Todo um mundo à sua espera
Joana de Verona tem um nome que se retém e uma presença que toma conta de qualquer ecrã ou de qualquer palco. Em As Mil e Uma Noites, Volume 2: O Desolado, de Miguel Gomes, em estreia a 24 de Setembro, não há como escapar ao seu magnetismo. (...)

Todo um mundo à sua espera
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Joana de Verona tem um nome que se retém e uma presença que toma conta de qualquer ecrã ou de qualquer palco. Em As Mil e Uma Noites, Volume 2: O Desolado, de Miguel Gomes, em estreia a 24 de Setembro, não há como escapar ao seu magnetismo.
TEXTO: As mãos enfiadas uma na outra, os pés sem assentarem inteiramente no chão, a cabeça mal se conseguindo manter direita entre os ombros. Diante de uma assistente social, Vânia reclama como pode — envergonhada, humilhada, com uma argumentação frágil e repetitiva — por quaisquer trocados que permitam variar o cabaz que ela e o namorado recebem como ajuda essencial a uma sobrevivência precária. De pouco vale. Do outro lado, Vânia encontra desconfiança, inflexibilidade, escrupuloso cumprimento das regras. Parece uma espiral que nos atira de volta para o ponto de partida: duas pessoas imploram por algo que as traga à tona da dignidade, podendo transportar-nos facilmente para a situação óbvia de um país que pede auxílio a uma instituição. Mas logo a atenção nos devolve para a situação concreta e para o facto de cada colectivo ser formado por indivíduos com nome próprio. No caso, Vânia e Vasco. Uma vagina ensanguentada, dois corpos estendidos e exaustos numa cama, até que a rapariga se levanta e atravessa nua, com passos titubeantes, o corredor que a leva até à cozinha. Acabou de perder a virgindade e telefona à mãe, uma juíza prestes a dirigir um insólito tribunal popular, para lhe relatar a novidade como um corriqueiro acontecimento do seu dia e para lhe pedir conselhos sobre o bolo a confeccionar com que quer surpreender o homem que a desflorou assim que este acordar. A mãe avisa-a de que não deve passar a responsabilidade do bolo para a empregada — se começa por aí a delegar em outras a responsabilidade pelo seu homem, onde acabará? — e descansa-a quanto ao sexo futuro, que será certamente mais satisfatório à medida que for aprendendo a relaxar o períneo. Vânia e a filha da juíza são as duas personagem interpretadas por Joana de Verona em As Mil e Uma Noites, Volume 2: O Desolado, segundo tomo da trilogia de Miguel Gomes inspirada nas histórias de Xerazade e na crise financeira e social que se abateu sobre o país desde 2008, que se estreia a 24 de Setembro e foi recém-anunciado como candidato português à nomeação para os Óscares. As duas personagens sugerem a amplitude de registos explorada por Gomes no seu tríptico, vogando entre a imersão na realidade, reagindo a quente às notícias peneiradas por uma equipa de jornalistas em que se inspirou para várias das histórias de As Mil e Uma Noites, e a exploração do absurdo, da absoluta fantasia a caminho do surreal em que alguns dos episódios embarcam. Quis o acaso que as participações de Joana de Verona nos blocos Os Donos de Dixie e As Lágrimas da Juíza surgissem ambas no mesmo volume, reforçando ainda mais a soberba versatilidade da actriz, convocando o risível e o doloroso com igual assombro, como se nos seus gestos e nas suas palavras encontrássemos, à vez, uma verdade a caminho do absurdo e uma outra verdade em direcção à desesperança. Mas poder-se-ia até ter dado o caso de Joana não chegar sequer a integrar nenhum dos segmentos da obra desmedida que Miguel Gomes estreou no Festival de Cannes. Quando o realizador se cruzou com a actriz nas imediações da Avenida de Roma — o que faz dos dois vizinhos —, convidou-a a participar num “filme híbrido de mistura de documentário e ficção profunda, onírica”, recorda Joana de Verona. Para ela, que tinha investido num curso de realização de documentários nos Ateliers Varan, em Paris, enquanto vivia (e vive) de dar vida a personagens ficcionais, o isco era perfeito. Só que não havia certezas. Dado o processo peculiar de rodagem de As Mil e Uma Noites, com um guião que se escrevia em resposta ao que a realidade portuguesa propunha no seu dia-a-dia, a única garantia de Joana era a de que o seu nome fazia parte de uma bolsa de actores que se encontravam de sobreaviso, podendo ser chamados a qualquer momento — uma, duas, três vezes ou até nenhuma — pela produtora O Som & a Fúria para começarem de imediato as filmagens (que se prolongaram por um ano). Joana de Verona ficou assim “obrigada” a uma espécie de termo de identidade e residência: sempre que se ausentasse de Portugal devia informar a produção dos períodos em que não estaria no país. “Como na altura estava a fazer viagens a Paris regularmente”, recorda, “todos os meses avisava que saía. Não sabia quando [seria chamada] nem para que personagem. Era tudo uma grande incógnita. ”Até que, como sempre parece acontecer nestas contas do destino, o telefonema que a convocava para as filmagens de Os Donos de Dixie chegou, precisamente, quando Joana de Verona iniciava, em Paris, os ensaios para 1er Avril, um espectáculo de teatro e dança de Yves-Nöel Genod no Théâtre des Bouffes du Nord. O acordo com o coreógrafo francês era exactamente esse: havia um compromisso prévio e prioritário com Miguel Gomes que a actriz devia respeitar. E assim foi. Recebida a chamada, fez a mala e meteu-se num avião. Adeus, Paris; olá, Santo António dos Cavaleiros. Em Outubro de 2013, espalhou-se pelos jornais a notícia fatídica do pacto de morte de um casal de 53 e 60 anos, que se suicidou após anos de depressão e alegados problemas de alcoolismo. Os corpos foram descobertos no apartamento onde viviam passadas já duas semanas sobre a sua morte, quando os vizinhos, estranhando a sua ausência, fizeram descer um espelho pela janela do prédio, até alinharem o olhar com a imagem dos dois deitados na cama, em condições que não deixavam dúvidas quanto ao seu estado. Essa descrição é transformada numa das cenas de Os Donos de Dixie, cabendo a Joana de Verona e Gonçalo Waddington o papel do casal amigo a quem, de facto, os dois suicidas entregaram o seu cão. é precisamente nome de cão e é a ele que cumpre o papel de ligar vivos e mortos, gente vencida pela dureza da vida e gente a tentar não ser sufocada pelo presente, sem conseguir, no meio daquela selva de prédios, vislumbrar qualquer ponta de futuro. Quando Joana de Verona recebeu o guião e tomou contacto com o casal de toxicodependentes que formaria com Waddington, sabendo que havia uma Vânia e um Vasco de carne e osso (que podem ou não ter estes nomes), perguntou de imediato a Miguel Gomes se poderia conhecê-los. “Não necessariamente fazer-lhes perguntas”, explica à Revista, “mas estar presente, queria ouvir como ela fala, percebê-la, vê-la, conhecê-la. O Miguel disse-me que não, não tinha interesse em que os conhecêssemos porque não queria que nos apegássemos a nada em concreto, queria que as personagens fossem criações nossas. ”Se esse contacto com a realidade foi gerido de forma a não escravizar o cinema que dali resultaria, a proximidade à história e ao contexto em que aconteceu era, contudo, crucial. Tanto assim que o apartamento que se vê em O Desolado fica no mesmo prédio onde o suicídio a dois teve lugar. Para a actriz, essa foi uma deixa a que desde logo se podia agarrar. “Gosto muito de trabalhar com o espaço real, ajuda-me muito. E filmando em Santo António dos Cavaleiros todos os dias durante duas semanas, de dia ou de noite, ajudou também a perceber o espírito daquele bairro, a dinâmica das pessoas que moram ali. ”Por outro lado, a presença dos actores profissionais é, em cada segmento, um enxerto de ficção nesse território do real. Quando Joana de Verona contracena com uma não-actriz no papel de assistente social, no momento em que reivindica um cabaz mais variado, não é a si que cabe a condução da cena, mas antes a resposta improvisada tendo em conta o objectivo por que tem de se bater. “Não são textos estudados entre actores, o que obriga a sair um pouco da zona egocentrada do actor — que é uma coisa que me aborrece um bocado”, confessa. “Foi muito bom estar ali e ouvi-la no momento, estar com ela, dar-lhe o foco e deixá-la gerir a cena. ” Takes houve em que Joana reagiu de forma mais exaltada e enervada, mas a interpretação escolhida acabou por recair, sintomaticamente, no take em que a sua resistência se torna mais contida, “mais submissa”. Estas experiências em que a sua preparação como actriz é limitada e exige uma resposta imediata às situações propostas agradam a Joana de Verona sempre que roçam uma abordagem documental. O caso mais extremo terá acontecido com a rodagem de O Touro, da realizadora brasileira Larissa Figueiredo, que a actriz descreve como “um filme muito antropológico”, exibido no Festival de Locarno em 2014 numa versão longa e estreado oficialmente em Roterdão. Quando Figueiredo se encontrava a pesquisar sobre cultura popular no interior do estado do Maranhão, encantou-se com a lenda de que D. Sebastião, após desaparecer na batalha de Alcácer-Quibir, teria não morrido mas fugido com as suas posses para o litoral maranhense. A realizadora procurou uma actriz portuguesa que fosse largada naquelas terras, relacionando-se de forma virgem com a terra e com a população local de 450 habitantes. Aquilo que então ignorava é que foi em São Luís do Maranhão que, há 25 anos, Joana de Verona nasceu, durante um período em que os pais trabalhavam na região. Foi um encontro “cósmico”, disse-lhe Larissa. Foi no regresso ao Brasil, aliás, que Joana se iniciou na representação, quando voltou em 2000 para viver no Rio de Janeiro durante três anos e meio. Fez cursos de teatro com Maria Lúcia Priolli e Andreia Avancíni, pisou pelas primeiras vezes o palco e participou na mini-série da TV Globo Presença de Anita. Quando chegou a Portugal, em 2004, filmou Sonâmbulo, Um Filme de Sombras, de João Trabulo, trabalhou com Bruno Schiappa no Chapitô e integrou o elenco da série juvenil Morangos com Açúcar. Daqui, rapidamente passaria para o cinema de João Botelho e para o teatro de Carlos Avilez, Bruno Bravo e Mónica Calle. A naturalidade com que saltita entre teatro, cinema e televisão faz-se de uma inquietude que será, porventura, consequência do nomadismo dos seus primeiros anos de vida. Há algo de verdadeiramente febril na forma como vive a profissão e se entrega a vários projectos em simultâneo. Um par de dias na sua pele pode corresponder a uma sequência frenética como esta: “Estive há tempos em Paris a apresentar a curta-metragem francesa Je Suis Présent [de Maxance Germain-Vassilyevitch]. A apresentação foi de manhã e apanhei logo um comboio para Roterdão onde estive umas horas, na estreia d’O Touro. Às três da manhã fui de comboio para Amesterdão, às seis apanhei um voo para Portugal, ao meio-dia estava a gravar a novela [A Única Mulher, na TVI] e nessa noite estava a ensaiar com a Mónica [Calle]. Estava muito cansada, sim, mas sou bastante workaholic, durmo pouco e tenho muita energia. E esta área é tão pouco estável que, às vezes, se pode passar um grande período sem trabalho e, outras vezes, aparecem quatro coisas ao mesmo tempo. ”Claro que nem sempre é assim. E não apenas em períodos de menos trabalho. Joana de Verona sabe que “quando se é protagonista de um filme que ocupa os dias todos, completamente absorvida por aquele universo, se calhar não é necessário fazer outra coisa”. Foi o que aconteceu, por exemplo, com O Touro, outra experiência invulgar em termos de salto para o desconhecido. “Não sabia nada do guião. E estava completamente impedida — um impedimento consentido da minha parte — de o ler. A realizadora nem gostava que saísse sozinha da minha casa e andasse pela ilha porque receava que eu começasse a tirar informações com as pessoas ou criasse relações. ” A intenção de Larissa era que Joana reagisse espontaneamente perante as câmaras diante de cada situação. Chegou, por exemplo, a ser vendada para não saber para onde era levada e o que lhe ia acontecer, só foi autorizada a mergulhar duas semanas depois da chegada para que esse momento ficasse registado em filme e ignorava a cena de ciúmes em que se veria metida quando falava com um autóctone (tudo combinado com a realizadora). Aquilo que lhe era pedido em O Touro era, afinal, a sua total disponibilidade, actriz e personagem coincidentes na descoberta ávida do mundo e das pessoas à sua volta. Mas o rigor extremo de que a sua presença no filme foi alvo levantou-lhe também algumas reservas. “Também gostava de ter participado no processo criativo”, desabafa. “Às vezes estávamos todos a almoçar juntos, depois de almoço eles queriam reunir sobre o plano da tarde ou do dia seguinte e eu tinha de ir embora para não ouvir. Não podia estar presente nas reuniões nem dar ideias. Tinha de ir ao sabor da maré. ”Larissa Figueiredo descobriu Joana de Verona ao ver Como Desenhar Um Círculo Perfeito, filme de Marco Martins, rodado quando a actriz tinha apenas 18 anos e que a catapultou para a primeira linha do cinema português. A história de um amor incestuoso partilhado com o irmão (Rafael Morais) deixaria marcas profundas no seu percurso. E não apenas as nomeações e prémios no Estoril Film Festival, no Rio de Janeiro International Film Festival, nos Globos de Ouro ou no Cineport – Festival de Cinema do Brasil. “Quando se tem a ‘mãe’ Beatriz Batarda aos 18 anos, bebe-se tudo, suga-se tudo, é um privilégio muito grande vê-la de perto porque ela conjuga aquilo que é perfeito um actor conjugar: uma inteligência cénica com uma intuição e uma técnica brutais, tudo em harmonia, e isso é muito bonito de ver e de aprender. ”A partir do filme, Joana integrou também uma certa família artística reunida em torno de Marco Martins, participando no espectáculo Music Around Circles (com Bernardo Sassetti) e, em 2013, na peça de teatro Rosencrantz e Guildersten Estão Mortos, de Tom Stoppard (com Beatriz Batarda, Gonçalo Waddington, Nuno Lopes…). “[Como Desenhar…] Teve também um impacto muito grande em mim, enquanto actriz e sobretudo enquanto jovem”, acrescenta. “A personagem Sofia, de 16 anos, está a largar a meninice e a tornar-se mulherzinha, a descobrir toda a questão sexual; eu, aos 18 anos, estava a largar toda a adolescência e a avançar para a idade adulta, estávamos ambas em fases diferentes mas em períodos de transição. ”É também neste ponto de transição que encontramos a personagem que Joana de Verona interpreta no segmento As Lágrimas da Juíza, no filme de Miguel Gomes. Para a cena com um “tom algo mole, meio girly e naïf”, diz, ajudou a filmagem entre as três e as seis da madrugada, quando o sono e o cansaço se apoderavam da equipa. Toda a cena acontece com Joana em nu integral, mas não foi essa a verdadeira dificuldade com que se deparou — “cenas de mulheres e homens nus no cinema existem muitas e faz parte”, relativiza. “O que se tem de preparar mais naquela cena é esta coisa de o discurso ser muito absurdo, porque estou a falar de um bolo, de uma virgindade e de não deixar a empregada fazer o bolo senão vai roubar o futuro marido, um discurso pouco realista mas dito de uma forma completamente banal que torna aquilo um bocado cómico. ” É um primeiro assomo de choque e absurdo que depois se estende a uma cadeia de crimes desfiados na assembleia popular a que a juíza preside, e em que se transita abruptamente do espaço íntimo para o espaço público. Apesar desse langor de horas tardias, a cena é dominada pela actriz com um magnetismo e uma solidez espantosos. Se a “vertigem e dificuldade” a atraem no teatro — “é como um salto de pára-quedas em que não se pode voltar atrás, não se pode parar, é um voo e um transe, um êxtase muito grande”, descreve num repente de entusiasmo — e gosta da eficácia na televisão, o cinema desperta-lhe um lado mais melancólico, talvez porque “exige mais uma bolha contemplativa, em que se pode estar duas horas à espera que a luz seja feita ou 20 minutos com o olhar focado num mesmo sítio”. É isso que tem procurado ao lado de mestres como Raoul Ruiz (Mistérios de Lisboa) ou cineastas emergentes como João Salaviza (Rafa), escolhas que faz sempre em função da identificação com realizador, equipa e guião. “Não tem sido uma prioridade ganhar milhões nem ser hiperfamosa e dar 500 autógrafos a cada passo”, diz. “Nunca senti a pressão de ter de ser protagonista numa novela, de aparecer nas revistas, de ter de fazer campanhas publicitárias ou de ser muito conhecida em Portugal. E, como tenho trabalho, isso dá-me a liberdade de escolher. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Escolher e ser escolhida, é nesse jogo constante que se joga a sua vida. Recentemente, Joana de Verona chegou à derradeira fase do casting para a protagonista da próxima longa-metragem do franco-tunisino Abdellatif Kechiche (A Vida de Adèle, O Segredo de Um Cuscuz), na sequência de um convite que o realizador lhe fez durante um almoço informal em Paris. Depois de uma difícil prova de leitura em francês arcaico, o papel foi entregue a uma outra actriz, tendo ficado em aberto uma eventual participação secundária de Joana no filme de época que Kechiche prepara. Mas é de esperar que as oportunidades, agora que tem agente em Paris, continuem a avolumar-se. Até porque, sempre que puder juntar os seus dois maiores prazeres — a representação e as viagens —, não deixará de aproveitar. Quando Joana nasceu, o pai apontou aleatoriamente para um mapa-mundo e o dedo caiu sobre a cidade italiana de Verona, completando-lhe o nome de baptismo. Num certo sentido, é esse mesmo gesto que a actriz vai repetindo a cada novo passo, espalhando a mão pelo mundo.
REFERÊNCIAS:
E no princípio estavam as avós
A antropóloga Kristen Hawkes tem vindo a estudar o papel das avós na sociedade humana e nas espécies que nos são mais próximas. E conclui que é por causa da existência destas cuidadoras extremadas que temos evoluído para a monogamia, uma tese que colhe discórdia entre os antropólogos (...)

E no princípio estavam as avós
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A antropóloga Kristen Hawkes tem vindo a estudar o papel das avós na sociedade humana e nas espécies que nos são mais próximas. E conclui que é por causa da existência destas cuidadoras extremadas que temos evoluído para a monogamia, uma tese que colhe discórdia entre os antropólogos
TEXTO: O que fazem as avós? Alimentam-nos, dão-nos mimos e estão constantemente a dar-nos a volta com perguntas sobre o nosso estado amoroso. Mas às avós pode também estar reservado outro papel, pelo menos de acordo com a antropóloga Kristen Hawkes, que diz serem elas a força motriz por detrás da evolução de grande parte da sociedade humana. Hawkes, especialista em evolução humana e biologia social na Universidade do Utah, é autora de vários estudos sobre a “hipótese avó”, na qual defende que muitas das características que nos distinguem dos nossos antepassados macacos se devem ao papel de cuidadoras extremadas que são as mães das nossas mães. No último estudo, que foi publicado há uma semana na Proceedings of the National Academy of Sciences (também conhecido como PNAS, a revista científica da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos), Hawkes e os outros co-autores explicam como a “instituição avó” é um factor crucial na disseminação da monogamia. A explicação tradicional da evolução humana diz que, quando as avós começaram a ajudar a criar os netos, as filhas ficaram libertas para procriar mais e em períodos mais curtos de tempo. Essas avós de longa duração acabaram por ter mais netos e estes, por sua vez, acabaram por herdar os genes dessa longevidade e assim ajudaram ao aumento da esperança de vida. O homem, por sua vez, aproveitou as vantagens de ter uma vida mais longa e de passar a usufruir de redes sociais mais alargadas e optou pelo acasalamento com uma única mulher, e daí as relações humanas se terem tornado monogâmicas. Não admira que sejam sempre as avós a lembrar-nos de que ainda não casámos!A sequência de eventos que liga a existência das avós à relação monogâmica pode ser rebuscada mas é sem dúvida atractiva. Começa, como defende Hawkes, com um povo do Norte da Tanzânia, os Hadza. A antropóloga começou a estudar os Hadza no anos 1980. São dos últimos caçadores-recolectores do mundo e desde há dezenas de milhares de anos que mantêm o mesmo estilo de vida. Não se dedicam à agricultura mas à caça, à imagem do que já faziam os seus antepassados, e são por isso uma raríssima janela aberta sobre o passado pré-histórico do homem, como justifica a antropóloga. Uma das muitas coisas que tanto Hawkes como os seus colegas acabaram por concluir é que as anciãs do povo Hadza eram “fantásticas recolectoras de tubérculos”, diz a antropóloga. “Era nas mãos delas que estava a tarefa de encontrar este precioso recurso alimentício. Para os mais pequenos, precisamente por serem ainda pequenos, seria difícil descobrir os tubérculos, mas elas faziam-no e davam-nos a comer às crianças. ” Para nós, que temos avós que insistem em encher-nos o estômago sempre que as visitamos, esta ideia pode parecer até mundana. Mas foi uma espécie de momento “eureka” para Hawkes. Como qualquer documentário sobre natureza pode atestar, as prioridades no mundo animal são: 1. ) procurar alimento; 2. ) procurar companheiro. Dito isto, percebe-se que, no mundo animal, a presença de uma fêmea na comunidade já depois de ter passado o seu tempo fértil é uma anomalia. Entre os primatas, os humanos são a única espécie que continua a viver para além da menopausa. A possibilidade de procriar é o que comanda a evolução de uma espécie e não há qualquer razão evolucionista válida que justifique a permanência de elementos femininos que há muito passaram o seu apogeu como reprodutoras. A não ser, como sugere Hawkes, que passem ao papel de avós. Em 1997, Hawkes e os seus colegas antropólogos James O’Connell e Nicholas Blurton Jones publicaram um estudo no jornal Current Anthropology no qual defendiam que a esperança de vida na mulher tem aumentado e evoluído na medida em que foram desenvolvendo um papel mais significativo enquanto cuidadoras dos mais novos. Com uma mãe-avó por perto, a filha podia ter mais crianças e com gravidezes mais próximas, pois, ao invés de esperar que o mais novo cresça e seja independente até ter o próximo, contava já com essa preciosa ajuda (entre os primatas, os humanos são também os únicos que dão à luz uma segunda cria antes de a primeira estar completamente desenvolvida). Quanto mais uma mulher viva além do seu apogeu reprodutor, mais netos terá a possibilidade de vir a criar. Quer isto dizer que as avós de longa duração acabaram por ter descendências mais alargadas e também a possibilidade de disseminar os seus genes da longevidade. O resultado ao longo de milénios foi que a esperança de vida da mulher para além da idade fértil multiplicou-se por décadas. Em 2012, Hawkes esteve a trabalhar com uma especialista australiana em estatística para arranjar um modelo matemático para estudar este processo. E chegaram ambas à conclusão de que ao longo de 60 mil anos as avós quase conseguiram duplicar a esperança média de vida por comparação com os nossos primos macacos mais próximos. Com este resultado — humanos que vivem muitos mais anos do que alguma vez aconteceu na história da evolução humana —, Hawkes fez-se esta pergunta: então e o que se passa com os homens?Ao contrário da mulher, a fertilidade masculina não entra em declínio por volta dos 40 anos. Significa isto que as sociedades humanas têm tido muito mais homens férteis do que mulheres com quem estes possam acasalar. E isto foi uma grande mudança desde as sociedades matriarcais dos nossos antepassados e familiares primatas, nas quais normalmente o número de fêmeas em idade fértil ultrapassava o dos machos (numa linguagem das ciências da natureza, os machos tendiam a passar mais tempo a caçar e na luta, correndo por isso muito mais riscos de morrer prematuramente). Há três modos de os machos maximizarem a sua descendência de acordo com aquilo que manda a natureza, e que é o prolongamento da espécie: podem tentar acasalar com o maior numero possível de fêmeas; podem ficar com uma só fêmea e tentar impedir que outros machos se aproximem dela; ou podem ainda investir tempo e recursos na educação das crias que já tenham. Na maioria das espécies, o que se verifica é que os machos optam pela primeira situação já que a “senhora” engravida e depois fica a tomar conta da “ninhada”. É por isso que os bonobos, ou chimpanzés-pigmeus — os nossos parentes mais próximos — , têm taxas astronómicas de interacções sexuais. Se olharmos para o caso masculino, no rácio de adultos em idade fértil, o papel de Don Juan pode tornar-se mais arriscado. Por serem altamente competitivos, “para eles, a vantagem acaba por ser manterem vigilância sobre as mulheres que já têm”, como diz Hawkes. Para estes homens de longa duração, acasalar para a vida, manter e proteger uma só mulher e os seus filhos acabou por se tornar uma vantagem da evolução. E foi assim que nasceu a relação monogâmica, como sustentam Hawkes e os seus colegas no estudo agora publicado no PNAS. A “hipótese avó”, acreditam Hawkes e os seus colegas, pode ainda revelar outras qualidades humanas únicas: aumento do tamanho do cérebro (porque quem vive mais anos pode dedicar mais tempo à aprendizagem e retirar daí as respectivas recompensas); comunidades mais complexas (porque educar uma criança deixou de ser uma tarefa independente para passar a ser um esforço conjunto); maiores indíces de competitividade (promovidas precisamente pelo aumento do tamanho do cérebro e pelas comunidades mais alargadas); e até empatia (porque redes sociais mais extensas requerem de todos nós uma evolução no sentido do respeito e compreensão pelo outro). “Quando começamos a levar a sério esta ‘hipótese avó’ é espantoso o quanto ela nos pode transmitir [sobre a vida em sociedade]”, diz Hawkes. “É uma fonte verdadeiramente rica para tantas outras actividades. ”Nem toda a gente está de acordo sobre a “hipótese avó”, bastante controversa no mundo da antropologia. Muitos estudos têm defendido que, para a evolução humana, o contributo das avós é insuficiente para justificar o crescimento tremendo da longevidade humana. Outros estudos lembram que a hipótese de Hawkes descura o papel dos elementos masculinos das comunidades caçadoras-recolectoras, incluindo os próprios Hadza, de que são os homens o garante da maior parte da alimentação dos mais novos do grupo. Há uma teoria sobre a menopausa que compete com a de Hawkes mas defende que a mesma se deve ao conflito entre as mulheres de diferentes gerações. Noutras espécies, como por exemplo nos elefantes, as fêmeas mais jovens suprimem a sua fertilidade enquanto houver fêmeas mais velhas a procriar, de modo a não entrarem em competição directa na busca de segurança ou de alimentos. Hawkes refuta estas teses argumentando que a “hipótese avó” é desconfortável para muitos cientistas simplesmente porque vira do avesso as crenças arreigadas sobre as sociedades humanas. “A cartilha que nos é contada” sobre monogamia, como diz esta antropóloga, é que ela começa no seio de famílias nucleares e relações duradouras e estáveis. Se essas relações estivessem para durar, então as mulheres mais depressa estariam disponíveis para acasalar com os melhores machos caçadores de forma a que comunidades mais alargadas e inteligentes se pudessem formar. “Já conhecemos de gingeira a história do Ozzie & Harriet e do Leave it to Beaver [séries americanas sobre a vida familiar dos anos 1950]”, diz Hawkes, não sendo por isso de estranhar que os antropólogos tomem os seus exemplos por garantidos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O que a “hipótese avó” sugere é que a monogamia pode não ser uma qualidade inata porque na narrativa desta antropóloga ela é estudada ao longo dos tempos e apresentada como resposta às circunstâncias de cada momento, tal qual outra adaptação do humano à evolução. Talvez as conclusões a que chega possam não ser particularmente românticas, mas ainda assim pode vir a ser uma hipótese a ter em conta. Tentem perguntar à vossa avó na próxima vez que elas vos ligar.
REFERÊNCIAS:
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Eles desenham os filmes e jogos que devoramos mas nós não sabemos
As suas indústrias são milionárias, a sua força é planetária. Os grandes nomes que criam, nos bastidores, as figuras ou ambientes de alguns dos filmes e jogos mais vistos e vendidos do mundo vieram a Tróia. (...)

Eles desenham os filmes e jogos que devoramos mas nós não sabemos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: As suas indústrias são milionárias, a sua força é planetária. Os grandes nomes que criam, nos bastidores, as figuras ou ambientes de alguns dos filmes e jogos mais vistos e vendidos do mundo vieram a Tróia.
TEXTO: Éramos só dois num sofá e de repente estávamos no centro de uma multidão. Iain McCaig é um flautista de Hamelin das artes visuais e do cinema, um ilustrador e concept artist com dedo em alguns dos maiores projectos de Hollywood das últimas décadas: ele fala num recanto nas traseiras do centro de congressos de Tróia e eles não param de chegar, atraídos pela melodia das suas histórias e pelo encantamento dos seus conselhos. Dezenas de jovens artistas cercam a entrevista em curso para logo a seguir caírem sobre este ídolo dos bastidores e falarem com ele sobre os seus trabalhos. Duas horas depois, ele ainda lá estava, a sós com a sua multidão. Foi um pequeno acontecimento. A distância entre mestres conferencistas e os artistas que os vieram ouvir nas palestras, demonstrações ao vivo ou workshops, é porosa no Trojan Horse was an Unicorn (THU). “Informal” é uma das palavras que vem à cabeça e se uma nuvem houvesse para condensar as palavras e os títulos que pairam sobre o THU, ela pingaria “artistas”, “digital”, “jogos”, “cinema”, “trabalho”. E teria as cores dos currículos que povoaram Tróia na terceira semana de Setembro — Guardiões da Galáxia, Os Vingadores, Pixar, Disney, Guerra das Estrelas, o jogo Magic: The Gathering — ou das T-shirts sortidas de Guerra dos Tronos, dos tablets, lápis e estiradores dos jovens artistas. Os cerca de 800 participantes do evento, que vieram de todo o mundo mas sobretudo da Alemanha, EUA, Polónia e Inglaterra, passam cinco dias a ouvir, a desenhar, a esculpir ou a apresentar e discutir projectos com artistas da dimensão e currículo de McCaig, que desenhou desde uma capa de um álbum dos Jethro Tull a um dos vilões mais reconhecíveis de Guerra das Estrelas — Darth Maul — e a mulher de um dos maiores vilões do cinema, Padme Amidala. Trabalhou com James Cameron, Coppola ou Spielberg. Iain McCaig, que dá então por si numa longa e imprevista sessão de análise de portfólios e dicas de aprimoramento do traço pessoal num átrio anónimo, não tem o luxo do apelido — de ser conhecido para o grande público sem mais palavras, como um Spielberg ou um Scorsese. Mas é uma superestrela na sua galáxia de artistas visuais, mais ou menos digitais, mais ligados aos jogos ou ao cinema, à ilustração. Ilustrou livros, expôs em grandes museus, fez a arte conceptual na base dos ambientes de blockbusters. Ao THU, a esta espécie de festival de fim de Verão para as artes e efeitos visuais, vêm os que desenham o cinema e os jogos que todos vêem, mas cujo contributo a massa dos espectadores e jogadores não conhece. Pedimos a McCaig para nos deixar entrar no seu método de trabalho. “Nunca há uma página em branco”, frisa, com o discurso simultaneamente introspectivo e pedagógico de um artista que há muito dá aulas. “Normalmente sou chamado para os projectos de outras pessoas antes de haver sequer um guião ou algo remotamente ligado à história. Tudo o que há é um conceito ou uma ideia. ” Dá-nos como exemplo o seu trabalho mais recente, um filme da Disney que se estreia em 2016 e que retoma as aventuras de um certo menino perdido na selva. O realizador “Jon Favreau disse: ‘Vamos fazer de novo O Livro da Selva. ’ E eu respondi: ‘Iupi, foi o primeiro filme que vi no cinema. Vamos a isso’. E ele disse: ‘Boa. Ainda não temos um guião. ’” E assim pode começar o trabalho de um concept artist — “mergulhamos e oferecemos coisas que ajudam quem está a escrever a história a moldá-la. Volto ao [autor do livro original, Rudyard] Kipling, e ao filme da Disney [de 1967], e releio, e revejo, e vivo naquele mundo, torno-me no Mogli outra vez”. Para pintar, “lembro-me de quão maravilhoso o urso Balu pode ser — e tento imaginar, se ele não fosse uma personagem animada, mas sim real, como seria Balu? Desenhamos as coisas a partir do interior. Balu pode ser um urso qualquer. É o espírito do Balu, a centelha no seu olho” que importa, enuncia, para se lançar numa mímica de braços e pernas desajeitados para pantomimar o urso bonacheirão. E se já há um guião, que seja ele o ponto de partida para o que vai pintar. “Esse é o processo: entrar na história, vivê-la, respirá-la, transformarmo-nos na personagem e então… simplesmente desenhar. Desenhar como sonhamos. ”Os convidados do THU, uma organização portuguesa que este ano custou cerca de 600 mil euros a montar, são autores cujos trabalhos se tornaram vocábulos visuais dessa língua comum, desse esperanto planetário que é a cultura popular. Shane Mahan, que está no piso de cima do centro de congressos a esculpir um busto do monstro de Frankenstein com o emblemático rosto de Boris Karloff, tem uma carreira dessas. Desenhou o rosto metálico do Exterminador Implacável, criou atmosferas de filmes como Big Fish de Tim Burton, construiu com as mãos o T-Rex de Parque Jurássico. Já Craig Mullins, o homem que dignificou a expressão “pintura digital”, como comentaram os seus espectadores nas duas palestras que deu em Tróia, foi responsável pela compra de mais de um terço dos bilhetes, que custam entre 400 e 500 euros, para o THU. Pintou as paisagens digitais do terceiro Matrix, de Forrest Gump ou de jogos como Halo e Final Fantasy. “Isto? É Natal”, diz Iain McCaig à Revista 2 no final da tal entrevista que acabou com plateia, apontando para os rostos expectantes que o rodeiam. “Cada um deles é um presente que tenho a alegria de abrir. Eles acham que me estão a pedir conselhos e em vez disso eu estou a obter histórias maravilhosas, partilham comigo peças de arte incríveis. Saio daqui carregado [de energia], mal posso esperar para desenhar. É difícil dormir à noite porque chego ao quarto tão entusiasmado”, exclama, generoso nas palavras e nos gestos, lançando braços compridos para todo o lado. “A arte é um evento colaborativo. ”O THU ocupa o centro de congressos e o centro de espectáculos de Tróia, com extensões para o hotel vizinho onde se servem pizzas com os nomes dos artistas mais conhecidos — come-se uma Zimmermann ao lado do artista francês Loic Zimmermann que trabalhou nos efeitos visuais ou no aspecto das personagens da Marvel em Os Vingadores: Era de Ultron ou em Harry Potter e o Príncipe Misterioso, além de ter sido o concept artist de True Grit — Indomável, dos irmãos Coen, ou de O Livro de Eli. Como numa galeria, em que as paredes e o ambiente não falam e só a arte tem a palavra, os edifícios brancos e cinzentos de Tróia viram as suas salas assépticas encher-se de talentos na terceira semana de Setembro. Há sempre alguém, algures, a desenhar, num estirador portátil e lápis de carvão a roçagar a folha, ou de tablet e caneta digital a deslizar no ecrã. Ao lado de uma cerveja ou num intervalo, folheiam-se portfólios. “O que é que estás a fazer actualmente?”; “Estou só como freelance”, ouve-se à passagem por grupos de cabeças inclinadas sobre páginas desenhadas. O primeiro dia foi dedicado em grande parte ao recrutamento, com uma sigilosa Disney presente, que não quis falar sobre os resultados da sua prospecção, e com outras empresas de jogos ou efeitos visuais à procura de novos talentos em Tróia. Houve dezenas de contactos feitos, há trabalhos em perspectiva. A média de idades dos participantes, este ano, é de 29 anos, sempre a subir desde os 21 anos da primeira edição e os 25 de 2014. Este ano eram sobretudo “3D artists, concept artists e animadores”, explica o fundador e produtor do THU, o omnipresente André Lourenço, que chama os espectadores para mais uma conferência, apresenta outra, dá entrevistas ou recebe high fives de participantes que lhe agradecem pelo evento. Nesta edição “não há artistas de efeitos visuais, desapareceram” apesar de haver mestres premiados na área como Shane Mahan — o perfil dos participantes intriga o organizador. A cada ano o público do THU vem “tornar Tróia um bocadinho mais estranha”, brinca o belga Dimitri Devos. Devos tem 26 anos e descreve-se como “character artist freelance” — desenha personagens para jogos. Veio em 2014 e pouco depois começou a trabalhar na área. “Deixei de jogar os jogos porque queria fazer os jogos. Era viciado em World of Warcraft. ‘Sabem que mais? Não lhes vou pagar mais e vou fazer artwork para que eles tenham de me pagar’. ”Para ele, um dos pontos altos desta edição foi estar à conversa exactamente com Mahan enquanto ele esculpia o seu monstro em barro na Galeria. “Sempre adorei monstros do cinema. Via mais os behind the scenes dos filmes do que os filmes”, diz Devos. O artista de efeitos especiais conta como se tinha montado no T-Rex de Parque Jurássico no final da rodagem do filme de 1993, mas só depois de vencido o medo inicial. “Quando o vi a funcionar pela primeira vez, foi aterrorizante. Os teus sentidos só dizem ‘Foge!’ Eu sei que é falso, fui eu que o fiz. Mas mesmo assim. . . ”, sussurrava Mahan, risonho, na tarde de quinta-feira na sala onde os artistas trabalhavam ao vivo. Durante todo o dia e grande parte das noites há actividades THU — há modelos a posar para o pintor Jeremy Mann e para a ilustradora Karla Ortiz, Shane Mahan esculpe; noutras salas, há três conferências em simultâneo que começam a cada hora e meia com nomes como Robh Ruppel, o animador de filmes (Mulan, Os Robinsons) e jogos (desenhou mundos para Ravenloft ou Planescape) ou com o rock ’n’ roll de Alex Alvarez, que desenhou criaturas para Prometheus, de Riddley Scott, e fundou a importantíssima escola de efeitos visuais Gnomon. À noite há “art battles” com equipas lideradas por alguns dos “cavaleiros” — os conferencistas — e trocam-se “histórias de guerra” das trincheiras da indústria. Esta é decididamente uma conferência do fim dos créditos dos filmes e dos videojogos. É um encontro de pessoas cujas cerimónias de prémios decorrem dias antes das grandes cerimónias de prémios — são os nomeados ou vencedores de Óscares ou Emmy (para os jogos há, entre outros, os DICE, os “óscares dos jogos”) das chamadas categorias técnicas. Scott Ross conhece bem esses palcos. É um dos mais importantes e respeitados nomes da produção e dos efeitos visuais em Hollywood das últimas décadas. Com James Cameron e um dos pioneiros dos efeitos visuais, Stan Winston, fundou a Digital Domain, uma das maiores produtoras digitais de cinema e publicidade que fez os efeitos visuais premiados do segundo filme mais visto de sempre, Titanic. Geriu a Industrial Light and Magic de George Lucas e hoje é o embaixador do THU, “o segundo rosto do evento”, segundo André Lourenço, aquele cujos contactos trazem as estrelas a Tróia. “Estava numa demanda, nos últimos cinco anos, de tentar sensibilizar [o sector] para o que a indústria dos efeitos visuais precisava de fazer para ser sustentável”, explica à Revista 2. Por “já não estar a trabalhar na indústria, já podia dizer o que queria. Ocupei a posição de porta-voz das coisas que não podem ser ditas”, postula o norte-americano. Foi contactado por André Lourenço antes da primeira edição do cavalo de Tróia que afinal é um unicórnio numa altura em que este trabalhava no projecto com mais dois sócios e com um orçamento de “100 e poucos mil euros”, lembra-se o português. Lourenço, cujo percurso passa por marcos confessos como “aos 27 anos já tinha falido duas empresas” de design e branding e “fui o mais jovem dirigente da I Liga” no seu amado Vitória de Setúbal, queria “perceber como é que se criava uma marca mundial”. Tinha o gosto pela área e com dois sócios criou o THU, através da empresa Yellow Mammoth, que gere a marca — em breve “será constituída uma empresa sem fins lucrativos” porque “todo o dinheiro que entra no evento fica no evento”. Vive o terceiro e último ano de apoio do QREN, parte do seu orçamento vem da vendas de bilhetes, de patrocínios estrangeiros ligados sobretudo à tecnologia e de muito pouca ajuda portuguesa, queixam-se Lourenço e Ross. Um ano tenta pagar o seguinte e em 2015 ainda não era certo se cumpriria o grande objectivo — ficar a zeros. “Portugal, acorda! Vão perder este evento, que em três anos se tornou o número um do mundo”, diz Ross sobre os planos de passar o THU para outro país — qual ainda não revelam, apesar de terem já “propostas interessantes”. As autarquias e o Turismo não têm grande abertura e dão apoios que a organização considera irrisórios. “Em Portugal há falta de visão”, diz André Lourenço, queixando-se da falta de qualidade das escolas da área, dos apoios públicos ao cinema que vão para “as pessoas erradas”, da perda do potencial que poderia associar o país a uma indústria tão valiosa. Até 2017, o sector do entretenimento e dos media valerá 2, 1 biliões de dólares, segundo a consultora PricewaterhouseCoopers. Este ano, o sector mundial dos jogos valerá 91, 95 mil milhões de dólares, engrossados pelo factor smart phones — a revista Fortune escrevia em Janeiro, citando a consultora Newzoo, especializada nesta área, que até ao final de 2015 as receitas geradas pelos jogos para telemóvel (os números previstos rondam os 30, 3 mil milhões de dólares em todo o mundo) vão ultrapassar o dinheiro ganho com jogos de consola. Os seus principais consumidores estão na Ásia, 830 milhões, e na Europa, Médio Oriente e África, onde moram cerca de 570 milhões de jogadores. E no entanto, numa indústria em expansão, “há problemas”, diz Scott Ross. Os seus calções e casaco descontraído laranja no “paraíso” que é Tróia não o afastam deles. Não quer desencorajar “cerca de 80% das pessoas aqui” — “novatos, não queremos esmagar a sua esperança”. Mas eles são os primeiros a falar nisso. O THU também está a servir de caixa de ressonância das preocupações dos artistas. Na conferência do artista digital Craig Mullins, numa manhã de sexta-feira com o estuário do Sado a cintilar lá fora, lá estavam eles, mais homens que mulheres, a perguntar ou a desabafar. “Como se evita queimar o fusível?”; “trabalhamos tantas horas, é difícil não ficar desencorajado”; “não há procura em Portugal, como se pode mudar isso?”. Scott Ross confirma, e dispara: “Há uma série de homens e mulheres que criam arte e imagética fantástica, trabalham muitas, muitas horas, não lhes pagam o suficiente, não são reconhecidos, Hollywood e a indústria do cinema trata-os como cidadãos de segunda, os seus créditos vêm no fim dos filmes, fazem troça deles nos Óscares. Simplesmente não são levados tão a sério como os designers de produção, os montadores, os directores de fotografia ou os actores. ” Explicações? “Em parte é porque é algo relativamente novo e outra parte é que é uma actividade muito técnica. E é difícil para os poderes instituídos perceberem o que eles fazem” — o que pode em parte explicar o relativo obscurantismo público em torno do THU e dos seus convidados estelares nestes seus três anos, que só se dissipou parcialmente nesta edição, em que o evento ameaça e garante estar decidido a deixar Portugal. Mas, ressalva Ross, “se olharmos para os 20 maiores filmes de todos os tempos, todos são filmes de efeitos visuais”. Tudo acontece numa nova paisagem em que, como diz Iain McCaig rodeado dos seus aprendizes de feiticeiro, “posso pegar nestas pessoas e fazemos um filme tão bom como qualquer outro, com efeitos especiais que facilmente serão como os de Guerra das Estrelas, e com coisas que compramos na loja da esquina”. Os meios para contar histórias democratizaram-se, “há cada vez mais pessoas a aprender sem ter de passar pelo sistema”, acrescenta McCaig, e, como completa Mullins na sua conferência, “antes tínhamos de perceber de computadores e de ter 10 mil dólares para ter memória RAM. Agora não há barreiras para fazer arte digital, toda a gente tem acesso ao software e ao hardware”. O mercado “está extremamente lotado” e isso fez cair o valor do trabalho — “os preços estão provavelmente a um terço do que estavam no mundo freelance em 2005”. Ross acrescenta à receita a falta de “perspectiva financeira das pessoas que são donas das empresas — não fazem dinheiro. É a coisa mais doida que Sandra Bullock tenha ganho 68 milhões de dólares com Gravidade e que as pessoas que fizeram 85% do filme tenham perdido dinheiro”. Ou que, um exemplo amplamente citado por jovens e veteranos no evento, a empresa de efeitos visuais Rhythm & Hues tenha recebido um Óscar em 2013 pelo seu trabalho de luxo em A Vida de Pi, de Ang Lee, duas semanas depois de ter falido. Eventos como este “ajudam”, diz o milionário norte-americano, a perceber o valor destas artes, mas também o seu estado. Craig Mullins sentiu da sua plateia de colegas que “estão a ser-lhes pedidas tarefas cada vez mais pequenas. Que sejam engrenagens mais pequenas numa máquina maior”. Agora, “os créditos no final de um filme duram 20 minutos — há milhares e milhares de pessoas [a trabalhar]. O público é bastante sofisticado e exige-o” — os filmes, séries ou jogos “já não se safam com 3D baratos”. Tem-se sempre de superar o que foi feito antes e cria-se um “sistema de obsolescência”, diz, e uma especialização microscópica para o servir, menos recompensadora para os artistas. “A pipeline digital tornou-se muito parecida com a pipeline industrial. ” Ainda assim, o entusiasmo de uma ovação de pé despediu-se do californiano. O rosto de Boris Karloff está rodeado de bolinhas de barro. Passaram-se quase 24 horas desde a nossa última visita ao cabelo loiro de Shane Mahan e ao seu monstro de Frankenstein. Esculpe à entrada da Galeria, onde mais à frente uma modelo posa nua, adornada apenas por correias de pele preta. Do lado oposto da sala, Kim Jung Gi continua a desenhar um astronauta que se desfaz em voo. O sul-coreano de traço detalhadíssimo é um outro gerador de frenesim no THU. Na véspera, os fãs esperaram longamente numa fila no átrio por autógrafos especiais — na compra do seu livro, tinham direito a um desenho único, feito no momento, a troco de 30 euros. Na recepção do centro de congressos nasceram gueixas turquesa e outras figuras mágicas. Na Galeria, oferece um desses livros ilustrados a Jeremy Mann, mas, surpresa, é o próprio pintor de São Francisco que está retratado no desenho-autógrafo. Não partilham uma língua que não seja a do desenho, mas Mann acrescentou-lhe a dos gestos para agradecer. Com uma meia-de-leite na mão, Mann ajoelha-se para contemplar o presente. As pessoas que por ali circulam vão mudando, mas Shane Mahan vê uma coisa em comum nelas — está “espantado pelo facto de alguns dos artistas mais jovens nunca terem tocado em barro, ou esculpido. Acho que é problemático”. Uma questão geracional, sim, diz o artista que toda vida trabalhou com o tacto e que acha a escultura digital “agradável”, mas sem “satisfação sensorial”. Conversamos sobre os filmes que acabou de terminar (O Livro da Selva, X-Men: Apocalypse) e sobre uma carreira em que criou o rosto do Penguin de Danny DeVito para Batman Regressa (1992), coordenou os efeitos das várias criaturas de Aliens (1986), trabalhou no quarto Indiana Jones (2008) ou no fato do Homem de Ferro de Robert Downey Jr. “Tem tudo sido colectivamente divertido. ” Mas o mais importante é a história, diz: “se é interessante, é mais excitante trabalhar nos efeitos. São oito meses da nossa vida a viver essa história e quando os filmes acabam estamos [meio perdidos]… ah, nem toda a gente é um vampiro’”, mimetiza, rindo-se. Reencontramos Julia Metzger, a jovem artista de videojogos alemã que fora a primeira a chegar junto de Iain McCaig para o longo fim de tarde de conversas com “um dos artistas mais famosos do mundo”. Tinha-se sentado quando ainda só havia uma entrevista a decorrer e, horas depois, já estava descalça em cima de um sofá para espreitar o que dizia Iain McCaig sobre o poder da história — a sua palestra oficial no THU foi sobre “O sentido da vida”, que para ele, repetiu a Metzger e aos seus colegas, é cada um de nós — e a nossa história. “A ferramenta para comunicar com o mundo é a história. É a nossa ligação ao resto da humanidade. ”A loira alemã de vestido florido não tem dúvidas: poder falar (e ouvir) com McCaig “foi uma das coisas mais espantosas que aconteceu” neste seu segundo ano de THU. “No ano passado tive muito feedback técnico e este ano muito mais ao nível pessoal, como levar a nossa personalidade para as imagens, como encontrar o que nos torna únicos. É uma das minhas preocupações, como encontrar a minha voz na arte. Estou muito mais próxima agora das respostas. ”Os participantes tendem a voltar porque é um “evento diferente, só focado na arte e criatividade”, como diz o alemão Sven Liebling, director criativo da empresa de jogos Social Point, que veio recrutar e está convencido de que “poderia contratar toda a gente” pelo talento que observou. Mas “não sei se não paro um ano para ver as várias propostas em cima da mesa”, diz André Lourenço sobre a saída do THU de Portugal e sobre a “estrutura muito grande” que tem o evento. É definitiva, a saída? “Nunca digo nunca, mas é muito difícil sem apoio nem reconhecimento. ”Talvez no seu último ano em Tróia, o público do THU é decididamente um misto de fã e de profissional. Karla Ortiz autografa as cartas do jogo Magic que desenhou, há gritos de felicidade juvenil quando Paul Briggs, artista e coordenador da Disney (Frozen, Big Hero 6), mostra de surpresa um excerto inédito de Zootrópolis, o aguardado filme de animação que se estreia em Março de 2016, e há cenas como a que a ilustradora Patrícia Furtado, de 38 anos, nos descreve: “A live demo do Kim Jung Gi parecia uma igreja, tudo calado a observá-lo a desenhar. Foi daqueles momentos que nos transcendem um bocadinho, quase comoventes”, diz uma das profissionais que perfaz os 13% de portugueses no evento. De Tróia leva, como os outros jovens artistas, uma cabeça a fervilhar. Olhos límpidos, corações cheios que não podem perder a oportunidade de estar com membros “da tribo”, como descreve a ilustradora de livros infantis. “Não condizemos com as pessoas com trabalhos normais das 9h às 17h. Há pessoas que jogam e falam sobre os jogos mas raramente há pessoas interessadas em como os jogos ou os filmes são feitos e aqui pode falar-se disso horas a fio”, acrescenta Dimitri. O belga conhece bem os empregos convencionais e o seu mundo sem a arte. “Apanhava lixo num carro do lixo, fui repositor numa loja, trabalhei numa fábrica, entregava comida congelada. Comecei a desenhar há quatro anos porque nunca tinha percebido que se podia fazer isto como um emprego de facto. ” Agora assina como Dimi Devos e é um artista. Quando viu pela primeira vez uma personagem que criou para um jogo (a mais conhecida é um guerreiro alado em League of Legends) ser animada, foi “como ser miúdo e ver um espectáculo de marionetas pela primeira vez, mas muito mais poderoso. Tenho 26 anos e se alguma coisa nos consegue fazer isso… é a coisa mais espantosa de sempre”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Quando os bebés sem sorriso se tornam adultos
Nasceram quando o país mal pronunciava a palavra “autismo” e tornaram-se adultos com perspectivas limitadas. Esta semana assinalou-se o Dia Mundial de Consciencialização do Autismo. (...)

