Guimarães abre caminho para um horizonte (mais) verde
O ambiente assumiu um papel central na política vimaranense desde 2013. A redução das emissões de CO2 e do consumo de energia na última década são indicadores positivos,mas o município quer melhorar os rios e o uso dos solos, e valorizar a mobilidade a pé e de bicicleta num território onde o automóvel ainda manda. (...)

Guimarães abre caminho para um horizonte (mais) verde
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.15
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O ambiente assumiu um papel central na política vimaranense desde 2013. A redução das emissões de CO2 e do consumo de energia na última década são indicadores positivos,mas o município quer melhorar os rios e o uso dos solos, e valorizar a mobilidade a pé e de bicicleta num território onde o automóvel ainda manda.
TEXTO: O verde é uma das cores que define Guimarães. A cidade e os restantes núcleos populacionais dispersos pelo concelho erguem-se sobre uma paisagem verde, inconfundivelmente minhota. A cor figura também na bandeira do município, a par do branco e da imagem da Senhora da Oliveira. Nos últimos cinco anos, porém, o verde tornou-se protagonista na política municipal. A obtenção do título de Capital Verde Europeia, em 2020, foi um dos nortes da acção de Domingos Bragança desde 2013, ano em que se tornou presidente da Câmara, após 24 anos com o também socialista António Magalhães no poder. Não o conseguiu. Esse título, atribuído pela Comissão Europeia (CE) desde 2010 - Estocolmo foi a primeira capital verde -, acabou por ser entregue a outra cidade portuguesa: Lisboa. Mas Guimarães obteve a quinta melhor avaliação entre as 12 cidades finalistas. O relatório de análise à candidatura, publicado pela CE em Abril último, enalteceu a redução de duas toneladas por habitante nas emissões de dióxido de carbono (CO2), entre 2008 e 2017, e a redução de 36% no consumo de energia, durante o mesmo período. Com o objectivo de se tornar uma cidade sem emissões de CO2 em 2050, Guimarães obteve a segunda melhor classificação no consumo de energia, mas também no envolvimento dos cidadãos, na adaptação às alterações climáticas e na biodiversidade. Para Domingos Bragança, o desempenho nestes indicadores demonstra, mais do que a aplicação de “políticas públicas de desenvolvimento sustentável”, a “interiorização pela maioria dos cidadãos da importância do ambiente e de um entendimento do território como espaço urbano de qualidade, em harmonia com a natureza”. O autarca vimaranense realçou ainda que Estocolmo foi a única cidade a ser eleita CVE à primeira tentativa, pelo que Guimarães vai aparecer novamente na corrida. Esta postura antecipa mais uma década com o ambiente no topo da política vimaranense, como o demonstra a apresentação nova estrutura de missão para o desenvolvimento sustentável - Guimarães 2030 -, decorrida no dia 18 de Dezembro. O uso dos solos e a gestão das águas foram os parâmetros onde o município obteve pior classificação (11. º em ambos). Para Domingos Bragança, a melhoria das linhas de água do concelho - o rio Ave, os afluentes Agrela, Selho e Vizela e as ribeiras, como a de Couros - requer um esforço conjunto do município, das Águas do Norte e da Resinorte, empresa que gere os resíduos de 35 municípios do Norte, entre os quais Guimarães. A água é um dos objectos da investigação do Laboratório da Paisagem, instituição criada em 2015, que tem como sócios a Câmara de Guimarães, a Universidade do Minho e a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. As águas dos rios serviram, até à década de 90, de depósitos para as indústrias que polvilham o território e estão hoje “muito melhores do que há 30 ou há 40 anos”, apesar de ainda longe da qualidade de há 80 anos, admitiu ao PÚBLICO o presidente da entidade, Jorge Cristino. Um dos indicadores que, por exemplo, demonstra a melhoria das águas fluviais é o reaparecimento junto aos rios de aves como o guarda-rios, que se alimenta de “seres vivos aquáticos pouco resistentes à poluição”, e de alguns peixes que tinham desaparecido. “Um inquérito paroquial do concelho, em 1842, afirma que o Rio Ave tinha então nove espécies de peixes. Hoje, não tem a lampreia nem a enguia, mas as trutas, as bogas e os barbos voltaram”, acrescentou. Além de analisar a composição química das águas para encontrar focos de poluição, o Laboratório da Paisagem também procura zonas de obstrução nos leitos e estuda formas de evitar inundações a partir das linhas de água, referiu ainda Jorge Cristino. Entre as medidas para melhorar o uso dos solos, contam-se as hortas pedagógicas, junto ao pavilhão multiusos da cidade, e a denominada Incubadora de Base Rural, onde a Câmara cede alguns dos seus terrenos para produção biológica a agricultores sem propriedades. “A iniciativa está a começar e só dois ou três agricultores estão já no terreno, mas vamos ter mais”, realçou Domingos Bragança. O incentivo à produção de alimentos para consumo próprio, salientou ainda o presidente da Câmara, é também uma estratégia para reduzir a pegada ecológica do concelho. Um estudo da Universidade de Aveiro, da associação ambientalista Zero e da Global Footprint Network, apresentado em Outubro, mostrou que, em média, cada cidadão vimaranense criou uma pegada de 3, 66 hectares globais, em 2016. Este Foi o segundo valor mais baixo entre os seis concelhos nacionais presentes no estudo, mas ainda assim 2, 2 vezes superior à biocapacidade da terra disponível. Isso quer dizer que Guimarães esgotou os recursos terrestres para 2016 no dia 13 de Junho. A alimentação, em virtude dos consumos de carne e de peixe, foi o factor com mais influência na pegada - 29% do total. O segundo factor que mais contribuiu para a pegada do concelho, em 2016, foi o dos transportes (21%). E a mudança do paradigma de mobilidade em Guimarães é um dos objectivos apregoados pelo actual executivo vimaranense. Em Setembro, a Câmara inaugurou a primeira fase da ciclovia, um investimento de 2, 4 milhões de euros que une as zonas ocidental e oriental da cidade, mas Domingos Bragança já revelou a intenção de abrir rotas para as bicicletas em direcção às ruas mais centrais da cidade, a algumas das vilas do concelho e aos concelhos vizinhos, através dos fundos já anunciados pelo Governo. Esta ideia figura num dos poucos Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) até agora elaborados no país - também há, pelo menos, em Braga, Leiria, Nazaré, Caldas da Rainha e Faro. Elaborado pela empresa Mpt, o documento está aberto à discussão pública até amanhã e favorece um paradigma que dá prioridade a quem anda a pé, e, depois, à bicicleta, aos transportes públicos, ao uso eficiente do carro e ao carro, em último lugar. A percentagem de uso do automóvel nas deslocações em Guimarães cresceu de 41%, em 2001, para 62%, em 2011, algo que a coordenadora do plano, Paula Teles, quer ver invertido, ainda por cima num concelho onde 65% das deslocações demora menos de 15 minutos. “Uma das ideias é tentar diminuir a velocidade dos carros sem cortar estradas. As ruas vão ficar mais apertadas, para haver mais passeios e pessoas. As pessoas vão perceber que, em alguns pontos, demoram mais a andar de carro”, explicou ao PÚBLICO. A engenheira civil mostrou-se, porém, ciente que a adopção de um paradigma amigável dos peões e dos ciclistas exige uma “mudança cultural” que pode demorar uma década. “Nas escolas, será preciso fazer os meninos aprenderem a andar de bicicleta. Também é necessária a aprendizagem cultural, para as pessoas perceberem que não é desprestigiante andar de bicicleta”, disse. Uma das pessoas que assistiu às duas sessões de apresentação do PMUS foi Jónatas Couto, presidente da Associação Vimaranense para a Ecologia (AVE). Fundada em 2001, a instituição tem hoje mais de 200 sócios e já organizou acções de levantamento do património natural do concelho, passeios pedestres, iniciativas de educação ambiental nas escolas, conferências. Promove ainda, todos os anos, a Ecorâmicas, uma mostra de cinema documental sobre um tema associado à ecologia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para o responsável, a mobilidade é um dos principais problemas da cidade e o PMUS apresenta um “conjunto de boas práticas”, apesar de ser um “catálogo” que tanto pode funcionar, como não. A Câmara tem revelado alguma inconsistência na promoção da mobilidade suave, frisou ainda Jónatas Couto, discordando da construção do parque de estacionamento para 400 viaturas no quarteirão da Caldeiroa, em pleno centro da cidade. A obra, de 5, 8 milhões de euros, está em curso. Outro dos problemas ambientais mais notórios na cidade, disse o presidente da AVE, é o estado das linhas de água, nomeadamente da ribeira de Couros. “Depois de tanto investimento da Águas do Norte e da Vimágua, não se compreende que haja um cheiro nauseabundo na zona do mercado municipal e, depois, do hospital”, disse. No coração de Guimarães, os moradores e os proprietários de estabelecimentos comerciais já só pagam a quantidade de lixo indiferenciado que produzem e não um valor indexado à tarifa da água. O sistema “Pay-as-you-throw” (PAYT), ou pague consoante o que deita fora, vigora no centro histórico de Guimarães desde 2016, fornecendo aos utilizadores contentores gratuitos para reciclagem, entre 25 a 45 litros, e vendendo sacos para lixo orgânico – um saco de 15 litros custa 18 cêntimos para comerciantes. “O sistema incentiva quer a separação do lixo reciclável, quer a redução da produção de lixo orgânico. Guimarães foi o primeiro município em Portugal a aplicar a tarifa PAYT”, afirmou ao PÚBLICO Daniel Pinto, administrador executivo da Vitrus, empresa municipal a cargo da recolha de lixo no centro histórico. Entre 2015 e 2018, a produção de lixo indiferenciado caiu de 821 toneladas por ano para 628, enquanto a quantidade de lixo reciclável subiu de 122 para 314 toneladas. A Câmara vai alargar o sistema vai chegar às ruas contíguas ao centro histórico, em 2019, e quer estendê-lo a toda a cidade em 2021. O sistema, contudo, não é ainda utilizado por todos no centro histórico – em dois mil habitantes, tem 810 utilizadores. Até agora, a Vitrus não penalizou ninguém. A estratégia, realçou Daniel Pinto, é “vencer as pessoas pela sensibilização e não pela penalização”. Um dos cidadãos agradados com o sistema é Augusto Gonçalves, gerente de um restaurante na Praça de Santiago. O lixo, disse ao PÚBLICO, costumava ficar amontoado nas esquinas, situação que já não se verifica com a recolha porta a porta, sempre nos mesmos horários. Luís Macedo, proprietário de um bar no Largo da Oliveira, considera os preços para os sacos do lixo indiferenciado são muito elevados. “O sistema funciona bem, mas 1, 17 euros por um saco de 50 litros é muito”, disse.
REFERÊNCIAS:
László Krasznahorkai: “As pessoas não precisam de profetas. As pessoas precisam de falsos profetas”
Hipnótico, tragicamente cómico, grotesco, O Tango de Satanás é um romance sobre um mundo em decadência e traz à edição portuguesa um dos mais inovadores e brilhantes autores contemporâneos: László Krasznahorkai. Lê-lo é uma tarefa de resistência com recompensa assegurada. (...)

László Krasznahorkai: “As pessoas não precisam de profetas. As pessoas precisam de falsos profetas”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.40
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Hipnótico, tragicamente cómico, grotesco, O Tango de Satanás é um romance sobre um mundo em decadência e traz à edição portuguesa um dos mais inovadores e brilhantes autores contemporâneos: László Krasznahorkai. Lê-lo é uma tarefa de resistência com recompensa assegurada.
TEXTO: A figura de László Krasznahorkai desafia o tempo. O rosto podia ser tanto o de um profeta do Antigo Testamento como o de um protagonista de uma distopia. Ele prefere dizer que é um homem sem lugar ou um homem de todos os lugares. Dito isto, László Krasznahorkai desafia tempo e lugar. Não cabe também em designações formais com fronteiras mais ou menos definidas como, por exemplo, a de escritor. Afirmar que é um escritor húngaro é provocar nele uma reacção imediata. “Aos meus olhos, escritores são Kafka ou Homero. Eles são os génios para mim. A minha produção não é mais do que um número de tentativas atrás de tentativas de escrever um pouco melhor do que antes. Além disso, sou um tipo independente, não posso ser identificado com o papel do escritor; não tenho uma casa algures no mundo, não tenho um país realmente; posso estar em qualquer lado em casa e mudar de casa muitas vezes. Sou do tipo que vagueia. Vivi em muitos lugares desde o Leste da Ásia aos Estados Unidos, e volto e saio outra vez. Estou sempre a mudar. Não por achar que vou encontrar o lugar ideal na próxima paragem, ou que o próximo sítio será melhor do que o anterior, mas porque tenho sempre de ir embora do lugar onde estou. E nunca quis ser escritor, não tinha qualquer desejo de ser um escritor no sentido social da palavra. ”Autoria: Lászlo Krasznahorkai (Trad. Ernesto Rodrigues) Antígona Ler excertoNascido em 1954 em Gyula, cidade no Leste da Hungria junto à fronteira com a Roménia, é um dos nomes mais originais da actual literatura europeia. Estava até agora por editar em Portugal. Susan Sontag chamou-lhe mestre contemporâneo do apocalipse. Visionário, inovador, tem sido comparado no estilo a Franz Kafka, Gogol, James Joyce, Samuel Beckett ou Thomas Pynchon, e o seu nome apontado como um dos candidatos ao Nobel. Ele diz que nunca teria escrito se não tivesse lido Kafka. “Kafka tem um papel muito importante nesta história toda. Li-o pela primeira vez quando era muito novo. Tinha um irmão seis anos mais velho que estava a ler O Castelo e percebi que ele estava deleitado. Eu quis ler e sentir o orgulho de dizer que também entendera o livro e também já tinha lido Kafka. Li, claro que era incompreensível para mim. Mas mesmo não entendendo conseguia de alguma maneira sentir a palavra de Kafka; era como um texto secreto e podia imaginar o quão maravilhoso esse texto poderia ser. Não entendia, mas era tão bonito! Via aquelas palavras magníficas e punha-me a imaginar o que poderia estar por trás. Quando o li mais tarde esse sentimento surgiu outra vez, como um império sem comparação”, refere sobre o maravilhamento permanente que Kafka lhe suscita. Desde Sátántángo, o seu romance de estreia em 1985, criou um universo muito pessoal, um mundo em desestruturação, marcado pelo grotesco, uma tragicomédia atravessada pelo absurdo, brutal. Em 2015, ganhou o Man Booker International Prize que distingue um autor pelo conjunto do seu trabalho e o mundo anglossaxónico despertou para uma obra com mais de vinte títulos, até aí conhecida sobretudo nos países germânicos. É este homem que agora chega a Portugal justamente com Sátántángo, romance de 270 páginas que o cineasta húngaro Béla Tarr transformou em 1994 num filme de sete horas e meia. Certamente mais do que o tempo que demora a sua leitura, nota Rogério Casanova no prefácio da edição portuguesa que acaba de chegar às livrarias. Com o título O Tango de Satanás, o romance passa-se no lugar onde em tempos funcionou uma cooperativa. É um mundo em decomposição, com casas a cair, povoado por figuras meio loucas num desespero onde prolifera a vigarice e a trapaça, uma sensação de conspiração permanente. Bêbados, prostitutas, um taberneiro, coscuvilheiros, vagabundos, intriguistas e um intelectual — em estado de clausura e inacção que não a do pensamento — vivem uma decadência moral e física. Eles são o que resta de uma espécie de falha colectiva. A figura do intelectual dá-nos ao mesmo tempo a leitura e também a narrativa desse mundo na qual entramos com acesso privilegiado ao círculo da sua consciência. Como diz o autor, com ele “assistimos a um processo que é o da direcção ao apocalipse”. Esta é a toada do seu monólogo interior: “. . . experimentou friamente a realidade da existência: viu-se, vítima impotente e sem defesa dessa crosta terrestre movente, viu a curva frágil do seu nascimento e da morte diluir-se no combate silencioso dos mares que recuavam, das montanhas em ascensão, e, no corpo obeso, bem colado ao sofá, quase podia sentir essa ligeira vibração, presságio de nova intrusão do mar, sinal de fuga impossível, esse mar incapaz de resistir à sua própria força e que, transbordante, arrastava no seu leito hordas de animais aterrados, em pânico, ursos, coelhos, veados, ratos, insectos e lagartos, cães e homens — enquanto, por cima das suas cabeças, o voo rasante das aves esgotadas sinalizava uma derradeira esperança. ” Podia ser um tempo bíblico. “É um romance de um tempo que já não existe. Pertence a um mundo que desapareceu completamente”, diz László Krasznahorkai ao Ípsilon a partir de Berlim. “Era, em absoluto, outro mundo, e não por ser a Hungria comunista, mas desapareceu em todo o mundo ocidental. Quase tudo mudou, excepto o comportamento humano. ”Começa assim: “Uma manhã de finais de Outubro, pouco antes de as primeiras bátegas das intermináveis e impied. osas chuvas de Outono começarem cair no solo gretado e salino, a oeste da exploração (procedendo o mar de lama pútrida que tornaria intransitáveis os caminhos vicinais e deixaria inacessível também a cidade até às primeiras geadas), Futaki acordou ao toque dos sinos. ” Futaki estava na cama da senhora Schmidt, quando o marido dela, Schmidt, regressou a casa. Tem então início um diálogo demonstrativo do grau de vigarice, de desconfiança e de traição entre vizinhos, um ambiente sustentado pelo mais absoluto desespero. Tudo muda quando se sabe da chegada de um ex-elemento daquela comunidade, Irimias, homem a quem todos atribuem poderes especiais e que todos julgavam morto. Ele é visto como um profeta. Ele virá certamente salvá-los daquela existência condenada. “Esta é uma história sobre como as pessoas não precisam de profetas. As pessoas precisam de falsos profetas. É essa a principal mensagem deste romance”, diz Krasznahorkai sobre um romance que expõe e ridiculariza as bases de uma sociedade totalitária. “As ditaduras foram sempre bastante populares na história humana e, de tempos a tempos, o poder político recua a esta velha forma, ao outro polo da democracia”, continua, clara alusão ao tempo presente. “Agora, em especial na Europa de Leste, a nova situação é bastante assustadora. O que existe não é uma ditadura, mas o sentido em que vai é propício a que ela surja. Ou seja, os novos regimes políticos na Polónia, na Hungria e por aí fora não são ditaduras. Estão no poder graças a eleições democráticas. E veja, não é só a Leste, acontece também em Itália, o que é muito mais perigoso, penso. ”O Tango de Satanás é mais um daqueles romances que ganham nova dimensão no tempo actual. Há um estado de angústia crónica que perpassa e ecoa. No livro ele é dado não apenas pela decadência das casas, pelo burlesco da relação entre as personagens, por uma atmosfera diluviana em que a chuva e a lama ameaçam levar tudo, e por um tempo que parece ter pouco de objetivo, marcado pela espera, pelo desencontro de ponteiros, por uma circularidade — que é também a da estrutura do romance — vertiginosa, obsessiva, a de uma dança — um tango — a remeter para o abismo e para a ideia de perdição. As frases longas, os capítulos de um só parágrafo, acentuam essa percepção de delírio coletivo. Quando o livro foi publicado, muitos viram-no como uma crítica desapiedada ao regime comunista, outros que o conheceram depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, como o retrato de um mundo tão desconhecido quando sedutor pela sua carga secreta. Lászlo Krasznahorkai abria as portas ao interdito soviético. “As críticas foram muito diferentes em meados dos anos 80 daquelas que surgem agora. Na Alemanha, por exemplo, os críticos estavam muito interessados no que acontecia na parte Leste do mundo e o romance lidava com essa realidade. Na Hungria foi lido como como um ataque político contra o regime. A minha proposta era, no entanto, muito diferente. Eu queria escrever um livro sobre o mundo e não contra um regime. ” E aquele era o único mundo que conhecia. “Até 1987 não pude sair da Hungria, não conseguia um passaporte para o mundo livre. Conversava com os húngaros, intelectuais, lia-os e o mundo era igual para mim e para eles. A Hungria era o mundo para nós. Por isso, o mundo deste romance era, para mim, similar ao mundo. E não quis escrever um livro sobre o regime político porque esse regime era muito ridículo para mim. Vivi numa época em que as pessoas como eu, da minha idade, já não acreditavam nesse regime. Em meados de 80 já não metia medo. Apesar disso não podíamos adivinhar que o império soviético iria cair em poucos anos. Aquela era a nossa realidade diária e os comunistas eram o povo mais ridículo mais cínico. ”É o mesmo cinismo de muitas das personagens, levado, por Krasznahorkai, a um extremo que tanto causa gargalhada como mal-estar. É sobre gente que acumula erros. “Venho de uma família burguesa e quando tinha uns 18, 19 anos fui para longe da minha família e do mundo dela. Era um leitor fanático de Kafka e de Dostoiévski e achei que a vida real se passava a um nível mais profundo. Decidi então ir às profundezas da sociedade húngara e vivi durante anos em pequenos lugares onde tive trabalhos muitos simples e muito físicos; vivi entre gente em grande estado de pobreza. E vivi entre bares e estações de comboio, bebia muito, toda a gente bebia naquele tempo na Hungria. Era muito comum, tão comum como os cigarros. Vivia entre essas pessoas e senti-me muito bem. Aquela vida era também a minha vida. E queria escrever um livro sobre essa vida que descobri numa subcamada da sociedade. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Lászlo fala com o mesmo sentido de circularidade com que escreve, uma cadência musical, como se as palavras encontrassem lugar numa pauta musical. Há uma razão. “A música é a minha linguagem natural, a música e as palavras. São uma matéria essencial. Sem música, sem palavras não poderia viver. Sabe, também faço musica. Toco alguns instrumentos desde criança, mas nunca em público. ” Tem colaborado com a música e com outras artes, como o cinema ou a fotografia. “O meu interesse por outras artes deve-se ao facto de achar que a verdadeira arte está em viver numa comunidade secreta e vivo nessa comunidade. Não sou um escritor, mas sou um artista, acho. E gosto muito de estar com artistas. ”Na década de 90 viveu uma situação privilegiada. Instalou-se no apartamento de Allen Ginsberg, o poeta da Beat. “Lá, no apartamento de Allen, conheci tantos artistas fantásticos! Estava extasiado. Eu era o mesmo tipo do Leste da Hungria e até hoje sou o mesmo, e ali estava eu entre eles. A partir de então o meu modo de pensar a literatura passou a ser deferente. Por exemplo, quando estava no apartamento de Allen ele ajudou-me a resolver problemas literários, técnicos, que para mim eram insolúveis; estar próximo dele era estar numa atmosfera fantástica. Nos seus últimos anos, era um homem muito, muito sábio e era muito generoso com os jovens artistas. Posso dizer que a razão pela qual estou familiarizado com outras formas de arte é por ser curioso acerca do que um artista pode fazer. Adoro-os, admiro-os e essa é a minha verdadeira casa. ”Este é Lászlo Krasznahorkai que no fim da conversa deixa uma confissão: “Até hoje me envergonho sempre que tenho de dizer que sou um escritor. ”
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Partidos LIVRE
Há música de Pierre Aderne para ouvir e comprar nas garrafeiras
Wine Album é uma colecção de canções de amor e vinho. Há quatro vinhos criados por Dirk Niepoort que acompanham o disco. (...)

Há música de Pierre Aderne para ouvir e comprar nas garrafeiras
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Wine Album é uma colecção de canções de amor e vinho. Há quatro vinhos criados por Dirk Niepoort que acompanham o disco.
TEXTO: O desafio é entrar num palacete em pleno Príncipe Real, em Lisboa, receber um copo, conhecer pessoas novas e ouvir música ao vivo. O franco-brasileiro Pierre Aderne é o anfitrião, mas com ele podem estar músicos de qualquer canto do mundo ou da cidade. As tertúlias musicais da Rua das Pretas, é assim que se chama este projecto, saíram de casa do artista e abriram-se ao público. Esta quarta-feira é lançado o disco Wine Album que tem a particularidade de cantar o amor e o vinho e de ser vendido em garrafeiras pois vem acompanhado de uma garrafa criada por Dirk Niepoort. Foi há uns dez ou 12 anos que o cantor começou a fazer saraus em casa, então no Rio de Janeiro. “Recebi alguns portugueses e quando vim para Portugal em 2011, para filmar um documentário, aluguei uma casa no Poço dos Negros e era aí que aconteciam os saraus. Depois mudei-me para a Rua das Pretas e o [fotógrafo] Alfredo Matos fazia as fotos e usava a hashtag #RuadasPretas, as pessoas seguiam e começaram a ficar interessadas. Um dia decidimos abrir a casa ao público e apareceram umas 30 pessoas. Um dos meus amigos tinha este espaço [no Príncipe Real] e há um ano que começamos a fazer aqui”, conta o cantor, sentado num cadeirão branco de verga, confortavelmente decorado com almofadas e panos coloridos. É ali que recebe os seus convidados a quem, mal entram e sobem os degraus que os leva à sala com lareira, recebem um copo de pé. “O vinho ajuda a contar a história”, explica. E assim, além dos músicos, dos artistas e dos escritores “também os produtores de vinho começaram a frequentar” a Rua das Pretas, continua. “Estes encontros nunca são estáticos”, sublinha Aderne. O projecto Rua das Pretas percorre o mundo. Embora tenha começado em Lisboa, Pierre Aderne anda em digressão com a sua trupe, como se de um circo se tratasse. Assim, por estes dias está em Lisboa, segue para Berlim (16 e 17), Paris (20 e 21), regressa a Lisboa a 24 e a 31. A 7 de Dezembro segue para o Porto e regressa a Lisboa a 8 e a 16. A 12 estará em Paris e a 17 em Londres. Além de não serem estáticos, também não são fixos. Aderne divide-se entre Lisboa e o Porto, mas também viaja até Paris e Nova Iorque. Agora, Londres e Madrid vão fazer parte do seu percurso. “Viajo com quatro músicos, uma fadista e uma cantora brasileira. Chegando lá, convido as pessoas. ” É assim o projecto, que é uma “festa de música e de vinho”. “É muito interessante porque todas as noites o concerto é diferente. O vinho é o quinto elemento da banda. ”Ao palacete chegam cerca de oito dezenas de pessoas que se sentam em caixas de vinho, com as almofadinhas coloridas. “Não é um show, mas uma festa que se faz em casa. É um formato [que promove] a intimidade”, explica. Há entradas para petiscar assim que se entra e no final da primeira parte é servida uma refeição quente. É uma experiência Airbnb Music e custa 50 euros. A maior parte dos que passam pela Rua das Pretas são turistas. Depois de tantas tertúlias – por ali já passaram 140 artistas portugueses e estrangeiros, 4000 já fizeram a experiência e foram abertas mais de 1700 garrafas de vinho –, há um ano, Aderne estava com Niepoort no Douro e pensou: “Está na hora de fazer um álbum temático e fazer do vinho o mote principal do disco – canções acerca do amor e do vinho. ”O autor convidou alguns músicos, foi para Nova Iorque, alugou uma casa. “O Dirk [Niepoort] veio com a gente. ” Durante duas semanas o que fizeram foi: “Compor, cozinhar, cantar, abrir garrafas e gravar”, descreve. A produção ficou a cabo de Hector Castillo, vencedor de oito Grammys, e dos compositores e músicos Brian Cullman e Tanner Walle. O disco foi terminado em Lisboa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois disso, Aderne pensou na distribuição. “Eu sinto a música mais próxima de uma garrafeira do que de uma loja onde se vendem electrodomésticos”, diz, lamentando a diversidade de produtos que lojas como a Fnac ou a Worten oferecem. Um CD e uma garrafa de vinho é a proposta de Aderne e de Niepoort – que criou dois tintos, um do Douro e outro da Bairrada, dois brancos, um do Douro e outro da região do Alto Minho. Os rótulos foram criados pelos artistas plásticos brasileiros Gonçalo Ivo e Rubem Grilo. São oito mil discos e oito mil garrafas (20 euros), mas é possível comprar três também com o CD (60 euros). De futuro haverá um código de download impresso nas rolhas que poderá ser descarregado para ouvir o álbum, informa o autor. Aderne está curioso para saber “se esta loucura resulta”, a da venda em garrafeiras, wine bars e restaurantes. Por agora, já há pedidos para fazer chegar o kit a Nova Iorque e a Paris. Portanto, esta ideia pode ajudar à “inclusão do vinho português em lugares em que não estaria se não tivesse a música [associada] e vice-versa”, defende.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave ajuda circo cantora
Teresa Paixão: “Na RTP2 mostramos aquilo que só a TV pode mostrar”
Entrevista com Teresa Paixão, directora de programas da RTP2, canal que cumpre 50 anos no dia de Natal – uma programadora que veio dos programas infantis para dirigir uma televisão que se apresenta como “culta e adulta”. (...)

Teresa Paixão: “Na RTP2 mostramos aquilo que só a TV pode mostrar”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Entrevista com Teresa Paixão, directora de programas da RTP2, canal que cumpre 50 anos no dia de Natal – uma programadora que veio dos programas infantis para dirigir uma televisão que se apresenta como “culta e adulta”.
TEXTO: Está há 25 anos na RTP2, canal que na terça-feira cumpre 50 anos. Teresa Paixão dirigiu o departamento de programas infantis da RTP 2 entre 1989 e 2015, onde geriu espaços como o Zig Zag, e agora faz uma televisão que se descreve como “adulta”. Foi em 2015 que o então administrador Nuno Artur Silva a convidou, depois de década e meia em que o futuro do canal foi duas vezes posto em causa. A RTP2 iludiu a privatização, mas a directora de programas sabe que nunca se está a salvo. “Sei o risco que é ter um canal destes com uma audiência muito baixa. Porque já o vivi. ”Diz ter aprendido muito no canal e vir de dentro e aprender com os erros e críticas é uma vantagem. “A má-língua é um património extraordinário”, ri-se. Começou nos Jogos sem Fronteiras e na Rua Sésamo e hoje dirige o canal que começou como um espaço de repetições do que tinha sido emitido pela RTP1 até, em 1970, ter começado a ter programação própria. Nestes 50 anos, a RTP2 foi o canal de Agora Escolha, do Domingo Desportivo, de Quem Sai aos Seus ou Sete Palmos de Terra. Agora é o canal de Sara, das séries europeias como O Príncipe ou Borgen, da Britcom, dos documentários e da ópera. A RTP2 teve como rostos o cineasta Fernando Lopes, José Júdice, António Mega Ferreira ou Margarida Marante – agora tem a única directora de programas dos generalistas, que diz a cada passo que também é espectadora “do canal 2”. Recentemente tentou comprar a série da RAI/HBO sobre a amizade feminina baseada nos romances de Elena Ferrante, A Amiga Genial, mas foi um exemplo de como o orçamento não se compadece com grandes produções acabadas de estrear. Teresa Paixão mantém o compromisso de encomendar mais documentários sobre mulheres e tem já na calha programas sobre a médica Cesina Bermudes, Natália Correia, a psiquiatra brasileira Nise da Silveira, Teresa Barros Caetano ou um novo olhar sobre Sophia de Mello Breyner Andresen. Está na direcção de programas depois de dirigir os programas infantis da RTP 2 – o que aprendeu com isso para agora dirigir uma televisão que se apresenta como “culta e adulta”?Confirmei a convicção de que uma televisão – e uma televisão pública tem essa encomenda do Estado – serve para não infantilizar as pessoas e para as tornar mais cultas, para que elas possam escolher e sentir-se melhor. Que papel desempenha a RTP2 na televisão em Portugal?É um canal que tem coisas diferentes. Não estou a dizer que são melhores, são diferentes. Todos os canais generalistas durante o dia têm um género de programa – um talk show com pessoas, com música. Nós não temos isso. Temos um documentário sobre o fundo do mar, sobre a selva, desenhos animados, que são coisas que as pessoas só podem ver na televisão. Mostramos aquilo que só a TV pode mostrar, enquanto os outros canais mostram na televisão aquilo que as pessoas podem ver noutros sítios. Está na RTP desde 1986. Em 32 anos de televisão pública, como viu a RTP2 mudar?A RTP2 não mudou muito, foi sempre um canal diferente, com mais documentários ou programação estrangeira do que o canal 1. Só muda com o tempo, com a moda. Quando ele muda verdadeiramente, os momentos em que se fragilizou, são os momentos em que o quiseram vender. Aí desgastaram o canal, transformou-se numa espécie de canal Memória 2 porque tinha de viver de repetições. Só nesses momentos não teve essa pujança, mas mesmo assim nunca foi igual aos outros. Desde o início deste século, o futuro da RTP2 esteve sempre em aberto – planeou-se que fosse um canal de informação e educação, por exemplo, ou mais recentemente o governo de Passos Coelho tornou a possibilidade da sua privatização num debate nacional. Que impacto teve isso internamente?Como espectadora e como trabalhadora sempre vivi isso com um grande espanto – como é que as pessoas acham que vale a pena diminuir? Acrescentar é o que vale a pena. Por isso quando alguém acha que diminuir a informação, o tipo de programas, o pensamento, a diversidade, a inovação é uma coisa boa, é um grande espanto. E sobretudo acho que vivo [isso] com uma grande desconfiança do país. Foi sempre muito estranho que o Estado achasse que não vale a pena ser mais diversificado, inovador, diferenciado. É com espanto e uma certa tristeza que se vive com sentimento da perda. Teme que esses temas voltem a estar em cima da mesa?Acho que estão sempre. Há sempre uma possibilidade, mas espero que essas pessoas à hora da morte tenham um arrependimento daqueles de matar [risos]. O primeiro canal 2 público que existiu foi na televisão austríaca, em 1963, depois foi a TVE em 1966, a BBC, nós em 1968. Os canais 2 nasceram nos anos 1960 porque provavelmente se tinha saído de uma guerra há pouco tempo e as pessoas sabiam que valia a pena ter gente mais culta, mais adulta, não infantilizar as pessoas – porque são pessoas que escolhem melhor, que percebem melhor a diferença. No século XXI vivemos um processo em que afinal o que é diferente, como tem pouca gente, porque há menos gente diferente, não vale a pena. É um pensamento muito redutor. Sendo um canal cultural, que pode ter um público mais especializado, a RTP2 sente particularmente o impacto da pulverização das audiências, dos canais temáticos e da programação digital para nichos?Claro que sim, mas isso não é uma coisa má. Eu faço isso quando não vejo o canal 2 e é a natureza do que acontece agora. O Fausto, do Goethe, começa assim, a dizer que já ninguém vai aos saraus culturais. Estamos atentos, a nossa função é também seduzir as pessoas para o nosso canal. Mas é o mundo a evoluir. Este trabalho é muito duro, em televisão há ciclos, mas a natureza deste negócio é sempre procurar diferentes pessoas. Claro que faz com que nos sintamos muito frustrados, claro que às vezes traz muitas dúvidas porque não sabemos o que fazer – temos esta coisa maravilhosa no ar e pouca gente quer ver…A RTP tem esse dilema, não ter as audiências como objectivo, mas também lhes presta atenção. Disse numa entrevista que comete o pecado da ira quando vê as audiências do canal. Porquê?Gostava muito que o canal tivesse imensa audiência. Se as massas agora abraçassem os programas da RTP2 ficava contentíssima. A ira é porque às vezes temos a sensação de que toda a gente vê o canal. Mas o “toda a gente” no canal 2 são 50 mil pessoas e noutros canais é um milhão. Nesses momentos duvidamos, se calhar são 100 mil – é a tentação de achar que aquela amostra não é adequada para o canal. E se calhar não é, porque a amostra das audiências não é uma ciência exacta. Pode até ser uma ciência oculta [risos], mas não é uma ciência exacta. Os canais culturais do resto dos países da Europa têm uma média de 100 mil pessoas a ver, o que quer dizer que têm picos de 200 mil. Nós temos uma média de 35 mil. Temos picos de 100 mil, mas nunca de 200 mil. Sente essa pressão?Não, não há nenhuma pressão. Nem auto-imposta, do mercado, da administração?Da administração, então, nem pensar. Nunca ninguém me disse ‘olha que a audiência está muito baixa’. Eu é que sei o risco que é ter um canal destes com uma audiência muito baixa. Porque já o vivi. O risco de suscitar ideias quanto ao futuro do canal. Exactamente. E até parece que é um bom argumento. É um péssimo argumento, mas podem transformá-lo em bom. Nestes 50 anos, em que momentos acha que a RTP2 foi particularmente marcante para o país?O Acontece teve um grande impacto. Foi um projecto de muitos anos e deu a conhecer muita gente das artes. O Joaquim Letria teve imenso impacto [apresentou o Informação 2, o Directíssimo e o Tal & Qual, entre outros]. O 1000 imagens do José Nuno Martins – foi a primeira vez que na TV houve um programa de crítica à publicidade. O Jardim da Celeste, que não teve o impacto da Rua Sésamo, foi a prova de que era possível fazer um programa educativo do pré-escolar, nosso. Mais recentemente, o Visita Guiada marca o canal. E a descoberta das séries europeias. [O drama político dinamarquês] Borgen não teve muita audiência, nunca passou dos 60 mil espectadores, mas teve imenso impacto. A série Sara, série do ano do Ípsilon, teve bons resultados?Sim. Esteve dentro dos nossos números, entre 35 e 40 mil pessoas, estava muito bem-feita. Porque é que foi para a RTP2 quando estava prevista para a RTP1?Porque o meu colega da RTP1 [o então director de programas Daniel Deusdado] me pediu para eu a pôr. Tive muito gosto em fazer isso. Mas não fui eu que escolhi a Sara. Confesso que fiquei um bocadinho surpreendida com a reacção dos autores, de uma grande desvalorização do canal 2, e fiquei muito chocada com isso. Eles têm esse direito…O presidente da RTP disse ao PÚBLICO este Verão que a RTP2 “é um grande luxo de um canal”. Sente-se ao comando de um veículo de luxo?O canal 2 tem esse luxo que achamos que o ser humano merece, do conforto. Não achamos que seja um canal luxuoso no sentido supérfluo do termo. Para mim é um grande privilégio estar ao comando e espero estar à altura. Portugal merece um canal de luxo no sentido do conforto, de algo de novo e diferente. Mas luxo não quer sempre dizer uma coisa muito cara. Qual é o seu orçamento? Um melhor orçamento dar-lhe-ia possibilidade de fazer o quê?Nunca chega. Temos cerca de 8 milhões de euros para fazer o canal, o orçamento tem vindo a aumentar, e se tivesse mais dinheiro investia em ficção nacional – não só séries, cinema, no desenho animado que é uma das coisas que temos mais possibilidade de vender. Um cão, um bule, fala qualquer língua. É onde acho que Portugal precisa de mais investimento. Espanha já está num patamar acima do nosso desde que Pedro Almodóvar ganhou o Óscar. O que é necessário é fazer em Portugal, e fazer evoluir. Enquanto não houver mais investimento o grau de exigência não pode ser muito elevado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Quantas vezes já vimos Música no Coração e Sozinho em Casa no Natal? Este ano, eles estão de volta
O PÚBLICO fez as contas a décadas de filmes de Natal nos canais generalistas e à programação festiva de 2018. Música no Coração e Sozinho em Casa regressam para continuar a somar exibições. E.T., Frozen ou os super-heróis também. (...)

Quantas vezes já vimos Música no Coração e Sozinho em Casa no Natal? Este ano, eles estão de volta
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O PÚBLICO fez as contas a décadas de filmes de Natal nos canais generalistas e à programação festiva de 2018. Música no Coração e Sozinho em Casa regressam para continuar a somar exibições. E.T., Frozen ou os super-heróis também.
TEXTO: O prato principal do Natal televisivo tende a ser feito de filmes — e de clássicos. O Natal é ritual, um ritual é repetição e se há filme que nas últimas quatro décadas se repete na televisão portuguesa é esse pano de fundo com ambiente de reunião familiar que é Música no Coração. Este ano, o filme de Robert Wise regressa para ultrapassar a dezena de vezes que já passou na RTP. Num ano em que também haverá Sozinho em Casa, que já fez companhia aos portugueses em pelo menos 11 natais nos canais generalistas, há outros filmes do tipo obrigatório na TV portuguesa, da animação ao bíblico, do mundo Harry Potter aos super-heróis. Todos os anos há o Natal dos Hospitais, as missas, o circo de Natal e as edições especiais de programas do momento que se vestem de azevinho e sinos dourados. Este ano não será excepção, com emissões de Natal de Masterchef, Querido Mudei a Casa (dia 22) ou Apanha se Puderes na TVI (a 22, 24 e 25), Casados à Primeira Vista na SIC (dia 23), o Circo de Monte Carlo e o Circo de Natal SIC Esperança com um toque da novela Alma e Coração no canal de Carnaxide. A RTP1 enceta a noite de consoada com o Circo de Natal (dia 24 às 21h15) depois de um dia em Braga com a Festa de Natal de Sónia Araújo e Jorge Gabriel, e oferece um The Voice Portugal Especial de Natal no dia 25 às 21h15. O PÚBLICO pediu aos canais generalistas, os maiores e mais antigos agregadores de públicos, os dados para fazer as contas aos seus filmes de Natal mais populares e se a RTP passou, por exemplo, E. T. – O Extraterrestre nos Natais de 1993, 1994 e 1997, e se a memória já acrescenta os filmes de Harry Potter ou Frozen à lista, há dois títulos que se destacam. Música no Coração (1965) e Sozinho em Casa (1990) levam a taça do Natal português (e não só) e este ano lá estarão para reconfortar o espectador: o primeiro chega dia 24 à RTP, sua casa ao longo das décadas, ao fim da noite e pela 11. ª vez na história da televisão pública; o segundo devolve Kevin McCallister aos ecrãs durante o dia 25 na SIC. Esta é a quarta vez consecutiva que o filme em que Julie Andrews é uma freira que se torna perceptora de sete musicais crianças no átrio da II Guerra Mundial está em pleno Natal português. O título de 1965, que não tem uma única cena de Natal, tornou-se desde o final dos anos 1970 um clássico de Natal televisivo das emissões britânicas ou norte-americanas e é um dos mais evocados “filmes de Natal” quando se fala da tradição audiovisual portuguesa. No Natal de 2015 lá estava Música no Coração às 23h15 de dia 24. No Natal de 2016, Música no Coração às 23h46 de dia 24. No Natal passado, o filme passou para a tarde do próprio dia de Natal, às 15h30. E este ano estará novamente na Consoada como filme definitivo de Natal e numa espécie de oficialização dos últimos anos das memórias e hábitos, às vezes inflacionados pela nostalgia das gerações que foram crianças e jovens nas décadas de 1980 e 1990, numa repetição sucessiva em pleno século XXI. Segundo contas da RTP, entre 1988 e 2018 o filme passou 11 vezes, a 11. ª das quais se cumprirá este ano, na véspera de Natal. Uma curiosidade: a primeira exibição de que há registo foi precisamente a 25 de Dezembro de 1988, mas na RTP2. Sozinho no NatalMúsica no Coração é um título tão marcante que até a conhecida promotora de concertos portuguesa gerida por Luís Montez o tomou como nome de baptismo, um cenário que seria bem diferente com o título do filme no português do Brasil – A Noviça Rebelde – e menos duradouro, se a televisão pública não o tivesse colocado na mente de tantas gerações. Mas se a SIC ou a TVI nunca passaram Música no Coração, são os canais em sinal aberto responsáveis por outro filme tão natalício quanto o bacalhau: Sozinho em Casa, ou de como a negligência parental e um rapazinho loiro deixado para trás durante as férias de Natal se tornou um ícone. A RTP também não encontra registos de ter exibido Sozinho em Casa, mas este ano ele aparece nas grelhas da SIC no dia 22 e em pleno dia de Natal – sábado trata-se de Sozinho em Casa 4 e o filme inicial, de 1990, é exibido em pleno dia de Natal no canal de Carnaxide. Só na SIC, o primeiro e mais clássico filme do franchise já passou 11 vezes, a última das quais a 25 de Dezembro de 2016 e a primeira a 21 de Dezembro dos idos de 1997. Porém, só nessas duas datas o filme foi mesmo “de Natal” – este ano, foi exibido a 1 de Janeiro, ainda em época de festas, mas já depois de entregues as prendas. A TVI já o exibiu nove vezes entre 1994 e 2014, sempre nos dias de Natal. E, como os McAllister não são pais exemplares, Kevin voltou a estar sozinho anos depois, em Nova Iorque e cruzando-se até com Donald Trump, sequela essa que o canal de Carnaxide passou 13 vezes, quatro das quais (1999, 2014, 2015 e 2017) nos dias de Natal. Este ano, a TVI programa sim o filme O Filho de Deus, com Diogo Morgado, para a tarde da véspera de Natal e Jacinta, de Jorge Paixão da Costa, para a noite. A SIC, o generalista que faz da programação das festas um pacote de cinema, vai ter, entre outros e ainda sem horários divulgados, novamente E. T. e The Revenant: O Renascido (dia 23), Vaiana, Monstros Fantásticos e onde Encontrá-los ou A Idade do Gelo: Um Natal de Mamute (todos dia 24), e Ben-Hur (2016) ou A Bela e o Monstro (dia 25). Já no cabo podem encontrar-se Os Caça-Fantasmas (I e II) originais no AXN White na noite de Natal e os ingredientes tão habituais quanto as filhoses que são os muitos filmes de animação (Frozen no dia 24 no canal Hollywood), de super-heróis (o dia 25 no TVCine 1 é feito de Mulher-Maravilha, Black Panther ou da estreia televisiva, às 21h30, de Vingadores: Guerra do Infinito) e a fantasia de J. R. R. Tolkien (a trilogia O Hobbit passa de 23 a 25 na Fox e O Senhor dos Anéis – A Irmandade do Anel passa dia 25 no TVCine 4). Na nova televisão, o Netflix já criou o pacote It’s beginning to look a lot like Netflix onde junta o clássico natalício recente que é O Amor Acontece, a cantora oficial de certos natais que é Mariah Carey e o seu Merriest Christmas e o original A Very Murray Christmas, com Bill Murray – e até o programa que não é mais do que uma lareira realista a crepitar no ecrã. Entretanto estrearam-se o anime de Aggretsuko: We Wish You a metal Christmas ou prendas especiais como Roma, o favorito para os Óscares de Alfonso Cuarón, e, na sexta-feira, chega outro filme original, o pós-apocalíptico Bird Box, de Susanne Bier, com Sandra Bullock e Sarah Paulson. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O canal Cinemundo, que está nos operadores Meo, Nowo e Vodafone, tanto passa Heidi ou A Bússola Dourada na véspera de Natal, quanto também um ou dois filmes que bem podem resumir os excessos da época – Oh não! É Natal Outra Vez ou as adoráveis crianças de A Cidade dos Malditos (dia 24). Este é um de três filmes de John Carpenter que abrilhantam as festas: o AXN Black promove um duelo David Fincher versus John Carpenter com Sala de Pânico e Clube de Combate e Memórias de Um Homem Invisível e As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Mandarim em pleno dia 24. E recorde-se que a 25 de Dezembro nasceu um canal português, o segundo mais antigo do país – a RTP2 faz 50 anos no dia de Natal e programa para os próximos dias o Concerto da Árvore de Natal dirigido por Daniel Baremboim e Martha Argerich em Berlim (dia 23 às 24h), o Concerto de Natal no Scala de Milão com obras de Vivaldi e Mozart a 24 às 22h35, o especial Gisela João – uma noite de Natal em pleno no dia 25 às 23h15 e oferece cinema com uma consoada que tem O Sabor da Cereja, de Abbas Kiarostami, e uma tarde de Natal com A Minha Vida de Courgette.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra filho mulher homem espécie circo cantora pânico
O rapaz na zona fria
Uma boa história, bem contada, com bons actores, sobre uma família que procura refundar-se a partir do regresso do filho pródigo — não é preciso mais. (...)

O rapaz na zona fria
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.6
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma boa história, bem contada, com bons actores, sobre uma família que procura refundar-se a partir do regresso do filho pródigo — não é preciso mais.
TEXTO: Num filme que em Portugal se chamou A Rapariga na Zona Quente, Paul Schrader punha George C. Scott, empresário conservador, à procura da filha no submundo do cinema pornográfico da Califórnia. Não sabemos se Peter Hedges se lembrou desse filme ao escrever O Ben Está de Volta, mas nós lembrámo-nos porque, na segunda hora, põe Julia Roberts, mãe dilacerada, à procura do filho na “zona quente” da cidadezinha onde vivem (que, por ser Natal e estar a nevar, está mesmo muito fria). O filho, o Ben do título, é um drogado em reabilitação que veio passar a noite de Natal a casa, decisão bem-intencionada mas que vai ter maus resultados. Realização: Peter Hedges Actor(es): Julia Roberts, Lucas Hedges, Courtney B. Vance, Kathryn NewtonA viagem de mãe e filho em busca do cão da família (cujo desaparecimento não é inocente) abre uma espécie de “porta do inferno” para o reverso da imagem de cartão postal natalício da pequena comunidade americana. E é por aí que O Ben Está de Volta começa a afastar as aparências de pequeno drama familiar/caso da vida que a sua primeira metade dava a entender (na onda de um outro título recente sobre famílias afectadas pela droga, Beautiful Boy). Sobretudo, é um filme que procura não julgar nem condenar, que se recusa a embarcar no lugar-comum, e que sabe valorizar os pequenos pormenores que às vezes dizem mais do que toda uma longa série de diálogos. Tudo se joga numa questão de confiança erodida de parte a parte que tem de se reconquistar: O Ben Está de Volta é a tentativa de uma família se refundar a partir do regresso do filho pródigo, interpretado com intensidade por Lucas Hedges (o sobrinho de Casey Affleck em Manchester by the Sea e filho de Frances McDormand em Três Cartazes à Beira da Estrada), à sombra de uma tragédia para a qual se procura sistematicamente um culpado que talvez não exista. O Ben Está de Volta é um “pequeno” filme na recente tradição indie americana de filmes-que-há-uns-anos-teriam-sido-feitos-por-um-estúdio, ou de filmes-de-que-os-estúdios-só-se-lembram-quando-os-Óscares-se-aproximam. Por aqui não se descobrem coisas novas, mas quando há uma boa história bem contada por bons actores — e se Julia Roberts está a ganhar com a idade! — isso também não importa.
REFERÊNCIAS:
Como resgatar uma aldeia do interior de Loulé?
Universidade do Algarve lançou Projecto Querença há cinco anos, mas nenhum jovem se mudou para o barrocal nem para a serra algarvia. Último de seis trabalhos sobre desenvolvimento do interior. (...)

Como resgatar uma aldeia do interior de Loulé?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181231204658/https://www.publico.pt/n1756649
SUMÁRIO: Universidade do Algarve lançou Projecto Querença há cinco anos, mas nenhum jovem se mudou para o barrocal nem para a serra algarvia. Último de seis trabalhos sobre desenvolvimento do interior.
TEXTO: A notícia propagou-se como uma esperança para as aldeias da beira-serra e da serra: a Universidade do Algarve (UAlg) ia sair do campus e envolver-se, de forma directa, numa missão de resgate territorial. Volvidos cinco anos, o Projecto Querença mostra alguma dinâmica económica, mas nem um novo morador. O que aconteceu?Pode não se avistar vivalma ao subir o monte de Querença, a 10 quilómetros da cidade de Loulé. Casas caiadas de branco cobrem a encosta até à Igreja de Nossa Senhora da Assunção. De repente, um palco nu, um museu com a porta aberta, restaurantes prontos para servir galo de cabidela ou galinha cerejada. Em Setembro de 2011, nove jovens, de diferentes áreas do saber, instalaram-se numa destas casas térreas para identificar recursos locais, estudá-los, trabalhá-los. E ter ideias que pudessem agitar a economia, gerar emprego. Esse seria o primeiro passo para recuperar um território que ameaça desaparecer. A palavra “interior” pode causar estranheza tão perto da costa. Mais consensual será a expressão “baixa densidade”. Até pelo peso do sector do turismo, os moradores preferem a proximidade da praia. Nas freguesias a Norte (Alte, Querença, Ameixial), quase só restam idosos. Em 2011, moravam 759 pessoas em Querença. Meio século antes, 2641. O despovoamento não levara a extensão de saúde, a escola de primeiro ciclo, o polidesportivo, o salão de festas. Anos antes, um programa de revitalização até trouxera novos equipamentos. E isso foi determinante na escolha. “Não queríamos ir para um terreno inóspito”, esclarece João Ministro, coordenador técnico do projecto promovido pela UAlg, em colaboração com a Fundação Manuel Viegas Guerreiro, com apoio da junta e da câmara. O declínio, ali, seria reversível. Sara Fernandes sobressaía naquele primeiro grupo. Terminara o mestrado em marketing e não queria tornar à origem, a Lisboa. Foi investida da missão de desenvolver iniciativas de promoção e comercialização dos produtos locais. “Assim, a curto prazo, podíamos criar um evento no qual as pessoas pudessem vender o seu excedente”, lembra. Tantos mercados há por esses cabeços fora. Naquela altura, não havia. E os moradores entusiasmaram-se com a possibilidade de fazer um mercado mensal. “Começaram a fazer doçaria tradicional, pão em forno de lenha e outras coisas”, prossegue. E a assumir um papel activo no programa paralelo, que tanto podia ser um passeio interpretativo como uma oficina de artesanato ou gastronomia. O mercado resiste, mas, para se distanciar da concorrência, passou a acontecer quatro vezes por ano, uma em cada estação, com programa reforçado. Os idosos acolheram bem os jovens. Cederam-lhes mais terreno do que eles eram capazes de usar. Envolveram-se nas suas actividades. E isso, para João Ministro, mostra que parte do caminho foi percorrido. O resultado, porém, ficou aquém. Os jovens foram desafiados a desenvolver ideias de negócio, a criar o próprio emprego”. “Ainda que muitos tivessem a ideia e a vontade, não assumiram o risco”, lamenta. “Havia alguma imaturidade. ”Visto de fora, não foi só a juventude. O contexto era de estágio financiado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional. “Eles até podiam ter muitas ideias, mas à partida não teriam capital para investir”, concede Nelson Dias, presidente da In Loco – associação de desenvolvimento e cidadania. Houve nova experiência em 2014. Dessa vez, seleccionaram “jovens um pouco mais velhos e com uma ideia do que gostariam de fazer”. “Não ficaram cá a residir, mas trabalharam cá e aproveitaram recursos da primeira fase. Das quatro pessoas saíram quatro iniciativas empresariais”, assegura João Ministro. O arquitecto paisagista João Marum, natural da freguesia, participou nas duas fases. “Não podia deixar passar a oportunidade”, diz ele. “Sempre gostei do meio rural. ” Na primeira fase, acatou a missão de criar um viveiro de plantas autóctones e de delinear projectos de jardinagem sustentável. Finda a aventura, dedicou-se aos projectos, mas não esqueceu o resto e decorrido um ano estava a fazer jardins. “A relva consome muita água, leva produtos químicos, o que é mau. Há um tipo de cliente, com uma consciência mais ecológica, que prefere plantas autóctones, telas e inertes, que mantêm a humidade do solo. Também há o que está farto de pagar água”, explica. Aproveitou a segunda fase para desenvolver a empresa: faz projectos, constrói jardins, tem um viveiro. Susana Martins, uma rapariga da cidade de Loulé, foi desafiada a participar. Terminara o mestrado em História. Defendera uma tese sobre produção de cal. “Nunca tinha pensado em transformá-la num produto turístico”, conta. Criou uma rota da cal e do barro que começa aqui, em Querença, e que se estenderá a outras aldeias do barrocal, a faixa entre a serra e o litoral. Propõe-se “mostrar o território através da história, seguindo os vestígios dessa actividade, que terminou por volta dos anos 60/70”. E já preparou outras rotas para desviar turistas da costa. Bruno Rodrigues fez mais do que estava à espera. Entrou decidido a dar corpo à Algarve Trail Running, uma associação desportiva destinada a dinamizar a corrida em trilhos. Já outros tinham ido à gaveta da UAlg buscar uma barra energética desenvolvida no laboratório de engenharia alimentar. Havia que aperfeiçoá-la. “Como atleta, fui a cobaia. Levava-a para as provas. Passava horas à chuva, no bolso, ou ao calor, no carro”, revela. Agora, comercializa-a. A barra sai dos fornos da Fábrica da Amêndoa, no centro de Loulé, em pequenas tiras e é embalada em Querença, de onde provêm a matéria-prima. “No início do ano, falamos com produtores de figo, amêndoa, alfarroba e mel para comprar o que vamos precisar”, diz Bruno. “Isto também é uma forma de incentivar a ligação à terra, a produção agrícola. Vejo que as pessoas já se preocupam mais. Limpam as alfarrobeiras, as amendoeiras. . . ”Como é que nem um jovem se mudou para o interior? “Alguns quiseram, mas há um problema de habitação”, esclarece João Ministro. A legislação condiciona a construção em 90% do concelho e a especulação imobiliária faz o resto (ver texto). “Mesmo para arrendar, os preços não são convidativos. É mais barato o centro de Loulé do que Querença. ”Mau sinal? “O facto de este projecto vir da universidade é interessante, mas tem de se transformar numa parceria real e duradoura com parceiros locais”, avisa o geógrafo João Ferrão, da Universidade de Lisboa. “Se assim não for, a universidade tem a sua dinâmica própria e acaba por não resolver problemas como este da habitação. ”João Ministro reconhece que falta trabalhar essa vertente. “É uma ideia que temos em carteira e que temos de discutir com as entidades locais: nestas aldeias do interior, tem de se criar bolsas de alojamento a custo controlado. ” Questionado pelo PÚBLICO, o presidente da câmara, Vítor Aleixo, admite que essa é uma hipótese a considerar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O autarca faz “um balanço positivo” do Projecto Querença. Importa-lhe diversificar a economia do município, muito assente no turismo de sol e praia marcado por uma forte sazonalidade, para já quase só atenuada pelo golfe. “São empresas que estão a nascer. Se não houver micro economia, pequenas empresas, as pessoas não se fixam”. Só João Marum vive na freguesia – em casa dos pais. “Os outros não ficaram em Querença, mas não foram para longe, ficaram em Loulé ou em Faro”, sublinha Filipe Cunha Lima, que se debruçou sobre o projecto ao fazer doutoramento em turismo. “Há organizações que estão se formando, se fortalecendo, e isso também ajuda a fortalecer o todo. Há uma dinamização que pode não ser vista quando a gente anda na rua mas que é significativa”, prossegue. “O sucesso destes projectos de dinamização dos territórios despovoados não pode ser medido a curto prazo. ”O processo está em curso. Acaba de nascer a QRER - Cooperativa para o Desenvolvimento dos Territórios de Baixa Densidade, que reúne gente que passou pelo projecto e não só. “Para o ano, vamos lançar uma nova fase do projecto”, anuncia João Ministro. “Acho que nos vamos inspirar no segundo modelo, ou seja, vamos à procura de pessoas que tenham já uma ideia daquilo que acham que tem viabilidade neste território e vamos criar um sistema de apoio. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola ajuda corpo rapariga
Na hora de brincar, os educadores desafiam e os pais substituem-se às crianças
Como brincam os pais com os filhos? Como brincam os educadores de infância com os alunos? Há diferenças de género? Estudo mergulha no papel das brincadeiras e compara Portugal com a Alemanha. E mostra que os pais portugueses não estão habituados a brincar. (...)

Na hora de brincar, os educadores desafiam e os pais substituem-se às crianças
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Como brincam os pais com os filhos? Como brincam os educadores de infância com os alunos? Há diferenças de género? Estudo mergulha no papel das brincadeiras e compara Portugal com a Alemanha. E mostra que os pais portugueses não estão habituados a brincar.
TEXTO: Uma mala com objectos lá dentro, da caixa dos ovos à máquina de cola quente passando por um martelo, fios, tecidos, purpurinas, rolhas de cortiça, palhinhas, madeiras. O objectivo é, em 20 minutos, um adulto e uma criança fazerem uma actividade em conjunto. Um boneco, um quadro, uma maquete, o que se quiser. Quando os meninos, dos 3 aos 5 anos, realizam a tarefa com o seu educador de infância, este dá-lhes autonomia. Quando a actividade é feita com os pais, estes ajudam e chegam a substituir-se à criança. Marina Fuertes e Otília Sousa, da Escola Superior de Educação de Lisboa (ESELx), são as autoras de um estudo que foi publicado na revista científica Plos One, em meados de Novembro. O objectivo era perceber como é que os adultos lidam com as crianças em actividades colaborativas. Esta observação começou por ser feita por Holger Brandes, reitor da Evangelische Hochschüle, em Dresden, que propôs a Fuertes replicá-lo em Portugal, de maneira a haver termo de comparação. Na Alemanha, a ideia de Brandes era perceber se educadores do sexo feminino e masculino colaboram com as crianças de igual forma — “foi um estudo de género”, precisa Marina Fuertes, docente da ESELx e investigadora da Universidade do Porto. Por cá, como a percentagem de educadores homens é diminuta (não chega aos 2%), as investigadoras decidiram alargar a observação aos progenitores. Participaram 55 educadores (dez deles homens), 45 pais (23 mães e 22 pais), 47 rapazes e 48 raparigas, entre os 3 e os 5 anos. O desafio era, em 20 minutos, levar a cabo uma tarefa com a tal mala cheia de materiais. As diferenças entre a Alemanha e Portugal fizeram-se sentir logo no início da actividade. As crianças germânicas não podem tocar em nenhum material sem antes explicarem ao educador qual é o seu projecto. As portuguesas são incentivadas a explorar a mala. “O educador alemão ajuda a criança a exercitar-se do ponto de vista cognitivo e da sua organização mental. É pedido a uma criança de 3 anos que faça uma planificação prévia. Os nossos [as crianças portuguesas] mexem em tudo”, explica Fuertes. No entanto, “as crianças portuguesas tomam bastante a iniciativa”, salvaguarda Otília Sousa, docente da ESELx e investigadora do Instituto de Educação, acrescentando que exploram os materiais, os nomeiam e verbalizam o que podem fazer com eles. “A estratégia alemã é muito boa, mas a nossa é melhor em termos emocionais. É dado tempo à criança, as respostas são afectivas, há contacto ocular, não sentem que estão a fazer uma tarefa”, descreve Marina Fuertes. E a partir daqui a atitude dos adultos também varia. Se os educadores portugueses incentivam a criança a criar sozinha (aconteceu com 21 crianças, em 50), os pais ajudam-na (18 em 45), mas a maioria substitui-a (25 em 45) e faz o projecto por ela (apenas duas crianças o fizeram a solo). Segundo a mesma observação — todos os pares foram filmados, posteriormente o filme foi visto e classificado pelos investigadores segundo uma escala tendo em conta a empatia, cooperação, desafio, atenção e comunicação —, também houve educadores que fizeram as tarefas pelos seus alunos (12), mas não tanto como acontece com os pais (25). “O adulto não deve fazer [a tarefa] pela criança ou rejeitar as suas ideias, mas pode contribuir para elas. Apesar de tudo, os educadores trabalharam muito em parceria, alguns preferiram seguir a criança mas não ‘abandonaram na tarefa’. Nalguns casos, questionar e dar várias opções à criança também pode ajudá-la a reflectir, a planear, a tomar decisões”, defende Marina Fuertes. “O género de quem está com a criança também é importante”, informa Otília Sousa. Inicialmente, as investigadoras não encontraram diferenças entre pais e educadores na interacção com as crianças. Contudo, quando se separaram os pais e os educadores de infância homens para um lado e as mães e as educadoras para o outro, surgiram diferenças: os homens tendem a ser mais competitivos, liderando a actividade e promovendo projectos paralelos. As mulheres permitem que a criança participe e promovem um trabalho colaborativo. Mais: homens e mulheres agem de maneira diferente quando ao seu lado têm um rapaz ou uma rapariga. Com as meninas, os pais homens dão-lhes a oportunidade de trabalharem em conjunto; já com os meninos, os pais fazem a actividade enquanto eles observam. “Com as mães são os rapazes os autores e a mãe apoia. Com os pais, os rapazes são introduzidos numa hierarquia muito cedo: eles são liderados pelos pais e lideram as mães. Apreendem que podem ser líderes ou liderados. Com as meninas, a parceria é maior. As raparigas são introduzidas à colaboração”, diz Marina Fuertes. Desconhece-se se este comportamento terá impacto no futuro. “A forma como os adultos comunicam com as crianças também é muito interessante”, diz Otília Sousa. Enquanto os educadores dão sugestões, os pais dão indicações. “Quando o adulto manda, o interesse e a participação diminuem; quando sugere, a criança envolve-se e elabora”, acrescenta Marina Fuertes. O elogio é outra forma de manter os miúdos envolvidos. Não o elogio “a torto e a direito”, mas o “sofisticado”, como: “‘Ensina-me como se faz’; ‘isto é muito interessante, não sabia’; ‘podes ajudar a mãe?’. É a melhor forma de os elogiar”, acredita Marina Fuertes. O resultado final do projecto também varia de Portugal para a Alemanha, diz Otília Sousa: “Nós temos mais sujeitos animados [as crianças fazem bonecos que personificam as famílias ou animais], e eles [os alemães] fazem mais objectos. ”As investigadoras observaram ainda que os pais portugueses não estão habituados a brincar com os filhos. “Toda a atitude do adulto é de espanto porque não está à espera que a criança saiba fazer”, aponta Marina Fuertes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O que era proposto neste estudo passava por construir algo: como se fosse um jogo de legos. E nem as crianças nem os pais têm o hábito de brincar assim. As crianças “são cada vez mais passivas”. “É-lhes dado espaço para brincar, mas não para fazer”, critica Fuertes. E a comparação volta à Alemanha. Por lá, nas salas do jardim-de-infância há uma mesa de carpintaria a sério, com materiais cortantes, como uma serra. Por cá, isso é impensável. Por lá, há campo para explorar, é comum haver um tanque de areia ou de lama; por cá, os tanques de areia foram retirados das escolas por falta de higiene. Por lá, os meninos podem subir às árvores; por cá nem por isso. “O lado da exploração, o lado mais físico não existe. Afastámo-nos da natureza e higienizámos a brincadeira”, nota Otília Sousa. “Até há 15 anos, no exterior havia árvores, pedras, terra; hoje temos tartan (quente no Verão e ensopado no Inverno). É preciso correr riscos e quanto mais a criança ganha essa noção, nos primeiros anos, mais dificilmente correrá riscos reais no futuro. Estamos a protegê-los tanto, que não estamos a protegê-los e já vemos crianças a correr em superfícies planas e a cair [porque a coordenação motora não está bem desenvolvida]”, lamenta Marina Fuertes. Em suma, as investigadoras concluem que é importante os pais e os filhos brincarem. Isso melhora a relação, além de que quer uns quer outros aprendem entre si. E também é importante a criança ter várias experiências: “Criar quando lhe dão espaço e regular emoções quando não têm esse espaço, por isso a complementaridade entre educadores e pais é importante”, conclui Marina Fuertes.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens escola campo educação ajuda criança sexo género estudo mulheres rapariga
As coisas boas que conhecemos em 2018
Um cruzeiro no Nilo, um roteiro vegan de Berlim, a descoberta de Brooklyn. Apanhar castanhas em Sernancelhe, ver Olhão com outros olhos ou caminhar até Santiago (com batota). Provar o Euskalduna, a comida de tacho dos cozinheiros de mão-cheia e brindar com o Noval Vintage 2016. Este foi o ano que passou, já estamos preparados para o próximo. Eis as escolhas da equipa da Fugas. (...)

As coisas boas que conhecemos em 2018
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.7
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um cruzeiro no Nilo, um roteiro vegan de Berlim, a descoberta de Brooklyn. Apanhar castanhas em Sernancelhe, ver Olhão com outros olhos ou caminhar até Santiago (com batota). Provar o Euskalduna, a comida de tacho dos cozinheiros de mão-cheia e brindar com o Noval Vintage 2016. Este foi o ano que passou, já estamos preparados para o próximo. Eis as escolhas da equipa da Fugas.
TEXTO: Há qualquer coisa de muito especial nesta guesthouse com cinco suítes e três quartos, a poucos quilómetros de Estremoz. Há a paisagem, com algo de lunar na forma como a piscina redonda surge entre as pedras de mármore, há a simpatia dos anfitriões, o francês Franck Laigneau e o português Vítor Borges, e há, sobretudo, uma relação única com o espaço interior, através da presença de uma colecção de arte de duas correntes do Norte da Europa, a Judendstil e o movimento antroposófico de Rudolf Steiner, que aqui se tornam parte da nossa estadia como confortáveis objectos do quotidiano. A. P. C. Sempre andaram por aí, pequenos frutos rodeando os cactos que nasciam selvagens nos campos. Agora, as figueiras-da-Índia e os seus frutos conhecem uma nova vida, com agricultores a apostarem na sua produção e comercialização. Fomos conhecer a plantação de José António e Patrícia, junto à Arruda dos Vinhos, no Ribatejo, para conhecer os figos-da-Índia a partir dos quais se fazem os doces e chutneys da marca Julieta – e encantámo-nos com os sumos, de intensas cores, vermelha ou laranja, conforme o tipo de figo, que se podem fazer com estes frutos tanto tempo injustamente ignorados. A. P. C. A cidade que não pára de se reinventar está rendida à alimentação vegan. Numa visita que começa pelo Cookies Cream, restaurante vegetariano que conquistou uma estrela Michelin, percorremos Berlim à procura da mais vibrante comida feita com vegetais. E não nos desiludimos: dos portuguesíssimos pastéis de nata vegan aos festivos restaurantes com comida do Médio Oriente (como o Neni), descobrimos também projectos e pessoas que lutam contra o desperdício e que apostam na sustentabilidade. Há muito a descobrir na Berlim verde – e existem até tours especializadas no tema para partir à descoberta. A. P. C. O estado de Goiás é uma pérola escondida no meio do Brasil. Longe das invasões do turismo de massas, é um espaço meio mágico, onde a poesia se cruza com a arte da doçaria (na cidade de Goiás, terra da poeta Cora Coralina, em cada porta há uma doceira, e muitas delas dizem, e fazem, poesia). E se nos aventurarmos pelas estradas de terra chegamos às fazendas onde os cowboys nos ensinam a fazer a rapadura a partir da cana do açúcar. Foi também em Goiás que encontrámos os alfenins, esses doces que em Portugal só sobrevivem na ilha Terceira, nos Açores, nos quais o açúcar se transforma em pássaros, flores e na pomba do Divino Espírito Santo. A. P. C. Olhão é Algarve mas é um Algarve muito próprio, construído ao longo dos tempos a partir de uma rivalidade histórica com Faro, que lhe foi dando uma personalidade muito própria. Muitos estrangeiros estão a descobri-la, a recuperar as casas dos bairros históricos e a animar a vida cultural local. Isso leva também os portugueses a redescobrir Olhão, voltando à renascida Sociedade Recreativa, explorando o mercado e os restaurantes em redor com a ajuda da Joana e do António da Eating Algarve Food Tours, entrando nas lojas e conhecendo os artistas locais, e instalando-se nas novas guesthouses abertas na casas de arquitectura muito particular daquela a que chamam a cidade cubista. A. P. C. No início de 2018 toda a gente falava do Euskalduna, o restaurante de Vasco Coelho Santos, no Porto. Os prémios chegavam de todo o lado, de tal forma que fomos ver o que tinha, afinal, o Euskalduna, para, com apenas um ano de vida, chamar tanto a atenção. E confirmou-se: este é um restaurante especial, um espaço pequeno, onde um jantar é quase um espectáculo de teatro (convém ficar sentado ao balcão), com um atendimento verdadeiramente personalizado e uma cozinha cheia de garra, de sabor e de identidade. A. P. C. Brooklyn é Brooklyn. Tem vida própria e cada vez mais gosta de se mostrar à vizinha Manhattan. Não apenas um skyline semeado nos últimos anos, mas uma marginal resplandescente, uma história de street art entranhada nas paredes e uma vizinhança que se cumprimenta no alpendre e que cada vez mais tem orgulho em viver do lado de cá do rio. Quem já explorou Manhattan devia experimentar perder-se em Brooklyn, neste bairro gigante onde o passo abranda e o sotaque se torna mais espesso. Há quem diga que Nova Iorque é aqui mais genuína e as pessoas menos estereotipadas, mais disponíveis para nos mostrarem a sua zona. Este é um momento interessante em que é possível ver a vida espalhar-se como sangue nas veias deste bairro gigante. L. O. C. “Os castanheiros levam cem anos a chegar ao estado adulto, cem anos a crescer, cem anos no seu ser e cem anos a morrer. " Já tínhamos estado nos fornos secretos de Sernancelhe onde, entre termos aquilinianos e lenha lançada no forno, crescem receitas de outros tempos, fálgaros, cavacas e queijadas de castanha. Voltámos este ano em pleno Outono, tempo frio e cores quentes, para vermos com os próprios olhos os frondosos soutos que abraçam a paisagem, os ouriços de três castanhas que fazem muito da cultura — e da gastronomia — popular de uma vila que não se rende às condições do interior. Sernancelhe merece estar no calendário. L. O. C. Confessamos: não bebíamos cerveja, nunca foi o nosso forte. A coisa mudou de figura quando percebemos que em Portugal a cerveja começa a ser tratada como o vinho, que há uma série de pessoas (enólogos, cervejeiros, cientistas, alguns loucos) cuja paixão é juntar ingredientes naturais, fechar tudo em barricas, provar e dar a conhecer as suas experiências, quando percebemos que a cerveja artesanal já tem uma pequena história e muitas marcas que ganham corpo. Esta é uma oportunidade de ouro para desenvolver um produto. Os pequenos produtores estão em todo o lado. E as grandes marcas já mostraram que estão atentas. L. O. C. No ano em que foram vistas estrelas Michelin longe da A1 — que o digam os irmãos Óscar e António Gonçalves que nos obrigaram a fazer um delicioso desvio até Bragança —, a Fugas decidiu invadir a cozinha e parte da vida de pessoas que não sonham ser chefs, que servem comida simples no tacho e que falam de comida como quem declama poesia ou canta ao desafio. No Porto, madrugámos ao ritmo de Luísa, a menina do Caraças, e de Miguel, que aprendeu os segredos do peixe em alto mar antes de os revelar no Rei dos Galos de Amarante. Partilhámos com eles a paixão que os move, a arte da busca dos ingredientes perfeitos, as técnicas simples que no prato fazem toda a diferença. Continuaremos a ser clientes da casa. L. O. C. É-nos difícil descrever o primeiro final de tarde a que assistimos desde o Nilo, a bordo de um dos muitos barcos-cruzeiros que o sulcam à vez com as eternas falucas – é feitiço, certamente, o sol afundando-se, o céu a tingir-se de laranja contra as margens desenhadas a palmeiras. Vamos como peregrinos, Nilo abaixo, entre Luxor e Assuão parando nos santuários de outrora para ver a história saltar dos livros e cristalizar-se no presente: todas as maravilhas e mistérios do Antigo Egipto mão a mão com o Egipto de hoje, caótico e esfuziante. E tudo numa orquestra diária bem montada: saídas do barco de madrugada, tardes lânguidas no convés, finais de dia nos mercados fervilhantes. Cinco dias inesquecíveis de cruzeiro no Nilo, que se complementam no Cairo, o grande bazar da civilização. A. M. P. Fomos a Istambul atrás dos gatos mas qualquer pretexto serve para conhecer Istambul – incluindo, nenhum. A cidade são várias cidades, dois continentes: entre eles a água, sempre a água, onde a luz não pára de brincar. Sultanahmet é o coração – da cidade e da história de Bizâncio, de Constantinopla, de Istambul – que depois bate a ritmos diferentes em Balat-Fenenr, Kadiköy, Örtakoy, Arnavutköy. . . sempre a partir da incontornável avenida Istiklal. Não perdemos uma oportunidade de tomar chá e café (turco) em cafés e esplanadas (vista sobre os míticos Bósforo e Corno Dourado), perdemo-nos a olhar o mar de Mármara vendo chegar e partir navios, deambulámos por livrarias, não esqueceremos os cheiros das ruas (flores, castanhas assadas, kebabs e dürüms) nem os sons (música sufi, tradicional, de intervenção, pop, electrónica). Recordaremos sempre as pessoas. E não nos cansaremos de regressar às ruas de Istambul, onde a Europa namora a Ásia numa história milenar que continua a surpreender os visitantes. A. M. P. Crescemos com eles, entre eles, e damo-los como adquiridos. Os que vêm de fora destacam-nos entre o que mais apreciam em Portugal e está na altura de os portugueses terem consciência da originalidade dos “seus” azulejos. Há cinco séculos que preenchem as nossas paredes, externas e internas, e servem de suporte às mais vanguardistas formas de arte. Artistas de todo o mundo escolhem as fábricas portuguesas como parceiras, há cidades (Ovar e Aveiro, por exemplo) que fazem roteiros à volta dos azulejos, e prepara-se candidatura a Património da Humanidade da UNESCO. Descobrimos que Portugal se vê ao espelho nos seus azulejos e passamos a olhá-los de forma diferente. A. M. P. Aldeias históricas e de montanha (umas e outras com abundância de história e estórias), paisagens alpinas e mediterrânicas, castelos, praias fluviais e neve. Bem no coração de Portugal, a serra da Estrela não se envergonha em nenhuma altura do ano: podem apreciar-se mais as cores de Outono ou da Primavera, o calor ou o frio, mas há qualquer coisa de único em qualquer altura do ano. No Verão, mergulhamos na água, tanta água, mas não desdenharíamos de uma lareira com vista para paisagens ora amenas ora vertiginosas. E sempre com uma mesa farta por perto: não faltarão queijo e enchidos e com isso já nos servimos. A. M. P. À primeira vez surpreendeu-nos, desta segunda conquistou-nos – e a nossa admiração. Varsóvia é uma sobrevivente nata e isso molda-lhe as feições e o carácter: não é óbvia como Cracóvia, mas se persistirmos as recompensas são imensas. Nós deixamo-nos guiar pela (turbulenta) história do século XX e não saímos incólumes: a cidade que se faz vanguarda no seu “lado B” (o bairro de Praga), assume a sua história negra (ocupação nazi) e areja complexos (comunismo). O resultado pode bem ser entranhável. A. M. P. Há cinco anos, a conversão de uma igreja em livraria desencadeou um sonho singular e inesperado: transformar uma vila histórica no coração da literatura em Portugal. Óbidos tem agora recantos de livros um pouco por todo o lado, incluindo museus, o antigo mercado de hortícolas, a escola primária sobre o monte ou nas traseiras da “loja do Américo”. Mas o projecto, que valeu a Óbidos a classificação como Cidade Criativa da UNESCO, expande-se a outros capítulos: festivais literários, residências artísticas ou tertúlias poéticas no Arco da Cadeia. E em ano de celebração dos 20 anos da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, a vila ganhou um novo espaço dedicado ao autor. M. G. Desde meados de 2017 que o Caminho Português da Costa se encontra totalmente reabilitado, com nova sinalética ao longo de percurso, mas só este ano tivemos oportunidade de percorrê-lo – ou parte, quase sempre de carro e com alguma batota à mistura, admitimos. Ao contrário do Caminho Português Central, mais conhecido e tido como o mais antigo em território nacional, esta rota jacobina até Santiago de Compostela começa no Porto e sobe a Valença sempre com os olhos cheios de mar e de rio. Baseado em registos históricos, o trajecto assinalado atravessa serras e muitas povoações, aliando o património arquitectónico ao interesse paisagístico. Para percorrer por devoção religiosa, superação física ou simplesmente pelo passeio. M. G. Há mais de 30 anos que as plantações de linho desapareceram de Janeiro de Cima, mas a aldeia quer recuperar a tradição, do campo ao tear. Não para ressuscitar a dureza daqueles tempos, antes para adaptar a economia e os saberes locais ao turismo de experiências e às novas exigências do design. Este ano, lançaram o projecto-piloto “Laboratório da Terra – O Regresso do Linho”. Além de workshops de tecelagem e de tinturaria natural, estão a plantar as sementes de linho que recolheram junto da população local e a criar um Jardim de Tingir, com índigo e tintureiras autóctones. A ideia, a longo prazo, é criar condições para agarrar as gentes à terra. Porque sem a comunidade, nada persiste. M. G. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Apesar de ser feito com uvas de uma única vinha (plantada em pé franco já depois da filoxera), quando a tradição dos grandes vintages assenta no lote de vinhos de diferentes propriedades, o Quinta do Noval Nacional é "o" Vintage. Custa bastante mais do que qualquer outro, a sua produção é pequena e só sai em anos especialíssimos. O último, da colheita de 2016 (1230 euros na Garrafeira Nacional), é um daqueles vinhos que se percebe serem extraordinários sem sabermos explicar muito bem porquê. Têm qualquer coisa de único e distinto. São vinhos com uma dimensão sensorial fora do comum, um misto de potência, sobriedade, impetuosidade, elegância e sofisticação. P. GRodeadas de montanhas e de mar, as vinhas de Waterkloof, junto à cidade de Somerset West, a cerca de 50 quilómetros da Cidade do Cabo, são o sonho de qualquer produtor. Estão no meio de um cenário perfeito e os vinhos que ali se produzem, a partir de práticas agrícolas baseadas nos preceitos biodinâmicos e no respeito pela biodiversidade local, reflectem o prodígio da paisagem. É um lugar que se visita uma vez e que nunca mais se esquece. Os tintos, sobretudo os de Syrah, são belíssimos. Mas o vinho que melhor representa a beleza da propriedade e a frescura das montanhas e do mar é o extraordinário Waterkloof Sauvignon Blanc. P. G.
REFERÊNCIAS:
“Não me lembro da última vez que comi bacalhau"
Em casa de Antónia não há aquecedores: usam-se mantas. Ela nunca conseguiu dar aos filhos o que os pais lhe deram: férias de um mês no Algarve. E a filha mais nova contou-lhe que escolheu um curso socioprofissional para não terem de gastar dinheiro com livros. (...)

“Não me lembro da última vez que comi bacalhau"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em casa de Antónia não há aquecedores: usam-se mantas. Ela nunca conseguiu dar aos filhos o que os pais lhe deram: férias de um mês no Algarve. E a filha mais nova contou-lhe que escolheu um curso socioprofissional para não terem de gastar dinheiro com livros.
TEXTO: Esta é a quarta de uma série de reportagens sobre pobreza. Acompanhe nos próximos dias o dossier O que é ser pobre hoje em Portugal?“Antónia” não quer dar a cara nem o nome por causa dos filhos. Aos 44 anos, é mãe de duas raparigas — uma com 20 e outra com 16 — e de um rapaz de 23. Os mais velhos trabalham e pagam os seus estudos: a filha está numa cadeia de hambúrgueres e estuda Belas Artes; o filho trabalha em mecânica e estuda na mesma área. Ambos recebem mais ou menos o ordenado mínimo mas não contribuem para as despesas da casa porque os pais não deixam. O marido, “Filipe”, explica porquê: “Sinto que não há direito. É roubar-lhes recursos, recursos que eu nunca tive. ” Filipe, filho de trabalhadores rurais, teve de se tornar o sustento da casa onde vivia com os pais. “Quando nos casámos, no primeiro mês ele ainda entregou o dinheiro à mãe. E isso ficou sempre com ele: ‘Com os meus filhos não vai acontecer’”, comenta Antónia. Além dos três filhos, no apartamento de quatro assoalhadas, em Évora, também vive o namorado da filha. Estão de casamento marcado. Ele já é da família. Há ainda o cão, que começa por ficar desconfiado com quem chega, mas depois só quer brincar, “metendo-se” na conversa frequentemente. Antónia oferece-nos um café. A sala é pequena. Mas há lugar para um móvel em formato de bar, sofás, uma estante para televisão e alguns livros. É aqui que conta que está desempregada e que de vez em quando faz limpezas, passa a ferro, faz traduções, “o que apanhar”; ele trabalha numa churrascaria, a ganhar o salário mínimo — mostra o recibo, 537 euros líquidos, descontada a Segurança Social. Três dias por semana trabalha 14 horas por dia e, nos outros três dias, 12 horas. São seis dias por semana, sem direito a subsídios. Dizem que sabem que o patrão dele não está a cumprir a lei, mas “mais vale um passarinho na mão do que dois a voar”. Os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, relativos a 2017, mostram que há um perfil de famílias especialmente atingido pela pobreza: as que são constituídas por dois adultos e três ou mais dependentes. A percentagem das que vivem com rendimentos abaixo do limiar de pobreza é de 31, 6%. Para a população em geral, independentemente dos agregados, a taxa de risco de pobreza é de 17, 3%. Mesmo assim, foi neste grupo das chamadas “famílias numerosas” que a taxa de pobreza mais baixou em relação ao ano anterior (era de 41, 4% em 2016). A situação desta família acaba por ser uma variante que as estatísticas não apanham. Técnica de acção educativa do ensino especial, Antónia tem o 12. º ano e formação profissional na área, mas a sua carreira profissional foi feita em diversos empregos, sobretudo em Évora, entre fábricas e apoio a idosos. Há 20 anos trabalhava para uma fábrica de componentes electrónicos, quando engravidou da segunda filha — e foi despedida 15 dias antes de ela nascer. “Fui para tribunal e não consegui nada”, conta. Foi em vão gastar metade do ordenado a pagar ao advogado. A filha nasceu e ela arranjou emprego a tomar conta de um bebé recém-nascido, enquanto a sua menina de quatro meses ficava com uma ama. “Foi esquisito porque tinha de deixar a minha filha para ir tomar conta de outra. Isso causou-me muitos problemas de consciência. É das coisas que mais me arrependo na vida. Na altura não era tanto o precisar de dinheiro mas mais aquela ideia de ter de ganhar dinheiro. ”Quando engravidou pela terceira vez trabalhava noutra fábrica — onde ficou seis anos, sem nunca passar a efectiva. “A história repetiu-se, mas foi pior. Fui entregar os papéis para o parto e fui despedida. Aí pagaram indemnização, vim com algum dinheiro. Fiquei muito revoltada. ”Feitas as contas com o que teria de pagar para ter as filhas na ama e na creche, decidiu ficar em casa com elas. “Nessa altura fiz alguns erros — sabe que isto da pobreza às vezes também tem a ver com algumas asneiras pelo caminho. Estávamos para comprar casa mas como fiquei desempregada, fiquei com medo. Tinha um familiar que me disse: ‘Trabalho numa quinta, vocês vêm para aqui, o dono deixa-vos ocupar uma casa, fazem obras e ninguém vos manda embora. ’”Acabaram por gastar todas as economias nessa casa, mais a mão-de-obra do próprio marido, pedreiro. Viveram ali uns dez anos. Só que na altura das partilhas os filhos dos donos discordaram da opção dos pais e eles foram despejados. “Há oito anos, quando tivemos de começar a pagar renda, é que comecei a sentir as dificuldades. Nessa altura a minha vida começou a decair, bateu no fundo”, diz. Foram para um apartamento. Pagavam 450 euros de renda, estava ela desempregada e ele a trabalhar como pedreiro. Veio a crise, que tanto afectou a construção civil, e o marido começou a não ser pago pelo patrão. Ia fazendo biscates “aqui e ali”, e o dinheiro sem chegar a casa. “Num mês pagávamos a renda e noutro a água, luz e gás. Íamos gerindo assim. ”Quando um dia foi pedir o Rendimento Social de Inserção, uma prestação social destinada aos mais pobres, tinha o filho mais velho 12 anos. E a assistente disse-lhe: “Se não pode trabalhar, dê-os para adopção. ” Antónia teve um choque. Desistiu de pedir apoio. “Fiquei aterrorizada que me tirassem os filhos a qualquer altura. ”As dívidas iam-se acumulando. “Várias vezes, em desespero, ele [Filipe] começou a bater à porta dos vizinhos e a perguntar se queriam que fizesse alguma coisa. ”Quase sempre calado a ouvir a mulher — que hoje está habituada a falar em público como voluntária da Rede Europeia Anti-Pobreza —, Filipe conta que “as pessoas ajudavam”. “Fomos sempre vistos como a família que não cruza os braços. ”Entraram numa situação de conflito com o senhorio e o caso foi a tribunal. Durante um período, dormiam com o coração na boca à espera que lhes batessem à porta para os despejar. Antónia chegou a dizer aos filhos: “Tenham uma mochila preparada”, para o caso de ser preciso saírem de repente. E não pediam apoio? Fizeram candidatura para habitação social. Foi-lhes atribuída uma casa. “Mas não fui consultada para coisa nenhuma. Não me perguntaram se queria aquela casa, se reunia as condições que achava correctas para a minha família. Disseram: ‘Tem aqui a chave. ’” Quando foi ver a casa, não se conteve. “Desatei a chorar. O meu marido disse-me: ‘A gente não fica aqui. ’” Não ficaram. Foi uma sensação de humilhação e a partir daí Antónia “teve a certeza de que os serviços públicos” não a “iam ajudar em nada”: “As pessoas nos cargos mais baixinhos são os que mais nos humilham e maltratam. É o pequeno poder que afinal acaba por ser maior. ” Depois, analisa, a pessoa começa a pensar: “‘Sou pobre, não tenho direito a ir pintar as unhas, a ir ao cabeleireiro. ’ Acaba por ficar um bicho. E isso afecta a procura activa de emprego. Cheguei a um ponto que me senti tão humilhada que pensei: ‘A gente aluga uma cave ou uma garagem e reorganizamo-nos. ’”Não foi preciso chegar aí. Quando se mudaram para o apartamento onde hoje estão, precisaram de pagar uma caução, e entre amigos e a irmã conseguiram-na. “Foi muito sofrido. No dia em que fechámos a porta, os miúdos estavam deitados e perguntámos: ‘O que é que precisamos de fazer para não voltarmos aqui?’”Sentem que são uma família pobre? “Somos ricos em muita coisa, só não temos dinheiro. A pobreza é subjectiva, se me comparar com os meninos da Etiópia se calhar sou rica, tenho o que eles não têm. ”A falta de dinheiro ocupa uma grande parte das suas vidas: “Nunca estamos tranquilos. ” Por exemplo, esta entrevista ao PÚBLICO foi feita no dia 3 de Novembro e o ordenado de Filipe já tinha desaparecido: 400 euros foram para a renda, o que representa 74% do rendimento, quase o dobro daquilo que é estimado como desejável (os encargos com a habitação, e que incluem despesas com água, luz e electricidade, não devem exceder 40% do rendimento). “Recebe-se, paga-se as contas e fica-se sem dinheiro. Depois vou trabalhando para pôr o comer na mesa. E não há espaço para mais nada”, diz. As refeições gerem-se com algo que dê para almoço e jantar, agarra-se no que estiver em promoção. “Não me lembro da última vez que comi bacalhau. Peixe é raro porque é muito caro. Normalmente compro a tintureira, umas duas postas, e faço para dar para almoço e jantar. ” Quando o marido traz frango de sobra da churrascaria, comem-no quente e o resto é desfiado e usado em outros pratos, para render. “O que gosto de comprar quando há dinheiro? Fruta. Adoro morangos. Habituei-me a desistir de tanta coisa. ”Em casa não há aquecedor: quando está frio usam-se mantas ou então “vai-se para a cama”. Sente muita falta de fazer férias, algo que há doze anos não sabe o que é. Porque enquanto viveu em casa dos pais — ele polícia e ela cozinheira — teve “sempre um nível de vida médio”: “Íamos um mês de férias para o Algarve, uma coisa que nunca consegui dar aos meus filhos. ” A última vez que foi de férias com os filhos? Há 14 anos, quatro dias. “No ano passado fui um dia a Tróia. ”Não são caso isolado: em 2018, 41, 3% das pessoas em Portugal viviam em agregados sem capacidade para pagar uma semana de férias por ano fora de casa e 19, 4% das pessoas viviam em agregados sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida. Hoje, custa-lhe ter descido tanto na escada social. Conhece os seus direitos, mas por enquanto isso não é suficiente para sair da pobreza. Mas há luz ao fundo do túnel: têm um projecto de criação do seu próprio emprego. “Se correr tudo bem, pode ser o salto. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. À sala chega a filha mais nova para levar o cão que ladra. Antónia conta que no dia em que soube que ela tinha escolhido um curso socioprofissional para “não ter livros e não ter despesa com refeições” ficou comovida. “Magoou-me. Mas fez-me orgulho a menina que ela é, ter essa preocupação. Os meus filhos aprenderam a viver com as adversidades e a dar-lhes a volta. ”Já no final da conversa de duas horas, comenta sobre a opção de ser um caso de “pobreza escondida”. “As pessoas sabem das nossas dificuldades mas a gente não vai para rua dizer: ‘Sou pobre. ’ Porque as pessoas deixam de nos ver. Passamos a ser o coitadinho, o preguiçoso que não faz nada para mudar e que é pobre porque é indolente. ”As crianças e jovens até aos 18 anos continuam a ser o grupo etário mais vulnerável. O risco de pobreza ou de exclusão social é maior do que em qualquer outro grupo. A intensidade da pobreza também, afirma Amélia Bastos, especialista em pobreza infantil. “As crianças são o grupo que vive em agregados onde existe uma maior insuficiência de recursos. Isto tem consequências muito significativas no curto, no médio e no longo prazo, no investimento na sua escolaridade, no seu desenvolvimento físico e cognitivo. Compromete as suas expectativas em termos de futuro e alimenta o ciclo intergeracional da pobreza”, refere. Ainda assim, a situação melhorou de 2016 para 2017 e a taxa de pobreza entre os mais jovens aproximou-se da registada entre os adultos e os idosos, acrescenta. Passou de 20, 7% para 18, 9%. Globalmente, os progressos registados ao nível da pobreza e da pobreza infantil em particular não são alheios às medidas de política social levadas a cabo, nomeadamente em termos de Rendimento Social de Inserção (RSI), abono de família e subsídio de desemprego, elementos cruciais para o nível de recursos monetários das famílias. A análise da pobreza infantil faz-se através do rendimento do agregado familiar e não das próprias crianças, explica Amélia Bastos, e isso significa que não se concentra no “interesse exclusivo da criança”, em “indicadores que são específicos do seu bem-estar” como “as condições que tem para estudar, para dormir, a sua saúde ou a ocupação dos seus tempos livres”. Ou seja, a avaliação que se faz da situação da pobreza entre os menores de 18 devia ser melhorada, defende. Comparando com a União Europeia, Portugal é dos países que apresenta uma menor taxa de mobilidade social de pais para filhos e dos próprios indivíduos, prossegue Amélia Bastos. Isso tem como consequência uma maior desigualdade de oportunidades em Portugal. “A fraca mobilidade alimenta o ciclo de pobreza. ” Como é que se pode resolver? “Quebrando o ciclo, dotando os meios mais desfavorecidos de desigualdade de oportunidades no sentido positivo. ”De resto, não têm existido medidas estruturais de combate à pobreza, analisa, “o que há são pensos rápidos”. “Não se resolve de um ano para o outro. E em relação à pobreza infantil ela é auto-alimentada. Sem quebrar essa auto-alimentação é difícil promover uma redução consolidada do problema. Mas é uma questão de justiça social que a todos diz respeito. ”
REFERÊNCIAS: