estaleiro de Lego e comboio eléctricos, com arrojados e sempre remodelados percursos; estúdio de pintura; laboratório de química; centro botânico experimental; sala de jogos e, depois, sala de jogo; laboratório fotográfico, com câmara escura, e sala de montagem de cinema; discoteca ou, como na altura dizíamos, “boîte”, nesse tempo imortal das festas de garagem dos slows e do yé-yé. O meu lado “bricoleur”, que ainda mantenho e exerço, devo-o à contínua e variada aprendizagem destas engenhocas, em que imaginávamos, construíamos e resolvíamos todos os problemas surgidos. Aprendi grandes lições de vida. O Fernando gostava muito de provas de campo – eu não. Uma vez, teve uma na serra da Arrábida. Coisa dura: várias equipas de pares tinham de descobrir o caminho, por uma série de mensagens e sinais, ao longo de cerca de 50 quilómetros de matas, trilhos e encostas, previstos para dois dias. A dupla do meu irmão desistiu, cansados, desorientados, crendo-se perdidos, ao fim do segundo dia. Ficaram fulos consigo mesmos: estavam apenas a 1 km da meta, menos de uma hora. Ficou para ele e para mim como lição contra a desistência: ao percorrermos o desconhecido, nunca sabemos se já só falta o mais fácil. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quando voltou dessa prova de campo, convenceu-me a armar a tenda num pequeno relvado ao lado da garagem e dormirmos lá nessa noite, antes de a devolver. O cão também. Tudo esteve bem até o Fernando adormecer. Depois de me certificar de que ele já dormia profundamente, escapuli-me para o meu quarto e a minha cama. O cão, que era da mesma religião, fez o mesmo. O Fernando ficou entregue à paz campista de que tanto gostava. Eu e o “Dominó” não. Neste Dia dos Irmãos, 31 de Maio, são memórias que bailam comigo. Do meu irmão Fernando e de outros irmãos que, sendo amigos tão chegados e com laços tão próximos e tão cúmplices, fui recebendo ao longo da vida: o Adelino Amaro da Costa, o José Artur Quesada Pastor, o Roberto Carneiro, o Rui Pena; os primos, prolongamento dos irmãos; os irmãos dos pais, os tios, com que cresce mais abertura e confidência, marca da cumplicidade. O Dia dos Irmãos é para nos festejarmos uns aos outros, no espaço da vida e das memórias de cada um. Somos diferentes e iguais, somos muito vários, somos parecidos e sempre próximos. Perto ou longe, é sempre como se ainda ontem tivéssemos estado juntos. A vida nunca parou entre nós. Bom Dia dos Irmãos!
REFERÊNCIAS:
Entrevista: Esta luz que me alumia
A primeira coisa que surpreende é a Catarina Furtado ser sempre a Catarina Furtado. Com a mãe, numa tarde de sol, a recordar o tempo em que foi filha, mantém a fisionomia, a cadência do discurso, o riso que conhecemos da televisão. Mas há um mundo anterior ao sorriso, que marca a atitude e que está na relação entre mãe e filha. Sem a Crinabel, não seria possível compreender a Corações com Coroa... Sem a Helena, não se compreenderia a Catarina. (...)

Entrevista: Esta luz que me alumia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A primeira coisa que surpreende é a Catarina Furtado ser sempre a Catarina Furtado. Com a mãe, numa tarde de sol, a recordar o tempo em que foi filha, mantém a fisionomia, a cadência do discurso, o riso que conhecemos da televisão. Mas há um mundo anterior ao sorriso, que marca a atitude e que está na relação entre mãe e filha. Sem a Crinabel, não seria possível compreender a Corações com Coroa... Sem a Helena, não se compreenderia a Catarina.
TEXTO: Os bastidores da entrevista: o pedido é feito ao assessor de Catarina Furtado. Hora e local combinados em função da disponibilidade da apresentadora, que anda pelo país a gravar um programa para a RTP. Mãe e filha chegam em separado. São calorosas, cúmplices, entregam-se à conversa. Catarina traz uma blusa cor de mostarda de Nuno Baltazar, o criador de moda que a veste há anos, e que põe para as fotografias. Está maquilhada, penteada, está a Catarina Furtado. Sabe evidentemente como posar, domina as questões da imagem. Evidentemente. O trabalho dela passa por aqui. Tem 42 anos e é desde os 19 um sorriso que todos os portugueses conhecem. Helena acabou de fazer 70. É fácil perceber como foi uma mulher bonita, o olhar profundo, a herança goesa. Mais do que tudo, fala embevecida da filha, das filhas, do marido. É uma mulher interessante, com um percurso social e familiar insólito. De certa maneira, parece encarnar a alegria que acompanha a filha. Na entrevista concordaram, discordaram, interpelaram-se, surpreenderam-se. Mais do que de televisão, falou-se da Catarina embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, da vocação solidária que sempre teve, do ambiente em que nasceu e que permite identificar os pontos nucleares do percurso, da estrutura. O Que Vejo e Não Esqueço, o livro que convoca a experiência de Catarina em acções de solidariedade e voluntariado, a ser lançado amanhã, não estava sobre a mesa. Helena ainda não o tinha visto. CATARINA — Não tinha consciência de que a tinha escrito. Fui recuperá-la no baú das coisas do meu pai. O meu pai guarda tudo. HELENA — O pai deu-lhes um dossier, a cada uma, no Dia do Pai, com tudo, tudo. CATARINA — Desde o primeiro desenho. HELENA — Aconselho os pais a fazerem isso, a guardarem tudo. Parece que não é nada, mas é muito importante para ver a evolução. CATARINA — O meu pai guardou todas as folhas da escola primária, onde aparecem os comentários sobre a aluna. A timidez, o ser atenta aos outros. No livro falo de um colega por quem a professora tinha um carinho especial, que vinha de um meio difícil. Ele desenhava superbem. (A professora também era especial. Assim como a minha mãe, como professora foi sempre especial. ) Essa professora tinha a capacidade de olhar para ele e de lhe dar aquilo de que ele precisava, enquadrá-lo. Nunca mais o vi. E não é que o encontro na semana passada? “Nélson, passaram 30 e tal anos. ” Ele disse: “Sabes o meu nome! Foste tão importante, tu e a professora. ”HELENA — Conheci o pai da Catarina só pela voz. Tinha tido um acidente a cavalo, estava numa clínica e ouvi uma voz. Viro-me para o José Nuno Martins e digo: “De quem é esta voz tão gira que apareceu agora?” “É um puto que entrou para a rádio este ano. Vais ver que vai ser alguém. ”CATARINA — “Vai ser alguém” é uma expressão tão tola. A pessoa já é alguém. HELENA — Alguém na rádio. HELENA — Porque andei na Rádio Universidade e o Zé Nuno também. CATARINA — A minha mãe, vinda da família tradicional, cheia de recursos, brasonada, saiu uma grande rebelde. Mas porque é que a mãe quis ir para a rádio?HELENA — Porque era giro. HELENA — Era muito conservadora. Supercatólicos. CATARINA — Havia aulas de Piano e Francês em casa. HELENA — A minha mãe foi uma das primeiras pessoas a tirar Belas-Artes. E o meu pai também. Era suposto terem uma abertura. Os filhos podiam fazer a vida que quisessem, mas as filhas, não. Iam levar-nos à escola. Iam buscar-nos à escola. CATARINA — Esperavam que a mãe fizesse o quê, na vida?HELENA — Esperavam que tirasse o curso de Pintura. E, quando chegasse a idade, casasse. Éramos sete irmãos, seis foram para Pintura e Escultura. Só o mais velho é que foi para Medicina. HELENA — Era dos meus avôs, quer de uma parte quer da outra. CATARINA — A parte da minha avó vem de Goa. A parte do meu avô vem do Norte. HELENA — Foi muito feliz, cortada pela censura do meu pai. Vou mostrar-lhe esta fotografia. . . CATARINA — A minha mãe é esta. Esta é a piscina em casa dos meus avós. Uma beleza de Hollywood. HELENA — Vivíamos em Lisboa num prédio que o meu avô tinha comprado. Um andar para cada filho. Um jardim enorme por cada andar. HELENA — O pai [Joaquim Furtado] tem a mania que foi pela presença dele, mas não. Já antes de o conhecer andei em coisas irreverentes. Na Tarantela (um café) convivi com pessoas da Rádio Universidade, quando ainda frequentava a António Arroio. O Quim muito chateado porque tudo girava à minha volta. CATARINA — É mais a minha irmã. HELENA — Eu tinha noivo, para casar. Olhei para o Quim: “É giro. Pena ser tão novo. ” Ele é três anos mais novo que eu. CATARINA — Ele está mais bonito agora do que antes. HELENA — Era a forma de ele ser. HELENA — A minha mãe já tinha ido escolher as alcatifas ao Rossio para a casa que íamos habitar [risos]. Era um chalé no Campo Grande. CATARINA — Depois foram para umas águas-furtadas de uma assoalhada, quase. Estou a brincar, mas o contraste. . . HELENA — Não me arrependo de nada. CATARINA — Sei mais pela minha mãe do que pelo meu pai. O meu pai não conta muito. O meu pai vem de um meio mais humilde. Isso deu-me os ingredientes complementares. Se tivesse só [o estilo de vida] de uma família tradicional como a da minha mãe, apesar de a minha mãe ser rebelde, tolerante. . . Há questões muito evidentes na sua educação que se mantêm. CATARINA — A nível religioso. A minha mãe só viveu dificuldades já casada com o meu pai — o que demonstra uma coragem muito grande. É uma das coisas que mais admiro na minha mãe. Isto são provas muito evidentes de que o amor salva. O amor reorganiza, abana e acrescenta. A minha mãe ficou acrescentada e o meu pai ficou acrescentado. Não só pelo que viveram, mas pelas vidas que trouxeram um ao outro. Têm raízes completamente diferentes. O meu pai tem muito mais medo de arriscar do que a minha mãe. E tem que ver com isso. HELENA — Tenho uma posição muito positiva. Acho sempre que vamos ultrapassar [as dificuldades]. CATARINA — Tenho a certeza de que este meu olhar atento aos outros tem que ver com estes dois pólos antagónicos. CATARINA — Sempre. CATARINA — E quem não o faz tem de atravessar [um deserto]. CATARINA — Mas o meu avô até sabia ler e escrever. A minha avó, não. Fruto das circunstâncias do tempo, da desigualdade com base no género, nunca aprendeu. E é das pessoas mais inteligentes que conheci até hoje. Com as características que tinha, se lhe tivessem sido dadas oportunidades, podia ter sido o que quisesse. Isto é uma das coisas que me fazem mais confusão. HELENA — No primeiros anos, foi difícil. Não tanto para mim. Julgo que até mais para o meu marido. CATARINA — Comigo nunca falou de nada. HELENA — Falava. Contigo não, mas falava. Havia aquelas festas na casa da minha mãe. . . CATARINA — O meu pai também nunca se calava. Se se falava de Deus, o meu pai punha imensas questões. Se se falava de política, o meu pai punha imensas questões. HELENA — Eu dava-lhe muitos pontapés debaixo da mesa [risos]. Depois, foi o maior amigo da minha mãe. Engraçado. A minha mãe adorava-o. A minha mãe passou meses em minha casa e ele sempre muito preocupado com o bem-estar dela. HELENA — Coisas que as pessoas não sabem muito bem dizer. Tinha um olhar. Era sedutor. E era uma pessoa com uns princípios claros e definidos que me encantaram. CATARINA — Não foi o sentido de humor?HELENA — Muito, também. E a poesia. Ele nunca publicou, mas tem cadernos de poesia. CATARINA — Agora tenho de ser eu a roubar aquilo lá em casa. Esta carta que o pai lhe escreveu ontem [pelos 70 anos de Helena] foi poesia?HELENA — Foi. Vamos fazer 44 anos de casados. CATARINA — Isso é maravilhoso. Está a ver? Tem de se portar melhor, a mãe porta-se muito mal. CATARINA — Sou a conservadora lá de casa. HELENA — É desde sempre. Não me deixava fumar. Tomava sempre a parte do pai. CATARINA — Não é verdade, não tomo sempre a parte do pai. CATARINA — A minha mãe diz que sou muito autoritária. HELENA — Pode ser, um bocadinho [risos]. Mas tenho a noção completíssima de que é por julgar que é o meu bem. CATARINA — Por julgar não: por ter a certeza. [risos]HELENA — Temos assim alguns arrufos. Sei que o faz pelo meu bem-estar, mas às tantas penso: “Tenho 70 anos!”CATARINA — Há diferenças em nós. E há muitas coisas que nos unem. Até escolhas. O exemplo que a minha mãe teve com o meu pai é o exemplo que tenho com o meu marido. CATARINA — Sim, e inconscientemente. Temos em comum a tolerância e o combate à discriminação. Se há coisa que os quatro temos, é uma alergia à injustiça. HELENA — Desde criança, com a minha mãe, desagradava-me a maneira como ela tratava as empregadas. “Criadas”, na altura. Despedia-as por nada, não se importando com a relação que tínhamos com elas. Eram mais que mães para mim. CATARINA — O meu pai é um humanista por natureza. E um feminista. E o João [Reis, marido de Catarina, actor] também. A coisa que mais nos diferencia e que justifica esta tendência para o autoritarismo (às vezes sou até manipuladora) é a minha mãe não ter força de vontade nenhuma. HELENA — Para as dietas [risos]. CATARINA — Não é só para as dietas. É para tomar conta de si. São as coisas que lhe fazem mal à saúde — e a minha mãe está-se nas tintas. Os comprimidos não são tomados até ao fim. É preciso fazer exercício e não faz. HELENA — Não desisti. Até fiz duas operações. Tenho dor de cabeça diária. Não há dia nenhum em que não acorde cheia de dores de cabeça. Mas não desisti. De vez em quando, tenho umas fases. . . Apetece-me um doce, pronto. Gosto de comer bem. CATARINA — Todas as pessoas da minha família materna são pessoas grandes. Têm o culto da mesa. HELENA — Está no ADN, também. CATARINA – No meu, felizmente, não está. HELENA — É sorte. HELENA — Não, muito depois. CATARINA — Não foi nada, mãe. Foi antes. HELENA — Amor, a tua idade foi a minha melhor idade. Até aos 50, foi a minha melhor idade. CATARINA — Ontem, encontrei uma professora minha do. Foi uma emoção. De repente, vejo a minha filha, com nove anos, no Conservatório onde andei toda a vida, com a mesma professora. “Catarina, estás na melhor idade de todas. A partir dos 50, tudo cai. ”HELENA — Ainda ontem o pai disse isso. Dos 40 aos 50, sentia-me bem, bonita. Isto é um disparate! [riso]HELENA — Nessa fotografia, a Catarina tem seis. Eu tinha 32 anos. A Marta nasceu em 1977. CATARINA — Nessa fotografia, vê-se bem que o João Maria [filho] sou eu. HELENA — Também dizem que é a Beatriz [filha]. CATARINA — Sempre achei que ia ter filhos. HELENA — Todos os meus sobrinhos têm uma adoração por ela, todos. CATARINA — E eu tenho uma coisa muito especial por todos eles. Alguns até são mais velhos do que eu. Os filhos: não sei, desde sempre. Se estivermos a analisar, , , , esta vocação foi muito potenciada pelo facto de a minha mãe ter enxaquecas desde sempre. Não me lembro da minha mãe sem enxaquecas. A minha mãe passava muito tempo na cama e nós não podíamos fazer barulho. A partir do momento em que a minha irmã nasce, comecei a tomar conta dela. Mas aquilo para mim era natural. Não foi uma coisa que os meus pais me tivessem dito para fazer. HELENA — A Marta só vestia, só calçava o que a Catarina lhe dizia. “Tu não sabes, a Catarina é que sabe. ”CATARINA — Sempre quis ter imensos filhos. Mas nunca pensei na questão do casamento. HELENA — O casamento pela igreja foi mais por mim, tenho a impressão. Por mim e pelos avós. CATARINA — Acho que não. Se tivesse de repetir, repetia tudo. Tirava ose a avioneta a sobrevoar!CATARINA — Sim. Vou tendo afilhados, pessoas que tenho debaixo da minha asa. Os miúdos da culinária, os da dança. . . , tomo conta. Mesmo ao longe. HELENA — Vai sendo madrinha. CATARINA — Não tenho muito jeito para que tomem conta de mim, tenho mais jeito para tomar conta. Pessoas de quem gosto e que tomem conta, mesmo que eu não precise e que faça a pessoa acreditar que está a tomar conta? O Diogo Infante. Era um sonho que tinha desde sempre, ter um irmão mais velho. Adoptei-o. CATARINA — [pequena pausa] Não. HELENA — Eu acho que sim. CATARINA — Acha?HELENA — O teu comportamento mudou. Passou tudo a ser em função dos filhos, tudo. CATARINA — Há 15 anos que sou embaixadora das Nações Unidas. As minhas duas gravidezes coincidiram com algumas viagens. Na primeira viagem que fiz [para a gravação do programa] Príncipes do Nada ainda não tinha feito os três meses de gravidez. Fui sem ninguém saber, a não ser o meu médico e o João. Muito francamente, penso que são as vivências a que tenho assistido ao longo destes anos que me fizeram, em tudo, mulher. A entender as mulheres. Mulher a entender-me a mim. Mulher a defender as mulheres. Muito mais do que ser mãe. CATARINA — Eu sei. Passei a arriscar menos. HELENA — Era muito aventureira e deixou de ser tanto. CATARINA — Por eles. Por pensar que se me acontecer alguma coisa… Nas viagens, na forma de viver. Apesar de não ser muito radical, era destemida. CATARINA — Toda a gente diz isso. Ser bem-comportada é uma coisa que foi mudando. Tinha muito mais pudor em dizer o que pensava. Sempre numa perspectiva de que havia alguém que podia não concordar e ficar ferido. Hoje não me incomoda nada dizer o que penso. HELENA — Mudaste muito desde o primeiro Príncipes do Nada. Ela vinha completamente transtornada. CATARINA — Tinha consciência desse mundo. Apesar de viver no estrelato — cá para fora —, dentro da minha casa sempre se falou de desigualdade. O meu pai, jornalista, sempre trouxe o mundo real. O impacto resulta de ver com os meus olhos. O verdadeiro impacto resulta de estar tempo com as pessoas e não passar por elas [de raspão]. E sentir que todos nós, em cada uma das nossas funções, pode fazer muito mais do que fazemos. Isso deixou-me, nos primeiros tempos, quase paralisada. CATARINA — Sim. E a pensar que tem de haver uma fórmula de isto ficar mais equilibrado. Foi tudo muito inquietante. O maior impacto de todos — isso sim, mudou-me radicalmente — foi ver mortes evitáveis. Fazia o paralelismo constantemente. HELENA — Como ela tinha tido as crianças e os partos foram tão assistidos. . . CATARINA — Aí dá uma revolta. E todas as vezes que vou, volto muito revoltada. HELENA — Ela ficou com uma criança nas mãos [cuja] mãe morreu. Também julgo que a tua sensibilidade partiu um bocado da Crinabel. HELENA — Eu era professora do ensino oficial, mas escolhi ir dar aulas para a Crinabel. As minhas filhas foram para lá muito cedo. A Marta tinha três meses. HELENA — De EVT, Educação Visual e Tecnológica. Depois criei um atelier de Artes Plásticas. Fizeram coisas maravilhosas, os alunos. Nos meses de férias, em que era preciso ir para a praia, e como tinha o problema das enxaquecas, a Catarina começou a ajudar-me a fazer o meu papel. Tinha para aí uns nove anos. “A mãe vai, fica à sombra. ” E ela entretinha os miúdos, que gostavam muito mais de brincar com ela do que comigo, evidente. Ela conseguia jogar, brincar, levá-los à água. Havia lá um miúdo que andava sempre com um rádio. Naquele dia não pôde levar o rádio e ouviu um casal que estava a ouvir rádio. Chegou-se para lá para ir buscar o rádio. Tinha a mania de cumprimentar todas as pessoas, todos muito simpáticos. . . Mas a senhora disse para a Catarina: “Tire-me isso daqui!”HELENA — Foi de tal maneira que [aquele casal] foi pedir à capitania para nos obrigar a ir para outro sítio. CATARINA — Com a discriminação. Vou ser muito franca. O rigor, a disciplina, algum pessimismo: sai ao pai. O rir, a alegria, é mais eu. Helena sobre a filha Partilhar citação Partilhar no Facebook Partilhar no Twitter Foto Foto Helena Furtado com as filhas e o marido, Joaquim Furtado. Catarina nasceu em 1973, Marta em 1977 A minha mãe só viveu dificuldades já casada com o meu pai — o que demonstra uma coragem muito grande. É uma das coisas que mais admiro na minha mãe. Isto são provas muito evidentes de que o amor salva. Catarina sobre a mãe Partilhar citação Partilhar no Facebook Partilhar no Twitter Foto São as vivências a que tenho assistido ao longo destes anos que me fizeram, em tudo, mulher. A entender as mulheres. Mulher a entender-me a mim. Mulher a defender as mulheres. Muito mais do que ser mãe. Catarina Partilhar citação Partilhar no Facebook Partilhar no Twitter Ela nunca procurou a glória (. . . ) Fomos uma vez para a casa da minha irmã, para uma praia deserta, entre rochas: “Pronto, aqui estás segura, aqui estás bem. ” Ela tinha essa preocupação, não queria que as pessoas se metessem. Helena Partilhar citação Partilhar no Facebook Partilhar no Twitter E que aqueles meninos iam ficar desamparados?Vou ser muito franca. O rigor, a disciplina, algum pessimismo: sai ao pai. O rir, a alegria, é mais eu. A minha mãe só viveu dificuldades já casada com o meu pai — o que demonstra uma coragem muito grande. É uma das coisas que mais admiro na minha mãe. Isto são provas muito evidentes de que o amor salva. São as vivências a que tenho assistido ao longo destes anos que me fizeram, em tudo, mulher. A entender as mulheres. Mulher a entender-me a mim. Mulher a defender as mulheres. Muito mais do que ser mãe. Ela nunca procurou a glória (. . . ) Fomos uma vez para a casa da minha irmã, para uma praia deserta, entre rochas: “Pronto, aqui estás segura, aqui estás bem. ” Ela tinha essa preocupação, não queria que as pessoas se metessem. CATARINA — A Trissomia 21, agora não tanto, estava muito associada a mães mais velhas. Havia uma nuvem negra e pensava: “Coitadinhos, vão ficar sem os pais. ”CATARINA — Só tinha um medo: morrer. Ainda é o mesmo, ainda não o resolvi. HELENA — Muito, muito. CATARINA — Sim, tinha pânico de morrer. Não me imaginava a morrer de nenhuma forma concreta, nem de doenças. Mas imaginava que um dia isto acaba. É a frase que me tem perseguido. HELENA — O pai dela também tem isto. Eu não. CATARINA — O medo intensificou-se. Porque tenho os filhos. Um dia não vou ver mais os meus filhos? E os meus pais? Fico sem chão. Viro a menina não-mulher. Uma criança autêntica. Não consigo resolver isto. Ninguém dá uma resposta. HELENA — Não. Tinha tanta confiança nela, na força dela. Só fiquei muito triste quando decidiu ir para Londres. CATARINA — Sim, vemos tantos exemplos. CATARINA — É violento. HELENA — Nunca tive medo. Ela não procurou a glória. CATARINA — Glória: que palavra antiga e bonita. Não sou nada ambiciosa, é verdade. HELENA — Não queria nada dar nas vistas. CATARINA — É curioso, ninguém acredita nisso [risos]. HELENA — Mas eu sei que é assim. Fomos uma vez para a casa da minha irmã, para uma praia deserta, entre rochas: “Pronto, aqui estás segura, aqui estás bem. ” Ela tinha essa preocupação, não queria que as pessoas se metessem. CATARINA — Não é que se metessem, com isso não tenho problema nenhum. HELENA — Tu falas com as pessoas. Se forem velhotes e criancinhas, estás na maior. CATARINA — Se for a minha geração, tenho menos paciência. CATARINA — Tem. Mas até nisso as coisas têm sido harmoniosas. Não tenho hoje a audiência que tinha há uns tempos. HELENA — Também por conta do trabalho que fazes. CATARINA — Há coisas que são opções minhas, outras não. Tenho tido o privilégio de poder fazer escolhas. A passagem da SIC para a RTP ainda vem no apogeu de formatos como o Dança Comigo, que foi top de audiências. Na RTP, baixaram as audiências, não só as minhas. Sei que é uma coisa com a qual tenho de lidar todos os dias. Vou lidando porque encontrei um caminho onde me sinto completamente feliz, que é este meu lado [solidário]. Não sei se consigo sobreviver dele. Por enquanto, tenho conseguido conciliá-lo [com outros formatos e projectos]. O facto de saber muito bem o que quero, onde me sinto bem, dá-me essa tranquilidade. CATARINA — Não sei. Há aqui uma coisa importante. Não quero um império Catarina Furtado. Nunca quis. A descentralização é o segredo para a minha tranquilidade. Não vivo mesmo a pensar em mim. Preocupo-me com o meu projecto profissional, sou muito obstinada, muito trabalhadora. CATARINA — Nem o permito aos que trabalham comigo. Sou muito exigente comigo e sou muito exigente com os outros. Só assim alguém pode dar passos seguros em qualquer profissão. Mas as coisas não estão no meu umbigo. Não é o meu umbigo que dita os meus passos. HELENA — Sempre deste passos com os outros. Isto leva a que não tenhas preocupações excessivas contigo própria. CATARINA — Não foi premeditado. Foi natural ter criado a [associação] Corações com Coroa. Não seria nada natural construir um emprego à volta da minha imagem. Não me sentiria realizada. Isso sim, trar-me-ia muitas inseguranças. HELENA — A segurança dela é inata. CATARINA — Mãe, não é verdade. Em criança, não era nada segura. Era tímida, e a timidez passa por uma certa insegurança. HELENA — Eras tímida até certa altura. CATARINA — Até entrar no Conservatório. Mais do que segura, adoro andar cá. Adoro pessoas, adoro lidar com pessoas. Gosto muito de viver, gosto muito de rir. Sempre fui assim. HELENA — Nesse aspecto, sais a mim. HELENA — Vou ser muito franca. O rigor, a disciplina, algum pessimismo: sai ao pai. O rir, a alegria, é mais eu. CATARINA — Sou uma boa mistura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. CATARINA — Vai censurar. O meu pai sempre afirmou o que pensava, mesmo que isso significasse um despedimento logo a seguir. O não ter medo vem dele. Isto deu-me um mundo enorme. CATARINA — Luz. HELENA — Tudo. CATARINA — Oh, querida. HELENA — É mesmo.
REFERÊNCIAS:
Entrevista: Jamie Oliver declara guerra ao açúcar
Passou um ano a viajar por países onde há pessoas a viver até aos 100 anos. Contratou professores para estudar nutrição. Fez 40 anos, foi isso. Voltou com um novo livro e programa de televisão e com menos alguns quilos. E elegeu o seu novo grande inimigo: refrigerantes cheios de açúcar. (...)

Entrevista: Jamie Oliver declara guerra ao açúcar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Passou um ano a viajar por países onde há pessoas a viver até aos 100 anos. Contratou professores para estudar nutrição. Fez 40 anos, foi isso. Voltou com um novo livro e programa de televisão e com menos alguns quilos. E elegeu o seu novo grande inimigo: refrigerantes cheios de açúcar.
TEXTO: A entrevista está marcada para as 8h30 da manhã. Quando chegamos ao Fifteen, o principal restaurante de Jamie Oliver, no centro de Londres, ele já lá está, ao fundo da sala, a ser maquilhado. Vai ser um longo dia de entrevistas e os outros jornalistas — televisões e jornais de vários países — vão começar a chegar daí a pouco. Aproxima-se de nós com um grande sorriso, cumprimenta-nos, aceita a garrafa de azeite que o editor português lhe oferece e deita imediatamente na palma da mão umas gotas, que lambe com um ar entendido. “É óptimo”, diz, informando-se sobre de que região é (era de Trás-os-Montes). O pretexto para estas conversas é o lançamento do seu novo livro, Receitas Saudáveis (editado em Portugal pela Porto Editora), o resultado de várias viagens que fez aos locais do mundo onde as pessoas vivem mais tempo e são mais saudáveis, como o Japão (Okinawa), a Grécia (ilha de Ikaria) ou a Costa Rica — e que se transformou também numa série televisiva com o mesmo nome, que em Portugal vai passar a partir de dia 19 deste mês no canal 24 Kitchen. Estas receitas — na versão inglesa o livro chama-se Everyday Super Foods — estão divididas em pequeno-almoço, almoço e jantar, e são sempre acompanhadas de uma tabela com as calorias (a ideia é que a primeira refeição do dia não ultrapasse as 400 calorias e as outras duas as 600) e a informação, em gramas, sobre a quantidade de gordura, gorduras saturadas, proteínas, hidratos de carbono, açúcar e fibra de cada. Quando o livro foi apresentado em Inglaterra, Jamie apareceu em público mais magro e em excelente forma. A experiência do último ano, diz, levou-o também a fazer alterações no seu estilo de vida, sobretudo nos hábitos de sono — ele, que dormia três horas e meia por noite, encara agora o sono “como um trabalho”. No final da conversa, o Fifteen já está transformado num estúdio de cinema. Enquanto na cozinha se começa a preparar, numa enorme panela, um caldo de ossos, na zona de pastelaria Bárbara Heitor, uma portuguesa que aqui trabalha, já está a ensinar ao seu estagiário, Shane Cunniffe, como se fazem as sobremesas da casa. Entretanto chega Gennaro Contaldo, o famoso chef italiano, amigo e sócio há vários anos, e também personagem de alguns dos seus programas televisivos. Vem carregado com caixas de cogumelos que foi apanhar com os estagiários do Fifteen — o restaurante funciona como escola para jovens desfavorecidos ou com problemas de integração social (o que também já deu um programa de televisão). Daí a pouco, Gennaro, já de jaleca, está a dar uma entrevista a um canal de televisão, agitando os braços e falando no seu mais típico italiano, para dizer que Jamie “é um rapaz de ouro”. Jamie Oliver não pára. Tem os restaurantes, os programas televisivos, os livros. Mas a sua grande luta neste momento é contra o açúcar. Fez um documentário, Jamie’s Sugar Rush, transmitido no início de Setembro, que chocou o Reino Unido. Está a pressionar o primeiro-ministro David Cameron para que seja aplicado um imposto sobre as bebidas açucaradas. Sabe que será difícil. Mas está confiante. “Um dia vai acontecer. ”Este livro resulta das viagens que fez pelo mundo aos sítios onde as pessoas vivem mais tempo, algumas delas até aos 100 anos. O que é que concluiu? A alimentação é determinante ou a longevidade depende mais de factores genéticos e outros?A comida e o estilo de vida são muito mais importantes. Claro que a genética tem o seu peso, mas a comida e o estilo de vida podem ajudar apoiando, melhorando ou transformando as características genéticas. São as chaves de tudo. Para mim, foi um ano fascinante. Cheguei aos 40, que é um simpático número redondo e que me obrigou a olhar para o que fiz até aqui, para a minha família, o meu trabalho. Comecei a escrever este livro e foi lindo porque percebi que as vidas mais longas, mais felizes e mais produtivas não tinham nada que ver com ser rico ou com o que a cultura ocidental nos faz pensar que precisamos. É tudo muito simples, muito natural. Portugal, com a dieta mediterrânica, é diferente de Inglaterra. Vocês têm a comida natural enraizada na vossa cultura. Nós costumávamos ter, mas perdemos isso e agora estamos a recuperá-lo. Mas neste país, infelizmente, as pessoas pensam que para comer bem tem de se ser rico. Isso aborrece-me porque nas minhas viagens a comida mais extraordinária que experimentei foi sempre em comunidades pobres. Nunca andei pelo mundo a dizer “isto é fabuloso” perante arranha-céus em Nova Iorque ou Los Angeles. É nas zonas mais humildes que as pessoas cultivam e cozinham bem, adoram cozinhar para elas e para as famílias. Depois há a parte informativa que está profundamente enraizada neste livro. Porque entretanto começou a estudar nutrição. Sim, nunca imaginei fazer isso mas comecei a pagar a professores para virem ensinar-me durante três horas todas as semanas. Eu faço o que quero fazer, mas tem de ser também um serviço público. O meu patrão não é o canal de televisão ou o editor, o meu único patrão é o público e tenho de pensar nele 100 vezes a cada hora de cada dia. Diz que não é preciso muito dinheiro para se comer bem. Mas as grandes empresas da indústria alimentar conseguem oferecer preços muito baixos, mais baixos do que os dos legumes ou da fruta na mercearia de bairro. Isso não continua a ser um problema?Sim, acho que sim. Mas aprendi que para as pessoas que adoram comida, os bons agricultores, as pessoas que vivem numa maior harmonia com a natureza, a verdadeira moeda é o conhecimento. Sim, tem razão, má comida barata é muito fácil, vive muito tempo nas prateleiras, pode ser congelada, mas quando se tem o conhecimento para pensar de forma diferente consegue-se encontrar coisas muito mais baratas. É praticamente impossível que um cozinheiro não consiga cozinhar algo mais barato. Parece estar a haver uma mudança nas mentalidades, as pessoas querem comida mais saudável. Os restaurantes, os supermercados e a indústria estão a tentar responder a isso e por isso encontram-se à venda produtos que se apresentam como mais saudáveis. Mas consegue-se mesmo que as pessoas vão às pequenas mercearias comprar os legumes e cozinhar em casa? Ou esse é um passo que ainda não estão dispostas a dar?Estamos num período incrível de reajustamento e reequilíbrio. O meu país e o seu país sempre tiveram estes desafios. Imagine Portugal ou a Inglaterra antes da electricidade… éramos completamente diferentes, mudou tudo, socialmente mudou a forma como homens e mulheres trabalham. O que estamos a tentar com este livro e o programa de televisão é, de uma forma simples, olhar para os locais do mundo onde as pessoas conseguiram um equilíbrio e mostrar que a razão pela qual o conseguiram é porque não passaram totalmente pela modernização. Se for a Okinawa, de onde são algumas das pessoas com maior longevidade do mundo, vai ver tabaco e refrigerantes açucarados à venda em todas as esquinas. Mas conseguirão eles estar onde estão hoje daqui a 20 anos? Não sei. Julgo que não. Provavelmente vai mudar. Podemos perguntar o que temos a aprender com estas partes obscuras do mundo, mas o que é bonito é que a história deles significa que você e a sua família podem mudar o que fazem na vossa casa. Quando temos filhos, queremos que eles aprendam a sobreviver nas ruas, não é? Que não andem a passear com as carteiras a sair no bolso de trás, não façam as coisas erradas no momento errado, não vão pela rua errada. Estou a ser optimista, mas acho que estamos a atravessar um período de enormes mudanças, a ética, o bem-estar, o comércio justo, a pesca sustentável. Está a dizer que a mudança tem de partir de nós, consumidores?Se um país tem uma infra-estrutura robusta de media, jornalistas, bloggers, organizações da sociedade civil, se houver pessoas suficientes a discutir as coisas que interessam a nível local e nacional… geralmente, quando se dá boa informação, os humanos são bastante bons a fazer uso dela. Conseguem mesmo ser extraordinários. Mas quando os confundem, e lhes dizem disparates, eles tornam-se erráticos. Quando se diz que isto interessa e se apoia com amor, carinho, educação e soluções, as pessoas mudam muito depressa. O seu livro é muito claro na mensagem que envia, mas quando ouvimos nutricionistas e outros especialistas em alimentação recebemos frequentemente mensagens contraditórias. Para alguns, os hidratos de carbono e as gorduras são um problema; para outros, não. Isso não confunde?Ouça, se tiver uma dieta sem gorduras, morre. Qualquer pessoa que diga que tem uma dieta sem gordura é estúpida ou ingénua. Se não se comer gordura, morre-se rapidamente. Os hidratos de carbono não são maus, o problema é que a maior parte das pessoas não percebe que uma lata de Coca-Cola é um hidrato de carbono. Não percebem que as bebidas açucaradas são hidratos de carbono, e a maior fonte de hidratos de carbono na nossa dieta vem dos refrigerantes. Pensam que é da massa e do pão. A Organização Mundial de Saúde quer que as pessoas comam mais disso e menos refrigerantes. Comam os vossos hidratos de carbono, não os bebam. Mas eles podem também vir de trigo integral, que é incrível, ou de vegetais, o que é superincrível. É isso que tentamos fazer no livro. Dizer que vai sempre haver dietas rápidas e maneiras de perder peso muito depressa, mas não vão durar mais do que umas três semanas, que é o período que o cérebro humano consegue lidar com a privação, se estiver em controlo, se não estiver numa prisão. Com excepção das gorduras hidrogenadas, que são muito más para nós, até o açúcar é uma coisa linda. Eu nunca diria a ninguém “não coma um bolo”. Os bolos fazem as pessoas felizes, e quando comem um bolo sabem que é especial. Mas não se come bolo cinco ou seis vezes por dia como se faz com os refrigerantes. Para qualquer uma das áreas de que falo no livro, procurei os melhores cientistas e especialistas que havia no planeta, para lhes pedir precisamente clareza por causa de todas essas mensagens contraditórias. O público espera isso de mim. Querem que eu vá para fora um ano e meio e procure toda a informação. Neste livro não vai encontrar mensagens contraditórias. Quando falei em mensagens contraditórias, não me referia ao livro, mas ao que se ouve em geral. As pessoas que seguem a dieta paleolítica, por exemplo, cortam açúcar e hidratos e tudo o que é processado, ao mesmo tempo que comem muita proteína animal, e dizem sentir-se muito bem. Isso é fantástico. A chave é a sustentabilidade. Se tratarmos o sono, o beber água e o pequeno-almoço como um trabalho, então tudo o resto entra num ritmo certo. Pode-se perder peso e comer imensa comida, ficar cheio, cheio, cheio. O problema com os hidratos de carbono é que pensamos sempre em massa e pão, mas podem ser fruta ou bebidas ou snacks. Um terço da sua dieta pode, de forma saudável, ser constituída por hidratos de carbono, mas se incluir refrigerantes e esse tipo de coisas, irá disparar. Não tenho a certeza do que se passa em Portugal, mas em Inglaterra é preciso dizer às pessoas que 95% dos cereais de pequeno-almoço estão cheios de açúcar. Passaram apenas 40 anos desde que toda uma indústria começou a fazer-nos uma lavagem ao cérebro. E isto não é uma teoria da conspiração. Há 40 anos não tínhamos nos supermercados 20 metros de cada lado de prateleiras cheias de cereais merdosos. Tínhamos uma série de pequenos-almoços simples que eram bastante equilibrados. Isso mudou. Não tínhamos bebidas açucaradas a não ser em ocasiões especiais, no aniversário ou quando íamos a uma feira. Não nos hidratávamos com refrigerantes. O mundo mudou em 40 anos. Para mim, o livro e o programa não são uma campanha, não estou em cima de uma montanha a fazer [bate com o pé no chão, como quem está a chamar a atenção]. O que tentamos fazer aqui é reunir os pontos e ser consistentes em cada página. Basta passarmos os olhos pelas imagens [das receitas do livro], há um ritmo na cor — e não o fiz de propósito — que nos grita equilíbrio, equilíbrio. E o que raio é equilíbrio? Em cada imagem, em cada receita, expressamos isso. A dieta portuguesa será naturalmente muito melhor do que a britânica porque inclui os vegetais e as gorduras saudáveis como o azeite. É preciso recordar que os ingleses costumavam comer 30 tipos de carne diferentes nas quantidades certas e muito mais carnes selvagens, que são muito mais nutritivas. Agora o que comemos? Galinha, porco, vaca e borrego. E é isso. Porque é que os ingleses se desligaram tanto do conhecimento do passado e isso não aconteceu, pelo menos de mesma forma tão radical, noutros países?Porque o Reino Unido é um país invulgar. Portugal teve o seu período áureo, foi muito importante com os Descobrimentos e os países que teve por todo o mundo. A Grã-Bretanha também teve o seu período áureo, a revolução industrial, metal, vidro, construção, caminhos-de-ferro… por cada quilómetro quadrado na Inglaterra, tínhamos 100km2 noutra parte do mundo. Mas o nosso período áureo aconteceu em tempos mais modernos, quando tudo estava a mudar, o gás, a electricidade, a ciência. Isso significou que as mulheres foram trabalhar e quando as duas guerras mundiais aconteceram houve uma separação entre o solo e a casa e o trabalho. Há 35 anos, apenas 12% das mulheres trabalhavam. Agora são quase 70%. Não estou a dizer que isso é bom ou mau, estou a dizer que é uma enorme mudança. Ao mesmo tempo surgiram o marketing e o branding. E será que a grande indústria pode ajudar nesta causa da alimentação saudável? Pode adaptar-se?Quando as marcas da comida processada, cheia de gordura e açúcar, começam a estar em todo o lado e a fazer imenso dinheiro, claro que se torna agressivo e ganancioso. Mas neste momento, pelo menos na América, Austrália e Reino Unido, muitas destas grandes marcas, que têm sido muito eficazes a vender-nos versões excitantes de comida que não é muito boa para nós, estão com as vendas paradas ou com um crescimento muito pequeno. O que está a crescer 14% ao ano é muito mais a comida saudável, sem glúten, integral. O mercado e o público estão a mudar. Dou-lhe um exemplo: o McDonald’s no Reino Unido usa hoje 100% de ovos de galinhas criadas ao ar livre, leite biológico, a qualidade da carne de vaca e de porco é boa, às sextas-feiras dão fruta aos miúdos. Ok, é o McDonald’s. Não vai desaparecer, não vai a lado nenhum, mas está a adaptar-se. Porque a nossa comunicação social, os jornalistas, os activistas, a sociedade civil, o público esperam mais. Isso é bom. É bom querer mais, exigir mais. Nos EUA, os mesmos negócios, que estão a ter resultados piores, não fizeram nada disso. O que é interessante é que o homem que começou a mudança aqui [no McDonald’s] há sete anos foi agora para os EUA. É bom ou mau? É bom, porque eles são muito grandes e neste momento nós precisamos de ajuda para que os miúdos achem que a fruta e os vegetais são fixes. Nas escolas já estamos a fazer o suficiente?Não. Para o Food Revolution Day [uma campanha anual criada por Oliver para defender o direito a uma alimentação saudável] este ano conseguimos 1, 6 milhões de assinaturas para uma petição [exigindo que o ensino prático ligado à alimentação passe a ser obrigatório nas escolas] dirigida ao G20. Muitas dessas assinaturas vieram de Portugal. Entre os países do G20, há apenas cinco que, por lei, ensinam as crianças sobre alimentação. No ano passado, o Reino Unido entrou na lista. Portugal não está nessa lista. Porque é que isso é um problema? Porque quando os nossos extraordinários e sábios velhotes morrem deixam de transmitir esses conhecimentos. As crianças vão para a escola grande parte do ano entre os quatro e os 18 anos, é uma estrutura que existe e que todos aceitam. E as crianças adoram plantar, nunca conheci uma criança que tivesse plantado ou semeado uma coisa e que depois não adorasse comê-la. Através da comida podemos celebrar a história, ensinar matemática. Fazer pão, por exemplo, é óptimo para ensinar a pesar, a contar, a subtrair. Está a referir-se a um ensino que leva as crianças a pôr realmente as mãos na massa e não passa apenas por ensinar-lhes a pirâmide alimentar?É preciso ver as coisas a crescer. Vocês são óptimos nisso, têm uma história e uma cozinha incríveis. Os navegadores portugueses andaram pelo mundo, só o facto de terem introduzido o vinagre na comida indiana, isso mudou a cozinha para sempre, é algo tão rico. Se queremos ter daqui a 50 anos um planeta mais saudável, é preciso ensinar as crianças a cultivar. Isto não é romântico. Quando se planta ou semeia coisas que depois se cozinham, isso muda-nos para sempre. Não significa que não se coma um McDonald’s ou se beba uma Coca-Cola, ou que não apanhemos uma bebedeira divertindo-nos com os amigos no bar. É preciso encontrar o equilíbrio. Nos últimos anos, trabalhei com comunidades em que vejo famílias com pais de 20 ou 30 anos que não têm a mínima ideia de como se cozinha. Não fazem ideia de que bolhinhas na água significa que está a ferver. “O que é isso?”, perguntam. “O que é o quê? É água a ferver. ” “E porque é que faz isso?” “Está a ferver, a água ferve a 101 graus a menos que estejamos numa montanha. ” “Ah. ”Nas últimas décadas, temos ouvido “não comam gorduras”, depois “não comam hidratos”. No seu caso, escolheu como inimigo principal o açúcar. Porquê? É o maior problema que enfrentamos?Sim, é aí que estão as maiores margens de lucro, e portanto os melhores negócios que conseguem empregar as mais brilhantes mentes do planeta, brilhantes, brilhantes. O dinheiro que as paga vem dos refrigerantes. E sabe de quem estou a falar. A maior fonte de açúcar vem das bebidas. Isso afecta as nossas crianças, os nossos adolescentes. São calorias completamente vazias, que não têm qualquer valor nutricional e não nos fazem sentir saciados. Não estou a dizer que não são deliciosas, só digo que tiveram demasiado sucesso e por isso é que acho que devem ser taxadas. Em Inglaterra, fizemos uma campanha em que pedimos um imposto para os refrigerantes. Por cada lata, 7 pence [99 cêntimos], o que equivaleria a mil milhões de libras [1, 4 mil milhões de euros] por ano e eu quero que esse dinheiro vá para as escolas e os hospitais, metade para cada lado. Toda a gente, em geral, acha que isto é uma boa ideia. Em que ponto está a campanha?Temos de fazer uma petição ligeiramente diferente, destinada ao Governo. Tenho estado a falar com [o primeiro-ministro, David] Cameron. A cada cinco anos, o Governo coloca o foco num tema, nos últimos cinco anos foi a demência, que é um problema gigantesco e que, curiosamente, está ligado à diabetes tipo 2, que por sua vez está directamente ligada ao peso, que está ligado ao açúcar. Para os próximos cinco anos, que são os últimos de Cameron, ele vai anunciar uma campanha para tornar o Reino Unido mais saudável. Somos o país menos saudável da Europa. Somos uma nação muito doente. A diabetes tipo 2 está a disparar, representa já 10% do total do orçamento para a saúde. Na minha opinião, o que o Governo vai fazer vai ser muito bom, invulgarmente bom, a avaliar pelo que tem sido feito nos últimos dez anos. Mas não será suficiente. Por isso, o meu trabalho, quer vença quer falhe, é manter o assunto na ordem do dia, não só ao nível político também ao nível mais pessoal. A questão aqui não é o Governo, são as pessoas. E se, como parece mais provável neste momento, o imposto não vier a acontecer?O imposto seria sempre o mais difícil de conseguir, mas um dia vamos conseguir. Vai acontecer nos próximos 20 anos. A reacção da indústria de refrigerantes tem sido muito forte. Quando eu lancei o documentário sobre o açúcar, todos os jornais publicaram três páginas de anúncios da Coca-Cola durante seis semanas. Um deles dizia “nós apoiamos os trabalhadores britânicos, nós empregamos 4000 pessoas no UK”. Eu emprego mais do que isso — em 42 restaurantes! Dou emprego a mais pessoas que a Coca-Cola, por isso não me venham com essa treta de como são bons para a economia. A parte boa é que o terceiro anúncio dizia que estavam empenhados em promover o consumo de bebidas não açucaradas. O que, de certa forma, pode ser considerado um sucesso para nós. É um momento crítico para a Inglaterra. Temos um serviço de saúde incrível, mas está a disparar luzes vermelhas para todos os lados. Não há um médico que não apoie o imposto sobre o açúcar. Se olharmos para a lista dos que o apoiam, a pergunta é quem não apoia?E mesmo assim é difícil torná-lo uma realidade. Não nos devemos esquecer que para fazer isto é preciso ter muita coragem, mas se conseguirmos fazer aceitar a ideia de um imposto sobre o açúcar, o trabalho mais difícil está feito. Mil milhões de libras será óptimo, mas a questão essencial aqui não é o dinheiro. No México, onde introduziram o imposto, houve uma quebra entre 6 e 10% nas vendas. França já tem um imposto, Portugal terá em breve, porque também vão começar a pagar o preço de uma saúde má. As pessoas encaram o imposto como uma coisa positiva, uma forma de protegerem a saúde, ou consideram que é uma interferência do Estado numa questão que deve ser de escolha pessoal?Haverá sempre pessoas a dizer isso. Mas 60 a 65% das pessoas no hospital estão lá por causa de uma doença ligada à alimentação. O Estado já está a pagar por causa do que as pessoas comem. Isso já está a esmagar o Serviço Nacional de Saúde. Quem vem de um bairro pobre tem quatro vezes mais probabilidade de vir a ter excesso de peso ou obesidade do que quem vem de um meio privilegiado. Miúdos dos 5 aos 11 anos que vêm de meios pobres são muito claramente a prioridade. O documentário tem imagens bastante chocantes. Digo-lhe uma coisa: ficaram chocados? O que viram foi o documentário mais bonito. O documentário que eu filmei era muito mais duro, muito mais negro e muito mais perturbador. Mas, para ser sincero, algumas das coisas eram demasiado más para mostrar na televisão. As pessoas continuam a dizer-me: era terrível. E eu digo: a sério? Porque aquilo era Disneylêndia. Passei muito tempo com pessoas que tinham sido ou iam ser amputadas. Há anualmente 7500 pessoas às quais são retirados membros por causa da diabetes tipo 2. Essas pessoas têm consciência do que esteve na origem do problema?Sim, mas é preciso perceber que quando as pessoas chegam ao hospital, mesmo se o problema está ligado à alimentação, elas queixam-se “não sinto a perna” ou “tenho uma dormência aqui”, e os médicos dizem “vamos tratar disso e pô-lo a andar novamente, vamos dar-lhe antibióticos e coisas para tornar o sangue mais fluido”. Ninguém vai a sua casa para ver o que tem na despensa. Tenho umas seis, sete organizações espalhadas pelo Reino Unido, geralmente em áreas bastante pobres, onde ensinamos nutrição às pessoas, ensinamos-lhes dez receitas que lhes podem salvar a vida, falamos com os locais sobre como podem ter mais instrumentos à disposição, saber qual é o dia em que chega o peixe fresco e qual a melhor altura para o comprar mais barato. Fazemos isso também na Austrália e nos EUA. A minha organização é muito pequena, sem recursos, gastamos milhões de libras por ano, mas não é nada, é ar. Qual é o passo mais difícil para que as pessoas ponham realmente em prática um estilo de vida mais saudável?O mais importante é ganharem consciência. Estou a fazer isto há 17 anos e mudei ao longo desse tempo. As pessoas pensam sempre que o importante é a pedrada no charco mas o mais importante são as ondas que ela provoca. Mesmo que as coisas sejam difíceis e não corram como eu queria, as ondas são lindas. Os governos só querem os nossos votos, as empresas só querem o nosso dinheiro, e não fazem nada por acaso, medem constantemente a temperatura do ambiente para saber que passo dar a seguir. Se as pessoas começam a ser mais exigentes e a ter expectativas mais elevadas, e você faz isso, eu faço isso, muitas pessoas à volta do mundo fazem isso, a forma como esses tipos actuam acaba por ter de mudar. Aquilo que aprendeu durante o tempo em que esteve a preparar este livro também o levou a mudar algumas coisas na sua vida. Qual foi a parte mais difícil?Foi o sono. Eu não parava de trabalhar. Trabalhava até às duas da manhã e estava de pé às 5h30. Isso não é saudável. Quando comecei a falar com peritos do sono, percebi que estava a fazer o pior possível ao meu corpo. Apesar de o meu estilo de cozinha ser de uma maneira geral mais mediterrânico, ter estudado nutrição é como andar de bicicleta e ir mudando as velocidades. Posso comer um bolo fantástico ou um gelado supercremoso, mas depois posso pôr outra velocidade e encontrar o equilíbrio. O que eu acho é que muitos pais não sabem mexer na caixa de velocidades. Agora, todas as receitas que escrevo são verde, âmbar e vermelho [legumes, hidratos, proteínas], um terço, um terço, um terço. E cobrem a alimentação vegan, sem glúten, sem lactose, porque é isso que o público quer e são problemas que estão aí. As suas receitas incluem também sempre contagem de calorias. Isso é importante ou não?Não, as calorias são apenas instrumentos. É como falarmos inglês. O inglês é a melhor língua do mundo? Provavelmente não. As calorias são uma linguagem que as pessoas começam a compreender. A razão pela qual eu as incluo é porque 400 calorias de refrigerante não é equivalente a 400 calorias desta comida. Uma vai dar cabo do teu corpo e a outra vai enriquecê-lo. Durante muitos anos discutimos como havíamos de apresentar as calorias: por gramas, porção, em círculos? A indústria tem tentado enganar-nos porque não querem que nós dominemos a linguagem. Dou-lhe um exemplo interessante: no Reino Unido temos colheres de chá. [Pega numa] Isto é uma colher de chá. Ainda não conheci nenhuma pessoa que não gostasse de saber que uma lata de Coca-Cola daquelas que os miúdos compram — aliás, cada lata são duas porções mas eles não sabem disso, limitam-se a bebê-la toda — tem 13, 5 colheres de chá de açúcar. Claro que diz gramas, mas eles não compreendem isso, o que compreendem é colheres de chá. [Pega num açucareiro e despeja os cubos de açúcar em cima da mesa. ] Quando se fala ao público, é preciso clareza — [começa a contar] um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze. Se isto estivesse em todas as garrafas, talvez você pensasse “bem, só vou beber uma por dia e não três”. Ainda não conheci ninguém que discordasse disto. A ciência e a nutrição dizem que não é uma métrica, mas a única coisa que interessa é que seja claro. Se usássemos isto nos refrigerantes, as vendas cairiam 15 ou 20%, nem seria preciso haver um imposto. Temos de nos lembrar disto: a indústria gosta de nos deixar confusos. Não há qualquer confusão aqui, pois não? Beberia isso? [aponta para os 13 quadrados de açúcar em cima da mesa]. Quando se dá às pessoas uma informação clara, elas fazem as boas escolhas. As pessoas não são estúpidas. 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REFERÊNCIAS:
Palácio do Marquês, Oeiras: Nos jardins do Marquês
Nos tempos em que a ribeira da Laje era navegável, os convidados do Marquês de Pombal passeavam sobre as águas em barcos engalanados. (...)

Palácio do Marquês, Oeiras: Nos jardins do Marquês
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nos tempos em que a ribeira da Laje era navegável, os convidados do Marquês de Pombal passeavam sobre as águas em barcos engalanados.
TEXTO: Nos tempos em que a ribeira da Laje era navegável, os convidados do Marquês de Pombal passeavam sobre as águas em barcos engalanados. Já andei, numa crónica anterior, no rasto do Marquês de Pombal. Acabei, recordo-me, junto dos seus restos mortais, na Igreja da Memória, em Lisboa. Mas desta vez é um Marquês mais mundano e mais romântico que descubro nos jardins do seu palácio em Oeiras, antiga quinta de recreio da família Carvalho. Numa quarta-feira à tarde só encontro os jardineiros e alguns operários que estão a trabalhar na recuperação do edifício da adega. Ouvem-se diferentes pássaros e sente-se o cheiro doce das flores na Primavera. Mas sinto a falta de um som: o da água. Esta quinta resulta da anexação de vários casais e quintas, pertenceu aos irmãos Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês (o Morgado de Oeiras fora instituído pelo seu tio, Paulo de Carvalho de Ataíde, em 1737), e Francisco Xavier de Mendonça Furtado e Paulo de Carvalho e Mendonça, e é um projecto arquitectónico com a assinatura de Carlos Mardel. Construída sobre terrenos férteis, foi no passado um lugar de homenagem à água com um sofisticado sistema hidráulico que evitava qualquer desperdício. A ribeira da Laje, que a atravessa, era navegável. Hoje há apenas um leve lençol de água sobre as pedras, e o cais de embarque está vedado. Mas podemos ler a descrição de como era no século XVIII, quando o Marquês aqui recebia as suas visitas: “A escadaria conduzia os convidados ou os donos da casa a um passeio sobre as águas em palanques engalanados. ” Em redor, freixos, ulmeiros, salgueiros e “cascatas de flores que pendiam sobre as margens”. Ainda podemos atravessar as pequenas pontes sobre a ribeira, mas uma ponte em particular, descrita como “célebre”, já não existe. Era “de rija madeira do Brasil, montava-se só com encaixes e sem um único prego e desmontava-se para deixar passar a água furiosa dos Invernos e das cheias”. Imagens inspiradas no que seriam estes passeios surgem nos painéis de azulejos de estilo rococó que cobrem os muros, as escadarias e os bancos dos jardins, por entre outras de anjos roliços a encorajar romances entre galantes cavaleiros e damas igualmente roliças ou cenas de caça com fidalgos elegantes a perseguir javalis e veados. A quinta era de recreio, mas funcionava também como casa agrícola, com os lagares do vinho e do azeite (este recuperado e visitável), a imponente adega decorada com os bustos dos imperadores romanos e capacidade para 900 pipas, e, por cima, o celeiro onde se guardavam os cereais da quinta para além dos provenientes das rendas pagas ao Morgado de Oeiras. Calcula-se que o azeite, dos oito olivais que o Marquês possuía em Oeiras, seria em tal quantidade que se destinaria ao consumo próprio da casa mas também à exportação para Lisboa. Há ainda uma Casa do Alambique, onde terá funcionado um destilador para fazer aguardente, provavelmente com o que sobrava da produção de azeite. Em frente ao palácio erguem-se duas gigantescas araucárias, que dão o nome ao terraço. Em baixo, há um jardim de flores criado pelo arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles nos anos 60 do século XX, na altura em que o palácio e os jardins pertenciam à Fundação Calouste Gulbenkian (desde 2003 pertencem à Câmara Municipal de Oeiras) — mas sabe-se que anteriormente, na época do Marquês, ali existia um laranjal. Contorno o edifício e descubro a Fonte dos Embechados, seca, decorada com pedaços de conchas, pratos partidos e espelhos, recanto romântico onde o Marquês e aquela que foi a sua segunda mulher e mãe dos seus cinco filhos, Leonor Ernestina de Daun, decidiram gravar as iniciais de ambos entrelaçadas. Antes de atravessar uma das pontes para ir até à Cascata dos Poetas, paro um momento no antigo campo de jogos. Uma placa recorda a histórica visita que a rainha D. Maria I fez à quinta em 1783 (um ano depois da morte do Marquês de Pombal), vista como um sinal de reconciliação com a Casa de Oeiras. Conta-se que houve “jogo da bola” e foram oferecidos “sorvetes de várias castas”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas a grande sensação da visita real terá sido a Cascata dos Poetas, na altura chamada Gruta Nobre. Também aí a estátua de um gigante, figura alegórica ao rio Tejo, preside, deitado de lado, barbas encaracoladas e olhar perdido no horizonte, sobre uma cascata sem água, observado pelos bustos dos poetas Homero, Virgílio, Tasso e Camões, esculpidos por Machado de Castro. Atravesso depois a horta ajardinada e a Fonte das Quatro Estações até ao terraço das merendas, junto à adega, onde os operários trabalham. As duas enormes mesas de pedra ali estão, inamovíveis — o resto, temos de imaginar. Leio que haveria também “imensos cadeirões estilo D. José, em madeiras exóticas do Brasil, as toalhas, os tecidos dos vestidos, as sedas coloridas, os vidros, as pratas e os arranjos de frutos e flores da época”. E pelas cinco da tarde, depois do passeio de barco pela ribeira e antes do sol se pôr, conversava-se e petiscava-se nos jardins do Marquês, “ao som da água nos dois lagos onde nadam as carpas e da música instrumental”.
REFERÊNCIAS:
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