Quando os bebés sem sorriso se tornam adultos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.3
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nasceram quando o país mal pronunciava a palavra “autismo” e tornaram-se adultos com perspectivas limitadas. Esta semana assinalou-se o Dia Mundial de Consciencialização do Autismo.
TEXTO: Francisca era uma criança normal até que um dia, aos dois anos e meio, deixou de falar. Passou a não encarar ninguém nos olhos e ficava em pânico quando via armários fechados. Hoje tem o corpo de uma mulher de 24 anos a envolver uma personalidade de menina, pontua conversas que se desenrolam sem ela com um súbito grito que faz parar uma sala inteira e, se alguém estiver a escrever à mesa e pousar a esferográfica de forma descuidada, ela pega-lhe automaticamente, vira-a na direcção de quem escreve e alinha-a na vertical. Repete o gesto uma e outra vez, tantas quantas os outros se esquecerem de cumprir com a posição. Depois, despede-se com um beijo. E outro, e ainda mais um. “Ela é sempre assim querida?”, perguntam à mãe da beijoqueira. “É. Mas o que você não está a perceber é que isso é a forma de ela dizer que se quer ir embora”, responde. O Pedro tem 22 anos, acompanha educadamente qualquer conversa e, mesmo que se mantenha muito reservado, reage com riso franco a qualquer nota de humor. Sentado no chão, reparte-se por tarefas simultâneas que dispõe em seu redor: lê o jornal, joga cartas, faz contas na calculadora e preenche páginas e páginas com a escrita encriptada que criou para si próprio. É perante emoções mais fortes, no entanto, que realmente se denuncia como diferente. Quando queimou o pescoço num trabalho de soldadura do seu curso técnico-profissional, por exemplo, não emitiu um gemido que fosse, não contou a ninguém que se ferira e a mãe só descobriu a gravidade do problema por lhe ter reparado num número excepcional de visitas ao espelho da casa de banho. Já quando o momento é de grande alegria, manifesta-se com gestos nervosos dos braços e um dedilhar irreflectido no tronco. “É como se fossem cócegas”, conta o pai. “Mas ele fá-las tão inconscientemente que às vezes nem repara que fica com a pele em ferida, quase a sangrar. ”A Francisca e o Pedro são autistas. Mas se a terminologia correcta para enquadrar este tipo de patologias neurocomportamentais é “perturbações do espectro do autismo”, isso deve-se precisamente à abrangência do leque de formatos em que a doença se pode manifestar: a Francisca estará no extremo do espectro que envolve menos autonomia; o Pedro está diagnosticado com Síndrome de Asperger, que, no extremo oposto, é ocupado pelos autistas mais funcionais. Cada um destes jovens tem assim um conjunto de peculiaridades muito próprias, o que não invalida a existência de aspectos que serão comuns a todos os autistas e que se farão notar pela primeira vez entre os dois e os três anos de idade. Para o médico João Guerra, que integra o Departamento de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar do Porto, as características nucleares da doença são “um comprometimento do funcionamento social, um padrão restritivo e repetitivo de interesses, e, depois, um conjunto de outras alterações associadas ao desenvolvimento, como limitações de linguagem, do sistema motor e ao nível sensorial”. O pedopsiquiatra garante que “não se consegue detectar uma causa única” para o problema, mas atribui-o a razões de origem genética e ambiental, admitindo ainda a possibilidade de “uma certa interacção com a imunologia, que provocará no cérebro a alteração que causa a doença”. No primeiro caso, por exemplo, alguns dos diagnosticados evidenciam diferente susceptibilidade epigenética, o que significa que sofreram variações celulares e fisiológicas que não foram causadas por alterações no seu DNA e sim por reacções químicas como a da acção repressiva das proteínas no silenciamento de determinados genes. “As alterações epigenéticas não alteram o gene em si próprio, mas mudam a forma como é feita a leitura genética, activando ou não esse gene”, complementa João Guerra. “Essas alterações depois permitem que nos adaptemos ao meio, mas também nos fazem sofrer influências do mesmo, nomeadamente a influência de agentes químicos, entre outros, que, estando presentes no ambiente, poderão dessa forma ter uma acção nociva no neurodesenvolvimento. ” Crianças que vinham evidenciando um desenvolvimento aparentemente normal e que até já usavam alguma linguagem podem assim, “de um momento para o outro”, apresentar uma regressão no desenvolvimento. “Não sabemos bem o que se passou no cérebro dela para que tenha regredido, mas algo aconteceu na interacção da sua genética com o ambiente. ” O médico do Porto assegura, contudo, que “a maioria dos casos de autismo ocorre mesmo é em pessoas com familiares que já têm perturbações desse género”. Pedro Caldeira, da Unidade de Primeira Infância do Centro Hospitalar Lisboa Central, acrescenta que a globalização também terá influência: “O autismo poderá estar relacionado com o aumento da idade em que as pessoas têm filhos, sobretudo a dos pais homens, mas também é de considerar o efeito do aumento de parceiros provenientes de culturas distintas. Quando o relacionamento do casal é em idiomas diferentes das suas línguas nativas, o problema já pode vir dos pais, mas há coisas que se perdem na tradução — aspectos subtis, nuances reveladoras — e descartamos esses indícios por pensarmos que são apenas sinais de outra cultura. ” Um parceiro “muito calado ou demasiado interessado por pontes ou mapas”, por exemplo, poderá estar a manifestar uma dificuldade subclínica de autismo, mas a esposa portuguesa não considerará o facto pertinente e, provavelmente, até lhe achará alguma graça. “Vai dizer que se calhar é por ser sueco”, aventa o médico. Já sobre o papel do sistema imunológico no aparecimento do autismo, João Guerra diz que não há certezas quando à forma como esse influi na doença, mas descarta o “mito” sobre os riscos da vacinação. “Não existe evidência científica de que a exposição a vacinas provoque o autismo ou constitua factor de causa-efeito determinante”, assegura. “Na década de [19]80 houve um estudo de Andrew Wakefield relacionado com uma tripla vacina de sarampo, rubéola e papeira que criou alarme, mas desde então não existe evidência disso. Aliás, eu vacinei os meus filhos de consciência tranquila e acho que todas as crianças devem ser vacinadas. ”Negligenciar a vacinação poderá, aliás, ter consequências como as que se viram há pouco mais de dois meses nos Estados Unidos, onde uma criança infectada com sarampo transmitiu a doença a 58 outras pessoas num dos parques de diversões da Disneylândia, após o que o surto se espalhou a 14 dos 50 estados do país. Em 2008, em plena campanha eleitoral, Barack Obama admitia a suspeita de que as vacinas surtissem efeitos nos índices de autismo, antes de se dar como provado, em 2010, que Andrew Wakefield falsificara os dados constantes da sua investigação; agora, em Fevereiro de 2015, o Presidente norte-americano dava os méritos científicos das vacinas como “indisputáveis”. A frase que usou foi esta: “Olhámos para isto uma e outra vez — há todas as razões para se ser vacinado, mas não há nenhuma para não se ser. ”“Aos dois anos e meio, a Francisca começou a ter umas reacções muito estranhas. Não podia ver armários fechados que começava a chorar. Notava-se que sofria e nós pensámos que aquilo fosse resultado de um trauma provocado na ama, um susto qualquer que ela tivesse apanhado sem nós sabermos”, recorda Raul Almeida, pai da jovem. Seguiram-se assim uma série de diagnósticos: primeiro, mutismo electivo; depois, afasia; em terceiro, um “problema neurológico não identificado”; quarto, psicose infantil; e, por último, autismo — detectado em Pamplona, na Clínica Universitária de Navarra, que em meados dos anos 1990 sujeitou a menina a um encefalograma de 24 horas e lhe examinou todos os cariótipos sanguíneos. “Há um certo alívio em dar nome às coisas, porque isso ajuda-nos a seguir um caminho”, diz Paula Almeida, mãe da Francisca. “Mas quando veio a fase de ela ficar muito nervosa, ter muitos tiques, bater na mesa sistematicamente e dar-se à ecolalia, que é a emissão repetida de sons, nisto dos diagnósticos já tínhamos perdido quase três anos”, lamenta. No caso do Pedro, a busca pela identificação do problema foi idêntica e limitou-se à oferta médica nacional. “Ele era muito calmo e afável, mas deixou de reagir quando o chamávamos. Ficava fascinado por fios, passava horas à volta da roda de um camião e, se lhe déssemos uma garrafa de litro e meio só com um bocadinho de água dentro, ficava a abaná-la séculos, todo feliz”, recorda o pai, Albino Almeida. Entre 1994 e 1995, a família correu vários especialistas sem obter um diagnóstico, o que atribui a “desconhecimento total ou pura falta de sensibilidade” dos médicos de então. Albino ainda fica visivelmente revoltado, aliás, ao recordar o pediatra que lhe disse que “os rapazes são sempre assim, mais preguiçosos”. Como o menino tinha muitas otites, decidiram finalmente tentar um otorrinolaringologista, “já em desespero, no final da linha”, e deram assim com a solução. “O meu filho não ouvia nada de um ouvido e no outro só tinha 10% de audição. Marcámos logo a cirurgia, mas, quando julgávamos que estava tudo resolvido e ficámos quase aliviados, abre-se então a porta para o problema que ficou até hoje — aquela operação tornou o meu filho autista. Foi um interruptor que se mexeu no cérebro dele e os eléctrodos sensoriais do Pedro mudaram por completo”, sentencia Albino. Aos quatro anos de idade, a doença foi apresentada “quase como uma sentença de morte” e, aos sete, apuraram o diagnóstico para Síndrome de Asperger. “Foi um terramoto”, diz a mãe do Pedro, Cristina Almeida. “Chorei muito eu, chorámos muito os dois juntos”, confessa o marido. Pedro Martins e Raquel Araújo são pais do Francisco, mas, apesar de esse já ter nascido na década de 2000, passaram por idênticas dificuldades. “A reacção dos médicos era sempre: ‘Não se preocupe que isto é normal”, conta a mãe do menino. “Diziam-me para esperar, passado um mês eu tornava a ir lá e a conversa era a mesma. Toda a gente me dizia para ter calma e eu não queria ter calma nenhuma!”, desabafa. O despiste de problemas de audição fez-se por iniciativa do casal e o primeiro diagnóstico de autismo também partiu da própria família. “Fui pesquisar no Google e naquele tempo só havia informação em sites americanos, mas os sintomas batiam todos, todos certos”, revela Pedro Martins. “Quando ele me chamou para ver o computador, eu não queria acreditar”, completa Raquel. “Tinha uma ideia muito vaga sobre o autismo e a impressão era de que se tratava de uma coisa muito má, portanto aquilo pareceu-me o fim do mundo. ”Nélia Martins nem sequer sabia que o autismo existia. “Nunca tinha ouvido falar de tal coisa”, reconhece. Mas teve o Daniel em 2005, passados dois anos começou a notar que ele se isolava cada vez mais e, quando a segunda gravidez a levou a ser seguida na Maternidade Júlio Dinis, que integra o Centro Hospitalar do Porto, partilhou os seus medos com a obstetra. “Então veio lá uma pedopsiquiatra do Hospital Magalhães Lemos e acho que quando ela viu o Daniel percebeu logo tudo, mas, como eu estava nas últimas semanas de gravidez, não me quis dizer nada”, supõe a mãe do menino. “Quando realmente me deram o diagnóstico, foi horrível. A pior fase da minha vida. ” O que Nélia ainda não sabia nessa altura é que o seu segundo filho, o Gonçalo, também viria a ser autista. “Nessa altura, acabou-se a minha vida. Agora ultrapassei essa fase e já consigo falar disto, mas, se ao saber do Daniel o chão me tinha fugido dos pés, ao saber do Gonçalo acabou-se tudo. Não sobrava nada. ”Pedro Caldeira diz que também é necessária estatística nacional. “Não há números publicados e, sempre que os pedi, tropecei em algum tipo de parede”, revela. “Seria muito importante que estes casos fossem monitorizados, para sabermos se estão a aumentar e se começarem a preparar respostas para os autistas adultos”, avisa. Questionado sobre o assunto, o Instituto da Segurança Social não soube indicar quantos autistas usufruirão de benefícios pela doença, dado que o respectivo sistema de informação “não discrimina os beneficiários de subsídios ou apoios pelos diagnósticos ‘elencados’ ou por outras deficiências ou doenças, excepto em casos pontuais autorizados pela Comissão Nacional de Protecção de Dados”. A Direcção-Geral de Saúde (DGS) também não soube indicar quantos autistas diagnosticados existem em Portugal. “Esses números, como todos os semelhantes de outras entidades clínicas, existirão na ACSS [Administração Central do Sistema de Saúde], entidade a que a DGS recorre quando precisa desse tipo de informação”, esclareceu Álvaro Andrade Carvalho, director do Programa Nacional para a Saúde Mental. Contactada a ACSS, essa dedicou um mês a recolher os números possíveis: os dos casos de internamento hospitalar motivado por perturbações de ordem autista, nas unidades sob tutela das administrações regionais de saúde (ARS) do Alentejo, Algarve, Lisboa, Centro e Norte. No contexto das entradas atribuídas a Perturbações da Relação e da Comunicação, em 2004, houve apenas seis internamentos, enquanto em 2014 se verificaram 50. Já as hospitalizações motivadas por Perturbações do Espectro do Autismo foram 59 em 2004 e uma década depois passaram a 152. A Síndrome de Asperger, por sua vez, motivou 1136 internamentos em 2004 e 1387 no ano passado. À excepção dos casos de Asperger na ARS Norte, onde as hospitalizações diminuíram de 595 para 434 nos dez anos em análise, todas as outras regiões e patologias demonstram um agravamento do problema. É a zona de Lisboa, no entanto, que revela um crescimento mais gritante: de 2004 para 2014, os internamentos por Perturbações do Autismo passaram de 18 para 71 e os motivados por Asperger subiram de 302 para 692. A informação expressa nestes números peca, inevitavelmente, por defeito. Como sublinha a própria ACSS, “não representa a prevalência de autismo em Portugal, mas sim a distribuição de doentes entrados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde aos quais foram diagnosticados os problemas referidos”. Ficam fora desse universo, portanto, todos os autistas que, embora diagnosticados, não sofreram crises que justificassem a sua permanência em hospitais. O estudo que é sistematicamente apontado pelos especialistas como o único existente em Portugal sobre a demografia do autismo é o de Guiomar Gonçalves Oliveira, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, que em 2005 analisou um universo de 67. 795 crianças portuguesas de sete a nove anos de idade, no contexto do ano lectivo 1999/2000. O trabalho aponta para uma prevalência média de 9, 2 casos de autismo por cada 10 mil crianças da amostra, com diferenças regionais significativas no território dos Açores, onde a mesma média sobe para 15, 6 crianças, eventualmente devido a laços de maior consanguinidade entre os progenitores. Carlos Nunes Filipe, regente da Unidade Curricular de Fundamentos de Neurociências da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Lisboa, justifica a dificuldade na obtenção de estatística oficial realçando que, mesmo ao nível internacional, “os estudos têm variações enormes por causa da utilização de diferentes critérios de diagnóstico”. Isso dever-se-á às sucessivas alterações introduzidas no Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais (DSM), que serve de orientação à comunidade médica internacional e que, a cada nova edição, complica a análise comparativa da progressão do autismo em períodos que sejam abrangidos por diferentes classificações. “Os critérios da DSM III em 1994 e da DSM IV TR em 2014, por exemplo, são quase impossíveis de comparar”, explica o psiquiatra. A ACSS, por sua vez, regula-se pela ICD9CM — 9. ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças, que desde 1989 é a versão utilizada nos hospitais portugueses para efeitos de codificação das altas hospitalares. Muito mais simples é avaliar a progressão do autismo nos Estados Unidos — onde até Outubro todo o sistema de saúde ficará apto a regular-se pela IC10CDM. A estatística oficial é regularmente divulgada pelo Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) e as estimativas mais recentes revelam uma prevalência totalmente díspar da portuguesa: indicam que, entre as crianças norte-americanas com oito anos de idade, uma em cada 68 sofrerá de uma desordem do espectro do autismo. Equiparando essa proporção com aquela que é a referência portuguesa, em cada 10 mil crianças norte-americanas haverá assim 147 autistas e não apenas 9. Os números oficiais do CDC revelam ainda que a incidência da doença é quase cinco vezes maior sobre o género masculino: um em cada 42 rapazes tem o problema, enquanto nas raparigas isso acontece com apenas uma em cada 189. Diferentes estudos indicam que essa disparidade estará relacionada com diferenças de actuação hormonal ao nível dos neurónios: a testosterona diminui a capacidade de ligação das células a determinados genes, enquanto o estrogénio aumenta essa aptidão. O Centro de Investigação do Autismo da Universidade de Cambridge adianta que essa distinção começa em pleno útero, durante a gestação. O psicólogo André Peixoto, que está agora a concluir a certificação internacional no Método Denver pela Universidade da Califórnia, nota que, “cientificamente, não se pode afirmar que exista um modelo melhor do que os outros”, já que a abordagem da intervenção depende sempre do perfil de cada criança e da interacção possível entre essa, a sua família e os terapeutas. “No entanto, baseando-me na minha experiência profissional e no contacto com outros métodos de intervenção, o Modelo Denver revela ser claramente a abordagem mais completa de intervenção precoce nas Perturbações do Espectro do Autismo”, sustenta. “É abrangente, pois aborda de forma explícita todos os domínios de desenvolvimento da criança, nomeadamente a cognição, a comunicação expressiva e receptiva, a sua evolução social e emocional, as suas competências motoras, a sua aptidão para o jogo e imitação, a sua autonomia e comportamento. ”De 18 para 71 foi o aumento de internamentos por Perturbações do Autismo entre 2004 e 2014, e os motivados por Asperger subiram de 302 para 692Raul e Paula Almeida andaram por Espanha e até pelos Estados Unidos em busca de terapias adequadas para a Francisca, mas a oferta dos anos 90 era mais restrita e a mãe da menina acabou por deixar o Direito para ser terapeuta da própria filha. A família teve sorte com a “excepcional” professora do 1. º ciclo que soube acolher a menina em Ovar e depois mudou-se para o Porto para a poder inscrever num colégio que a aceitasse com o seu problema, já que a EB2/3 pública só a autorizava a frequentar três disciplinas e “deixava-a abandonada” no resto do horário. “Apoios, naquela altura? Zerinho. Ser autista nos anos 90 era muito diferente do que é agora”, garante Paula. “Hoje, por exemplo, as escolas passaram a ter UEEA [Unidades de Ensino Estruturado para Autistas] e, mesmo que a distribuição geográfica dos recursos ainda seja má e faltem soluções para a idade adulta, isso já faz uma diferença muito grande. ” Por enquanto, a Francisca mantém-se assim num colégio em Lisboa que a aceita com os seus 24 anos enquanto o pai exerce funções de deputado na Assembleia da República; a questão que se coloca é saber o que acontecerá quando a família tiver de regressar ao Porto para Raul Almeida retomar as suas funções empresariais. “Que alternativas ocupacionais é que a Francisca terá no Porto, para se manter sempre activa? O que é que se faz com um autista adulto que não pode estar sozinho?”, pergunta a esposa. Albino e Cristina Almeida sabem que o Pedro terá mais autonomia, mas mantêm-se por Vale de Cambra, onde “há menos oportunidades”. Isso evidenciou-se logo aos quatro anos, quando cinco horas diárias em autocarros, transbordos e caminhadas se impuseram como a única forma de aceder à terapia mais próxima, no Hospital Magalhães Lemos, no Porto. Depois foram as batalhas no ensino, com professoras insensíveis ao facto de o Pedro só compreender frases de sentido literal, “um bullying terrível por parte dos outros miúdos” e a informação de que o rapaz não podia frequentar a escola para além do 9. º ano. “Não imagina o murro que eu dei naquela mesa!”, recorda Albino, que trabalhava pela madrugada dentro e acumulou três esgotamentos. “Virei-me para os directores da escola e disse: ‘Vocês, que são técnicos de educação e supostamente sabem mais do que eu, expliquem-me o que é que vai acontecer ao meu filho se ele sair daqui — porque o que estão a fazer é um crime!” Teria sido criminoso, sim, porque o Pedro acabou o 12. º ano e, embora desempregado, tem agora um curso técnico-profissional. “É muito cumpridor, rigoroso, dedicado”, diz a mãe, que há muitos anos abdicou do emprego por ele. “Precisa é de um trabalho e que alguém lhe dê uma oportunidade, mas eu não vejo muito disso por aí”, ironiza o pai. Pedro Martins e Raquel Araújo ainda não pensam nessa etapa porque o Francisco tem apenas 11 anos, mas também passaram pela fase de não saber onde encontrar aquilo de que ele precisava. “No Porto havia muito pouca terapia e eu sentia-me numa aldeia. Imagine-se se eu vivesse numa zona do interior!”, equaciona Raquel. Foi assim que a família se viu obrigada a separar-se durante alguns meses, com o pai a exercer como advogado no Porto e a mãe a viver em Lisboa com o filho, para receber formação no Modelo ABA — Análise Comportamental Aplicada. “Sei que tenho muita sorte e um dos motivos é a flexibilidade de horário que sempre me deram na empresa — que é da família”, justifica a mãe do Francisco. “Por isso é que a decepção maior foi mesmo com as escolas, sobretudo com as de orientação religiosa, que foram as piores. Nem nos deixaram falar. ” Entre todas as escolas que contactou, umas não deram resposta aos pedidos, outras só tinham vagas até saberem que essa seria preenchida por um autista e a maioria não dispunha de professores receptivos a que o Francisco estivesse sempre acompanhado na sala de aula por uma terapeuta. “Estou disposta a pagar o acompanhamento para facilitar o ritmo da aula e a direcção da escola nem se importa, mas a professora vira-se p’ra mim muito ofendida com um: ‘Você tem noção do que me está a pedir? Já imaginou como isso é intrusivo? Como perturba a relação de intimidade que eu crio com os meus alunos?’”, exemplifica Raquel. Nélia Martins vive numa casa de habitação social, perdeu o emprego no Porto devido às ausências frequentes para acompanhar os dois filhos autistas, está desempregada desde 2009 e tem o marido na mesma situação, mas também se diz “uma pessoa com muita sorte”. Explica: “Mudei-me para a Maia para ter os meus filhos numa escola que lançou um projecto-piloto para autistas e foi a melhor coisa que me aconteceu. As terapias são dadas pela escola, gratuitamente, e, se não fosse isso, eu não sei o que seria da minha vida nesta altura. ” O Daniel e o Gonçalo têm, cada um, uma hora de terapia ocupacional por semana, outra de terapia da fala e 30 minutos de acompanhamento psicológico. “Tenho noção de que é muito pouco e gostava de os pôr nos cavalos e na natação, mas, a 40 ou 50 euros por terapia, não me chegavam 600 euros por mês para cada criança”, contabiliza. Se o cenário já lhe pareceu muito negro, agora sente-se “mais animada por notar que as coisas estão a evoluir um bocadinho”. É verdade que ainda precisa de um emprego que não implique rotatividade de turnos, porque o Daniel não dorme sem ela, e que também precisaria de terapia para si própria, porque às vezes se sente “a dar em maluquinha” e os médicos “só sabem receitar medicação para dormir”. Também é certo que não tem tempo para frequentar grupos de apoio e que passa temporadas sem sair porque “as pessoas vêem uma criança de nove anos a fazer uma birra num café e olham logo para a mãe como se ela não soubesse educar os filhos, sem imaginarem que o problema possa ser outro”. Ainda assim, o que Nélia queria mesmo depende sobretudo do Estado. “O problema maior são as interrupções lectivas e as férias. Os miúdos vêm para casa a 12 de Junho, só voltam à escola a 15 de Setembro e, pelo meio, não há terapia, não há psicologia, nada. O que é que eu faço com eles este tempo todo?”, aflige-se. Evita pensar no que será dos seus filhos quanto tiver 60 ou 70 anos, com receio de “perder a força e sanidade mental para tomar conta deles”, mas é por isso que gostava de perceber outro envolvimento público no problema do autismo. “Se o Estado investisse mais nas escolas para apoiar estes miúdos, mesmo fora do período de aulas, se calhar ia vê-los chegarem a adultos com capacidade para ter emprego e pagar impostos. Se não pensam nisso agora, daqui a alguns anos o que lhes vai bater à porta é um problema muito maior. ”Equacionar essas opções torna-se inevitável quando a oferta nacional de soluções residenciais especializadas para adultos autistas é escassa. A referência do sector é a APPDA — Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo e essa tem várias delegações em diferentes pontos do país, mas as de Portimão e Viseu, por exemplo, não dispõem desses recursos. A APPDA com maior oferta residencial será a de Lisboa, que acomoda 37 pessoas, e seguir-se-á a do Norte, cujo lar em Vila Nova de Gaia acolhe 20 utentes e já tem uma lista de espera de 38 pessoas entre os 16 e os 48 anos. Ana Maria Gonçalves, vice-presidente da instituição, não revelou os preços aí praticados (que algumas das famílias entrevistadas descrevem como “exorbitantes”), mas anuncia para Gaia um projecto pioneiro concebido a pensar na população autista que, embora com uma esperança média de vida normal, envelhece precocemente a partir dos 45 anos — sobretudo por culpa da medicação destinada a corrigir questões comportamentais e de problemas de saúde detectados tardiamente devido à dificuldade de comunicação verbal característica da doença. “O nosso novo projecto prevê um apoio de 24 horas sobre 24 horas a pessoas com perturbações do espectro do autismo com idade superior a 40 anos, num lar residencial com a capacidade de 12 utentes”, revela a responsável da APPDA. “Mas [considerando] que essas pessoas irão precisar durante toda a vida de algum tipo de suporte, tem de ser nossa missão sensibilizar a sociedade para a necessidade de se criarem serviços adaptados a cada grupo etário e para a obrigação de se viabilizarem esses serviços”, remata. Em Coimbra, a APPDA local abriu em Fevereiro uma residência autónoma para cinco autistas de idade superior a 16 anos e, segundo a psicóloga Tânia Morais, que acompanha o projecto, essa é “a primeira valência do género na região Centro”. Os inquilinos em causa usufruem da vivenda como qualquer grupo de jovens universitários faria, partilhando tarefas domésticas e assegurando as suas refeições, mas contam com o apoio nocturno de um técnico permanentemente disponível no local. “Durante o dia estes jovens trabalham ou estudam; à noite, vêm para casa, fazem a vida normal de qualquer outra pessoa e vão desenvolvendo cada vez mais o seu já elevado grau de autonomia”, refere a psicóloga. Enquanto isso, a residência vai funcionando também como “plataforma de teste” para a Universidade de Coimbra e diferentes empresas tecnológicas testarem novas soluções para a população com necessidades especiais: a casa está equipada com domótica e integra dispositivos de monitorização à distância, de alerta em caso de emergência e de registo online dos produtos de neuro-reabilitação utilizados pelos inquilinos. Essa inovação não distrai Tânia Morais do facto de que “eram precisas muito mais vagas residenciais para acorrer a toda a gente com autismo”. Mas para a mãe do Francisco, que há muito vem defendendo que “é preciso haver uma mudança de cultura no país”, esse poderá ser um indício de que já começou a transformação. “Ela tem de acontecer”, proclama Raquel Araújo. “E não é só para bem do meu filho e dos miúdos como ele que já cá estão — é para bem dos autistas todos que ainda hão-de vir. ”Superadas as etapas mais amargas sem consequências decisivas na auto-estima do indivíduo, contudo, a maioria desses autistas “revela grandes aptidões informáticas e um óptimo raciocínio matemático, consegue apreender instintivamente qualquer tipo de programação e acaba colocada em altos cargos a nível internacional”, como realça Patrícia de Sousa, directora técnica da Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger (APSA). Além disso, “falam muito bem Inglês de forma autodidacta”, pela mera exposição à língua a que são sujeitos na televisão e na rádio, “e daí que, entre os que tiram curso universitário, muitos optem pelo de Tradução, que não lhes exige quase esforço nenhum”. Apresentam alguma debilidade na motricidade fina, mas “têm uma excelente memória de longo prazo, um óptimo mapismo visual, são muito organizados, rápidos e perfeccionistas”. Enquadram-se particularmente bem em rotinas que a maioria das pessoas considera monótonas e também apreciam a exigência de pontualidade, que só se revelará um problema por falha alheia: “Como não têm filtro, se alguém se atrasa cinco minutos, eles não compreendem, não aceitam. ”Foi com base nesse potencial laboral que a APSA lançou um Programa de Empregabilidade ao qual já aderiu a empresa Quinta d’Avó, de molhos gourmet maioritariamente para exportação, e a REN — Redes Energéticas Nacionais. No primeiro caso, a empresa gastronómica vem confiando a montagem das suas embalagens cartonadas a “aspies” da Casa Grande, a valência da APSA para jovens com mais de 16 anos que precisam melhorar a sua formação, treinar competências e obter emprego. No que se refere à REN, está em curso um processo de recrutamento com vista à escolha de um “aspie” para um estágio de seis meses no respectivo departamento de contabilidade. A APSA, por sua vez, prepara antecipadamente os funcionários dessas empresas para as peculiaridades da síndrome e garante ainda um orientador ao novo funcionário, que, sem esse acompanhamento, teria dificuldades em preparar um currículo ou enfrentar uma entrevista de recrutamento. “É uma aprendizagem colectiva que envolve todas as partes e precisamos é de mais empresas que queiram aderir ao programa”, nota Patrícia de Sousa. As pessoas vêem uma criança de nove anos a fazer uma birra num café e olham logo para a mãe como se ela não soubesse educar os filhos, sem imaginarem que o problema possa ser outro. ”Mesmo que as coisas não corram bem à primeira, a experiência acumulada será sempre vantajosa para o autista e o argumento parte precisamente de um “aspie” de 45 anos que foi apoiado pela Casa Grande e agora integra a equipa de Recursos Humanos do Sport Lisboa e Benfica. “É bom ir passando por toda a parte e ficar a conhecer as pessoas. É um processo de aprendizagem”, afirma Nuno Valente. “Já fui vendedor, trabalhei num videoclube e depois num hospital. Lá fui muito maltratado, mas isso fez-me crescer bastante. Agora estou muito bem. Nunca tinha tido um orientador e ele é fundamental para os empresários verem que estas pessoas merecem uma oportunidade. ”A respiração do Nuno denuncia que a formulação de algumas perguntas o obrigou a traduzi-las para si próprio, mas as respostas são sempre convictas e claras, em frases curtas e pausadas. No Benfica, passou por diferentes departamentos antes de se sentir adequado e agora informa com orgulho: “O meu desempenho é apreciado por todos e tem permitido a renovação do meu contrato. Dessa forma vou ficando mais tempo. Insiro processos no computador, corrijo candidaturas que o servidor altera, revejo textos — ninguém fazia estas tarefas; foram criadas de propósito só para mim. ”Outro aspecto que lhe agrada no actual emprego são as suas condições privilegiadas para a prática desportiva. “Faço cycling aqui mesmo ao lado, três vezes por semana. É excelente. É a melhor coisa que se pode ter e com preços mais baixos e óptimas condições. ” Jogos no estádio é que só vê quando lhe oferecem bilhetes e, se alguns autistas ficam perturbados em contextos ruidosos e agitados, não é esse o caso do Nuno, que se mantém impassível perante arrufos de adeptos. “A cabeça de um Asperger é diferente da cabeça habitual das outras pessoas”, explica. “Tem uma espécie de espaço vazio onde as outras pessoas têm a zona dos sentimentos e, portanto, ele é imune a tudo o que se passa à volta. Consegue apreciar as coisas boas, tem empatia, mas ignora as más e o que estiver a acontecer de mal noutro local. É por isso que consigo estar lá perfeitamente calado e sereno. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Vale de Cambra, não há riscos de o Pedro se envolver em lutas clubísticas. Gosta de futebol, wrestling e snooker, mas, perante o televisor, vitórias e derrotas provocam-lhe quase a mesma reacção. Sente a falta dos amigos que seguiram para a universidade e agora preenchem as folgas com as namoradas, é um facto. Mas não guarda memória das más experiências na escola nem consegue explicar porque não contou a ninguém da queimadura no pescoço. Aliás, se agora sabe quem alertar no caso de a mãe ter um desmaio, é porque lho ensinaram da primeira vez que ela perdeu a consciência e ele se deixou ficar imóvel a seu lado. Será que em algum desses momentos pensou em quanto a Síndrome de Asperger fazia dele diferente? “Por acaso não”, responde o próprio. “Acho que é tudo igual, depois de aprendermos as coisas. ” Essa autoconsciência talvez explique a avidez de autodidacta com que investiga insectos e répteis, colecciona mapas e define dietas calóricas. Mas na sua rotina metódica continua por cumprir a ambição de um emprego. “Vai ser difícil”, antecipa. “Era preciso um patrão compreensivo. ”37 pessoas estão na residência da APPDA em Lisboa; a de Vila Nova de Gaia acolhe 20 utentes e já tem uma lista de espera de 38 pessoas entre os 16 e os 48 anos
REFERÊNCIAS:
Zuza Homem de Mello: A emoção da música no prazer da palavra
Muitos dariam tudo para ver o que ele viu, ouvir o que ele ouviu, ter estado nos lugares onde ele esteve. Entrevista ao musicólogo brasileiro Zuza Homem de Mello (...)

Zuza Homem de Mello: A emoção da música no prazer da palavra
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Muitos dariam tudo para ver o que ele viu, ouvir o que ele ouviu, ter estado nos lugares onde ele esteve. Entrevista ao musicólogo brasileiro Zuza Homem de Mello
TEXTO: Se há memórias inestimáveis na música popular brasileira, a de Zuza Homem de Mello impõe-se pela clareza, pela precisão e pela completude. Jornalista, crítico, investigador, radialista, produtor e, na juventude, também contrabaixista, ele foi testemunha directa e interessada de várias eras onde a música cresceu e viu crescer entusiastas e génios. De tudo aquilo onde participou já nos legou testemunhos preciosos, reunidos em livros como(1976), (dois volumes em co-autoria com o historiador Jairo Severiano, 1997 e 1998), (2001), (2003), (2007) e(2014), que lhe valeu o prémio APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) na categoria Ensaio/ Crítica/ Reportagem. Recebeu-o em Maio, numa cerimónia pública, e continua a escrever, já que temas não lhe faltam, desde prolongaraté ao papel do samba-canção na música popular brasileira. Com constante boa disposição e invejável jovialidade, vive os seus 81 anos (nasceu José Eduardo Homem de Mello a 20 de Setembro de 1933, em São Paulo) sem que a idade lhe pese. Ao lado de Ercília Lobo, sua companheira de muitos anos e parceira em mil e um entusiasmos, vai absorvendo com avidez tudo o que a vida e a música lhe vão dando. E que ele devolverá em forma de livro, na sua escrita elegante, criteriosa e inteligente. A sua história? Começou pela palavra, na família. E foi pela palavra que ele começou (seriamente) a brincar. Era português e eu admirava-o muito. Foi editor da editora Melhoramentos, editou livros de História. E mantinha o sotaque português. Tenho uma fotografia dele na cabeceira, lá em casa. Quando a gente ia visitá-lo (o meu pai e a minha mãe levavam-me a visitar tios e tias), ia de automóvel, podia-se estacionar na frente da casa que não havia problema, e enquanto eles ficavam conversando eu ia directo para o escritório do meu tio, adorava ouvi-lo falar. Era uma pessoa muito culta e ligada à literatura. Uns 11, 12 anos. Também falava aportuguesado. Embora fosse brasileiro, adorava falar como português, não falava como nós. Era motivo de um certo riso da meninada: imagina um brasileiro falando assim… Então era o tio Dias, o tio Alcyr…Era também um homem culto, um sábio. Vivia nos livros o tempo todo, era um solteirão que adorava ler. E era o mais velho dos filhos da minha avó. O meu pai era o segundo, entre os seis filhos do meu avô, Francisco Homem de Mello, engenheiro ferroviário, que passava a vida inteira no interior construindo estradas-de-ferro. Por isso nós temos no sangue a veia da importância da rede ferroviária brasileira, que foi detonada no governo de Juscelino Kubitschek para que o automobilismo penetrasse no Brasil. E essa perda que o Brasil teve nunca mais se recuperou. É um dos poucos países do mundo que, tendo tido uma linda rede ferroviária, hoje não tem nem sucata. Nada resta. O meu pai era fazendeiro. Ele, como os demais (como eu, aliás), derivou para um outro ramo de actividade que não tinha nada a ver. Porque o meu avô era engenheiro, os meus três tios foram engenheiros… Mas ele adorava bicho, planta, e foi pouco a pouco sendo designado uma espécie de gerente da fazenda da família Cintra, que era da mãe dele. Aos poucos, ele foi adquirindo pedaços e acabou se tornando o proprietário de todos. E foi comprando outras terras. A paixão do meu pai eram os cavalos de corrida, puro-sangue inglês, paixão da qual só se afastou nos últimos anos de vida. Minha mãe era doméstica, nunca trabalhou fora de casa. Até estudou em casa. Meu avô materno era médico, um célebre cirurgião do coração, fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo. Estudou em Paris e foi muito bem-sucedido e muito elogiado em São Paulo. Morreu muito cedo, do coração, em 1934, no ano seguinte ao do meu nascimento. E o meu outro avô, o paterno, morreu em 1916, quando o meu pai tinha 16 anos de idade. Praticamente não conheci nenhum deles. O meu pai só falava de agricultura. Acabo de ler uma carta que ele me deixou, sobre uma visita que fez a Portugal. Duas páginas. Só fala de plantação, coisas assim. Ou seja: para mim, essa carta só vale como relíquia, porque não tem nenhum assunto lá com o qual eu me relacione. Já os meus tios, não. Além de cultos, eram grandes contadores de histórias. E eu ficava fascinado a ouvi-los. Eu inventava histórias muito antes disso. Quando eu era menino, com dez anos, eu tinha um amigo, invisível, chamado Loto Cotovalo, com quem eu vivia. E onde eu ia, tinha que ter um lugar p’ra ele. E eu ficava conversando com ele o tempo todo. Viajava com os meus tios e perguntava: onde é o lugar do Loto? E ia sempre inventando, criando coisas. As histórias musicais geravam os espectáculos que eu fazia na fazenda. Nunca tinha tido oportunidade de ver os artistas ao vivo, mas eles eram os meus heróis. Os primeiros foram Luiz Gonzaga e Mário Reis. Sabia de cor tudo o que eles faziam. E tinha outros: Bob Nelson, Dick Farney, os grandes cantores da rádio. Fundamental. Porque os programas eram, na maioria, à noite e ao vivo, com orquestras, com conjuntos. Aquilo entrava pela minha cabeça e eu imaginava como era. Havia um programa de um comediante chamado Nhô Totico. No dia em que eu fui, levado por um tio, ao auditório da Rádio Cultura, assistir ao programa dele, fiquei excitadíssimo. Pois foi a maior decepção da minha vida. Porque o Nhô Totico era um cara que parecia um dentista, sozinho, imitando aquelas vozes todas! Na minha imaginação, eu via a figura da professora, dos alunos… Ali, perdeu toda a graça. Isso mostra bem como a rádio excitava a imaginação de uma pessoa. Ao contrário da televisão. Não, antes tocava piano, durante muito tempo. E gaita-de-boca [harmónica]. Por volta dos 13 anos. Fui para o colégio diocesano dos Irmãos Maristas e lá havia uma sala de música, com cabinas individuais. E cada cabina tinha um piano. Eu entrava numa, fechava a porta e ficava duas horas tocando sem parar, imaginado, inventando coisas. Nem ia para o recreio. Tudo intuitivo. Depois tive aulas de piano, não gostei, a professora não soube perceber quem eu era, era burocrática. E isso mostra o quão importante é ter um bom professor. Porque anos depois eu tive um. E ele percebeu. Mas o instrumento que mais me fascinava era o contrabaixo. Isso. Eu ia à noite, ouvir o Moacyr Peixoto e o Juvenal Amaral, que era o contrabaixista e meu mestre de olhar. Quando consegui comprar um contrabaixo, eu já estava tocando. Um horror! Xu Vianna, grande contrabaixista de São Paulo, me vendeu um contrabaixo só com três cordas [que era vulgar no século XIX, mas foi depois caindo em desuso até quase desaparecer]. Quando eu comecei a perceber, disse: que coisa, não é possível um contrabaixo só com três cordas, é a mesma coisa que um piano sem as teclas pretas!Um contrabaixo maravilhoso. Quando deixei de tocar, não o vendi, entreguei-o ao Luiz Chaves [1931-2007], fundador do Zimbo Trio. Todas as gravações da Elis Regina com o Zimbo Trio são feitas com o meu contrabaixo. E os discos do Zimbo Trio também. A televisão entrou na minha vida, em 1959, quando eu volto dos Estados Unidos. Fiquei lá dez anos. Mas o meu fascínio pela rádio permaneceu latente, aguardando o momento daquilo se realizar. O que só sucedeu em 1947, quando eu tinha 43 anos. Eu trabalhava num meio de comunicação muito mais ambicionado que a rádio, mas a rádio era o que me interessava. A voz, a força da voz. Um cara com voz bonita pode fazer milagres. Que eu tenho até hoje. Era indispensável para ter à mão as informações de que eu precisaria. Livros de referência tenho muitos. Em todo o lugar onde vou, compro. E isso me deu a possibilidade de ter uma biblioteca referencial muito grande. Se me perguntar coisas da música de Cuba, do México, da Argentina, eu tenho referências de tudo isso. O meu primeiro artigo foi sobre a banda do Dizzy Gillespie em São Paulo. Mas foi um artigo muito mal escrito e muito pretensioso. Eu, diante daquele verdadeiro manancial de feras de música, pus-me a discordar como se entendesse daquilo. Tinha Phil Woods, Quincy Jones… maravilhosos músicos. Mas rapidamente percebi isso e mudei. Eu tenho um caderninho de adjectivos, coleccionado através de textos que eu leio. Por exemplo: para descrição fisionómica das pessoas. Porque a memória pode falhar. Então um quero um sorriso quê? Sardónico. E uso essa precisa palavra. Foi depois da constatação de que não queria mais seguir engenharia. Fui meio que induzido pelos meus pais. Porque naquela época só tinha três profissões a seguir: advocacia, medicina e engenharia. O resto não existia. Se você pensasse em ser administrador de empresas, estava tramado. Arte, então, nem pensar! Mas eu já tocava contrabaixo e quando ficou decidido que iria por aí, mamãe me disse: “Se é para estudar música, vai ter que ser a sério. Então vai para os Estados Unidos. Fica dois anos aqui, se preparando e depois vai. ” E foi assim que aconteceu. A ideia partiu dela, não de mim. Tive que passar por um exame de aprovação, que me deixou, para falar verdade, apavorado. “E se eu for reprovado? Vou voltar p’ra casa!”Foi duro. A exigência era enorme, a Julliard era uma escola muito complicada, eles não deixavam passar nada e eu tinha dificuldades muito grandes, primeiro por causa da diferença de linguagem. Os nomes das notas são outros. Então, dar um acorde, fazer um solfejo, era tudo completamente diferente do que eu estava habituado a fazer até então. Passei normal. Eu diria que entre 1 e 10 tirei entre 6 e 7, não mais. Nunca fui um aluno brilhante, nunca. Nunca fui considerado entre os primeiros da classe, ao contrário. Era dos últimos, não só na escalação como na posição geográfica. Sempre lá atrás. E isso acaba talvez por me dar uma atracção para ser contrabaixista, porque o contrabaixista é o sujeito que fica lá atrás, vendo tudo o que está acontecendo. E sem nada atrás dele. Diante dele quase desmaiei de emoção. Mas o que mais me fascinou é que ele era uma pessoa muito directa, não se considerava o melhor contrabaixista americano do jazz. Dizia: “Quem é bom é o Oscar Pettiford, quem é bom é o Red Mitchell, eu tenho que estudar todo o dia!” E além disso ele me elevou num parâmetro de dignidade e de procedimento que me norteou pr’o resto da vida. Não que eu já não tivesse uma formação correcta, dada pela família, pelos pais, sempre fomos uma família que valorizava isso mais do que qualquer outra coisa. Mas o Ray Brown descortinou-me isso de uma maneira muito mais prática, por ser americano. Aliás, foi exactamente o que me surpreendeu na Julliard: não era um bicho-de-sete-cabeças, era muito mais fácil do que eu imaginei. Com a forma de ensinar música dos americanos, aprende-se muito mais rapidamente e em menor tempo. Mas é preciso dar muito mais duro no trabalho de casa. E muitos outros. Passei uma noite inteira conversando com Cecil Taylor, entrevistei Charles Mingus na casa dele, vi músicos que estavam ainda em formação, como o Lee Morgan. Então eu tive, na School of Jazz, o contacto físico com os meus heróis. Era o Max Roach, ali, era o Dizzy… e aquelas palestras, maravilhosas! Essa facilidade de eu gastar um ou dois dólares para ouvir quem eu quisesse, toda a noite. Era o que fazia. Nem sempre, porque tinha que estudar. Mas podendo, saía e ia quase sempre. Na School of Jazz, o final era celebrado com um concerto, no qual eu participei como contrabaixista, com um grupo chefiado pelo Jimmy Giuffre (sax) e com o Herb Ellis (guitarra). Depois fui para Nova Iorque, para a Julliard School, começar estudos de música clássica (ali não havia jazz): teoria, composição, contraponto, arranjo, história da música. Foi um curso muito produtivo, deu-me uma base de formação extraordinária. Com a ideia de escrever sobre música, era esse o meu objectivo. Aliás, já escrevia [tinha uma coluna semanal sobre jazz no jornal paulista]. E pensei que ia ser promovido. Mas fui despedido. Bela recepção! Não sei porquê. E durante uns meses tive que procurar emprego, e quando consegui foi na televisão, a plugar microfones. Até que um português, chamado senhor Spencer, percebeu que eu sabia mais e me disse: “Você vai sair e vai ser o chefe do Teatro Record. ” Passei a perna em todos eles. Só artigos esporádicos, para o. Aí é que comecei a trabalhar no meu primeiro livro [, 1976, reeditado em 2008 como], que é feito de entrevistas, contando a história da bossa-nova. A narrativa é deles, dos entrevistados: o Tom Jobim, o Vinícius, o Baden Powell, a Elis Regina, todos eles falando. Eu já os conhecia da TV. Foi aí que eu me tornei conhecido do meio musical. Não do público, porque eu era o engenheiro de som e o meu nome só aparecia na ficha técnica, nada mais que isso. Na primeira fase da TV Record, de 1959 a 1962, havia outra actividade que eu exercia: assistente do director para contratação de artistas internacionais. Aí passei a trabalhar duplamente: como engenheiro de som e como contratador. Comecei com Sammy Davis Jr. Depois vieram Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald… Na contratação de Nat King Cole não trabalhei directamente, mas trabalhei como engenheiro de som dele durante uma semana. Até que essa actividade teve que ser diminuída por causa da inflação do dólar. Aí surge na vida do director (Paulinho Machado de Carvalho) a Elis Regina, ao vencer o Festival. Ele contrata a Elis e dá-lhe o programa O Fino da Bossa. Gravei o primeiro e disse: temos aqui um programa histórico, vou guardar essa fita. E a partir daí passei a guardar fitas e tudo o que eu achava importante. E isso gerou aqueles três CD [Elis com Jair Rodrigues, O Fino da Bossa 1, 2 e 3] e tenho mais material em casa, para um dia…Primeiro, trabalhei na, como coordenador. Dois anos. Nessa altura é que comecei a trabalhar a sério no meu primeiro livro, a partir das entrevistas já gravadas. Aí entra a rádio e a produção de discos, nos anos 1970. O primeiro foi de uma cantora chamada Maria Marta. O Walter Silva, que era um grande radialista, desafiou-me a produzi-lo, na RCA Victor. Tomei a empreitada e fiz o disco, ficou muito lindo, muito bom, convoquei óptimos arranjadores. Eu tinha conhecimento de música, de técnica de som e de mixagem também. Isso foi fundamental. Em 1978, a TV Cultura já entra um bocado, quando eles me convidam como programador dos festivais de jazz. Houve dois: em 1978 e em 1980…Para falar verdade, não sei o que é que eu sou. Jornalista, ex-radialista, ex-contrabaixista, ex-produtor de discos, apresentador, escritor, historiador? Tenho um pouco de tudo isso. Para efeito de inscrição num hotel, eu ponho “jornalista”. Mas dependendo do que for, eu posso pôr outra coisa. Sou director de, fiz direcção de muitos espectáculos de pessoas de peso, Milton Nascimento, Gilberto Gil. . . É uma coisa multifacetada. Primeiro, é o grau de emoção que oprovoca. Pode provocar lágrimas, choro, felicidade. Uma coisa que atinge a nossa parte mais sensível. E isso pode acontecer em qualquer tipo de música, mesmo daquela a que nós chamamos no Brasil de “brega” [o correspondente ao termo “pimba” em Portugal]. Não importa. Pode ser um concerto como eu vi, de Stravinsky regida pelo Pierre Monteux, saí de lá vibrando, estava quase caindo pela calçada, de emoção. Mas depois da emoção vem o prazer, aquela sensação que nos faz sorrir, sempre. Quando pego num gravador e começo a escutar uma coisa, a primeira reacção visível é um sorriso, de alegria, de satisfação quando aquilo me agrada. Só depois da emoção e do prazer é que vem a técnica. Embora quando um sujeito faz um acorde errado — não é a nota desafinada que me atinge tanto, isso até perdoo —, o acorde errado não tem perdão. Porque aí o sujeito mostrou uma inaptidão, um desconhecimento do que tem que ter p’ra fazer música. Essa é a razão pela qual, nos dias de hoje, eu sinto muito a falta de harmonia. O que me faz falta no rapper é harmonia. E, no entanto, a harmonia é o resumo da história da música, desde a Grécia. A evolução harmónica é que vai traçando o rumo da música! E há ainda uma coisa, que reputo de essencial: atraio-me pelo espectáculo quando percebo que o artista se desconecta com o público, mergulhando por inteiro na obra que executa. Precisamente o oposto da grande maioria dos grandes nomes do, cuja preocupação maior é estar o mais que puderem conectados com o público que assiste. É um recurso, extramusical. Que foi sendo incorporado para pretender ser considerado música mas não é. É a transferência da música para o entretenimento. A análise que é feita dessesprende-se muito mais com aquilo que não faz parte da música. Por exemplo: belo trabalho das luzes! A potência de não sei quantos milhares de! O palco que girava, o elevador que descia ou subia, os fogos-de-artifício! É um desvio para entreter as pessoas, a alto custo, sem que isso represente a essência da música. Esta pode ser feita para três, cinco, dez, vinte ouvintes, e tchau! Quantas vezes não fui ao Five Spot Café [em Nova Iorque] escutar Thelonious Monk com John Coltrane, Shadow Wilson e Ahmed Abdul Malik (o quarteto do Monk) na companhia de 15 pessoas! Só. A Daniela Mercury acho que está caindo nessa falsidade… embora seja boa cantora. Ao contrário da maioria das pessoas, eu admiro muito a Ivete Sangalo, ela sabe cantar. Só que optou por uma carreira em que não precisa cantar bem. Pode até ficar saracoteando ali, sem abrir o bico, e está tudo certo. Ou seja: de uma certa forma, ela abre mão de uma grande qualidade que ela tem. E isso vai-se fazer valer no futuro. Quando se falar da Ivete Sangalo, daqui a uns 50 anos, a gente vai lembrar dos, mas aquilo que se ouve dela não terá tido o valor correspondente. Porque ela não soube dirigir a parte que realmente conta. Isso é um atractivo que faz com que a pessoa fique meio deslumbrada com o sucesso. E é tão fácil ficar deslumbrado com o sucesso…A Mariene de Castro é candidata a diva. Embora ela recentemente tenha se deixado levar por uma provável sugestão da gravadora de fazer uma homenagem à Clara Nunes [1942-1983] e é uma catástrofe! Ela jogou de lado o que tem de mais precioso, que é a baianidade dela! Cantar como uma Clara Nunes? Calma… Mas ela junto com as baianas é de entornar o caldo! É sen-sa-cio-nal! Agora aquela de que eu gosto muito, de entre essas novas, a Vanessa da Mata, é que é a candidata a grande estrela brasileira. Ela é diva. Ela toma conta do palco como a Bethânia faz. Ilumina o palco. E isso tem a ver com aquela pergunta sobre o que eu admiro num. É esta capacidade de a pessoa ter um magnetismo — não é carisma, palavra que não funciona, o pessoal usa carisma até para coisas: “Esse copo tem carisma!” Ora vai passar, tenha paciência! O magnetismo é outra coisa. Ou se tem ou não se tem. É uma iluminação, uma luminosidade própria. E quando ela vem para o palco, isso transparece na interpretação da música. Há mais, mas nenhuma delas tem esse magnetismo como a Vanessa da Mata. A Mônica Salmaso, que é uma óptima cantora, não tem. Mas há outros nomes a reter: a Mariana Aydar, a Bruna Caram (muito nova, mas predestinada), a Roberta Sá (das boas vozes femininas surgidas ultimamente no Brasil e que tem sabido cuidar com esmero de sua carreira), a Alice Caymmi [neta de Dorival] ou a Tulipa Ruiz, que sabe cantar. Renato Braz: para mim, é o melhor. Zé Renato, maravilhoso (mas esse é da geração anterior). Marcos Sacramento, muito bom. Atenção ao Pélico, um cantor vindo do rock e bom compositor. Fora outros que eu desconheço, porque não dá p’ra saber tudo. Por exemplo: agora ressurgiu um grupo chamado O Terno. São três músicos, cantores, um deles é filho do Maurício Pereira [do grupo Os Mulheres Negras]. Muito interessante!Acho que regrediu na música, nos últimos anos. Fazemos uma grande música, mas ouvimos uma péssima música. Os meios de comunicação empurram goela abaixo ao povo brasileiro o que há de mais rasteiro, de mais inqualificável. E vão habituando a juventude a ter isso como referência, perdendo a oportunidade de ver aquilo que de facto se faz de melhor. Porque ela se satisfaz com uma comida ruim: mal temperada, mal cozida e que ainda vem no prato errado. É horrível! Se hoje você ligar a televisão em São Paulo, no Rio ou em qualquer lugar do Brasil à espera de ouvir música brasileira, você está frito. E vai dizer que o Brasil não sabe fazer música. A música e o futebol. O Brasil não é admirado pelo algodão, pelas máquinas agrícolas, pelos vinhos… Não! É admirado pelo futebol e pela música popular, ponto final. Essas duas actividades são representativas da admiração que portugueses, coreanos, seja quem for, têm pelo Brasil. Nas outras artes, há alguma coisa que tem evoluído. Por exemplo, a dança. A literatura também. Basta ir à FLIP [Festa Literária Internacional de Paraty] e ver. E quem são as pessoas que vão à FLIP? Aquelas que querem ver aquilo que não é o Brasil que se fala e que se escreve. Aquele é o Brasil que se admira, o que nós queremos ver, o Brasil que a gente sente orgulho de falar: isso é brasileiro! Essa face do Brasil existe, está lá, viva, acontecendo em qualquer lugar, mas 80% da população não tem a menor noção. Tem gente de 20 anos que não sabe quem foi a Elis Regina, é um novo vocábulo p’ra eles. É como se nos Estados Unidos alguém nunca tivesse ouvido falar do Frank Sinatra! Ou em Portugal alguém nunca ter ouvido falar da Amália Rodrigues! É um monumento nacional!Isso me deixa muito preocupado com a juventude. Daqui a alguns anos, não sei o que essa juventude vai ter de bagagem para poder se orgulhar do que teve, como nós tivemos na juventude. Nós tivemos uma vivência que era uma verdadeira cachoeira de maravilhosos criadores. De repente chega um Chico César, um Zeca Baleiro, então não cessa, é só ir atrás. Mas só vai atrás quem tem conhecimento. E essa pessoa é que está faltando no Brasil. Não é o criador, é quem sabe reconhecer o criador. Dar força para fulano, como foi feito na vida do Milton Nascimento pelo Aldair Lessa: “Esse cara não vende nada!” “Ele vai vender. ” Acreditar na visão de quem percebe. Ia-se comemorar 50 anos do nascimento da Elis, em 1995, e queriam um trabalho representativo. E eu disse: “Tenho lá em casa a fita. ” Foi a gravação de um espectáculo que nós fizemos no Anhembi [a 25 de Julho de 1977], produzido por mim para uma série chamada O Fino da Música, da Rádio Jovem Pan. O terceiro foi esse e eu tinha a fita. Começámos a trabalhar em cima dela, limámos os demais intérpretes (Ivan Lins, João Bosco, Renato Teixeira, agora existe a possibilidade de relançar esse trabalho incluindo esses intérpretes) e fez-se o disco [, ed. Velas, 1995]. Estava gloriosa. Grávida da Maria Rita, com sete meses, teve a ideia de convocar os músicos do conjunto anterior dela, o Hélio Delmiro, o Luizão Maia, o Paulinho Braga não pôde porque estava fora do Brasil e ela pegou — na hora! — o Toninho Pinheiro, que era baterista do César [Camargo Mariano, marido de Elis] e era o melhor. Anos depois, a produção foi finalizada pelo César nos Estados Unidos. Ele é parte fundamental no chegar-se a um resultado que foi elogiado pela revistacomo o melhor disco ao vivo da Elis Regina. E eu concordo inteiramente. Porque ela está inteira, vivendo a sua plenitude. E foi fácil p’ra ela fazer esse espectáculo. Ela se entregou felicíssima a um público que estava pronto para aplaudi-la e sair de lá felicíssimo. Bem, estou escrevendo o meu próximo livro, já escrevi três quartos. Mas coisas que não tenha ainda feito? Arranjos, arranjos de música. A actividade de arranjador me seduz sobremaneira. Não chega a ser uma frustração, porque eu cheguei perto disso. Nunca fiz porque fui esquecendo aquelas manhas todas, mas na minha cabeça há muitas ideias fervilhando sobre um tema, aqui podia ser assim, ali de outra maneira, fazer um arranjo sobre uma composição já existente. Sinto que é uma coisa que me sairia muito bem. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Não queremos materialismo dialéctico. Queremos materialismo só
O tradutor Paulo Faria foi com o irmão a Moçambique, em busca dos lugares onde o pai fez a Guerra Colonial. Acabou em Titimane, onde o pai nunca esteve, a ajudar no projecto de electrificação da aldeia. E se, no fim de contas, a electricidade não chegar? (...)

Não queremos materialismo dialéctico. Queremos materialismo só
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O tradutor Paulo Faria foi com o irmão a Moçambique, em busca dos lugares onde o pai fez a Guerra Colonial. Acabou em Titimane, onde o pai nunca esteve, a ajudar no projecto de electrificação da aldeia. E se, no fim de contas, a electricidade não chegar?
TEXTO: Caminhamos atrás do chefe de bairro chamado Milagre Júlio para ir “marcar o ponto” em mais uma casa de Titimane, apertamos o passo porque as casas são muitas e anoitece cedo, quatro mil moradores, e eis senão quando, à nossa passagem, irrompe de trás de uma cerca de caniços um coro estridente de gritos femininos, as línguas a dançar entre os lábios para entrecortar os clamores e formar um som trémulo, um crescendo que só pode ser o prelúdio de uma catástrofe ou de um triunfo retumbante, não há meio-termo. Milagre, Miséria e Raiva são aqui nomes de gente, nesta aldeia sem electricidade, sem água canalizada, em pleno Niassa, nos confins de Moçambique. Nós somos brancos e viemos ajudar. Se a nossa ajuda for em vão, haverá mais miséria, mais raiva. Talvez precisemos de um pequeno milagre. As pessoas posam diante das suas casas e fitam a objectiva da minha máquina fotográfica com olhares em que perpassam imensas coisas: reserva, alguma surpresa pelo inédito da situação, orgulho, uma certa esperança. Muitas mulheres correm para dentro de casa, embrulham-se na melhor capulana antes de tornarem a sair e de se perfilarem para o retrato. E se, no fim de contas, a electricidade não chegar? Com que direito entrei nestes terreiros, nestes quintais, com que direito despertei o bicho da esperança que dormia, muito quieto, escondido na sua toca, com que direito o atraí cá para fora e o fiz empoleirar-se no ombro destas pessoas, a segredar-lhes promessas aos ouvidos e a fazê-las sorrir vagamente? Talvez a electricidade, só por si, não baste. A norte daqui, mais perto da fronteira com a Tanzânia, matar um elefante numa reserva de caça custa 50 mil dólares. Uma vez, vi morrer um javali, atropelado numa estrada, e parecia uma pessoa, a arquejar, ofegante, muito ferido, antes de acabarem com ele. Como será a agonia de um elefante?Titimane tem também o seu elefante. É um tanque de guerra russo que expirou por aqui há muitos anos, durante a guerra civil, e a quem arrancaram o motor, deixando só a carcaça de aço, vazia por dentro. A aldeia cresceu, o terreno onde o paquiderme de guerra expirou estava bem situado, o tanque encontra-se agora no quintal de uma casa, com feixes de capim por cima, a secar ao sol, e, do outro lado, uma bicicleta encostada às lagartas. — Nós não queremos materialismo dialéctico, nem sequer materialismo científico. Queremos materialismo só — palavras de Pedro Raiva, fazendo jus ao seu nome. É bom recordar a guerra quando ela acabou. Aqui, a guerra continuaSomos dois irmãos, o nosso pai fez a Guerra Colonial por estas paragens em 1967 e 1968, viemos à procura de memórias, mas a realidade presente foi mais forte e impôs-se. Que importa a guerra dos nossos pais e dos nossos avós quando a vida é pobre e por vezes os partos se fazem à luz do petróleo e a enfermeira da maternidade diz “Elas sofrem muito, e “elas” são as grávidas e há várias crianças da aldeia com os círculos perfeitos da tinha desenhados no cabelo encarapinhado? É bom recordar a guerra quando ela acabou. Aqui, a guerra continua. Trepo para cima da torre do tanque russo para tirar fotografias. Lá do alto, avista-se bem a maternidade e o centro de saúde, que são mesmo ao lado. Um parto à luz do petróleo é uma pequena guerra, com as suas baixas e a sua frente de batalha. Milagre Júlio caminha em passo firme, não sorri. — É perto?— Sim, é perto. Atravessamos a aldeia de lés a lés, as mulheres vêem-nos passar e soltam o seu clamor, as crianças seguem-nos em cortejo desordenado. Viro-me para as fotografar, fogem em tropel, sem olhar para trás. Ao abrigo das cercas feitas de madeira e de caniços, de dormentes metálicos do caminho-de-ferro, outras correm, mais afoitas. Vejo-lhes os vultos, trepam às árvores, gritam-nos:— Mucunha, como está? Como está?é “branco” em língua macua. Substantivo, não adjectivo. Os cães de Titimane não ladram. Vêem-nos passar com olhos parados, espalmam-se contra o chão, ficam em silêncio, abstêm-se do histerismo canino luso que faz da travessia pedestre de qualquer aldeola portuguesa um exercício de masoquismo auditivo. Todas as palavras são preciosas em Titimane, até os cães o sabem, a melhor defesa contra a fome é a reserva, o laconismo de não proclamar, de não exprimir, de guardar para si as palavras, que são também alimento, e mastigá-las devagar, saboreá-las em dias de maior penúria. Em Titimane não há crianças esqueléticas, a morrer de fome. Há crianças de ventre inchado, olhar ávido. A fome não vive na aldeia, mas ronda por perto. Miséria Cidália não quer mudar de nome. Concluiu o 12. º ano de escolaridade em Cuamba, arranjou este biscate como inquiridora na aldeia de Titimane durante uma semana, recebeu formação juntamente com duas dezenas de colegas para preencher os inquéritos à população, fala com os habitantes em macua, escreve nos espaços em branco em português. Anota no canto superior direito da folha de rosto a sigla do ponto GPS da casa. Na escola, as colegas diziam-lhe que mudasse de nome, que passasse a ser Cidália Miséria em vez de Miséria Cidália, para os outros dizerem “vem aí a Cidália” em vez de “vem aí a Miséria”. Mas Miséria gosta do nome que tem, não quer mudar. “Não mudo, Miséria é rica mesmo. ”— Quando? Quando a electricidade? — pergunta Felismina Raimundo, a enfermeira, à porta do centro de saúde. Todas as palavras contam, o que eu disser ficará gravado nos ouvidos e nos espíritos como promessa indelével. Respondo que estes inquéritos e esta marcação do ponto GPS de cada edifício da aldeia constitui somente, pelo que me foi explicado, uma avaliação preliminar da viabilidade do projecto de electrificação da aldeia. Os olhos dela perdem um bocadinho o brilho, Felismina talvez se arrependa da pergunta que fez. Queria saber ao certo quando, ficou a saber que talvez, que provavelmente. Talvez seja preciso um pequeno milagre. Quando o gerador da maternidade falha, muitas súplicas ficam por atender. O tanque de guerra russo tem o canhão apontado para norte, para o horizonte de onde desciam os guerrilheiros da Renamo. Veio de muito longe para morrer aqui, veio do frio russo para o braseiro de Moçambique e não se conseguiu adaptar. Os tanques de guerra são bichos sensíveis, dão-se mal com as mudanças bruscas de clima, de terreno, de dieta. Peço licença em macua à porta do quintal: “Odi! Odi!” Não está ninguém em casa, entro para o terreiro, fotografo o tanque. É um T-34 da Segunda Guerra Mundial, com capulanas estendidas na chapa, a secar. Talvez há muito, muito tempo, acabado de sair da fábrica, tenha arremetido contra as linhas nazis, juntamente com outros da sua estirpe. A quatro horas daqui, para norte, os caçadores furtivos mataram um elefante há um ano, junto a uma picada recôndita, perto do quartel onde o nosso pai fez a guerra, mas não vale a pena fazer o desvio, os ossos já lá não estão, as hienas devoraram-nos. Este mastodonte russo é indestrutível, não há hienas que metam o dente neste aço, não há sol que o faça apodrecer, o cano pende como uma tromba fossilizada e aponta teimosamente para norte, à espera que a guerra recomece, como que a prometer, soturno, que as grávidas vão continuar a sofrer muito à luz do petróleo enquanto não o tirarem do meio das casas onde vivem as pessoas, enquanto não vier uma grua levantá-lo nos ares, numa nuvem de pó, mais ao lixo que lhe enche a pança, estripada de tudo o que tinha utilidade ou que podia servir de brinquedo, levantá-lo nos ares e levá-lo para a reciclagem e convertê-lo em electricidade para esta gente. Um garoto aproxima-se do centro de saúde com uma galinha amarrada pelas patas, pendurada de cabeça para baixo. Quer vendê-la. A mãe viu forasteiros, alguns brancos, mandou-o mercadejar. Os inquiridores vindos de Cuamba, adolescentes de calças de ganga e ténis coloridos, pegam na galinha pelas patas, avaliam-lhe o peso, fazendo-a subir e descer baloiçadamente, perguntam o preço. Cento e cinquenta meticais [3 euros e 20 cêntimos]. Dizem que é muito. Em Cuamba, sim, seria o preço justo. Aqui, na aldeia, a trinta quilómetros, é caro. A galinha não protesta, não se debate, encurva o pescoço e nada mais. Trinta e oito meticais e meio valem um dólar. Comprar o direito a matar um elefante em Moçambique custa doze mil e oitocentas e trinta e três galinhas, vendidas a conto e cinquenta meticais. Ou nove mil e seiscentas e vinte e cinco capulanas da Tanzânia, vendidas no mercado de Titimane a duzentos meticais cada uma. O garoto afasta-se com a galinha suspensa pelas patas. Se a conseguir vender a alguém por este preço e guardar o dinheiro, ficam a faltar-lhe outras doze mil e oitocentas e trinta e duas galinhas para poder matar um elefante sem ser perseguido pelos guardas florestais bóeres que vigiam estas terras. Este mastodonte russo é indestrutível, não há hienas que metam o dente neste aço, não há sol que o faça apodrecerNum só dia, em Fevereiro de 1968, o nosso pai vacinou contra a varíola trezentas e uma pessoas numa aldeia do Niassa. Sete homens, setenta mulheres e duzentas e vinte e quatro crianças. Eu e o meu irmão marcámos noventa e cinco pontos GPS em Titimane ao longo de três dias. — É perto?— É perto, sim. Caminhamos durante meia hora em passo acelerado, entramos na casa de Esperado Wirissone, de Conhecido Alfredo, de Benvindo Eduardo, de Oneita Bento. As casas são feitas de tijolos de barro cru, secos ao sol, os telhados são de capim. A argamassa é a terra molhada. As pessoas perfilam-se em frente à sua casa, olham-nos nos olhos, querem acreditar mas talvez prefiram não acreditar com demasiada convicção. Outros vieram e partiram antes de nós, e quase nada deixaram aqui. Só ficou o tanque de guerra, e depois alguém saiu de casa dos pais para constituir família e construiu a sua casa nova e ficou com o T-34 no quintal. Um homem abriu um “clube” em sua casa. Grossos barrotes de madeira alinhados no chão, com uma coxia no meio, formam uma plateia ao ar livre. Atrás, um caniço impede os intrusos de verem o filme. À noite, traz a televisão de dezassete polegadas para o alpendre e, com a energia de um gerador, projecta filmes em DVD. Os bilhetes custam dois meticais. Um elefante traz dentro de si quase um milhão de espectadores deste cinema. Pedro Raiva aborda uma das técnicas portuguesas que coordenam este estudo preliminar de viabilidade. Serviu de tradutor na primeira reunião com os moradores da aldeia, deu a cara, tornou-se co-responsável, quem traduz um discurso fá-lo seu, as palavras saíram da boca dele em macua, mescladas com palavras portuguesas de que esta língua se apropriou, entre elas a mais importante de todas, a palavra “energia”. Agora, Pedro Raiva quer vincar a diferença, quer distanciar-se das palavras que traduziu. A diatribe em que está prestes a lançar-se será ouvida, será passada de boca em boca, será por ele usada como arma de defesa, no caso de as coisas não correrem como o previsto, no caso de a energia, afinal, não chegar às casas. — Vocês são engenheiros, têm estudos, vêm de Portugal enganar o povo moçambicano. Pedro chama-se Raiva e quer deitá-la cá para fora, sabe que ninguém o vai mandar calar. A miséria tem esta riqueza, a de nada ter a perder. Trezentas e uma pessoas vacinadas numa só tarde, noventa e cinco casas georreferenciadas em três dias. Muito pouco para aplacar a raiva, para mitigar a miséria, para fazer um milagre. A técnica, que não é engenheira, diz a Pedro que desde o início ficou claro que aquele projecto era como um namoro, que não era certo que houvesse casamento. Mas será legítimo vir de tão longe e namorar com um estranho sem a certeza absoluta de que o casamento se fará? A alternativa seria nem sequer aparecer, nem sequer fazer a corte a estas pessoas, deixá-las entregues à sua sorte, sem lhes despertar estas paixões, talvez efémeras, talvez irrealistas, como é próprio das verdadeiras paixões. Enquanto caminho ao sol, coberto de poeira, atrás de Milagre Júlio, ao encontro de uma casa que afinal não é perto, pelo menos de acordo com os nossos padrões europeus de locomoção automóvel, um homem sai ao meu encontro, pede para me falar. É dono de uma carpintaria, quer saber se a electricidade vai lá chegar ou se a energia é apenas para as casas e para as lojas, os “negócios”. Pergunto-lhe se já respondeu ao inquérito, se já “tiraram o ponto” na casa dele, ele responde que sim. Peço-lhe que vá ao mercado falar com os técnicos, não posso responder por eles, tudo o que eu disser fará lei, ficará gravado para memória futura. Pedro chama-se Raiva e quer deitá-la cá para fora, sabe que ninguém o vai mandar calarPedro Raiva não quer saber de namoros, é certamente casado e pai de filhos, aparenta quarenta e muitos ou cinquenta e tal, os namoros e os seus desgostos já ficaram para trás na sua vida. — Olhe, nós já tivemos Samora Machel, já tivemos Joaquim Chissano, já tivemos Guebuza. . . Não queremos materialismo dialéctico, nem sequer materialismo científico, queremos materialismo só. Os rostos das pessoas perfiladas diante das suas casas fitam a minha objectiva e em todos os olhos ecoam um bocadinho as palavras cortantes de Raiva. Parecem dizer-me: “Vais voltar para Portugal e vais contar a tua história, mas é só tua, não é nossa, a nossa é este imenso cansaço, esta imensa reserva, esta esperança que é preciso puxar do fundo do poço como água, à força de braços, dando à manivela, esta miséria, esta raiva, este milagre. ”Milagre Júlio explica-nos que as crianças da aldeia dizem que eu e o meu irmão somos “os americanos”, por sermos tão brancos. Besuntamo-nos com protector solar à sombra de uma árvore, diante de uma família reunida em frente à sua casa. Crianças e adultos descrevem em voz baixa os nossos gestos, comentam, sem tirar os olhos de nós, como quem assiste a um filme. Pergunto a Milagre Júlio se as pessoas sabem o que estamos a fazer. Ele diz que aquele líquido deve ser para nos refrescar. Digo que não, que é para proteger das queimaduras do sol. Intrusos portadores da esperança, somos bem frágeis, afinal. O sol morde-nos a pele, ameaça reduzir-nos a pó. Como lidar com tantos pares de olhos cravados em nós? Ignorá-los, sorrir-lhes? Pouso o pé em cima de um tronco caído para me apoiar, um miúdo aproxima-se, apoia o pé no tronco, imita na perfeição a minha postura, muito sério. Com que direito sirvo impunemente de modelo seja a quem for? A nossa pele defende-se, escurece, mas nunca será como a deles. Passo junto a um dos poços da aldeia, uma rapariga pára de dar à bomba, fica a olhar para mim, não sorri, não foge, deixa-se fotografar. “Como está? Como está, mucunha?” Há sombras atrás de uma vedação de caniços, corridas, risadas. Os cães amarelos escondem-se pelos cantos, desviam os olhos também amarelos, engolem os ladridos, talvez saibam que não há por aqui muito que roubar, nem muito que guardar. Georreferenciamos cada casa com um telemóvel ligado ao satélite, fotografamos os edifícios dentro de cada quintal com esse mesmo telemóvel. Casa principal, casa secundária, latrina, celeiro e o mais que houver. Eu fotografo também com a minha máquina, que estica o pescoço de galinha preta e o torna a encolher, silenciosa. No nosso segundo dia de voluntariado, várias pessoas vêm ter connosco. Outras equipas foram “marcar o ponto” na casa delas, mas não levavam uma máquina fotográfica “a sério”, só um telemóvel. Faz diferença? Que não, que não faz. Todos os nossos gestos são avaliados, a apatia de quem nos olha é só aparente, ao crepúsculo, depois de partirmos, os moradores comparam experiências, trocam histórias, descrevem os forasteiros, as suas indumentárias, os artefactos de que vinham munidos, analisam a sequência na coreografia dos nossos movimentos, pesam as diferenças. A miséria sabe que cada pormenor conta, a miséria sobrevive calculando cada grama, cada metical, cada gesto. A miséria doseia tudo, até a esperança, mas há qualquer coisa de irreprimível nos gritos estridentes e trémulos das mulheres que nos acolhem na curva de um carreiro poeirento, quando surgimos de trás de uma vedação. Nós, os americanos, parecidos com os dos filmes ao ar livre a dois meticais, um ecrã de dezassete polegadas para dezenas de espectadores, um milhão de pessoas dentro de um elefante. E se a electricidade não vier?A aldeia onde o nosso pai ficou aquartelado em pleno mato quando chegou ao Niassa, em Novembro de 1967, já não existe. Os habitantes abandonaram-na por causa da guerra civil, os casebres de terra dissolveram-se sem deixar rasto, o capim seco que os cobria apodreceu, os edifícios do quartel estão em ruínas, abafados pelo ervaçal mais alto do que eu. A Guerra Colonial é uma coisa longínqua, as fotografias daquele tempo despertam entusiasmo, mas talvez por serem isso mesmo, fotografias, nas mãos de pessoas que não estão habituadas a ver assim de perto imagens de gente como elas. Ninguém se reconhece, ninguém reconhece os próprios pais, nem um qualquer familiar ou amigo. Ninguém reconhece o nosso pai. “Foi há muito tempo. ”A guerra que importa é a outra, a guerra civil, que obrigou as pessoas a abandonar as suas casas, que destruiu as culturas e os pomares, que deixou o tanque em Titimane. Temos o regresso a Nampula marcado para dali a quatro dias, oferecemo-nos para ajudar neste estudo preliminar de viabilidade. O nosso pai deixou marcas nos braços de centenas de pessoas, cicatrizes junto ao ombro que parecem queimaduras, sentimo-nos compelidos a deixar aqui uma pequena marca, quarenta e sete anos depois. Uma oferenda, talvez. O nosso suor, o nosso cansaço, as nossas pernas doridas ao fim do dia, as células da nossa pele mortas pelo sol, quilos de poeira vermelha nos pulmões para mitigar a rapacidade passada e presente dos nossos congéneres de pele branca. Mas quem nos incumbiu de tão ingénua missão? Quem é o dono deste crime?, escreveu Osvaldo Alcântara, do lado oposto deste continente, em Cabo Verde, sete anos antes de o meu pai desembarcar em Moçambique, sete anos antes de eu nascer. Almoçamos na caixa da camioneta, juntamente com os inquiridores. Um saco de plástico preto por pessoa, lá dentro uma caixa de esferovite com arroz e frango. Comida suculenta, saborosa. Uma lata de sumo. Uma garrafa de água. Uma banana. Fecho a caixa, acabei. — Não quer mais?Digo que não. — Ponha aqui. A guerra que importa é a outra, a guerra civil, que obrigou as pessoas a abandonar as suas casas, que destruiu as culturas e os pomares, que deixou o tanque em TitimanePergunto se é só o arroz que ele quer. — Não, tudo. Rapo o arroz e os ossos de frango com o garfo de plástico para dentro da caixa do inquiridor. Mora perto de Cuamba, numa casa melhor do que as de Titimane, porque é de tijolo cozido e tem telhado de chapa ondulada. E tem electricidade e televisão. Em volta da camioneta há crianças da aldeia que ali ficam o dia inteiro, a remirar-nos, a atropelarem-se para as fotografias. Pedem comida, pedem as garrafas de plástico. — Garrafa, garrafa. Palavras em surdina, teimosas, incansáveis. — Garrafa, garrafa. Um dos miúdos recebeu um pacote de sumo vazio. Abre-o, espalma-o com cuidado, lambe-o por dentro metodicamente. Sempre que a camioneta ou a carrinha arrancam, os miúdos correm atrás, tentam agarrar-se à traseira, baloiçam ao longo de alguns metros, soltam-se quando o veículo acelera, envoltos em pó. No último dia, regresso a Cuamba na camioneta, por não haver lugar na carrinha. Assim que a camioneta ganha velocidade, os inquiridores, sentados nos taipais, num gesto espontâneo e unânime, com toda a naturalidade, agarram nos sacos pretos cheios com o lixo e com os restos do almoço, amontoados no meio da caixa, e atiram-nos pela borda fora, como a tripulação de um navio a alijar a carga supérflua durante uma tempestade. A estrada fica juncada de caixas de esferovite, latas vazias, garrafas de plástico. As crianças que vinham a correr atrás disputam o saque. É agora que precisamos de um pequeno milagre, tem de ser agora. Miséria está de óculos escuros, não lhe vejo os olhos, mas sorri, a mexer no telemóvel, agitada pelos solavancos da estrada de terra batida cheia de buracos. Fez o ensino secundário sem ter um único livro em casa. Pediu livros emprestados a colegas, foi à biblioteca de Cuamba. Não deixam requisitar livros para casa. Quando o solavanco é mais violento, soltamos um grito em uníssono, agarramo-nos aos taipais, tentamos proteger a carne e os ossos da mordedura do metal. Poeira nos pulmões e nódoas negras no corpo como oferenda a Moçambique. Mas não chega. Antes de subir para a caixa da camioneta, fui outra vez num instante fotografar o T-34. Era a luz das cinco e meia, a luz do crepúsculo invernal no Niassa, a hora mágica, que aqui é tão breve, e quis aproveitar. Desta vez, está gente em casa. Uma rapariga de camisola vermelha e duas irmãs mais novas. Peço-lhes para entrar no quintal, a mais velha diz que sim, está a moer cereal no pilão. Tiro fotografias, chamo-as para posarem diante do tanque de guerra, elas vêm a correr, não esperavam outra coisa, enfileiram-se, encostadas à chapa daquele monumento encalhado, de canhão apontado aos guerrilheiros que já não existem, a prolongar a guerra. Dentro de dois anos, se tudo correr segundo os planos, a central eléctrica de Titimane será inaugurada. E então, sim, talvez tenha acontecido aqui um pequeno milagre, a carcaça do tanque terá desaparecido, a maternidade terá energia eléctrica. A rapariga da camisola vermelha dará à luz sem sofrer tanto como a mãe e como a avó. Chamará à filha Benvinda ou Felicidade, não lhe chamará Miséria. O perto continuará a ser longe pelos nossos padrões europeus. Pedro Raiva verá que não foi tudo mentira e as crianças de Titimane não ficarão paradas em volta da camioneta dos forasteiros e não quererão “materialismo só”, quererão mais, muito mais do que materialismo. Miséria Cidália, essa, continuará a chamar-se teimosamente assim, não terá pedido a ninguém que a trate por Cidália Miséria. E eu e o meu irmão teremos sido varridos da memória de toda esta gente, assim como o nosso pai o foi, mas não porque novas guerras e novas calamidades se terão abatido sobre esta terra, apenas porque, vestidas com túnicas impolutas, estas pessoas terão deixado de pagar pelos crimes de que não são donas e já não precisarão de suplicar. Que venha esse pequeno milagre. Estamos prontos. TúnicaPoeira nos pulmões e nódoas negras no corpo como oferenda a Moçambique. Mas não chegaSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
A dieta d’ Ella salvou-a
Tem um blogue de receitas com milhões de visitas por mês ?e mais de 400 mil seguidores no Instagram. Ella Woodward tornou-se um fenómeno depois de ter tido uma doença rara e de ter melhorado com uma dieta alimentar. (...)

A dieta d’ Ella salvou-a
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Tem um blogue de receitas com milhões de visitas por mês ?e mais de 400 mil seguidores no Instagram. Ella Woodward tornou-se um fenómeno depois de ter tido uma doença rara e de ter melhorado com uma dieta alimentar.
TEXTO: Foi de repente, no final do Verão de 2011, que a vida de Ella Woodward se suspendeu. Filha do deputado trabalhista britânico Shaun Woodward e de Camilla Sainsbury (da família proprietária dos supermercados Sainsbury), tinha 19 anos e terminara o segundo ano do curso de História da Arte na Universidade de St. Andrews. Passara o Verão em Paris a fazer alguns trabalhos como modelo, tinha um namorado e tudo estava a correr bem. Mas, de um momento para o outro, o seu corpo começou a ter um comportamento estranho. Basicamente, Ella não conseguia manter-se de pé e tinha um permanente mal-estar que se manifestava de diversas maneiras, cada uma mais incómoda do que a outra. “Não conseguia sequer andar na rua, dormia 16 horas por dia, desmaiava, tinha dores crónicas, palpitações ininterruptas, problemas de estômago insuportáveis, dores de cabeça constantes”, descreve no seu livro As Delícias de Ella (que acaba de ser editado em Portugal pela Lua de Papel). Depois de muitos exames e de muitas entradas e saídas de hospitais, os médicos diagnosticaram-lhe uma doença rara: síndrome de taquicardia postural. Trata-se de uma doença — que pode ter uma origem viral — que afecta todo o funcionamento do sistema nervoso autónomo, agravando-se quando a pessoa está de pé. Não, não era “do foro psicológico”, como muitas pessoas lhe diziam. No entanto, foram precisos quatro meses até os médicos conseguirem identificar exactamente o problema. E mesmo aí as coisas não melhoraram. Os esteróides e medicamentos que tomava não alteravam significativamente o seu estado e Ella estava desesperada. “Continuava praticamente presa à cama, o que me provocava uma sensação de grande isolamento, pelo que a minha confiança e auto-estima desapareceram”, escreve. A certa altura, achando que não podia continuar assim, decidiu que ia fazer com o namorado uma viagem a Marrocos que tinha sido combinada antes de ela adoecer. “Acabei por ser trazida para casa, semi-inconsciente, numa cadeira de rodas. ”Foi então que resolveu começar a pesquisar na Internet e encontrou um livro escrito por uma norte-americana, Kris Carr, que tinha tido um cancro e mudara radicalmente a forma como se alimentava. Ella nunca tinha pensado muito na forma como comia. Mas o relato de Carr em Crazy Sexy Diet convenceu-a. Na verdade, até essa altura, a alimentação de Ella era muito pouco saudável. “Muita junk food, pizzas, hambúrgueres, chocolates”, conta à Revista 2 durante uma conversa numa tarde chuvosa, no restaurante vegetariano Jardim dos Sentidos, em Lisboa, depois de um almoço que consistiu em várias das suas receitas. “No Reino Unido, muita gente come grandes quantidades de açúcar. As pessoas crescem com isso, o açúcar e os doces estão em todo o lado, são algo normal, não são para um momento especial. Por isso, limitava-me a comer o que os outros comiam e não pensava muito no que estava a pôr no meu corpo. ”A descrição que faz no livro é bastante mais assustadora. Não comia fruta nem legumes (à excepção de bananas e milho) e era viciada em doces. “Até há quatro anos, eu era uma consumidora feroz de açúcar, posso mesmo afirmar que a minha dependência era total”, afirma, para de seguida descrever a mistura que gostava de fazer com as irmãs e que consistia em lançar para uma taça de coisas como chocolates de leite, marshmallows, gomas, caramelos, xarope de glucose e Rice Krispies, deixando-as derreter até formarem “um monte deliciosamente pegajoso de chocolate”. Neste momento, o açúcar foi uma das coisas que desapareceram da vida de Ella — assim como a carne, os produtos lácteos, o glúten e os alimentos processados, com químicos e aditivos. A sua alimentação baseia-se em grande parte em fruta e legumes. “Não como carne nenhuma e, embora coma peixe às vezes, sinto-me melhor quando não o faço, porque acho que é mais difícil de digerir que os vegetais”, explica. Depois de ler o livro de Carr e recolher mais informação na Internet, decidiu alterar a alimentação. “Foi um processo muito lento”, conta-nos. “Foram precisos 18 meses para poder deixar a medicação e não sentia melhoras todos os dias. ” Mesmo assim, insistiu. Mas teve de vencer outro obstáculo: o seu total desconhecimento das mais básicas técnicas de cozinha. “Conseguia cozer esparguete e fazer ovos mexidos, mas era tudo. ” Arranjou três receitas — papa de banana e mirtilos para o pequeno-almoço, torrada de trigo sarraceno com abacate e tomates assados, para o almoço, e massa integral com molho de legumes, para o jantar — que comeu todos os dias durante três meses. Os sinais de melhoras eram encorajadores, mas Ella estava farta daqueles três pratos. Resolveu então começar a experimentar outros. “Aprendi a cozinhar brincando com os alimentos. Nunca segui regras com as receitas, fui experimentado para ver o que acontecia. Aprendi por tentativa e erro e as receitas foram surgindo. ”Para garantir que não desistia, começou um blogue. Teve um sucesso extraordinário — e, para ela, totalmente inesperado. O seu livro lançado agora em Portugal chegou às livrarias britânicas em Janeiro deste ano e durante seis semanas manteve-se no primeiro lugar do top de vendas. O seu blogue Deliciously Ella tem seis milhões de visitas por mês e no Instagram atingiu já os 400 mil seguidores. No livro e no blogue explica quais os ingredientes básicos que tem na cozinha — vinagre de sidra, leite de coco, farinhas e massas sem glúten, tâmaras medjool (que usa como substituto do açúcar, alertando no entanto para o facto de serem mais caras do que as outras), manteigas de oleaginosas, sementes, adoçantes, etc. Ensina a fazer leites e sais caseiros, a cozinhar cereais, faz “pataniscas” de quinoa e brownies de batata-doce ou tarte de lima, e responde a perguntas como “como faz quando sai com amigos?” ou “como é que se ingerem proteínas suficientes numa dieta de base vegetal?”. E entre os seus planos para o futuro próximo está a abertura de uma cadeia de restaurantes em Londres (o nome ainda é secreto) com as suas receitas — está previsto que o primeiro inaugure já daqui a poucas semanas. Ella não explica de que forma a dieta influenciou a doença e também não obteve essa explicação da parte dos médicos. “A decisão de alterar a forma como me alimentava foi minha e completamente independente deles”, afirma. Os sintomas desapareceram, mas mostra-se cautelosa. “Acho que se voltar a comer imenso gelado e chocolate podem voltar, mas no dia-a-dia deixei de ter sintomas. Julgo que tem tudo a ver com o facto de equilibrarmos o nosso corpo. ”Nunca diz que ficou curada, mas defende que “há muitas doenças ligadas ao estilo de vida, pessoas com a síndrome do intestino irritado, por exemplo, ou pessoas que sentem pouca energia ou muitas dores de cabeça”. Nesses casos, acha que “se deve olhar para a alimentação”. Quanto a outras doenças mais complicadas, diz perceber “que os médicos se mostrem cépticos”. Se procurarmos informação sobre a síndrome da taquicardia postural — que está integrada nas disautonomias, um conjunto de patologias do sistema nervoso autónomo e que afecta mais as mulheres —, encontramos conselhos de alteração de estilo de vida que passam pelo aumento do consumo de líquidos e de sal (por causa do sódio, que tem um papel na regulação da frequência cardíaca), por fazer refeições mais pequenas, pela redução dos hidratos de carbono e por uma avaliação da reacção ao glúten e aos produtos lácteos. José Camolas, nutricionista do Serviço de Endocrinologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, reconhece que estes exemplos de sucesso influenciam muita gente, mas considera que “o risco é o paciente achar que vai curar-se com a alteração da dieta e não procurar outro tipo de tratamento”. A tendência actual, explica, é olhar para “a forma como cada um de nós metaboliza os alimentos” e que difere de pessoa para pessoa. “Cada um utiliza os mesmos nutrientes de forma diferente em função de vários factores, características genéticas, a dieta que segue habitualmente, o local onde vive, o estilo de vida, etc. ”Daí que “existam grandes probabilidades de a estratégia adoptada por uma pessoa não ter o mesmo impacto noutra pessoa com a mesma patologia”. Não conhecendo directamente o caso de Ella, imagina, no entanto, que a mudança de alimentação terá sido acompanhada por uma mudança mais completa de estilo de vida — uma soma de alterações que terá contribuído para melhorar o bem-estar geral e fazer desaparecer os sintomas. “Cada vez mais vejo o trabalho em nutrição como uma abordagem personalizada levada ao extremo”, afirma José Camolas. “Nas minhas consultas, tento perceber o padrão alimentar dos meus clientes e partir dos pontos que os deixam confortáveis ou desconfortáveis e alinhar a dieta com o padrão desejável. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No entanto, reconhece que “ainda se está a iniciar o conhecimento” em áreas como a “evicção [retirada de grupos inteiros de alimentos] total do glúten ou da lactose ou a utilização de produtos biológicos”. O que diz a quem decide iniciar uma dieta vegan, por exemplo, é que esta “não é um padrão de alimentação, é uma forma de estar na vida” que implica que a pessoa “adquira um conjunto de competências em áreas como a preparação de alimentos ou a leitura de rótulos”. No caso de Ella, José Camolas acredita tratar-se de alguém que “tirou o foco da doença e sentiu-se parte da solução”. Fazê-lo através da dieta “foi uma excelente estratégia” e, neste momento, já passou da fase da evicção para a da construção, criando as próprias receitas. Quanto aos milhares de seguidores de Ella, diz simplesmente que “se o prato lhes agradar e gostarem de cozinhar e se esse exemplo lhes dá esperança de se sentirem melhor”, isso são “camadas interessantes” que podem ter um contributo positivo. A esperança é importante e não deve ser menosprezada, admite. “Às vezes, nós, técnicos de saúde, apresentamos muito o problema e os riscos e não elogiamos as pessoas pelos seus resultados terapêuticos. No fundo, cuidamos pouco da esperança dos doentes. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha carne consumo doença mulheres corpo alimentos vegetariano
Vários locais de Lisboa: Os quadros estão na rua
Há quadros — com molduras e tudo — nas ruas de Lisboa. São reproduções de obras do Museu de Arte Antiga. E alguma coisa acontece em nós quando nos cruzamos com eles (...)

Vários locais de Lisboa: Os quadros estão na rua
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há quadros — com molduras e tudo — nas ruas de Lisboa. São reproduções de obras do Museu de Arte Antiga. E alguma coisa acontece em nós quando nos cruzamos com eles
TEXTO: A primeira vez que vi um fui apanhada de surpresa. O efeito foi exactamente aquele que imagino que se pretenda. Passava pela Rua do Loreto e vi o quadro na parede exterior de um edifício. Agora, quando penso nesse momento, tenho a sensação de que o meu cérebro demorou uma fracção de segundo a conseguir transmitir a informação correcta: está um quadro de museu, com moldura e tudo, pendurado na rua. Devo ter dado um passo atrás e parei para observar melhor. Dei uma olhadela rápida à minha volta para perceber se havia outras pessoas a olhar ou se tinha sido apanhada nalguma piada. Mas não, o movimento continuava normal. Descansada, dispus-me a observar o quadro mais atentamente. Li a legenda ao lado. Reparei nas personagens, na cena. Voltei a olhar à minha volta para confirmar que estava a ter um comportamento adequado. Tudo calmo. Havia um quadro de museu na rua. E, no meio da estranheza da situação, a maior estranheza continuava a ser a moldura. Como se esta fosse o elemento que fazia toda a diferença. Claro que existe street art e que temos peças originais nas ruas e que estamos habituados a isso, mas uma moldura é um elemento bastante mais estranho. Era ela que nos dizia “não sou um cartaz, sou um quadro a sério e decidi sair do museu, onde vocês nunca me iam visitar, para vir mostrar-me aqui na rua”. Há alguma coisa de comovente na súbita humildade da pintura à minha frente. Como se fosse ela a estender-nos a mão e a dizer que afinal somos importantes (ela pertence a todos, a verdade é essa) e que não faz sentido haver distância entre nós. É curioso perceber como a simples deslocação no espaço de uma obra de arte — como o Museu Nacional de Arte Antiga faz nesta iniciativa, que baptizou como ComingOut e que traz 31 reproduções de obras da sua colecção para as ruas de Lisboa (Chiado, Bairro Alto, Príncipe Real) durante três meses — lhe dá outros sentidos e pode alterar a nossa relação com ela. O museu, todos sabemos, empresta uma solenidade às coisas. Mesmo que já tenham sido inventadas muitas maneiras de o dessacralizar, nada altera o facto de estarmos entre aquelas paredes por vontade própria. E há uma intimidade diferente entre nós e um quadro. Muitas vezes estamos sozinhos e com todo o tempo para o observar. Há tempo e silêncio — precisamente o que não existe na rua. Desde que me cruzei com o quadro que não me sai da cabeça a cena de Vertigo em que James Stewart segue Kim Novak até ao museu e a observa naquele que é (ou ele pensa ser) um momento de profunda intimidade entre aquela mulher misteriosa e o igualmente enigmático Portrait of Carlotta. Seria possível um momento assim se o quadro estivesse na rua, se não existissem as paredes do museu? O pudor que leva a personagem de James Stewart a afastar-se existiria?Outras vezes — se estivermos a tentar ver a Mona Lisa, por exemplo — não há nem silêncio nem intimidade, há, antes, uma sensação de urgência porque atrás de nós estão muitas outras pessoas a querer ver — e fotografar — o mesmo quadro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não vale a pena entrar aqui pela questão da reprodução. Claro que os quadros na rua são reproduções (e mesmo assim já houve um roubo), e claro que uma coisa é ver uma reprodução (que se pode ver também na Internet ou num livro) e outra é ver um original. Mas muito provavelmente eu nunca me lembraria de procurar na Internet a obra Conversação (1663-1665), de Pieter de Hooch — essa mesma que me fez parar naquele dia na Rua do Loreto. São seis as personagens, são muitos os detalhes, do espaço mas também dos gestos, dos olhares. Há muito a tentar perceber aqui: quem são estas pessoas, porque estão reunidas nesta sala, de que falarão, que expressão terá o homem cuja cara está tapada pelo próprio braço e porque é que uma rapariga o olha com um ar iluminado, quem é o homem que entra e ao qual apenas o cão parece prestar atenção, que quadros estão representados dentro deste quadro? Acabo na Internet, claro, no site do MNAA, onde leio que nesta “ obra de referência da colecção de pintura holandesa do Museu, e uma das mais representativas deste contemporâneo de Vermeer, o significado da composição supera a mera representação de uma cena galante do quotidiano de Amesterdão pelos meados do século XVII [e que] as diversas personagens à volta da mesa poderão aludir ao conceito dos Cinco Sentidos”. Posso, no meio de tudo isto, ainda não ter visto o original, mas aquela moldura na rua fez-me parar e pensar. E nos tempos que correm (literalmente), isso parece-me já extraordinário.
REFERÊNCIAS:
Quem guardou as receitas da avó?
Fomos à procura de receitas de família que se tornaram tradição e que não passam pelo bacalhau e o peru. Mais secretas ou menos, guardadas em livros gastos pelo uso ou apenas na memória, são sempre uma forma de recordar mães, tias, avós, pais ou até tios que um dia também as cozinharam. (...)

Quem guardou as receitas da avó?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fomos à procura de receitas de família que se tornaram tradição e que não passam pelo bacalhau e o peru. Mais secretas ou menos, guardadas em livros gastos pelo uso ou apenas na memória, são sempre uma forma de recordar mães, tias, avós, pais ou até tios que um dia também as cozinharam.
TEXTO: Foi só quando se casou com José Paula, em 1967, que Maria Vitória aprendeu a cozinhar. Começou a tomar nota de todas as receitas que lhe davam num livro — algumas escrevia-as à mão, com todos os detalhes, outras recortava de revistas e jornais e ia colando ou simplesmente guardando entre as páginas do caderno. É esse livro, hoje muito gasto pelo uso, que o filho Miguel vai buscar e traz para cima de uma das mesas do restaurante que tem com o pai, o Delícias de Goa, em Lisboa. José Paula veio de Goa para Portugal em 1962 e foi aqui que conheceu a goesa Maria Vitória. Mas só depois de a guerra colonial o ter obrigado a embarcar para África é que os dois decidiram casar. “Mandei-lhe a passagem para ela ir ter comigo à Beira, em Moçambique”, conta. Como era enfermeira, pôde acompanhar o marido mesmo quando o destacamento dele foi mandado para o interior — algo que não era permitido às outras mulheres. Com o casamento à vista, Maria Vitória terá pensado que o melhor era aprender a cozinhar e acabou por se tornar uma óptima cozinheira. Veja os vídeos“Quando tínhamos visitas, ela desaparecia um bocadinho lá para dentro, abria o livro, decidia o que fazer e em pouco tempo a mesa enchia-se de coisas para o lanche”, conta o marido. Além disso, a despensa estava sempre cheia, porque “nunca se sabe o que pode acontecer”, como lhes tinha dito uma amiga na altura em que regressaram a Portugal, em 1975, quando “tudo estava a ferver”. “As primeiras receitas são as de doces mais indianos”, repara Miguel, enquanto passa as páginas. “Talvez fossem as que ela receava esquecer mais depressa. ” Mas não eram estes os mais populares em Goa, afirma José Paulo. “São demasiado doces. ” É por isso que as memórias de Natal — primeiro lá e depois já em Portugal — estão ligadas a doces muito particulares: a bebinca, claro, a bátega, com coco e cuja receita está também neste livro, e o cake de Natal, que se tornou obrigatório no Delícias de Goa durante a época natalícia (a bebinca marca presença o ano inteiro). Decidimos então para esta história escolher o cake. “É uma versão do bolo inglês, mas que leva vinho do Porto, além das sultanas, os corintos, a laranja cristalizada, e que é feito com o açúcar em ponto de caramelo, o que lhe dá um tom de mel”, explica Miguel. É preciso começar a prepará-lo com tempo porque tudo é feito em casa, incluindo a cristalização da laranja. Miguel, e a irmã, Célia, nunca chegaram a ir a Goa. E mesmo José Paula e Maria Vitória deixaram por concretizar esse projecto — ela morreu em 1989, com 46 anos. Mas em Portugal, para onde toda a família veio quando deixaram definitivamente Moçambique (Miguel tinha um ano), nunca faltaram as tradições de Natal. “E em Goa este bolo era obrigatório no Natal”, recorda José Paula. Quando Miguel e Célia eram pequenos, a mãe fazia o presépio e a árvore de Natal e, logo no dia 20, começava a preparar os doces e as outras especialidades da época. “Mas os doces só podiam ser comidos depois da Missa do Galo”, conta Miguel. “Era um cheirinho inacreditável pela casa toda. E até trocávamos doces com os outros vizinhos do prédio. ”Os miúdos ajudavam, claro. Hoje tudo é mais fácil, pode-se comprar o miolo da amêndoa já cortado, por exemplo. Mas antigamente fazer o cake era um ritual que exigia tempo e juntava a família em pequenas tarefas. “Um dos trabalhos que nós tínhamos era pôr as amêndoas em água quente para lhes tirar a pele. ” E no fim lutavam para poderem rapar a taça em que tinha sido preparado o bolo. Foi já alguns anos depois da morte de Maria Vitória que José Paula decidiu prestar atenção “ao bichinho” da restauração que tinha dentro de si. Com um amigo, abriu o primeiro restaurante, o Nova Goa, em 2004. Quatro anos depois, resolveu apostar num projecto novo e abriu o Delícias de Goa. Miguel, que entretanto tinha ido para Londres aprender cozinha com um primo que ganhou o concurso de melhor cozinheiro de pub no condado de Kent, voltou e foi para o restaurante do pai. Para fazer muitas das receitas tradicionais de Goa, socorre-se ainda do livro da mãe. A primeira vez que o foi buscar foi para aprender a fazer bebinca, mas a tarefa revelou-se mais complicada do que esperava. Só neste livro havia duas receitas diferentes, as tias que estão no Brasil deram-lhe mais três versões e as do Algarve mais duas. Foi dessas sete que ele chegou à bebinca que hoje faz. O cake é mais simples. Apesar de, nessa página, a tinta do caderno da mãe estar cada vez mais apagada, ele já o sabe fazer bem. O último Natal de Maria Vitória foi o de 1988, já no hospital (morreria no dia 13 de Dezembro do ano seguinte). Mas a família não quis que fosse menos Natal por isso. Houve Missa do Galo no IPO, e José Paula, Miguel e Célia levaram os pratos de sempre, o cabrito assado no forno, o sarapatel, os bolos de Natal. Passaram-se muitos anos desde essa noite, mas o velho livro de receitas continua a uso, e todos os Dezembros a cozinha da família volta a encher-se com o “cheirinho inacreditável” do cake de Natal de Maria Vitória. Tinha um nome raro a tia que passou a Joana a receita do bolo de noz — chamava-se Comba. “Ajudou a minha mãe a criar-nos e era uma excelente cozinheira”, conta Joana. “Fazia jantares chiques para a alta sociedade, as famílias mais ricas lá da Cuba. ” A receita do bolo de noz, tê-la-á recebido de uma amiga também de nome original, São Pedro, e mais para trás já não se consegue traçar a história deste doce. Foi em Cuba, no Alentejo, e depois em Beja, que Joana cresceu. Aí, na noite de Natal, não havia peru nem bacalhau. A tradição pedia que na mesa reinasse o porco, por isso aparecia sempre lombo assado com tempero do alguidar, além da sopa da panela feita com frango. Quando chegava a hora dos doces, o que saía das cozinhas era o bolo folhado, o pudim flan e, perto da meia-noite, a avó e a tia deitavam mãos à obra e começavam a fazer os coscorões. Joana não gostava de cozinhar. No que tocava aos trabalhos da casa, preferia limpar e arrumar. Até tarde foi assim. Depois de estudar em Beja, regressou a Cuba para trabalhar na Câmara Municipal e voltou a viver com a avó, que adorava. “Eu trabalhava e quando chegava a casa tinha a comidinha pronta e na mesa. Era uma princesa. ” De tal maneira que houve um tempo em que Joana também não apreciava particularmente o Natal. “Tinha de sair do meu lugar à mesa para dar lugar aos outros”, conta, a rir. E durante aqueles dias as atenções da avó já não eram só para ela. Mas chegou a altura de casar e de deixar a casa da avó. “Tinha um bocadinho de medo de não conseguir fazer nada na cozinha”, confessa. Valeu-lhe ter a professora certa. Foi em grande parte por correspondência que aprendeu a cozinhar e ainda guarda as cartas que a tia Comba lhe mandava de Beja, em que se misturavam notícias de família e receitas. Muitas dessas receitas, escritas em papéis soltos e na letra bem desenhada da tia, estão guardadas dentro dos seus livros de cozinha. Vai buscar um e espalha as folhas em cima da bancada. Por acaso, a do famoso bolo de noz já só existe numa versão escrita pela própria Joana e não no original da tia Comba. Mas hoje nem precisa de olhar para ela. Podia fazer este bolo de olhos fechados. Os filhos sempre o adoraram e por isso é o bolo que faz nas festas de anos e, claro, é obrigatório na noite de Natal. Quando Joana o levava para festas de crianças, havia sempre alguém a perguntar como se fazia. Sorri ao recordar que o filho, Leopoldo, sempre lhe disse para não dar a receita a ninguém. Hoje percebe-se que havia uma boa razão para tanto secretismo: o bolo de noz tornou-se uma sobremesa emblemática no restaurante que ele abriu há um ano na Parede, o Sociedade. Quando chegamos a casa de Joana, no Lumiar, em Lisboa, já ela tem tudo preparado. A arte, explica, está sobretudo na caramelização da forma, que faz com invejável destreza. Importante também ?? o ponto do açúcar, que deve ser de pérola. Tirando isso, o outro grande segredo deste bolo são as nozes, fresquíssimas, que vêm das nogueiras de uma propriedade do marido perto de Vila Franca. Enquanto conversa, Joana vai fazendo o bolo. As nozes já estão moídas (antigamente eram partidas à mão, o que dava muito mais trabalho), o pão está cortado em pedaços grosseiros, os ovos são batidos, o açúcar é trabalhado para chegar ao ponto certo. A forma, de ondinhas, é caramelizada e ganha no interior um lindo tom dourado-escuro. O preparado é despejado para esta forma e, em menos de nada, o bolo de noz (que pode também ser chamado “pudim” pela sua consistência húmida) entra no forno. Joana recorda uma outra receita de Natal, muito mais trabalhosa, mas que encanta a família, o nógado, uma espécie de nougat, que também lhe foi ensinado pela tia, mas que faz muito menos vezes porque são muitas horas de trabalho para depois os filhos e os netos fazerem desaparecer o resultado em menos de nada. Não nos podemos ir embora sem provar o doce que aqui nos trouxe, avisa, enquanto prepara um chá e traz para a mesa da sala chávenas e pratos. Falta apenas desenformar o bolo, há um momento de suspense com medo que não saia inteiro, mas um “ploc” da forma indica que é o momento — e o bolo desliza, perfeito, para o prato. Quem conseguiu ficar para sempre com o nome ligado a esta receita foi um tal de tio Eduardo. Mas Tó Ricciardi nunca conheceu esse tio, do lado materno, e a relação que criou com esta receita foi através do pai, Manuel, já falecido, que entretanto a transformou e melhorou, fazendo dela um dos pratos preferidos da família no Natal. Não se pode dizer que esta seja propriamente uma tradição de família, pelo menos para já, mas é uma receita que Tó — que é DJ e recentemente abriu um projecto também ligado à restauração, o Station, no Cais do Sodré, em Lisboa — gostaria que não se perdesse. Por isso, vai tentar cozinhá-la hoje para nós vermos, num ensaio que, se correr bem, poderá depois repetir-se no Natal. O livro de receitas original está em casa da mãe de Tó. O que ele tem é apenas uma fotografia tirada com o telemóvel a essa receita que alguém baptizou como “peixe à tio Eduardo” — e neste momento da história já é difícil perceber se foi de facto inventada por um tio Eduardo ou se era apenas do especial agrado deste antepassado. Seja como for, o facto é que alguém se deu ao trabalho de a registar. E, em meia dúzia de linhas batidas à máquina, reza assim: “Fazer um refugado [sic] com muitas cebolas, um cravo, uma folha de louro, pimenta em grão e sal. Cozer à parte o peixe (dourada, pescada, peixe-galo, etc. ) com pouca água. Logo que estiver cozido tirá-lo da água, deixá-lo escorrer bem e pô-lo no prato de servir. Misturar a água do peixe com o refugado [sic] e adicionar a mesma quantidade de caldo de carne. Deixar cozer tudo uns 20 minutos e deitar por cima do peixe, que vai a gelar. ” E termina com uma frase lapidar: “É um prato muito fino. ”É, além disso, uma receita dos tempos em que qualquer dona de casa tinha os conhecimentos básicos de cozinha e era desnecessário dar quantidades exactas — uma indicação como “muitas cebolas” já resolvia o problema. Mas já não é esta a receita que Tó Ricciardi quer reproduzir. A outra, a do pai, é mais complicada. O que se sabe é que no livro 40 Homens na Cozinha, de Kika da Costa Campos, editado nos anos 1990, Manuel Ricciardi apresenta, orgulhosamente, este prato frio de peixe. O problema é que Tó também não tem com ele esse livro. Portanto, a dificuldade aumenta pelo facto de o único registo que existe dela ter sido feito pelo próprio Tó enquanto via o pai executar o prato. “O meu pai era muito rápido e eu fui tentando tirar notas, mas ficaram estes gatafunhos”, explica. Na realidade, os “gatafunhos” no pequeno caderno de receitas são perfeitamente legíveis, mas parecem mais um peixe à tio Eduardo desconstruído, em que indicações sobre um determinado passo são completadas noutra página, ligadas por traços e setas — exactamente o tipo de esquema que, na altura em que o fazemos, parece claro e que mais tarde se assemelha a um puzzle. Tó olha e volta a olhar para as suas notas para confirmar que dá os passos pela ordem correcta e não está a saltar nenhum. Quando chegámos a sua casa, em Carcavelos, às duas da tarde em ponto, alguns desses passos já tinham sido dados: o peixe (neste caso, um lombo de pescada) já estava cozido, e um dos caldos também já estava pronto. “A paixão do meu pai era a cozinha”, vai contando o nosso anfitrião. Depois de se reformar, o que Manuel Ricciardi mais gostava de fazer era cozinhar para os amigos, receber em casa e recriar receitas como esta. O Natal era uma ocasião imperdível para isso, claro. “Semanas antes já ele estava a preparar as coisas para os pratos de Natal. ”Na mesa, para alegria dos seis filhos, aparecia sempre uma castanhada, uns nhocchis (influência do lado italiano da família) que, segundo Tó eram deliciosos. E ficaram para a história também umas perdizes com um molho especial. Muito amigo de Manuel Ricciardi era Gigi, o conhecido dono do restaurante Gigi’s na Quinta do Lago, no Algarve. Terá sido, aliás, num dos frigoríficos de Gigi que ficaram guardadas, congeladas, umas dessas perdizes, que ainda foi possível apreciar depois da morte do seu autor, recordando-o assim, justamente, através da arte da cozinha. Mas estamos aqui por causa do peixe à tio Eduardo, o bouillon já está ao lume, tudo parece bem encaminhado e um cheiro bom invade a cozinha. Tó coloca na panela o cravinho, que vai fazer toda a diferença mas que terá de ser retirado antes de servir. Juntam-se os caldos, depois de arrefecidos para não cozinharem mais o peixe, e por fim a gelatina. Vai ao frigorífico durante umas horas e serve-se com batata-palha. Não sabemos se esta tradição vai perdurar na casa dos Ricciardi. Muito depende do que resultar deste peixe que deixamos agora no frigorífico. Mas, pelo menos este ano, volta a haver peixe à tio Eduardo. Livro de Receitas — as três palavras foram bordadas à mão na capa do livro que Sandra vai buscar para nos mostrar, em bordado da Madeira, a terra onde nasceu e que é também a da sua mãe, Maria Teresa. E quando se abre o livro é como se viajássemos no tempo e no espaço: para a ilha e para uma época em que as senhoras bordavam, escreviam receitas e faziam longos cozinhados. Entre estas receitas, manuscritas por Maria Teresa e sempre com a indicação de quem lhe deu cada uma, está uma de cerveja (dada pela tia Clélia), assim como a de genebra e várias de licores. Há uma para “Bifes (quando a carne é dura)”, outra de “Gelatina ao vinho branco para adornar um prato com aves”, uns “Rins de Vitela Bellevue” da revista Modas e Bordados, e uma de peru assado que começa assim: “O peru deve ser sempre morto de véspera e depenado a seco. ”Na Madeira, fazia-se tudo de raiz, conta Sandra, e o Natal era — e continua a ser — a melhor altura do ano. Aliás, garante, “não conheço sítio nenhum em que o Natal seja vivido como na Madeira”. Quando era miúda, recorda, “começava-se a preparar tudo uma semana antes, ou ainda mais cedo porque primeiro era preciso arear as pratas, dar cera à casa, e isso era trabalho para dois meses”. A comida, essa, é que exigia uma semana de trabalho. “Era preciso cozer os bolos de mel, que, depois de serem amassados, têm de descansar três dias. ” E esse é um ritual importantíssimo. “Íamos de madrugada com todas as formas, umas 40, pequenas (a mãe usava as formas em que antigamente se vendia a banha, que ela coleccionava e que ‘tinham o tamanho ideal para os 400 gr. de cada bolo’), para a padaria, porque o bolo de mel deve ser cozido depois do pão. ” Já cozido e embrulhado em papel vegetal, “dura um ano”. Mas, avisa, é “uma receita muito cara para ser feita como deve ser” porque leva muitos ingredientes, o pão, o mel de cana, o cravinho, a cidra “que é fundamental”, nozes, amêndoas. Como se fazia muita quantidade de massa, era preciso alguém com força — geralmente o irmão — para conseguir amassar tudo. “Fica um peso imenso”, explica Sandra. Tratados os bolos de mel, havia ainda mil outras coisas para fazer. Uma delas é a receita que justifica a nossa visita à casa de Sandra em Montemor-o-Novo, um antigo palacete agora recuperado para receber hóspedes e baptizado como Palacete da Real Companhia do Cacau: a carne vinha e alhos (na Madeira diz-se assim, explica a nossa anfitriã, em vez de se usar a expressão mais habitual de “vinha d’alhos”). “A carne tem de ser gorda, tipo entremeada” e deve ficar a marinar num preparado que leva alhos, louro, cravinho, malaguetas e metade de vinho, metade de vinagre — “fica bem melhor assim do que só com vinho”, garante. Com esse preparado a repousar, cria-se uma camada de banha por cima e é depois nessa banha que a carne é cozinhada e que o pão é frito. Acompanha apenas um nabo cortado fininho, laranja cortada e, às vezes, pimpinela cozida. “Isto dá para a época do Natal inteira, porque a carne fica guardada em potes de barro e vai-se tirando à medida que se precisa. ”E bem é preciso comida armazenada porque a época das festas na Madeira à coisa séria. “A grande noite começa a 23, quando toda a gente vai para a rua. Nós costumávamos ir para os carrinhos de choque. O mercado está aberto toda a noite e as pessoas aproveitam para fazer as compras para a Consoada. As tascas à volta vendem todas carne vinha e alhos, têm panelas com a carne cozida, abrem um papo seco e deitam uma colherada de carne e molho lá para dentro. ” Mas esta tradição de comida de rua é mais recente, diz Sandra. Quando ela era pequena, a comida estava em casa. E aí, dentro das casas, já se prepararam “as broas de mel, que se começam a fazer uma semana antes e são servidas com café ou chá, os ligeirinhos, as bolachinhas de amêndoa, as de coco, as de cerveja”. Depois — e esta era uma tradição antiga que deixou de ser possível —, “na véspera de Natal, três ou quatro homens carregavam um pinheiro manso e pela noite dentro ficava toda a gente pendurada a enfeitar o pinheiro”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na noite de 24, para a ceia, havia canja, peru assado, mousse de noz, souflé de pimpinela. Ia-se à Missa do Galo e, no regresso, a casa de Sandra enchia-se de amigos — “mais de cem pessoas” — para a troca de presentes e a ceia. “A festa acabava às quatro ou cinco da manhã, mas no dia seguinte, religiosamente, à hora do almoço, estava a família nuclear presente para almoçar. E então, sim, chegava à mesa a célebre carne vinha e alhos. A partir daí, era só continuar a festa até à passagem do ano, andar pelas igrejas para ver os diferentes presépios, visitar familiares e amigos e provar todos os licores. “Há arranjos de flores por todo o lado, música de Natal nas ruas e toda a gente deseja Bom Natal aos outros. É uma coisa lindíssima. ” E, no meio desta azáfama, quando a fome aperta, é só ir ao pote de barro e tirar mais um pouco da carne vinha e alhos para ganhar forças e voltar à festa.
REFERÊNCIAS:
A serra toda cabe numa azeitoneira
Um projecto que junta artesãos e designers faz por recuperar o artesanato da serra e do barrocal algarvios. Chama-se TASA e quer mostrar que os saberes e os ofícios de antigamente podem ser renovados sem esquecer o território e, sobretudo, as pessoas. (...)

A serra toda cabe numa azeitoneira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um projecto que junta artesãos e designers faz por recuperar o artesanato da serra e do barrocal algarvios. Chama-se TASA e quer mostrar que os saberes e os ofícios de antigamente podem ser renovados sem esquecer o território e, sobretudo, as pessoas.
TEXTO: A nossa memória de pessoas e lugares está muitas vezes ligada a objectos e a cheiros, a sabores e a sensações. No Natal tudo isso vem ao de cima com maior clareza. O bolo que a mãe aprendeu a fazer com a avó e que a torna presente, mesmo quando ela já não está à mesa, o casaco de lã que a tia fez para a sobrinha e que hoje usa a neta, a boneca que se recebeu do pai ao nascer que agora se oferece à filha. Alguns desses objectos são artesanais, vêm de casas antigas ou resultaram de férias de Verão passadas na praia ou na serra. Na casa de Cremilde Lourenço, uma artesã de 74 anos que ainda vive no monte onde nasceu, essas memórias passarão também por uma arte antiga que ela só aprendeu quando tinha 45 anos, depois de muito bordar e costurar — a da empreita, um entrançado feito a partir de folhas de palmeira em forma de leque. No quintal cheira a alecrim e a sua sala de trabalho tem a porta aberta, com o sol sobre a máquina de costura e o banco onde se senta muitas vezes a trabalhar. Cremilde Lourenço é uma dos 22 artesãos envolvidos no TASA — Técnicas Ancestrais, Soluções Actuais, um projecto que nasceu em 2010, concebido pela dupla de designers The Home Project com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve, e hoje a cargo da empresa de ecoturismo Proactivetur. A ideia, explica João Ministro, o engenheiro do Ambiente que a dirige, é recuperar estes ofícios antigos, reabilitando os artefactos que produziam e criando outros com base nas mesmas técnicas, associando-lhe designers contemporâneos e criando para eles um mercado. “O que queremos é garantir que estes ofícios que já foram muito importantes para a região não morrem, transformando a actividade destas pessoas, e com ela o seu modo de vida, em algo que é comercialmente viável, sustentável”, continua Ministro, falando na extensa rede de artesãos do TASA, que vai de Messines, perto de Silves, a Castro Marim, já quase em Espanha. Este engenheiro que já trabalhou para o Instituto de Conservação da Natureza e que está habituado a projectos de desenvolvimento local fundou a Proactivetur, que hoje coordena o TASA, também em 2010 e começou a trabalhar em ecoturismo, promovendo programas de caminhada pelo interior do Algarve, um território a que se refere como um “mundo abandonado com um património riquíssimo por descobrir”, “autêntico” e “preservado”. Recuperar ofícios antigos faz do TASA aquilo a que chama um “braço do design social”, mas sem ilusões. A olaria tem vindo a conseguir adaptar-se, diz, mas outras artes ficaram para trás e dificilmente serão recuperáveis, por falta de procura ou por não haver quem queira aprender. Entre elas a dos caldeireiros (faziam alambiques e reservatórios de metal para o azeite), latoeiros (vários tipos de peças em latão), ferreiros (sobretudo ferramentas e ferraduras) e albardeiros (albardas para os animais que trabalhavam no campo). “Mesmo a arte do barro esteve muito tremida. Loulé tinha 15 olarias, hoje tem uma. Na aldeia de Martinlongo havia 12, hoje não há nenhuma. ”Combinar um projecto de revitalização da rede de produção artesanal com o turismo é o que faz hoje em dia. Esta sinergia não quer dizer, garante, que veja o turismo como uma bóia de salvação para estes ofícios, pelo contrário. “É importante que as pessoas se interessem, mas isso não significa que o TASA deva produzir objectos puramente decorativos, para cativar. Tudo o que se faz deve ter uma função. Era assim no original e é assim que deve continuar. Eu não quero ter coisas feitas para o turista — quero que o turista venha ver a paisagem e entre na cultura, quero que perceba para que é que serviam os cestos que vai comprar e, se possível, que experimente para ver como é difícil fazer empreita ou trabalhar o esparto [outra planta que, entrançada, é usada pelos cesteiros]. ”Joana Cabrita Martins, 31 anos, esteve ligada ao projecto entre Junho de 2013 e Maio de 2015, participando agora no concurso que o TASA lançou para encontrar um designer que conceba cinco produtos para renovar o catálogo. Quinze das quase 30 peças que desenhou para o projecto, muitas em parceria com Ana Rita Aguiar, Joana Regojo ou Salomé Afonso, estão à venda, outras foram abandonadas porque a sua produção era demasiado dispendiosa, porque não encontraram mercado ou simplesmente porque o resultado estético não foi o que a autora previra. “Às vezes o desenho não se consegue adaptar às técnicas do artesão, outras é o material que não se adequa ao que se projectou e a peça não resulta”, reconhece. “É muito importante ouvir o artesão. ”Para se conhecer António Luz, é preciso parar em S. Romão, pequena localidade de S. Brás de Alportel, numa oficina à beira da estrada. O cenário parece caótico — ferramentas misturadas com troncos e pedaços de aglomerado de cortiça, fios eléctricos por toda a parte e muitos caixotes com restos de madeira, aparas e peças de barro à espera da sua vez — mas este artesão ligado ao TASA desde o início parece saber exactamente onde está o que procura. Quarenta e seis dos seus 63 anos foram passados a trabalhar em cortiça e madeira, depois de ter começado como aprendiz de carpinteiro quando tinha 11 anos. “O meu mestre, António da Avó, andava de porta em porta a fazer móveis por medida, na casa dos ricos”, lembra. Aprendeu a trabalhar a madeira no Sítio das Mealhas, não muito longe do lugar onde hoje vive, mas a manejar a cortiça ninguém o ensinou. “Fiz tudo sozinho porque me entusiasmei. E no princípio não foi fácil. ” Quem olha para a cortiça, explica, pensa que é um material fácil de trabalhar, macio, maleável, mas é precisamente o contrário: “A cortiça parte-se muito, não é regular como a madeira, agarra, prende e põe as ferramentas em brasa. Para a cortar, as serras têm de ser muito potentes. E quando o aglomerado [cortiça prensada] vem mal preparado é um cabo dos trabalhos. Às vezes para fazer um candeeiro parto dois ou três”, diz, referindo-se a duas das peças do catálogo do TASA que passam pelas suas mãos — o candeeiro da dupla The Home Project (Álbio Nascimento e Kathi Stertzig), só em cortiça, e o Pião, que junta também madeira e que foi desenhado por Joana Martins e Ana Rita Aguiar. Para António Luz, o domínio dos materiais vem primeiro do que tudo, ou não fosse ele um artesão. É por desconhecerem a forma como o material se comporta que às vezes os designers chegam com “ideias que não vão a lado nenhum”. “Muito franco e muito torto” — assim o descreve a sua mulher — António Luz chega a ter longas discussões com os autores do projectos. O processo que conduz a uma peça do TASA, reconhece, já lhe ensinou muita coisa, mas só quando designer e artesão estão dispostos a aprender e a perder muitas horas. António Luz é hoje artesão a tempo inteiro e é por isso que diz que, se tem favas na horta, é porque elas não precisam de muita atenção. A oficina toma-lhe dez a 12 horas por dia, umas vezes a fazer peças do projecto que Sara Fernandes coordena, outras gastas em candeeiros, animais e galheteiros de sua autoria que vende pelas feiras da região. Ao seu lado está sempre o cão, Faísca, que partilha com ele o gosto pela caça, mas que às vezes destrói uns candeeiros. Proteger a actividade de homens como António Luz passa por proteger o seu território. O barrocal é a faixa central do Algarve, entre o litoral e a serra, uma zona agrícola por excelência, que hoje está muito desertificada. Na serra, onde domina a cortiça e a floresta, o cenário repete-se com muitas aldeias abandonadas ou que o serão dentro de menos de dez anos. Boiça ou Cabaça, perto de Barranco do Velho, que já teve mais de 100 moradores e uma destilaria concorrida, são exemplos deste êxodo para um litoral cada vez mais povoado e descaracterizado. “O TASA tem de ser visto como um projecto global porque só se protege o que se valoriza. Para preservar este artesanato, é preciso preservar o modo de vida das pessoas que o fazem, é preciso proteger, por exemplo, o sobreiro. E isso não podemos fazer com vedações. ” João Ministro sabe que só transmitindo este saber aos mais jovens estas artes e técnicas poderão sobreviver. Para isso está prevista a criação de uma escola em Loulé, em colaboração com a câmara municipal, e de um programa de formação mais personalizado, capaz de recuperar a velha relação mestre-aprendiz. “A melhor maneira de aprender é ter o aluno na casa do mestre ou ali muito perto, na mesma aldeia, no mesmo monte, com a formação a ser feita de um para um. ” É o querem fazer, por exemplo, com António Gomes, o artesão do monte das Furnazinhas que produz os cestos que o projecto exporta para o Japão. Promover o crescimento do TASA, defende Ministro, passa precisamente por explorar as exportações. Mas, para isso, é preciso montar uma rede de lojas que o representem no exterior e, antes, criar condições para aumentar a produção, que por vezes não chega para responder às encomendas nacionais. A questão da “encomenda”, lembra Álbio Nascimento, um dos criadores do projecto, é desde o início um dos motores do TASA. Porque fazer destas artes ancestrais um modo de vida sustentável passa por criar procura. Hoje muito crítico em relação ao facto de o projecto ter afastado da sua esfera os investigadores que estavam ligados a universidades, museus e outras instituições locais, o designer de 37 anos, um algarvio nascido em Faro com um avô agricultor e outro pescador, defende que é preciso alargar a rede de artesãos, de os envolver mais no processo de criação de cada objecto, e de formar novos, mas sem recorrer a um “esquema formal tipo escola, que esteja sempre a tirar as pessoas do lugar onde se sentem bem”. “No início, depois de feito um levantamento dos artesãos, dos ofícios e, sobretudo, das necessidades, andámos literalmente à caça de encomendas — os produtos não eram um fim em si mesmo, mas o motor do projecto, a maneira de atingir um objectivo maior que era o de devolver o artesanato ao mercado local”, lembra Nascimento. João Ministro admite que há hoje a ambição de ultrapassar as fronteiras locais — o TASA tem uma loja online, exporta cestos também para a Alemanha, peças em cortiça para Inglaterra, e a sua equipa está a estudar possíveis representantes em França e na Holanda — mas garante que o envolvimento dos artesãos é uma constante e que os clientes regionais continuam a ser muito importantes, dando-lhes a possibilidade de “personalizar” alguns dos produtos do catálogo. Entre eles, estão, por exemplo, hotéis como o Ozadi, em Tavira, o Vila Monte, em Moncarapacho, e o Vila Joya, um dos destinos de quem faz férias de luxo em Albufeira. Alguns dos artesãos com que o TASA trabalha nunca fizeram outra coisa, mas outros chegaram ao ofício depois de terem trabalhado na agricultura ou na construção. É o caso de Fernando Martins, homem de poucas palavras, que começou a fazer cabides e colheres para o projecto — assim como muitas outras peças decorativas e mobiliário que vende em feiras — quando a crise se instalou e deixou de ter trabalho a fazer portas e cozinhas para os empreendimentos do litoral. Começou a trabalhar a madeira quando era adolescente, em Benafim, ganhando 50 escudos por dia como aprendiz, e nunca mais se quis afastar dela. Hoje, com 53 anos, o seu mundo profissional é a pequena oficina que tem instalada ao lado da sua casa, num quintal onde neste início de Dezembro cheira a laranjas. E é na serra à volta de Alte, onde vive, que caminha muito à procura de galhos de oliveira caídos — é com eles que faz os cabides, depois de muito bem polidos — e de medronheiro. “As colheres têm de ser de medronheiro ou de urze porque não agarra a comida e deixa um gosto bom. Se fosse pinho, não dava paladar nenhum”, explica. Em Alte “moram” também outras três artesãs do projecto — Ana, Silvina e Arliete são as mulheres da oficina Da Torre, que funciona numa antiga escola primária e onde constroem brinquedos em madeira, para além das tampas do saleiro e pimenteiro do TASA e dos delicados cabides em forma de animais que a The Home Project desenhou. “A nossa aposta é sempre na qualidade da execução e isso traz-nos, claro, custos”, diz João Ministro, que espera ter em 2016 um “projecto sustentável”. Por agora, manter o TASA sem se pagar a si próprio — a empresa suporta o investimento, à excepção do site institucional, cuja criação foi paga pela CCDR Algarve — implica desviar receitas das actividades de ecoturismo para aplicar no artesanato. Algo que para este engenheiro do Ambiente faz todo o sentido, já que as diversas actividades da empresa partilham objectivos e público-alvo. “As pessoas que vêm fazer dezenas de quilómetros pela via algarviana [rota pedestre que liga Alcoutim ao cabo de S. Vicente, com uma extensão de 300km, a maioria dos quais pela serra] são as pessoas que se interessam por culturas tradicionais”, explica. Caminhar por aquele território é entrar no TASA, defende Ministro, apontando para o esparto e para a palmeira anã de onde nascem cestos e alcofas de empreita. “Gosto de pensar que uma peça nossa tem lá dentro a pessoa que a desenhou e a que a fez, mas tem também esta cultura, esta maneira de viver com a terra, um certo ritmo de fazer as coisas, que às vezes nos desespera, mas que é muito natural. É como se uma azeitoneira ou um apito de cana tivesse a serra lá dentro. ”Uma serra de sobreiros, alfarrobeiras, aroeiras e figueiras, mas também de tomilho, alecrim e rosmaninho, que na Primavera se enche de narcisos e orquídeas. Uma serra que também fala de Mediterrâneo na luz que se reflecte nas casas que se caiam todos os anos e nas cores dos ladrilhos de argila que a empresa de Júlio Faustino produz em Tavira. Desde que nasceu, o TASA já teve várias vidas (está agora e desde Março de 2012 na terceira fase, com a Proactivetur) e produziu mais de 50 peças, embora algumas não tenham chegado a passar da fase de protótipo. Álbio Nascimento e Kathi Stertzig conceberam o TASA depois de uma temporada na Catalunha, onde se cruzaram com uma dinâmica semelhante, explica à Revista 2 este designer que já viveu em Antuérpia e Berlim, hoje a morar em Lisboa, mas que parece continuar a sentir o Algarve como um território seu. Foi aí que perceberam que, para funcionar, precisavam de uma base social forte, de um levantamento exaustivo dos problemas e das necessidades. “Era preciso envolver as pessoas e as instituições, mas com naturalidade, sem pretensiosismos e sem pressão para a inovação. Era uma coisa feita de acordo com as necessidades locais, para pôr os artesãos a trabalhar uns com os outros. Queríamos mostrar-lhes que o que faziam podia encontrar um comprador, não queríamos sentar um designer ao pé de um cesteiro para fazer um cesto ‘diferente’. ”Para explicar os objectivos aos potenciais clientes e mesmo aos artesãos, Álbio Nascimento costumava dizer: “Vamos fazer de conta que agora fecharam as fronteiras do Algarve e nós temos de viver com o que aqui temos — cortiça, alfarroba, barro… Vamos viver com o que vem de dentro. ”Quando se afastaram do projecto, em 2011, os dois designers que estudaram juntos no Politécnico de Milão, deixaram 26 produtos feitos (entre os três e os cem euros), um livro e um relatório exaustivo que respondia à pergunta “Como continuar?” “Quisemos mostrar que este, como qualquer projecto com a mesma ambição noutro lugar, tem de estar atento à realidade do território. Não se pode pensar só em renovar os artesãos, em trabalhar os mesmos materiais e técnicas, em dar uma cara contemporânea aos produtos. Não é chapa 5, não há fórmulas. É preciso, primeiro, conversar com quem faz, ver o que lhes falta. ”Em muitas das peças que conceberam para o TASA, diz, o design praticamente desaparecia, funcionava apenas como “facilitador” do processo de produção. “O melhor elogio que me podiam fazer ali era confundir uma peça minha com uma velha, com uma coisa que pudesse estar num museu etnográfico depois de ter servido muitos anos na cozinha de alguém. ”Continua a ser assim no trabalho que estão a desenvolver no litoral alentejano, com quatro comunidades piscatórias do concelho de Odemira. “Agora trabalhamos também como consultores, algo que nunca pensámos fazer quando o TASA começou — o que queríamos era falar com aquelas pessoas, aprender com elas, provar aguardente nova”, diz, ilustrando a proximidade que sempre promoveram. A proximidade entre designers e artesãos, garante Ministro, continua a ser um dos ingredientes do TASA. Assim como a combinação de saberes numa peça só e que permite juntar Fernando Martins ao oleiro Francisco Eugénio para fazer colheres de servir, e Cremilde Lourenço a Pedro Piedade, dono da única olaria de Loulé, para produzir potes de barro. Piedade, 43 anos, é o mais novo dos artesão do projecto (a média de idades ronda os 60 e Cremilde Lourenço é a mais velha). A olaria é um negócio de família, a que começou a dedicar-se quando deixou de estudar, aos 16 anos, e muito por causa da morte do pai e do irmão, que foram seus mestres. “Eu não queria fazer isto, mas também não queria que acabasse. Tive de me decidir. ” Hoje não se arrepende, mas garante que não obrigará a única filha, Inês, a seguir-lhe as pisadas. As peças que produz para o TASA — potes, candeeiros, reservatórios de vinho e os recipientes incorporados nas tábuas de cozinha — são feitas à mão, mas tem na olaria uma máquina para as peças abertas (pratos, travessas…) que produz em série, e o forno chega a cozer mais de mil peças por mês, que depois são vendidas na loja da família em Quarteira. Tomou o gosto ao barro quando começou a trabalhar na roda. “No tempo do meu pai, havia uma olaria em cada canto da cidade”, diz. Pedro Piedade não tem paciência para ensinar, mas gosta de experimentar e é por isso que já passaram pela sua olaria designers da Eslováquia e até do Cazaquistão. Sentado à roda, com a cana, a faca, a espátula e o fio de pesca à mão, este oleiro está sempre pronto para desafios. Cremilde Lourenço tem idade para ser mãe dele, mas partilha o mesmo espírito de inovação. Falar com esta mulher de energia inesgotável implica abrir o dicionário (isto para quem nasceu e cresceu em Lisboa, claro). Ela explica com calma o que é uma capacha (tapete) ou uma cedoura (base para tachos), mostra como se faz a empreita, arte que até já chegou a ensinar a um casal de japoneses que João Ministro levou a sua casa num workshop do TASA, e fala do seu dia-a-dia com simplicidade. A rotina é marcada pela vida de casa e do campo — é casada há 54 anos, tem três filhos, quatro netos e um bisneto —, com alvorada às sete e o trabalho artesanal interrompido sempre que é preciso apanhar azeitona ou alfarroba. Muito perfeita na execução — “tenho vaidade de fazer bem”, diz —, faz para o TASA tampas de potes e delicadas malas de caminhada com folha de palma entrançada. Já ganhou vários prémios do Instituto de Formação Profissional — foi num dos seus cursos que aprendeu a arte — e está sempre a experimentar. “Gosto que venham cá [os designers] porque explicam muito bem, com muito cuidado. E mesmo para mim, que tenho a quarta classe feita há 64 anos. Têm de vir pessoas de fora porque numa terra em que os outros sabem o mesmo ou até menos do que a gente não se evolui, não se aprende. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Começar na empreita não foi fácil — “quando nós não sabemos, as nossas mãos também não sabem e mesmo que o cérebro pense como se faz, elas não se ajustam” —, levou tempo. “Só se pode começar velha, como eu comecei. Também experimentei o esparto, mas até chorava. Era muito duro. ”Tudo o que Cremilde Lourenço leva às feiras, assegura João Ministro, desaparece em segundos, de tão cuidadas são as peças. Esta artesã, que passa quase todos os tempos livres na sua salinha de costura, ainda tem tempo para “inventar árvores” para a festa da espiga, como aquela amendoeira que hoje tem na sala, com 500 flores em papel de seda. “Os filhos e os netos querem outras coisas, mas eu quero isto. Quando estou a trabalhar, não sinto passar o tempo, não tenho vagar. ”
REFERÊNCIAS: