O luxo de António é acordar às 9h no Inverno
O trabalho agrícola “dá uma sobrevivência". "Uma sobrevivência e mais nada", diz António. No campo, os rendimentos são incertos. O dinheiro é contado. (...)

O luxo de António é acordar às 9h no Inverno
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: O trabalho agrícola “dá uma sobrevivência". "Uma sobrevivência e mais nada", diz António. No campo, os rendimentos são incertos. O dinheiro é contado.
TEXTO: Esta é a última de uma série de reportagens sobre pobreza. Todo o dossier pode ser consultado em: O que é ser pobre hoje em Portugal?António Cardoso está a cortar aveia com uma roçadeira a combustão. O ruído ouve-se ao longe. Está a cortá-la para dar ao gado. Tem oito ovelhas. Antes de Abril, há-de cortá-la outra vez. Depois, há-de lavrar este pedaço de terra com vista para o Douro. No mês de Abril, costuma semear milho. Este terreno não lhe pertence. Pertence a uma vizinha que já não o pode cuidar. “Ela faz-me o favor de mo emprestar e eu faço-lhe o favor de o manter limpo, cultivado”, diz o homem, de 58 anos. “Quando peguei nisto, estava cheio de mato. ”Mora em Castelo de Paiva, no distrito de Aveiro, sub-região do Tâmega. Isto é o Douro antes de começar a região demarcada, mas aqui também se produz vinho (verde). Dedica-se ao trabalho agrícola com a mulher. Não se põe a desfiar quanto ganha aqui e acolá. Diz que o trabalho agrícola “dá uma sobrevivência”. “Uma sobrevivência e mais nada. É para comer e beber e pagar as despesas. ”Começa a pensar na “velhice” que se aproxima. A pobreza, que afecta 17, 7% dos maiores de 65 anos, é um ponto de chegada de trajectórias de vida que tem menos a ver com escolhas do que com factores de natureza estrutural. António trabalha desde pequenino. “A minha infância foi sempre a trabalhar com os meus pais na agricultura. Trabalhei com eles na agricultura até à idade de ir para a tropa. Fiz a tropa e voltei. Estive sempre ligado a este lugar. ”Trabalhou na agricultura a vida toda, mas não só. Esteve oito anos numa padaria, aqui mesmo, em Castelo de Paiva. E 20 anos numa fábrica de calçado que pertencia à Rohde, uma multinacional alemã, em Santa Maria da Feira. A unidade era enorme. Chegou a empregar umas 1300 pessoas. Parecia que ia durar para sempre. António imaginava-se a trabalhar ali até estar mais perto da idade da reforma, altura em que, então sim, se dedicaria apenas à terra. Faria uma agricultura de subsistência, como vê fazer alguns. Há uns anos, a empresa entrou nas páginas dos jornais. Aquela fábrica acumulou prejuízos entre 2006 e 2008. Houve vários lay-offs. Em Setembro de 2009, a unidade foi declarada insolvente. Em Maio de 2010, fechou as portas. António veio para casa sem indemnização. Não foi uma excepção. Os 984 trabalhadores que restavam ficaram todos credores da Rohde. As instalações foram vendidas em 2016, mas o dinheiro foi canalizado para despesas relacionadas com o processo. Quando a fábrica fechou, António repensou a vida inteira. Só completara o 6. º ano. O que é que podia fazer com aquela escolaridade, aquela experiência, aquela idade? “Já não dava para andar por aí abaixo à procura de trabalho. Tinha 49 anos. Podia aguentar mais uns cinco anitos. . . ”Delineou um projecto e apresentou-o ao Instituto de Emprego e Formação Profissional. Recebeu o subsídio de desemprego por inteiro e investiu num tractor. Ao longo dos anos, tinha comprado algumas máquinas e utensílios. Podia prestar serviços agrícolas. “O dinheiro que ganhei lá em 20 anos foi gasto nestas coisas”, afiança, olhando para a roçadeira. Cobra 15 euros por hora pelo serviço de tractor. “Há poucos pedidos”, diz. “No tempo da sementeira, há um ou outro que me chama. ” Se não aliasse isso à criação de gado e ao cultivo da terra, dele e de outros, “não dava para sobreviver”. António e a mulher trabalham uns “dois hectares e meio”, uma parte deles, outra parte de outros, que lhes emprestam a terra. Produzem azeitona, milho, batata, feijão, tomate, couves e outros legumes. “Vamos equilibrando a vida. ” Durante uma boa parte do ano, não há dinheiro a entrar no orçamento da família. Agora mesmo está a roçar um pedaço de terra no lugar de Gondarém. Olha em volta e quase só vê abandono. “Há aí uma senhora que tem uma vinha. Para equilibrar a vida dela, ajuda um senhor idoso”, conta. Parece-lhe que a agricultura está bem é para quem trabalha em grande escala. Para os pequenos agricultores, como ele e a mulher, nem por isso. “O dinheiro não é certo”, explica. “Hoje ganha-se, amanhã não. ” Ora faz muito frio, ora faz muito calor, ora chove demasiado, ora não chove o suficiente. Acontece haver incêndios que tudo devoram, como no ano passado. Ajuda ter casa própria. “Foi uma coisa que consegui no tempo em que trabalhei lá em baixo”, diz. Mesmo assim, “não dá para poupar”. “A gente tem qualquer coisa de lado para um momento mais difícil, mas isso vem de trás. ”Olha para o ganho e não vê sobra. “Não dá para dizer: vou passar umas férias à Madeira. E não é que eu não quisesse ir à Madeira. ” O dinheiro está contado. Não dá para ir ao cinema, nem ao teatro, nem para jantar fora. Pensando bem, foi uma vez de férias: “Estive acampado dois ou três dias no Gerês. ” E ao domingo dá uma voltinha com a mulher. Ela é de Arouca. Ao fim-de-semana, gosta de ir ver a família dela. Pensando mais ainda, dá-se a um luxo: “Em vez de me levantar às 8h, levanto-me às 9h agora no Inverno. ”Do princípio de Abril ao fim de Setembro é um ver se te avias. É quando ele e a mulher amealham para o resto do ano. Levanta-se muitas vezes de madrugada. Aproveita tudo o que aparece. Andou, por exemplo, a carregar as uvas de Helena Matos, a tal que tem vinhas em Gondarém. “Essa está pior do que eu”, diz ele. No mundo rural, como no mundo urbano, a pobreza afecta mais as mulheres do que os homens. A 15 de Outubro foi divulgado um estudo realizado em 17 países, incluindo Portugal e Espanha, pela empresa Corteva Agriscience, que aponta para o lento progresso no reconhecimento do trabalho agrícola das mulheres. Para lá das diferenças salariais, menos de metade sente-se valorizada. Helena tem 70 anos e trabalhou a vida inteira. “Só fiz a quarta classe”, diz. “Naquele tempo era assim. Fiquei em casa, sempre. Agarrada à família, sempre. Depois, faleceu o meu pai, faleceu a minha mãe e lá fiquei. ” Trabalhou muito. “Eu trabalhava em casa. Eu fazia costura. Eu lavrava. Eu andava com máquinas às costas. Eu fazia tudo. Eu ainda faço a poda na vinha. Vou plantar videiras na quinta-feira. Vejo videiras secas e vou lá. ”Já não faz tudo sozinha. “O senhor Cardoso vai com o tractor quando é preciso fresar a terra”, conta, referindo-se à preparação da terra para o cultivo. “Este ano, acartou-me as uvas. ” Deu pouco. Demasiado calor em Agosto. Pelas suas contas, daí virão uns 1800 euros, mas não é tudo ganho. “Nas terras gasta-se um dinheirão. ” É preciso tratar a vinha e as uvas e chamar gente. “Ninguém vai de graça. ”Não tem luxos. “Não tenho carro. Não vou de férias. ” Mesmo assim, a vinha e a pensão, “a passar dos 400 euros”, não daria para tudo. “Se fosse só para mim, ia remediando, mas não é. ” Tem em casa um irmão, divorciado, doente, desempregado aos 62 anos. Há cinco anos, um vizinho, Orlando Faria Rodrigues, pediu-lhe que olhasse pela mulher, acamada. Entretanto ela morreu. E ele pediu-lhe que continuasse a trabalhar na casa dele. E ela ficou. “Dou uma ‘arrumadelita’ à casa, cuido da roupa, faço a comida. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não é só pelo “poucochinho” que ali ganha e que lhe permite ajudar o irmão, “também é pela amizade”. Fala de Orlando com grande entusiasmo. “Boa pessoa! Para ele está sempre tudo bem. ” Já vai nos 90 anos. “Ele ainda conduz. Ele tem uns terrenos à beira do rio. Ele ajuda-me e eu ajudo-o. ” Enquanto Helena conta isto, Orlando está na rua a serrar lenha, com uma pequena motosserra. Quando ele acaba, entra em casa, contente. Estão sempre a mexer. Produzem os seus próprios legumes. De uma janela avista-se uma parcela de terreno com couves, favas, batatas. E têm cuidado com o que levam à boca. “Ele não come salgado. Não abusa. Sopinha ao meio-dia e à noite por cima da outra comida. ” Se for preciso, têm centro de saúde a uns minutos e hospital a uma hora. “É ir vivendo. ”O número de pensionistas por velhice não pára de crescer, ultrapassado já os dois milhões. Em Outubro, 8, 19% recebiam o complemento solidário para idosos (CSI), medida pensada no tempo de José Sócrates para combater a pobreza. A pobreza em idade avançada será o resultado de um percurso de vida no qual se conjugam diversos factores. Num artigo sobre o tema, Alexandra Lopes, professora da Universidade do Porto especializada em envelhecimento, dá destaque ao estado de saúde, às redes sociais e às trajectórias laborais. O sistema da Segurança Social é financiado pelas contribuições dos trabalhadores. Quem desconta mais tem mais protecção. Há quem receba pensão sem nunca ter descontado ou, pelo menos, sem ter descontado tempo suficiente. Esse foi o modo encontrado pelo país para resolver o problema de quem já tinha muita idade quando o sistema foi criado e para ir amparando outros. As prestações sociais não contributivas — como o CSI — atenuam a desigualdade. De acordo com os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, a pobreza aflige 17, 7% dos maiores de 65 anos. Há uma parcela muito significativa muito sensível a qualquer oscilação da linha de pobreza, nota Carlos Farinha Rodrigues, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa. A linha é relativa. Representa 60% do rendimento mediano. Quando o empobrecimento é generalizado, baixa. “Durante a crise, dada a quebra de rendimentos, desceu e alguns ficaram um bocadinho acima: agora, com o aumento dos rendimentos, a linha de pobreza subiu e eles passaram a ficar abaixo. ”Veja-se o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Durante a crise, houve uma manutenção dos valores da generalidade das pensões e uma diminuição das prestações sociais não contributivas. Agora, está a acontecer o contrário — tanto umas como outras têm estado a aumentar. “Eventualmente, temos de actualizar algumas medidas de combate à pobreza, como o complemento solidário para idosos (CSI)”, avisa Farinha Rodrigues. O programa foi criado precisamente para puxar idosos para cima da linha da pobreza. No princípio, em 2006, destinava-se apenas a maiores de 80 anos. Depois, em 2007, abarcou os maiores de 70. Por fim, desde 2008, os maiores de 65. À medida que o CSI avançava, a taxa de pobreza entre idosos ia baixando. A taxa de risco de pobreza entre idosos caiu de 28% para 20%, entre 2005 e 2009. A tendência alterou-se com os três planos de ajustamento e uma intervenção externa. Em 2013, o valor de referência do CSI passou de 5022 euros para 4909 euros/ano, o que excluiu milhares de idosos da prestação e diminuiu o montante recebido por cada um. À medida que os processos foram sendo revistos, foi-se verificando uma subida da taxa de pobreza naquela faixa etária. Em 2015, o Governo aumentou o valor de referência do CSI. Fê-lo em 2016 e em 2017. No ano passado, porém, aquela prestação ainda estava 10% abaixo do limiar da pobreza, sublinha Farinha Rodrigues. Este ano, tornou a haver nova actualização do valor de referência do CSI para 5175, 82 euros. No próximo ano, o valor deverá voltar a ser actualizado. E o direito a esta prestação será alargado aos pensionistas por invalidez que vivam em situação de carência económica.
REFERÊNCIAS:
No encalço dos guerrilheiros antifranquistas
Projecto sobre resistência às ditaduras ibéricas e solidariedade na fronteira escavou casa bombardeada na aldeia de Cambedo, em Chaves, em 1946. Essas ruínas e pelo menos dois esconderijos de guerrilheiros farão parte de um novo percurso pedestre (...)

No encalço dos guerrilheiros antifranquistas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Projecto sobre resistência às ditaduras ibéricas e solidariedade na fronteira escavou casa bombardeada na aldeia de Cambedo, em Chaves, em 1946. Essas ruínas e pelo menos dois esconderijos de guerrilheiros farão parte de um novo percurso pedestre
TEXTO: Licínio Inocentes vai à frente. Salta como um cabrito, apesar dos seus 68 anos. Abre caminho entre arbustos – giesta, carqueja, tojo, urze. Subindo a encosta, filões de quartzo entre maciços de granito. Lá em cima, numa sobreposição de pedras, escondiam-se guerrilheiros antifranquistas. Os arqueólogos que o seguem marcam as coordenadas do esconderijo, que há-de fazer parte de uma rota pedestre com pontos relacionados com a guerrilha. Pelo menos um outro esconderijo terá igual destino, garantirá um dirigente da Associação Cultural de Vilarelho da Raia, Carlos Silva, sempre animado com a ideia de valorizar o passado recente. "Já tem financiamento aprovado", dirá. O ponto que estão a marcar corresponde ao Lugar das Chóias, na Serra do Mourico, na freguesia de Vilarelho da Raia, no concelho de Chaves, nos confins de Trás-os-Montes. Para um lado, fica a aldeia de Cambedo, Portugal. Para outro, a aldeia d’As Casas dos Montes, Espanha. “Vir com o senhor Licínio é ter outra forma de olhar para a paisagem”, elogia Rui Gomes Coelho, um dos directores do projecto de arqueologia sobre a resistência às ditaduras ibéricas e a solidariedade na fronteira entre a Galiza e Trás-os-Montes. “Ele reconhece os lugares, sabe o que estava aqui, o que estava ali, reconhece a fronteira. ”Por aqui, em meados do século XIX ainda não estava claro onde começava (ou acabava) Portugal ou Espanha. A linha invisível atravessava terrenos, ruas e casas nas aldeias de Soutelinho da Raia, Cambedo e Lamadarcos, os chamados “pobos promíscuos”. Diz-se que se podia entrar numa casa por uma porta que ficava em Espanha e sair por outra que ficava em Portugal. Só no dia 29 de Setembro de 1864 se fixaram as fronteiras vigentes. E isso não pôs fim ao vaivém. Persistiram as trocas, as romarias, os amores. “A maior parte das pessoas fazia a mesma vida”, encolhe-se Licínio Inocentes. Era quase como agora que não há fronteira e ele vai ao outro lado comprar presunto, só que isso seria contrabando. “Aquilo só apareceu no papel. A maior parte das pessoas nem sabia ler!”Manteve-se uma rede social pronta para ser activada em caso de necessidade. E isso viu-se quando eclodiu a guerra civil espanhola, em 1936. A aldeia, que se avista desta serra, tornou-se num ponto de apoio ou de passagem de um número indeterminado de “fuxidos”. Muitos só queriam embarcar para a América do Sul. Os que tinham menos meios, sobretudo os oriundos das aldeias fronteiriças, tendiam a abrigar-se perto. O fim da guerra civil – que opunha os republicanos, progressistas, aliados aos anarquistas e aos comunistas, e os nacionalistas, apoiados por grupos conservadores, incluindo os falangistas, liderados pelo general Francisco Franco – não foi o fim das perseguições, das torturas, dos fuzilamentos. E nos montes multiplicaram-se as “partidas”, isto é, os grupos que procuravam resistir. A explorar um dos seus velhos esconderijos encontra-se agora Rui Gomes Coelho, que está a fazer pós-doutoramento na Rutgers University, nos Estados Unidos. E Márcia Hattoori, que tem estudado a ditadura militar no Brasil. E Carlos Otero, especialista em métodos de detecção geofísica. Lá em baixo, na aldeia, ficou Xurxo Ayán Vila, arqueólogo galego que dirige o projecto de arqueologia comunitária do Castro de San Lorenzo, em Monforte de Lemos, em Lugo, Espanha. E o luso-espanhol Rodrigo Paulos, ainda a dar os primeiros passos no estudo das culturas e dos modos de vida de outrora. Chegaram no dia 12 de Agosto decididos a ficar até ao dia 19. “Está ali um murozito”, aponta Licínio Inocentes. “Era onde um homem do Cambedo lhes vinha fazer a barba. ” Conheceu-o bem. “Ele faleceu há dois anos. Dizia que lhe mandavam recado e que vinha por aí acima. ”Quando Licínio Inocentes nasceu já nem um guerrilheiro se via por aqui, mas toda a vida ouviu contar histórias. O avô era da Guarda Fiscal e trabalhava aqui. Encheu-se de curiosidade quando viu o grupo de arqueólogos a escavar uma das casas bombardeadas – a que nunca foi recuperada. Presidente da junta de freguesia duas vezes, sempre se interessou pela vida da comunidade. Meteu conversa. E voluntariou-se para lhes mostrar esconderijos. “São pessoas que têm capacidade para analisar a situação e capacidade para divulgar”, diz. Fala com entusiasmo dos mais célebres guerrilheiros que por aqui andaram: Demétrio Garcia Álvarez e Juan Salgado Ribero (ou Rivera). É como se fossem personagens de um filme de acção. Demétrio nasceu na aldeia de Chãs, a menos de meia dúzia de quilómetros daqui. E tinha uma irmã, Manuela, casada aqui (com Manuel Bárcea, conhecido como “Mestre”). Era agricultor e correu à pedrada um falangista que atacou homens que andavam com ele na poda. Na prisão, ganhou consciência política. Juan nasceu d’As Casas dos Montes. Tocador de cornetim, tantas vezes animou as festas do Cambedo e das povoações vizinhas. Reza a lenda que fazia suspirar muitas mulheres. Já a imprensa da época atribui-lhe especial crueldade e pontaria. Eram discretos, os guerrilheiros. Contavam com a solidariedade própria das sociedades tradicionais. Camponeses, mineiros, operários, pescadores, trabalhavam na agricultura, no contrabando e, nos anos da Segunda Guerra, na extracção de volfrâmio. De quando em quando, protagonizavam incursões em Espanha. Em 1946 cometeram o erro de actuar em território português. No dia 16 de Setembro, Demétrio, Juan e outros deslocaram-se à aldeia de Negrões, no concelho de Montalegre, e executaram um homem que teria entregado um médico “fuxido” à Guarda Civil espanhola. Nesta operação, foram também mortos um “criado” de um “aldeão”. Na sequência de tal vendetta, diversas pessoas foram presas. Apertou-se a vigilância nas fronteiras. Multiplicaram-se as notícias “plantadas” contra os guerrilheiros, retratados como “bandoleiros”, “malfeitores”. No dia 29 de Outubro, encenou-se até um assalto à carreira Braga-Chaves. A poucos dias do Natal, as autoridades portuguesas, consertadas com as espanholas, montaram uma mega operação de busca aos “rojos”. Na madrugada do dia 20 de Dezembro, 200 guardas avançaram para as aldeias de Nantes, Mosteiró de Cima, Sanfins de Castanheira, Sanjurge, Couto e Cambedo. Ainda hoje, o Cambedo é quase só uma rua ladeada por casas de granito. Naquela altura, era menos e albergava mais gente (umas 300 pessoas – sem água corrente, sem electricidade, a deslocar-se a pé, de burro ou a cavalo). Na alvorada, os guardas cercaram a aldeia. Tudo apontava para a casa do cunhado de Demétrio, o “Mestre”, para outras duas ligadas a essa, a da irmã dele, Adelaide Teixeira, e a de uma prima, Albertina Tiago. E para uma situada mesmo em frente, a da prima Clementina, casada com Silvino Espírito Santo. Os primeiros tiros ouviram-se um pouco abaixo, nas imediações da casa de dona Engrácia Gonçalves. Era Juan. Manuel Guerra tinha 12 anos e, numa conversa na rua, resumiu assim o que aconteceu: “De manhã, quando foi para sair, viu a GNR encostada às paredes. E então foi-se preparar. Pegou na arma, abriu a porta. Conforme a GNR estava encosta às paredes, mandou uma rajada. Atirou só para abrir caminho, para fugir. Saltou para um carreiro que havia ali. Meteu pelo carreiro até ao ribeiro. Meteu pelo ribeiro até fronteira. Quando se aproximou, estavam lá os guardas espanhóis, a Guardia Civil. Começaram a fazer fogo contra ele. Ele regressa. Conforme [a guarda] o viu vir, matou-o. ”Silvina Feijó, então com dez anos, estava a atirar migalhas de pão às galinhas e apanhou uma bala perdida. O marido, Elói, nem quer falar nisso. “Há 74 anos que isso foi! Já vieram 50 equipas!”, resmungou ao ser interpelado à porta de casa. “Porque não vieram mais cedo? Isso já é velho”, insurge-se, acusando cansaço. Há uma dúzia de anos, a mulher teve dois acidentes vasculares cerebrais. Por volta das 11h, os guardas desataram a revistar as casas. Os registos policiais indicam que dois foram mortos no pátio de dona Albertina Tiago, cuja casa, nunca reconstruída, está agora a ser escavada pelos arqueólogos. Terá sido Demétrio ou Bernardino Garcia, que haviam de resistir ainda mais um dia e meio. Começaram a chegar reforços. Primeiro, guardas que tinham ido para outras aldeias. Mais tarde, um destacamento da PSP do Porto. E uma secção de morteiros do Exército vinda de Chaves. “Eu tinha dois anos e meio e é uma coisa que me ficou gravada”, contou Aurinda Feijó. “Estava lá no cimo da aldeia. Havia uma casa de comércio. Eu estava amouchadinha e via chegar os guardas aos grupos com as armas às costas. As pessoas diziam: ‘Ai que vem mais pelo Lagar Velho abaixo e vão matar aqui a todos. ’ Nunca me esqueceu isso. Com dois anos e meio!”Queriam incendiar um palheiro situado atrás das três casas comunicantes. De lá zuniam tiros. Lá estariam escondidos os guerrilheiros. Ainda incendiaram algumas medas. Durante toda a noite, trocam-se tiros por ali. Já no dia 21, ordem para evacuar as casas perto do alvo. E disparos de morteiro. “A gente estava atemorizada”, admitiu Manuel Guerra, naquela conversa de fim de dia. “A gente estava com medo que queimassem as casas. ” Trataram muitos de salvar os animais. “Eu tinha uma égua e agarrei nela e fui lá para a última casa da aldeia. ”“O meu marido é mais velho e sentiu tudo na pele”, afirmou Aurinda Feijó, sentada nas escadas que dão para a Rua Central, de olhos postos nos arqueólogos que continuavam a trabalhar na ruína situada mesmo em frente. O marido, Arlindo Espírito Santo, mantém-se dentro de casa, sentado numa poltrona. Durante a guerra civil, o pai de Arlindo comandava a Guarda Fiscal e bem via passar por ali muita gente, mas fazia de conta que não. No dia do bombardeamento, estava ele já reformado, a sua casa foi uma das mais atingidas. Arlindo tinha 16 anos. Lembra-se de fugir pela aldeia abaixo. Primeiro, refugiou-se numa casa. Depois, nos lameiros. Por fim, na ponte de madeira. O pai foi preso, bem como a tia Albertina e um irmão. Mais tarde, a mãe, sob suspeita de auxiliarem os guerrilheiros. Já pouco fala nestas coisas, Arlindo. “Já estou cansado”, disse o homem de 89 anos, estirado na poltrona. Sempre quis esquecer aqueles dias. E nunca esqueceu. Muita gente quis esquecer. Naqueles dias, foram detidas 63 pessoas. Só ali, na aldeia, foram 18 sob suspeita de cumplicidade. Ninguém expiou pena maior do que Demétrio: 19 anos de reclusão, alguns dos quais no Tarrafal. Bernardo Garcia, que estava com ele, e mais quis suicidar-se do que entregar-se. A mesma lógica repressiva foi aplicada noutros pontos. E a guerrilha extinguiu-se. “A partir do momento em que não há uma base de apoio que a sustenta, ela deixa de existir”, resume Rui Gomes Coelho. As consequências perduraram. Sobre isso Licínio Inocentes pode falar na primeira pessoa. “Procuraram pôr estas pessoas dentro de um recipiente em que só cabiam comunistas. Eram vistos como gente esquisita, que convivia com assaltantes, com malfeitores, com isto, com aquilo. Então, houve um afastamento deste povo em relação aos portugueses. Convivíamos mais com os galegos. ”A esse propósito, ocorre-lhe uma história dos seus 19 anos. “Arranjei uma namorada em Feiões, uma aldeia que há do outro lado do rio, em frente a Chaves. Namorávamos para aí há um mês, ela fazia anos, eu fui buscá-la para lanchar. Uma senhora viu. Mais tarde vim a saber que lhe disse: ‘Com quem andas metida, rapariga, com esses vermelhos do Cambedo, essa gente é do diabo!’ Meteu-se de tal forma com a rapariga que ela nunca mais me apareceu!”Durante a ditadura salazarista, a história foi enterrada na memória da aldeia. Só no final dos anos 1980 tornou a emergir, com um artigo publicado pelo Jornal de Notícias. Num primeiro trabalho que desenvolveu, entre 1986 e 1987, a antropóloga Paula Godinho ouviu falar na história. Manuela, a irmã de Demétrio, perdeu um filho de um ano enquanto aguardava julgamento na prisão. Já em 1993, o Centro Cultural de Vilarelho da Raia, com a colaboração de universidades espanholas e portuguesas, organizou um congresso sobre a guerrilha antifranquista. Paula Godinho regressou ao terreno, vasculhou arquivos e produziu diversos trabalhos científicos, que atraíram cientistas, jornalistas e documentaristas. O Silêncio é o título do documentário realizado por António Loja Neves e por José Alves Pereira. “A nossa vinda tem que ver com essa tradição académica, mas também com o contexto actual”, explica Rui Gomes Coelho. “A arqueologia contemporânea é uma disciplina da arqueologia que procura ser um campo de intervenção política e social. Serve-se das ferramentas e das metodologias da arqueologia para revelar histórias que muitas vezes são incómodas, mas que enriquecem o ponto de vista social e político”, salienta. “Nós estamos convencidos de que este pode ser um exemplo fenomenal de ética da solidariedade e da hospitalidade. ”A casa de Ernestina Tiago colapsou e ali ficou, a servir de reservatório de lixo. Tiradas as diferentes camadas, arqueólogos encontraram, desde logo, alguma continuidade temporal. “Isto é como escavar uma cabana castreja, porque é uma arquitectura em granito, o solo está feito directamente na rocha”, diz Xurxo Ayán Vila. “Esta gente, em 1946, vivia igual ao que vivia numa cabana há dois mil anos. ”Está espantado. “Uma família morava nesta casa e a sua casa converteu-se de um dia para o outro num campo e batalha militar”, realça. “Militares colocam os morteiros e bombardeiam o centro de uma aldeia. Tens de ter muita pontaria para atingir um alvo concreto. Não lhes importava que houvesse pessoas inocentes. Isto é impressionante. É uma maneira de extermínio puro e duro!”Encontraram vestígios do incêndio no chão, estilhaços de granadas, um berlinde e uma tigela com decoração infantil. “É um testemunho pungente da brutalidade que ali aconteceu em 1946”, corrobora Rui Gomes Coelho. “Tocar estes objectos é uma forma muito perturbadora de testemunhar os eventos. ”As escavações abrem também uma brecha para a vida dos anos 1940: a família morava em cima e os animais em baixo. Resistem ossadas, ferraduras, parte de uma antiga balança romana usada para pesar porcos, malgas tradicionais (semelhantes às que se usavam há dois mil anos). E restos de uma cerâmica mais fina. Num desses pedaços ainda se percebe a imagem da Torre de Belém, “um dos símbolos da pátria”. E isso leva Rui Gomes Coelho a falar num “sentimento de autonomia que se mantém, sempre se transformando", e de uma pátria "que não é construída com a criação do Estado Nação – isso só vai acontecer a partir dos anos 1940 e isto é a materialidade deste processo”. Têm escavado uma casa em Repil, em Monforte de Lemos, no sul da província de Lugo, que foi bombardeada pela Guarda Civil espanhola. Começaram em 2016, como parte do projecto de arqueologia contemporânea que Xurxo desenvolve na sua terra natal. E agora várias escolas levam alunos a ver essa casa. Um descendente da família que vivia nessa casa colocou uma placa de homenagem aos guerrilheiros e uma bandeira republicana. Conta Rui Gomes Coelho que a placa já foi vandalizada várias vezes e que a bandeira republicava foi roubada. “É um lugar de memórias muito contestadas, mas o projecto assume a educação cívica como uma das suas premissas e é nesse sentido que se acolhem visitantes. As actividades passam por recriar o trajecto da fuga do único guerrilheiro sobrevivente, que é uma caminhada até à aldeia em que se fala da guerrilha e da resistência ao franquismo. ”Que acontecerá, agora, na aldeia de Cambedo? Os 50 anos dos bombardeamentos foram assinalados, por iniciativa de galegos, com uma placa: "Em lembranza do voso sufrimento. 1946-1996". Quem for à procura de vestígios, encontrá-los-á assinalados. E, em breve, um percurso pedestre com vários pontos de interesse, incluindo a casa bombardeada e pelo menos dois abrigos (os arqueólogos identificaram quatro, três dos quais com a ajuda de Licínio Inocentes, mas três são de difícil acesso). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No sábado à noite, dia 18 de Agosto, no Cambedo, e no domingo de manhã, 19, no centro de Vilarelho da Raia, a equipa apresentou os resultados dos trabalhos e perguntou aos presentes o que desejavam que fosse feito no futuro. Alguns manifestaram o desejo de ver mais trabalhos arqueológicos, de trabalhar os recursos culturais para atrair visitantes e gerar recursos. “Nós entendemos que a arqueologia só faz sentido se for feita com e para a comunidade”, comenta Rui Gomes Coelho. “No Cambedo, tal como em Repil, há valores na comunidade que se relacionam com a nossa maneira de estar na vida e de ver o mundo. É por isso que temos insistido na ideia de Cambedo e da atitude da comunidade em 1946 como um exemplo a seguir na sociedade contemporânea, e é nesse sentido que decidimos propor o nosso contributo. ”Vão voltar? “Ainda não sabemos”, responde. A intervenção está enquadrada num Projecto de Investigação Plurianual de Arqueologia aprovado pelo Ministério da Cultura. “Temos previsto voltar no próximo Verão, mas isso depende do financiamento. Gostaríamos de trazer uma equipa mais alargada, que incluísse estudantes de arqueologia, antropologia e artistas, para trabalhar com a comunidade. Neste momento, não há apoio garantido”, remata. Uma coisa é certa: vão “incluir o trabalho num volume especial da revista académica Historical Archeology sobre as guerrilhas na Europa no século XX”.
REFERÊNCIAS:
A conquista das palavras na Argentina pós-referendo
Um dos rostos pela despenalização do aborto na Argentina, a escritora Claudia Piñeiro fala-nos da luta que entregou a palavra às pessoas. Aberto o espaço para conversas que finalmente se podem ter, a sociedade argentina não será a mesma depois da queda deste tabu. (...)

A conquista das palavras na Argentina pós-referendo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um dos rostos pela despenalização do aborto na Argentina, a escritora Claudia Piñeiro fala-nos da luta que entregou a palavra às pessoas. Aberto o espaço para conversas que finalmente se podem ter, a sociedade argentina não será a mesma depois da queda deste tabu.
TEXTO: Para a argentina Claudia Piñeiro, não apenas como escritora mas também no plano pessoal, este “foi um ano de pensar muitíssimo nas palavras que se usam, como se nomeiam as coisas e que palavras são escolhidas”. E uma causa, em particular, motivou essa reflexão da autora do romance Uma pequena sorte (D. Quixote): o debate sobre o aborto na Argentina, no qual Claudia Piñeiro participou activamente, tomando a palavra em discursos em ambas as câmaras do Congresso. E se, no plano político, a batalha foi perdida com o chumbo do Senado argentino, o debate na sociedade argentina ainda agora começou, já que uma barreira, talvez das mais importantes, foi deitada abaixo: “uma grande mudança, que foi muito importante, tem que ver com o segredo”, explica ao PÚBLICO a escritora, que esteve recentemente em Portugal a lançar o seu livro. Era algo que não se dizia, que não se nomeava. E se agora a palavra é dita sem tabu, no início da discussão ainda se falava com cuidado na “lei da interrupção voluntária da gravidez”. “Na minha família, temos uma tia-avó de 90 anos que nos contou que, há muitos anos, fez um aborto”, confidencia. Agora, já há conversas familiares “onde uma mãe, uma filha, uma tia dizem que fizeram um aborto”. Pode-se conversar sobre isso. No entanto, muitas destas mulheres viveram esta experiência numa profunda solidão. “Guardaram isto dentro de si, sem poder falar com ninguém, com medo de serem rejeitadas por tê-lo feito. Tudo isto foi muito reparador para a sociedade. ”Durante o seu percurso ao longo deste ano de luta, Claudia Piñeiro, 58 anos, leitora ávida e uma “recomendadora” generosa, leu “muitos livros, alguns relacionados com isto [sobre aborto], outros não”. Entre eles, destaca El salvaje, de Guillermo Arriaga, e República Luminosa, de Andrés Barba (editado em Portugal pela Elsinore), mas dedica mais recomendações a escritoras argentinas. Selva Almada, autora de Raparigas Mortas (ed. D. Quixote), que reflecte sobre a violência de género, ou Mariana Enriquez, autora de As Coisas Que Perdemos no Fogo (editora Quetzal), que escreve contos de terror “extraordinários, muito bons”. Não as nomeia porque têm “algum toque feminino” — apesar de “poder haver também terror no feminino, pode haver abismo, pode haver suspense, pode haver policial” —, mas porque essas vozes, afirma, “têm uma potência que lhes vem a partir da literatura”. Fala ainda de Samanta Schweblin, autora de Distância de Segurança ou Pássaros na Boca (editados pela Elsinore) e do seu olhar a partir do fantástico que é também “um mundo feminino”, com “um olhar sobre a não-maternidade”, ou Mariana Dimópulos, com o seu livro sobre uma mulher que não quer ser mãe. “Há mulheres que não querem ser mães, e a sociedade não lhes aceita essa decisão de não-maternidade”, lamenta. Também no seu romance, Uma Pequena Sorte, a protagonista é uma mãe que só mais tarde se pergunta porque é que foi mãe. “Porque também há muitas mulheres que chegam à maternidade sem que se lhes tenha sido perguntado se era o que queriam”, diz, “é um papel imposto pela sociedade”. Mais uma vez, regressamos às ideias que finalmente se podem nomear, como um véu que é retirado. “Era uma vergonha dizer que não queria ser mãe. ”Escritora consagrada — Claudia Piñeiro recebeu o Prémio Clarín Novel de 2005 pelo romance As Viúvas das Quintas-feiras (ed. Quidnovi), com elogios rasgados de José Saramago no júri —, a questão do aborto foi um tema que sempre a inquietou, e não ficou de fora dos livros. Foi também através da literatura que tentou tocar outras pessoas no último ano. “Por exemplo, quando fiz o discurso aos deputados, levei o livro de John Irving [As Regras da Casa da Sidra], porque achei que era mais fácil explicar com a literatura do que com um conceito fechado”. Conta que nunca pertenceu a nenhuma organização feminista. “As circunstâncias foram-me colocando nesse lugar [de protagonismo]”, explica, já que “nem todos queriam falar sobre isto”. Mas a reivindicação dos seus direitos enquanto mulher vem de longe. “Venho de uma geração que tem vindo a lutar por estes espaços há muito tempo. Sou economista, tive o melhor currículo da universidade, medalha de honra. Os homens que entraram comigo não eram melhores. Eram homens que eram bons contabilistas e economistas, mas às mulheres era-lhes exigido serem as melhores”, recorda. A sociedade argentina tem sentido outras mudanças nos últimos anos. Ainda antes de as actrizes norte-americanas tornarem visível a campanha Me Too, desde 2015 que as argentinas têm saído às ruas para gritar “Ni Una Menos”. “Às vezes a violência está enraizada e a aceitamo-la porque pensamos que é normal. É normal que te tratem mal, que te digam certas coisas, que te empurrem contra alguma coisa, que te toquem na rua. ” Mas mais do que o assédio, a reacção à violência de género na Argentina começou devido aos “muitos casos de mortes de mulheres por serem mulheres, que chamamos femicídios”. “Quando um país está a lutar para que não se matem mulheres, o MeToo, que é muito valioso e que é muito importante, deixa de ser tão importante, porque há uma urgência maior. E a realidade é que as mulheres europeias têm urgências muito diferentes das das mulheres da América Latina, de África, do Médio Oriente. ”Para Claudia Piñeiro, a luta feminista — que tem unido mulheres e homens — não se esgota na derrota no Senado. “Todo esse movimento é imparável, e é das jovens. Nós, mulheres mais velhas, acompanhamo-las com tudo o que podemos, mas não temos dúvidas de que será um movimento delas. E não acho que haja volta atrás. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Num ano de trabalho político intenso, Claudia Piñeiro escreveu vários artigos para a imprensa, incluindo para órgãos de informação estrangeiros que lhe pediam um olhar sobre o que se passava na Argentina. Mas, no campo literário, aproveitou para rever e reescrever uma série de contos — algo que lhe exigia menos do que escrever um novo romance —, uma colectânea que foi recentemente lançada na Argentina. “O novo romance já está na minha cabeça, mas ainda não tive tempo e a tranquilidade para iniciá-lo. Preciso de tranquilidade no arranque, algo que não me aconteceu neste último ano”. No novo livro de contos, Quién No (Penguin Random House), um dos textos é sobre um casal que está “a decidir se vai fazer ou não um aborto”. Mas como foi escrito há cerca de oito anos, a palavra não é mencionada uma única vez. “Quando escrevi este conto, essa palavra estava quase proscrita. Se o escrevesse hoje, teria usado a palavra aborto. Porque hoje já há um nome que se pode usar. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave aborto direitos homens filha lei violência campo mulher medo género mulheres feminista vergonha assédio
Um baile culinário para celebrar a batata-doce de Aljezur
Receitas da Índia e de África, música por uma orquestra em estreia e muita dança: Madalena Victorino e Giacomo Scalisi a Lavrar o Mar na costa vicentina. (...)

Um baile culinário para celebrar a batata-doce de Aljezur
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.175
DATA: 2018-12-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Receitas da Índia e de África, música por uma orquestra em estreia e muita dança: Madalena Victorino e Giacomo Scalisi a Lavrar o Mar na costa vicentina.
TEXTO: “Gostaram mesmo? A sério?”. Ângela Rosa está incrédula, apesar de ter acabado de ver à sua frente dezenas de pessoas a dançar e a cantar, aos pulos, braços no ar, pernas imparáveis. A estreia da Orquestra Vicentina, na primeira noite do “baile culinário” Dancing, integrado no Festival da Batata Doce de Aljezur?, foi um sucesso. Por volta das sete da noite já muita gente se juntava à porta da sede do Rancho Folclórico do Rogil, tentando abrigar-se da chuva. À hora marcada, a porta abre-se e Madalena Victorino e Giacomo Scalisi, os directores artísticos do espectáculo (e de outros do projecto Lavrar o Mar, que faz parte do programa 365 Algarve), recebem-nos, convidando-nos a passar primeiro pela casa-de-banho para lavarmos as mãos e assim podermos comer os pratos de batata-doce que vão ser servidos (sem talheres) ao longo da noite. Atravessamos um estrado de madeira que, explicará depois Madalena Victorino, é o mesmo que o rancho folclórico usa para os seus ensaios – é sobre ele que iremos dançar. No salão principal, à meia-luz, há várias mesas postas com pratos e copos de diferentes proveniências e jarras improvisadas a partir de velhas garrafas de refrigerantes como a icónica e barriguda garrafa da Laranjina C. Partilhamos uma mesa para quatro com um casal da Arrifana, um pescador e a sua mulher, aos quais Giacomo e Madalena costumavam comprar peixe (o rascaço era o preferido, para a sopa de peixe, confidencia-nos o pescador) quando eles o vendiam no mercado local. O público junta portugueses e um número bastante considerável de estrangeiros que vivem na Costa Vicentina. Serão estes os primeiros a saltar para o estrado e a começar a dançar quando a orquestra se lança a tocar – e serão eles os que, ao fim da noite, pulam de pés descalços sobre as tábuas de madeira. Garantindo que todos entendem o que se vai passar, a actriz Lucília Raimundo, que será a anfitriã do espectáculo, fala em português e inglês para apresentar, ao longo da noite, as três cozinheiras – a indiana Shail Lall, a eritreia Nighist Kahsay e a moçambicana Ana Paula Henriques – que vão explicar os pratos feitos a partir de receitas tradicionais dos seus países mas integrando a famosa batata-doce de Aljezur?. Afinal, a batata-doce é a rainha da festa e o que se vai fazer durante as três horas e meia de espectáculo é, basicamente, comer e dançar. O grande mérito de Madalena e Giacomo (também responsáveis pelo Festival Todos – Caminhada de Culturas, que acontece anualmente em Lisboa no mês de Setembro) é saber reunir pessoas e dar-lhes espaço para que cada uma delas mostre o que sabe fazer melhor. Titi (Nighist Kahsay), a cozinheira da Eritreia, é precisamente alguém que eles conheceram durante o Todos e que convidaram para estar aqui. Outro cúmplice que no final lhes agradecia emocionado era Júnior (André Duarte, co-fundador dos Terrakota), o mentor da Orquestra Vicentina, que, tal como Ângela Rosa, mal parece acreditar que um grupo que conseguiu reunir em poucas semanas e que em apenas um mês e meio se preparou para este espectáculo (o que incluiu fazer arranjos para músicas compostas pelos próprios) estava a ter uma recepção tão entusiástica. Ângela, que vive em Tavira, é, juntamente com a caribenha Arantxa Joseph e com a israelita Daphna Givon, uma das três vocalistas do grupo, que integra ainda Hugo Fontainhas na bateria, Bruno Martins no baixo, António Mandala na percussão, Steve Nóbrega no teclado, Júnior na guitarra, Ricardo Pires nos arranjos e saxofone, Afonso Alves no saxofone e Luís Barbosa no trompete. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os bailarinos (Ana Root, Carolina Carloto, Marta Jardim, Miguel Nogueira, Laura Abel, Raquel Santos e Susana Vilar) serviam às mesas, trazendo as travessas com chamuças de batata-doce, ingera (pão etíope, semelhante a uma panqueca) e guisado de lentilhas e carne e ainda um caril moçambicano feito com amendoim, outro dos produtos de excelência da região de Aljezur?. O vinho era também local e quem quisesse mais do que o copo incluído na refeição podia comprar uma garrafa. Ao todo, o espectáculo Dancing fará quatro apresentações (termina no domingo), sendo as duas primeiras (aquela a que assistimos na quinta-feira e a desta sexta-feira) com a Orquestra Vicentina e as duas últimas (sábado e domingo) com os Fogo Fogo, que trazem os sons de Cabo Verde e prometem fazer justiça à descrição de “a banda mais quente do pedaço”. O programa 365 Algarve, que vai na sua terceira edição, decorre ao longo de oito meses, de Outubro até Maio, preenchendo com programação cultural a época baixa na região. Inclui, entre muitas outras iniciativas, passeios performativos no património, o ciclo Jazz nas Adegas (24 apresentações, com concerto e provas de vinho), visitas históricas encenadas, ou o Vídeo Lucem, uma iniciativa do Cineclube de Faro, que vai também na terceira edição e que desta vez apresenta filmes parcialmente perdidos ou inacabados, em locais especiais como o antigo armazém da Conserveira do Sul, em Olhão, e com músicos a acompanhá-los ao vivo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher rainha carne
Quem é Lucia Berlin? Uma autora que não mente
Narrou a tragédia humana com sentido de dignidade, como se cada texto seguisse o real sem ligar à literatura. Lucia Berlin escreveu assim e morreu em 2004 sem sair da sombra. Foi uma nómada na América. O conjunto dos seus contos foi publicado no Verão de 2015 e está quase a chegar a Portugal. (...)

Quem é Lucia Berlin? Uma autora que não mente
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Narrou a tragédia humana com sentido de dignidade, como se cada texto seguisse o real sem ligar à literatura. Lucia Berlin escreveu assim e morreu em 2004 sem sair da sombra. Foi uma nómada na América. O conjunto dos seus contos foi publicado no Verão de 2015 e está quase a chegar a Portugal.
TEXTO: Não há sentidos nem emoções em sossego quando se lê Lucia Berlin. A escritora Lydia Davis disse que a obra dessa mulher de olhos azuis, quase sempre de cigarro na mão, tem a capacidade de fazer o leitor “usar o cérebro” e pô-lo a sentir os “batimentos cardíacos”. Mesmo assim Lucia Berlin nunca saiu da sombra enquanto viveu. Nasceu a 12 de Novembro de 1936 e precisamente no mesmo dia, 68 anos depois, vítima de cancro no pulmão, junto dos seus filhos, em Marina del Rey, perto de Los Angeles, e depois de algum tempo a viver num parque de caravanas no Colorado. Foi professora de escrita criativa, mas antes também foi empregada de limpeza, recepcionista, assistente hospitalar. Escreveu contos sobre o que há de mais devastador, usando um humor desarmante, rindo com enorme delicadeza – e por vezes crueza – da tragédia que atravessou a sua vida. As suas histórias são povoadas por pessoas à margem, excluídos, gente na linha da sobrevivência social, económica, clínica, moral de afecto; dependentes de álcool e droga, excêntricos, frágeis. Histórias talvez demasiado pesadas para serem suportáveis não fosse o tom em que são contadas e que contrasta com a densidade do seu conteúdo. Não é tudo. Falta o mais inquietante. Lida a obra, quer-se saber da biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua própria vida. Por vezes tão devastada quanto as que pôs no papel. “Exagero muito e misturo a realidade com a ficção, mas, na verdade, nunca minto”, escreve a narradora de uma das suas histórias, Silêncio, sumário de uma existência que é autobiográfica, faltando apenas saber – e é parte do jogo da ficção – exactamente até que ponto. “Eu tentava esconder-me quando o Avô estava bêbado, porque ele apanhava-me e baloiçava-me. Estava a fazê-lo uma vez, na cadeira de baloiço grande, a agarrar-me com força, com a cadeira a levantar do chão a poucos centímetros do fogão em brasa, com a coisa dele a enfiar-se e a enfiar-se no meu rabo. Ele estava a cantar ‘Ol Tin Pan with a Hole in the Bottom. Alto. A arfar e a grunhir. Ali, a poucos metros, a Mamie estava sentada a ler a Bíblia quando eu gritei ‘Mamie! Ajuda-me!’ O Tio John apareceu, bêbado e empoeirado. Arrancou-me do Avô, levantou o velho pela camisa. Disse que o matava com as próprias mãos da próxima vez. Depois fechou a Bíblia da Mamie com força. ” Pouco antes desta descrição, o leitor fora avisado sobre a premissa da narradora, que se pressente ser também a da escritora: “Não me importo de contar coisas horríveis se conseguir torná-las engraçadas. ”Tudo é acção, tumulto, respiração a todos os ritmos na escrita desta mulher nómada que morreu demasiado longe do lugar onde merecia estar quando se fala de literatura. Publicou seis livros de contos entre a década de 70 e o final dos anos 90 e com isso conseguiu chamar a atenção de Lydia Davis e de Saul Bellow. Davis conheceu-a no inicio dos anos 80, trocou correspondência com ela, tentou convencer editores da costa Leste dos EUA a publicar essa mulher que viveu quase sempre do outro lado, mais perto do Pacífico. Em vão. Só em 2015, onze anos passados da da sua morte, Lucia Berlin conquistou a crítica depois da editora Farrar, Strauss and Giroux reunir os seus contos no volume A Manual For Cleaning Women, considerado um dos livros do ano por jornais de referência nos EUA e em Inglaterra. O livro terá edição portuguesa no dia 4 de Maio com o título Manual para Mulheres de Limpeza (Alfaguara) e é mais um sinal de que Berlin está finalmente a deixar de ser, como lhe chamou ainda no século XX o escritor Paul Metcalf, “um dos segredos mais bem guardados da literatura americana”. Lida a obra, quer-se saber da biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua própria vida. Por vezes tão devastada quanto as que pôs no papelForçar a lendaComo apresentar Lucia Berlin? O tom tem sido o de quem conta um facto surpreendente. O desconhecimento aliado ao modo como o livro está a ser recebido têm ajudado a alimentar o mito, e a lenda parece tão mais apetecida quando mais perto da ficção estiver a realidade de Berlin. Ou seja, fazer o contrário do que ela fez na literatura: aproximar do real, não o distorcendo. Tem-se escrito, por exemplo, que morreu na garagem da casa de um dos seus filhos por não ter outro sítio onde morar. No início desta semana, na página de Facebook dedicada a Lucia Berlin, o seu filho David escreveu que a mãe não morreu numa garagem mas no seu apartamento de onde se via o Oceano. “Morreu na cama com um livro, mas não foi, como diz a lenda, o seu livro preferido”, acrescentou. A biografia oficial conta que nasceu em Juneau, a capital do Alasca, com o nome Lucia Brown, filha de um funcionário da indústria mineira. Num dos seu contos, ela alude a uma conversa onde um pai meio senil, em fim de vida, tenta que a filha se lembre desse território inicial. A filha não tem recordação alguma, mas diz-lhe que sim. O lugar onde Lucia nasceu foi só mais uma escala – a única sem memória – na grande itinerância que seria a sua vida. Passou os primeiros anos em cidades ou acampamentos mineiros de Idaho, Kentucky e Montana. Tinha cinco anos quando o pai foi chamado a combater na II Guerra e, com a mãe a a irmã mais nova, mudou-se para El Paso, Texas, onde foi viver para casa do avô, dentista alcoólico, que inspirou o conto que inaugura o livro. Lucia era mais próxima do pai; com a mãe, também dependente de álcool, a relação era turbulenta. A família mudou-se para Santiago do Chile quando a guerra acabou. Aí, Lucia Berlin conheceu outro mundo, aprendeu a falar e a escrever espanhol fluentemente, andava entre eventos sociais, estava entre as elites, um contraste com a vida na América. Nessa altura foi-lhe diagnosticada uma escoliose e seria muitas vezes obrigada a usar um suporte ortopédico de ferro para manter a coluna direita. Inscreveu-se na Universidade do México, em Albuquerque, foi aluna do escritor Ramon Sander, casou e teve dois filhos. O primeiro tinha ela 19 anos, o segundo nasceu já ela estava sozinha. O marido deixara-a durante a gravidez. Pouco depois, terminava o curso, conheceu o poeta Edward Dorn, o escritor Robert Creely e os músicos de jazz Race Newton e Buddy Berlin. Casou com Race Newton, começou a escrever, mudou-se para Nova Iorque, fica próxima dos nomes da Beat. O casamento acabou em 1960. Durou dois anos. Lucia viajou com Buddy Berlin para o México e os dois casam-se. Buddy tinha dinheiro mas Lucy não sabia que ele dependia de drogas. Tiveram dois filhos até se divorciarem em 1968. Aos 32 anos, tinha quatro filhos e três divórcios. Nunca mais casou. Foi viver para a Califórnia, um dos territórios mais presentes nos seus contos, entre Oakland e Berkeley. Deu aulas no liceu e teve muitas das ocupações que fazem parte da identidade das suas personagens, enquanto escrevia e começava a beber. Passou por vários processos de desintoxicação, até ir outra vez para o México em 1991. Viveu um ano a cuidar da irmã, em fase terminal de cancro. A mãe morrera pouco antes. Supostamente, por suicídio. Lucia volta a encontrar Edward Dorn que em 1994 a leva para a Universidade do Colorado ensinar escrita criativa. Em 2000 reforma-se. A escoliose perfurara-lhe um pulmão e tem dificuldade em respirar sem auxílio de oxigénio. Pouco depois, é-lhe diagnosticado um cancro. Em 2001 muoua-se para Los Angeles onde estão os filhos. Morreu em 2004. São os factos secos que ajudam a situar ou a entender os temas da escrita. Mas neles não está o desespero nem a dignidade com que conta a existência dos desesperados ou desamparoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Uma vastidão de gente anónimaSão os factos secos que ajudam a situar ou a entender os temas da escrita. Mas neles não está o desespero nem a dignidade com que conta a existência dos desesperados ou desamparo. A vida de Lucia é a sua grande fonte criativa, não tanto pelo modo como se narra a si mesma, mas pela voz narrativa que inclui a voz de todos os que se cruzaram com ela sem nunca os revelar por completo. Por isso, quando se indaga acerca das referências é preciso pensar numa vastidão de gente anónima a que se juntam alguns nomes reconhecidos. “A sua vida foi rica e cheia de acontecimentos, e o material que retirou dela para os seus contos foi colorido, dramático e muito variado”, escreve Lydia Davis no texto de apresentação do livro. E acrescenta: “Ela viveu em tantos lugares – passou por tanta coisa – que daria para encher várias vidas. Quase todos nós já vivemos parte daquilo por que ela passou: sarilhos em criança, ou abuso sexual na infância, ou um caso amoroso arrebatado, ou problemas de dependência, uma doença difícil ou incapacitante, um inesperado reatar de laços fraternais, um emprego entediante, colegas complicados, um chefe caprichoso, ou um amigo horrível, para não falar do êxtase perante o mundo natural – gado da raça Hereford com castilleja até aos joelhos, um campo de tremoceiros azuis, uma violeta-das-damas cor-de-rosa no beco atrás do hospital. Porque conhecemos uma parte disso, ou algo parecido com isso, é como se estivéssemos lá quando somos conduzidos por ela. ”As grandes pistas sobre quem foi, as escolhas que fez, o que perseguiu na escrita, o modo como lidou com a culpa ou o trauma, estão mais uma vez nos contos. “Imaginemos o conto de Tchékhov Saudade na primeira pessoa. Um velho a dizer-nos que o seu filho acabou de morrer. Sentir-nos-íamos sem jeito, desconfortáveis, até entediados, reagindo precisamente como os passageiros do coche do homem na história. Mas a voz imparcial de Tchékhov confere dignidade ao homem. Absorvemos a compaixão do autor por ele e sentimo-nos profundamente comovidos, se não pela morte do filho, pelo modo como o velho fala com o cavalo. ” O início do conto Ponto de Vista, um dos 77 que compõem o livro, é um manifesto sobre o estilo. Berlin nunca julga. As personagens e as relações que descreve são complexas, o modo como as expõe aparenta uma simplicidade desarmante. Não têm faltado comparações com Raymod Carver, Williams Carlos Williams, autoras menos mediáticas como Grace Paley ou Lorrie Moore. Ela falava sempre de Tchéhov. Num texto publicado na Paris Review com o título Fumando com Lucia Berlin, a escritora Elizabeth Geoghegan contava um encontro com Berlin, já com a escritora doente, sempre com uma botija de oxigénio a ajudar na respiração. As duas falaram à mesa da cozinha, um dos lugares preferidos de Lucia Berlin. Lê-la é ficarmos perdidos na sua voz. As suas histórias fazem-nos sentir como se estivéssemos coscuvilhar à mesa da sua cozinha. ” E naquela cozinha cabe a essência de um país por uma perspectiva invulgar, dos desesperados. Voltemos a Lydia Davis: “O leque das suas referências é tão vasto, e até tão exótico, que as telefonistas se encostam aos seus painéis como ordenhadoras se encostam às suas vacas; ou uma amiga vem à porta, com ‘o cabelo preto penteado para cima, em rolos metálicos, como um adorno de kabuki”. Há comédia na tragédia de Lucia Berlin e Lydia Davis sublinha isso com uma espécie de ressalva que não escreve mas deixa implícita. Não há em Berlin traço de ironia amarga. É outra coisa. Davis diz isso assim: “Como na vida, pode haver comédia no meio da tragédia. A irmã mais nova, a morrer de cancro, chora: 'Nunca mais voltarei a ver burros!', e ambas as irmãs acabam a rir sem parar, mas a exclamação pungente permanece connosco. A morte tornou-se tão imediata – acabam-se os burros, acaba-se tanta coisa. ”
REFERÊNCIAS:
Já viu um fanático com sentido de humor?
Mesmo que politicamente zangado, amargo ou só, Amos Oz continua a lutar pela sua ideia de Israel e de civilização. Caros Fanáticos é uma carta endereçada a todos, porque esse é um gene universal e deve ser combatido com antídotos como a imaginação, a curiosidade ou humor. (...)

Já viu um fanático com sentido de humor?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.3
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mesmo que politicamente zangado, amargo ou só, Amos Oz continua a lutar pela sua ideia de Israel e de civilização. Caros Fanáticos é uma carta endereçada a todos, porque esse é um gene universal e deve ser combatido com antídotos como a imaginação, a curiosidade ou humor.
TEXTO: O fanatismo, escreve Amos Oz, “é a essência perene da natureza humana, o ‘gene mau’. ” Atribuí-lo a uma civilização, a um povo, a uma religião é contribuir para propagar o gene e criar políticas de ódio identitário. Num momento em que se assiste ao exacerbar do fanatismo, o escritor israelita, várias vezes mencionado como um candidato ao Nobel, reflecte sobre fé, fanatismo e os desafios de viver em conjunto no século XXI num volume que reúne três ensaios breves e incisivos. Publicado em 2017 em Israel, Caros Fanáticos traz três reflexões. De 2002, 2014 e de 2015. Oz reviu e actualizou cada uma e o resultado é um acutilante olhar para o presente do mundo, com um foco nas questões judaicas e do Estado de Israel de que tem sido um crítico atento. Uma conversa com um homem de voz calma que começou por falar de Maio deste ano, um mês que não consta deste livro e que alterou equilíbrios políticos. Foi quando os EUA mudaram a sua embaixada para Jerusalém. É de Amos Oz a primeira frase desta conversa: “O problema não é se Jerusalém é ou não a capital da Israel. O problema é como é que a outra metade de Jerusalém pode ser a capital da Palestina no futuro. ”Escreve que o fanatismo é velho como a humanidade. Que fanatismo é o deste tempo?Em Israel, como em muitos, muitos outros países, o fundamentalismo e o fanatismo estão em ascensão. As pessoas estão a tornar-se mais nacionalistas, mais chauvinistas, mais egoístas e de visão estreita, e a destilar mais ódio em relação aos estranhos, os estrangeiros. Isto está a acontecer na Europa Ocidental, na Europa do leste, Estados Unidos, na Rússia, em Israel e em muitos outros países do Médio Oriente. Preocupa-me, porque acho que se nos afastarmos dos princípios fundamentais do humanismo estabelecidos depois da II Guerra Mundial, estaremos muito depressa a viver um inferno. Os problemas estão a tornar-se mais complicados e muitas pessoas procuram respostas muito simples; procuram respostas de uma frase, capazes de pôr tudo na ordem; frases que nos digam quem são os maus, quem são os inimigos, quem são os perigosos. Acham que se souberem isso o paraíso pode vir. É também por isso que fala de uma infantilização da sociedade?Sim, a infantilização tem que ver com o facto de muitos milhões de pessoas acreditarem que a vida deve ser um entretenimento e que a política é um jogo divertido e a essência da vida passa por fazer compras. Arrisca um antídoto: a necessidade de ser curioso e de ter imaginação. Porquê as duas características juntas?É preciso qualquer coisa no mundo que nos faça imaginar o outro e é só jogar esse pequeno jogo em que nos pomos esta pergunta: vamos supor que eu sou ele, ou ela ou eles. O que sentem? O que querem? De que têm medo? É um trabalho que parte da imaginação e da curiosidade. A curiosidade é o alimento da imaginação e a imaginação o alimento da curiosidade. As duas surgem quase sempre juntas. Acredito que se um ser humano for curioso, imaginativo e tiver algum sentido de humor, talvez seja imune ao fanatismo; talvez consiga desenvolver os antídotos contra o fanatismo. A literatura vive desses ingredientes. . . É absolutamente verdade. Tenho feito isso toda a minha vida. Levanto-me todas as manhãs muito cedo, faço uma caminhada de meia hora, chego a casa antes de o dia nascer, tomo uma chávena de café, sento-me à secretária e começo a perguntar-me: “E se eu fosse ele?” “E se eu fosse ela?” E essas perguntas tornaram-me imune ao tal fanatismo, porque o fanático não é curioso. Ele tem todas as respostas. Acredita que a literatura pode ajudar a combater extremismos?Pode ajudar a repelir o fanatismo. Se pudermos injectar, como se fosse uma vacina contra o fanatismo, umas gotas que estimulassem a curiosidade, a imaginação e o sentido de humor, talvez o inventor dessa vacina merecesse o Nobel de Medicina. Não é possível um fanático ter sentido de humor. . . Já viu um fanático com sentido de humor? Não conheço nenhum fanático com sentido de humor, nem nenhuma pessoa com sentido de humor capaz de se tornar fanática, a não ser que perca o sentido de humor. O humor é sinónimo de relativismo; o humor é a capacidade de ver o mesmo acontecimento a partir de mais do que uma perspectiva, e é ao mesmo tempo a capacidade de nos rirmos de nós próprios, de nos vermos como outros nos podem ver. O fanático é alguém fechado sobre si mesmo, moralista, dono da verdade, cheio de pontos de exclamação, fechado sem janelas nem portas. Distingue entre sentido de humor e sarcasmo, tantas vezes confundidos. Qual a diferença essencial?O sarcasmo não pretende fazer-nos rir, pretende fazer com que desprezemos alguém. Muitas vezes tem a lógica paradoxal do sentido de humor, mas o objectivo é diferente. O sentido de humor abre mais janelas para a mesma paisagem. O sarcasmo quer semear ódio ou ressentimento em relação a alguém. É verdade que muitas vezes na literatura o escritor não pretende fazer todas as personagens meigas, ou doces. Muitas são sarcásticas, outras são tacanhas, outras são fanáticas. Num trabalho literário, o principal não é dar uma gradação moral às diferentes personagens. O principal é imaginarmo-nos na pele de cada uma delas. Autoria: Amos Oz (Trad. Lúcia Liba Mucznik) Dom Quixote Ler excertoRefere o seu livro Uma Pantera na Cave (Asa, 1998) como a sua experiência de infância na descoberta do outro, da diferença. Até que ponto a escrita o ajudou a entender a sua identidade?Muito e posso acrescentar Uma História de Amor e de Trevas (Asa, 2007) que significou convocar os meus mortos – os meus pais, os meus avós e toda a família – e convidá-los para casa, apresentá-los à minha mulher, aos meus filhos e netos que não conheceram e depois sentarmo-nos, bebermos café juntos e falar de coisas que nunca discutimos quando eles estavam vivos; coisas que eram censuradas ou reprimidas, quando eu era criança. Depois da conversa mandei os mortos embora, não os quero a viver na minha casa, mas de tempos a tempos são bem-vindos para uma conversa e uma chávena de café. Que coisas eram?Questões simples. Porque vieram para este país, o que esperavam encontrar aqui, o que encontraram, o que os desiludiu; o que queriam de mim quando puseram esperanças sobre mim; de que tinham medo; o que deixaram para trás no seu antigo país. Falemos de dor. Considera-a o sentimento humano mais universal. Enquanto escritor tem explorado o tema. O que se pode transmitir ao falar de dor?Sim, a dor é a experiência mais universal de todas. A dor unifica todos os seres humanos. Ricos, pobres, negros, brancos, homens, mulheres. Seculares e religiosos. Todos somos sensíveis à dor. E os animais também, e talvez as plantas, não sabemos. É a experiência mais universal da vida na Terra. Acho que as fundações da moralidade universal – e não de uma moralidade relativa – podem apoiar-se na ideia de que a dor é universal. Toda a gente sabe o que é a dor e por isso toda a gente sabe que quando está a infligir dor está a fazer qualquer coisa de mau. Quando uma pessoa grita de dor, a outra sabe o que isso quer dizer, ainda que as duas não falem a mesma língua. Lembra um episódio de A Vida de Bryan, dos Monty Python, parábola acerca do seguidismo ou da individualidade. “Brian exorta o público: ‘Todos vocês são indivíduos!’ A multidão responde num grito único, atroador: ‘Sim! Todos somos indivíduos!’ ‘Todos vocês são diferentes!’ ‘Sim! Somos todos diferentes!’ Só um tipo pequeno no meio daquela multidão geme numa voz fina: ‘Eu não!’” Essa cena pareceu-me a adequada para descrever a falsidade da sociedade actual – pelo menos a maioria dos países ocidentais; uma sociedade que pretende ser completamente individualista e pluralista, mas que no fundo é uma das sociedades mais conformistas na história da humanidade. Muitas vezes tentar não ser especial é ser especial. Quando alguém diz que não é diferente dos outros, esse alguém é o individualista. Muitas vezes o não conformismo é uma forma muito comum de conformismo. E alerta para uma palavra: auto-sacrifício. É um sinal de fanatismo, porque demonstra desinteresse pela vida e não é um sacrifício privado. É cem por cento público. É muito fácil ao fanático sacrificar a sua vida, morrer pela causa. Seja a religião, a revolução, o Messias, a redenção. . . Ele está disposto a morrer e, por estar tão disponível para morrer, também mata facilmente, a vida não significa grande coisa para ele. E mata muitas vezes pelo que chama o “nosso próprio bem”. No segundo ensaio parte de um livro que escreveu em 2014 com a sua filha, Fania Oz-Salzberger, Judeus e Palavras, para reflectir sobre o que significa ser judeu. A ideia do livro é olhar o judaísmo não apenas como religião, nacionalidade, mas sobretudo, e antes de mais, como civilização. Uma civilização que põe no centro textos, livros, debate, discussão, interpretações, diversidade, discordância. Esta é uma tradição que está com o povo judeu há mais de três mil anos. E continua. Os judeus continuam a ser gente muito argumentativa e que não obedece facilmente sem considerar a razão que está por detrás. Como se define enquanto judeu?Ser judeu é, antes de tudo, a língua. A língua hebraica e tudo o que se lhe refere, o que significa centenas de milhares de livros, antigos e novos. Significa um sentido de humor específico, um sentido crítico e uma tradição de dúvida e argumentação, e mesmo de desafio às opiniões prevalentes. Não vou à sinagoga, não sou ortodoxo; o lado religioso do judaísmo interessa-me muito, mas não o pratico. Estudo, mas não pratico a religião. Para mim ser judeu é lidar com a esfera da língua hebraica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O seu modo de ser judeu está em perigo?Claro, porque nada na história é garantido e cada ideia, cada atitude, cada abordagem é frequentemente desafiada e substituída por uma ideia diferente. Sei que as minhas ideias não são feitas de aço ou de granito. São as minhas ideias e as minhas perspectivas acerca do judaísmo e há muitos, muitos judeus que discordam de mim. A minha ideia de judaísmo não está garantida, mas luto por ela. Estes ensaios mostram um homem pessimista acerca do futuro. Não sou de todo pessimista. Sou um optimista sem calendário para o meu optimismo. Não posso dizer-lhe o que vai ser posto em prática nos próximos seis meses ou um ano, mas posso dizer-lhe que a grande maioria das pessoas no Médio Oriente perceberam que Israel está aqui para ficar. E muitos judeus israelitas percebem agora que os palestinos estão aqui e também não vão a lado nenhum. As conclusões podem levar tempo, a aplicação de medidas pode demorar. Não sei. Mas acho que a maioria de ambos os lados sabe dessa realidade agora, e isso é um bom indicador. Escreve: “Eu amo Israel mesmo quando não o suporto. ” Que amor é esse?Não gosto sempre de Israel, porque tem um lado agressivo, extremista e presunçoso. Isso desagrada-me imensamente, mas continuo a achar que se o meu destino for cair no meio da rua, será melhor que seja numa rua de uma vila ou cidade de Israel do que em Paris, Nova Iorque, Londres ou Roma. As pessoas irão ajudar-me a levantar-me. Quando eu estiver de pé, tentarão levar-me ao chão outra vez, mas há alguma coisa no pulsar deste país e desta civilização que está muito perto do meu coração, mesmo quando politicamente estou zangado, amargo e só.
REFERÊNCIAS:
No Douro anda-se em comboios de Espanha apinhados de turistas
A Linha do Douro tem cada vez mais passageiros. As ligações fluviais entre o Porto e Barca de Alva, Pocinho, Pinhão ou Peso da Régua levam a que a automotora alugada a Espanha se encha com frequência, numa viagem em que o ar condicionado nem sempre está garantido. (...)

No Douro anda-se em comboios de Espanha apinhados de turistas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Linha do Douro tem cada vez mais passageiros. As ligações fluviais entre o Porto e Barca de Alva, Pocinho, Pinhão ou Peso da Régua levam a que a automotora alugada a Espanha se encha com frequência, numa viagem em que o ar condicionado nem sempre está garantido.
TEXTO: Esta é a segunda de uma série de reportagens do PÚBLICO sobre o estado das principais linhas ferroviárias do país. Ao longo dos próximos dias, acompanhe o dossier A Ver Passar Comboios. A estação do Pocinho, concelho de Vila Nova de Foz Côa, recebe os passageiros com o mercúrio a passar dos 35 graus e o ruído da automotora alugada a Espanha a inundar o cais de desembarque. A viagem de regional entre Porto e Pocinho faz-se em cerca de três horas e 20 minutos. Ou em três e 40, dependendo do comboio que se apanha. Ou um pouco mais, conforme a pontualidade. Os primeiros quilómetros da Linha do Douro oferecem como paisagem a periferia urbana do Porto e são mais pacatos. Pelo menos no dia e hora em que o PÚBLICO fez a viagem, ao início da tarde do feriado do meio de Agosto. E, dizem-nos os passageiros mais ou menos habituais, costuma ser assim. Em paragens como Régua e Pinhão o cenário altera-se, tanto no interior como no exterior da automotora a diesel. A partir de determinado ponto, os carris acompanham o rio, com o serpenteado de vinhas escalado em socalcos à vista, o que explica a grande procura turística pelo percurso. À chegada à Régua, a primeira multidão. A maioria dos passageiros que tinha entrado na estação de Campanhã já se tinha dispersado pelas paragens anteriores e os que agora entram são maioritariamente turistas, que se vão amontoando na plataforma e enchem de seguida a composição. Mais à frente, já no cais do Pocinho, avisam-nos que o percurso de volta “é mais complicado”, principalmente depois do Pinhão. Os operadores fluviais do Douro vendem muitas vezes pacotes em que a viagem se faz num sentido de barco e no outro de comboio. Acompanhando a tendência nacional, a procura turística tem subido na região classificada como património mundial pela UNESCO em 2001, o que aumenta a utilização daquela linha ferroviária. Se, por um lado, isso faz com que haja mais passageiros a ajudar à viabilidade financeira da linha, também levanta problemas, como a sobrelotação de alguns comboios. Lurdes Moura acompanha grupos de turistas rio acima e rio abaixo. Neste dia, o grupo de cerca de 20 pessoas navegou o troço entre Peso da Régua e Barca de Alva, já na fronteira com Espanha. Como a ferrovia entre Barca de Alva e o Pocinho foi encerrada há perto de três décadas, essa ligação faz-se de autocarro. A parte restante no regresso costuma ser feita de comboio, conta a guia. Mas há dias em que não há essa hipótese. “Tem acontecido chegarmos ao Pocinho e o comboio — com capacidade para cerca de 200 pessoas — já estar cheio”, relata. O comboio que apanhamos de regresso ao Porto sai às 17h21. O último regional, que sai às 19h07 do Pocinho, é “mais crítico”, informa-nos Lurdes Moura, que anda nestas lides há 14 anos. Ao passar pelo Pinhão, a automotora enche-se, até ao ponto em que se torna espinhosa a tarefa de entrar, mesmo que apenas para viajar de pé. Saído da cabine, o revisor olha para a multidão e chega à conclusão que ali não vai conseguir circular. “Já não passas. Esquece”, diz-lhe a guia, que já o conhece por conta das inúmeras viagens na linha. Depois confidencia-nos: “Estes homens sofrem aqui que nem uns desgraçados. ”“É boa a viagem. Demorada, mas faz-se”, começa por dizer Maria Ludovina Afonso, que viaja com o marido, de nome José Luís e com o mesmo apelido. São de Mêda, no distrito da Guarda, e deslocam-se de dois em dois meses ao Porto para visitar filho e netos. Estão de regresso a casa com o aglomerado de malas e o pequeno cão Max. As principais queixas são sobre a casa de banho: “Têm pouca água. Pôr mais papel não encareceria, penso eu. ” Ela com 71 anos, ele com 74, também lamentam que a ligação aos autocarros no Pocinho não seja a melhor. Dizem que “durante o ano é calmo” e que é no Verão “que há mais turistas”. Todavia, há cerca de um ano, no sentido Pocinho-Porto, “nem à casa de banho se conseguia ir”, recorda Maria Ludovina. Mas não é preciso recuar um ano para encontrar episódios do género. O presidente da Comissão de Utentes da Linha do Douro, António Pereira, repete ao telefone com o PÚBLICO as críticas aos lavabos das carruagens, que diz estarem “constantemente avariadas”. Mas não se fica aí: “Muitas vezes o ar condicionado não funciona, por vezes ou está muito quente ou muito frio. É uma miséria. ” Menciona também as situações de sobrelotação em que, “muitas vezes, as pessoas vão de pé, sem condições nenhumas para viajar”. Estes comboios “alugados a Espanha são péssimo material”, resume. E o problema está identificado, tanto pela CP como pelos utentes: falta de material circulante. É essa a mesma conclusão da guia Lurdes Moura, que diz que a CP “precisava era de comboios novos e com capacidade”. Lembra as antigas máquinas portuguesas que ali circulavam, que permitiam “ao menos abrir a janela quando estava calor”. E prossegue: “Estes são uma vergonha. As casas de banho são uma vergonha e tem dias em que o ar condicionado não funciona”, sem que haja possibilidade de correr as vidraças. Refere-se à falta de material da CP como a base da maioria dos problemas na Linha do Douro. “Trabalho aqui há 24 anos e ouço isso [há cerca de metade]”, confirma o revisor. Lurdes Moura lembra que, se a assiduidade do serviço se manteve, a verdade é que há cada vez mais turistas. E para isso “ninguém está preparado”. A “frequência está óptima, mas devia ter mais composições”, aponta. Se no dia 15 de Agosto todos os compartimentos da composição tinham ar condicionado, “nem sempre é assim”, explica. No mesmo sentido, António Pereira refere que, “mais material a CP tivesse, muito mais procura teria”. O presidente da CP, Carlos Nogueira, avançou já esta semana que a empresa estatal poderá gastar até 3, 5 milhões de euros com o aluguer de mais seis a dez comboios à congénere espanhola Renfe. Este negócio viria acrescer aos sete milhões anuais que a CP já paga por 20 composições. Numa visita às oficinas de Campolide, o responsável referiu ainda que a CP “vai entrar na fila” das encomendas a fabricantes, operação que trará para Portugal comboios novos “daqui a três ou mais anos”. Até lá, “importa reforçar o aluguer”, que terá de ser feito a Espanha, uma vez que tem máquinas a diesel e de bitola ibérica. É perceptível o esforço do motor da automotora ao escalar os planos mais inclinados, que se traduz no aumento do ruído pontuado por um ranger cadenciado. Na linha do Douro, a velocidade oscila entre os 80 e os dez quilómetros por hora, explica-nos Rui Resende, maquinista da CP há 24 anos. Os dez quilómetros horários justificam-se nas zonas da linha onde há “pequenas derrocadas” de pedras. Se reconhece que há problemas no serviço, sublinha também “que não é tão mau como dizem” e que, em matérias de alteração de horários da CP, o Douro manteve a escala. “No Minho, sim, as pessoas ficaram mal servidas, como é o meu caso, que moro lá”, exemplifica. Nota que o volume de passageiros “tem aumentado de há uns anos para cá”. Entre 2014 e 2017, a Linha do Douro passou de 737 mil passageiros para 915 mil. A ferroviária do Estado tem procurado dar alguma resposta ao aumento, com a introdução de comboios especiais, mas já reconheceu as limitações. Em Agosto 2016, três empresas de transporte fluvial decidiram trocar o comboio pelo transporte rodoviário, como protesto perante o “mau serviço” da CP, referindo que os clientes tinham de viajar de pé, em carruagens cheias e com climatização deficiente. Meses depois, já no início de 2017, as mesmas empresas — a Barcadouro, a Rota do Douro e a Tomaz do Douro — assinaram um protocolo com a CP para a criação de um serviço exclusivo para transporte de turistas entre Porto e Régua que circula entre os meses de Maio e Outubro. A assessora da administração da Douro Acima, Elisabete Loureiro, refere que a oferta da CP antes da criação dos comboios especiais “não dava minimamente para as necessidades, mesmo em situações em que a afluência de turistas não era significativa. Depois, “os horários normais ficaram mais aliviados para responder ao público em geral e a uma ou outra empresa que não tenha necessidade de tantos lugares, como é o caso da Douro Acima”. A operadora que representa, explica, trabalha com barcos rabelos, pelo que transporta um menor número de pessoas em cada viagem. Entende que, neste momento, o serviço da CP “está a dar para aquilo de que há necessidade”. Para fazer o trajecto entre Porto São Bento e Régua, mas também mais direccionado para o turismo, a CP tem igualmente o comboio MiraDouro, que circula anualmente entre 13 de Julho e 30 de Setembro, com carruagens fabricadas na década de 1940. O comboio histórico do Douro percorre a distância entre as estações de Régua e Tua, mas só aos fins-de-semana. Os problemas na Linha do Douro não se resumem à grande afluência turística. A novela da electrificação do troço entre Caíde (concelho de Lousada) e Marco de Canaveses, que começou em 2015, teve recentemente mais um episódio, com a empreitada a ser lançada novamente. A Infra-estruturas de Portugal prevê que, por isso, esta parte de 16 quilómetros da linha seja encerrada nos meses de Novembro, Dezembro e Janeiro, quando a procura é menor, com o transbordo a ser feito de autocarro. “É uma forma de minimizar o tempo de espera [em Caíde]”, considera António Pereira, mostrando-se compreensivo em relação às obras. A linha está electrificada do Porto até Caíde, mas não daí para a frente. Isso significa que, para apanhar a ligação com os comboios urbanos em Caíde, quem vem de Marco de regional, segundo as tabelas da CP, pode ter de esperar entre cinco a 20 minutos. “Os utentes preferiram essa solução a outra, que fosse mais penalizante para eles. ” O presidente da associação de utentes diz que, por isso, as pessoas de Marco de Canaveses vão de carro até Caíde, Penafiel e Paredes apanhar os comboios para o Porto. “Quando chegar a electrificação ao Marco, esse problema acaba”, acrescenta. E o facto de chegar ao Marco é mais um passo para que possa ir até Peso da Régua, refere o presidente desta câmara municipal, José Manuel Gonçalves. A expectativa é nesse sentido, mas as declarações ao PÚBLICO revelam um plano mais ambicioso de fazer a ligação a Espanha. “Era fundamental para o Douro e para o país”, classifica. O autarca social-democrata entende que, no horizonte de financiamento comunitário de 2030, a ligação ao país vizinho “é daqueles investimentos que devem ser considerados prioritários para o país”, “a nível turístico, mas também de transporte de mercadorias”. Dos munícipes chegam-lhe as queixas sobre o actual estado do serviço. Mas sublinha que “a sobrelotação é a prova de que a linha é procurada e tem mercado”. Diz ter tido a informação de que também haveria redução da oferta com a alteração dos horários de Agosto da CP, mas esta acabou por se manter, depois de um protesto de autarcas da região. “Era contraditório estarmos a criar condições para as pessoas virem cá e, por outro lado, estarmos a delapidar o meio de transporte com peso significativo no fluxo turístico que nos liga ao Porto”, faz notar. Quando tomou conhecimento de eventual alteração de horários, a Junta de Freguesia do Pinhão, no concelho de Alijó, emitiu um comunicado em que dava conta a redução de 40% da oferta entre o Peso da Régua e o Pocinho. Contactada pela agência Lusa em Julho, a CP respondia que estavam a ser feitas actualizações à base de dados e que o que se verificou tinha sido “um erro de pesquisa”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ao PÚBLICO a presidente da junta de Pinhão, Sandra Moutinho, diz que os comboios “estão a andar normalmente”. Ressalva, no entanto, que estão a ser vendidos demasiados bilhetes para a capacidade das carruagens e que a ligação ao alfa pendular que segue para sul em Porto Campanhã faz-se com uma margem de cinco minutos — o que pode não ser suficiente, conforme os atrasos. Voltando ao comboio que faz a viagem entre Campanhã e Pocinho, encontramos Maria Sousa e Bernardina Ferreira, de 77 e 73 anos respectivamente, que entraram na automotora em Paredes. Não é um ritual com um calendário rígido, mas fazem-no duas ou três vezes por ano: chegando ao fim da linha, lancham na cafetaria da estação e, ao fim dos 44 minutos, as duas mulheres voltam com a mesma máquina, que faz o caminho inverso. Falam sobre outros destinos que costumavam visitar, também para aqueles lados, onde o comboio já não chega. Até ao final dos anos 1980, a linha ia até Barca de Alva, já perto da raia luso-espanhola. “Foi uma pena” terem acabado com a ligação, afirmam. Maria Ludovina Afonso também recorda a extinção do percurso. Já lá vão perto de três décadas. “Cada vez há menos gente cá para cima, é o deserto do interior”, lamenta.
REFERÊNCIAS:
Descobertas mais de 200 valas comuns de vítimas do Daesh no Iraque
Um relatório da ONU diz que as escavações são dificultadas pela falta de segurança e de equipamento, mas é crucial que o material forense seja preservado no local para identificar as vítimas. (...)

Descobertas mais de 200 valas comuns de vítimas do Daesh no Iraque
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-12-29 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181229194123/https://www.publico.pt/1850125
SUMÁRIO: Um relatório da ONU diz que as escavações são dificultadas pela falta de segurança e de equipamento, mas é crucial que o material forense seja preservado no local para identificar as vítimas.
TEXTO: Mais de 200 valas comuns com 6000 a 12 mil corpos foram encontradas em áreas controladas pelo Daesh no Iraque entre 2014 e 2017, avança um relatório da ONU, publicado esta terça-feira. A missão das Nações Unidas de assistência ao Iraque (UNAMI) e o gabinete dos direitos Humanos da ONU apontam para a existência de 202 valas comuns nas províncias de Nínive (95), Kirkuk (37) e Salaheddine (36), – no Norte do Iraque -, bem como em al-Anbar (24), - no Oeste do país -, admitindo que “podem existir muitas mais”. “Embora seja difícil determinar o número total de cadáveres nas valas, o menor local, no Oeste de Mossul, tinha oito corpos. O maior fica em Khasfa, no sul de Mossul, e pode conter milhares”, diz o comunicado à imprensa do relatório. Entre as vítimas estão mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiências, autoridades iraquianas e estrangeiros. O relatório avança que até à data apenas 28 valas comuns foram investigadas - quatro em Diyala, uma em Nínive e 23 em Salaheddine -, e 1258 corpos foram exumados. Entre Junho de 2014 e Dezembro de 2017, o Estado Islâmico levou a cabo o seu “reino de terror” nos territórios iraquianos, onde perseguiram e assassinaram membros de minorias étnicas e religiosas, como a comunidade curda yazidi, “actos que podem constituir crimes de guerra, crimes contra a humanidade e um possível genocídio”, disse a ONU. Depois de nove meses de uma sangrenta ofensiva militar das autoridades iraquianas, com o apoio dos EUA, Mossul, considerada a capital do “califado” - o Estado islâmico, governado por um sucessor e guardião dos ensinamentos do profeta, o califa -, foi libertada, em 2017. Contudo, a presença do Estado Islâmico ainda é visível em Nínive, Salaheddine e al-Anbar, pelo que “talvez não será possível investigar alguns locais”, diz o relatório. “As valas comuns documentadas no nosso relatório são testemunho da terrível perda humana, profundo sofrimento, e crueldade chocante. Determinar as circunstâncias da perda significativa de vida humana será um passo importante no processo de luto para as famílias e no seu percurso para assegurar os seus direitos à verdade e justiça”, disse o relator especial da ONU no Iraque, Ján Kubiš. O documento alerta para o facto de que podem haver engenhos explosivos escondidos nas valas, e que o local do crime está sujeito a mudanças pela passagem do tempo, quer devido às condições atmosféricas, quer por interferência de animais ou pessoas. Nesse sentido, sublinha que o material forense nos locais será “central para assegurar investigações credíveis, acusações e condenações conforme as normas de devido processo internacionais” e pede que a integridade das valas comuns seja respeitada durante as exumações, de modo a garantir “o direito à verdade, justiça e indemnizações às famílias dos mortos e desaparecidos, e para as comunidades afectadas”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Segundo a ONU, o processo de denúncia de um desaparecimento “sobrecarga o processo de luto”, já que envolve mais de cinco entidades estatais e vários formulários, entre outros procedimentos. É “demoroso e frustrante para as famílias”, traumatizadas pela perda. “Os crimes horríveis do Daesh no Iraque já não fazem manchetes de jornal, mas o trauma das famílias das vítimas persiste, já que milhares de mulheres, homens e crianças continuam desaparecidos. As suas famílias têm o direito de saber o que aconteceu aos seus familiares”, afirmou a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. O relatório, que visa “apoiar o Governo do Iraque na escavação e protecção” das valas comuns encontradas, recomenda o apoio de especialistas nas escavações, bem como uma abordagem centrada no direito das vítimas de saberem a verdade, obterem justiça e serem indemnizadas. A ONU apela também para que comunidade internacional forneça “recursos e apoio técnico” à exumação e identificação dos corpos.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU EUA
O I-Danha Food Lab voltou para cultivar o “Silicon Valley do campo”
O I-Danha Food Lab decorreu de 9 a 11 de Novembro, em Monsanto. Mais de 200 investigadores, empreendedores e investidores reuniram-se na aldeia histórica para discutir a digitalização da agricultura e a produção biológica. O P3 esteve lá. (...)

O I-Danha Food Lab voltou para cultivar o “Silicon Valley do campo”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: O I-Danha Food Lab decorreu de 9 a 11 de Novembro, em Monsanto. Mais de 200 investigadores, empreendedores e investidores reuniram-se na aldeia histórica para discutir a digitalização da agricultura e a produção biológica. O P3 esteve lá.
TEXTO: Há cinco anos, o último lugar onde Lourens Boot imaginaria estar era Monsanto, mais precisamente no I-Danha Food Lab. A empresa a que preside, a Sponsh, acabou de vencer o concurso de startups do evento que distingue as melhores tecnologias associadas à agricultura sustentável. A vitória surpreendeu o alemão de 43 anos que não consegue conter um enorme sorriso no rosto. “É fantástico, não estávamos à espera de ganhar”, revela ao P3, quando finalmente conseguiu ter uns minutos livres. É que desde que foi anunciado o veredicto do júri toda a gente o quer congratular. Engenheiro de formação, trabalhou na indústria petrolífera de 2004 a 2014. Na Schlumberger e na Shell coordenou operações de extracção de petróleo na China, Estados Unidos e em África. Era bem pago e tinha uma vida estável. Há quatro anos, com a mulher e o filho de um ano, fez uma longa viagem de autocaravana pela costa portuguesa e espanhola. Foi aí que percebeu que precisava de mudar de vida. Demitiu-se do emprego — o que deixou o pai deveras aborrecido — e ficou sem saber o que iria fazer a seguir. Acabou por coordenar um dos maiores projectos de limpeza do oceano Pacífico e depois foi viver para a Ericeira, por onde tinha passado na viagem. Aí, reparando na elevada humidade do local, decidiu investigar estratégias de aproveitamento de água e encontrou um trabalho de Catarina Esteves, em que a professora portuguesa da Universidade de Eindhoven projectava um novo material para absorver água do ar. Entrou em contacto com a investigadora e juntos decidiram passar da teoria para a prática. Foi assim que criaram, no início de 2018, a Sponsh, uma camada têxtil que, quando colocada ao redor das árvores, funciona como uma espécie de esponja. “É um esquema de polímeros feito com material reciclado”, explica o alemão, para quem o produto pode ser fundamental para evitar o abate de árvores e assegurar que a água chega a locais atingidos pela seca. À equipa, juntaram-se entretanto Ela Zohrevandi e Doris Kraljic, uma iraniana de 28 anos e uma croata de 23, que não se conheciam até então, mas que aterraram em Portugal por razões semelhantes. A primeira veio realizar um estágio de curta duração e a segunda chegou para fazer Erasmus. Ambas decidiram ficar a viver em Portugal e acompanharam Lourens no I-Danha Food Lab. "O prémio não era possível sem elas", confessa o chefe, provocando gargalhadas envergonhadas do outro lado. Com o primeiro lugar no concurso, que contou com a participação de outras nove startups, chegam dez mil euros. “Vamos usar o dinheiro para produzir o primeiro protótipo e iniciar os testes com agricultores. ”Mais atrás está João Noéme, de 40 anos. A sua empresa, a TerraPro, ficou em segundo lugar e recebeu cinco mil euros. “Fazemos a ponte entre a tecnologia e o produtor, simplificando o processo”, explica-nos o CEO da startup que se dedica a instalar sensores nas áreas agrícolas para recolher um vasto conjunto de informações. Estes dados são depois transformados em relatórios práticos sobre a quantidade exacta de água que a terra necessita. Estas foram apenas duas das startups que fizeram parte do programa que de 9 a 11 de Novembro tornou Idanha-a-Nova na capital da agricultura sustentável. E graças a isso a aldeia histórica de Monsanto, anunciada como a “mais portuguesa de Portugal”, viu no último fim-de-semana as suas ruelas de pedra milenar repletas de empreendedores, investidores e investigadores da área. Quase todos os 237 participantes do evento vieram de Lisboa, de comboio, na viagem que assinalava o início da maratona sustentável. Nas duas carruagens reservadas pela organização, o networking — que é como quem diz as conversas de negócio — era audível. O presidente da Câmara de Idanha-a-Nova, Armindo Jacinto, percorreu os lugares a proclamar o orgulho por o concelho ter recebido, na véspera, uma menção honrosa nos City Nation Place Awards, em que competia ao lado de cidades como Barcelona e Eindhoven. “Queremos fazer de Idanha um Silicon Valley do campo”, garantiu. O município é duas vezes maior do que Madrid em extensão, mas tem tanta população quanto o número de visitantes diário do Museu Rainha Sofia — cerca de oito mil pessoas. Para contrariar a tendência de despovoamento que assola o interior do país, Idanha quer afirmar-se como a capital da agricultura biológica. Para isso, por exemplo, todas as cantinas das escolas e instituições particulares de segurança social vão passar a ter produtos biológicos e locais. Também neste sentido, nasceu, há três anos, o I-Danha Food Lab, como forma de captar investimento. “Queremos chamar gente jovem e contrariar a ideia absurda que estes territórios da ruralidade não são inovadores”, revela o autarca. A tarefa — hercúlea, diga-se — foi incumbida à Building Global Innovations (BGI), uma aceleradora de empresas resultante de uma parceria entre o Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Três anos depois e com mais de 240 empreendedores envolvidos, Gonçalo Amorim, o director executivo da BGI, diz que “apesar dos receios iniciais, tudo valeu a pena”. Sentimento partilhado por João Sobrinho Teixeira, secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que confessou ao P3 estar “absolutamente fascinado com o evento”. “É importante para Idanha, mas é importante para o país, porque pode ser replicado em outros territórios”, revelou, especificando que “a economia verde precisa de conhecimento a nível de tecnologia” e que os “jovens vão ser fundamentais para a fixação de populações” em territórios com poucos habitantes. Em três dias de evento, contabilizaram-se mais de 20 iniciativas. Os trabalhos desdobraram-se entre as três salas do posto de turismo e o espaço multiusos, que, até ao final de Outubro, era um parque de estacionamento. Foi por aqui que Begoña Perez-Villarreal, a directora do EIT Food (organismo do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia da Comissão Europeia) para os países do Sul da Europa, falou do importante papel que a tecnologia pode ter na agricultura para combater a escassez de água na Europa. Já a sete minutos a pé dali, no posto de turismo, Henrique Gomes e Vítor Crespo promoviam um workshop sobre “o que os investidores portugueses procuram em empresas de agricultura”. E deixaram um conselho para os empreendedores: durante a primeira fase do negócio, apostar apenas numa área. "Foco, foco, foco, não se deslumbrem nem comecem a dispersar", avisou Vítor, enquanto a audiência tomava notas freneticamente. Também houve espaço para as startups falarem dos seus problemas — o i-Dare Challenge era, na verdade, um dos momentos mais esperados da agenda. Se a Nature Fields, que comercializa carne biológica, não consegue encontrar uma embalagem em vácuo eco-friendly, a BluePanoply, que produz mirtilos, tem dificuldade em encontrar mão-de-obra temporária na altura da apanha do fruto. Apresentados os problemas, mudou-se a configuração da sala e grupos de dez pessoas discutiram possíveis soluções. As propostas foram diversas. E que tal apostar em embalagens feitas de fibras de banana, algas marinhas ou cannabis? E porque não criar campos de férias de turismo biológico?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O programa incluiu ainda visitas guiadas à fábrica da Sementes Vivas, que comercializa sementes biológicas de frutos, flores, ervas e produtos hortícolas, e outra ao Centro Documental Raiano, que tem mais de 11 mil arquivos, de 600 temáticas diferentes, todos relacionados com a ecologia, saúde natural e agricultura biológica. O mau tempo, infelizmente, foi uma constante durante todo o fim-de-semana. Ups, corrija-se: "Mau tempo no seu tempo é bom tempo", ouvia-se sempre que alguém se queixava da chuva que, ainda assim, obrigou a algumas mudanças de planos. Não se visitaram, como previsto, plantações e projectos de anos anteriores. Fica para a quarta edição, em 2019, que, promete Gonçalo Amorim, "vai ser brutal". Winegrid: Um software para digitalizar a produção de vinho. Através de sensores, recolhe informações acerca da densidade, cor, temperatura e nível em tempo real. SenseFinity: Também são sensores, destinados a recolher informações de alimentos. Verificam a temperatura e o estado — desde da produção, ao transporte e à entrega final. Heaboo: Um dispositivo que é instalado nas casas de banho para que a água esteja quente logo na abertura das fontes. Face aos equipamentos com o mesmo objectivo disponíveis no mercado, esta ferramenta reduz substancialmente o consumo de energia. Aquaponics: Ao sistema de aquaponia, introduziram mudanças para evitar o desperdício de água e torná-lo mais sustentável. Disponibilizam o equipamento para qualquer cliente. Nature Fields: Carne de vaca e de borrego inteiramente biológica. Os produtores são todos de Idanha, onde as vacas pastam ao ar livre. Alpha-Roba: Um molho vegan, 100% vegetal, com apenas produtos portugueses feito a partir de alfarroba. Black Block: São caixas de refrigeração destinadas a promover a secagem de alimentos agrícolas. Foram criadas a pensar em países subdesenvolvidos com temperaturas muito elevadas. Funcionam a energia solar e têm um software próprio para controlar a temperatura. Ecoxperience: Transformam óleo usado nos mais variados detergentes: para o chão, para a loiça, para os vidros e até para a roupa. Life in a Bag: Criam plantas, flores e ervas, que são vendidas em sacos e caixas com instruções. Para que qualquer pessoa tenha uma mini-horta em casa. O P3 viajou a convite do I-Danha Food Lab
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Se não são as fadas que fazem círculos de vegetação no deserto do Namibe, quem é?
Formam oásis no deserto. São quilómetros e quilómetros de círculos de vegetação sem nada no interior, e a sua formação tem sido um autêntico mistério. De uma coisa se tem a certeza: não é magia. (...)

Se não são as fadas que fazem círculos de vegetação no deserto do Namibe, quem é?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Formam oásis no deserto. São quilómetros e quilómetros de círculos de vegetação sem nada no interior, e a sua formação tem sido um autêntico mistério. De uma coisa se tem a certeza: não é magia.
TEXTO: Vamos supor que estamos a sobrevoar o deserto do Namibe, que se estende entre a Namíbia e Angola. Por largos quilómetros, é possível ver círculos desenhados com vegetação em volta e um vazio no centro. O autor destas formas no deserto tem sido um mistério ao longo dos anos. É tão indefinido que estes círculos são conhecidos por “círculos de fadas”, como se tivessem sido feitos por este seres imaginários das tradições populares europeias. Agora, os suspeitos são outros. Nesta quinta-feira, surgiu na revista Nature mais um suspeito. Um estudo coordenado por Corina Tarnita, da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, conclui que a formação destes círculos se deve a mecanismos ecológicos com uma auto-organização, como ecossistemas no subsolo e a competição entre as plantas. Os círculos de fadas são autênticos oásis no deserto. São hexagonais e bem largos. O seu diâmetro pode ir dos dois aos 35 metros, e nalguns casos alcançar mesmo os 40 metros. Os maiores encontram-se em Angola, mas também podem existem em desertos na Namíbia, na África do Sul, na Austrália ou até mesmo no Brasil. Mas centremo-nos nos círculos no deserto do Namibe; são esses que têm sido alvo dos principais estudos. Neste deserto com cerca de 30 mil quilómetros quadrados, os círculos de fadas podem espalhar-se por cerca de 1500 quilómetros quadrados. Caso não haja períodos intensos de seca, onde há elevada mortalidade da vegetação no deserto, estes círculos podem viver centenas de anos ou mesmo chegar aos mil anos. Mas falta responder a uma questão primordial: como se formam?É aqui que o mistério se intensifica e ao longo dos tempos as desconfianças têm-se voltado para os mais variados suspeitos. Os himba, um grupo étnico da Namíbia, já respondeu a esta questão com lendas, que tem passado de geração em geração. Para os himba, há duas hipóteses: ou são pegadas dos deuses ou são dragões debaixo da crosta da Terra, que, ao lançarem bolhas flamejantes para a superfície, queimam a vegetação e criam estes círculos. Nem só os himba se têm preocupado com a formação destes círculos. Olhares mais ocidentais têm tentado resolver este autêntico quebra-cabeças. Se se chamam “círculos de fadas”, tudo se deve a tradições populares nos países europeus. De acordo com Francisco Vaz da Silva, investigador no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa, essas tradições são representadas com mulheres vestidas de branco em locais como encruzilhadas, que dançam em círculos ao meio-dia ou à meia-noite. Seria a partir destas danças que este mundo e o outro comunicavam. Durante o século XIX, existia em Inglaterra, nos países célticos e na Escandinávia, a crença de que círculos que apareciam nas florestas eram criados por fadas e elfos que dançavam em círculo em noites enluaradas. Já na Escócia, havia a lenda de que os círculos nas florestas, formados por cogumelos, serviam de mesa para as festas das fadas. E no País de Gales, pensava-se que estes cogumelos eram usados pelas fadas como guarda-chuvas. Se formos para a Alemanha, as fadas passam a ser bruxas e as celebrações em círculo comemoravam a chegada da Primavera. Em França, eram obra das feiticeiras. Em Portugal, estas tradições populares também existem. Nas campanhas da Inquisição, as fadas foram demonizadas e começaram a ser designadas “bruxas”. Às suas danças chamava-se “encruzilhada das bruxas”. “Conheci na minha juventude histórias de homens que supostamente encontraram tais assembleias de fadas ao voltarem a casa a altas horas”, conta-nos Francisco Vaz da Silva. “Tipicamente, o caminheiro, por ter dito ou feito algo inconveniente ao encontrar as fadas, sentiu uma estalada gélida na face, que o jogou sem sentidos para o regueiro onde viria a acordar na manhã seguinte. ” Mas o investigador salienta: “É difícil resistir à suspeita de que o nível de álcool no sangue destes viandantes nocturnos era elevado. . . ”Estas tradições populares são referidas na publicação Tradições Populares de Portugal, de José Leite de Vasconcellos, de 1882: “No mar também andam bruxas vestidas de branco, a bater palmas e a dançar sobre as ondas. ”Voltemos aos círculos de fadas com vegetação. Foi a partir dos anos 70 que a ciência começou a tentar desmitificar o mistério destes círculos. E nos últimos anos têm surgido mais estudos. Em 2013, o ecologista Norbert Juergens, da Universidade de Hamburgo (Alemanha), publicou um estudo na revista Science que revelava que eram as térmitas a formar os círculos de fadas no deserto do Namibe. Norbert Juergens estudou círculos de fadas ao longo de 2000 quilómetros, desde Angola até África do Sul, passando pela Namíbia, e concluiu que as térmitas de areia (Psammotermes allocerus) eram as responsáveis pela criação dos círculos. No deserto, a água da chuva não sofre o processo de evaporação, ficando retida no subsolo. As térmitas acabam por “beber” esta água, principalmente nos períodos de maior seca, o que faz com que as plantas cresçam apenas nas margens do círculo. “Devido à rápida filtração e falta de evapotranspiração, a água é retida à volta dos círculos”, lê-se no artigo científico. Ao longo do seu estudo, o ecologista encontrou térmitas de areia em Angola, na Namíbia e na África do Sul. Estas térmitas foram encontradas tanto em regiões com círculos de fadas e noutras sem círculos. “A Psammotermes allocerus estende-se ao longo do diâmetro do círculo”, refere o artigo. Contudo, não foram estas as térmitas encontradas no estudo de 2013. Foram novas espécies, que ainda não estão descritas cientificamente, refere ao PÚBLICO Norbert Juergens. “Encontrámos estas novas espécies com métodos genéticos. E podem ser distinguidas pela sua morfologia. Mas ainda não as descrevemos, nem sequer têm um nome científico. ”Mas esta hipótese tem sido contestada. O ecologista Stephan Getzin, do Centro Helmholtz para a Investigação Ambiental, na Alemanha, defende que os círculos de fadas se formam por auto-organização do ecossistema. Investiga os círculos de fadas desde os seus tempos de estudante na Universidade da Namíbia, em 1999, e escreveu o seu primeiro artigo científico sobre o tema em 2000. Para Stephan Getzin, os círculos são formados devido à competição pela escassa quantidade de água no solo do deserto. Não há água suficiente para preencher todo o círculo de vegetação e fica um espaço no seu interior. Num estudo de 2016, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, centrado nos círculos de fadas na Austrália e na Namíbia, a equipa de Stephan Getzin concluiu que a gestão de água no subsolo pela biomassa é a responsável pelos círculos. “Estamos convictos de que é isto que acontece [a hipótese da auto-organização] na Namíbia e na Austrália. Com isto quero dizer que as térmitas não são um pré-requisito para a formação de círculos de fadas”, explica Stephan Getzin ao PÚBLICO. “As escavações da nossa equipa no solo, assim como as de colegas e especialistas em insectos, também confirmaram a ausência de térmitas nos círculos de fadas. ” Portanto, Stephan Getzin considera que a hipótese de que são as térmitas que fazem os círculos de fadas não é suficientemente forte. No artigo agora publicado na Nature, dá-se uma nova explicação para este fenómeno no deserto do Namibe. A equipa de Corina Tarnita concilia duas hipóteses. A primeira refere que os círculos de fadas se formam da seguinte maneira: as plantas cooperam com as plantas vizinhas e competem com as que estão mais distantes. Isso origina padrões regulares de círculos, ou seja, formam-se por auto-organização. Por outro lado, a competição entre os ecossistemas subterrâneos de térmitas, formigas e roedores também contribui para a criação destes círculos. “Aqui providenciamos de um sistema teórico para uma auto-organização de colónias sociais de insectos, validados pelo uso de dados de quatro continentes [onde há círculos de fadas], que demonstram uma competição dentro da mesma espécie entre os animais, que pode gerar estes padrões hexagonais em larga escala”, lê-se no artigo científico. A equipa usou o deserto do Namibe como caso de estudo. Para tal, desenvolveu um modelo espacial computacional, com dados de satélite e análises estatísticas, para caracterizar a população de insectos e perceber como se geram padrões hexagonais no solo. Depois, explorou-se a interacção entre as colónias de animais e os efeitos dos processos de auto-organização da vegetação. Observou-se então que as colónias maiores eliminavam as mais pequenas. Porque os recursos alimentares são limitados. Neste modelo, verificou-se ainda que as térmitas aumentavam mortalidade da vegetação e destruíam a vegetação nos círculos de fadas logo quando ela começa a crescer. “Fazemos uma descrição mais alargada do sistema – incluindo como os círculos de fadas nascem e morrem, assim como o seu tempo de vida e as propriedades da vegetação, nunca considerados antes”, explica-nos por sua vez Juan Bonachela, da Universidade de Strathclyde, em Glasglow (Escócia), e outro dos autores deste último estudo. “Os nossos resultados apontam para a importância das térmitas no funcionamento dos sistemas semiáridos, neste caso dos círculos de fadas na Namíbia. ” As térmitas referidas pela equipa são as mesmas do estudo de Norbert Juergens: “A existência destas térmitas no deserto do Namibe foi referida em várias ocasiões, como no trabalho de Juergens. Aprendemos muito com o seu trabalho”, frisa Juan Bonachela. O último estudo não se aplica apenas aos círculos de fadas no deserto do Namibe, mas também a outros sistemas semelhantes. Mas o que dizem agora os autores dos estudos de 2013 e 2016 sobre último trabalho na Nature? Norbert Juergens continua sem dúvidas de que são as térmitas que permitem a formação dos círculos de fadas e sente reconhecido por este novo estudo simular o modelo com colónias de insectos, que ele também já incluiu em modelos que publicou em artigos seus mais recentes. Para Norbert Juergens, modelo da equipa de Corina Tarnita aborda padrões e dinâmicas fundamentais na ecologia. Mas, por outro lado, diz que o modelo precisa de ser fortalecido: “Esta hipótese baseia-se muito em modelos teóricos, não foi baseada em provas obtidas no terreno e pode haver uma contradição entre leis básicas da ecologia e da física”, comenta ao PÚBLICO. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Norbert Juergens considera que é necessário confirmar que ocorre uma mortalidade elevada da vegetação num diâmetro tão extenso como num círculo de fadas de 30 metros. Mesmo assim, afirma que o novo estudo mostra correctamente como surge a vegetação nos círculos de fadas. “Mas isto, por si só, não causa os círculos de fadas. ”Quanto a Stephan Getzin, o último estudo tem duas grandes fragilidades. “O modelo não mostra como os insectos são capazes de se reproduzir regularmente nos círculos de fadas”, afirma. Depois, há um desfasamento entre o modelo teórico sobre os insectos e as observações no local. “As térmitas não estão presentes no desenvolvimento do círculo de fadas”, refere. “Precisamos de centrar o trabalho no desenvolvimento dos círculos de fadas sem a presença de térmitas. Só assim teremos um retrato claro dos processos subjacentes à formação dos círculos sem a sobreposição dos efeitos das térmitas. ”Bem, parece que a discussão científica à volta destes círculos vai continuar e que ainda muito ainda será publicado. De uma coisa se tem a certeza, não foram as fadas as responsáveis (nem sequer são as principais suspeitas) por estes misteriosos círculos em pleno deserto.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens estudo espécie mulheres