"Façam títulos atraentes porque no fim vamos todos votar"
O apelo é da ministra da Presidência e diz respeito ao Orçamento Participativo Portugal, que já tem mil propostas em carteira. (...)

"Façam títulos atraentes porque no fim vamos todos votar"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2017-07-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: O apelo é da ministra da Presidência e diz respeito ao Orçamento Participativo Portugal, que já tem mil propostas em carteira.
TEXTO: O Orçamento Participativo Portugal (OPP) tem actualmente cerca de mil propostas em carteira, revelou a ministra da Presidência, que aconselhou nesta quarta-feira, no Porto, potenciais participantes num projecto que tem alocados três milhões de euros. "Façam títulos atraentes porque no fim vamos todos votar. Portanto temos de perceber as propostas que nos são apresentadas (. . . ). E que ganhem as melhores. O Governo compromete-se, goste ou não goste, a executar as propostas vencedoras", apontou à agência Lusa, Maria Manuel Leitão Marques, quando convidada a explicar como estava a correr a interação entre membros do executivo e os potenciais proponentes do OPP. Nesta quarta-feira à tarde decorreu na Fundação de Serralves, no Porto, também com a participação do primeiro-ministro António Costa, o último Encontro Participativo que assinala da fase de apresentação de propostas para o Orçamento Participativo Portugal, uma iniciativa da qual sairão vencedoras oito propostas - uma por cada região continental, uma por cada região autónoma e uma de âmbito nacional - estando alocado um total de três milhões de euros (375 mil euros para cada projecto). Na sessão participaram vários membros do Governo, que conversaram com os participantes, receberam as suas propostas e retribuíram com conselhos. A ministra da Presidência e da Modernização Administrativa pediu, por exemplo, para que as propostas não fossem vagas e relatou ter ouvido "ideias muito interessantes". "Podemos falar em inclusão digital para adultos, mas podemos dizer 'vamos pôr as pessoas com mais de 80 anos a falar pelo skype' - e há tantas pessoas que têm os filhos fora e não sabem que de forma gratuita podem falar com a família e estar a vê-los. É algo que se pode fazer com pouco dinheiro", exemplificou Maria Manuel Leitão Marques. Também o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, contou à Lusa ter conhecido "projectos muito valiosos, muitos deles interdisciplinares e interministeriais" sobre, nomeadamente, educação para a cidadania e educação para a saúde e educação, destacando as "propostas muito interessantes na área da formação de adultos". "É uma experiência fantástica poder ouvir as propostas dos cidadãos e que estes possam ter um contributo dos governantes", disse o ministro da Educação, indo ao encontro da convicção da ministra da Presidência, que lembrou "as vezes em que se ouve dizer 'se eu fosse ministro da faria isto ou aquilo'". "Agora têm oportunidade de fazer uma proposta e fazê-la directamente ao ministro. É muito importante ver quais são as ideias que as pessoas têm nas diferentes áreas", disse a governante. Por sua vez, o ministro da Agricultura, Capoulas Santos, revelou-se "satisfeito" por ter constatado que "cerca de um terço [das propostas até aqui comunicadas] dizem respeito à agricultura, ou seja, uma em cada três. "[Isso] quer dizer que mesmo as populações urbanas tem propostas nestas áreas, não são apenas as populações rurais, quer dizer que a agricultura está muito enraizada nas pessoas", comentou Capoulas Santos que elogiou, entre outros, um projecto para identificar castas de vinha desconhecidas ou um relacionado com o desperdício alimentar nas cantinas escolares. Ao lado, Anabela Braz Pires preenchia a proposta de candidatura. A sua ideia é implementar grupos de canto para seniores. A cantora pensou neste projecto por considerar que "os grupos de canto estão associados a benefícios físicos, sociais, culturais e ao bem-estar. É preciso galvanizar a área da cultura porque o país precisa de cultura", referiu. Já Hugo Faria, engenheiro mecânico e docente na Universidade de Aveiro, quer criar bons hábitos no dia-a-dia, na rua, nas pessoas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. "Coisas caricatas, como cuspir para o chão ou deixar o cocó dos cães para trás, podem e devem mudar", descreveu, ainda sem ter decidido se irá levar adiante a proposta, mas descrevendo a iniciativa como "importante" pela "oportunidade dada às pessoas". Durante o mês de Maio, as propostas vão dar entrada nos diferentes ministérios e a tutela verá se são viáveis e se cumprem os requisitos deste OPP. Aquelas que preencherem as condições seguem para votação por mensagem gratuita ou online durante os meses Junho, Julho, Agosto e Setembro.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura educação cães cantora
Carminho quis ser apenas Maria numa viagem a depurar o fado
Depois do disco onde deu voz própria a canções de Tom Jobim, Carminho voltou ao fado, num disco íntimo e produzido por ela, onde a maioria dos temas levam a sua assinatura. A partir de sexta-feira nas lojas, Maria, título que é também o seu primeiro nome, simboliza a máxima depuração que conseguiu, num exercício arriscado de onde saiu a ganhar. Ela e todos nós. (...)

Carminho quis ser apenas Maria numa viagem a depurar o fado
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois do disco onde deu voz própria a canções de Tom Jobim, Carminho voltou ao fado, num disco íntimo e produzido por ela, onde a maioria dos temas levam a sua assinatura. A partir de sexta-feira nas lojas, Maria, título que é também o seu primeiro nome, simboliza a máxima depuração que conseguiu, num exercício arriscado de onde saiu a ganhar. Ela e todos nós.
TEXTO: O exercício era arriscado, mas foi ganho. Depois da aventura que foi dar voz própria a temas de Tom Jobim, Carminho quis voltar ao fado mas depurando-o, para ver até onde conseguiria ir sem se afastar da matriz. “Foi uma coisa muito íntima, muito pessoal”, diz Carminho ao Ípsilon. Por isso deu-lhe nome de Maria, mas não simplesmente, porque essa busca obrigou a uma reflexão mais profunda sobre o que o fado representava para Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, nascida em Lisboa em 20 de Agosto de 1984, filha da fadista Teresa Siqueira e conhecida nos meios fadistas por Carminho. O resultado, em cuja capa ela surge como que a levantar um véu, chega hoje às lojas. Tem três guitarristas diferentes, consoante os temas (Bernardo Couto, José Manuel Neto e Luís Guerreiro), viola de fado (Flávio César Cardoso), baixo acústico (José Marino de Freitas), piano (apenas na faixa final, João Paulo Esteves da Silva), pedal steel guitar (Filipe Cunha Monteiro) e guitarra eléctrica (Filipe Cunha Monteiro e a própria Carminho). “Eu queria fazer um disco de fado. E comecei a pensar, num sentido mais filosófico, para onde é que o fado tem ido, de onde veio, para onde tem caminhado, o que tem feito. Porque eu, desde pequenina, ao mesmo tempo que comecei a falar comecei a cantar fado. Agora quis fazer o exercício de perceber o que era o fado para mim, o que é que me tinha ensinado, o que é que me tinha dado. E quais eram os valores primordiais, para mim, no fado. Para construir um disco de fado, mas contemporâneo, um disco meu. ” Concluiu que o fado é cada vez mais uma soma de elementos, equiparado às camadas de uma pintura, e decidiu experimentar o inverso: “Uma subtracção de elementos, para saber até onde eu subtrairia de modo a que continuasse a ser fado. Se eu continuar a subtrair, onde é que o fado mora? De alguma maneira, mora numa voz; que seja fadista, e dessa linguagem. ”Autoria: Carminho Warner MusicPor isso o disco começa inteiramente a capella, com um fado que ela escreveu, letra e música, A tecedeira, mas onde se consegue quase adivinhar o som dos instrumentos que lá não estão. “Porque o fado mora numa energia, tem de respeitar algumas regras mas as da emoção, não necessariamente a das experiências, que tanta gente faz e muito bem. ” A essa introspecção seguiu-se, ao planear o disco, o exercício de juntar o indispensável para procurar a cor própria para o que delineara. “Agora que tenho uma voz, que elementos vou somar para compor as matrizes que constituem este disco, a voz, o ambiente? A casa de fados também tem um som, um ambiente, que se perde ao vir para estúdio. Qualquer coisa que não é música mas que é musical. ” Daí que neste disco, gravado “ao vivo” em estúdio, com todos a tocar ao mesmo tempo, haja um sopro, um ruído, que nalguns casos abre uma faixa. Ao ponto de um dos temas, Sete saias, soar a uma daquelas alternate takes que surgem em discos acrescidos de preciosidades dos arquivos: ela diz no início “Vai, Luís” (incentivando o guitarrista Luís Guerreiro) e no final suspira: “Uff”. Resumindo: ela quis juntar a voz, o ambiente e o contar das histórias. “Senti que podia trazer qualquer coisa de novo desde que respeitasse a emoção que eu vi nascer, quando estava nessas noites de fado com os meus pais. ” E essa coisa de novo passa pelo recurso a uma guitarra eléctrica (que ela toca em Estrela, outra das suas composições) e pelo uso de uma pedal steel guitar, utilizada na música country. “Como é muito manipulada, com pedais e com arco, cria um ambiente e uma atmosfera que em nada desfaz, para mim, a atenção da guitarra portuguesa, da voz e do contar da história inerentes ao fado. ”Os temas escritos por ela não surgiram só para o disco, já vinham de trás. “Os meus discos são sempre processos contínuos, de busca de repertório, de conhecimento de poesia (portuguesa, brasileira), de vários caminhos que me foram levando aos rumos que segui. Mas gosto muito da fatalidade do acaso. Quando se está a trabalhar de dentro para fora, ou seja, daquilo em que se acredita para uma música que se faz ou um poema que se escolhe, há uma união de tudo isso. Acredito que a consistência mora aí. ” Dois anos de estudo deram, assim, lugar a dois meses de estúdio. O arranque a capella não surgiu logo, mas na sequência do pensamento que deu forma ao disco. E à exposição nua da voz, onde se sentem as respirações com uma proximidade impressionante, segue-se, já com guitarra e viola, a sua extensão até ao grito, a partir das palavras de Pedro Homem de Mello, em Começo (no Fado Bizarro): “Principio a cantar para quem tenha/ fome de ouvir a música do vento. ” A estridência da voz, única faixa do disco onde se tem essa sensação, é, diz Carminho, propositada. “Foi um suspiro de começar. Como se a tecedeira [e a sugestão de tecer, entrelaçar, é já significativa no gerar do tecido musical aqui proposto] estivesse num vácuo, num espaço zero, e esse Começo fosse um grito de esperança. Como diz a frase final: ‘Nascemos porque a dor é sempre nova/ E não há sofrimentos repetidos. ’”Além de A tecedeira, há mais três temas no disco integralmente escritos por Carminho, letra e música: Estrela, A mulher vento e Poeta. Além deles há dois com letra dela e música já existente, Desengano, de Jaime Santos (Fado Latino), e Se vieres, com música de Armando Machado (Fado de Santa Luzia); e ainda outro que ela musicou a partir de um poema de Reinaldo Ferreira, Quero um cavalo de várias cores, poema que já foi musicado e gravado por AP Braga, João Maria Tudella ou Frei Hermano da Câmara. Comecemos por Estrela: “Foi uma música que compus nos Estados Unidos, numa tournée, e nem ia inclui-la no disco porque não tinha a certeza de conseguir entendê-la no conjunto deste pensamento. Só que um dia estava em estúdio, comecei a dedilhar uma guitarra eléctrica e a cantar, estávamos numa pausa para café. De repente, o Artur [David] pôs a gravar e quando a ouvi percebi nela uma depuração e uma simplicidade que me fizeram hesitar. Era uma música minha, eu a cantar e a tocar ao mesmo tempo. Claro que há ali uma insegurança, mas ao mesmo tempo uma grande alegria. ” Então voltou para dentro da cabina e tocou a canção do início. Gravou quatro takes, ficou o primeiro. Há ainda, no disco, duas versões: Sete saias, de Artur Ribeiro, um malhão que ela trata a seu modo, mantendo-lhe apenas o essencial da estrutura reconhecível. E Pop fado, escrito por César de Oliveira com música de Fernando de Carvalho e gravado em disco por António Calvário, em 1966. “Liguei-lhe, ele ficou um bocadinho surpreso. Mas depois encontrámo-nos, ele é muito divertido, muito simpático. E o tema surge com uma espécie de jocosidade, brincar comigo mesma e com aquilo de que gosto. É uma discussão eterna e muito antiga, como se vê, ser pop ou ser fado, se andam ao estalo ou se andam a par. ”Desengano, que é a bonança depois da tempestade de O começo, surgiu na estrada. “Por intuição, tudo o que escrevi para fados tradicionais já o escrevi com a música na cabeça. Eu escrevo a cantar, por causa da métrica das palavras. Um dia estávamos na estrada, e o Flávio [viola] estava a fazer um exercício com um tema de Baden Powell. Ouvi e pedi-lhe: ‘Pára! Toca o Fado Latino a fazer isso. ’ Ele tocou e eu comecei a cantar por cima. ”Ser o terceiro tema no alinhamento foi uma opção consciente, diz Carminho: “Eu fiz o alinhamento com um sentido de álbum, de viagem. E porque é um disco de fado com uma viagem diferente, este Desengano vem ‘desenganar’ o continuar do disco. ” Seguindo a sequência do disco, a próxima estação da viagem é O menino e a cidade, um dos dois temas que Joana Espadinha assina, letra e música (o outro é As rosas, a fechar o disco). “Quando eu estava a fazer o meu disco Carminho Canta Tom Jobim, há dois anos e meio, recebi uma mensagem de um amigo dos fados a dizer que uma amiga, do jazz, cantora e compositora, tinha feito um tema a pensar em mim. ” Como estava muito embrenhada no disco, era muito complicado parar para ouvir. Mas, como tinha de dar uma resposta, lá arranjou um tempo. “Parei um bocadinho, fui ouvir e fiquei deslumbrada. Era ela a cantar, numa demo, com uma viola, e escrevi-lhe logo a agradecer. ” Mas pediu-lhe se podia esperar dois anos, se podia guardar a canção. E ela deu-lha e esperou. “Agora, quando comecei a trabalhar neste disco, tirei-a da gaveta. Convidei a Joana para ir a minha casa, porque não a conhecia, e ela já trazia na pasta mais três ou quatro temas que tinha feito para mim. Aí vêm As rosas e mais outros temas que por acaso não entraram. E começou um processo muito feliz do encontro entre uma compositora e uma intérprete que se conseguem complementar e entender. Acho que esta relação vai continuar. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A segunda canção de Joana, que fecha o disco, As rosas, foi pensada para voz e piano. “Ainda houve a ideia de ser só piano, mas eu quis introduzir o Filipe com a pedal steel guitar, tocada com o arco. Não é muito perceptível, mas traz energia à canção. ” Como um coro, ou um sopro de vento. E o piano de João Paulo Esteves da Silva dá-lhe uma envolvência magnífica, com a voz de Carminho a abraçar com amor as palavras: “Se as rosas são feitas para morrer, / Quando se espalham no chão, onde vão? Quem serão?/ Algum dia minto pr’a te perdoar. / Ai meu amor, quem sabe o que eu chorei por ti. ”Mas é A mulher vento que melhor a retrata. Foi composta em Serralves, quando lá cantou com Marisa Monte. Carminho estava no camarim, Marisa a aquecer a voz e, como era dia ventoso, os vocalizos dela misturavam-se ao vento que fazia bater as portas. “A ideia, que começou a crescer dentro de mim, é a de uma mulher que está destinada a ser a voz do vento. E o mundo não vive sem o vento, porque o vento é essencial para acender as fogueiras, para levar os recados das que esperam do outro lado do mar, para levar as velas dos barcos, para trazer as notícias. E aquela mulher está confinada à missão de cantar o vento. E eu, no fim, talvez escolhesse ser essa mulher. Porque é o retrato de uma cantora que acaba por entregar a sua vida a algo que eventualmente possa ser maior do que ela. ”
REFERÊNCIAS:
Um homem na cidade
Sergei Dovlatov é o centro de um retrato de uma geração de artistas à deriva no regime soviético, e de um filme imperdível sobre o custo da resistência. (...)

Um homem na cidade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sergei Dovlatov é o centro de um retrato de uma geração de artistas à deriva no regime soviético, e de um filme imperdível sobre o custo da resistência.
TEXTO: Em 1971, Sergei Dovlatov (1941-1990) não tinha onde cair morto. Escrevia para a revista dos operários navais, mas queriam que ele fizesse uma peça ardente e construtivamente revolucionária sobre o lançamento de um barco a quem foi dado o nome de um poeta que ninguém tinha lido. Enviava contos para a revista literária da sua Leninegrado natal, mas ninguém os publicava, e enquanto ninguém publicasse uma autoria sua, ele não podia ser reconhecido pela União dos Escritores Russos. Dovlatov estava separado da mulher e tinha uma filha menina, e embatia de cabeça com a rigidez burocrática de um regime anquilosado que insistia em instrumentalizar a arte para cantar as loas da grande revolução socialista que, no entanto, parecia só chegar a alguns. Realização: Aleksey German Actor(es): Milan Maric, Danila Kozlovsky, Helena SujeckaDovlatov, o filme, são seis dias na vida de Dovlatov, então apenas mais um escritor a procurar sobreviver pelo meio do labirinto soviético, hoje uma das mais aclamadas e importantes figuras da literatura soviética do século XX. (Como o cartão final desvenda, essa popularidade foi post-mortem; Dovlatov seguiu as pisadas do amigo Josef Brodsky e exilou-se nos Estados Unidos, onde morreu à beira de fazer 50 anos de um ataque de coração. ) E é a homenagem por interposta pessoa de Alexei German Jr. ao seu pai, Alexei German (1938-2013), cineasta que, como o escritor, passou a carreira às turras com o regime e em vida apenas rodou seis filmes. Mas acima de tudo Dovlatov é um retrato de geração e de ambiente corporizado numa figura que serve de ponto de referência para o espectador. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O filme mergulha-nos desde o início num enorme e fluido rio de episódios e situações que vamos percorrendo ao sabor dos encontros do escritor, com a câmara do polaco Lukasz Zal (Ida e Guerra Fria) a envolver-nos numa dança permanente por entre apartamentos, cafés, estaleiros de obras, escritórios. É um percurso em câmara lenta onde a saída apenas nos devolve à porta de entrada, uma pescadinha de rabo na boca que garante que os escritores, poetas, pintores, escultores que se cruzam com Dovlatov nunca serão reconhecidos a não ser que verguem a cabeça aos desejos dos caciques. Num momento em que as conversas sobre o valor e a importância da arte e da cultura voltam a tornar-se imprescindíveis, Dovlatov e o seu onirismo desencantado e acinzentado, a sua ironia selvagem e realista, o seu desespero subterrâneo em busca da energia necessária para insistir em resistir, é fita de visão obrigatória. Enquadra-se nas grandes tradições do cinema russo, do humanismo ao virtuosismo formal, ora recordando a precisão alegórica de Tarkovski, ora o desejo de liberdade do I Am Twenty de Khutsiev. E fá-lo através de um homem na cidade, à procura de um futuro que não parece brilhante — mas que, como todos os futuros, não está escrito à partida.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra filha cultura ataque mulher homem morto
Lobo Antunes, o maestro galanteador — ou a importância das pernas num mundo de intelectuais muy aburridos
O autor português está divertido na Feira do Livro de Guadalajara, onde há dez anos lhe deram o Prémio Juan Rulfo e continuam a tratá-lo por mestre. Ali deixou um recado para Donald Trump ("Ele que vá à merda") e elogios rasgados à "nobre" cultura mexicana. (...)

Lobo Antunes, o maestro galanteador — ou a importância das pernas num mundo de intelectuais muy aburridos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.65
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O autor português está divertido na Feira do Livro de Guadalajara, onde há dez anos lhe deram o Prémio Juan Rulfo e continuam a tratá-lo por mestre. Ali deixou um recado para Donald Trump ("Ele que vá à merda") e elogios rasgados à "nobre" cultura mexicana.
TEXTO: António Lobo Antunes está de regresso à Feira Internacional do Livro (FIL) de Guadalajara, onde recebeu em 2008 o Prémio Juan Rulfo. Há dez anos, recebeu uma chamada e do outro lado alguém lhe disse que tinha recebido um prémio no México. “Era uma voz de mulher e eu perguntei-lhe: ‘Quanto?’ Do outro lado da linha ouvi que se riam, e a senhora disse-me que se tratava de uma conferência de imprensa. Eu não sabia que estava a falar para muitas pessoas”, contou na manhã de segunda-feira em Guadalajara (final da tarde em Portugal), num encontro com jornalistas, o escritor português que está na FIL a convite da própria feira mas também integrado na comitiva de Portugal, o país convidado, em cujo pavilhão será esta terça-feira entrevistado pelo académico colombiano (e pessoano) Jerónimo Pizarro. Horas depois, num apinhado auditório Juan Rulfo — onde foi necessário entrar meia hora antes de a sessão começar para garantir lugar, e que acabou por ter um letreiro a dizer “lotado” —, sentado ao lado da escritora e jornalista colombiana Laura Restrepo, que lhe ia tentando fazer perguntas mas não o interrompia, Lobo Antunes contou a mesma história, mas arranjou um final diferente. "Acho que só me pagaram agora, quando puseram a Laura [Restrepo] aqui comigo. ” Palmas e gargalhadas na sala. “Pagaram-me com muito atraso. Mas perdoo. É para mim um grande prazer estar com uma mulher que admiro muito e é uma das grandes figuras da literatura em qualquer que seja a língua”, respondeu à autora de Demasiados Heróis, que o tinha apresentado como um grande escritor da "literatura lusa”. Mas toda a conversa entre os dois foi assim, com Lobo Antunes a galanteá-la. Ela a dizer que ele assim a “deixava tímida”, ele a responder “que bom”. A sala a rir-se às gargalhadas com as histórias que Lobo Antunes já contou variadíssimas vezes, como a do seu avô que achava que a literatura era para mulheres e maricas e que um dia lhe perguntou se o era, quando ele não sabia ainda o significado da palavra. Mas também com o diálogo entre os dois: “E tu Laura, como o fazes?”, perguntou a determinada altura o português. “Não vou cair na tua armadilha", respondeu-lhe a colombiana. Ele: “Assim é muito fácil, fazes-me perguntas mas não contas como o fazes. " Ela: "Não me perdoariam que me pusesse a falar de mim tendo-te à minha frente. "Numa plateia com muitos homens, mas maioritariamente feminina, o autor que está a lançar no México Não é Meia-Noite Quem Quer desenvolveu uma teoria não sobre a inveja do pénis, mas sobre a inveja dos homens, por não serem gestantes, e sobre como gerar um livro é a maneira que têm de o substituir. Referiu a “invisível alegria de criar” de John Steinbeck, e argumentou que os escritores que não dão à luz, como ele, têm os seus fantasmas. “A luta com as palavras, a luta para fabricar um universo vivo, um livro, é a única chance que temos de ficarmos grávidos. E depois queremos todos ter filhos perfeitos e lindos que nos prolonguem a vida. ”Até ao fim, a conversa rendeu tiradas estupendas como “Se Deus existir, espero que tenha barbas” ou “A nossa vida de adulto não é mais do que a infância fermentada”. Houve quem ficasse desgostado com o machismo e a misoginia mostrados por Lobo Antunes, na sua versão de escritor galanteador. No livro que Laura Restrepo está a lançar na feira, Los Divinos, há uma epígrafe de Michel Tournier que vem a propósito: “Para começar, o que é um monstro? Já a etimologia da palavra nos reserva uma surpresa um tanto pavorosa: monstro vem de mostrar. ”Talvez por isso, uma leitora mexicana, professora de espanhol, que não o conhecia muito bem, e a quem o monstro se mostrou, ficou a achar que o Lobo era “ameno e inspirador”. Já de manhã, Lobo Antunes tinha dito que se estava a divertir em Guadalajara e contara que há dez anos, ao chegar, se enamorou dos mexicanos: da delicadeza, da ternura, do castelhano que falam, da maneira como o trataram. “Foi muito bom para mim e ao mesmo tempo muito difícil. Ao terceiro ou quarto dia de um programa com muitas coisas comecei a ter uns sintomas raros. A esvair-me em sangue. O meu editor disse-me: ‘É a vingança de Moctezuma, não há problema, vai passar. ' Não era, era um cancro [do cólon] que se manifestou de maneira exuberante aqui. Regressei a Portugal, passei por uma operação, o medo das metástases. Foi muito difícil. Estive internado muito tempo, mas estar aqui foi muito bom para mim, os leitores, a gente que me leu, o carinho que me deram. Emocionou-me muito, por isso sempre quis voltar. ”Embora esteja a lançar um livro no México, escapa a falar sobre as suas obras porque um livro terminado para ele é como um matrimónio que terminou com um divórcio. “Tens de o esquecer, porque se não esqueces não consegues começar outro”, disse o autor, que acedeu ainda assim a partilhar o seu regime intensivo de escrita: das 6h às 13h; das 14h às 20h e mais duas horas depois das 21h30. Todos os dias incluindo sábados e domingos. Contou que chegou a conhecer o escritor mexicano Juan Rulfo, autor de Pedro Páramo. “Estive com ele duas vezes. Era o homem mais humilde que conheci. Quando se fala com estas pessoas e elas se esquecem que podes ser um jornalista e não tentam posar de perfil para a eternidade, começam a falar de si mesmas com muita humildade. Escrever é muito difícil, é uma coisa impossível, nunca vais conseguir escrever o que queres. De derrota em derrota, mas podem ser gloriosas derrotas. Não há nenhum segredo, só trabalho. ”A uma pergunta sobre em que situações, além da guerra, se sentiu em mundos irreais, respondeu: “O que é a realidade? Quantas realidades há? Ninguém sabe responder a essa questão. Vives ou sonhas, por exemplo, como Caldéron [de la Barca], que sustentava que a vida não é nada mais do que um sonho. Essas são questões muito difíceis porque não tenho resposta. Só tenho perguntas. Não tenho nenhuma solução para nada. ” Mas Lobo Antunes tenta compreender o incompreensível mundo ou a morte. “Estava a recordar-me de Walt Whitman. Havia um velório, havia um morto, pessoas que choravam e uma menina pequena. Ele pegou na criança, levantou-a diante do morto, e mostrou-lhe o rosto do defunto: ‘Compreendes? Eu também não. ’”Da guerra, claro, também falou: “Trabalhei como psiquiatra quando cheguei da guerra. Não vou falar da guerra, foi muito tempo e de uma violência inimaginável. Os hospitais psiquiátricos para onde fui trabalhar eram para mim também incompreensíveis, tão estranhos, tão raros, como a guerra num país como Angola, em África, com um clima que eu não conhecia, gente que eu não conhecia, ruídos que eu não conhecia, cheiros maravilhosos que eu não conhecia, uma beleza incrível que eu não conhecia. No meio disto, a morte, a morte, a morte… a morte. Tinhas sempre a morte diante de ti. ”Na Angola que conheceu enquanto alferes na Guerra Colonial, contou, os militares viviam numa casa onde estavam guardados os caixões, e divertiam-se a dizer: este é para ti, aquele é para ti, apontando uns para os outros. Mas não é só a morte que é um mistério incompreensível para o escritor de 76 anos. É também a vida, trágica e tão variável, com tanto material, tanta coisa… “Escrever é escutar com mais força. As vozes começam a falar e só tens de traduzir. A escrita, se olhares bem para ela, é um delírio organizado. ”“É muito curioso como em todas as coisas há vida. Esta oferece, constantemente, materiais maravilhosos que a maior parte das vezes um escritor não utiliza. Isso acontece porque todos nos esquecemos de olhar. Como quando um homem dizia a um amigo: ‘Descobri que a minha mulher me está a enganar porque quando eu descia as escadas para ir trabalhar ela dizia-me adeus da janela’. O amigo respondeu-lhe: ‘Ou foste tu que quando partias te esqueceste de olhar para trás?’ A maior parte das vezes somos nós que nos esquecemos de olhar. E escrever é não se esquecer de olhar. ”"Quando somos jovens achamos que podemos ganhar ao andar do relógio", diz-lhe uma jornalista mexicana, querendo saber se o “mestre”, como todos por aqui o tratam, tem alguma coisa pendente no tinteiro, se quer escrever algo antes que o relógio pare. “Mas você acha que as pessoas só são jovens até uma certa idade? Para mim é curioso que diga 'quando somos jovens', porque olho para uma mulher que foi jovem e já não o é e tenho medo que se trate de um zombie. Quando voltar a ser uma pessoa de novo, falo consigo. ”A jornalista insistiu para que comentasse os problemas com movimentos migratórios “que países como o México e Portugal enfrentam”. Lobo Antunes respondeu-lhe que em geral não comenta nada. “A vida aqui, agora, para os mexicanos, é muito difícil. Fico furioso que o senhor Trump ponha uma pressão como esta sobre um povo que ele não conhece porque é um ignorante. Um povo com uma cultura como a mexicana, que tem séculos de cultura. . . aborrece-me que a olhem de cima para baixo. Uma gente que é muito mais nobre e mais importante do que ele, com um passado muito maior do que o seu. Ele que vá à merda. E não comento mais. Se eu fosse mexicano, e creio que somos todos mexicanos, como somos todos franceses ou italianos, mas de uma maneira diferente, a minha atitude seria de desprezo. E se pudesse fazer alguma coisa, claro que faria. Compreendo perfeitamente o que a gente daqui está a fazer. Não compreendo que se trate um povo assim. Enfurece-me. ”Recordou que os mesmos turistas que iam a Portugal pelo sol tratavam os portugueses como se fossem cães. "Eram morenos, não tinham os olhos azuis. A mim tratavam-me bem porque tinha olhos azuis e cabelo claro. Na classe social onde nasci, uma pele muito morena não era tão bem recebida. Ter um rapaz loiro era o mais importante para uma mãe em Portugal, porque tinha uma conotação social. O mundo era dos loiros porque os gringos eram loiros. ” Não surpreendentemente, na sessão do final da tarde, ao lado de Restrepo, a versão foi um pouco diferente. Quando era jovem, ser loiro era um impedimento, diziam-lhe “és loiro, não podes dar prazer a uma mulher". "Porque ser loiro significava que não se era latino. "Uma menina interrompeu então a sessão para colocar na mesa um papelito que dizia que o tempo da conversa estava a terminar. Lobo Antunes aproveitou para dizer que pensou que o papel dizia que o marido de Laura Restrepo o queria matar. “Estou a divertir-me e é isso que importa”, tinha já admitido de manhã. “Em geral não vou a feiras do livro. Fui uma vez, quando comecei, a Frankfurt. Depois fui a uma feira de Jerusalém porque me deram um prémio. E outra vez a uma feira na Suécia porque me deram um prémio. ”Agora está numa feira onde Portugal é o país-tema. “Isto de um país convidado é sempre discutível. Porquê este país? Porquê estes convidados? Poucos escritores são indiscutíveis. Esses acredito que os convidem. Os outros… há muitas variáveis que entram aqui e que não têm nada que ver com a organização. Se eu organizasse uma feira, quantos Stendhal haveria? Não há nenhum em Portugal. Por isso temos de trabalhar com quem temos. Os génios não nascem assim. ”Há sempre uma parte afectiva nestas escolhas, defendeu. “Para mim, Faulkner é o melhor. Porquê? Porque gosto dele. Podemos encontrar mil explicações racionais, pelo seu trabalho com o tempo, pelo seu trabalho com a memória, mas não é por nada disso. ” Da mesma maneira que quando nos apaixonamos dizemos que se trata de uma pessoa muito inteligente. Não é verdade, apaixonamo-nos e não sabemos porquê. “Apaixonas-te porque vais para o outro corpo como uma bola na praia. Os mecanismos mentais são tão inconscientes que nos movimentamos e vivemos por pulsões. Todas as coisas são arbitrárias. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. António Lobo Antunes, o mestre, não sabe quem são "os outros escritores portugueses" em Guadalajara. "Não os conheço fisicamente. Não penso nada [acerca deles] porque não os li ou li-os muito pouco. Para mim seria muito difícil escolher gente. Provavelmente escolheria porque gosto do sorriso daquele ou das pernas daquela… são muito importantes as pernas. É que los intelectuales son muy aburridos. Esquecem-se demasiado as pernas, é essa a verdade, porque esse é também um julgamento literário. ”O PÚBLICO viajou a convite do comissariado para a participação portuguesa na FIL Guadalajara 2018
REFERÊNCIAS:
Chá, história e um castelo de algodão
Uma paragem num café que se transforma num jogo a várias mãos. Um passeio pela antiguidade que termina num castelo de algodão de outro mundo. Uma viagem pela hospitalidade turca. (...)

Chá, história e um castelo de algodão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma paragem num café que se transforma num jogo a várias mãos. Um passeio pela antiguidade que termina num castelo de algodão de outro mundo. Uma viagem pela hospitalidade turca.
TEXTO: Entre cigarros e um confortável türk çayi, o famoso chá turco, Cengiz e Ali trocam piadas perante a assistência. No meio da mesa, um tabuleiro, algo solene. Tavla, dizem-nos, um gamão com regras um pouco diferentes. É dia de jogo, como são todos, no pequeno café Maykil Çay Ocagi, em Kemer, centro turístico à beira-mar, a 40 quilómetros de Antália, o epicentro por excelência da Riviera Turca. A esplanada está composta, mas aqui, em vez dos típicos torneios de sueca lusos, os homens concentram-se nos tabuleiros de madeira. “Ali kaput. Me good”, graceja Cengiz, bigode aprumado e sorriso maroto, apropriando-se de vocábulos quase universais para vencer as barreiras linguísticas com a audiência estrangeira que por ali (en)calhou. Está 3 a 1, Ali encolhe os ombros e gargalha, enquanto vê o adversário lançar os dados. Entretanto, já somos nós que temos chá nas mãos, de maçã, verde eléctrico. Entretanto, já estamos à mesa e fazemos parte do jogo, que Cengiz vai explicando, como pode. Tentamos aprender. E, em troca, lá vamos tendo respostas. Nasceu em Ancara, vive por aqui há 30 anos. Tem uma loja ali perto, está a fazer uma pausa no trabalho. Se já fomos ao mercado? Sim, fomos, dar o gosto ao regateio (recomenda-se paciência). À segunda há o dos frescos, às terças o que tem tudo, uma grande feira a piscar o olho ao turista, com roupas e malas com grandes marcas à vista. E muitos turkish delights, frutos secos, 1001 chás (há sempre que provar antes da compra), café turco (com borras, claro), especiarias, tapetes, artesanato — foi lá que Gül, olhos azuis cristalinos e mãos de ónix, parou de trabalhar a pedra para distribuir pela assistência pequenos nazar boncugu, os amuletos dos olhos azuis, que agora trazemos no bolso for good luck. Perdemos o jogo de vista e Cengiz fecha, de repente, o tabuleiro. Acabou, 4 a 1, amanhã há mais. Ali puxa de um cigarro, levanta-se e regressa pouco depois, com saquinhos de papel que agora vão de mão em mão. Lá dentro, simit, as deliciosas argolas de pão com sementes de sésamo, que, entre risos, distribui pelos recém-chegados. Termina-se o chá, Maykil, o dono do café, não diz o preço, e Cengiz convida-nos a visitar a sua loja. Como recusar? Pelo meio, paragem no sapateiro, Amed, que nos apresenta a sua arte. Faz sentido, percebemos depois. Chegados ao destino, encontramos uma sapataria, onde a esposa de Cengiz tem, por acaso, carnudas uvas de Antália. “Very good”, oferece o marido, e salta para trás do balcão para atender clientela que chegou. Lá nos despedimos do anfitrião um pouco a medo, de mãos vazias e o cliché do coração cheio. Deixou-nos mais um abraço e uma mensagem: good luck. Vinte e quatro horas antes, Huzur Yirmibesoglu, arqueólogo feito guia turístico, já nos preparava para o que viríamos a sentir na pele. “A Turquia é muito diversa e tem muitas pessoas diferentes de imensos grupos étnicos”, descreve, “mas o ponto em comum é sempre a hospitalidade”. Quando tal não acontece, é uma “degeneração”, não é a “representação” real “da cultura, do país, das pessoas”. “Because you don’t do it for today, you do it for tomorrow. ” Ou, em português corrente, cada um colhe o que semeia. Estamos num território que, diz o turco, nascido em Istambul há 56 anos, a viver em Antália há 30, é a “base da civilização de hoje”: a península da Anatólia. E, como se já não desconfiássemos, desfia provas. Porque por aqui é possível visitar o que muitos dizem ser a cidade mais antiga do mundo: Çatalhöyük, com origens que remontam a 7500 anos a. C. — tem, portanto, quase dez mil anos de história, coroados Património Mundial pela UNESCO em 2012 (há 18 locais para ver só na Turquia). Porque por aqui está a verdadeira Filadélfia, hoje Alasehir, estabelecida em 189 a. C pelo rei Eumenes II de Pérgamo, que a baptizou Philadelphos em honra do seu irmão — significa “aquele que ama o seu irmão” — e que é referida na Bíblia. Porque por aqui nasceram e morreram imensas civilizações — e deixaram vestígios. E eis que chegámos a Denizli, mais precisamente a Hierápolis, e a história deste mundo entra-nos pelos olhos adentro; e, descalços, aterrámos em Pamukkale e julgámo-nos noutro mundo. De um lado, ruínas de uma cidade que aqui foi fundada em 190 a. C pelo mesmo rei, Eumenes II. Do outro, uma curiosa formação rochosa com socalcos com piscinas termais que mais parece neve, gelo, um glaciar inteiro. Ambas património da UNESCO, acessíveis num só bilhete a 50 liras (cerca de oito euros). Sigamos Huzur, que já serpenteia pelo passado helénico, romano e bizantino. Homem esguio, de rabo-de-cavalo, coração do rock (Pink Floyd, AC/DC, Led Zeppelin) e um farto bigode por baixo do longo e característico nariz. São, percebemos depois, orgulhosos símbolos da sua etnia — a esse propósito, conta uma piada: “Todos os laz têm um bigode. Porque temos sempre de sublinhar as coisas importantes. ”Em Hierápolis, onde se pisam pedras com 1400 anos que denunciam as marcas da passagem das carruagens, jaz um dos maiores e mais bem preservados cemitérios da Europa. Até agora, foram descobertos 1300 túmulos, mas as escavações continuam — em 2011, os arqueólogos anunciaram ter encontrado o de São Filipe, apóstolo de Jesus (não foi o único a andar pela área) a poucos metros das ruínas da igreja dedicada ao seu martírio. Estamos numa “cidade sagrada”, como dizem que o nome indica, outrora conhecida como “cidade dos templos”. Se começou por ser um centro balnear e terapêutico, aproveitando a riqueza das águas termais que por ali passam, depressa se tornou também num lugar espiritual e religioso que, considera Huzur, terá desempenhado um papel de destaque na antiguidade. Prova disso foi a rapidez com que, a mando do imperador Nero, a cidade foi reconstruída em 60 d. C. , depois de um violento terramoto. Aliás, por se situar na linha de uma falha tectónica, Hierápolis foi, ao longo de toda a sua história, vítima de sismos, entre os quais um no século XIV, que a votou ao abandono. Por aqui, há ainda para ver, entre outras relíquias, um teatro tipicamente romano, com 50 fileiras de degraus e capacidade para entre 12 a 15 mil pessoas, as monumentais fontes Nymphaeum, o complexo de banhos, a latrina, a Ágora, uma das mais largas alguma vez descobertas, com pórticos em mármore e a basílica ao fundo, e o Ploutonion, templo construído em honra de Plutão, por cima de uma gruta de onde saía dióxido de carbono, devido à actividade geológica subterrânea, que os locais consideravam ser um sinal divino do submundo. Claro que, tratando-se de uma cidade que brotou das águas termais, também é possível nadar por cima de ruínas, entre estradas, colunas e capitéis que pertenciam ao Templo de Apolo ali ao lado. E a 36 ºC. Por mais 50 liras, pode-se experimentar a pitoresca e cristalina Antique Pool, também conhecida como a piscina de Cleópatra, pois, diz o mito romântico, chegou acolher a famosa rainha. As águas quentes, ricas em cálcio, magnésio e bicarbonato, são uma das atracções da zona, por onde pululam hotéis com spa e banhos termais — atenção que em época alta chega a haver lotação esgotada. E são elas as grandes responsáveis por esculpirem aquilo que é Pamukkale, local que à chegada nos faz esfregar os olhos para nos sabermos neste mundo. Há milhares de anos que a água quente que corre por entre estas rochas deixa sedimentos de carbonato de cálcio, que, com o tempo, cristaliza e se transforma em travertino. Existem outras paisagens naturais semelhantes no mundo, mas nenhuma inspirou a criação de uma cidade como Hierápolis, com ruínas prontas a ser tacteadas nos dias de hoje. Chamam-lhe castelo de algodão, epíteto que lhe assenta, achámos nós, ainda antes de ouvirmos a explicação pela voz do guia. Pamuk significa algodão, o típico cultivo da zona, a alvura da paisagem; kale é castelo, são as ruínas que nos observam, aquelas de onde viemos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este longo manto alvo estende-se hoje por centenas de metros de comprimento e, diz quem sabe — Huzur, mais uma vez —, cresce em média três milímetros por ano. A água azul leitosa corre de terraço em terraço e pode ser um exercício divertido descobrir quais são as piscinas quentes e as frias. Sempre descalços e com cuidado para não se escorregar. Recomenda-se também atenção para não participar, inadvertidamente, nalguma sessão de fotos mais atrevida ou numa selfie mais influente — é um local popular, que atrai mais de dois milhões de visitantes por ano, por isso os madrugadores são recompensados. Nalguns locais, o branco é tão branco que quase dá frio. . . mas estão quase 30 graus. É neve? É o espaço? É um sonho? Ou é magia? É tudo. É a Turquia a dar-nos as boas-vindas. A Fugas viajou a convite do Club Med e da Turkish Airlines
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Benfica visita Montalegre nos "oitavos" da Taça
"Águias" defrontam única equipa do Campeonato de Portugal nos oitavos-de-final da Taça de Portugal. FC Porto recebe Moreirense e o Sporting defronta Rio Ave em Alvalade. (...)

Benfica visita Montalegre nos "oitavos" da Taça
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: "Águias" defrontam única equipa do Campeonato de Portugal nos oitavos-de-final da Taça de Portugal. FC Porto recebe Moreirense e o Sporting defronta Rio Ave em Alvalade.
TEXTO: Já se conhece o quadro de jogos dos oitavos-de-final da Taça de Portugal. O Sporting terá, em teoria, a partida mais complicada. Os "leões" recebem o Rio Ave, quinto classificado da Liga NOS. O FC Porto também receberá uma equipa da Primeira Liga. O Moreirense será o adversário dos "dragões" na quinta eliminatória da prova rainha do futebol nacional. O Benfica visitará o Montalegre, único clube do Campeonato de Portugal presente nesta fase da prova. FC Porto – MoreirenseBoavista – Vitória de GuimarãesLeixões – TondelaMontalegre – BenficaVitória de Setúbal – SC BragaSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Aves – ChavesFeirense – Paços de FerreiraSporting – Rio Ave
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Palavras-chave rainha aves
“Nós, os portugueses, somos óptimos”
Um mês antes de Mário Soares morrer, Vasco Pulido Valente fez-lhe um telefonema "sentimental e delicodoce": disse ao homem que na sua opinião foi a grande figura da história portuguesa desde as Invasões Francesas que gostava muito dele. O historiador prevê que Bolsonaro possa acabar com o Estado federal brasileiro, diz que as ciências sociais são “uma fraude” e que hoje “não há direita em Portugal”. (...)

“Nós, os portugueses, somos óptimos”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um mês antes de Mário Soares morrer, Vasco Pulido Valente fez-lhe um telefonema "sentimental e delicodoce": disse ao homem que na sua opinião foi a grande figura da história portuguesa desde as Invasões Francesas que gostava muito dele. O historiador prevê que Bolsonaro possa acabar com o Estado federal brasileiro, diz que as ciências sociais são “uma fraude” e que hoje “não há direita em Portugal”.
TEXTO: Vasco Pulido Valente anda a reler A Educação Sentimental, de Flaubert. Interessa-lhe agora perceber o que é que Eça de Queiroz foi ali beber para escrever Os Maias. Na sua casa perto da Praça de Londres, em Lisboa, continua um observador implacável e surpreendente do mundo em que vive. Vasco Pulido Valente não acredita no mito da falta de auto-estima nacional: os mil anos de história deram-nos uma segurança imbatível. E também os Descobrimentos. Por ele, o famoso museu até se podia chamar "museu do mundo português", a fazer lembrar a exposição do Estado Novo, de que António Ferro foi secretário-geral. Encontrou no fundo da gaveta dois ensaios de história de Portugal. Há no fundo dessa gaveta algum texto jornalístico perdido?Não, não há. Tudo que escreveu para jornais acabou por ser publicado em livro?Eu sempre trabalhei muito bem por encomenda. Escrever bem é fundamental para o jornalismo e para a história?Com certeza, a história é um género literário, não é uma ciência. O resto que a academia acha que são ciências — a sociologia, as ciências políticas e sobretudo as relações internacionais —são fraudes, pura e simplesmente. Essa opinião a academia não gosta de ouvir. Acha que não há uma objectividade na história, pelo menos uma procura da objectividade?Há história bem fundamentada em documentos de vária ordem. Até há ficção romanesca. Estávamos há bocado a falar de A Educação Sentimental [de Gustave Flaubert] — é um documento histórico, tanto sobre a época em que se passa, como sobre a época em que foi escrito. Mais sobre a época em que foi escrito, claro. Depois há a história fantasiosa, inventada e isso não é história. E depois há a história que finge que é científica e não é. E que produziu uma data de história que não serve de nada a ninguém. Dê-nos exemplos dessa história que não serve de nada a ninguém?O [Fernand] Braudel, quase todo. A Gramática das Civilizações não é um livro interessante, o Mediterrâneo [O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II] não é interessante?O Mediterrâneo é vagamente interessante, mas muito pouco esclarecedor. Quer dizer, é uma curiosidade. Foi um mal-entendido que produziu uma história inútil. Quem é que na historiografia portuguesa escreve bem?O Rui Ramos não escreve mal. Escreve bem. Não se lembra de mais nenhum?Não me lembro de mais nenhum. Não li nenhum livro interessante [de historiadores portugueses] e tenho lido livros que são como o Marcelo — implausíveis. Lê-se e não se acredita. Com o Marcelo vê-se e não se acredita. Que livros implausíveis são esses?Há uma História da Europa, soi disant, sob o ponto de vista da classe operária escrita pela Raquel Varela. Nunca vi tanta ignorância junta. É um abismo de ignorância, não só sobre a história da Europa entre 1914 e 1945, como sobre a história da classe operária que ela não conhece. Isto mostra como está a sociedade portuguesa. Está pior que em 1950, 1960?Não. A universidade do salazarismo era um pesadelo. Esta não é um pesadelo, é só inacreditável. A outra pesava e era moralmente desprezível. Só os filhos dos privilegiados podiam lá chegar, ninguém mais lá entrava. Quando eu entrei para a universidade, em todas as universidades portuguesas havia 6000 alunos. Estamos a falar de. . . 1958. Calcule, seis mil alunos! Há escolas secundárias que têm 3 mil e universidades do interior que têm 6 mil. Era moralmente vergonhoso, académica e absolutamente nulo, embora aquela gente se desse ares de grande importância. Não houve uma pessoa que tivesse deixado obra. Não houve um professor que lhe tenha deixado saudades, ou o tenha inspirado?O padre Manuel Antunes deixou-me algumas saudades, mais pela pessoa que era do que pelo que me ensinou. O meu grande professor foi o Osvald Market, em filosofia, que era espanhol. Era um professor da Universidade Complutense [de Madrid] que tinha lá alguns conflitos com as autoridades franquistas e veio para Portugal e obrigou-nos a saber algumas coisas de filosofia. Quando foi para Inglaterra em 1968 notou uma grande diferença, uma mudança total?Fiquei absolutamente estupefacto. O primeiro ano que passei em Inglaterra passei-o a estudar 14 horas por dia. Fui conversar com o meu supervisor e dizia “eu não sei isto". E com toda a calma o meu supervisor dizia "não sabe, mas tem que saber". E depois eram os colegas. Conversavam uns com os outros e eu às vezes não percebia do que eles estavam a falar. Por isso tinha que estudar mais que eles para os acompanhar?Ficava envergonhado de não saber. Uma vez estavam a falar todos entusiasmados que tinham saído as memórias do Alexandre Herzen. . . Quem?Era um emigrado russo que era casado com uma senhora chamada Natalie Herzen. Foi um dos primeiros grandes escândalos públicos porque se separaram, ela arranjou um amante e ele continuou amigo dela, etc. Era um grande homem do romantismo, pelo seu comportamento. Era filho bastardo de um grande potentado russo, muito rico, tinha uma grande casa em Londres e recebia toda a gente que fugia da Rússia, vinha o Bakunine, vinha o [Georg] Herwegh que foi quem fugiu com a Natalie. Ele fez um jornal que imprimia em Londres e que depois entrava na Rússia clandestinamente. Era um jornal de oposição ao czarismo, chamava-se Kolokol — o sino. E o Lenine copiou o jornal dele. Isto no final do século XIX. . . Eles fugiram da Rússia em 1848. E as memórias que tinham sido publicadas — e foram agora republicadas — eram extraordinárias. É um grande livro, uma das grandes memórias que se escreveram no mundo. E então ouvia os seus colegas a falar das memórias. . . Sim, ouvíamos a falar das memórias do Herzen e eu não sabia quem era. Já tinha 30 anos na altura?Tinha 27 e alguns deles eram mais novos do que eu. E não percebia metade da conversa, eles explicavam-me, eu ia para casa, ia comprar os livros, ia ler. Fiz isso durante os cinco anos em Oxford. Lia, lia, lia. Como foi crescer em ditadura?O pior foi a universidade. Durante o liceu, sabe como é. . . Naquele período da adolescência difícil as pessoas estavam completamente absorvidas por si. Eu era um privilegiado, cá em casa comiam-se bifes com batatas fritas. Eu vivia nesta casa onde vivo hoje [perto da Praça de Londres, em Lisboa]. Eu não tinha frio, comprava os jornais, o Cavaleiro Andante, o Mundo de Aventuras. Não senti muito a ditadura. Sabia que havia uma ditadura, pelos meus pais, pela minha família, pelos amigos dos meus pais que eram contra a ditadura. O escritor Manuel Mendes, que toda a gente já esqueceu. Era amigo dos seus amigos, o Manuel Mendes?Sim, era um grande homem da oposição. Tinha feito contrabando de armas para Espanha durante a Guerra Civil, com muita coragem. E depois, quando aconteceu a derrota, fez uma operação clandestina em que salvou muitas pessoas. O Fernando Lopes-Graça era outro amigo da casa. O Graça é padrinho da minha irmã. Vinha também o Mário Dionísio e a Maria Letícia, de quem eu gostava muito. Naturalmente, eu fui absorvendo, mas, como calcula, aos 13 anos eu estava muito mais preocupado comigo do que com o mundo. Teve uma adolescência difícil? São todas. . . As adolescências são todas difíceis. Eu tive uma adolescência particularmente difícil porque tinha muitos conflitos com a minha mãe. E acabei por ir para colégios internos, um que era quase um presídio, que era o Colégio Nuno Álvares, em Tomar. Mas era muito rebelde?Tinha conflitos com a minha mãe, não quero entrar em pormenores. Era incompatível com a minha mãe. Fui para o Nuno Álvares e fiz lá o exame do 5. º ano e depois fui interno para o Colégio Moderno, ali para o Campo Grande, até acabar o 7. º ano. Que era muito melhor que o de Tomar?Ah, era muito melhor e muito mais indisciplinado. Basta dizer que era dirigido pelo dr. Mário Soares. Foi aí que conheceu Mário Soares?Não, eu conheci o dr. Mário Soares quando tinha quatro anos. Na prisão, claro. Pois. Uma das memórias mais antigas que eu tenho, é da cara dele a rir-se e a cara do meu tio [Fernando Pulido Valente] ao lado dele tétrica. E eu gostava do dr. Soares e não gostava do meu tio, claro [risos]. O dr. Mário Soares era amigo dos meus pais. O meu pai trabalhava no Norte e tinha uma casa por onde passavam os oposicionistas. Era uma casa grande, com vários quartos. Depois a empresa mudou-se cá para baixo. E eu lembro-me perfeitamente do dr. Mário Soares a almoçar lá em casa. A casa tinha aquela vinha. . . De ramada. . . Lembro-me dele com a sombra das folhas na cara. Devo ter achado aquilo bonito. . . E como era a juventude em Lisboa nos anos 70? Era divertida ou o ambiente era bafiento como o regime?Era bafientíssimo. Quando me casei, os meus poderes sobre a minha mulher eram extraordinários. A gente ria-se disso, claro. Não levávamos isso a sério. Ela não podia viajar sem a minha assinatura e se ela fugisse de casa eu podia dizer à polícia para a prenderem e ma entregarem. Era uma figura jurídica chamada "devolução do corpo". Era uma coisa horrível. Quando eu cheguei à juventude já havia pouca gente que fosse fervorosamente salazarista, aquilo já durava há muito tempo, já tinha havido a II Guerra Mundial, o grande desenvolvimento económico dos anos 50 que foi uma coisa extraordinária, mas não mudou o regime e depois foi canalizado para o esforço de guerra. Sabíamos o que se passava em Paris, muito vagamente. Mas sabíamos que existia a Brigitte Bardot e havia filmes do [Roger] Vadim. Passavam aqui alguns. Por que é que escolheu o século XIX como historiador? Embora O Poder e o Povo seja sobre a República. Os livros de história não são sobre a República, nem sobre isto nem sobre aquilo. São sobre o problema. O problema ali era compreender por que processo tinha havido durante pelo menos oito anos de República um terrorismo de massa. Como é que havia um regime que podia ser sustentado por um terrorismo de massa. Esse é que é o problema. E aquele era um bom período para eu poder examinar aquele problema. Os velhos republicanos e quem lhes sucedeu continuam a não aceitar que a Carbonária era uma organização terrorista. A Carbonária teve muitos nomes. Houve muitas carbonárias. A Carbonária pós-revolucionária não é igual à Carbonária revolucionária do Machado Santos. A Carbonária que fez a República esteve sempre contra aquela República. E depois houve outras organizações, algumas fluidas, outras mais rígidas, com comando, que dominaram o país durante muito tempo e foram exportadas de Lisboa para Trás-os-Montes, para Chaves, para o Minho. . . O dr. Mário Soares ficou muito ofendido quando leu a história da República Velha. Ele leu antes da publicação, eu andava com aquilo na mão e ele estava com curiosidade e emprestei-lhe. Ele leu aquilo e ficou furioso. Mas muito tempo depois, em casa dele, disse-me: "Talvez tenhas razão. Eu não sou o Afonso Costa da República, sou o António José de Almeida". E subscreve essa leitura?Não, ele foi muito melhor que o António José de Almeida, que era um pobre pateta. O Mário Soares era um grande homem. Houve alguém na Revolução de Abril que quis ser o Afonso Costa da República?O Cunhal foi o Afonso Costa. Não chegou a ser porque não chegou ao poder. . . Se não tivesse perdido o 25 de Novembro tinha havido terrorismo em Portugal. Acha mesmo que Mário Soares é a grande figura nacional?É a grande figura da História Portuguesa Moderna. Parágrafo. Está a falar do século XX. . . Não, da História desde as invasões francesas, do século XIX e século XX. Porque diz isso?Porque foi ele que fez a democracia portuguesa. E não fez só, como as pessoas normalmente acham, no PREC [Processo Revolucionário em Curso, anos 1974-75] contra os pseudo-revolucionários. Fez também depois contra o [Ramalho] Eanes e o partido populista e militarista que se chamava PRD [Partido Renovador Democrático]. Ele nunca perdeu isso de vista, teve sempre a noção do que era necessário à democracia portuguesa. Mesmo ao Sá Carneiro fez uma oposição com meio-coração. Ele percebia que aquilo era necessário. Não gostava, mas percebia que aquela coisa precisava de ser feita. A direita precisava de ir legalmente para o poder. Era a maneira do regime se nacionalizar. Toda a gente podia governar a partir dali. Não haveria razão para fazer golpes de espécie nenhuma, de usar meios de violência ou extra-constitucionais contra o regime. Ele próprio não usou. Dali em diante fez tudo constitucionalmente. Foram muito amigos, mas tiveram grandes zangas. . . Fomos amigos?O dr. Mário Soares gostava de si. . . Eu não era amigo do dr. Soares. O dr. Soares fazia o favor de gostar de mim. . . às vezes. Às vezes gostava de mim. Ele confiava em si. Confiava. E quando ele morreu estávamos em muito bons termos. Um mês antes dele morrer fiz-lhe um telefonema sentimental e delicodoce em que lhe disse que gostava muito dele. Mas dizer ‘amigos’ é excessivo. Amigos implica uma relação de igualdade que eu nunca tive com o dr. Soares. O dr. Soares não me ligava muito. Não lhe ligava muito?Não, não ligava muito. Eu não era importante na vida do dr. Soares, nem na vida política, nem na vida pessoal. Quando eu aparecia por qualquer razão, ou quando ele queria falar comigo por qualquer razão, encontrávamo-nos em casa de amigos comuns. Nós gostávamos de falar, ele era muito simpático comigo. Quando trabalhei com ele, tratava-me como se eu fosse sobrinho dele, ou seja, mal. Muito mal. E era assim. Eu não era amigo do dr. Soares, quanto muito o dr. Soares fazia o favor de ser meu amigo. Tem que se resistir a esta tendência que as pessoas velhas têm de ampliar o seu papel no mundo. Então o problema de O Poder e o Povo não está presente na sociedade portuguesa contemporânea. E o poder de Os Devoristas continua?O problema de Os Devoristas também não e nunca foi. O dr. Álvaro Cunhal e a gente que nacionalizou a economia portuguesa depois do 11 de Março não estavam à espera de viver daquelas empresas. O dr. Cunhal não queria ser dono da Siderurgia [Nacional]. Mas nas privatizações não houve um pouco a repetição desse problema [do ‘devorismo’ da classe política liberal que em 1834-36 se apossou dos bens desamortizados da Igreja]?Eu tinha amigos comunistas naquela altura e sempre lhes disse que eles estavam equivocados. As pessoas que administravam aquelas empresas que eles andavam a nacionalizar — e que eles tinham que deixar no lugar porque não tinham outras — não eram comunistas nem nunca seriam. Sempre lhes disse que se pensassem em quem viria a gerir o país se houvesse comunismo olhassem para aquela gente, que viraria a casaca como viraram muitíssimos. Viravam a casaca com a mesma tranquilidade quer fosse o Partido Comunista ou o Champalimaud ou o Mello a mandar naquilo. Eram administradores. Eram oportunistas?Eram uma classe social necessária. Nos anos 50 e nos anos 60 a nossa economia já se tinha desenvolvido o suficiente para ter uma Siderurgia. Nós não éramos Cuba, aquele deserto com dois casebres e umas fábricas de tabaco, de charutos. Tínhamos que exportar para a Europa, importar. Eles tinham que deixar aquela gente onde estava. Aliás, muita dela ficou contente porque não gostava dos patrões. Houve sujeitos desses, administradores de bancos, da CUF que em conversas, em jantares, em reuniões, começaram a expelir a gramática elementar do Partido Comunista Português. Acha que em Portugal aconteceu em grande escala?Perto de mim aconteceu em grande escala. Nos meus amigos, na minha geração aconteceu em grande escala. Houve uma submissão intelectual à cartilha do PCP. Mas foi em 74-75, também acabou rapidamente…74, 75, 76, 77. Quando fui para o Governo de Sá Carneiro, amigos meus encontravam-me na rua e chamavam-me fascista. E também me chamavam fascista nos jornais. Foram anos e anos. Quando eu fui secretário de Estado da Cultura, fui informado pelos serviços que havia muitos roubos. Era um prédio na Avenida da República, que tinha garagem no subterrâneo. Havia pessoas que saiam mais tarde, esperavam que não estivesse ninguém no prédio e levavam tudo o que lhes apetecia, candeeiros, móveis, máquinas de filmar, tudo. Depois metiam nas bagageiras dos automóveis e levavam para casa. E eu contratei uma dessas empresas de segurança, que puseram à porta dois guardas para revistar os automóveis. Eles tiraram fotografias aos guardas com o seguinte título: "As SS na Cultura". Este ambiente durou até muito tarde. Até aos anos 80?Até aos anos 90. Sobretudo na Universidade, o Partido Comunista era uma boa máquina de promoção de pessoas. Tratava bem os seus, passou a tratar bem a extrema-esquerda e, como eles diziam, definir quem era o inimigo, as pessoas que não deviam ser promovidas. Quando o Instituto começou [ICS, Instituto de Ciências Sociais] eu era a pessoa mais graduada. Havia só dois doutorados, eu e a Maria Filomena Mónica. Eu era o mais antigo. O ICS começa em que ano?Durante o Governo Balsemão. E passaram-me à frente não sei quantos. . . Mas não havia maneira de contestar isso?Essas coisas não se contestam. São impalpáveis. E depois era o Instituto de Ciências Sociais, quando as Ciências Sociais são uma entidade que não existe. As Ciências Sociais têm o mesmo estatuto ontológico de Deus: não existem. É um negacionista das Ciências Sociais?Aquilo é uma aldrabice, uma pura aldrabice. Dá os resultados que as pessoas querem que dê. Ou dá resultados absolutamente insignificantes. Está a falar da Sociologia?Da Sociologia, da Ciência Política, das Relações Internacionais. Sabe o que é que aconteceu nas Relações Internacionais? Foi uma disciplina que se introduziu nos currículos das universidades americanas porque o Estado americano precisava de pessoas que conhecessem o mundo, que conhecessem a geografia do mundo, a diversidade das populações, das culturas, etc. O americano médio não sabe onde é que é a China e os Estados Unidos que são uma potência mundial precisavam de recrutar pessoas para o Exército, em primeiro lugar, e depois para a CIA, e para todos os serviços que tinham contactos directos com o estrangeiro. As Relações Internacionais serviam aos Estados Unidos para isso. Aquilo era um curso de preparação de funcionários de que o Estado precisava. Em Portugal não serve para nada. O nosso Exército, a nossa diplomacia, precisam de três ou quatro cursos de Relações Internacionais? Precisam de preparar funcionários?Então acha que os cursos de Relações Internacionais são uma importação americana inútil?É uma inutilidade americana que tem estatuto universitário. E a Ciência Política é a mesma coisa. O que é que se aprende nas Ciências Políticas?Os diferentes sistemas políticos e constitucionais do mundo. . . Isso faz parte da cultura geral. Os livros do [José] Sócrates são um bom exemplo de ciência política. Leu?Li, claro. Não estou a dizer que ele copiou, o que ali está foi escrito por ele. Ele leu 20 livros, com sorte. E depois espalhou umas citações e umas conversas por ali fora durante 150 páginas. E deve achar aquilo um extraordinário trabalho, o que é que se há-de fazer. Não recomendaria, portanto? É tempo perdido lê-lo?As Ciências Políticas são tempo perdido, não particularmente o livro do Sócrates. Eu só li o primeiro que se chamava A Confiança no Mundo. E vai ler o segundo livro de memórias de Cavaco Silva que é lançado para a semana?Não li o primeiro e não vou ler o segundo. Porque é que sempre desprezou tanto Cavaco Silva?Eu nunca desprezei Cavaco Silva. Notava-se nas suas crónicas. Acho que o professor Cavaco Silva, quando foi primeiro-ministro, fez muito mal a este país. Teve muito dinheiro para modernizar este país. . . E modernizou… As estradas eram precisas. Fez más escolhas. O dr. Cavaco não percebeu que o que era preciso era fazer a reforma de Portugal, explicar o que está mal politicamente e aplicar o dinheiro a fazer melhor. E não foi isso que ele fez. Fez umas estradas, deu uns subsídios para a agricultura e para acabar com a agricultura de subsistência e claro que não acabou. Deu dinheiro a pessoas que tinham duas vacas para deixarem de ter duas vacas. Receberam o dinheiro, compraram uma mota e abriram um café. De repente havia cafés por todo o país e a agricultura de subsistência continuou. Não explicou o que estava mal, não explicou a situação que tínhamos que era patética — ainda hoje é. Se ele queria a participação dos portugueses na modernização de Portugal, e eu acho que devia ter querido, tinha de explicar em que país vivíamos e o que ia fazer para o mudar. E não fez nem uma coisa nem outra?Fez umas mudanças sem explicar. Algumas delas foram feitas por pessoas que as explicaram mal. Dê um exemplo. Houve uma ideia que era boa — e que eu critiquei na altura, mas critiquei mal — de meter toda a gente no sistema de ensino. Foi uma trapalhada. Não havia professores, não havia disciplina nas escolas. Mas aquilo era absolutamente necessário. Na altura não se podia escolher. Eu estava enganado, eles estavam certos. Mas em vez de dizerem porque não se podia estar a escolher, tomaram uma posição que era dizer "nós não podemos ver um aluno fora do sistema". . . Foi uma coisa mal feita. Cavaco é muito inculto e começa por ser muito inculto politicamente. Uma pessoa que fosse culta politicamente e tivesse as boas intenções que ele tinha teria tido a preocupação de explicar aos portugueses o que estava mal e o que é que ele ia fazer. Eu uma vez ofereci-lhe uma viagem a Itália publicamente, disse que lhe pagava tudo se ele fosse passar um mês a Itália. . . Ele dizia que Portugal estava na moda, mas nem percebia o que era Portugal e o que estava a dizer aos portugueses era precisamente a coisa errada. Os portugueses já têm um altíssimo sentimento de superioridade. . . Acha que os portugueses têm sentimento de superioridade?Têm! Com certeza que sim!Acha mesmo? Por que é que diz isso?Está a dizer isso porque os portugueses dizem mal dos outros portugueses e de Portugal. Mas isso significa que têm a segurança necessária e suficiente para dizerem mal de Portugal e dos portugueses. Vá arranjar um húngaro que diga mal da Hungria e dos húngaros! Não arranja um! Pronto, deve haver um. Isto é um exagero retórico. Encontre um polaco que diga mal da Polónia como nós dizemos de Portugal. . . Deve haver poucos. Nós somos seguríssimos. A coisa mais importante que é preciso ter na Europa nós temos, que é a nacionalidade. Temos mil anos. Leia o ensaio da Hannah Arendt sobre a nacionalidade. Se você não tiver nacionalidade não existe. Portanto, ter um estado-nação com estas características é uma vantagem nesta altura. . . Com certeza. Os portugueses têm uma segurança que ninguém tem. Inabalável. O que custou a alguns portugueses foi deixar de ser portugueses porque a nacionalidade os perseguia mesmo quando eram exilados. Anos e anos depois continuavam a ser portugueses. Uns continuam a ser portugueses porque ensinam português em universidades estrangeiras ou escrevem para jornais portugueses, outros porque são do Benfica ou do Sporting. Mas continuam todos a ser portugueses. Temos uma nacionalidade inabalável e não é só por termos fronteiras. É porque em Angola se fala português quase sem acento, porque no Brasil se fala português, porque demos a volta ao mundo — bem sei que foi no século XV e XVI. Mas isso é um pilar, nós não precisamos de provar nada ao mundo. Um país tão pequenino que fala português como o Brasil, como Angola, deu a volta ao mundo e foi à Índia. . . Isso deve-nos orgulhar?Não é orgulhar. É o não termos que provar nada a ninguém. Nós somos óptimos!Se se chamasse museu dos Descobrimentos para si não era problema nenhum?Não era problema nenhum. Essa coisa do esclavagismo é muito simples. Nós não tínhamos dinheiro, quando se começou a fazer o comércio de escravos intensamente, não tínhamos dinheiro para ter uma Armada que vigiasse a costa de Angola e de Cabo Verde. Era uma fronteira livre, pilhava-se tudo, homens, mulheres, crianças, ouro, pedras. Ninguém em Portugal era oficialmente pela escravatura, que não existia legalmente desde 1876. É verdade que houve escravos até muito tarde em Portugal, que acabaram por se fundir na população. No século XVII o padre António Vieira começou a pregar contra a escravatura e contra os abusos dos brancos. Mas Portugal não tinha meios para patrulhar as costas para impedir o comércio de escravos. Acha que esta discussão toda é um sintoma do politicamente correcto?É para estes senhores e estas senhoras justificarem a sua existência. Os propagandistas do politicamente correcto são muitas vezes ignorantes e o que eles dizem é muitas vezes grotesco. Mas, se repararem bem, o politicamente correcto é o individualismo, são tudo causas individualistas, são causas para libertar o indivíduo e lhe devolver o livre arbítrio, até ao ponto de eu escolher se quero morrer. Ao Estado português não interessa se um indivíduo quer morrer, há muita gente que quer morrer. O problema é saber quem o mata. O médico assistente? Haverá médicos no hospital especialistas em matar pessoas? Uma espécie de carrascos com o curso de Medicina?Mas o museu dos Descobrimentos é uma proposta do PS, de Fernando Medina, que só recuou por causa de protestos de alguns académicos. Eu tenho um nome que até foi usado por Salazar que é o "Museu do Mundo Português"A exposição de 1940 era a Exposição do Mundo Português. Se o museu dos Descobrimentos já causa polémica, imagine-se esse. . . Esse é mesmo neocolonialista. Não é. É contar o mundo que, no passado, foi dos portugueses. É passado. O que foi efectivamente, bom, mau ou assim-assim, Como é que vê a direita portuguesa hoje?A direita portuguesa hoje não existe. Existem pessoas de direita, não existe direita. O Rui Rio é uma desgraça?De Rui Rio não vale a pena falar, já toda a gente percebeu quem é. O Rui Rio é uma desgraça, mas não é por estar mais à esquerda. É por ser ele. É um homem de ideias fixas, ultra-autoritário e convencido da sua superioridade como ninguém no mundo político. O único critério, para o Rui Rio, é saber se alguém está de acordo com ele. De resto, vê-se pelas intervenções que faz. Ele acha que é superior a tudo e que toda a gente tarde ou cedo há-de reconhecer isso porque ele é um homem honesto e genial. E o país não pode ser governado por ninguém tão bom como ele. Ele fala como se estivesse a oferecer a verdade única aos portugueses. Ele está mesmo convencido que é uma pessoa superior e que percebe perfeitamente o que é Portugal. Ele apela ao voto dos abstencionistas porque acredita mesmo que com o seu exemplo de virtude acabarão a votar nele. O Rui Rio é uma anomalia no sistema político. Não há ali também um toque de populismo?Não. . . Há só aquele desvario. É uma pessoa alucinada. E Assunção Cristas?A Assunção Cristas, coitada, o que é que ela há-de fazer? Está à espera que Rui Rio lhe dê os votos para aumentar o CDS. Eu já disse que isso não é uma política, é um desejo. Não acha que o CDS pode crescer?Acho que a direita perdeu definitivamente os votos que perdeu em 2015. Não voltam. Com esta direita não voltam. Então António Costa terá maioria absoluta?Costa não precisa da maioria absoluta para nada. Só precisa de ter mais votos do que o PSD e o CDS e mais votos do que o Bloco e o PCP. E assim não pode ser removido. Para que fosse removido era preciso uma aliança entre a direita e a esquerda. Essa aliança é impossível e ele pode governar o país muito tranquilamente fazendo exactamente o que está a fazer. O único perigo que ele tem é que o PS e o Bloco possam fazer maioria. Isso é um perigo?É um perigo, porque nessa situação a esquerda do PS vai pressionar Costa a fazer as grandes reformas de que fala o Pedro Nuno Santos, como a nacionalização completa do sistema de saúde, acabar com as parcerias público-privadas, a dedicação exclusiva dos médicos. . . E criar um Estado muito maior e muito mais rígido. Isso é muito apelativo na franja esquerda do PS e no Bloco inteiro. António Costa vai ter grandes pressões para fazer essa aliança e uma parte do partido pode fazer uma cisão. Acha que é mesmo possível uma cisão?Então não é! Quantas já não houve!Pedro Passos Coelho vai voltar à vida política?Não sei. Gosta dele?Gosto muito dele, mas ele é uma pessoa muito distante. É difícil percebê-lo. Tem um extraordinário autodomínio. O que ele deixa sair sobre o que se passa na cabeça dele é muito pouco. Para mim é um mistério, não sei o que está a pensar sobre o que pode ser o futuro dele. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vamos então acabar a entrevista. . . Vocês não me perguntaram nada sobre política internacional, mas eu queria dizer duas coisas. Primeiro, sobre Espanha. Espanta-me muito que a esquerda europeia, que fala muito do populismo húngaro e do populismo polaco, ainda não tenha percebido que o populismo mais grave e evidente que há na Europa é o populismo catalão. Na linguagem da esquerda portuguesa, o populismo catalão é a democracia catalã. Estamos conversados. Depois espanta-me imenso que, nos jornais e nas televisões, as pessoas falem da "geringonça espanhola". Tenho muita pena, mas o Governo de Espanha é a aliança da Guerra Civil. É por isso que no dia da Hispanidade, [o presidente do Governo Pedro] Sánchez é insultado, porque ninguém lhe reconhece o direito de falar da Hispanidade. Ele está a pôr em perigo a hispanidade com aquela aliança. Nós não percebemos a história espanhola, mas os espanhóis estão relativamente informados. E quanto ao [Jair] Bolsonaro, digo só isto: os anos 20, no mundo de hoje, vão ser como os anos 30 do século passado. Vai haver uma vontade de afirmação do nacionalismo por todo o mundo ou mesmo, em casos como o do Estado brasileiro, a pura e simples ruína. Os Estados da América Latina são muito frágeis. Fala-se hoje muito no Brasil do separatismo. Não acho que Bolsonaro vá implantar o fascismo no Brasil, o que ele pode é acabar com o Estado federal brasileiro. Está a dizer que a situação lembra os anos 30 do século XX. Receia um epílogo como aconteceu nos anos 30?Não faço essas comparações. O que estou a dizer é que há nacionalismos demais a quererem-se afirmar, alguns com toda a razão como o da Polónia e o da Hungria. Só existem como estados autónomos há 30 anos. Como é que esses estados hão-de ser liberais e democráticos? É evidente que são nacionalistas e populistas. Antes de mais nada, têm que afirmar a sua nacionalidade. Não são como os portugueses, que são portugueses há mil anos. São húngaros e polacos há 30 anos, com as fronteiras e composição populacional que têm agora que já de si é complicada, mais complicada na Hungria e na Polónia. E há a Itália que não é um Estado, nunca foi. Eles têm arranjado maneira de se equilibrar na corda bamba, mas nenhum deles leva a nacionalidade a sério. Basta ler a Elena Ferrante, tem uma tetralogia que eu li toda, extraordinária. Gostou da tetralogia de Elena Ferrante?Claro que gostei! Devia ser uma leitura obrigatória para todos os europeístas. A União Europeia hoje é um veneno e vai acabar.
REFERÊNCIAS:
Mar adentro, totalmente livre
Braço acima, braço abaixo, nadou e continuou a nadar. Não mais pararia, pensava. O mar sempre fora para ele sinónimo de liberdade e ele queria mesmo libertar-se de tudo. (...)

Mar adentro, totalmente livre
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Braço acima, braço abaixo, nadou e continuou a nadar. Não mais pararia, pensava. O mar sempre fora para ele sinónimo de liberdade e ele queria mesmo libertar-se de tudo.
TEXTO: O sol do fim do dia, vermelho escarlate, começou a descer sobre a costa, colorindo as nuvens e iluminando o mar. O sol do fim do dia desceu sobre aquela paisagem como se de um cenário de banco de imagens se tratasse, qual produto incluído no pacote adquirido por quem reservou estadia para, como se diz em linguagem moderna, viver uma experiência inesquecível. O sol descia e ele, cada vez mais meditabundo, observava: a rapariga que multiplicava poses perante o telemóvel do namorado diligente; as adolescentes que repetiam sinais de vitória para a câmara até que o “V” surgisse exactamente como imaginavam; o pai que apontava o iPhone aos dois filhos, primeiro ela, depois ele, e ele a reclamar, “oh pai, não gostei nada das fotos que me tiraste ontem”; a mãe, a filha e o namorado desta a revezarem-se no enquadramento escolhido, cara séria abrindo-se em sorriso muito aberto, tão imensamente feliz durante aqueles segundos em que a posteridade online será assegurada. Enquanto isso, o sol paciente a seguir metodicamente o caminho de sempre, a água a brilhar com os seus últimos raios, as barracas e os chapéus-de-sol firmes e hirtos na sua função de figurantes. Triste coreografia aquela, pensava ele. Uma azáfama em que todos ignoravam todos os que os rodeavam, em que pareciam ignorar até a paisagem que procuravam usar como moldura pronta a ser distribuída, com outros rostos no centro, por outros ecrãs. Mais acima, no interior do restaurante, um velho reparou também no sol do fim do dia. Levantou-se e caminhou até à ampla porta envidraçada de chão a tecto. Não saiu para o exterior. Aproximou-se do vidro e, através dele, contrariando todas as regras básicas de fotografia, registou daquela forma para a sua posteridade o vermelho agora ainda mais escarlate do sol quase a desaparecer lá longe. É provável que a fotografia do velho tenha sido a pior de todas as que se tiraram naquela tarde, ainda assim, caso soubesse do velho, é igualmente provável que ele sentisse que, entre todas, era aquela e só aquela que quereria ver. Na praia, há longos minutos a observar aquela sucessão de sessões fotográficas e auto-retratos a céu aberto, tomou uma decisão. Levantou-se e, como sempre fazia, apertou bem os cordões do fato de banho, antes de caminhar até ao mar, passo a passo, como habitualmente. Depois, aumentou o ritmo da caminhada até que a água lhe chegasse aos joelhos. Molhou então os braços e a barriga para se ambientar à temperatura, seguindo o ritual que adoptara há muito. Lançou um último olhar às pessoas na praia e às suas coreografias, observou os toldos, os chapéus, as bóias e as raquetes. Viu o restaurante onde o velho já não estava. Virou-se e mergulhou. Braço acima, braço abaixo, nadou e continuou a nadar. Não mais pararia, pensava. O mar sempre fora para ele sinónimo de liberdade — assim repetia para si mesmo — e ele queria mesmo libertar-se de tudo. Queria libertar-se de qualquer coisa vaga e indefinível, qualquer coisa que não conseguia nomear, qualquer coisa que era este tempo, o seu. Continuou mar adentro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Acenou efusivamente aos barcos de pescadores que iniciavam a faina nocturna, com os seus mastros iluminados a criar uma linha de luz levitando sobre a água. Viu as luzes em terra tornarem-se mais difusas enquanto a distância aumentava, e sentiu-se orgulhoso da decisão que tomara e do novo ser que seria, tão totalmente livre, tão diferente dos seus semelhantes, prisioneiros deste tempo. Lá agora tão longe, acima das luzes da civilização em terra, o céu iluminou-se então com fogo-de-artifício de festas de Verão e ele comoveu-se perante a beleza simples do cenário. Tirou do bolso do fato-de-banho o telemóvel, protegido com capa impermeável, naturalmente, que ali esquecera quando decidiu caminhar convictamente praia fora. Fotografou uma e outra vez enquanto boiava na imensidão do oceano. Fotografou até que ficasse preservada em ficheiro electrónico uma imagem tão esteticamente impecável que ele não resistiu a partilhá-la com todos através das suas redes sociais. Do outro lado do mundo, um homem que ao início da noite decidira embrenhar-se na floresta para não mais voltar, saturado com o mundo que dissera a si mesmo não ser o seu, descobriu no bolso dos calções um aparelho electrónico de que se esquecera quando avançou decidido para a floresta densa. Foi nele que viu a fotografia do fogo-de-artifício sobre o mar. Comovido, totalmente livre, não resistiu a partilhá-la com todos. Depois, aparelho electrónico no bolso, continuou a caminhada floresta adentro.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Caminhantes solitários: derivas na Arcádia
Uma viagem pelos caminhos e retiros da Provença e do Ródano que atraíram artistas e filósofos em busca de independência e afirmação criativa. Gray, Beauvoir, Cézanne, Corbusier e Rousseau. Lugares que revelam a construção recorrente de simulações da Arcádia. (...)

Caminhantes solitários: derivas na Arcádia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma viagem pelos caminhos e retiros da Provença e do Ródano que atraíram artistas e filósofos em busca de independência e afirmação criativa. Gray, Beauvoir, Cézanne, Corbusier e Rousseau. Lugares que revelam a construção recorrente de simulações da Arcádia.
TEXTO: Este é o primeiro de uma série de ensaios sobre uma viagem pelos Alpes e pela história cultural da Europa. Serão quatro capítulos que representam diferentes paisagens, marcadas por obras literárias e autores cruciais para definir a memória cultural dos últimos dois séculos. Na primeira parte da viagem partimos de Nice, no Sul de França, e seguimos o Ródano até à fronteira com a Suíça, seguindo os percursos de Simone de Beauvoir, que durante a sua juventude caminhou nas montanhas que rodeavam Marselha. Na segunda parte, partimos de Genebra e fomos até ao glaciar onde nasce o Ródano, uma paisagem que está assombrada pelas produções artísticas e científicas do século XIX. Na terceira parte, seguimos três exílios alpinos, o de Richard Wagner em Lucerna, o de Thomas Mann em Davos, e o de Friedrich Nietzsche em Sils. No quarto e último capítulo, seguimos as narrativas de Stendhal desde o lago de Como até Milão, regressando a Nice por Génova, de onde Garibaldi partiu para a Sicília, continuando a luta pela unificação de Itália. A ideia deste projecto surgiu de uma conversa com Tiago Silva Nunes — que fez os ensaios fotográficos — sobre La Force de l’Âge (1960), as memórias de jovem adulta De Beauvoir. Os seus passeios nos Alpes Marítimos e Pré-Alpes, e a sua caracterização da caminhada como um espaço solitário de afirmação pessoal, levaram-nos a esboçar um itinerário que foi crescendo ao incluir outros autores para quem o acto de caminhar é igualmente importante, em particular W. G. Sebald, que em Vertigo (1990) escreveu uma narrativa paralela entre o seu próprio ritorno in patria e elementos da biografia de Stendhal — o escritor que criou a sua própria pátria. Em meados do século XIX, as ligações ferroviárias transformam o território da Côte d’Azur numa Arcádia acessível. Passa a ser o lugar onde a classe ociosa — o economista e sociólogo Thorstein Veblen chama-lhe a leisure class — vai passar o Inverno, trocando Londres ou S. Petersburgo pela costa do Mediterrâneo. Foi neste lugar que, em 1929, Eileen Gray construiu a E1027, uma casa para o editor da revista Architecture Vivante, Jean Badovici. Gray era uma aristocrata irlandesa, designer e arquitecta, com uma fortuna pessoal que lhe permitiu perseguir os seus interesses criativos. Nessa altura, Roquebrune, Sudeste da França, tinha apenas a linha do comboio e pomares de limoeiros. Gray comprou o terreno e acompanhou detalhadamente a construção da casa, que seriam propriedade de Badovici. E1027 fora uma ideia dos dois, o nome da casa espelha essa parceria — resulta de um código criado a partir das iniciais de ambos, EG e JB: E de Eileen, J é a décima letra, B a segunda, e G a sétima. Poucos meses depois da sua construção, Gray deixou a casa onde Badovici permaneceu. A partir de 1930, Badovici acolhe muitos convidados, entre eles, Le Corbusier. Visitámos E1027 num dia quente de Agosto, quando o contraste das paredes brancas com as gelosias negras fazia sobressair o azul brilhante do mar de Roquebrune. Gray descobriu um lugar especial do Mediterrâneo, pois o mar na Plage du Buse, devido a um fenómeno geológico cárstico, está povoado de aquíferos submarinos de água doce filtrada pelos Pré-Alpes de Nice que emergem em grandes quantidades em Cabbé. Em dias de mar calmo vê-se a turbulência da água doce a emergir do fundo do mar. Nadar nesse mar cristalino em frente a E1027 é uma experiência, as águas são atravessadas por correntes frescas, o que nos transporta momentaneamente para o tempo em que os pomares de limoeiros ainda não tinham sido substituídos por edifícios, nem os barcos de pesca por iates. É no interior de E1027 que as ideias de Gray têm mais expressão. A casa foi concebida à escala do mobiliário que conforma a coreografia dos comportamentos de quem a ocupa. Gray espalhou pequenas frases impressas na parede que nos lembram de beber água — eau fraîche — quando acordamos, e não fazer barulho — défense de rire — quando entramos na sala. Para Gray, “uma casa não é uma máquina de habitar” nem a construção “de conjuntos belos de linhas, mas acima de tudo espaços para pessoas”. Em E1027, a sua intenção era a de criar espaços que permitissem aos habitantes “permanecerem livres, independentes” e que a casa, mesmo que ocupada por várias pessoas, criasse “a impressão de se estar só, e, caso se deseje, inteiramente só”. Durante algum tempo, E1027 foi uma construção solitária naquela baía, mas, em 1947, Thomas Rebutato, um antigo membro da résistance de Nice, abriu o restaurante Étoile de Mer num terreno contíguo. Em 1951, Le Corbusier, que tinha passado tantas temporadas na E1027, constrói ali uma pequena cabana de férias — Le Cabanon — convenientemente próxima do restaurante de Rebutato. É um refúgio, uma recriação no Mediterrâneo de um abrigo de montanha suíço, com as suas paredes exteriores formadas por largos troncos de madeira. O espaço interior é um exercício de composição de áreas mínimas — influenciado pelo sistema/escala de proporções Le Modulor (1948) — e de composição plástica e escultórica, coberto de murais com um pavimento amarelo. Le Corbusier dizia “tenho um palácio na Côte d’Azur, tem 3, 66 m por 3, 66m. (. . . ) É extravagante de conforto e delicadeza”. No entanto, ao contrário de E1027, o lugar mais importante — e confortável — é no exterior, sob uma alfarrobeira centenária com a paisagem ao fundo. Em Agosto de 1965, Le Corbusier morreu enquanto nadava nas águas de Roquebrune. Et in Arcadia Ego. Seguimos para oeste até Cassis, onde Virginia Woolf e outros membros do grupo de artistas e intelectuais Bloomsbury Set passaram os invernos do final da década de 1920. Esta vila é conhecida pelas calanques, formações rochosas que criam enseadas estreitas entre duas paredes quase verticais que se estendem pela costa até Marselha. Percorremos trilhos longos para as alcançar, gradualmente as escarpas brancas coroadas com pinheiros vão-se revelando, como um rolo vertical de uma pintura de Wang Meng. No ano em que Eileen Gray acabava a sua casa, 1929, Woolf publicou A Room of One’s Own, uma reflexão sobre a condição das mulheres, cuja independência estava sobretudo ligada à fortuna pessoal. Nesse ensaio, Woolf é peremptória: “Uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só para si, se quiser escrever. ” Gray e Woolf pertencem à mesma geração, nascidas nas décadas finais do século XIX, e à mesma posição social, para quem a independência fora herdada. No mesmo ano, 1929, a jovem Simone de Beauvoir é enviada para Marselha, onde irá dar aulas de Filosofia no Lycée Montgrand. É um palácio neoclássico construído em meados do século XVIII, com uma elegante fachada de pedra rosada, que em 1891 foi transformado em liceu de raparigas. Em La Force de l’Âge, Beauvoir descreve a sua chegada desta maneira: “Estava em Marselha, sozinha, de mãos vazias, separada do meu passado e de todas as coisas de que gostava. (. . . ) Era eu que decidia como passar o tempo. Podia cultivar os meus próprios hábitos e prazeres. ” Vivia num quarto alugado, o antigo quarto de serviço da casa de uma colega. “Era pequeno, mas ajustava-se bem ao meu ideal: tinha um divã, estantes para livros e uma mesa de trabalho. ” Beauvoir lia sobretudo livros de história da arte e obras de Stendhal, a quem mais tarde dedicou uma parte de Le Deuxième Sexe (1949). Stendhal foi para Beauvoir um autor “decididamente feminista” que — como Woolf — lamentava a perda “de todos os génios do mundo que nasceram mulheres”. É em Marselha que Simone de Beauvoir descobre o prazer de caminhar sozinha, subindo todos os picos da região — “o Garlaban, o Mont Aurélien, Sainte-Victoire, o Pilon du Roi” — e descendo todas as calanques. Nas suas expedições, Beauvoir “procurava uma revelação em cada colina ou vale, e sempre a beleza da paisagem ultrapassava as [suas] memórias e expectativas”. Caminhar tornou-se uma obsessão que lhe permitia criar um lugar de reflexão e independência. “Sozinha, caminhei pela névoa suspensa no topo de Sainte-Victoire (. . . ) [vivi] momentos que, com todo o seu calor, ternura e fúria, me pertencem a mim e a mais ninguém. ”A escritora tentou ignorar a ameaça da II Guerra Mundial até à invasão da Polónia. “Durante o Verão de 1939 ainda não tinha perdido a esperança. Uma voz obstinada sussurrava na minha cabeça: ‘Não me pode acontecer; não uma guerra, não a mim. ” Em parte, foram as suas caminhadas que a ajudaram a concentrar-se noutra coisa para além do conflito iminente. Nesse ano fez uma das suas caminhadas mais ambiciosas, vários dias entre o Mont Ventoux, passando pelo vale de Queyras, até aos Alpes Marítimos. Em Larche, uma vila ocupada por militares próximo da fronteira italiana, pedem-lhe para apresentar os seus documentos, no entanto, ao adormecer, Beauvoir “não tinha outro pensamento na cabeça senão flores e animais e trilhos pedregosos e horizontes vastos, a agradável sensação de ter pernas e pulmões e estômago, e a determinação de ultrapassar alguns dos [seus] próprios recordes”. O último bombardeamento que Marselha sofreu, em Maio de 1944, resultou em milhares de mortos, feridos e edifícios destruídos. É no final desse ano que Raoul Dautry, ministro da Reconstrução, convida Le Corbusier a projectar a Unidade de Habitação de Marselha. Neste edifício, o arquitecto materializou algumas das ideias sobre a cidade que desenvolvera desde o Plan Voisin (1925). É um testemunho do pós-guerra, impulsionado pela necessidade de construir habitação em massa, mas também pelo desejo de criação de um espaço protegido e ideal, uma ilha organizada na cidade caótica, com as suas próprias áreas comerciais e espaço público. Na cobertura — o toit terrasse — há um espaço comunitário que inclui uma pista de corrida, uma piscina infantil, uma escola, uma galeria, num conjunto de rara potência escultórica. Os muros do terraço enquadram as montanhas a sul e o mar a oeste, bloqueando a vista da cidade onde se multiplicam inúmeras versões deste edifício. Passámos o fim da tarde nesse terraço, onde no lado norte decorria uma aula de ioga, no lado sul moradores faziam piqueniques ao pôr do Sol, enquanto crianças tomavam banho na piscina. O terraço cria a ilusão de um espaço público onde todos os cidadãos vivem em harmonia — uma Arcádia no meio da cidade. No entanto, este espaço é privado e apenas acessível ao condomínio. Passamos por Aix-en-Provence a caminho da Route Cézanne e paramos numa praça onde muitas pessoas jogavam pétanque sob filas de plátanos. Acompanhados pelo som das cigarras, subimos o trilho próximo do Chemin de la Risante até a um miradouro à sombra dos pinheiros que enquadram a barragem Zola e o Mont Sainte-Victoire. A montanha e a barragem reflectem um debate, estabelecido desde o Discours sur les Sciences et les Arts (1750), de Rousseau, entre a natureza e o progresso, e constituem dois símbolos importantes do século XIX. Cézanne pintou esta vista com a montanha e a barragem — projectada pelo pai do seu amigo Émile, François Zola. As nuvens que passam ao longe tornam Sainte-Victoire num motivo em mudança permanente e rápida. As cores — verde, ocre, siena — são impressões momentâneas, num instante saturadas, noutro mudas. Por vezes a sombra das nuvens altera o perfil da montanha. É um motivo fascinante para quem observa com atenção, e percebemos porque Cézanne o tenha pintado continua e obsessivamente — um motivo que parece ser sempre o mesmo, mas nunca é o mesmo. Seguimos mais uns quilómetros ao longo da Route Cézanne para leste, para percorrer os trilhos que Beauvoir descreveu como “caminhos vermelhos e ocres, através da planície de Aix, onde reconhecia as telas de Cézanne”, e subir o Sentier Rouge até ao Pas du Berger, na base do cume do Mont Sainte-Victoire. Durante a subida, a metamorfose continua a ser surpreendente. À medida que nos aproximamos do topo, os trilhos passam a rodear a montanha, o perfil pintado por Cézanne altera-se, e aquilo que era imagem transforma-se em espaço e matéria, cores e reflexos em rochas e sombras. Caminhar nesta paisagem é uma experiência fenomenológica intensa e recorda-nos o texto de Maurice Merleau-Ponty Le Doute de Cézanne (1945). Merleau-Ponty — que fora colega de Beauvoir — argumenta nesse ensaio que o processo de Cézanne implica um desejo de “confronto das ciências com a natureza”, e lembra a palavras deste: “A paisagem pensa através de mim, eu sou a sua consciência. ” Também Cézanne foi um caminhante solitário dedicado ao trabalho e à interrogação da natureza e da arte. A sua vida teve um certo carácter monástico, isolado no seu atelier sumptuosamente frugal, um room of one’s own. É a pensar na reclusão monástica e na construção de conventos como recriações da Arcádia e do Éden que rumamos a norte. Seguimos o curso do Ródano desde Avignon até Lyon, na Autoroute du Soleil, sob uma tempestade com relâmpagos constantes, os sinais de caution orage avisam-nos que estamos a abandonar o Mediterrâneo. Em Éveux, na periferia rural de Lyon, visitamos o convento de La Tourette, a última obra que Le Corbusier acompanhou em vida, entre 1953 e 1961. Foi uma encomenda iniciada pelo padre Marie-Alain Couturier — conselheiro artístico e espiritual de Jean e Dominique De Menil e editor da revista Art Sacré — com quem Le Corbusier já tinha colaborado na Igreja de Notre Dame du Haut, em Ronchamp. Antes de iniciar o projecto, Le Corbusier visitou Le Thoronet — abadia cisterciense do século XII, uma das trois soeurs provençales, com Silvacane e Sénanque — por recomendação de Couturier, para quem aquele edifício “é a essência do que deve ser um mosteiro, seja qual for a época da sua construção”. No interior da igreja de Le Thoronet, as paredes de pedra sem adornos, iluminadas por aberturas estreitas, criam uma atmosfera suave. A certa altura, um homem aproximou-se da abside, a sua voz preencheu gradualmente a igreja com uma cor palpável, que nos fez lembrar um cântico de Hildegarde von Bingen. No século XII, estes espaços conformavam dualidades — o silêncio e a música, a clausura e a peregrinação. Lembro-me ainda de Paulo Varela Gomes (1952-2016) ter escrito neste jornal que Le Thoronet é um artefacto da Occitânia — a civilização refinada de onde provêm o “amor cortês e a poesia trovadoresca” — num texto a propósito da intolerância religiosa e da emancipação feminina. Segundo Varela Gomes, essa civilização desapareceu por via de uma “interpretação intolerante do cristianismo”, quando o “horror da repressão marcou o fim da doçura de viver da civilização do Sul” — outra Arcádia perdida. Comparando o convento moderno de La Tourette e a abadia medieval de Le Thoronet, observamos vários paralelos: o modo como os edifícios acompanham o declive do terreno, a topografia complexa do claustro, as composições invulgares de volumes, a luz como elemento arquitectónico, mas, sobretudo, a criação de um terraço ligado às celas dedicado à reflexão solitária. Le Thoronet parece demonstrar a definição de Le Corbusier que a “arquitectura é o jogo sábio, correcto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz”. Também a cripta de La Tourette é um lugar onde os efeitos luminosos são dramáticos, onde a evocação do transcendente no espaço é intensa, com uma parede ondulante de betão, planos coloridos amarelos, azuis e púrpura, iluminados por três óculos elípticos — que lembram as obras que James Turrell viria a desenvolver décadas mais tarde. Le Corbusier: “Nunca experimentei o milagre da fé, mas muitas vezes conheci o milagre do espaço inexprimível, a apoteose da emoção plástica. ”La Tourette partilha também semelhanças com a Unidade de Habitação de Marselha, a intensidade escultural, as texturas de betão, as celas dos frades baseadas na célula singular dos quartos, mas sobretudo o toit terrasse. Este espaço reservado para a reflexão dos monges recria igualmente uma Arcádia protegida e apresenta uma perspectiva sobre a paisagem — o antigo Domaine de La Tourette. Esta propriedade pertenceu à família de Marc-Antoine de La Tourette, botânico do século XVIII, com quem Jean-Jacques Rousseau se correspondia a propósito do seu interesse sobre plantas. Ao final da tarde, caminhámos entre as árvores que rodeiam o convento descobrindo lugares fascinantes, povoados por caracóis gigantes, lesmas cor de laranja e plátanos que largavam a sua casca em pedaços com a forma de mapas imaginários. Continuamos a nossa viagem ao longo do Ródano, passando por Genebra, seguimos o exílio de Rousseau até Môtiers, uma pequena vila no cantão de Neuchâtel. Depois de ter publicado Du Contrat Social (1762) e Émile, ou de L’Éducation (1762) — livros que foram banidos em Genebra e em França e colocados no Índice dos Livros Proibidos da Igreja católica —, Rousseau exilou-se aqui, com a protecção de Frederico II da Prússia. Este pensava que Rousseau tinha “nascido para se tornar um famoso anacoreta, um padre do deserto, celebrado pela sua austeridade” e que se tivesse mais recursos, que escasseavam depois da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), “construir-lhe-ia um eremitério com jardim”. Foi em Môtiers que Rousseau, com a ajuda do Docteur d’Ivernois, começou a interessar-se por botânica e a coleccionar exemplares de plantas. Três anos depois, em Setembro de 1765, Rousseau foi novamente perseguido e apedrejado pela comunidade encorajada pelo padre local. Depois deste ataque, refugiou-se num mosteiro cluníaco na Île St. -Pierre, no meio do lago Biel, no cantão de Berna. No edifício onde Rousseau viveu, hoje um hotel, encontramos o seu quarto, ainda preservado como artefacto histórico. Da sua janela podemos ver a margem sul do lago com os Alpes ao fundo. Rousseau descreveu a sua estada em Les Rêveries du Promeneur Solitaire (1782). Na quinta promenade escreve: “De todos os lugares onde vivi nenhum me fez tão feliz. ” E caracteriza a paisagem como mais “selvagem e romântica” do que a do lago em Genebra, relatando ainda como passa o tempo a “compor a Flora Petrinsularis e a descrever todas as plantas da ilha com tal detalhe que isso [poderia] ocupá-lo até ao fim dos seus dias”. No entanto, sempre que podia “remava até ao meio do lago, quando as águas estavam calmas, e aí deitava[-se] ao comprido no barco dirigindo o olhar para o céu” e deixava-se andar à deriva durante horas, “sem necessidade de se lembrar do passado ou imaginar o futuro em que o tempo se dissolvia e o presente se estendia sem limite, mas sem duração, sem nenhum outro sentimento que o da existência”. A epifania de Rousseau — a sua descrição de comunhão com a natureza — influenciou crucialmente a produção literária e artística dos séculos XIX e XX, de Stendhal a Shelley, de Beauvoir a Sebald. Este episódio da deriva na natureza é reencenado por Stendhal em De l’Amour (1822) quando recorda as tardes flutuando num barco em que “nunca sentiu tão intensamente a beleza comovente e solitária das margens do lago di Garda”. E por Sebald em Vertigo, ao confessar: “Deitei-me no barco e olhei para a cúpula celeste, as estrelas apareciam por detrás das escarpas ameaçadoras em tal número que pareciam tocar-se. Remar fez-me tomar consciência do sangue que corria nas minhas mãos. O barco flutuava passando pelos terraços íngremes dos pomares abandonados onde outrora cresciam limões. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Rumamos para sul de regresso ao lago Léman. Próximo de Vevey, em Corseaux, na Suíça, visitamos a primeira casa modernista de Le Corbusier, a Villa Le Lac (1919), onde a sua mãe e irmão viveram. Se no final da vida Le Corbusier construiu uma pequena cabana Suíça no Mediterrâneo, no início projectou uma casa do Mediterrâneo na Suíça. No jardim, onde antes havia uma enorme árvore — paulownia —, existe uma janela num muro que enquadra o vale do Ródano e os cumes dos Dents du Midi, apontando o caminho para as visões do sublime Alpino, que exploraremos no próximo capítulo da nossa viagem. Como Rousseau escreve em Émile, “ao longe, a imensa cadeia dos Alpes coroava a paisagem; os raios do Sol nascente rasavam as planícies projectando nos campos as longas sombras das árvores, dos outeiros, das casas (. . . ) dir-se-ia que a natureza nos exibia toda a sua magnificência oferecendo um motivo para a nossa conversa”. Eliana Sousa Santos é investigadora do CES, Universidade de CoimbraNo próximo domingo: Arte e Ciência
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo
Adeus, Bolhão
Sete retratos e sete depoimentos de vendedores do Mercado do Bolhão, Porto, que vão abandonar este espaço, que este sábado fechou para obras. (...)

Adeus, Bolhão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sete retratos e sete depoimentos de vendedores do Mercado do Bolhão, Porto, que vão abandonar este espaço, que este sábado fechou para obras.
TEXTO: O Mercado do Bolhão, no Porto, fechou ontem as portas, para que o edifício seja restaurado. Quando reabrir (espera-se que dentro de dois anos), com o terrado como mercado de frescos, e o piso superior com restauração e outras lojas, já não será certamente o mesmo. O espaço físico vai mudar e alguns vendedores também serão diferentes. Dos cem comerciantes do interior, 28 já decidiram não regressar. Dos 40 inquilinos do exterior, 14 também optaram por ir embora. Os que ficam estarão, quase todos, no novo mercado temporário, no Centro Comercial La Vie, que abre portas no dia 2 de Maio. Deverão ficar por ali até que as obras do Bolhão terminem e possam voltar, com novas regras, para uma velha casa transformada em nova. Já não será esse o futuro de Júlia, Maria, Alcino, Marília, Conceição ou Graça. A saúde, a descrença no projecto futuro ou o desalento fizeram-nos desistir do Bolhão, depois de uma vida inteira ali passada. Nestes retratos e nas suas histórias, contadas na primeira pessoa, fica o adeus de quem já não quer voltar. Maria Sousa, 77 anosEstou cá há 69 anos. Com oito aninhos vinha a pé e ia a pé, para Vila Nova de Gaia. Saíamos de casa às 5h, 5h30. O nosso negócio foi sempre o de hortaliças, e aos 16 anos tomei conta desta banca. Ui, antigamente… O povo andava aos empurrões. A gente vendia tanto, tanto, tanto. Vendia às 40 dúzias de agriões, agora não se vende um molho. Agora, olhe, em dois dias ainda não vendi para ir ao café. E os turistas adoram isto, o mercado chama a atenção, mas compram muito pouco. Um tomate, uma cenoura, “carróte”, pois. Isto não precisava de ter chegado ao que chegou. Foi o Rui Rio, com os andaimes, que piorou tudo. Ele matou-nos, foi um grande maroto para nós. Eu vou-me embora por já não poder. Já há oito anos que ando de canadianas, por causa das artroses. Já caí por duas vezes. Tem sido muito duro para mim. Agora venho de comboio, mas ainda tenho que andar uns 20 minutos, porque, apesar de a minha casa ficar à face da estação, em Francelos, tenho que dar a volta ao quarteirão. E à noite, a mesma coisa, mais 20 minutos a andar no sentido contrário. Do que vou ter mais saudades é dos meus fregueses. Dou-me bem com os meus vizinhos daqui, mas os fregueses estão-me cá dentro, são meus amigos. Eles dizem que também vão ter pena, muita pena e que não vêm para aqui depois. Eu não sei como vai ser depois. Se for para ser como o Bom Sucesso, é uma porcaria. Eles na câmara dizem que não. Vamos ver. Mas não sei se quero vir ver. Não me posso meter em casa, mas tenho tantos problemas para caminhar…Marília Brandão, 75 anosEstou aqui há 64 anos, a gente fazia o exame da 4. ª classe e vinha trabalhar. Saíamos às 5h30 e vínhamos a pé, de Gondomar. Era trabalhar no duro. A minha mãe vendia hortaliças lá em cima e, a ver se eu enjoava disto, arranjou uma colega para onde eu ir. Mas eu gostei e fui vender hortaliças também. Vim ganhar cinco escudos por dia, mas depois outra vendedora, uma das fortes, a quem chamávamos fornecedoras, ofereceu-me 20 escudos por dia e nem falei com a minha mãe. Aceitei. Mais tarde, uma amiga que tinha uma barraca de frangos queria que eu fosse para lá, mas um compadre da minha mãe, que era médico, não queria ver-me no Bolhão e meteu-me na Bial. Estive lá quase cinco anos, na preparação e embalagem. Adaptei-me bem, mas as saudades e a facilidade, aqui, em estar com os filhos… Oh, eu gosto tanto disto!. . . Voltei. O meu estabelecimento agora é de aves. Tenho pato, peru, frango e também coelho. Chamamo-nos galinheiras. Dantes comprávamos os animais vivos, matávamo-los aqui e mandávamos para os talhos e mercearias. Durante anos não podia haver talhos e supermercados neste quarteirão. A câmara não autorizava porque isto é o mercado municipal. Nós é que abastecíamos as mercearias, os cafés. Depois, isso acabou. Para o meu negócio, isto está arrumado. E que vou eu fazer, recomeçar uma actividade aos 80 anos? Se fosse pouco tempo, se eu acreditasse que eram só dois anos, se calhar ainda voltava. Mas não acredito. E também acho que o mercado temporário não vai funcionar. Mas aqui também não funciona, não é?. . . Tudo tem o seu limite. E depois, quando reabrir, estou convencida que vai correr bem. Não vai ser fácil, mas o local não podia ser melhor. A minha neta ainda diz: “Ó avó, voltavas com gourmet, gourmet, umas natinhas e um café ou um vinho. . . ” Mas eu digo-lhe: “Ó filha, eu sou portuguesa, não quero essas coisas de gourmet. Vou arrumar as botas. Tenho muito com que me entreter em casa. . . ”Alcino Sousa, 62 anosEstou cá desde 1979, mas cansei-me de tanto lutar e não ter resultados. Fui presidente da Associação de Comerciantes do Mercado do Bolhão e quem conhece o meu passado sabe o que fiz. O trabalho feito ninguém mo tira e há várias coisas que me deixam orgulhoso: ter-se conseguido que a Metro do Porto pagasse aos comerciantes, por causa das obras, o abaixamento das rendas nos últimos anos, até a instalação do Multibanco. Eu nunca quis que o Bolhão fosse para privados, mas acreditei na TramCrone, claro que acreditei. Tínhamos garantias, ficávamos durante 25 anos e a renda para os comerciantes do interior era a mesma, estava escrito. E só quando está tudo encaminhado é que aparecem uns senhores a desestabilizar, a criar guerras uns com os outros, difamações contra mim, ninguém podia falar no nome do Alcino, Jesus! Meti-me no meu cantinho, mas ainda fui trabalhando, fui dando a assistência que conseguia. Agora, custa-me muito deixar como deixo. As condições que me apresentaram… Primeiro, disseram que eu não iria ter carne de porco nem charcutaria, só carnes vermelhas. Eu disse que isso não era possível, eu tenho alvará de talho e dá para vender isso tudo. Pensaram e já me davam essas coisas, mas tiravam-me as aves. Depois, ainda propus mudar de ramo, para restauração, e ficar com este espaço, porque fiz aqui grandes investimentos. Não consentiram. Se não consentem, o que vou fazer? Não acredito na justiça. Fiz uma exposição à câmara, na qual digo que decidi receber a indemnização que me foi proposta, mas que, mesmo assim, me sinto lesado por não poder continuar a usufruir das minhas duas lojas, a 2 e a 3, devido a decisões impostas pelos serviços da câmara. Não posso dizer que fui maltratado, não senhor. Foi tudo com respeito, mas tudo tem uma ética e, aqui, a ética é esta. Eu ficava aqui, mudava de ramo. Os meus filhos foram criados aqui. Saio muito triste. Graça Santos, 55 anosEu estava a sair da barriga da minha mãe, tinha três dias quando vim para o Bolhão. O meu berço eram as gamelas. A minha avó vendia batatas lá em cima, e a minha mãe estava cá em baixo. Ainda fiz o 1. º e o 2. º ano, mas a minha mãe queria-me aqui, como via que eu tinha talento. Comecei a vender logo aos oito anos. Ela ficou viúva muito cedo, mas era uma mulher de luta. Saía de casa às 3h para ir para Matosinhos e eu vinha com os meus irmãos, sozinhos, no autocarro. Toda a gente dizia: “Olha os filhos da Chiquinha, tadinhos, tão cedinho, às 6h da manhã a vir para aqui. . . ” Éramos criados aqui descalços, roubávamos estilhas de bacalhau, ao Borges merceeiro, que era o nosso comer logo pela manhã. Foi uma vida muito massacrada, com pau de um lado e pão no outro. Graças a Deus nunca nos faltou nada, mas também nunca nos faltou porradinha. Vendemos sempre peixe, mas não era como agora. Vinha congelado e era partido à faca, com martelo e cinzel. Ganhava-se dinheiro nessa altura. Eu era a rainha da beleza aqui no Bolhão, sabe? Tinha clientes, ó filha, que me compravam peixe só porque queriam casar comigo. A quantidade de rosas vermelhas que me vinham aqui trazer, Deus me livre. Os meus pais não têm olhos azuis e foram fazer seis filhos de olhos azuis, saímos a uma tia. Sabe que até havia doutores que diziam à minha mãe para ela dar alguns filhos às pessoas que não conseguiam ter? E a minha mãe dizia sempre: “Não, minha querida, eu não sou gata para dar filhos. ” Melhor fosse. Assim não estava nesta porcaria e não me ia agora embora com tuta-e-meia. Eu nunca quis sair daqui e agora decidi sair porque isto não vai para melhor. Vão-me tirar a vida do meu Bolhão. Só queria que me pagassem o que é justo e não estão a pagar. É que a mim ainda faltam dez anos para a reforma, e eles não pensam nisso. Deviam dar-me o fundo de desemprego, além da indemnização. Era o mínimo. Nem quero olhar para o Bolhão do futuro. “Está lindo”, pois!. . . A gente não vive de belezas nem de fachadas, vivemos de realidade. No futuro, as despesas vão ser tantas que elas vão todas embora, vai ser como no Bom Sucesso. Saio com uma amargura muito grande. Não perdoo o que me fizeram. Júlia Gaspar, 83 anos“Não fico até ao fim. Ainda há pouco estive um mês fora por doença. Já há mais de uma semana que não compro nada para reabastecer a minha banca de hortaliças. Foram mais de 50 anos aqui, mas agora, o coração… De noite, não consigo dormir, falta-me o ar. Fico tão cansada, tão cansada. Passo a vida no hospital, não venho um dia ou dois, deixo tudo aqui, mas depois há coisas que tenho de deitar fora. E não ganho nada, nada, nada. Só perco dinheiro com as coisas que deito fora. Dantes é que era. Eu nunca fui de abastecer os restaurantes, mas tinha muitas senhoras que eram minhas clientes. Mas, depois, deixaram de vir as senhoras e as criadas das senhoras. Às vezes ainda me aparecem aí algumas pessoas. . . Olhe, ainda há uns tempos parou aí uma moça. Olhava, olhava, e eu: “Quer alguma coisa, menina?” E ela diz-me: “Estava a olhar para a D. Júlia, que me dava saquinhos”. Eu dava saquinhos de compras às meninas, aos rapazes, não. Mas também parou aí um rapaz, com latas presas aos pés, naquelas coisas dos estudantes. Ele parou, os outros já iam longe e eu, claro: “Quer alguma coisa, menino?. . . ” “Quero é dar um abraço à D. ª Júlia”. Era o filho da dr. ª Teresa, uma antiga cliente. Agora, vou-me embora. A minha colega vai ficar com as gilas. Estas bancas vou dá-las a uns mocinhos que mas vieram pedir, para fazer um teatro, a fingir que é o Bolhão. O resto vou desmanchar para lenha, para a lareira. Tenho que limpar tudo, querem que eu entregue a chave e dizem que só querem ver o chão neste sítio. Conceição Sousa, 69 anosEstou quase há 50 anos no mercado, esta banca era da minha mãe. Já estou saturada. Ir para o outro lado, não vale a pena, querem muitas exigências e eu estou velha para isso. Agora, computadores… Querem que vá tirar um curso para ajeitar hortaliças. Então, 50 anos nisto e vão agora ensinar-me a ajeitar hortaliças? E balança electrónica. . . Vou ter saudades, mas o sítio para onde vão as colegas não convém a ninguém. Eu gosto de estar livre, fui sempre habituada assim. Com o sol e a chuva, a gente sente o dia que é. Somos como os passarinhos, gostamos de estar livres. Disseram logo que ia ser muito rigoroso. Que já não ia poder vender alhos e limões ou feijões, só hortaliça. É para a gente se ir chateando e ir embora. Vai ser como o Mercado do Bom Sucesso. Fica um ou dois e depois desistem e vão embora. Se a minha reforma não fosse tão pequenina, já tinha ido. Agora, quando as portas se fecharem, fecho também. Como está agora, não dá gosto. A gente está aqui horas e horas e horas à espera de um cliente. Toda a manhã não vendi um molho de grelos. Antigamente a gente não dava vazão ao povo que aqui vinha. Aquela alegria que a gente tinha, de arranjar isto e aquilo. Tinha dias que nem comer podia, tantas eram as pessoas. Era mais bonito, mais alegre. Dava gosto. Agora não. Agora não dá. Não se ganha dinheiro. Bota-se metade do artigo fora. Onde é que a gente ganha dinheiro para pagar o que eles querem? Dizem que vamos pagar o mesmo e passados dois anos começa a subir. Vindo para aqui de novo, ainda sobe mais. Não, não. Estar a trabalhar para os outros, não. Vou com pena, que eu gosto disto, mas a gente, não podendo, não fica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Amélia Malheiro, 85 anosEstou aqui sentada, junto às flores secas, que era o que eu vendia. A minha nora Mónica tomou conta do meu lugar e vende umas coisas para os turistas, o que é que ia fazer? Isto já não se vendia. Vim de Ponte de Lima para servir em casa de uns patrões e ainda não tinha dez anos quando vim para aqui vender flores, a pé, de Serzedo, em Gaia. Nem podia com o carreto. O que a vida era… Louvado seja Deus, o povo nem se acredita! Naquela altura era só carros de bois e cavalos e eu sempre a pé. Não sabia ler, mas ninguém me enganava nas contas. Pousava as flores onde houvesse um espaço vazio (não se podia vender junto às hortaliças) e depois levava o dinheiro aos patrões. Com 16, 17 anos, saí de casa deles e vim para aqui por minha conta. Fiquei sempre aqui. Tanto vendia hortaliça como flores como qualquer coisa. Fui-me criando sempre aqui. E estava cá todo o dia. Tive seis filhos, um morreu, e todos foram criados aqui. Um deles foi criado ali com uma caixa. Eram umas caixas de madeira compridas, onde o deitava, e metia um pau por baixo, para ela não fechar. Outra foi criada acolá debaixo, na barraca do pão. Estava por baixo, numa alcofa e outro dormia na parte de cima. Eram todos muito amigos dos meus filhos, sabiam de quem eram, vinham fazer festinhas. Isto era muito rigoroso, com uma disciplina muito grande, e não se podia cozinhar, mas eu cozinhava para os meus filhinhos e para dar de comer ao menino de uma carrejona que estava numa giguinha. Ainda me veio visitar, com 50 e tal anos. Todos os dias venho e fico aqui sentada porque tenho saudades disto. Eu tenho saudades disto. E toda a gente me vê aqui. E falam comigo. Até o mercado fechar, venho com a minha nora. Eu queria é que eles dessem o meu lugar ao meu filho, que está a trabalhar fora, e arranjassem outro para a minha nora. Mas não deixam. Eu não acho bem, mas quem manda é a câmara. Quem me dera vê-lo arranjadinho, ainda.
REFERÊNCIAS: