Extrema-direita tem hipóteses em Espanha?
Continuará a Espanha, como Portugal, imune à ameaça da extrema-direita? O Vox é um partido marginal mas que pode contaminar a direita espanhola e, através dela, a própria sociedade. (...)

Extrema-direita tem hipóteses em Espanha?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.080
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Continuará a Espanha, como Portugal, imune à ameaça da extrema-direita? O Vox é um partido marginal mas que pode contaminar a direita espanhola e, através dela, a própria sociedade.
TEXTO: Muito se escreveu sobre a “imunidade” da Espanha aos populismos de direita e eurocépticos que se multiplicam na Europa. A analista Carmen González Enríquez, do Real Instituto Elcano, publicou em Junho de 2017 um longo estudo que começava assim: “A Espanha é uma excepção no actual panorama político europeu, em que os grupos populistas de direita, xenófobos, antieuropeus e antiglobalização obtêm relevantes triunfos eleitorais: apesar da crise económica e da rápida erosão da confiança política, em Espanha não houve nenhum partido populista de direita que tenha obtido mais de 1% dos votos nas eleições legislativas dos últimos anos. Como se poderá explicar a extraordinária ausência de um parido populista de direita com êxito eleitoral em Espanha?”Deixo, de momento, o debate das causas para lembrar que este Outono trouxe uma mudança de perspectiva. Ela coincide com um mediático comício de um partido de extrema-direita — Vox — na Praça de Touros de Vista Alegre (7 de Outubro), arredores de Madrid, que fez soar os alarmes. Antes do comício, um inquérito do CIS admitia a entrada do Vox no Parlamento Europeu, nas próximas eleições de Maio, com uma média nacional de 1, 9%, mas podendo superar os 4% em algumas circunscrições. O analista Jaime Miquel previu a sua saída da irrelevância: dos 0, 2 % (46. 781 votos) nas eleições de 2016, poderia passar par um patamar entre 500 e 800 mil votos. Em fins de Outubro, uma sondagem da Metroscopia atribuía-lhe 5% das intenções de voto nas legislativas. O que é o Vox? Fundado em 2013 com o objectivo imediato de captar o voto à direita do Partido Popular (PP) e dos seus sectores mais nacionalistas, mas sem regressar à nostalgia franquista, adoptou um programa de extrema-direita “à moda europeia”. Os seus fundadores, Alejo Vidal-Quadras e Santiago Abascal (na foto), vinham do PP: o primeiro foi seu dirigente na Catalunha, o segundo no País Basco. Um rotundo fracasso nas eleições europeias de 2014 levou ao afastamento de Vidal-Quadras e impôs a liderança de Abascal. O processo independentista catalão foi a grande mola da afirmação do Vox. Em Vista Alegre, Abascal apresentou um programa radical, em “100 medidas”. Usou uma linguagem o mais “incorrecta” possível e designou três inimigos: o independentismo catalão, a imigração e o feminismo. O alvo preferencial é a imigração, propondo deportações e um “muro intransponível” em Ceuta e Melilla. Assume a xenofobia e, em nome da Espanha “católica”, denuncia a “invasão islâmica”. O outro tema é o “hacer España grande otra vez”, copiado de Trump. Pede a revogação da lei contra a violência de género. Perante o independentismo catalão, quer a recentralização do Estado. Propõe um Estado-providência que dê prioridade aos espanhóis. Enfim, ao contrário da maioria dos seus congéneres europeus, é ultraliberal em matéria económica. Abascal copia a direita eurocéptica europeia, inspira-se em Marine Le Pen e admira Viktor Orbán. Os eurocépticos estão a organizar uma frente para disputar as europeias eleições de Maio. Até agora, desprezaram a Espanha e Portugal, considerados terrenos ingratos em que a crítica a Bruxelas teria sido “monopolizada pela extrema-esquerda”. Depois da Vista Alegre, Abascal passou a interessá-los: foi recebido pelo holandês Geert Wilders e espera uma visita do americano Steve Bannon. Durante a Transição, surgiu uma ultradireita franquista, a Fuerza Nueva, de Blas Pinar, que fracassou logo nas eleições de 1979, com 2, 1% dos votos. A nostalgia franquista não era uma boa receita e o seu eleitorado foi rapidamente absorvido pela Aliança Popular, de Fraga Iribarne, que mais tarde dará lugar ao PP. Outras tentativas falharam. O papel do PP como dique perante a extrema-direita manteve-se intocado até hoje. “Não sabemos se se trata de um estado de ânimo pontual ou do início de uma trajectória”, admite Francisco Camas Garcia, analista da Metroscopia. “Mas é uma mensagem para Pablo Casado e Albert Rivera. Não dançam sozinhos na pista. E as eleições europeias são dentro de meses. ” O seu objectivo imediato é sair da margem e entrar na cena político-mediática, que deseja e pode condicionar. Como?O Vox tem possibilidade de obter boas votações em Madrid, Valência, Alicante ou Múrcia, o que pode ser fatal para o PP na sua competição com o Cidadãos pelo mesmo eleitorado. “Dois partidos no mesmo espaço é suicidário para ambos”, observa o politólogo Fernando Vallespín. A primeira reacção de Casado foi endurecer o seu discurso, designadamente no terreno da imigração, para segurar os eleitores mais à direita. “O Vox tem uma alta capacidade de contaminação, sobretudo em matéria de anti-imigração e de recentralização. Pode atirar um fósforo sobre a gasolina”, adverte Andrés Ortega, colunista do El Confidencial. Nas eleições da Andaluzia, não é Susana Díaz quem preocupa o PP. É a brecha que o Vox possa abrir à sua direita. Cenário extremo: a pressão de Abascal pode radicalizar o PP e as posições deste poderão, por sua vez, contaminar a sociedade. Referindo-se ao precedente da Holanda, o politólogo Pablo Simon sublinha o efeito da entrada em cena de rivais extremistas: “Um líder que não tenha à partida ideia anti-imigração pode acabar por a assumir por pressões internas do seu partido e por acumulação de derrotas eleitorais. ”Quando estes partidos crescem, prossegue Simón, surge um “dilema impossível”: “O cordão sanitário faz [os extremistas] capitalizar a oposição, mas incorporá-los no governo promove as suas agendas. ” Por outro lado, “o Vox será tanto maior quanto mais nos escandalizar”, acrescenta Vallespín. Muitos analistas mantêm-se cépticos quanto ao êxito do Vox. “A piscina é pequena”, sublinham. Os simpatizantes do partido encontram-se nas categorias ideológicas mais extremistas, que representam apenas 2, 2% do eleitorado, indicador que se mantém estável há décadas. A sociedade espanhola é dominantemente liberal em matéria de costumes. A questão da imigração está a subir entre as preocupações dos espanhóis, mas apenas 5-8% são “anti-imigrantes”, diz o CIS. Os eleitores do Vox são homens, com uma idade média de 45 anos, na grande maioria de uma classe média próspera com rendimento mensal acima dos 2000 euros. Também não se verifica nenhum indício de deslocação para a direita do voto operário, como aconteceu em França. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O principal teste tem a ver com a tese tradicional, assim resumida por Carmen González Enríquez: “A hipótese de que um passado recente autoritário, direitista e nacionalista actua como uma vacina contra os partidos de extrema-direita que, no presente, se confirma pelas similitudes entre a Espanha e Portugal. ” É o teste à célebre “imunidade ibérica”. De momento, é prudente aguardar o longo ciclo eleitoral que se avizinha, com atenção mas sem alarmes que projectem a imagem do Vox. O seu crescimento parece vertiginoso porque parte de uma base baixíssima. Mas não podemos ignorar o fenómeno.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens lei violência imigração género estudo xenofobia feminismo
A obra fotográfica de Helena Corrêa de Barros acordou
As fotografias que Helena Corrêa de Barros captou entre os anos 1940 e 70 mostram o quotidiano de uma família abastada em pleno regime salazarista. Na exposição Fotografia, a minha viagem preferida há imagens com um pendor moderno de um mundo raramente tornado público. (...)

A obra fotográfica de Helena Corrêa de Barros acordou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As fotografias que Helena Corrêa de Barros captou entre os anos 1940 e 70 mostram o quotidiano de uma família abastada em pleno regime salazarista. Na exposição Fotografia, a minha viagem preferida há imagens com um pendor moderno de um mundo raramente tornado público.
TEXTO: KodachromeThey give us those nice bright colorsThey give us the greens of summersMakes you think all the world’s a sunny dayI got a Nikon cameraI love to take a photographSo mama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome away(. . . )Everything looks worse in black and whiteFoi assim que, em 1973, Paul Simon escreveu sobre a famosa película colorida da Kodak e pôs milhares de pessoas a entoar a palavra que era também uma marca comercial. “Kodachro-o-ome” (aquele “o” repetido três vezes para nunca mais nos sair da cabeça) foi um enorme sucesso. Tanto a música cantada por Simon, como a tecnologia que possibilitou a várias gerações de pessoas em todo o mundo criarem os inventários das suas vidas a cores, convocando familiares e amigos para sessões de slides projectadas nas paredes de casa. Mas as palavras de Paul Simon — “Mamma don’t take my Kodachrome away” — soam agora quase proféticas. A própria Kodak decidiu, em 2009, acabar com a produção da película que inventara em 1935 e com os materiais que permitiam a sua revelação. Em 2010, a única casa fotográfica que ainda revelava kodachrome, numa pequena cidade do Kansas, nos EUA, tornou-se um destino para pessoas de todo o mundo que queriam revelar os poucos ou muitos rolos que ainda tinham em casa. Num tempo em que o suporte digital torna a fotografia imediatamente visível, o que estava em causa era transformar os filmes em fotografias ou, pelo contrário, nunca mais os poder revelar e assim torná-los invisíveis para sempre. A modernidade do kodachrome tornara-se obsoleta. A história de dois desses peregrinos fotográficos foi contada, em 2010, por A. G. Sulzberger no The New York Times: um funcionário dos caminhos-de-ferro vinha buscar os 1580 rolos de filme que guardara em casa e que só agora, perante a iminência do fim, mandara revelar; e uma artista londrina ia, pela primeira vez, aos Estados Unidos para revelar os três filmes que nunca vira e comprar mais uns quantos. Uma fotografia, tirou-a logo ali, ao funcionário dos caminhos-de-ferro que tivera de pedir dinheiro emprestado para poder finalmente ver o slideshow do seu passado. A história do fim de uma tecnologia que tão determinante fora para a criação de imagens, memórias e narrativas visuais da segunda metade do século XX, usada tanto por profissionais como por amadores, acabou por dar origem a um filme produzido pela Netflix em 2018 e dirigido por Mark Raso. Chama-se Kodachrome e conta a história de uma road-trip em direção ao laboratório fotográfico do Kansas, protagonizada por um pai, velho e doente, que fora fotógrafo, e o filho de quem vivera afastado. A morte iminente do pai, como da Kodachrome, acaba por ser a catarse para a reconciliação entre pai e filho. A fotografia analógica, ou o seu desaparecimento, como o ponto de encontro de duas gerações. Helena Corrêa de Barros (1910-2000) começou a fotografar com Kodachrome em 1947, precisamente na altura em que, acabada a II Guerra Mundial, o processo se banalizou enquanto prática amadora e privada. Se começara a fotografar em 1924, com apenas 14 anos, a cor só chegou à sua prática mais de 20 anos depois. O seu pai, o empresário Fortunato Abecassis, que esteve à frente de várias empresas como a Abecassis, a Lusalite ou a Companhia de Seguros Mundial, já fotografava e a materialidade da imagem fotográfica fazia parte do espaço doméstico da família. Num dos quartos da casa, o pai guardava as suas estereoscopias (duas fotografias iguais num mesmo cartão que, quando olhadas através de uma lente, dão a ilusão da tridimensionalidade) e mostrava-as em sessões familiares que, como afirma Paula Cunca no catálogo da exposição sobre uma parte da obra de Helena, terão influenciado o interesse da filha pela película a cores em diapositivo, que se tornou conhecida como slide. A então jovem Helena não tinha a Nikon de Paul Simon, mas a mais sofisticada Leica, de 35 mm. que, aliada ao seu sentido de observação fotográfica, possibilitou a obtenção de tantos “momentos únicos”, como ela própria descreveu no único texto publicado em que reflectiu sobre a sua prática, “A minha fotografia preferida”, Fotografia. Revista Mensal ao Serviço da Arte Fotográfica, Lisboa, 1955. A sua “fotografia preferida” era a preto e branco, tal como continuou a ser a preto e branco aquela que considerava ser a sua prática “artística” e as imagens com as quais se apresentava a concursos amadores e a exposições salonistas. A cor, pelo contrário, marcou a sua fotografia mais privada — muitos milhares de diapositivos —, próxima do seu mundo e da sua experiência individual. A exposição, no Arquivo Municipal-Fotográfico, revela esta dupla vertente do seu trabalho — na sala principal, à entrada, estão as belas cópias digitais a cores feitas a partir dos diapositivos Kodachrome, quase todas agregadas pelo tema da “viagem” e realizadas entre 1947 e os inícios da década de 1970. Lá em cima, no primeiro andar, o preto e branco caracteriza o olhar mais distante da fotógrafa. Não as suas experiências pessoais, mas os temas, tão repetidos ao longo do século XX, de um Portugal visual (e pobre e rural), onde treinava a sua lente “artística”. Helena Corrêa de Barros, que dedicou parte da sua vida a organizar acções de beneficência, fotografou até ao fim. A câmara estava sempre ao pescoço, à espera do “momento único”, que juntasse a lente ao olho. Helena Corrêa de Barros fotografa em kodachrome os espaços onde se move. Não vai lá de propósito para os fotografar. Está lá e fotografa-os. Como anuncia o título desta exposição, Fotografia, a minha viagem preferida, fotografia e viagem ou viagem e fotografia foram movimentos indissociáveis, quer no caso de Corrêa de Barros, quer em geral, quando pensamos na história da fotografia desde a sua invenção em 1839. Com a excepção de uma viagem a Angola, onde se combina o trabalho do marido com a visita a amigos colonos, estas são viagens de lazer, partilhadas com família e amigos, em excursão, em grupo, confortáveis e seguras. São quase todas fotografias felizes. Nos temas como nas cores. “They give us those nice bright colors”São imagens de paisagens, vistas e monumentos. Mas também de pessoas. Pessoas conhecidas (algumas, mulheres e homens, com as suas respectivas câmaras fotográficas penduradas ao pescoço) ou pessoas desconhecidas que, como ela, Helena, também foram à montanha, ao hotel, ao lago, à exposição universal, como a de Bruxelas, em 1958, ou a de Osaka, em 1970. Por vezes, esses outros turistas surgem de costas para nós, porque estão a olhar para o lugar para onde se dirige também a lente da fotógrafa. Ou estão a observar atentos para o guia turístico que lhes dá explicações. Os pontos de vista das fotografias de Helena Corrêa de Barros podem ser muito singulares. Escolhe com frequência ângulos radicais e modernos. Há picados, contrapicados e vistas de pássaro, onde aparecem barcos de pescador (captados da varanda de um hotel), uma mulher de touca a entrar na piscina (trata-se de uma das filhas, mas as próprias brincam entre elas, por não terem a certeza qual das três é que foi fotografada na piscina da casa da Rua de S. Bernardo, em 1950). A fotógrafa não está apenas interessada na imagem que mimetiza o postal turístico. Está também atenta à atmosfera, ao ambiente, às pessoas que estão, como ela, a usufruir da viagem ou do passeio. Ou mesmo às pessoas que não sabem que estão a ser fotografadas. A fotografia faz parte do seu ócio. O seu olhar de viajante é inseparável do seu olhar de fotógrafa. Mais perto: Óbidos, Setúbal, Sagres, Monsanto, Nazaré. Mais longe: Lugano, Cortina, Monte Carlo, Roma, Veneza, Cannes, Florença, e Londres, Granada, Biarritz. Ou ainda mais longe: Angola, Camboja, Japão, Manila, Brasil, Banguecoque, Macau, Singapura. “I love to take a photograph”As viagens implicam movimento, sair de casa, transgredir a distância geográfica. E os meios de transporte tal como os edifícios de partidas e chegadas, tornam-se eles próprios, presença habitual nas suas imagens. À porta do aeroporto, à espera com as malas, ao pé dos autocarros de excursão de onde saíam ou iam entrar. Fotografias de automóveis, sobretudo os automóveis avariados como acontece no seu álbum de Angola, mas também os skis ou as bicicletas de criança no jardim de casa. “They give us the greens of summers”E sobretudo os barcos (ela própria tinha um, era também pescadora), aqueles onde a fotógrafa está com os amigos, em passeios de lazer. Além dos espaços associados às práticas de desportos aquáticos, estão as caçadas, os campos de golfe ou as montanhas suíças onde se faz esqui (uma prática pouco comum no Portugal da época), lugares vividos numa sociabilidade partilhada entre gente “conhecida” ou “semelhante”. As crianças (os seus quatro filhos), a família e os amigos são as pessoas com nome e identidade individual que habitam este mundo a cores. Uma das filhas, Teresa Cardoso de Menezes, conta ao P2 como a mãe lhes pedia muitas vezes para posar, e gostava especialmente que projetassem sombras, quer fosse nas paredes da casa ou durante brincadeiras na praia. A frase, publicitária, do poeta Alexandre O’Neill pode ser aqui usada para pensar no lugar do “mar” na fotografia. O mar é um tema dominante em Helena Corrêa de Barros tal como é um tema dominante da história da fotografia portuguesa do século XX, quer em imagens celebrativas e nacionalistas, quer numa fotografia documental, mais ou menos denunciadora das frágeis condições de vida das gentes que trabalhavam no mar. Por um lado, o mar como lugar de partidas e chegadas: os navios a largarem amarras cheios de emigrantes para o Brasil no início do século; a partida para as colónias dos soldados durante a guerra na década de 1960; a trazerem os contentores com os despojos materiais e pessoais do império colonial em meados de 1970. Por outro lado, o mar como lugar de trabalho, na pesca dos homens ou na venda do peixe e tratamento das redes, das mulheres, ao longo de todo o século. A preto e branco, Helena fotografa inúmeras “fainas”, “redes”, “embarcações de pesca”, “barcos na Nazaré”, “paisagens marítimas” ou “fluviais”, “pesca do atum”, “docas”, “pescadores”, “praias” e “portos”. Mas a este mar em escala de cinzentos, tão presente noutros fotógrafos do século XX, a fotógrafa acrescenta um mar ou um rio coloridos, nos vários tons de azul, que a película kodachrome permitia revelar. É a água dos passeios e das férias. Do Mediterrâneo ao Arno. Do Reno aos lagos suíços. Dos veleiros dos amigos e dos cruzeiros. Das regatas em Cascais ou da praia Grande. Azul, mas de um azul mais claro, é a água da piscina, pequenos mares construídos e controláveis, sinal de distinção e privilégio numa época em que a democratização da piscina, como da praia, era ainda longínqua. “Makes you think all the world’s a sunny day”O seu mar é também o dos cenários das grandes celebrações na capital da nação, como Helena testemunha numa das suas raras imagens de acontecimentos públicos nacionais, com os navios no Tejo a receber o Presidente da República Américo Tomás, no seu regresso de Angola e de S. Tomé (na capa deste P2), em 1963, ou a inauguração da ponte “Salazar” em 1966, hoje a “25 de Abril”. A profissão do marido, Eduardo Costa Lobo Corrêa de Barros, ligado a vários negócios que iam dos seguros aos materiais para obras públicas, explica esta como outras imagens de grandes construções, fotografadas por Helena, em Lisboa ou em Luanda. No labor imagético de Corrêa de Barros poderíamos afirmar que a cor ou a ausência dela servem para distinguir diferentes tipos de fotografia: a cores, um “Portugal próximo”, a sua sociabilidade e experiência de vida, tal como as viagens ao estrangeiro partilhadas com família e amigos; e a preto e branco, um “Portugal distante”, das pessoas e paisagens que nada tinham a ver com a sua esfera social ou o seu quotidiano, mas que por outro lado se inseriam nas tipologias fotográficas de uma “identidade visual portuguesa” com pretensões artísticas, banalizadas desde os anos 1940 em livros fotográficos, exposições, ou guias de viagem. É a preto e branco que surge o “povo”, as pessoas que se fotografam sem se conhecerem. Helena era uma meticulosa arquivista do seu próprio espólio — cada imagem com o seu título e a sua data, o seu espaço e o seu tempo — e o arquivo público preservou as suas palavras, quer nas legendas da exposição, quer na classificação do site onde podemos ver as fotografias digitalizadas. A “lavra da terra”, os “seareiros”, o “campino”, a “pastora”, as “lavadeiras de Águeda”, os “pescadores da Nazaré”, as pessoas na “procissão das festas do Tabuleiro de Tomar” — o Portugal a preto e branco de Helena Corrêa de Barros é, muitas vezes, o Portugal rural, pobre e analfabeto, o do trabalho físico, protagonista de tantos projectos fotográficos do século XX. “Everything looks worse in black and white”Os trabalhos dos pobres em Portugal, como o dos negros, na Angola colonial que Helena Corrêa de Barros visita em 1950, aparecem sobretudo a preto e branco, enquanto a sua lente colorida, focada na sua esfera mais próxima, centra-se mais no lazer do que o trabalho. Talvez seja apenas no álbum de Angola, a preto e branco e mais narrativo, que se veja, em simultâneo, os dois tipos de trabalho, onde a distinção colonial corresponde à desigualdade racial: o trabalho dos homens brancos, administradores e engenheiros que concebem e supervisionam o trabalho braçal das pessoas colonizadas e negras, a construírem edifícios ou obras públicas, sob regimes vários de coerção. Os pobres portugueses (ou os colonizados) parecem ter sido mais fotografados do que os ricos. Não por eles próprios, mas por outros. As máquinas fotográficas nacionais e estrangeiras concentraram-se mais no “povo”, sem nome e sem quase nada. O Portugal a cores da segunda metade do século XX captado por Helena Corrêa de Barros é o país de uma elite portuguesa, que combinava um à-vontade económico com a serenidade de não se opor ao regime político salazarista, um país que “vemos” menos porque está ainda guardado, e invisibilizado, nos álbuns de família, ou nas caixas de plástico com slides, no interior das casas das pessoas que as protagonizaram. Fotografaram-se entre si e para si. Não foram feitas para serem vistas para lá do seu entorno. É também aqui que está o lado mais interessante e original do trabalho desta fotógrafa que, conta Teresa Cardoso de Menezes, era “muito reservada” e pouco dada a tentar influenciar com os seus interesses os que a rodeavam. “A minha mãe não falava muito das suas actividades connosco. Entre tudo o que fez, não tentou passar-nos nada”, conta Teresa, enquanto remexe numa caixa com fotografias de família, onde muito raramente a mãe aparece com a sua câmara. Com o trabalho que foi feito para dar corpo à exposição, que pode ser vista até 23 de Fevereiro de 2019, a filha reconhece agora que a mãe “era uma pessoa à frente do tempo”. “Uma coisa com que ficava fascinada era a maneira ágil com que ela trocava de lentes da câmara, consoante a luz e o que pretendia fotografar. ”Embora a exposição, e bem, tenha optado por destacar as fotografias a cores em kodachrome, Helena Corrêa de Barros também fotografou muito a preto e branco (grande parte do espólio está disponível online no site do Arquivo). E fê-lo sobretudo no seu trabalho mais público, aquele que tinha ambições artísticas. Na década de 1950, tal como analisa Luís Pavão no catálogo da exposição, Helena Corrêa de Barros pertenceu a um clube de fotógrafos amadores — o Foto-Clube 6x6 — e participou em várias exposições, nacionais e internacionais. O 6x6 foi fundado por António Rosa Casaco — antigo inspector da PIDE envolvido no assassinato de Humberto Delgado, que tinha a fotografia como um dos seus principais passatempos — e por outros fotógrafos salonistas, como Harrington Sena, Silva Araújo, Fernando Vicente e Nunes de Almeida. Como contou ao P2 a sua filha Teresa, Helena começou por revelar as suas fotografias a preto e branco em casa e só mais tarde passou a fazê-lo no laboratório colectivo do Foto-Clube 6x6, também porque a comunidade de fotógrafos amadores que ali se juntava a ajudava no processo de selecção do que devia ou não revelar ou enviar a concursos. Em 1954, por exemplo, o seu nome aparece num salon em França — a única mulher na representação portuguesa de 15 participantes, enquanto em 1955, no 18. º Salão Internacional de Arte Fotográfica, voltou a ser a única mulher da secção portuguesa, com a sua “Debandada”, fotografia que apresentou em vários concursos, e que está exposta no primeiro andar do Arquivo Municipal Fotográfico, na Rua da Palma. Ainda em 1955, na Revista Fotografia, Eduardo Harrington Sena assinou um texto onde registou os participantes portugueses em “Salões, exposições e concursos de arte fotográfica”. Referiu a 1. ª Exibição Internacional de fotografias de Foto-Clubes que tivera lugar em Viena e onde Portugal estivera representado pelos “amadores” do lisboeta Foto-Clube 6x6. Ao lado do nome de Corrêa de Barros surge o de uma outra mulher, a Marquesa de Fronteira, Maria Margarida Canavarro de Menezes Fernandes Costa (1915-2004), que chegou a montar um laboratório fotográfico em sua casa, o Palácio Fronteira, em Benfica. Eram amigas e também fotografaram juntas. No Boletim do Foto-Clube 6x6, de Setembro/Outubro de 1956, Helena Corrêa de Barros aparece como sendo a única mulher que participou em exposições de fotografia nesse ano. Um ano depois, em 1957, o mesmo boletim apresenta os nomes de todos os membros que tinham sido seleccionados para participar em exposições: de Montpellier, em França, a Santo André, no Brasil; em S. Bernardino, na Califórnia como em São Paulo; na Malaia como em Moçambique. Entre todos os nomes, apenas uma mulher, o de Helena Corrêa de Barros, com três fotografias seleccionadas. São muito poucos os outros nomes femininos que encontramos durante esta década. Em 1951, a exposição do Grupo Câmara apresenta duas fotografias de D. Adelina Maria Areosa de Almeida Carvalho, de Coimbra, e de D. Anita Alves da Silva, do Fundão. Enquanto em 1953, num Salão Nacional de Fotografia em Castelo Branco surgem dois nomes: Violette Quenolle, de Lisboa, e Maria Manuela Domingos Ribeiro, de Castelo Branco. Helena é também a única mulher na secção de fotografia a preto e branco (uma em seis fotógrafos) da exposição internacional de fotografia organizada pela CUF em 1957, com uma imagem “sem título”. Algo que distinguia esta exposição da CUF, da maior parte das outras, era o facto de ter uma grande secção de diapositivos a cores. Mas o nome de Helena Corrêa de Barros, que tanto fotografava a cores, não vem referido e a única mulher presente é Letícia Maria José, com uma “Maré Vazia”. Porque é que Corrêa de Barros apenas concorre aos salões com fotografias a preto e branco? A sua decisão corresponde à distinção dominante de associar o preto e branco às possibilidades estéticas e não utilitárias da fotografia, e de recorrer à cor e ao diapositivo para a fotografia mais doméstica e biográfica, onde existe uma clara intenção de criar memórias visuais das experiências e momentos vividos e das pessoas que consigo partilhavam tanto o quotidiano da vida familiar, como os momentos mais excepcionais de passeios ou viagens. Fotografia, a minha viagem preferida, sobre Helena Corrêa de Barros não é a primeira exposição histórica que o Arquivo Municipal de Lisboa dedica à obra fotográfica de uma mulher. Entre 2013 e 2014 teve lugar uma mostra, também acompanhada de catálogo, das fotografias de Ana Maria Holstein Beck (1902-1966), tal como esta, comissariada por Paula Figueiredo Cunca e Luís Pavão [Ana Maria de Sousa e Holstein Beck — fotografia privada 1912-1958 (Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa; Scribe, 2014)]. Como no caso de Helena Corrêa de Barros, também se tratou de uma doação familiar de um espólio que se pode inserir na categoria de “fotografia privada”. Corrêa de Barros e Holstein Beck não foram mulheres-fotógrafas, no sentido profissional e remunerado do termo, mas sim mulheres que fotografaram. A fronteira entre “privada” ou “amadora”, por um lado, e “profissional”, por outro, deve, no entanto, ser questionada e pouco revela em relação à “qualidade” da obra. A “qualidade”, aliás, é um conceito subjectivo que historicamente serviu para afastar as mulheres dos cânones do reconhecimento, onde o mérito tendeu a ser sinónimo de masculinidade. Mesmo assim, é relevante pensar que, noutros lugares do mundo durante este período, já havia muitas mulheres a dedicarem-se à fotografia enquanto profissão remunerada, em estúdio privado ou em comissões governamentais. É o caso da fotógrafa profissional Dorothea Lange (1895-1966), cujo trabalho pode ser visto actualmente na exposição Politics of Seeing, agora em Paris no Jeu de Paume (até 27 de Janeiro 2019). Quase contemporâneas, Corrêa de Barros e Holstein Beck (tal como a Marquesa de Fronteira) foram mulheres de um meio social privilegiado, com acesso económico à melhor tecnologia fotográfica e com possibilidade de dedicarem parte do seu tempo às diversas formas de lazer disponíveis às mulheres de uma reduzida elite portuguesa, cosmopolita, viajada e culta. Como temas comuns a ambas, o seu entorno afectivo, familiar e de amigos, os eventos sociais, os desportos e as viagens. Em comum também o facto de as origens nacionais familiares serem tanto prósperas como híbridas: no caso de Ana Maria, a aristocracia transnacional, no caso de Helena, as suas origens, maternas como paternas, em famílias judias originárias de Marrocos, quer do lado dos Abecassis e Bensaúde, paternos, quer dos Benoliel Amzalak e Buzaglo, maternos. Mãe e pai, ambos de nacionalidade inglesa, eram activos participantes em comunidades e organizações israelitas, quer nacionais quer internacionais. A ligação de Helena Corrêa de Barros à Alemanha, deve-se ao facto de ter estudado numa escola Waldorf, em Estugarda, pedagogia ainda hoje progressista, que promove uma educação holística e respeitadora das características individuais. A este cosmopolitismo Corrêa de Barros aliou uma forte participação numa vida social e cívica lisboeta, a esfera onde mulheres dos meios sociais privilegiados podiam trabalhar sem perturbar as convenções sociais que tolhiam os caminhos profissionais femininos. Para angariar fundos para o Centro de Assistência à Maternidade e Infância, fundada pela sua mãe, Sophia Abecassis, Helena demonstrou o seu empreendedorismo e criatividade. O mesmo que demonstrou na construção das suas casas e jardins como no restaurante de “pronto-a-comer” e salão de chá que geriu no fim da vida, o Chef, ponto de encontro dos habitantes do bairro da Lapa. Duas mulheres que também fotografavam e se interessavam por fotografia, e que poderão ser pensadas ao lado de outras mulheres oriundas das elites, são as Rainhas Maria Pia de Sabóia (1847-1911), mulher de D. Luis, e D. Amélia de Órleans (1865-1951), mulher de D. Carlos I. A primeira foi tratada por Teresa Mendes Flores, num número especial sobre “Fotografia e Género” na revista Comunicação e Sociedade (eds. Maria da Luz Correia e Carla Cerqueira); e a segunda foi objecto de uma exposição comissariada por Luís Pavão (2015-2016), que teve lugar no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa: Tirée par. . . a Rainha D. Amélia e a Fotografia. Entre as suas muitas diferenças, também decorrentes das cronologias distintas das suas vidas (Holstein Beck nasceu antes e viveu menos tempo do que Corrêa de Barros), referiremos duas: em primeiro lugar, Corrêa de Barros, ao contrário de Holstein Beck, demonstrou alguma ambição em sair da esfera meramente privada, ao concorrer a inúmeros concursos e exposições de fotografia, nacionais e internacionais. Em segundo lugar, são distintas as tecnologias fotográficas a que recorreram. Ana Maria Holstein Beck organizou as suas mais de 5900 fotografias a preto e branco em álbuns de família, enquanto Helena Corrêa de Barros privilegiou o muito mais moderno dispositivo da película colorida. Este último, revelado em diapositivo, não era passível de ser visualizado em álbuns (quanto muito via-se à contraluz) continuando a precisar de uma “máquina” e da acção humana para se tornar visível através das então populares “sessões de slides”. Conta Teresa Cardoso de Menezes que pelo menos uma vez por ano, Helena juntava a família para mostrar slides, com luzes apagadas e a sua narrativa oral — a voz como legenda — a contextualizar aquilo que dava a ver ou a identificar familiares, mas nunca a falar do seu mérito enquanto fotógrafa ou explicar como tinha captado esta ou aquela imagem. Será possível encontrar uma genealogia de observação de imagens a cores e em movimento desde o século XIX até aos dias de hoje? Da lanterna mágica, aos aparelhos para visualizar estereoscopias, passando pelos diapositivos, e chegando aos modos contemporâneos de olharmos para fotografias, passando-as, com o dedo ou com o rato, no ecrã do telemóvel ou do computador?Tão relevante como a produção fotográfica em si, são as histórias dos espólios fotográficos, na sua passagem do espaço privado para o espaço público. Nos casos de Holstein Beck e Corrêa de Barros, os seus descendentes tiveram consciência da sua relevância e tomaram a iniciativa de doar os seus espólios a uma instituição, como o Arquivo Municipal de Lisboa-Fotográfico, já com uma tradição consolidada de conservação e restauro, classificação, divulgação e exposição de fotografia, capaz de assegurar a sua unidade e continuidade. Haverá, ainda, milhares destas fotografias em casas particulares de pessoas que pensam nestas imagens como “memórias familiares” e não “memórias históricas” ou “estéticas”. Mas mais raros serão os conjuntos criados por uma só pessoa, sobretudo por uma só mulher, com a persistência e a solidez de um projeto fotográfico-autobiográfico, como foi o de Helena Corrêa de Barros, mesmo que a própria, não tivesse a consciência do seu valor, e mesmo a sua família, como a própria reconhece, só agora se aperceba da sua real dimensão. O papel das famílias — na preservação e valorização de espólios escritos, fotográficos ou de objectos — é assim, determinante, e a riqueza dos arquivos públicos depende, em grande parte, das iniciativas de privados. A consciência e cultura das famílias que, hoje, possuem arquivos privados em suas casas, é especialmente relevante para o caso da obra de mulheres. Por razões históricas e já muito estudadas desde a década de 1970, a produção intelectual e criativa das mulheres teve menos oportunidades de ocupar o espaço público — da exposição ou publicação — e, por isso, está ainda em grande parte, preservado (ou esquecido) em casas particulares. As abordagens feministas que vieram analisar os processos que levaram à invisibilização da escrita, pintura, escultura ou fotografia feita por mulheres, têm tido um grande impacto na investigação histórica dos últimos 50 anos, e isto é visível no ensino académico, em publicações e em exposições e museus. Estes novos olhares do presente, sobre a cultura intelectual e material do passado, também tem tido um impacto entre aqueles que têm em casa a “obra” de mães, avós, tias ou bisavós. A prática fotográfica e o percurso biográfico de Helena Corrêa de Barros sugerem diferentes reflexões. Por um lado, a de uma história das tecnologias fotográficas no século XX, do preto e branco à cor, luminosa, possibilitada pela nova película, onde não há um “antes” e um “depois”, mas uma simultaneidade em que se multiplicam as formas de fotografar. Por outro lado, a história da fotografia nas suas tensões entre o amadorismo e a profissionalização, sendo as questões de género centrais às negociações de uma fronteira, onde a fotografia pública e profissional tendia a ser sinónimo de masculino, e a privada e familiar, de feminino. As muitas transgressões as estas expectativas têm vindo à luz nos últimos anos, em investigações e exposições de mulheres fotógrafas. Como afirmou uma das suas filhas ao P2, Teresa Cardoso de Menezes, a mãe nunca se considerou “uma profissional” e a própria família não tinha consciência do valor do corpus, consistente em quantidade e qualidade, da sua obra. Só após a sua morte é que os próprios filhos se confrontaram com a riqueza da herança criativa deixada pela mãe. Este processo é muito comum, particularmente com a produção intelectual e artística feminina do passado: a própria autora interioriza a sua subalternização, desvalorizando-se. O estigma do amadorismo feminino — podiam “fazer” mas de modo doméstico e não profissional — era inseparável do contexto social, mas afectava também o modo como as próprias mulheres se imaginavam a si próprias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Parte da produção fotográfica de Helena Corrêa de Barros permite-nos agora fazer uma etnografia de uma elite portuguesa que raramente vemos nos cânones visuais do Portugal do século XX. Não são já as carte-de-visite oitocentistas com que os meios privilegiados se puderam dar a ver, nem os retratos dos políticos (homens) ou das actrizes e cantoras (mulheres) a preto e branco, reproduzidos nos jornais de novecentos. São sim os espaços e as experiências de uma Lisboa que não estava vestida de preto, que não trabalhava com as mãos (porque podia pagar a quem o fizesse), que não era analfabeta (mesmo que nem sempre fosse culta ou intelectual), que vivia em casas grandes e dignas e que tinha segundas casas, na praia ou no campo, que ia ao teatro, à ópera e jantar fora, que praticava golf, ténis e esqui, dentro e fora do país. Era um Portugal que não emigrava, mas viajava no estrangeiro. Que podia aquecer as casas apesar da austeridade dominante. Que usava o mar para nadar ou velejar e não para trabalhar. Que educava as raparigas para casar, não as encorajava a estudar mais do que o essencial ou a ter uma profissão remunerada (o “parece mal” afectava especialmente os percursos das mulheres). Que convivia pacificamente com o regime político não democrático, como com as colónias, que na altura se chamavam “províncias ultramarinas”. Que no 25 de Abril, e por razões políticas, económicas ou pessoais, ou numa mistura de vários motivos, deixou Portugal, para ir viver para Madrid, para a Suíça ou o Brasil. Mas mesmo no interior deste Portugal privilegiado da década de 1940 ou 1960, existem muitas diferenças, e o percurso e família de Helena Corrêa de Barros também o demonstra. Possuía uma distinção social e económica, mas, ao mesmo tempo, era “estrangeira” e cosmopolita, e isso terá contribuído para uma liberdade acrescida. Entre outras escolhas, também pôde usar uma câmara fotográfica. E é nessa capacidade de estar por dentro, sem perder a capacidade de observar e reflectir sobre a sua própria experiência, que ela se distingue. Através da sua lente, próxima e distante, podemos diversificar e enriquecer as “imagens do país” a preto e branco, que têm dominado a visualidade do Portugal do século XX. com Sérgio B. Gomes
REFERÊNCIAS:
Os mundos da ansiedade
As “políticas do medo” não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença. (...)

Os mundos da ansiedade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: As “políticas do medo” não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença.
TEXTO: Os “Perigos Amarelos”Em 24 de Outubro de 1871, em Los Angeles, cerca de 500 homens irromperam pela Chinatown local e atacaram violentamente os residentes chineses. Entre 17 a 20 emigrantes chineses foram enforcados, alguns já depois de mortos. A um faltava-lhe um dedo, por ter um anel de diamantes que alguém cobiçara. A cultura do justicialismo popular e do linchamento, bem disseminada nas “sociedades de fronteira” da época e hoje ainda familiares, não escolhia origens étnicas. Dos dez homens julgados pelo acto, oito foram condenados por homicídio, destinados à famosa prisão de San Quentin. Graças a expedientes “técnicos”, as condenações foram inconsequentes. A causa directa invocada para justificar este acontecimento dizia respeito a um ataque de um emigrante chinês a um polícia e a um rancheiro. O polícia, Jesus Bilderrain, interviera numa altercação de rua. O rancheiro Robert Thompson perseguira um dos envolvidos e foi morto. Não tardou que um boato circulasse velozmente indicando que a comunidade chinesa da Calle de los Negros, uma viela pobre e destituída, estaria a assassinar “brancos” em massa. Seguiu-se um dos mais brutais linchamentos da história americana. O boato, então como hoje, produzira as consequências esperadas. Outras causas pesaram também neste desfecho. O aumento regular da população chinesa na Califórnia suscitara desde cedo inúmeros ressentimentos, pouco justificados. As populações brancas e mestiças sentiam-se ameaçadas com a presença de estrangeiros, apesar destes providenciarem uma força de trabalho fiável e de baixíssimo custo. O decréscimo na oferta de emprego e a desvalorização de salários no mercado laboral, por certo acicatada e aproveitada por proprietários e empresas, assim o determinava. O fluxo de trabalhadores chineses era consequência da fuga à pobreza extrema, à fome, epidemias e violência resultantes da Rebelião Taiping (1851-1964), na qual se estima que tenham morrido entre 20 a 30 milhões de soldados e civis. Em 1863, a legislação local já subtraíra um importante direito a esta comunidade: o de poder testemunhar contra alguém da comunidade branca. Em 1868, um tratado entre o Império Chinês e os EUA regulava os fluxos migratórios, de natureza pouco restritiva. A migração era essencialmente pendular, maioritariamente composta por homens. As mulheres migrantes eram sobretudo prostitutas e escravas sexuais. Um ano antes do massacre, o Naturalization Act estendeu direitos de cidadania a afro-americanos, mas não a asiáticos, vistos como sendo impossíveis de “assimilar”. Em vários lugares não podiam comprar terra, votar, participar no processo judicial ou ter negócios de qualquer espécie. Em 1875, o Page Act proibiu a entrada de imigrantes “indesejáveis” nos EUA. A entrada de trabalhadores asiáticos não remunerados e mulheres passíveis de se envolverem em prostituição estava vedada. O efeito depressivo nos salários e a imoralidade da mulher chinesa foram invocados como justificação, sobretudo por políticos conservadores, mas também por organizações laborais, com envolvimento presidencial. O “mal” da importação da mulher chinesa tinha de ser atendido, não necessariamente devido à desumanidade imposta, mas sobretudo pelo seu suposto impacto nocivo na “moral pública” e nos “valores familiares cristãos”. A Associação Médica Americana defendia que os imigrantes chineses eram portadores de germes que acabariam por liquidar as comunidades brancas. As prostitutas chinesas seriam um agente eficaz neste processo. Dos cerca de 40 mil chineses que, então, entraram no país, apenas 136 eram mulheres. A lei contra a prostituição gerou mais prostituição. E aumentou a tensão entre quem a controlava. Em 1882, o Chinese Exclusion Act veio responder ao crescente sentimento sinófobo nos EUA. Foi um dos mais significativos exemplos de restrição à liberdade de circulação de pessoas com base num critério exclusivamente étnico e durou até 1943. Proibia trabalhadores de qualquer qualificação de entrar no país durante dez anos, contando com o apoio entusiasta da Federação de Trabalho Americana. Os já residentes eram tornados estrangeiros, privados de cidadania. Uma série de adendas posteriores acentuou as restrições, sempre acompanhada de justificações baseadas em estereótipos raciais e étnicos. Como um dos poucos críticos, um senador republicano declarou, à época, era a “legalização da discriminação racial”. Visava o controlo da circulação de pessoas e a gestão do mercado laboral bem como a manutenção de privilégios de classe e raciais. De permeio, estimulou dinâmicas de tráfico ilegal de pessoas. Gerou ainda inúmeros momentos de violência e perseguição de comunidades chinesas. Os massacres de Rock Springs, no Wyoming (1885), e de Snake River, no Oregon (1887), são apenas dois exemplos. O primeiro envolveu uma série de mineiros brancos que culpavam os chineses pelo seu desemprego. O facto de estes aceitarem salários muito mais baixos e de terem substituído os trabalhadores brancos numa greve em 1875 alimentou o ressentimento. Os trabalhadores chineses pagaram o preço das políticas salariais da empresa e da instrumentalização de preconceitos raciais existentes. Os agressores estavam ligados aos Knights of Labor, a mais importante associação americana de trabalhadores na altura. O resultado foi a violência descontrolada, que conduziu pelo menos à morte de 28 pessoas. Queimadas na sua própria casa, mortas por animais, à fome ou a tiro. Alguns dos agressores foram presos, mas logo libertados, sendo ovacionados pela população. O segundo massacre resultou na morte de 34 garimpeiros, envolvendo actos de tortura. Ninguém foi punido pelo crime, apesar de alguns dos implicados terem sido julgados. Estes episódios pontuaram a longa história de sentimento antichinês nos EUA, não esgotando, contudo, as suas manifestações. O argumentário do “perigo amarelo” assumiu inúmeras formas e justificações. O amarelo teve várias tonalidades e serviu para várias composições. A futurologia da desgraça impendente foi alimentada pela literatura, muita dela publicada em fascículos em jornais de referência. Emergiu um género literário que prosperou nos últimos anos do século XIX. A sinofobia foi promovida por políticos e pelos moralistas de serviço. Os “guerreiros-como-imigrantes” invadiam para depois conquistar. Induziriam os americanos ao vício do ópio ou do jogo, ou propagariam doenças. Corromperiam a moral e sorveriam os recursos americanos. O medo do “amarelo” não se esgotou nos chineses, envolvendo mais tarde os japoneses, os sul-coreanos e os vietnamitas. A metáfora sobre o acordar do “gigante adormecido” ganhou contornos claros e duradouros durante o reinado do imperador alemão Guilherme II. A invocação do cortejo de depredações de Genghis Khan ganhou uma nova expressão. A conhecida alegoria de Hermann Knackfuss, Povos da Europa, guardem os vossos preciosos bens, encomendada pelo imperador em 1895, supostamente após um sonho, sintetizou de modo claro a relação entre imaginação (geo)política, racialização do outro e politização do medo. A litografia foi enviada para outros monarcas europeus. A mensagem era clara: uma aliança ocidental, assente numa civilização cristã e liderada pelo império alemão, devia fazer face ao “perigo amarelo”. De outro modo, o declínio do ocidente seria inevitável. O Inverno da civilização faustiana, como diria Oswald Spengler, em 1918, estaria próximo. O “perigo amarelo” escondia ambições imperiais óbvias, a weltpolitik alemã. Tal já sucedera com o envolvimento alemão na Tripla Intervenção associada à Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895. Em 1900, por ocasião da partida das tropas alemãs para combater a Rebelião dos Boxers na China, Guilherme II revelou as suas ideias chauvinistas. Instigou as tropas à liquidação absoluta do inimigo, sem tréguas, sem prisioneiros, invocando Átila e os hunos. À xenofobia da Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros (os Boxers) deviam-se contrapor sentimentos racistas antichineses, em voga um pouco por todo o mundo. Os alemães deviam dar um exemplo de “masculinidade” e “disciplina” a todos. Anos depois, sob a sua autoridade, os Herero e os Nama eram massacrados no Sudoeste Africano Alemão. Uma década depois começava a Primeira Guerra Mundial, com as conhecidas consequências. Aquando da sua abdicação, Guilherme II revelou ainda todo o seu anti-semitismo, reclamando uma vingança futura. Com a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, a invocação do “perigo amarelo” deslocou-se para os japoneses, também eles reduzidos a “povos de raça amarela” ou “mongóis”. A sua ascensão no Pacífico justificou todo o tipo de estereótipos, sendo o da impossibilidade da sua assimilação recorrente. O fim da guerra de 1905 trouxe inúmeras crises nas relações com os americanos. A segregação das crianças japonesas nas escolas públicas de São Francisco ou os boatos, outra vez os boatos, de que os imigrantes japoneses no México e no Canadá eram agentes disfarçados que se preparavam para invadir os EUA são apenas dois exemplos. Como quase sempre, o momento foi acompanhado pela emergência do especialista em “vulnerabilidades” nacionais e indefinições “estratégicas”. O livro sensacionalista de Homer Lea, The Valor of Ignorance (1909), sintetizou esse processo. Lea foi uma figura fascinante, tendo sido conselheiro de Sun Yat-sen durante a revolução republicana chinesa de 1911. No seu livro profetizou um confronto entre os EUA e o Japão, aventando uma invasão da Califórnia e das Filipinas. As suas ideias “geoestratégicas” foram acolhidas por “analistas” e corpos de interesse directamente envolvidos no processo. A sua insistência na “virilidade” e “estabilidade” das “nações”, dependentes da “homogeneidade da raça”, foi abraçada por muitos. O seu prognóstico de que a Alemanha e o Japão dividiriam o mundo entre si se continuassem a resistir “à influência deteriorante do industrialismo, do feminismo e da charlatanice política” encantou, atemorizando, vários círculos. A “homogeneidade anglo-saxónica” tinha de ser assegurada face ao largo contingente de cidadãos negros e ao aumento da imigração. O influxo de japoneses, os verdadeiros representantes do “perigo amarelo”, constituíam a grande ameaça. A “segurança nacional” estava, supostamente, em perigo. A sugestão da ideia da existência de uma quinta-coluna japonesa nos EUA ecoaria anos mais tarde. Durante os anos 1930, o FBI desenvolveu programas de counter-intelligence clandestinos nos Little Tokyos de Washington, Oregon e da Califórnia. Durante a guerra, a ideia serviu de justificação para o realojamento e internamento forçado de cerca de 110. 000 americanos de ascendência japonesa. Cerca de 62% destes tinham cidadania americana. Os antigos medos de uma invasão e os interesses específicos associados à agricultura e à pesca na Califórnia, que temiam a concorrência, atingiam um corolário dramático. "The Russians are coming" tornou-se uma expressão popularizada enquanto forma de paródia sobre o medo que tomou conta da sociedade norte-americana durante a Guerra Fria, em grande medida devido à comédia com o mesmo nome, de 1966. Ela remete, no entanto, para as notícias de que, nos finais dos anos 1940, o primeiro secretário da Defesa dos EUA, James Forrestal, tinha sido encontrado na rua anunciando uma invasão soviética, notícias que são hoje tidas por apócrifas. Esta não é, no entanto, a única polémica que envolve Forrestal. Suicidou-se em 1949, saltando da varanda do hospital psiquiátrico onde estava internado. Teorias da conspiração multiplicaram-se aos longos dos anos, nomeadamente sobre a possibilidade de um assassinato. Todavia, não restam dúvidas sobre a pressão a que se encontrava sujeito. Anunciara-se que não apoiaria a recandidatura de Truman, que o havia, entretanto, demitido. O seu casamento havia terminado de forma turbulenta. Mais, Forrestal tinha sido, desde início, um dos principais defensores de uma política externa implacável face à União Soviética. Este episódio não deve ser lido como um exercício de análise psíquica da política internacional. Ele mostra como as “políticas do medo” não têm de ser, necessariamente, uma maquinação instrumental de elites políticas engenhosas. Num certo sentido, a trajectória de Forrestal não é excepcional. Primeiro, o medo anti-comunista não nasceu com o início da Guerra Fria. Ele já tinha um importante precedente no primeiro Red Scare. O House Un-American Activities Committe, que tornaria famoso o senador Joseph McCarthy, tinha sido criada em 1938. Com ritmos diferentes, o medo soviético foi-se alastrando progressivamente pelos diferentes sectores da administração. Os debates historiográficos sobre o início da Guerra Fria têm frequentemente sido marcados por oposições antagónicas. No entanto, é relativamente unânime que, à época, a União Soviética não tinha o poder para desafiar militarmente os Estados Unidos. Os efeitos devastadores da guerra na URSS ou o monopólio atómico tornavam inconcebível um ataque em solo americano e improvável uma intervenção armada na Europa Ocidental, como afirmava um relatório da CIA de 1947. O perigo fundamental era a subversão económica e política. A influência dos partidos comunistas francês e italiano, a Guerra Civil na China ou a independência da Índia contribuíam para uma visão caótica e ameaçadora do mundo. A essas circunstâncias juntou-se a dramatização e simplificação do perfil do “inimigo”. Da URSS não se podia esperar conciliação ou razoabilidade. O seu objectivo era um “Soviet-Dominated World Communism”, como indicava um relatório do então criado National Security Council. A relutância em retirar militarmente do Irão, entre outras reacções, adensou estas apreensões. O recurso a estereótipos para caracterizar o inimigo reforçava os temores de decisores políticos e instilava um sentimento de perigo iminente. Tratava-se de nada menos do que um embate entre civilizações irreconciliáveis. A luta era apocalíptica, o inimigo radicalmente novo. Não possuía fronteiras identificáveis. Era dissimulado. Por vezes era russo, noutras asiático. Poderia até ser americano ou “ocidental”. As dinâmicas do medo popularizavam-se também internamente. O perigo de uma “quinta coluna” foi exacerbado. Para além da limitação de liberdades individuais, bem conhecida, iniciativas como a National Conference on Citizenship alertavam que a ilusão da paz estava a fazer esmorecer o sentimento patriótico. Como alertava o comandante nacional da American Legion, as “filosofias anti-americanas floresciam”. Em 1948, uma “semana da democracia derrotando o comunismo” foi organizada. Em 1950, na West Virginia, uma “semana do americanismo” incluía o “dia de combate ao comunismo-socialismo”, o “dia de responsabilidades cívicas” e o “dia da liberdade de oportunidades”. Estas manifestações pretendiam responder àquilo que era visto como um sintoma mais profundo. A sociedade norte-americana tornara-se refém do consumo e os valores patrióticos esmoreciam. Em suma, esta era uma sociedade despojada de virilidade. Essa visão era perfilhada por autores liberais como Arthur Schlesinger Jr. . No seu Vital Center (1949) – símbolo do liberalismo e conservadorismo unidos por valores comuns face à ameaça totalitária de esquerda e de direita – alertava para uma “era da ansiedade” que tornava as massas propensas a aderirem a visões radicais da sociedade. Essa “feminilidade” era identificável nas forças de esquerda que se deixavam seduzir pelo comunismo. Uma nova geração de liberais menos idealistas e mais empreendedores era a solução. Ironicamente, o remédio para a ansiedade só gerava mais ansiedade. O recurso a metáforas de virilidade foi bem mais acentuado no seio da direita conservadora. Para homens como McCarthy, o liberal da costa leste ou de Washington D. C. , merecia desprezo. Era, como se diz hoje, um “bem-pensante”, distante do povo real. O establishment liberal, que venerava os “comunistas e maricas do Departamento de Estado”, tinha vendido a “China a uma escravatura ateísta”. Os medos sobre a homossexualidade exacerbavam-se e foram associados à Guerra Fria. Na sequência do despedimento de 91 funcionários do Departamento de Estado por serem homossexuais, um senador republicano defendeu que se realizasse um estudo sobre os homossexuais que trabalhavam para o Estado. O motivo: Estaline tinha obtido de Hitler uma “lista mundial” de homossexuais que podiam ser usados como elementos de subversão. Um relatório produzido na sequência destes eventos sublinharia que aqueles que se envolviam abertamente em “actos de perversão” não dispunham da “estabilidade emocional” de uma “pessoa normal”. Os temores de uma sociedade emasculada conjugavam-se com uma retórica de decadência civilizacional que pretendia galvanizar a opinião pública e, aspecto fundamental, limitar a dissensão. O conjunto de dinâmicas do medo aqui enunciadas revelou-se de forma particularmente aguda aquando do episódio dos prisioneiros de guerra norte-americanos no conflito na península norte-coreana. O facto do número de prisioneiros chineses e norte-coreanos que não queria voltar aos países comunistas ser muito superior ao do número de norte-americanos que não queria voltar aos EUA e que estes fossem apenas 21 de um universo de cerca de três mil não impediu que a opinião pública norte-americana reagisse alarmada. Dada a convicção generalizada da superioridade política, moral e económica da sociedade norte-americana, a recusa destes prisioneiros em voltar só se poderia dever a técnicas misteriosas empregadas pelos comunistas. A ideia de lavagem cerebral, com antecedentes, tornou-se então central no debate público americano. Disseminaram-se as teorias sobre as técnicas pavlovianas e hipnóticas dos comunistas, reveladores do seu carácter radicalmente novo e ameaçador. O medo de que a subversão alastrasse levou a que este grupo social se tornasse um dos mais estudados na história dos EUA. As forças militares ficaram aterrorizadas com a perspectiva dos “métodos de aniquilação mental dos comunistas”. A cena cultural reproduziria estes medos, facto particularmente visível no filme The Manchurian Candidate (1962). Se nos EUA o comunismo se apresentava como ameaça fundamental ao “modo de vida” americano e à civilização ocidental, em várias capitais europeias esse vento não soprava apenas do Leste, vinha também do Sul. Após a progressiva descolonização asiática, o temor da ascensão do nacionalismo africano conjugou-se com o que era visto como o perigo do declínio do Ocidente, temperado pela persistência de visões racializadas das populações nativas. Estes temores tornaram-se particularmente salientes em momentos em que o domínio colonial foi posto em causa através de meios violentos. Foi esse o caso da revolta Mau Mau no Quénia. A revolta, iniciada em 1952 e atribuída aos Kikuyu, foi no essencial o resultado de problemas agrários. Todavia, foi desde cedo retratada pelas autoridades britânicas como um exemplo de “selvajaria” decorrente de uma mentalidade “primitiva”. Houve quem não hesitasse em associar a rebelião a uma infiltração comunista em África, por via da intromissão das Nações Unidas e dos elementos progressistas ocidentais, ambos instrumentalizados pelos comunistas. Este argumento faria escola entre as várias potências coloniais. No entanto, foram as próprias autoridades britânicas que negaram qualquer interferência comunista. A dissociação dos eventos no Quénia de uma trama comunista pretendia reforçar a ideia de que este era um movimento desprovido de qualquer “racionalidade” moderna. Os múltiplos relatos na imprensa britânica de uma violência inaudita visavam demonstrá-lo. A imagem dos juramentos iniciáticos que eram atribuídos aos Mau Mau e que invadiam a mente tanto dos colonos como das audiências britânicas era apenas uma das ilustrações disponíveis. Mas estes eram fortemente exagerados pela imaginação dos cronistas e das autoridades civis e militares. Num documento privado, que não chegou ao conhecimento público por ser demasiado explícito, referia-se que os juramentos incluíam actos como a masturbação em público, beber sangue menstrual e actos “não-naturais” com animais. Apesar disso, os colonos acreditavam que 80% dos Kikuyu tinha participado nestes actos. O que não era verdade. Mas este tipo de exercício legitimava medidas de repressão e punição colectivas. Os relatos, com ampla circulação, sublinhavam a violência contra brancos e as práticas de violência cruéis. Instilou-se um temor na sociedade colona acerca dos seus trabalhadores e empregados domésticos Kikuyu. A realidade, essa, era substancialmente diferente. A revolta traduziu-se na morte de quase 13 mil Kikuyu e apenas 58 brancos. As práticas de desmembramento foram esporádicas, ao contrário do que era amplamente sugerido. Mas o boato e a propaganda tornavam mais fácil legitimar o estado de emergência instaurado pelas autoridades britânicas, marcado por múltiplas violações de direitos humanos e liberdades individuais. A essencialização e a desumanização do “inimigo” e a projecção de uma luta de vida e de morte entre a “civilização” e a “barbárie” também se fizeram sentir no caso da libertação da Argélia. Aqui, as desigualdades sociais e económicas organizadas em torno da diferença étnica e cultural eram manifestas, reforçadas que eram por um sistema político discriminatório. Em 1947, existiam dois colégios eleitorais distintos, cada um elegendo seis representantes. Para o primeiro votavam cerca de 460 mil europeus e 58 mil muçulmanos “assimilados”. No segundo, um milhão e quatrocentos mil “nativos”. Ademais, as eleições eram frequentemente viciadas pelas autoridades francesas. Quando a violência organizada foi despoletada em 1954 pela Front de Libération National (FLN), as autoridades francesas estavam cientes destas realidades. A população argelina crescia a um ritmo muito superior ao da sociedade metropolitana e ao da população colona, o que colocava problemas de monta à ideia de uma Argélia francesa. A livre circulação de argelinos para a metrópole, que se contavam então nos 300 mil, e que regressavam à origem transportando “perigosas ideias políticas e sociais”, exacerbava os temores administrativos franceses relativos à integração plena do território. Em sentido contrário, essa imigração traduzia-se numa “invasão real e berberização de bairros inteiros em Marselha e Paris”. Os perigos abundavam. Mas a vontade francesa de manter a Argélia como parte integrante da França persistiu. Para alguns, depois de contida a ofensiva do pan-eslavismo, o Ocidente confrontava-se agora com a do pan-islamismo. A ideia de choque civilizacional era promovida. Um primeiro-ministro de De Gaulle declarava que a Argélia era a “fronteira entre dois mundos hostis”. As intenções francesas visavam transformar os termos do debate, num momento em que a autodeterminação e os direitos humanos se tornavam princípios orientadores da ordem global. Os seus oponentes eram retratados como “assassinos sem piedade” ou “instrumentos de um imperialismo teocrático, fanático e racista”. A sua desumanização era evidente. O governo francês invertia as acusações de racismo e xenofobia, atribuindo-as à FLN. A centralidade da questão feminina nos debates suportava esse esforço. Por exemplo, num filme produzido para audiências norte-americanas disseminava-se a ideia de que apenas a França poderia acabar com a tradição muçulmana da subjugação da mulher. A descrição do adversário como essencialmente fanático, imbuído de um espírito de Jihad, além de simplificar e reduzir as causas do ressentimento a uma “essência” muçulmana, autorizava respostas violentas. Quando as forças nacionalistas argelinas massacraram 123 pessoas em Constantinois, em 1955, a resposta francesa em Philippeville saldou-se na morte de 1237 muçulmanos. A ordem era para atirar em qualquer árabe que as tropas francesas encontrassem. Os episódios de tortura sistemática ou de suspensão de direitos fundamentais são amplamente conhecidos. A defesa da “civilização ocidental” autorizava a desproporção, alimentada que era pela desconfiança generalizada relativamente a qualquer muçulmano, resumido à sua condição religiosa e étnica pelo temor da diferença. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O livro de Corey Robin, Fear: the History of a Political Idea (2004), escrito num momento em que a Guerra ao Terror colocava desafios de monta às promessas de liberdade, providencia um guia fundamental sobre como o “medo”, enquanto dispositivo político, orientou alguns dos mais importantes pensadores que reflectiram sobre as sociedades ocidentais. Hobbes, Montesquieu, Tocqueville ou Arendt prestaram o devido tributo filosófico ao poderoso incentivo do medo, nas suas múltiplas formas e, crucialmente, de modos diversos. A incursão histórica que dá forma a este texto procurou, deliberadamente, sinalizar historicamente formas de politização do medo em contextos democráticos. Todos eles incluíram zonas interditas, definidas em função da nacionalidade, da aceitabilidade política ou da raça ou etnia. Mas estes casos não autorizam um libelo contra estas sociedades. Restam poucas dúvidas que as políticas do medo assumiram proporções muito mais vincadas em sociedades autoritárias ou totalitárias, corporizadas no judeu ultraminoritário enquanto potencial ameaça ao corpo nacional ou no kulak desapossado que poderia reverter a marcha da história. O objectivo é o de sinalizar como as políticas do medo podem ser, hoje, facilmente reavivadas. O exagero desproporcionado da ameaça, o estereótipo e unificação do “inimigo” enquanto forma absoluta do mal, as imagens de civilizações decadentes ou emasculadas permanentemente acossadas, a ligeireza no recurso a sentenças apocalípticas são algumas das suas manifestações mais comuns. E elas abundam, um pouco por todo o lado. Todos os episódios aqui elencados podem ser vistos como manifestações de problemas globais. Não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, muitos deles associados às múltiplas globalizações que desde há muito originaram o encontro da diferença e as ansiedades e receios deste resultantes. Nascem do estereótipo e do rumor. Decorrem de simplificações de vária ordem, da redução de problemas a explicações mono causais ou da sua claríssima manipulação interesseira. Promovem “soluções” que frequentemente ampliam o problema que declaram resolver. É obrigatório descodificar os seus usos mais grosseiros e perniciosos.
REFERÊNCIAS:
Religiões Islamismo
"Mereço amplamente o Prémio Camões"
Por fim o desabafo quando faz 60 anos de carreira. Zangado com o estado do mundo, mas não com a vida, Urbano Tavares Rodrigues confessa a mágoa de não ter um prémio que acha que lhe é devido e diz que foi tudo o que queria ter sido. Sabe, escrevi uma novela em três ou quatro dias. . . " Urbano Tavares Rodrigues antecipa-se a qualquer pergunta para revelar uma ousadia para alguém a pouco tempo de fazer 89 anos. Ver o que dá escrever de um fôlego. Um desafio para um escritor que continua a cultivar o erotismo e a estar atento ao mundo, mesmo condicionado à casa, grande, forrada a quadros e a livros e cheia de fotog... (etc.)

"Mereço amplamente o Prémio Camões"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-09 | Jornal Público
TEXTO: Por fim o desabafo quando faz 60 anos de carreira. Zangado com o estado do mundo, mas não com a vida, Urbano Tavares Rodrigues confessa a mágoa de não ter um prémio que acha que lhe é devido e diz que foi tudo o que queria ter sido. Sabe, escrevi uma novela em três ou quatro dias. . . " Urbano Tavares Rodrigues antecipa-se a qualquer pergunta para revelar uma ousadia para alguém a pouco tempo de fazer 89 anos. Ver o que dá escrever de um fôlego. Um desafio para um escritor que continua a cultivar o erotismo e a estar atento ao mundo, mesmo condicionado à casa, grande, forrada a quadros e a livros e cheia de fotografias de António, o filho de seis anos que diz que ele é o maior escritor do mundo. Não conseguir vê-lo crescer é a sua grande angústia, uma falta que tenta preencher com palavras. Serão a sua grande herança. Uma carta para António abrir quando tiver dez anos. Falar de tolerância. Aqui fala-se dessa e de outras histórias de um escritor que é comunista e que foi tudo o que quis. Disse recentemente numa entrevista que cada vez mais escreve novelas e contos porque tem medo que o tempo não o deixe terminar um romance. Pois é. Este livro, Escutando o Rumor da Vida seguido de Solidões em Brasa, era para ser um romance, mas depois olhe, saiu assim. Sinto que não vou viver muito. Um dos meus médicos diz-me, meio a brincar, que é um milagre eu estar vivo. Mas sabe, escrevi agora uma novela em três ou quatro dias. . . Chama-se A Rosa das Profundezas. Um miúdo anda a brincar e vê uma rosa no fundo de um charco. Arregaça o bibe e tira-a. É uma rosa esquisita, azulada. A minha ideia foi fazer uma coisa explosiva. Conseguir uma escrita muito nova, arriscada, na fronteira do delírio, mesmo, a alucinação. Essa perspectiva delirante sobre o mundo já vem no seu último livro. Já. Mas esta é uma novela mais pequena. Rápida. Deve ter umas 40 páginas. Foi um desafio?Foi. Escrevi loucamente. A escrita está bonita. Aquilo é louco mesmo, e ainda não sei muito bem o que vale. Uma amiga minha está a digitalizar o texto. Ela gostou imenso, mas não me chega uma opinião, porque ela é muito minha amiga pode-se deixar influenciar. E porque que é uma coisa muito louca?Porque é. Tem partes delirantes, de fuga às regras da lógica. O rapaz cresce e acaba por ir trabalhar para uma agência de viagens. Tem um contrato e Paris e vai para lá. Podemos dizer que é uma coisa da paz, mas a paz acaba por ser guerra. Entra naquilo a que o Mário Soares chama de "capitalismo selvagem neofascista" que está instalado na Alemanha. Os seus temas sempre foram o amor, o tempo, a morte. Há alguma mudança?Nesse aspecto não. Não consigo escrever qualquer coisa que seja completamente nova, mas consigo escrever de uma maneira nova e cada vez mais olho o amor como uma necessidade absoluta do mundo. Uso a palavra "amor" no sentido mais lato, não só sexual. A grande lição para o mundo futuro é uma grande dose de amor, de compreensão dos outros. Não sei se nota isso nos meus livros. Quando, por exemplo, se abstém de fazer juízos morais sobre o comportamento das suas personagens?Sim, a minha função não é julgar. É trabalhar sobre os sentimentos, sobre a palavra. É difícil escrever sobre erotismo?Sim, mas há escritores que têm conseguido coisas boas nesse aspecto. É preciso tacto, trabalho de linguagem. As palavras existem. São para ser usadas. Todos nós tivemos dificuldade na transição do fascismo para a liberdade, com o 25 de Abril. Eu também tive, porque escrevia com alguns eufemismos. Mas habituei-me. O Lobo Antunes também escreve dessa maneira, com bastante liberdade. . . [Pausa] Tanto eu como o meu irmão Miguel somos muito longevos. Ainda tenho capacidade erótica para ter relações sexuais. Continuo a ter desejo e a transportar isso para os meus livros, corresponde a uma certa vivência. Considera-se um provocador?Não. Não é o meu objectivo. A provocação por si não me interessa. Pode haver falsa provocação, o que é outra coisa. Os seus livros continuam a reflectir uma atenção sobre o mundo à volta. Estar em casa não lhe retira a capacidade de observar?De modo nenhum. leio jornais, vejo televisão, converso com as pessoas. essa escrita não vem por por obrigação, mas porque de facto já tenho mesmo ódio ao que se passa. Até mesmo aqui em Portugal está instalado um capitalismo selvagem neo-fascista, com o Passos Coelho. Perante a força da insurreição popular não sei como é que isto vai acabar. É imprevisível. Qual é o papel da literatura em momentos como este?Sou comunista e sou escritor e nunca obedeci a pedidos para fazer dos meus livros instrumentos de combate do PC, mas como a minha ideologia é essa ela projecta-se e essa projecção é útil neste momento porque as massas necessitam do apoio dos intelectuais e eu estou a dá-lo embora dentro da minha linha, que é estética e intimista. Uma vez chateei-me com um tipo do partido que queria que eu pusesse mais sangue, mais vermelho naquilo que escrevia. Eu disse-lhe que punha o vermelho que entendesse. Foi um dos dirigentes do sector intelectual do PC. Como é que faz a sua militância, hoje?Continuo a ser. Pediram-me para não abandonar. De vez em quando escrevo textos que me pedem. Porque se diz um heterodoxo?Sempre fui profundamente anti-estalinista e tive alguns problemas com o partido por causa disso. Estive nitidamente a favor da insurreição de Praga e escrevi contra a invasão dos tanques soviéticos, das barbaridades que se fizeram. Eu era a favor da Primavera, do chamado socialismo de rosto humano. Já está a ver que a minha ideia do comunismo é a de uma economia de Estado, mas com uma certa abertura à iniciativa privada, que não seja totalitária, que não seja opressora, para poder haver espontaneidade, beleza, variedade. A favor da liberdade de culto. Sou perfeitamente agnóstico, mas acho que se deve respeitar todos os cultos. Vítor Córdova, personagem de Solidões em Brasa, o segundo conto do seu mais recente livro, diz-se um agnóstico e há uma aluna que o interpela, afirmando que isso é o que ele diz, mas que é um espiritual, um místico. É o seu caso?Se sou místico é só numa comunhão profunda com a natureza. Isso é mais ser panteísta do que místico. O que lhe interessa é o homem soviético, como à sua personagem Vítor Córdova que distingue entre ser comunista e ser pró-soviético?É mais um ponto em comum. O homem soviético era cordial fraterno, tinha qualidades interessantíssimas. Na primeira viagem que fiz à União Soviética, fui um bocado iludido, porque os guias davam-me uma imagem da realidade que não era verdadeira. Cheguei deslumbrado com uma fábrica onde os delegados da comissão directiva eram representantes dos trabalhadores, dos funcionários e dos engenheiros e aquilo funcionava muito democraticamente. Tinha uma gestão operária. Mas quando comecei a conhecer alguns escritores eles abriram-me os olhos, dizendo que aparentemente aquilo era verdade, mas que de facto era tudo combinado. Aquilo era uma mistificação. Fiquei lixado. Depois comecei a descobrir que havia muito mais sequelas do estalinismo do que eu pensava, a história do Gulag. O pior foi que o Estaline destruiu completamente tudo o que era verdadeiramente socialista, a discussão interna no comité central, o debate de ideias. Acabou com tudo isso. Já não tinha nada do socialismo marxista. Os estilhaços chegaram ao PC português. Era inevitável. Nunca fui estalinista, mas eu vivi em Paris num período em que os pp camaradas do Partido Comunista Francês com quem e convivia que me disseram que o Gulag era verdade. Abrira-me os olhos. Como o Aragon [Louis Aragon, poeta e escritor surrealista, 1897-1982], de quem me tornei muito amigo. Esse nunca deixou de ser comunista, mas não era estalinista. Também foi amigo de Albert Camus. Que memória tem dele?Profundo afecto. Uma vez apresentou-me uma namorada brasileira. . . Ele tinha muitos problemas. A mulher adorava-o e ele também gostava imenso dela, mas era um homem de muitas mulheres, uma coisa complicadíssima. Ele tinha dificuldade em romper e às as vezes acumulava duas e três até que aquilo era uma confusão dos diabos. Ele custa-lhe fazer sofrer. Era um tipo giríssimo. Nessa época tentou o que nunca ninguém conseguiu: ser existencialista sendo comunista. Como olha para essa fase?É verdade, uma enorme contradição. mas era muito jovem. Era um disparate, mas tentei. E achava que era possível ter ideias marxistas ligadas à filosofia da existência. Era uma utopia. Em A Porta dos Limites (estreia, em 1952, e na Vida Perigosa (1955) sente-se isso. Já com A Noite Roxa (1956) passou-se uma coisa interessante. Com as minhas artes consegui passar a fronteira e ir visitar a então RDA. Estive lá cinco ou seis dias e não gostei. Era um país comunista autoritário, sentia-se a presença da polícia política. Aquilo desagradou-me e voltei um bocado baralhado para o chamado lado ocidental da Europa. Eu estou contra este ocidente capitalista mas não posso estar com aquele socialismo policial. Numa recente entrevista dizia que Álvaro Cunhal lhe perdoava uma série de rebeldias ideológicas dizendo-lhe: "tens uma alma comunista". O que é isso de ter uma alma comunista?Eu tinha-lhe proposto uma coisa com a qual ele não concordava, uma aliança pontual com o Mário Soares. Sou muito amigo do Mário Soares, desde o tempo da faculdade. Discordamos ideologicamente, mas em alturas muito difíceis, e sem que eu lhe pedisse, ele ajudou-me, arranjou-me lugar no Colégio Moderno, até a Pide me impedir, dizendo que eu tinha ideias subversivas. Há pouco tempo ele mandou-me uma carta do Algarve, despedindo-se "com um grande abraço deste seu camarada antifascista". Foi o que ele encontrou de comum. [Risos]. Bom, o que é certo é que eu achava que havia uma série de coisas que se podiam fazer em comum, O PC com o Soares. Em que circunstâncias?Já não me lembro muito bem, mas ele odiava o Mário Soares. Quando se falava em Mário Soares arrepiava-se todo. Uma vez disse-me: "ai Urbano, às vezes parece que tens teias de aranha na cabeça, mas o teu coração é comunista". E o que é isso?Um comunismo de solidariedade com os pobres e os infelizes que é profundamente ligado ao socialismo. Eu tornei-me comunista um pouco por influência de um primo meu que casou com a irmã do Álvaro Cunhal, o Fernando Medina. Ele deu-me a ler textos comunistas quando eu tinha 13 ou 14 anos. Fiquei tocado com a solidariedade para com os pobres e humilhados. Eu antes de ser comunista estava ligado a uma espécie de socialismo cristão, embora repudiando a confissão e tudo isso. Descobri muito cedo que era uma farsa. Teve essa educação católica?Sim, tive catequese e tudo. Fiz a primeira comunhão. E como é que descobriu "a farsa"?Quando me pediam para prometer não repetir determinadas acções e que tinha de rezar uns tantos Padre-Nossos e eu sabia perfeitamente que ia repetir. Por exemplo?Umas histórias que eu já tinha com umas priminhas, em que havia sexo, embora sem chegar ao fim. Tinha uns 13, 14 anos. Achava de uma desonestidade profunda dizer que não repetia. E mandei isso à fava. E alguma vez sentiu culpa?Nunca a sexualidade me pareceu um pecado. Aí estava muito mais de acordo com os gregos. Noutras coisas senti. Por exemplo, no relacionamento que tive com as mulheres. Algumas vezes acho que as magoei. Posso ter sido egoísta. Disso arrependo-me. Em Escutando o Rumor da Vida começa com uma das personagens, Francisco Medeiros, a lidar com o remorso em relação ao modo como lidou com algumas mulheres. Esse remorso é seu?Sim. As suas personagens masculinas têm cada vez mais de si. Escolhe as personagens para se expor?Acho que não faço essa escolha, mas não há dúvida de que há muito de mim no Francisco Medeiros e a figura de Lídia, a mulher, inspira-se muito na minha primeira mulher, na Maria Judite de Carvalho (escritora, 1921-1998). Uma mulher muito doce, que me adorava e era indulgente para com os meus desvios eróticos. Gostei muito dela. Foi o meu grande amor e a Ana Maria, a minha actual mulher, a grande paixão. Outra personagem com quem tenho muito que ver é o Michel/Olimpia (traficante redimido de Solidões em Brasa) no aspecto da aventura. Eu era quase inconsciente, não tinha medo de nada. Na clandestinidade em Portugal fiz coisas do arco da velha. Não tinha a consciência do perigo. Quando fala de medo fala de quê?Não sou medroso, mas não tenho a mesma coragem nem o mesmo impulso. Mas apesar da minha falta de condições físicas, já neste estado, dei um soco a um tipo que foi malcriado com a minha mulher por causa de um problema no trânsito. É perigoso ser seu amigo? Podemo-nos ver de repente num livro, expostos?É, isso é. Eu não resisto. É irresistível. Já alguma vez teve problemas com isso?Não. Parece que está sempre a despedir-se da vida, mas depois sempre a regressar a ela. No livro anterior, Assim se esvai a Vida, há quase uma despedida. Neste, uma espécie de reconciliação. É verdade. Há alturas em que tenho vontade de morrer, mas depois luto. Contra a angústia. Acabo por me aguentar. A escrita ajuda?Ajuda muito. Pertence à comissão de leitura da Fundação Gulbenkian. Continua a ler autores recentes. . . Sim, muito atento e acho que temos grandes escritores actualmente. Por exemplo?Gosto muito da Dulce Maria Cardoso, da Hélia Correia, que já é de outra geração mas é uma escritora extraordinária. Gosto muito do João Tordo, O Bom Inverno é um livro excelente. O José Luís Peixoto, de quem sou profundamente amigo. O Gonçalo M. Tavares não me entusiasma muito. É uma mistura de Brecht e de Kafka, dos alemães que ele conhece muito bem. O único livro dele que em entusiasmou foi o Jerusalém. Como é que gere o tempo que tem?De manhã faço tratamentos, depois um bocadinho durante a tarde trabalho, escrevo. À noite não escrevo. Ainda estou a recuperar da loucura que foi escrever esta novela . . . Escrevia de manhã à tarde e à noite. É avô, pai de um rapaz de seis anos. Qual a diferença entre ser pai aos 82 anos e ser avô antes disso. Eu tive muitas dúvidas em ser pai tão tarde. Mas era importante para a minha mulher. Estive preocupado até o António nascer, angustiado com a hipótese de um defeito físico. Ele diz que o pai é o melhor escritor do mundo [risos]. Mas a relação nem sempre a relação é boa, ele consegue ser muito carinho, confidente, outras vezes é provocante. Tem dito que uma das coisas que mais o angustia é temer não poder acompanhar o crescimento do seu filho. É verdade que escreveu uma carta para o seu filho ler quando tiver dez anos?Sim. Ele já sabe umas coisas do que lhe quero dizer. Quero que ele compreenda o pai que teve. A importância da tolerância, da fraternidade, da generosidade. Ninguém é totalmente generoso. Tenho consciência disso. Mas sou dos menos egoístas que conheço. Tem uma filha bastante mais velha, a escritora Isabel Fraga. Sim. Dou-me muito bem com ela. Tivemos uma relação muito carinhosa. Levei-a a Paris no Maio de 68, ainda chegámos no fim. Ela tinha 14 anos. Eu a Maria Judite e ela. O Vítor Córdova procura o sentido da vida. Já encontrou o seu?Não. Encontrei aquilo que eu gostava que o meu filho compreendesse de mim, que é um misto de tolerância, de compreensão e respeito pelos outros. Sem ódio. Com algumas excepções. Posso sentir ódio contra aqueles que vivem de explorar os outros. . . [pausa] mas eu tenho sido mais vítima de ódio. Ainda não tive o prémio Camões porque soube recentemente que há membros do júri que dizem: "esse comunista não terá o Prémio Camões. Sente mágoa por não ter o prémio?Tenho revolta. Mereço amplamente o Prémio Camões. Não é pelas honrarias, que já tive muitas. Até em França já me deram a Legião de Honra, mas isto é asqueroso. Está a escrever alguma coisa?Agora escrevi esta novela e nã sei o que farei. Tenho para aqui uma série de contos para serem publicados num livro que está previsto. Há um conto que se chama Os Merdosos. E quem são os merdosos?São aqueles tipos que andam com os cães, que andam na droga, às vezes na prostituição. São os merdosos. Há uns tipos que resolvem fazer uma experiência, ir apanhá-los. Propõem-lhes uma grande festa e só há dois ou três que não querem ir. . . Alguns saem desse meio, outros regressam. Como é que se põe a par dessa realidade?Acompanho. Estou informado. Tenho amigos e família nessa geração. É um optimista?Sim, mas é mais uma vontade que de as coisas corram bem. O que é que gostava de ter sido e não foi?Eu fui o que gostava de ter sido. Escritor e professor. É vaidoso?Não. . . tinha uma certa vaidade. Era considerado um homem bonito na juventude, que foi até muito tarde. As mulheres estabeleciam comigo uma relação de ternura e essa ternura acabava por se transformar em sexo. Muitas vezes estive muito apaixonado, outras vezes eram amizades eróticas, com muita ternura e com desejo. Era um D. Juan?Não. O D. Juan era o conquistador. Eu era o conquistado. Havia uma aproximação terna que acabava por gerar uma relação erótica. Umas vezes estive profundamente apaixonado. Um mulherengo pode ser um tipo ternoFoi um mulherengo?[risos] Acho que não, mas tive muitas mulheres. Às vezes fico comovido quando encontro uma dessas pessoas de quem gostei.
REFERÊNCIAS:
A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado. (...)

A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado.
TEXTO: Mesmo com quatros músicos em palco, mesmo com um deles a dar tudo, e bem, no bandoneón, é difícil não centrar o olhar em François Chaignaud. Entra em cena muito suavemente, mas também muito dramaticamente, com um figurino medieval feito à medida, uma face impecavelmente maquilhada, um corpo que tanto poderia ser de homem como de mulher. O bailarino e coreógrafo francês, adepto do transformismo e que tantas vezes põe em confronto, no seu próprio corpo, as suas pesquisas enquanto historiador, é mesmo assim: nunca se sabe como vai aparecer diante de nós, mas é sempre coisa para parar o trânsito. Em 2016, no Rivoli e com o solo Dumy Moyi, vimo-lo de rabo à mostra a equilibrar pássaros na cabeça, entre outras coisas, enquanto cantava árias ucranianas do século XIX e canções medievais sefarditas, inspirado pelas cerimónias theyyam do Sul da Índia. Esta sexta e sábado no Salão Árabe do Palácio da Bolsa, no âmbito da programação do Teatro Municipal do Porto, vamos vê-lo a encarnar três personagens da mitologia espanhola em Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet criada juntamente com o músico e artista transdisciplinar Nino Laisné. Este espectáculo resultou de um processo de investigação e criação de quatro anos, focado nas tradições orais, musicais e coreográficas espanholas desde o século XVI. Tudo começou com uma residência em Huesca, onde François Chaignaud e Daniel Zapico, um dos músicos que viria a integrar Romances inciertos, apresentaram um performance. A partir daí, Chaignaud e Laisné viajaram por aldeias de várias regiões de Espanha “à procura de melodias e tradições seculares”. “Também trabalhámos com muitos maestros de flamenco, fandango, jota [dança folclórica espanhola]. Todos estes materiais levaram-nos a fazer Romances inciertos”, contextualiza Nino Laisné. “Esta peça nasceu também da vontade em criar um corpo completo, em que as canções e as danças estão muito próximas. Um corpo que pudesse viajar no tempo e na geografia. ”A solo ou acompanhado – muitas vezes com a coreógrafa Cecilia Bengolea, com quem tem a companhia Vlovajob Pru –, François Chaignaud sempre procurou não só fazer convergir referências e repertórios históricos heterogéneos, dos tempos medievais às danças de rua, como ensaiar diálogos íntimos entre o movimento e o canto – e em Romances inciertos subiu definitivamente a parada. Podemos dizer que está mais cantor do que nunca, e também é seguro dizer que isso lhe sai da pele. “Há uma exigência neste espectáculo que nós não queremos esconder”, afirma o coreógrafo. “Na maior parte do tempo, canto num contexto ‘hostil’, em que o corpo está inquieto e desequilibrado. ”Chaignaud é uma figura saturnina, uma presença magnética e exuberante, mas ao mesmo tempo muito real, muito próxima de nós: há uma vulnerabilidade naquele corpo em autoconstrução, entre a disciplina e a libertação, entre o equilíbrio e o desequilíbrio. Ele gosta de complicar, de implicar os figurinos na própria coreografia, como se fossem um segundo corpo. “Este espectáculo é um belíssimo recreio para pesquisar sobre canto e dança, simultaneamente. Adoro as dificuldades que nele existem, as oportunidades formais e, claro, o poder ficcional. ”Romances inciertos, un autre Orlando desenrola-se em três actos, cada um correspondente a uma personagem. A primeira é Donzela Guerreira, uma jovem mulher que corta os cabelos, disfarça o peito e veste-se com roupas de homem para poder lutar na guerra. Depois é a vez do arcanjo São Miguel, “cujas representações pictóricas apresentam sempre uma certa ambiguidade”, descreve Nino Laisné – nos poemas de García Lorca, esta figura é imbuída de “erotismo e androginia”. Por fim, vemos Chaignaud enquanto Tarara, uma cigana andaluza de coração partido. “Ela aparece na música sefardita antes de se ter tornado numa figura-chave do flamenco. Alguns versos fazem referência à sua provável intersexualidade. ”Há uma androginia e uma desconstrução das normas de género em comum entre estas três personagens, que de alguma forma desestabilizam o lugar do masculino e do feminino, pondo em causa a concepção de género enquanto marcador cultural e social estático. Numa altura em que se começa a falar mais sistematicamente sobre estes assuntos, Nino Laisné considera que olhar para estas figuras “das culturas tradicionais” é uma maneira de nos “lembrar” que as questões de género já andam por cá há séculos. François Chaignaud concorda. “Sinto que a perspectiva histórica do espectáculo permite reenquadrar estas questões de uma forma muito mais ampla. A fluidez de género não é uma coisa recente”, observa, referindo que procura reflectir nos seus trabalhos o seu próprio “processo de identidade”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para o coreógrafo, “é muito inspirador” conectar-se com “estas manas dos séculos passados”. “A nível artístico, elas são como fantasmas que visitam os nossos corpos; politicamente, legitimam as negociações de género enquanto processo secular. Impressiona-me o facto de estas figuras serem movidas pela sensualidade e pela intensidade dos seus desejos, que as colocam numa situação de vida precária, mas que ainda assim mostram o caminho para uma acção e agência inspiradoras. ” Outra dessas “manas” é Orlando, a personagem marcante de Virginia Woolf, que apesar de não estar na peça, é evocada no título por causa de algumas “semelhanças” entre o romance de Woolf e a forma como o espectáculo está construído. “Os sonos de Orlando, durante os quais muda de identidade de género, poderiam ser aqui os momentos em que eu saio do palco por alguns minutos, que são como décadas e que me permitem reaparecer com uma identidade diferente”, aponta Chaignaud. Apesar de as questões de género estarem habitualmente presentes nas suas performances, o coreógrafo e bailarino francês diz estar muito mais interessado “na prática de danças e de músicas específicas”. Neste caso, foi beber ao ballet, ao flamenco e ao jota, às danças de corte e às danças com andas. Outro eixo central da coreografia é “os pés, os sapatos, o chão”. Dos saltos altos às andas, aquilo que usa nos pés “determina muitas das (im)possibilidades” do movimento. E isso tem também a ver com as personagens. “Ao colocarem-me constantemente num equilíbrio impossível, estes objectos espelham a procura das personagens, o sentido de risco delas. ”Mesmo que não consigamos tirar os olhos de François Chaignaud – e ele parece que nasceu para isto, para encarnar estas personagens – a verdade é que nem esta Donzela Guerreira, nem este arcanjo São Miguel nem esta Tarara existiriam sem os músicos em palco. “Isto não é um solo com quatro músicos. Os nossos cinco corpos convergem para fazer com que cada figura apareça. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra mulher homem social género corpo donzela
Pessoas (e não só) que vai valer a pena seguir em 2019
Agora que estamos quase a deixar 2018, olhamos para sete nomes (e uma medida) que vai valer a pena seguir em 2019. De António Costa, que terá um dos anos mais desafiantes da sua carreira política com três eleições no horizonte e muitos problemas por resolver, a João Félix, o novo craque do futebol do Benfica que o FC Porto enjeitou. (...)

Pessoas (e não só) que vai valer a pena seguir em 2019
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.099
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Agora que estamos quase a deixar 2018, olhamos para sete nomes (e uma medida) que vai valer a pena seguir em 2019. De António Costa, que terá um dos anos mais desafiantes da sua carreira política com três eleições no horizonte e muitos problemas por resolver, a João Félix, o novo craque do futebol do Benfica que o FC Porto enjeitou.
TEXTO: Com um nome demasiado grande até para padrões alemães, a nova líder da CDU (União Democrata-Cristã, partido da chanceler Angela Merkel), Annegret Kramp-Karrenbauer, é mais conhecida como “AKK”. Não tem nada contra as iniciais; a ex-chefe de governo do estado federado do Sarre que a chanceler decidiu fazer sua sucessora — para já, na CDU; Merkel espera que o mesmo aconteça no governo quando ela sair de cena, em 2021 — só não quer que lhe continuem a chamar “mini-Merkel”. “Tenho 56 anos, criei, com o meu marido, três filhos, há 18 anos que tenho responsabilidades governativas. Não tenho nada de ‘mini’”, diz a dirigente, que nunca esconde o sotaque regional. Descrita como mais decidida e dinâmica do que Merkel, não hesitou quando esta a escolheu para o cargo de secretária-geral do partido, em Fevereiro, arriscando deixar o seu pequeno estado (o mais pequeno dos 16 estados federados alemães) a caminho de Berlim. Católica, nascida numa grande família e formada em Ciência Política, é mais emotiva do que Merkel, gosta de AC/DC, mascara-se no Carnaval e não foge a uma polémica, apesar de ser elogiada por colegas e rivais pelo seu espírito conciliatório. “Não tem um ego desmesurado, mas faz avançar os seus peões com tranquilidade. Como Merkel, que toda a gente subestimou”, lembra a politóloga francesa Isabelle Maras, sublinhando “as suas capacidades de análise, o seu sentido político e habilidade”. Militante na CDU desde os 18 anos, aos 38 foi a primeira mulher ministra do Interior na história dos estados federados. Entretanto, teve a pasta da Educação e a do Trabalho, antes de ser eleita ministra presidente, em 2011. Em 2012, governou em coligação com os Verdes e com o FDP (Partido Liberal-Democrata), mas decidiu convocar eleições antecipadas logo depois e ganhou. Nas eleições de 2017, as sondagens não lhe eram favoráveis, mas acabou por ganhar novamente. Entretanto, todos sabem quem é. Mas a política que não tem “nada de ‘mini’” sabe que herda um legado gigante e que tem mesmo de convencer muita gente do seu próprio valor e capacidades. Também sabe que agora é que vai começar a mostrar-se — aos alemães e aos europeus. Sofia LorenaAs mais recentes sondagens dão-lhe uma margem de conforto político, mas falta um ano e… tudo pode mudar. Não mudar nada — ou manter as peças do xadrez actuais mais ou menos com o mesmo alinhamento — será um dos grandes desafios de António Costa, a quem não compensa a existência de grandes agitações em 2019. Mas o mundo anda a correr rápido, e em Portugal os indicadores mostram um aumento da insatisfação em muitas classes profissionais, que pode deitar por terra o sonho não verbalizado de conseguir a segunda maioria absoluta para o PS na história. O ano de 2019 é uma espécie de prova dos nove para o primeiro-ministro e por isso é a personagem política a ter em atenção no ano que está prestes a começar. Os desafios eleitorais são três: eleições europeias em Maio, regionais da Madeira em Setembro e duas semanas depois, já em Outubro, as legislativas. Desde o congresso do partido em Maio que a estratégia de António Costa para o resto do mandato foi a de posicionar o partido como charneira. Puxou para si o discurso das contas certas, do crescimento económico, da redução do desemprego, do crescimento económico, mas sobretudo da credibilidade e da estabilidade. Tudo argumentos que usa para se distanciar da direita e dos seus parceiros de esquerda, com quem diz que quer continuar o caminho, não se percebendo ainda o que quer fazer ou com quem o quer fazer. Tem negado o bloco central, mas tem ao mesmo tempo quebrado as intenções do BE de vir a fazer parte de um Governo. Enquanto PCP e BE acenam com as suas vitórias nos orçamentos do Estado e apontam o que falta fazer, o PS responde a esse discurso com a bandeira do equilíbrio e fomentando o medo dos efeitos de uma nova crise. Valerão estes argumentos em 2019? António Costa tem visto sinais na sociedade de uma crescente insatisfação. As classes profissionais do Estado exigem melhores condições de trabalho e as greves, ameaças de greve e protestos marcados não param de aumentar. A gestão do tempo que falta para as eleições terá de ser feita com pinças nesse limbo entre encostar mais à esquerda ou mais à direita. Com os orçamentos aprovados, o trabalho será sobretudo político, onde Costa se move melhor. Ele e Marcelo Rebelo de Sousa, que tem dado sinais de não lhe agradar a aproximação dos socialistas a uma maioria absoluta. O ano de 2019 será intenso na política portuguesa e terá particularidades que ainda não foram testadas, com novos partidos a poderem ter um papel perturbador no estável espectro partidário logo nas europeias, que podem apontar caminho para as legislativas. Liliana ValenteNinguém poderia ter vez imaginado que He Jiankui seria um dos nomes a destacar na ciência em 2018. O cientista chinês anunciou em Novembro que tinha ajudado a fazer nascer os primeiros bebés geneticamente editados e, da noite para o dia, um perfeito desconhecido tornou-se mundialmente famoso. A ciência tem esse encanto irresistível da imprevisibilidade. De milhões de experiências que são levadas a cabo nos laboratórios de todo o mundo, nunca se sabe quais vão correr bem e quais serão notícia. A única coisa que podemos dar como certa é que em 2019 todos os caminhos da ciência vão (de uma maneira ou outra) dar a um único personagem: o ser humano. Dizem os cientistas que a edição genética com a ferramenta CRISPR/Cas9 — que permite um jogo de corta e cola no ADN — é algo relativamente fácil de fazer e não muito dispendioso, o que a torna especialmente atractiva. No entanto, as consequências (ainda) são imprevisíveis. Já foi experimentada em vários modelos animais e, em 2015, foi noticiada a primeira experiência com embriões humanos inviáveis que depois foram destruídos. Este ano terá acontecido o que todos sabiam ser inevitável. O cientista chinês He Jiankui preparou cuidadosamente o anúncio do nascimento dos dois primeiros bebés geneticamente editados. Mais tarde, acrescentou que existe um terceiro bebé editado que ainda não nasceu. O que temos é pouco mais do que a palavra do cientista e muitas críticas e controvérsia à volta de uma experiência que a comunidade internacional condenou e considerou “irresponsável”. Os bebés, a existirem, terão sido sujeitos a modificações que lhes darão a vantagem de serem resistentes à infecção por VIH. Mas, entre outros riscos, existe o perigo de carregarem o chamado “efeito mosaico” (com algumas células editadas e outras não) e de terem sofrido mutações em genes que não eram o alvo (off-target). É fácil concluir que He Jiankui será um cientista a seguir atentamente em 2019, se voltar a trabalhar depois do escândalo e da vergonha internacional a que expôs a China. Mas mais do que os pormenores (que ainda desconhecemos) deste caso em particular, sobra a certeza de que estamos cada vez mais perto de uma realidade com o homem geneticamente editado. Há ensaios clínicos na Europa, EUA e China e a aposta das empresas é na tentativa de correcção de erros genéticos associados a doenças que não têm qualquer outro tipo de resposta. Além do potencial para a saúde humana, a tecnologia tem ainda outras aplicações muito vantajosas para a alimentação e agricultura, para manipular (melhorar) culturas. Andrea Cunha FreitasMais do que procurar diferenças, estar atento aos vínculos. Eis de forma sucinta o segredo da música de Pedro Simões, mais conhecido por Pedro Mafama. Em vez de apontar o dedo às dissociações musicais ou socioculturais entre músicas urbanas globalizadas ou idiomas localizados com história, trata-se de reflectir com naturalidade as convergências, criando-se a partir daí uma nova linguagem que vai sendo construída com generosidade. No final de 2017, despertou curiosidade com o lançamento do EP Má fama. Já este ano seguiu-se outro EP de quatro temas, intitulado Tanto sal, e há duas semanas ficou a conhecer-se a canção Arder contigo. Tudo sintomas fortes que o apontam como uma das promessas do próximo ano no campo da música que vai sendo feita em Portugal. É verdade que terá beneficiado do interesse global em torno da espanhola Rosalía ou localmente do acontecimento Conan Osíris, mas aquilo que tem vindo a propor possui solidez e não nasceu do acaso. Antes já havia uma conexão ao hip-hop com o nome Pedro Simmons e uma ligação à editora e estrutura Enchufada que viu nascer os Buraka Som Sistema. E acima de tudo, falando com ele, ou vendo-o em palco, percebe-se com facilidade que faz parte de uma geração que se foi pacificando com o passado da música portuguesa, personificado pelo fado, ao mesmo tempo que incorporou a narrativa de que Portugal, e em particular, Lisboa, é um lugar onde se sente uma presença musical vibrante das novas gerações afrodescendentes. E é assim que, na sua música, e na forma como canta, se pressentem traços de fado, de melodias orientalizadas, mas também de linguagens como o hip-hop, e derivações como o trap, ou de kuduro, kizomba, afro-house, tarraxo e demais nomenclaturas que remetem para músicas físicas e erotizantes, que por vezes apenas ouvidos experimentados conseguem destrinçar. Em simultâneo, na sua postura, tanto entrevemos o intérprete introspectivo, virado para dentro, como o performer arrebatado, que é capaz de fazer acontecer festa em colectivo. No fim de contas, é como se Pedro Mafama tivesse activado, através da sua música, uma bricolagem sociocultural que há pouco mais de dez anos era mais desejo do que realidade, fazendo-a sua, de uma maneira dinâmica, plural, festiva e rica. Vítor BelancianoTalvez por ironia, o sobrenome do juiz que tem o futuro do ex-primeiro-ministro José Sócrates nas mãos coincide com a cor que o Partido Socialista escolheu para o identificar. Ivo Rosa, juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), é o responsável pela instrução da Operação Marquês, que certamente marcará o próximo ano. Esta fase facultativa pretende avaliar se há indícios suficientes para levar os 28 acusados deste mediático processo a julgamento. E se o magistrado concluir que é mais provável os suspeitos serem absolvidos, encerra o caso. Apesar disso, Ivo Rosa nunca terá a palavra final sobre este processo. Se o enviar como está para julgamento, colocará nas mãos de outros colegas a tarefa de considerar ou não provadas as acusações do Ministério Público. Se arquivar o caso ou diminuir as acusações, a decisão será recorrível e a última palavra caberá ao Tribunal da Relação de Lisboa. Mesmo assim, os holofotes estão apontados a Ivo Rosa. O juiz, seleccionado por sorteio electrónico, agradou às defesas, nomeadamente à de Sócrates, que nem escondeu o entusiasmo. E não é de admirar. O madeirense de 52 anos é persona non grata de muitos procuradores, conhecido por não autorizar muitos dos pedidos dos titulares da acção penal, como aconteceu inúmeras vezes na investigação às rendas pagas pelo Estado à EDP. Também não é a primeira vez que o juiz diminuiu de forma significativa os crimes que o Ministério Público imputa aos arguidos ou arquiva simplesmente uma investigação complexa. Exemplo disso é o recente caso de um marroquino acusado de oito crimes ligados ao terrorismo por pertencer e recrutar para o Estado Islâmico em Portugal. As graves acusações foram resumidas por Ivo Rosa a falsificação de documento e contrafacção, o que lhe valeu uma reprimenda do Tribunal de Relação, que anulou a sua decisão. Apesar de ser conhecido pela rapidez, Ivo Rosa, que está em exclusividade com este megaprocesso, só marcou um máximo de quatro sessões por mês. O arranque da instrução está previsto para o final de Janeiro e já há diligências marcadas até Maio. Mas até lá a Operação Marquês ainda promete fazer correr muita tinta. Mariana OliveiraÉ uma medida que promete revolucionar a mobilidade nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto em 2019: um passe vai permitir circular entre concelhos destas áreas (18 em Lisboa, 17 no Porto), sem ser preciso pagar mais. Os créditos desta “medida revolucionária” têm sido atribuídos ao autarca de Lisboa, Fernando Medina, que é também presidente da Área Metropolitana de Lisboa (AML) mas a criação de um passe de transportes único intermodal para a Grande Lisboa é um pedido de longa data da Comissão de Utentes dos Transportes de Lisboa. E a AML começou a estudá-la um ano antes de Medina a ter anunciado. A criação deste passe único acabou por ser acordada em Março num encontro que juntou as duas áreas metropolitanas. Quando a medida foi anunciada por Medina, houve protestos de alguns autarcas que acusaram o Governo de, mais uma vez, investir nas grandes cidades esquecendo o resto do país. O ministro do Ambiente, Matos Fernandes, esclareceu então que a medida seria para aplicar em todo o território. Mas não se sabe ainda como se concretizará. A previsão é que os passes estejam disponíveis em Abril, o que não deve acontecer em todo o país, ao mesmo tempo. Em Lisboa, o passe para circular dentro do concelho custará 30 euros. Para viajar por toda a área metropolitana, custará 40 euros. As famílias pagarão no máximo o valor de dois passes, ou seja, 80 euros. As crianças até aos 12 anos não pagam. O Governo vai reservar 83 milhões de euros para a redução do preço dos passes em todo o país. No entanto, está ainda por saber como será feita a distribuição pelas áreas metropolitanas e pelas comunidades intermunicipais. Para Lisboa, esse valor deverá rondar os 50 milhões de euros. Mas já se sabe que este valor será insuficiente para compensar a redução nas tarifas, pelo que os municípios terão de alocar parte dos seus orçamentos para financiar a criação do passe único. Além do cepticismo dos autarcas, também os operadores privados de transporte olham para a medida com cautela. Na Grande Lisboa, o sistema de bilhética está a ser redefinido. Haverá um novo mapa da rede, tendo em conta os movimentos pendulares entre os concelhos, e integrando também as ligações a meios de transporte, como o comboio, metro ou barco. É expectável um aumento da procura, obrigando a um reforço da oferta. Os utilizadores vão reivindicar um melhor serviço, pontual e com mais frequência. Será o suficiente para tornar mais atractivos os transportes públicos? Cristiana Faria MoreiraÉ inevitável que a pessoa a seguir em 2019, na Economia, seja o responsável político que serve de barómetro às ambições eleitoralistas em Portugal, mas também às crises europeias que espreitam a cada mudança de governo nos Estados-membros da zona euro. O próximo ano promete ser inesquecível na vida de Mário Centeno. O mandato do actual ministro das Finanças chega ao fim no próximo ano. E a pré-campanha eleitoral que marcou a negociação do Orçamento do Estado para 2019 deverá estender-se desde o primeiro dia de Janeiro até ao dia das eleições, marcadas para 6 de Outubro. Todos os sinais que Centeno for emitindo da Praça do Comércio marcarão o ritmo no equilíbrio entre o cumprimento de metas definidas com Bruxelas e a satisfação de necessidades do Estado português ou dos direitos dos contribuintes. Esses sinais também marcarão o ritmo de protestos, greves, reclamações de funcionários públicos, pensionistas, empresas e particulares, que atingiram um pico no final de 2018, mas que se prevê que voltem a acelerar com a aproximação das eleições. Mário Centeno deverá ainda enfrentar tensões internas no Governo do PS, a que pertence como independente e que procura não só renovar o seu ciclo de poder, mas fazê-lo de forma solitária, com uma maioria absoluta. Para isso, serão intensas as movimentações no sentido de anunciar mais medidas eleitoralistas ou simplesmente de justiça social que chocam com os objectivos de equilíbrio de contas públicas traçado desde o primeiro dia por Centeno. Um processo que poderá culminar com a sua recondução na pasta das Finanças, um desejo já assumido internamente pelo primeiro-ministro mas que terá de ser validado não só pelos portugueses, mas sobretudo pelo próprio. Na Europa, onde o ministro português preside ao Eurogrupo, a tarefa não será mais simples. O final de 2019 poderá ser muito diferente do seu arranque, entre um “Brexit” de consequências imprevisíveis em termos económicos para toda a região e as fragmentações que se prevêem na sequência dos processos de política interna na Alemanha, França e Itália, sobretudo. Em paralelo, a reforma do euro continua sem ultrapassar os obstáculos de sempre (sem consensos sobre orçamento único e sistema europeu de garantia de depósitos) e, quando o ano chegar ao fim, Centeno estará já muito perto do fim do seu mandato (meados de 2020, se ficar como ministro das Finanças), enquanto espera pela reforma deste organismo, que criará uma presidência permanente, cargo que poderá ser seu, independentemente das funções que desempenhe em Portugal. Pedro Ferreira EstevesO talento nem sempre é óbvio para todos. E em 2015 ninguém no departamento de formação do FC Porto se esforçou muito para manter um rapaz de 16 anos chamado João Félix Sequeira, habilidoso, mas baixinho e fininho. Jogava pouco e o seu sonho de futebol não era esse. Por isso saiu e rumou a sul, em direcção ao Seixal. “É pegar num pau e dar na cabeça a quem o deixou sair”, disse há uns meses na SIC Notícias Rodolfo Reis, antigo capitão dos “dragões”. O que o FC Porto deixou passar, o Benfica aproveitou e, três anos depois, João Félix é tido como uma das grandes esperanças do futebol português, um talento que fomos vendo a espaços nos últimos meses de 2018 e que iremos ver com maior frequência em 2019. Se há mérito em Rui Vitória nestes anos ao comando do Benfica é o de olhar com muita atenção para o que sai do Seixal. Sejam soluções de emergência que se tornam definitivas, ou promoções planeadas, a verdade é que o Benfica tem colhido os frutos desportivos e financeiros da sua formação e João Félix pode ser mais um desses casos, a juntar-se a nomes como Renato Sanches ou Bernardo Silva. E em boa hora Luís Filipe Vieira lhe renovou contrato até 2022 e lhe meteu uma cláusula de rescisão de 120 milhões de euros. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Por enquanto, João Félix tem tido uma utilização intermitente, sobretudo no lado esquerdo do ataque, com 453 minutos em 13 jogos, cinco deles como titular. Depois de ser um fenómeno de culto para quem acompanhava a formação do Benfica, João Félix apresentou-se verdadeiramente marcando o golo que daria o empate ao Benfica no seu primeiro derby frente ao Sporting, na Luz. Para além de ter marcado no primeiro confronto lisboeta da época, João Félix também marcou no primeiro jogo em que foi titular no campeonato (ao Aves) e tornou-se no mais jovem marcador do Benfica na Taça da Liga (ao Paços de Ferreira). João Félix já não é o miúdo fininho que saiu da formação do FC Porto. Cresceu e ganhou um corpo mais preparado para servir uma técnica superlativa, que se percebe a cada finta, a cada passe e a cada remate. E é alguém que gosta de arriscar, de ser imprevisível, fazer no campo coisas que ninguém espera. Essa também é uma marca dos sobredotados. Marco Vaza
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PCP BE
Sussurraram-lhe “goza a vida” e ele aceitou
Rui Daniel dava aulas de piano. Agora dá voltas ao mundo. Encontramo-lo a percorrer o continente africano rumo ao Bangladesh — com uma causa. (...)

Sussurraram-lhe “goza a vida” e ele aceitou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-09-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Rui Daniel dava aulas de piano. Agora dá voltas ao mundo. Encontramo-lo a percorrer o continente africano rumo ao Bangladesh — com uma causa.
TEXTO: "A Internet aqui é espectacular. África é sempre uma surpresa. " Estamos online, via Messenger, com Rui Daniel. Nós cá, ele lá, em África, no Zimbabué (de partida para a Zâmbia), numa pousada nas cataratas de Victória, camisola da selecção portuguesa vestida, tez queimada de uma viagem que o deixa de sorriso rasgado e com vontade de pegar nos países todos e enfiá-los numa mochila para depois, como numa tômbola gigante, meter lá a mão e ir tirando sofregamente as histórias uma a uma — ou todas ao mesmo tempo. Rui tem 40 anos. Nasceu no Luxemburgo, onde viveu 15 anos, mas diz que é de Nelas, Viseu. “Dou aulas de piano”, apresenta-se. E viaja — e até já tocou piano nos sítios mais improváveis, mas isso é outra história. Já visitou mais — muito mais — de cem países e neste preciso momento está a atravessar todo o continente africano rumo ao Cairo (“vou atravessar a Palestina e tentar entrar na Síria”) e com os olhos postos no Bangladesh, onde tem um assunto pendente. O grande objectivo será chegar ao seu país preferido (“apaixonei-me pelas pessoas, senti que eram mais puras; emocionei-me com as crianças, que faziam filas para tirar fotografias comigo”) e pelo caminho angariar fundos para as crianças da Fundação Maria Cristina, ex-comissária de bordo, filantropa, a primeira mulher portuguesa a escalar o Monte Evereste e tripla titular do Guinness World Record graças a impressionantes registos como ultra-maratonista. A Fundação trabalha na educação e emancipação de crianças carentes desde 2005. Além de apoio às crianças dos bairros de lata do Bangladesh através da construção de escolas, tem vindo a conseguir introduzir com sucesso a gestão de resíduos, construção de estradas, abastecimento de água potável e saúde para os bairros de lata de Daca. “Há dois anos, ofereceram-me o livro Uma Mulher no Topo do Mundo. Contactei-a e dei-lhe os parabéns”, conta Rui, que entretanto lançou uma página JustGiving de angariação de fundos e que pretende cortar essa meta algures entre Abril e Maio de 2019. Esse é o pretexto de alguém que se foi deixando levar. “Fui-me apaixonando pelas viagens”, diz. “Fui-me apaixonando pelos países. Vai mudando a nossa mentalidade. Vejo muita gente que não tem nada e é feliz. Em casa, no Ocidente, estamos habituados a ter tudo. Temos uma casa, um, às vezes dois carros. Não sou rico nem milionário, mas penso nisso. Não acredito em vidas que chegam depois. Tenho esta”, resume este pianista em pausa sabática, um viajante no activo que usa países e cidades como vírgulas. “As pessoas, casa-trabalho-casa, chateiam-se e matam-se por tudo e por nada. Olho para o lado e vejo pessoas que gostavam de ter feito e não fizeram. ” No fundo, Rui ouve quem lhe sussurra “goza a vida”. Iniciou esta odisseia em Setembro, em Portugal. Partiu à boleia até chegar a Marraquexe e daí até Serra Leoa e Burkina Faso. Atravessou toda a África Ocidental até chegar ao Níger e voltou a Portugal para passar o Natal, cumprindo a promessa que fizera à mãe. “Infelizmente apanhei malária e estive internado durante duas semanas”, conta. Retomou a partir do Togo, em Fevereiro. “Este continente é bem mais difícil do que eu imaginava”, prossegue Rui, que carrega uma pequena tenda e que sempre que pode acampa com tribos nas aldeias. “Nas capitais apenas paro para tratar dos vistos. ” Já foi agredido na Libéria (“senti que não era bem-vindo”), foi assaltado no Burkina Faso (“já me borrei algumas vezes”) e no Mali teve que dormir com locais na berma da estrada por ser demasiado perigoso passar durante a noite numa zona de rebeldes. Bateu à porta de muitas igrejas e apelou a missionários. Cruzou a Nigéria toda a dormir em estações. Apanhou boleia de um cargueiro que o levou até aos Camarões (“disseram-me que não havia barcos de passageiros; durante 24 horas comi um ovo cozido, enquanto os tripulantes de binóculos procuravam piratas”). Tens um plano? “Sim”. Segue-lo? “Nem sempre”, brinca Rui, um “palhaço” (“gosto de me rir”). Um-dois-três-diga-lá-outra-vez: Guiné Bissau, Conacri, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Mali, Burquina Faso, Níger, Togo, Benim, Nigéria, Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, Congo. República Democrática do Congo, Angola, Namíbia, Botswana, África do Sul, Suazilândia, Lesoto, Moçambique, Zimbabué. . . Não é fácil acompanhá-lo. Nem na conversa, nem no mapa, nem na conta de Instagram que alimenta com paisagens avassaladoras, boleias improváveis (“táxis de três à frente e seis atrás”), transportes à pinha, lugares imperdíveis e refeições mais ou menos comestíveis. Já picou a Europa toda (só não esteve na Bielorússia) e percorreu parte de África em duas etapas de bicicleta (Senegal, Gâmbia e Guiné Bissau de uma vez, Gana, Togo e Benin da outra; no final de ambos os percursos ofereceu as bicicletas a crianças). Descobriu o Irão com as próprias mãos (“diziam que era super-perigoso; é, vais lá e não queres sair”) e foi então que decidiu que “a televisão é uma treta”. “Não tenho visto notícias nenhumas. Não sei o que se passa em Portugal. Não sei o que se passa no mundo”, repete. Ganhou “coragem” e foi ao Iraque. Foi convidado por polícias no Paquistão para beber chá. Encontrou “pessoas espectaculares” em Moçambique e o povo africano mais hospitaleiro no Níger. Fez voluntariado em Angola e criou um coro infantil no Gungo. Há uma coisa que o deixa cabisbaixo: a escravatura infantil (“ainda existe”). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Rui diz-se “descarado”. Gosta de “tudo o que é diferente”. E gosta de se aventurar. Sente-se “afortunado” por viver “uma carrada de histórias todos os dias” e o manual do desenrasque obriga-o a ser uma espécie de “mentiroso compulsivo em África” (na escala de Richter já ia em dez, “mais do que um terramoto"). Viaja com uma tenda, um adaptador universal e uma tripla, um bloco de notas e uma caneta. E pouco mais. Escreve sempre que possível e publica regularmente crónicas de viagem no site luxemburguês Bom Dia (“levar a lição estudada para este continente não serve de nada”, escreve a propósito da Guiné-Bissau). No Benin, fotografou uma miúda com um balão amarelo à frente da cara. Aparece assim coberta “para que a sua alma não fosse roubada”.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Djaimilia Pereira de Almeida: não é só raça, nem só género, é querer participar na grande conversa da literatura
Há três anos, com Esse Cabelo, apresentaram-na como representante de uma literatura acerca de raça, género, identidade. Voltou agora com Luanda, Lisboa, Paraíso e diz que quer apenas participar na longa e antiga conversa sobre literatura. Enquanto procura escrever o seu livro ideal, totalmente inventado, uma mancha de texto sem capítulos que resista a discussões acerca do presente. (...)

Djaimilia Pereira de Almeida: não é só raça, nem só género, é querer participar na grande conversa da literatura
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.8
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há três anos, com Esse Cabelo, apresentaram-na como representante de uma literatura acerca de raça, género, identidade. Voltou agora com Luanda, Lisboa, Paraíso e diz que quer apenas participar na longa e antiga conversa sobre literatura. Enquanto procura escrever o seu livro ideal, totalmente inventado, uma mancha de texto sem capítulos que resista a discussões acerca do presente.
TEXTO: O nome de Djaimilia Pereira de Almeida apareceu na literatura há três anos quando publicou Esse Cabelo (Teorema, 2015), ficção autobiográfica, situada num sub-género que recebeu o nome de auto-ficção. É uma espécie de romance-ensaio que despertou a atenção de leitores e da crítica para a que parecia uma voz inovadora de uma geração que falava de raça, identidade, género, questionando clichés associados à condição de negritude ou do que é viver num mundo de estranheza seja no lugar onde nasceu, Angola, como naquele onde cresceu e vive, Portugal. Djaimilia foi então comparada a outras escritoras femininas que surgiram nos EUA, Inglaterra, em países de África como a Nigéria ou a Etiópia; mulheres que escrevem desafiando o que se espera delas. Aos 36 anos, regressa, confirmando que aquele livro não foi um acto solitário numa obra que quer construir, assume aqui, distanciando-se desse eu narrativo inicial e autobiográfico, para se aproximar da invenção mais pura. Está a descobrir o que isso é. Luanda, Lisboa Paraíso (Companhia das Letras) é um passo nessa direcção. Em pano de fundo há a guerra, a pobreza, os retornados, os que ficaram, os que sobrevivem em território estranho, a doença, a exclusão. . . Mas há, entre tudo isto, dois homens como protagonistas, um pai e um filho, e a memória de cada um; um passado que se quer esquecer, alguém que decide que não será mais angolano. É uma construção de identidades condicionada por um presente que nunca se compadece dessa memória, que não a respeita. Esquece-se para se sobreviver no novo livro de Djaimilia Pereira de Almeida, escritora que acaba também de ganhar uma bolsa de criação literária. Esse Cabelo foi um livro muito bem recebido que a conotou, enquanto autora, com as questões de raça, feminismo, identidade, a partir da escrita autobiográfica. Como se vê no modo como a situaram na literatura?Não se pode controlar a maneira como se é recebido nem o que os leitores fazem com o que nós escrevemos. Portanto, lido com todas essas categorias, rótulos de leituras, o que for, com enorme curiosidade e também alguma surpresa. Não aconteceu, até agora, ter sentido que não me estivessem a fazer justiça. Se calhar não utilizaria todas essas categorias para descrever o que fiz, mas recebo-as com grande serenidade. Imaginemos que lhe seriam dadas a escolher categorias que a identificassem. Preferia não escolher. Há muitos aspectos da história da literatura portuguesa que são importantes para mim. É a tradição que conheço melhor e a que está na minha cabeça quando estou a escrever. A literatura portuguesa, a língua portuguesa. Mas a literatura portuguesa é uma coisa muito vasta e todos esses rótulos são leituras a posteriori. Além disso, os livros surgem num certo momento e a recepção que têm é percepcionada pelos momentos históricos que estamos a viver. Esse Cabelo surgiu num momento muito particular em que fez sentido ser abraçado por uma série de causas. Veio num tempo que o recebeu bem. Exactamente. Nessa vastidão histórica e geográfica da literatura portuguesa há espaços e temas que estão, no entanto, menos explorados, periféricos. A sua escrita traz essa experiência. Sim, reconheço-me nessa descrição de que o género de histórias que tenho contado até agora é o de história periférica, mas não me sinto periférica em relação à literatura portuguesa em geral, sobretudo como leitora. É verdade que tenho um percurso de vida parecido com o de muitas pessoas que vieram de África; algumas até nasceram cá; pertenço a esse conjunto de pessoas. Mas tive um acesso privilegiado à tradição literária que muitas dessas pessoas não têm. É natural que quando começo a contar histórias, elas venham de um lugar de onde até agora têm vindo poucas histórias, mas nunca premedito fazer isso. E também não sei se vou continuar a fazer sempre isso, porque interessa-me explorar também o atrevimento de que uma pessoa que venha de uma posição mais periférica possa contar histórias que não se cinjam à periferia. É trazer para a conversa pessoas que se calhar nem sequer chegariam a ler os livros. Interessa-me também, porventura, falar de outras coisas de um ponto de vista menos periférico. Há três anos, quando falámos, já dizia isto, que é preciso que comecemos a ouvir as histórias de pessoas de várias periferias. Tenho muita curiosidade por muitas histórias. Não só pelas de afrodescendentes, mas pelas de outras comunidades que vivem em Portugal. Por exemplo, anseio pelo momento em que comecemos a ouvir as histórias dos asiáticos que vivem em Portugal, ou das comunidades indianas. Não encaro isto como se de repente pudéssemos aceder a todas essas identidades, mas que todos possamos participar numa conversa, que é uma conversa muito antiga, a que se chama literatura portuguesa. De que nomes, dessa tradição, se sente mais próxima e a fazem ter esse sentido de pertença?Não me cinjo à literatura portuguesa, porque pude ler muitas outras coisas. Aliás, os autores a que volto mais vezes são, sobretudo, franceses. Mas na literatura portuguesa interessa-me muita coisa que vai desde Sá de Miranda até. . . nem sei por onde começar [risos], mas Raul Brandão, Fernando Pessoa, muitos poetas. Aos 18 anos, quando comecei a pensar que gostaria de escrever, de fazer isso na minha vida, andava a ler Manuel Gusmão. Sou uma pessoa de livros mais do que de autores; portanto, mais do que dizer autores, sei os livros que me marcaram. O livro do Manuel de Gusmão chama-se Teatros do Tempo [Caminho, 2001] e foi muito importante para mim. Durante certa altura o Álvaro de Campos. Noutra fase, ainda muito jovem, li muito Herberto Helder. Entretanto comecei a alargar as leituras. Mas há livros muito marcantes, Os Pescadores, do Raul Brandão, foi muito importante num certo período e acompanhou-me ao longo de muitos anos. Neste momento, no presente, volta ser muito importante para o que vou fazer a seguir. Há pouco dizia que já não se lembra do que está no seu novo livro. Acaba de sair. Como é que essa memória se apaga assim?Não sei. Mas depois do livro estar feito e publicado, normalmente não o volto a ler. Custa-me bastante, e vou-me esquecendo. No momento em que o livro está pronto sei-o todo de cor. Depois fecho e esqueço. Lendo agora o Esse Cabelo é uma surpresa ver o que lá está porque já me esqueci. Voltou a esse livro?Não. Mas quando vou, quando calha a ir por qualquer razão, já não me lembro de nada. Apagou-se. É um mecanismo de defesa, medo de encarar o texto?Não. Acho que preciso de esvaziar o espaço para o ocupar com outras coisas. Quando publico um livro estou sempre nervosa e começo logo a pensar noutras coisas. Já começou?Sim. Quando estou mais ansiosa, escrever ajuda-me muito. Nos momentos de maior tensão ponho-me a escrever. Normalmente, ponho-me a escrever outra coisa e vou esquecendo o que ficou para trás. Este novo livro traz uma grande oralidade à escrita, uma oralidade quase antiga. Concorda?Nunca tinha pensado nisso. Mas sim, não fiz nenhuma pesquisa. Se calhar são coisas que não sabia que sabia e emergem à medida que vou escrevendo, aparecendo naturalmente; modos de falar, pronúncias. . . Estão num subterrâneo qualquer e a imaginação abre uma caixa. Esta semana estava a pensar nisto, de como é esta coisa de fazer um livro. Agora que estou dedicada a um texto que é passado num outro período, noutro século, e estava a pensar que é como agarrar num prato de vidro ou um jarro de vidro, atirá-lo ao chão e ele partir-se em mil bocadinhos. O momento da escrita é como se os muitos, muitos bocadinhos de vidro vindos de muitos lugares se constituíssem num mosaico reconhecível. Há coisas que não sabia que sei, ou já não me lembro que sabia, que passei por elas. Pode ser um olhar visto não sei onde, o aspecto de uma casa que vi em qualquer lado. São vários bocadinhos que depois formam. . . Um sentido?Sim. Vem de um livro-ensaio, onde há um eu assumidamente autobiográfico, para um romance com alguma coisa de autobiografia. Os dois situam-se mais ou menos na mesma época, em comunidades mais ou menos semelhantes, onde sai do eu ficcional. Como é que isso aconteceu?Sim. O que se passou entre um livro e o outro foi que percebi que o conseguia fazer. Só não escrevi Esse Cabelo na terceira pessoa porque acho que ainda não sabia como é que se fazia isso. Passei três anos a tentar perceber como se fazia porque só me interessava fazer isso. Sair do eu?Sim. Completamente. Agora cada vez tenho menos interesse, ou já não tenho nenhum interesse, em escrever do ponto de vista do eu. Interessa-me afastar-me do meu próprio ponto de vista e virar-me para fora, para o ponto de vista dos outros e aproximar-me de outras figuras que não eu. Eu e a minha particularidade deixaram de me interessar. O que interessa é pensar em como é que se conta uma história, como é que se faz um livro e, de projecto em projecto, trabalhar isso. É como se fosse um vector que antes estava apontado para mim e agora passa a estar apontado em direcção contrária, no sentido do mundo lá fora. Há pouco tempo Zadie Smith contava a dificuldade de fazer o percurso inverso, deixar a terceira pessoa e escrever na primeira, o que só aconteceu no último livro dela. Sim, lembro-me de entrevistas antigas de Zadie Smith em que ela dizia que achava fútil estar a escrever na primeira pessoa. Para mim foi o contrário, porque eu gostava de escrever livros como os que gosto de ler e o género de histórias que gosto de ler é de aventureiros e marinheiros. Que resultam da imaginação. Sim. Homens em mar alto, piratas. Há um sentido de aventura que o ponto de vista da primeira pessoa, acabando por se centrar nas nossas próprias angústias, não permite muito. Sobretudo, interessa-me contar histórias e interessa-me contá-las do ponto de vista do número mais variado de pessoas que eu ainda não sei quem são. Como foi essa aprendizagem, por exemplo, a de construir personagens?À custa de muitas tentativas; tentativa e erro. O livro não é muito longo, mas houve muito desperdício. . . Para mim nunca é desperdício porque em todo esse caminho não deito nada fora, vou sempre buscar coisas; acaba sempre por ter um uso, tal como na costura se usa o desperdício para fazer outras coisas. Mas houve muito, muito desperdício. Sobretudo porque neste caso também tentei procurar uma forma clara, mais clara; uma frase mais clara; procurar um certo ritmo, um modo menos reflexivo de expressão. Sair mais do ensaio?Exactamente. E tentar encontrar a forma de contar adequada à natureza das vidas que eu estava a falar. Interessava-me uma escrita mais terra a terra. Talvez isso tenha sido mais difícil do que propriamente construir as personagens. Talvez a coisa mais difícil tenha sido o processo de desaprendizagem necessário para dizer as coisas de uma maneira simples. Na minha cabeça o livro teve sempre o aspecto de um balanço e, a partir de certo ponto, escrevi-o como se estivesse a contar às personagens como tinha sido a vida delas, como se elas me perguntassem: "então como foi a nossa vida?". Interessava-me contar-lhes de maneira a que elas conseguissem entender. Foi muito difícil porque tinha toda uma série de vícios e de tiquesAutoria: Djaimilia Pereira de Almeida Companhia das LetrasAcadémicos?Académicos e não só, que me interessava mandar fora. É preciso muita paciência para isso – paciência para comigo – para chegar aí. O território de Luanda, Lisboa, Paraíso, no entanto, é-lhe familiar. Não foi para um universo imaginário. Ainda não. Até um certo ponto este é um mundo que eu conheço, mas também só até um certo ponto. Não houve grande pesquisa. Houve uma grande recolha de objectos e as personagens foram construídas a partir dos seus objectos. Há a história de uma mala encontrada numa feira de velharias. Sim, está ali [aponta para outro canto da casa]. São objectos que apanho em feiras de velharias. Vou todos os domingos a essas feiras. Levo muito pouco dinheiro e vou à procura de coisas. O que lhe interessa nessa procura? Histórias?Sim, histórias, mas sobretudo gosto de velharias, mas não são coisas valiosas. Faço colecções de algumas coisas e aquilo mexe com a minha imaginação como mais nada mexe. Começo a pensar: está aqui um copo, de quem foi este copo. Dá-me muitas ideias. Faço isto há muitos anos e nunca pensei em histórias a partir daí. Foi acontecendo naturalmente. A certa altura dei conta de que estava a comprar objectos sem nexo, coisas de que não precisava para nada, lixo autêntico, tralha, e depois comecei a olhar para aquilo tudo e a pensar: isto podia ser tudo da mesma pessoa, podiam ser objectos de uma pessoa. Era como se fosse um enxoval de uma pessoa que eu não conhecia. E começou a atribuir um dono àquele enxoval. Exactamente. Tudo coisas de homens. Um cinto, uns óculos escuros. . . Foi assim que eles nasceram. Depois comecei a desenhar, uns desenhos sem interesse, uns homens; no início de tudo foi assim. Depois ganharam nome e foram nascendo. Houve também muitas imagens. Fotografas importantes da história da fotografia, que também me dão muitas ideias; ver livros de fotografia ajuda-me muito, a perceber nuances, princípios de personagens e princípios de histórias. Isso tudo, junto com leituras que estava a fazer, ajudou a chegar a este livro. Um livro em que, como referiu, os protagonistas são homens. . . Foi totalmente espontâneo. Nunca me apareceram como mulheres e, não sei porquê, mas ultimamente sempre que escrevo, escrevo sobre homens, e como não contrario. . . Como chegou à estrutura deste livro que se divide em duas partes?Essa divisão é muito tardia. Gostava de ser capaz de escrever um livro que fosse, da primeira à última linha, sem capítulos, sem interrupções, um texto contínuo. Dou muita importância à mancha; não conseguindo ainda fazer isso, divido-os por capítulos. O livro saiu há pouco tempo, as reacções estão ainda a sair. Como gere este momento?Desta vez, como não houve lançamento, fiquei menos nervosa. Opção sua?Sim. Porquê?Nunca vou a lançamentos [risos]. Não faz muito o meu género e, então, podendo não o fazer, não fiz. Ao mesmo tempo isso também foi um bocadinho estranho. Não houve nada a marcar, e de um dia para o outro o livro estava nas livrarias; ainda não o vi em nenhuma livraria não vou ver nada. Lê as críticas?Sim, algumas leio. Mas também não leio integralmente. Isso não me interessa. O que sinto é que o que eu tinha de fazer já fiz. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas interessa-lhe ser lida. Interessa-me, sim. Se houvesse um lançamento se calhar teria ficado ansiosa. Mas agora sinto-me feliz porque concluí. A maneira como giro esta fase é pôr-me a escrever. Este é um período muito produtivo, em que escrevo muito. É uma espécie de casaco com que me visto. O seu nome numa altura em que há uma curiosidade global acerca de uma escrita feita por mulheres negras e pelo que traz de novidade à literatura. É uma curiosidade que ultrapassa a literatura e é social e política. Sou leitora de algumas dessas pessoas e acho esse contributo importante. Mas quando se fala de escritores com um percurso como o meu às tantas já não se está a falar de literatura. Já só se está a falar de todo esse lado, social, político. . . Acho importante nunca perder de vista também o aspecto literário. O contributo social e político é tão mais forte e perene quanto se misturar com esta conversa; a conversa: essa conversa antiga, a conversa do que se passa nos livros. Interessa-me participar nessa conversa. É tão mais subversivo o contributo de todas essas pessoas quanto mais ele se inscrever nesta conversa e continuar para lá do momento em que as discussões fora da literatura estavam a ser tidas. Os livros preservam o sentido da discussão e mantêm entre si uma discussão própria, que nos ultrapassa, que se prolonga para lá de nós e para lá do momento que estamos a viver. Não se sente representante de algum tipo de literatura. Não. Talvez sinta uma grande responsabilidade. Mas é, antes de mais nada, uma responsabilidade em relação próprio trabalho que estou a fazer e de respeito para com as personagens de que estou a falar. Presto contas às personagens. Mas não me sinto representante de uma literatura. Sinto que estou a contribuir para uma conversa, que também é essa conversa política, social, etc. , mas quando escrevo não estou a pensar nisso. Estou a perceber como é que se faz o que eu gostava de saber fazer. E preservando um certo gozo em fazer isso. Escrever é a coisa que me dá mais alegria. É uma coisa associada à felicidade. Se ainda por cima os livros contribuírem para uma discussão, se chamarem a atenção para coisas, se forem lidos com benefício para pessoas, fico ainda mais feliz. Mas não premeditei isso, porque se me concentrar apenas nisso tenho medo que os livros se tornem maus.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Devolvidos a Cabo Verde
Portugal deporta-os porque cometeram crimes ou por falta de documentos. Há pessoas que ficam “à deriva no aeroporto”. Como o caso do senhor expulso ainda com a pulseira de internamento em Psiquiatria no Hospital de Santa Maria. As autoridades cabo-verdianas falam em “violação dos direitos humanos”. (...)

Devolvidos a Cabo Verde
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Portugal deporta-os porque cometeram crimes ou por falta de documentos. Há pessoas que ficam “à deriva no aeroporto”. Como o caso do senhor expulso ainda com a pulseira de internamento em Psiquiatria no Hospital de Santa Maria. As autoridades cabo-verdianas falam em “violação dos direitos humanos”.
TEXTO: No dia apontado para sair em liberdade condicional, a 20 de Março de 2015, Isolino Tavares Rocha foi deportado para Cabo Verde. Na prisão, regras são regras, ele sabe, com tantos anos que leva atrás de grades — preso há sete, três condenações por tráfico de droga. Quando as portas da cela se fecham, às 19h00, não há nada a fazer. Não pode telefonar a ninguém, à família, à advogada, “não abrem nem para ir ao hospital”. Por isso, não protestou quando lhe disseram: “O SEF vem buscar-te às 4h30 da manhã. Tem as coisas prontas. ” “Vou para Cabo Verde? “Eles é que decidem se ficas ou vais. ”Obedeceu. Arrumou o que tinha na cela, o que as regras deixam que tenha — pouco mais do que duas calças de ganga, dois calções, um casaco e dois pares de ténis — e pôs tudo dentro de um daqueles sacos pretos de pôr o lixo. Na cela não se pode ter malas, é outra regra. Não dormiu, esteve pronto nove horas e meia. Foi no carro do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que soube que ia a caminho do aeroporto. Lá, de uma cabine de moedas tentou ligar à advogada, eram seis da manhã, não atendeu. Conseguiu apanhar o primo Orlando, que chegou a tempo de o ver, mas não de lhe ir buscar a mala a casa, como lhe tinha pedido. Isolino pediu ao menos que deixassem que o primo lhe entregasse o relógio, “para saber as horas”. “A tua família depois manda-te o relógio. ” “Quando vou?” Não responderam. Daí a pouco: “Vais agora. ” Ia para a ilha de São Vicente. “Mas eu sou de Santiago”, “lá tens voo de ligação”. “Meteram-me no avião e foram-se embora. ” O passaporte cabo-verdiano, caducado na cadeia, foi entregue à tripulação. Isolino entrou sozinho no avião, sentou-se no número que dizia no bilhete. Não sabia que horas eram, mas pediu, por favor, ao senhor do lado se lhe deixava ligar do seu telemóvel. Estava nervoso mas conseguiu explicar-se: “Eu estava preso, vou para Cabo Verde, não consegui falar com família, não consegui falar com advogada. ” “Era uma pessoa simpática”, perguntou-lhe antes se o número para onde ia ligar era tarifário Moche, era, e ele deixou. A advogada atendeu, dessa vez, eram 8h30, mas ficou confusa, porque sabia que ele era de Santiago e que nesse dia havia voo directo às 20h45. Fez entrar a providência cautelar às 8h58, para tentar suspender a ida, dois minutos antes da hora de início de funcionamento dos serviços dos tribunais. O voo VR 613 partiu às 9h. O tribunal não se chegou a pronunciar. Isolino conseguiu avisar a irmã Vanilda que ia chegar a Cabo Verde quando já estava no país. Depois de todos os passageiros terem saído pela porta da frente, Isolino saiu pela traseira, saco de plástico de lixo com a roupa na mão. A irmã Vanilda estava à espera, 15 anos mais velha. Isolino saiu de Cabo Verde com 18 anos, regressava com 34. A capital, a Praia, agora estava cheia de prédios e estradas de alcatrão que ele não conhecia, o caminho que o levava à aldeia onde nasceu já não era de terra batida, demora-se 30 minutos em vez de uma hora, na aldeia agora havia luz eléctrica o dia inteiro, já não era só à noite, das 19h às sete da manhã. Algumas coisas tinham mudado, outras nem tanto. Quem visita esta parte do interior da ilha de Santiago como turista de certeza que descreveria a paisagem onde fica a aldeia de Isolino com adjectivo de brochura turística, como esplendorosa. A certa altura, na ascensão à serra, há um encontro que parece improvável entre um corvo e um macaco. A estrada, vê-se, é pouco percorrida por carros, há ervas secas a irromper do piso pouco cuidado. Ali no cimo, para quem vai, fica a Loura, uma povoação que é uma rua ao comprido onde viverão umas 250 pessoas. Numa das casas térreas, pintada de amarelo, está Isolino, um homem entroncado. Está sentado num bojudo sofá de lugar único do qual ele parece fazer parte. A Loura de onde Isolino Rocha saiu adolescente está rodeada de uma imensidão de montanhas e escarpas com misturas perfeitas de castanho e verde. Na prisão do Linhó (Sintra) ia ao ginásio todos os dias, para se manter em forma. Ali estava finalmente livre, podia ir correr. Foi o que tentou. “Só dois dias, não consegui mais. Tenho a cabeça muito cheia”, são os seus pensamentos que o imobilizam, que o prendem ao sofá no centro da sala da mãe. Dali se levanta todos os dias, a custo, para fazer o que fazia antes de ir para Portugal ser calceteiro, com o tio José — cuidar de animais. Levanta-se às 6h e regressa às 10h30, é o tempo que lhe demora a dar de comer e mudar a palha à vaca e ao vitelo que são da mãe. Estas poucas horas de trabalho são a retribuição que ele sente que tem de lhe dar, por o ter acolhido de volta, assim, sem nada, sem mesmo nada. A mãe, Teresa Tavares, ouve a conversa, está vestida de preto, não se sabe se porque está de luto por algum familiar, mas a cor condiz com a forma como fala daquele regresso “do único filho macho”. As outras quatro filhas nunca tiveram a oportunidade de sair de Cabo Verde, nem a Vanilda, que atendeu o telefone, nem a Onilda, nem a Milda, nem a Lurdes. Foi ele o único que experimentou emigrar. Soube que o filho ia chegar quando já tinha chegado. “O meu filho veio com roupa dentro de um saco de plástico. Deportado como um cão”, diz pausadamente e em tom baixo. “Ia para uma vida melhor, mas a sorte não deixou. ”Jacinta Almeida, a sua companheira portuguesa de origem cabo-verdiana, está sentada junto a ele no braço do sofá de lugar único, do lado direito, para que se perceba que são como um, “se ele cair, caímos juntos”. Emigrada em Inglaterra, onde é “auxiliar médica”, teve de ir primeiro a Portugal buscar-lhe a bagagem. Veio a Cabo Verde também para se casar com ele, “uma cerimónia simples”, o suficiente para provar oficialmente que o quer com ela e com a filha de ambos, em Inglaterra, onde não tem que contar moedas como em Portugal. 240 Número de cabo-verdianos expulsos de Portugal de 2010 a 2014, de acordo com o SEFJaciara, uma menina de cinco anos, que anda aos pulos pela aldeia-rua, entra de repente na sala onde está o sofá com Isolino e a mãe, mas continua a saltitar, alheia ao peso da conversa de adultos — “foi mandado como um animal, para não dar tempo. . . Para não podermos fazer nada. Foi aqui deixado como um saco de batatas. Não se tratam assim pessoas”, diz Jacinta. Jaciara nunca conheceu o pai em liberdade senão ali. Já lhe foi explicado que o pai, mesmo estando fora da cadeia, não pode ir com elas. Com a expulsão de Portugal, Isolino passou a fazer parte da “Lista nacional de pessoas não admissíveis”. Durante oito anos não pode voltar a Portugal. A decisão inclui “os países de Schengen”, lê-se. Mas ele não sabe o que é isso de Schengen. É a Europa? “Posso ir para Inglaterra?” “Pode perguntar à minha advogada?”A advogada Susana Alexandre não tem resposta para lhe dar. Sabe que Inglaterra não faz parte do espaço Schengen, mas não sabe se, tendo Isolino interdição no restante espaço europeu, o deixarão algum dia entrar naquele país. Jacinta tinha esperança que os 22 dias que tirou de férias chegassem para se casarem, para tratar dos documentos. Mas em Cabo Verde pedem a Isolino um “atestado de residência” e uma declaração que comprove que nunca foi casado, que têm de ir de Portugal. O tempo não vai chegar. Isolino ficará na Loura, à espera, sentado no sofá de couro, todos os dias a ir tratar da vaca e do vitelo, entre as 6h e as 10h30. O advogado José Manuel Ramos, que apresentou queixa do caso de Isolino junto do Observatório dos Direitos Humanos (uma parceria de dez associações, como o SOS Racismo e a Associação Solidariedade Imigrante), diz que uma coisa é avaliar da legitimidade do “afastamento coercivo” — e o observatório considerou-o legítimo à luz da actual lei de estrangeiros, por Isolino ter “cometido actos criminosos e se encontrar irregular” — outra coisa é a forma como se fez a expulsão. E aí este observatório conclui que “foi alvo de um tratamento que colocou em causa a sua dignidade. Foi enviado sem as condições mínimas de bem-estar, uma vez que não lhe foi possibilitado levar os pertences ou despedir-se da família ou amigos”. “Foram buscá-lo pela calada da noite. Há horários, senão isto é o faroeste”, diz José Manuel Ramos. “Os tribunais abrem às 9h” e a legislação prevê que as libertações “sejam durante a manhã”. “Por que é que não se esperou pelo voo directo para a sua ilha de origem, que era nessa noite?”, pergunta Susana Alexandre. A advogada de Isolino diz que era para não dar tempo para a providência cautelar suspender o voo. Isolino foi expulso em 2015 mas o seu processo de afastamento coercivo do território nacional tinha sido aberto ainda em 2004, altura em que o SEF o ouviu. O observatório conclui assim que saiu violado o seu “direito de defesa e de audiência”. “Há uma vida depois disso”, refere a advogada. Teve uma companheira, nasceu-lhe uma filha, ambas portuguesas. O SEF respondeu que “o cidadão não veio ao processo comunicar factos supervenientes com eventual relevância para o processo”. É provável que ao ouvir a história de Isolino Tavares Rocha, condenado por tráfico de droga, reincidente — mesmo com o relatório do Observatório dos Direitos à mistura —, poucos se compadeçam com a sua situação, que se preocupem com o que será da sua vida: Conseguirá Isolino casar-se com Jacinta? Ir viver para Inglaterra com a mulher a filha?A sua advogada já está habituada a esse encolher de ombros, chama-lhe “consciências adormecidas”. Ouve e sente o mesmo por parte da maioria dos que a rodeiam, da polícia, de advogados, de amigos, da família, de pessoas com quem fala. Isolino Tavares Rocha é um traficante de droga cabo-verdiano. Ponto final. Há ligeiras variações, mas a ideia é sempre a mesma: “‘São cabo-verdianos, vão para o vosso país fazer porcaria. ’ ‘Para criminosos, bastam os nossos. ’ ‘Fizeste a cama, tens de te deitar’”, exemplifica. “Destes ninguém quer saber, mesmo que tenham cá filhos. ” São os indefensáveis. “Não são anjos”, diz Susana Alexandre. “Eles estão na cadeia, não se enganaram no caminho para a Igreja. ” “Claro que têm o seu passado, mas têm de ver a pessoa diante deles. Para o SEF, a lei é para ser cumprida, não há equidade, não há casos concretos”, critica o advogado José Manuel Ramos. A legislação portuguesa distingue entre as expulsões administrativas, que são da competência do director do SEF, e as judiciais, decididas pelos juizes, que muitas vezes surgem como penas acessórias ao cumprimento do tempo de prisão. José Manuel Ramos diz que os juízes conhecem o percurso dos reclusos, ouvem os técnicos de reinserção social, “o SEF apenas vê números e crimes”. No caso de Isolino, o juiz de execução de penas concedeu-lhe “liberdade condicional” tendo em conta “o seu percurso prisional pautado por actividade laboral” e “sem qualquer sanção disciplinar”, concluindo: “Ainda há esperança de que possa reorganizar a sua vida de forma socialmente correcta. ”“Achava que tribunal era mais grande que SEF. Se tribunal não te condena a expulsão, é porque não és perigo para a sociedade”, critica José Constantino, condenado por tráfico de droga, expulso administrativamente para Cabo Verde em Outubro do ano passado, a mulher e os três filhos maiores avisados uma hora antes da partida. “O check in já fechou”, disseram-lhes. Não chegaram a tempo. Susana Alexandre vai riscando da sua agenda de papel a lista de 30 clientes que tem neste momento à espera de expulsão. José Constantino foi o último. A alguns consegue impedir a expulsão, a outros não. E é sempre em cima do acontecimento. “Teoricamente, têm 90 dias para impugnar a decisão de afastamento coercivo junto de tribunais administrativos, mas eles sabem lá. ” Mesmo que o fizessem, a impugnação não tem efeitos suspensivos. Por isso, chega a extremos, a providências cautelares. “Cada caso é um filme”, diz José Manuel Ramos. “Já fui buscar dois ao aeroporto”, diz a advogada. Aos que foram para Cabo Verde perde-se-lhes o rasto. Ninguém quer saber o que lhes acontece a mais de três mil quilómetros de Portugal. “Bem-vindo a casa. ” Chamavam-se assim os Gabinetes de Atendimento e Integração dos Deportados. O primeiro abriu em 2002, chegaram a ser quatro, pensados sobretudo para acolher deportados dos Estados Unidos, durante anos o principal país de deportação para Cabo Verde, Portugal surgia como o segundo. Mas, de acordo com os números da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras de Cabo Verde, de 2010 a 2014, chegaram a Cabo Verde 324 pessoas expulsas de Portugal, no mesmo período chegaram apenas 39 dos Estados Unidos. Durante este período, Portugal tornou-se assim o país que mais deporta para Cabo Verde, explica Nádia Marçal, responsável pelo dossier do “Retorno Involuntário” no Ministério das Comunidades de Cabo Verde. Desconhecem quantas são as expulsões decretadas pelos tribunais e quantas são administrativas e decididas pelo director do SEF. O que acontece é que o Governo de Cabo Verde deixou de conseguir apoiar os deportados. Os gabinetes acabaram em 2012. Por falta de meios. Não há ninguém à espera. “Talvez essa informação não tenha chegado a Portugal. A algumas pessoas foi dito que teriam um assistente social à chegada. Quando vêem que não há ninguém, ficam revoltados”, diz Nádia Marçal. Agora, o Ministério das Comunidades só intervém mesmo quando “há pessoas à deriva no aeroporto”. Como no caso “do senhor da pulseirinha”. Foi assim que ficou conhecido no ministério. Era na pulseira plastificada que trazia no pulso que vinha parte da sua história, pelo menos a parte final da sua história, a sua última morada em Portugal: “Departamento de Psiquiatra, piso 3, extensão 55173. ”O “senhor da pulseirinha” tinha sido encontrado “a vaguear nas ruas, no Estoril, a 12 de Maio de 2014. Era sem-abrigo”. 302 Número de portugueses deportados de outros países por crime ou indocumentaçãoO SEF levou-o para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde ficou internado um mês, “diagnóstico: episódio depressivo severo com sintomas psicóticos”, lê Nádia Marçal. No dia da alta, a 6 de Junho, o SEF foi buscá-lo, três dias depois, a 9 de Junho, foi enviado de avião para Cabo Verde, conta. “Foi expulso com a roupa do corpo, psicologicamente perturbado e sob efeito da medicação”, estando apenas acompanhado “de relatório clínico, guia de tratamento, três receitas digitais para aviar e uma saqueta com quatro medicamentos”. Tinha sido servente. Estava há 37 anos em Portugal, para onde tinha ido em criança. Passou a noite no aeroporto da Praia. A polícia ligou para o Ministério das Comunidades na manhã de 10 de Junho. Tinham perguntado se tinha família, dizia que tinha nascido em São Tomé e Príncipe. “Não sabia o nome de familiares, nem lugares em Cabo Verde. Estava descompensado. Levámos o senhor para o hospital. ” Passou lá um mês, mas fugiu. “Foi encontrado na rua de forma acidental um mês depois, a 6 de Julho, por uma assistente social do hospital, que o reconheceu. Estava com a mesma roupa. Nunca mais soubemos nada do senhor. ”É a ministra das Comunidades de Cabo Verde, Fernanda Fernandes, quem primeiro fala “do senhor que veio com a pulseirinha. Perturbado psiquicamente. Puseram-no no avião e enviaram-no. Estamos a lidar com pessoas e pessoas são pessoas”. O que está em causa são “situações extremamente desumanas. É enviar o problema para o outro”. Achava que tribunal era mais grande que SEF. Se tribunal não te condena a expulsão, é porque não és perigo para a sociedade“Respeitamos a soberania dos Estados, há situações de criminalidade e de irregularidade documental”, continua a ministra, mas têm-lhes chegado ao conhecimento casos de Portugal em que expulsam pessoas com nacionalidade cabo-verdiana mas que nasceram em Angola, São Tomé e Príncipe. “Nunca aqui estiveram. Como é que vai ser a sua reinserção?” “A deportação acaba por ser uma condenação para a vida. ”“O senhor da pulseirinha” não foi o único caso de uma pessoa que vivia na rua em Portugal e foi deportada para Cabo Verde, conta Nádia Marçal. Em Dezembro de 2014, chegou-lhes o caso de outro sem-abrigo, mas esse nunca tinha estado sequer em Cabo Verde. Também tinha nascido em São Tomé, de onde foi para Lisboa com os pais em criança. ”“Falámos ao telefone com a mãe do senhor, em Portugal. Estava muito aflita, porque ele não tinha qualquer contacto em Cabo Verde. Era um senhor que tinha sido preso em 1996, solto 19 anos depois, vivia na rua. Mandaram-no para cá, porque os pais eram cabo-verdianos. Era indocumentado. ”O máximo que o Ministério das Comunidades conseguiu foi pagar-lhe uma pensão três meses e alimentação durante dois. Também não souberam mais nada deste senhor. Todos os casos mencionados neste artigo foram mandados com antecedência para que o SEF se pudesse pronunciar. O director nacional adjunto do SEF, Carlos Patrício, diz que não comenta casos particulares. Desconhece o caso do “senhor da pulseirinha”, lembra-se apenas de um caso de expulsão administrativa de um sem-abrigo, mas não tinha esses contornos. “Era uma situação humanitária, não pode estar cá sem família, sem assistência, tem de voltar para Cabo Verde. Supostamente, tinha lá família. ”Nádia Marçal diz que está em causa “uma questão humanitária” e que são situações de “violação dos direitos humanos”. Na forma como se deporta. Exemplos: muitas vezes as pessoas não vão até à ilha de destino final — “há nove ilhas habitadas, quatro aeroportos internacionais” — e é Cabo Verde quem tem, por vezes, de pagar as ligações. E é frequente não serem notificados das expulsões. “Há casos em que somos informados no próprio dia ou depois de a pessoa ter chegado, às vezes três dias depois. ”O responsável do SEF admite que “por vezes não há voos para as ilhas de destino, quando existem não são na data certa. O que pode acontecer é haver ligações internas” e que a notificação é feita com “uma antecedência razoável. Não é certamente quando a pessoa já está no avião”, embora admita que possa haver “casos pontuais em que há falhas”. 402 Estrangeiros expulsos de Portugal em 2014 por crime ou indocumentação, um número que está a descerNádia Marçal não sabe nada acerca dos percursos destas pessoas, além do que escolhem contar, mas sabe que quanto mais informação receberem de Portugal melhores hipóteses têm de se conseguir integrar na sociedade cabo-verdiana: ajuda ter referências dos familiares antes de chegarem, para os poderem localizar, saber há quanto tempo estão emigrados em Portugal, que qualificações e experiências profissionais tiveram, dar-lhes condições para trazerem certificados da escola — “algo que lhes permita ter uma vida cá”. Portugal sabe, tem essa experiência com os deportados nos Açores, nota. Quando criaram os gabinetes, foram inspirar-se na experiência do arquipélago português, que foram visitar. “O problema é partilhado mas nós não temos os mesmos meios. Cá não temos casas de acolhimento. Talvez quando estamos a lidar com os nossos a tendência é sermos mais sensíveis do que com os estrangeiros”, admite. Escreveram-se dezenas de notícias sobre os deportados portugueses nos Açores, foi feito um documentário (Deportado), uma peça de teatro (I don’t belong here). Desde 1987 que o arquipélago português recebeu 1292 deportados. Sobretudo dos Estados Unidos. Em 2014 chegaram a Portugal vindos daquele país 49 portugueses, 12 eram originários dos Açores. A maioria (28) tinha antecedentes criminais por crimes graves como "assalto, roubo, violência doméstica e sexual", quatro por tráfico, apenas 11 foram mandados embora por permanência ilegal, refere o Relatório Nacional de Segurança Interna de 2014. O director regional das Comunidades do Governo Regional dos Açores, Paulo Teve, diz que as autoridades americanas notificam que vai haver uma expulsão “pelo menos duas semanas antes”. As associações de emigrantes portugueses vão então aos centros de detenção, em território americano, fazer uma “avaliação psicossocial” antes de as pessoas virem. Aos que não têm família, o governo regional dá alojamento, comida, apoios à renda, e tenta ajudar à sua integração profissional, com o apoio de duas associações locais, cujos técnicos vão ao aeroporto quando alguém pede ajuda, explica. No caso das deportações de Portugal para Cabo Verde, o director nacional adjunto do SEF, Carlos Patrício, explica que é a permanência irregular que justifica as expulsões administrativas, mas que “provavelmente mais de metade das situações de irregularidade serão de pessoas que cometeram crimes. No caso de Cabo Verde, sobretudo tráfico, um crime que causa alarme social”. O SEF respondeu ao PÚBLICO que não tem dados tratados sobre os perfil das pessoas expulsas de Portugal. O único estudo que aborda o perfil dos deportados de Portugal para Cabo Verde é da Organização Internacional para as Migrações e tem números de 2002 a 2012. Revela que, no caso de Portugal, no grosso das situações “desconhece-se os motivos da deportação”. Mas que a indocumentação justifica mais expulsões do que o tráfico de droga. Carlos Patrício sublinha que “o SEF tem de cumprir a lei, da forma mais humana e digna que conseguir”. Mas, “ou as pessoas se podem regularizar ou, se não podem, têm de ser afastadas. Não queremos é pessoas que fiquem num limbo, numa espécie de twilight zone. A pior coisa que pode acontecer é ficarem irregulares, sujeitos a serem vítimas de chantagens, pressões e exploração”. “Eu não sou português, não sou estrangeiro, não sou cabo-verdiano, eu não sou ninguém. ” Daniel Sousa Varela está preso há dois anos na prisão de Setúbal por furto, roubou uma carteira. Nasceu em Setúbal, em 1981. Disseram-lhe que “era o procedimento normal”, abrirem-lhe um processo de afastamento coercivo do território nacional. Significa que o podem mandar para a sua “terra”. Quantas ilhas tem Cabo Verde? “Sei lá, umas dez ou 12, acho que são mais de 12 [tem dez, nove habitadas]. De que ilha é a sua mãe? Acho que é da Praia [nome da capital de Cabo Verde, que fica na ilha de Santiago]. O que sabe de Cabo Verde? “Não sei nada, é só as conversas que ouço. Sei que lá não é fácil. As pessoas vivem mais à base da agricultura, das pescas, que são pastores. ”Eu não sou português, não sou estrangeiro, não sou cabo-verdiano, eu não sou ninguém. ”A mãe de Daniel veio de Cabo Verde para Portugal com seis anos, ainda o país africano, descoberto pelos portugueses no século XV, era colónia portuguesa. Daniel conta que Maria Rosa, que agora já é portuguesa e que o criou a ele e ao irmão sozinha, passou mal, “não lhe dávamos vida fácil, faltávamos às aulas”. Tem o nome dela em letras garrafais envolvido numa farfalhuda rosa tatuada no braço. Com 14 anos foi parar, com o irmão, a um centro educativo na Guarda, bem longe de Setúbal. “Lá amadureci. Foi bom. ” Foi lá que lhe resolveram o problema do bilhete de identidade português, era menos um problema com que a mãe tinha de se preocupar. Mas houve um dia, foi em 2008, trabalhava para a Portucel, em que Daniel perdeu a carteira com o bilhete de identidade lá dentro. Era preta, da Pull&Bear. São daquelas coisas que acontecem a toda a gente. “Nem tinha dinheiro, nem nada, só as coisas normais que uma pessoa tem dentro da carteira, cartão do utente, cartão de contribuinte. ” Deve ter ficado no café Picareta, onde ele passava todos os dias. Nunca ninguém a encontrou. Foi dar baixa na polícia. E foi pedir um novo Bilhete de Identidade (BI). Na Loja do Cidadão recolheram-lhe as impressões digitais, tirou a fotografia. Mas quando lá voltou para ir buscar o novo BI, disseram-lhe que nunca tinha sido português. “A sua nacionalidade não consta em sistema. ” Ele mostrou-lhes a fotocópia do BI português. A senhora olhou para ele e a primeira coisa que disse foi “se teve Bilhete de Identidade é porque era falso”. “Tiraram-me do sério. Expliquei-lhes que “nem tinha sido eu a tirá-lo, que tinha 14 anos, estava num centro educativo”. “A sua nacionalidade não consta em sistema. ” A vida dele mudou desde esse dia. Estava neste imbróglio quando a empresa para quem trabalhava começou a levar homens para ir trabalhar em Inglaterra. Mas para ir “só com o documento original”. Tentou noutra conservatória, talvez encontrasse alguém mais razoável, às vezes depende de quem apanhamos à frente. Ali conseguiu um papel a dizer que estava à espera do BI. Mas teve de sair do emprego por falta de documentos. Desde então não conseguiu mais do que biscates, servente de pedreiro, pintura. “Se me faltava um pacote de leite, de fraldas, dinheiro para pagar a renda, a luz. . . ”, conta Susana Santos, a companheira portuguesa de 29 anos, tinha de sair tudo do seu ordenado, os 618 euros que ganha numa fábrica que faz interiores para Land Rovers e Jaguares, e Daniel sentia-se mal, “dizia-me ‘tu é que és o homem da casa’”. É dessa altura o seu primeiro furto. Pena suspensa. Depois teve pena suspensa por tráfico de droga. “Tivemos grandes discussões, eu e a Susana. ” Voltou a roubar, uma carteira, é por isso que agora está na cadeia. “Eu não o apoio mas não o condeno, porque sei o porquê. Sem documentos não consegue trabalho. ”65% das expulsões de Portugal são processos administrativos do SEF, as restantes são decretadas por juízes“Desde que perdi a carteira, a minha vida descambou. Fiz tudo para ter os documentos. ” Mandaram-no ir à embaixada de Cabo Verde pedir o registo criminal. “Foi dado como desconhecido em Cabo Verde”, um sorriso, “então se ele nunca lá esteve”, diz Susana. Na junta de freguesia, disseram-lhe que era cidadão português e podia votar com o seu cartão de eleitor. Decidiu voltar a pedir a nacionalidade. E agora veio indeferida, “por crime de roubo”. A lei portuguesa prevê que está impedido de pedir a nacionalidade portuguesa quem tenha “prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos”. E está impedido de ter autorização de residência quem tenha cometido um crime com pena de prisão superior a um ano. “Empurraram-me para este lado da minha vida. Estou preso, não culpabilizo ninguém. Errei, estou a pagar o meu crime. Agora, em vez de tentarem ajudar-me, o mais fácil foi contactarem o SEF e instaurarem-me um processo por estar irregular. É mais fácil agarrarem num gajo e mandarem para Cabo Verde do que ajudarem-no. Não quero nada do Estado, não quero dinheiro, só quero o meu BI. ”Dizem-lhe para tratar do passaporte cabo-verdiano. “Não faço nada do que eles dizem, isso é facilitar-lhes a vida, a expulsão. ” Para o SEF, ele é “um indocumentado”. Já pensou em casar com a Susana, mas não conseguem fazer isso porque ele não tem documentos. Quando entrou na prisão, pediu para estudar, tem o 6. º ano, mas foi recusado por não ter documentos. Pediu muito para trabalhar, faz faxina. Quer muito que deixemos esta nota: “Queria agradecer à senhora directora do Estabelecimento Prisional de Setúbal por me deixar trabalhar. ”Uma das coisas que mais o irritam é que nos ofícios do tribunal é sempre Daniel Soares Varela, “titular do bilhete de identidade 14475140”, o que acusaram de ser falso. “Para o tribunal, sou português. Para ser alguém na vida, já não sou. ”A lei de estrangeiros de 2007 previa, no artigo 135, que não podiam ser expulsos de Portugal os cá nascidos, quem aqui vivesse desde antes dos dez anos e aqui residisse e quem tivesse “a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa ou estrangeira, a residir em Portugal, sobre os quais exerçam efectivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”. A lei mudou em 2012, por iniciativa do Governo de coligação PSD/CDS. Agora, todos estes limites à expulsão podem ser ignorados, caso esteja em causa “a segurança nacional ou a ordem pública”. A advogada Susana Alexandre chama à expressão “um enorme buraco negro. O entendimento actual do SEF é o de que qualquer pessoa que foi condenada atenta contra a ordem pública”. Esta e outras mudanças que agora fazem parte da lei de estrangeiros 29/2012, cuja polémica esteve sobretudo centrada na criação dos chamados vistos gold, foram apresentadas no Parlamento pelo então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo. Ao PÚBLICO, diz agora que desconhece “que aplicação teve a lei em concreto”, relembrando que a introdução dos limites à inexpulsabilidade “decorreu de questões suscitadas pelo SEF. Algumas propostas foram aceites, outras não. ”O ex-governante nota, no entanto, que, para serem expulsos pelo SEF, “têm de estar em situação irregular”, havendo um processo administrativo que concluiu “que a pessoa não tem condições para se legalizar”. “É preciso sublinhar que não são portugueses” e que a anterior legislação já previa que perdia direito a autorização de residência quem tivesse cometido crimes. A lei foi aprovada com os votos a favor do PS e os votos contra do PCP e do Bloco de Esquerda. A presidente da Associação Luso-Cabo-Verdiana de Sintra, Rosa Moniz, que teve um gabinete de apoio a reclusos, diz que “a lei actual veio facilitar muito as expulsões”. “A fragilidade está em não terem capacidade de resposta ao SEF. Às vezes, as situações podiam reverter-se se tivessem advogado. O advogado oficioso não faz nada. ” Assim, tudo “depende da humanidade da pessoa do SEF que pega no processo”. O director nacional adjunto do SEF diz que “há sempre uma ponderação”, mas que as excepções à expulsão “permitiam situações limite insustentáveis, em que nascidos em Portugal podiam ter cometido crimes gravíssimos contra a segurança interna e não podiam ser expulsos”. No caso de expulsos com filhos portugueses, nota que “há famílias desestruturadas, situações de violência doméstica”. A unidade familiar não é um princípio absoluto, sublinha. “As ordens de expulsão falam dos seus antecedentes criminais e três linhas a dizer que não exercem o poder paternal”, conta Susana Alexandre. “Parece óbvio que não pode ser levado literalmente, eles estão na cadeia. ”“Até 2012, havia boa vontade. ” A advogada diz que “enviava para o SEF certidões de nascimento dos filhos, comprovativos de visitas aos pais todos os domingos. Cheguei a mandar poemas e desenhos do Dia do Pai, a provar ligação. Agora isso já não chega. Deixou de haver inexpulsáveis”. Como Daniel seria, ao abrigo da lei anterior. “Vai-te ajudar ser punido duas vezes? Se é para me mandarem para Cabo Verde, mais vale condenarem-me a mais dez anos de prisão. Ao menos fico ao pé da minha família. ”O recluso tem direito a duas visitas por semana. Os domingos são dias em que verdadeiramente não se pode falar de nada importante, de medos e angústias, é o dia de irem as filhas Maria, de três anos, e Bruna, de oito. É o dia de mãe e filhas se levantarem por volta das seis da manhã para conseguirem estar lá às 7h30 e apanharem uma mesa, que é sempre a do canto, para o poderem ver uma hora, a começar às 9h45. Vão comendo o bolo de iogurte fatiado feito de véspera. Há umas 40 pessoas na sala, para se ouvirem acabam por falar aos gritos. Daniel pergunta-lhes como correu a escola, que músicas é que a Maria já sabe cantar, o Patinho, todas as da Violeta, ralha à Bruna, às vezes aplica-lhe castigos, “não vês mais televisão no quarto”. “A Bruna está a passar por uma fase difícil”, explica. É o dia de pai e mãe agirem como se estivesse tudo bem. Se eu for para Cabo Verde, digam-me lá o que eu que vou fazer? Se for é para ser sem-abrigo. Para falarem de coisas sérias, é à quinta, 15h45, vai só Susana, e aí podem falar do que sentem. Ela chora, às vezes brinca, diz que vão todos para Cabo Verde, como aquelas pessoas que vão lá de férias. “É a mesma coisa que pegarem em mim e mandarem-me para França ou Inglaterra. Não é o meu país. Não tem lógica. Não é justo”, diz Susana. Daniel tinha direito a uma saída precária para ir a casa em Janeiro, não lha deram por causa do processo de afastamento coercivo, que ainda não tem decisão de ordem de expulsão. A filha mais velha pergunta muitas vezes: “Qual é o dia em que o pai vem? Mostra no calendário, mãe. ”Na cadeia, aos estrangeiros com processo de afastamento coercivo do território nacional, acontece esta coisa que parece estranha, contranatura para um recluso português — vive-se com “medo da soltura”, do fim da pena, ou do meio da pena, porque podem ter “condicional”, liberdade significa serem livres em Cabo Verde. “Muitos recorrem, muitos têm sorte de ficar cá, outros não tiveram tanta sorte. ” Faz dois terços da pena em Março, Daniel, 27 anos, pode sair em liberdade condicional. “Se eu for para Cabo Verde, digam-me lá o que eu que vou fazer? Se for é para ser sem-abrigo. Então se cá eu não consigo trabalho. Muita gente foge de lá para procurar oportunidades cá. ” A cadeia está cheia deles. Às vezes, Daniel pergunta-se porque é que há tantos cabo-verdianos presos. Quase um quinto dos reclusos nas prisões portuguesas são estrangeiros (17, 3%), a principal nacionalidade (31%) é a cabo-verdiana, quando os estrangeiros legalizados representavam em 2014 apenas cerca de 3, 9% da população residente e a comunidade cabo-verdiana (legalizada) 0, 4%. Olhando assim para os números, parece que é justificada a ideia de que a insegurança está associada à vinda de estrangeiros, a chamada “crimigração”. Jorge Malheiros, investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, remete para um estudo de 2010 que conclui que, em Portugal, os estrangeiros não cometem mais crimes violentos (homicídio, roubo, ofensas à integridade física e violação) do que os portugueses em geral. No seu estudo “Os cidadãos estrangeiros nas prisões portuguesas: Sobrerrepresentação ou ilusão”, avança com algumas possíveis explicações para o facto de haver tantos estrangeiros nas prisões, nomeadamente cabo-verdianos: ausência de visto de residência, maior dificuldade em obter uma boa defesa, menor conhecimento da lei portuguesa, factores que tornam os imigrantes muito vulneráveis quando conduzidos a tribunal, potenciando, dessa forma, a detenção. É neste contexto que Jorge Malheiros se habituou a ouvir o já costumeiro argumento, “pois, mas os portugueses quando emigram são ordeiros”. É “o mito do bom emigrante português”. Que também não é verdadeiro. “Se for às prisões luxemburguesas, também há uma sobrerrepresentação de portugueses. ”“Claro que há uma componente de responsabilidade individual”, mas talvez a principal razão para haver tantos estrangeiros nas prisões radique “em situações de exclusão social”. Cabo-verdianos em Portugal, portugueses no Luxemburgo. Embora os deportados portugueses vindos dos Estados Unidos tenham recebido maior atenção mediática, graças ao caso açoriano, o maior número de deportados portugueses veio, em 2014, primeiro do Canadá (160) e de um dos principais destinos actuais da emigração portuguesa, o Reino Unido, de onde foram expulsos 72 portugueses, refere o Relatório Anual de Segurança Interna desse ano. Há 1658 portugueses presos em todo o mundo. Tal como Portugal é, ao mesmo tempo, um país de emigrantes e que acolhe imigrantes, também é um país que deporta e recebe deportados. Mas deporta mais estrangeiros do que recebe deportados portugueses: em 2014 recebeu 302 deportados de outros países e expulsou 402 estrangeiros (263 foram expulsões administrativas). Segundo os números do SEF, Portugal está, em termos gerais, a deportar cada vez menos, a par com o decréscimo do número de imigrantes a viver no país. O Brasil, a principal comunidade estrangeira a viver no país, mantém-se de longe como primeiro destino de expulsão desde há dez anos, a decrescer; Cabo Verde, o segundo. Uma coisa é castigo, outra é vingança. Joguei, perdi, tem de pagar e eu paguei caro. Não me sinto em dívida com a sociedade. Por que razão tenho de ser expulso?”Mas 2010 marca uma viragem no caso do arquipélago africano, nesse ano, o SEF passa a expulsar mais do que os tribunais. De 2010 a 2014, o SEF expulsou administrativamente 240 pessoas para o arquipélago, quando de 2005 a 2009 tinha expulsado apenas 60. Passa-se de uma média de 12 expulsões por ano para o quádruplo, 48. Apesar de serem cada vez mais, em Cabo Verde ninguém fala dos deportados de Portugal. Nem na rua, nem em jornais, nem em debates políticos. É como se fossem invisíveis. Ao contrário dos deportados vindos dos Estados Unidos. Desses não há quem não tenha ouvido falar. Mal. “Todos, farinha do mesmo saco. ” Foi das primeiras frases que Orlando Barros, deportado dos Estados Unidos, aprendeu em português, ele que continua a exprimir-se em inglês. Eles são supostamente a origem de um fenómeno de criminalidade que em Cabo Verde passou, sintomaticamente, a ser designado pela palavra inglesa “thugs”, ou, em português, “bandidos”, traduz Orlando. A culpa da violência, dos crimes, da chegada dos gangs é atribuída aos thugs e os thugs são, em teoria, os infames deportados dos Estados Unidos. “Mesmo que os deportados de Portugal cometam crimes, a culpa é sempre nossa. Nós destoamos”, diz Orlando, que nos Estados Unidos esteve preso por assaltar bancos e hoje tira parte dos seus rendimentos de um castelo insuflável azul com princesas da Disney, mandado vir dos Estados Unidos para as crianças locais, um “pula-pula”. Deve-o ao empurrão de “Donana”, o nome da fundação de inspiração católica que vai buscar o título à forma como é conhecida a sua presidente, “Dona Ana” Hopffer de Almada, professora universitária de Biologia, benemérita nas horas vagas. Na sede da fundação destaca-se um quadrinho de bordado a ponto cruz “Amar é fazer o bem!. . . Sem olhar a quem” e uma parede repleta de anjos, mais de mil, dados por uma senhora muito pia, vindos de todas as proveniências da emigração cabo-verdiana, há um anjinho em forma de estátua da liberdade, God bless America, um querubim com uma placa “Em Fátima rezei por ti”. “Donana loves her angels”, comenta Orlando, perante a galeria. Ali o termo “deportado” está proibido. “Preferimos falar de retornados. ” Até agora, a fundação só ajudou pessoas dos Estados Unidos, como Orlando. “Nunca nenhum retornado de Portugal veio ter connosco, mas são bem-vindos. Aceitamos qualquer retornado. ” Ela não conhece nenhum. Nem sabia que existiam. É quase como se os deportados de Portugal fossem uma lenda. “Eu já ouvi falar deles”, diz Orlando. Qual é a imagem dos deportados de Portugal? “Qual imagem, eles não têm imagem, eles não existem”, responde. “Toda a gente sabe quem nós somos, os de Portugal ninguém nota. Eles podem esconder-se, falam português, vestem-se como os de cá, nós não nos podemos esconder. ”“É mais fácil passar desapercebido na cidade. Na aldeia ou na vila, é pior. ” José Carvalho de Pina está hoje em negócios na aldeia da sua infância, onde guardava cabras, o Mangue. No meio do campo, abranda o carro para falar com um conhecido de criança vindo do campo, terá a sua idade. “És o filho do Toni. ” “Tens boa memória”, responde José a sorrir, agradado por ainda ser recordado. Mas o diálogo que seguia fluido empanca: “Tu estás em Cabo Verde ou estás fora?” — pergunta normal para um país que tem mais população emigrada do que a viver em Cabo Verde — “Eu estava a viajar, mas já vim há três anos. ” E José Carvalho de Pina interrompe ali a conversa e despede-se. Se ele ainda vivesse no Mangue, talvez fosse mais difícil esconder que é deportado. Ele vive na capital. Mas quem o conhece, vizinhos, família, sabe. Os comentários acerca deles, de regressos misteriosos como o dele, acontecem na sua ausência. “A família tenta esconder. A minha irmã quando me acusam defende-me. ” Os que o conhecem ouviram dizer que esteve preso, no caso dele foram muitos anos, não há como esconder e, claro, as pessoas perguntam-se: o que é que este fez?No caso de José Carvalho de Pina, é uma longa história. “Houve uma situação de envolvência com negócios de amigos. Pediram-me um favor e eu fiz”, maneira enrolada de explicar como, da primeira vez que esteve preso, tinha 21 anos, tinha terminado o liceu, vinha com ideias de ir para a faculdade, se viu envolvido num episódio de tráfico de droga em Faro em que acabou por se entregar à polícia. Apanhou seis anos e meio. “Da prisão ou sais melhor, ou sais pior. Eu não sabia nada. Aprendi tudo lá dentro. Havia lá um português de 17 anos que roubava muito, era o meu melhor amigo lá dentro, ensinou-me muito. ” Por isso, na segunda vez, foi de forma consciente e voluntária que se envolveu em tráfico, com nova prisão, fuga da cadeia com grades serradas com uma lâmina-serra como a que o pai carpinteiro usava, com direito a notícia de jornal, cinco anos fugido, apanhado em França. Prisão de novo, cinco anos, com direito a saída precária em 2010. E, dessa vez, “Eu regressei a correr à prisão, à hora exacta. ” A técnica disse-lhe “achava que não ias voltar”. Três dias depois do pontual regresso, recebeu a ordem de expulsão para Cabo Verde. “Senti-me revoltado. ” Ainda saiu em liberdade, tentou legalizar-se, mas nunca conseguiu. “Uma coisa é castigo, outra é vingança. Joguei, perdi, tem de pagar e eu paguei caro. Não me sinto em dívida com a sociedade. Por que razão tenho de ser expulso?”“Todo o ser humano é um criminoso em potência”, leu num livro da biblioteca da prisão. Decorou a frase. “Não me vejo como um criminoso, tomei uma atitude errada e paguei. A minha mãe sempre me disse: ‘Paga-se com a consciência. ’ Eu não nasci torto, eu nasci direito. ”Nos dois anos que leva de Cabo Verde, depois de 17 em Portugal, conseguiu reorganizar-se. Tem a companheira Amália, e um filho bebé que hoje está febril e que ele quer muito ter ao colo para ficar na fotografia. Faz negócios entre ilhas, trocando o que uma tem com o que a outra não tem. Leva verduras, cebolas, batatas de Santiago para o Sal, e traz de volta búzios para servir de entrada nos restaurantes da Praia. José, camisa de risquinhas impecavelmente engomada, ténis Ralph Lauren, calça de sarja, conta muitos, muitos pormenores sobre o seu negócio, demasiados, e depois se percebe que não está apenas a falar connosco. A minúcia do relato, o bebé Lucas ao colo, fazem parte de uma história que ele quer contar, à distância, à mãe que vive no Algarve e que teve dois ataques cardíacos quando ele estava atrás das grades, que vivia intranquila com as visitas do filho foragido, que faz hemodiálise dia sim, dia não. Através de nós quer dizer que ele, o filho mais novo de 11, o único “cadastrola”, agora faz tudo bem. Constança, a mãe de José, tem 86 anos. A ordem de expulsão impede-o de voltar a Portugal durante sete anos. “Faltam quatro. ”Mas essa é uma contagem interior que partilha com muito poucos. O que ele e os que vieram expulsos de Portugal querem é passar despercebidos. “Os de Portugal vêm e calam-se. É tabu. Conheço um deportado que tinha tanta vergonha que não foi ter com a mãe, andou uns dias na rua e teve de se render e teve de ir ter com a mãe”, “tenho um outro amigo que não sai de casa”. Por mais que tentem camuflar-se, muitos sabem quem eles são. Nota-se. São os que chegam de mãos a abanar. “Por que razão chega uma pessoa de um voo internacional sozinha e sem bagagem sem ser um saco de mão? Se chegas sem nada, é porque és deportado. ” José voltou com 200 euros. É verdade que há a vergonha da expulsão por terem cometido crimes, mas talvez mais pesado do que isso num país como Cabo Verde — meio milhão vive dentro, estima-se que um milhão viva fora — é a vergonha do fracasso. Eles são o sonho da emigração gorado, a viagem ao contrário, eles foram devolvidos sem nada para mostrar pela tentativa. De quem saiu e regressa espera-se que tenha presentes e coisas para dar, como quando ele era pequeno e “os tios a viver na Europa lhe traziam brinquedos. A pessoa sente-se perseguida pelo sonho do emigrante”. Quando aceita falar na escuridão do seu café na cidade da Praia, é quase como se António Lopes tivesse cometido um crime mais grave do que o tráfico de droga. Ele voltou por estar ilegal. O seu crime foi não ter conseguido. Entrou em Portugal com visto de trabalho em 2003, foi expulso a 6 de Dezembro de 2011. Nunca conseguiu ter documentos. Autorização de residência dão ao estrangeiro que dê provas de ter “meios de subsistência” — uma retribuição mínima mensal que ronda os 500 euros com descontos para a segurança social — e ele o máximo que conseguiu “foi biscates nas obras de uma, duas semanas” e a venda de sucata, fogões e frigoríficos velhos. Foi por isso que, quando numa rusga do SEF, o apanharam em Algueirão (Sintra) e o levaram para o aeroporto da Portela com voo directo para a Praia, sentiu um alívio quase inconfessável. Era um álibi. Não tinha sido ele a desistir, tinham-no obrigado. “Fui directo para a minha casa. ”Chegou a tempo de ver o pai morrer. “Se calhar, estava à espera de mim. ” E com a sua morte acabou por herdar pouco, mas o suficiente para montar o seu “café Lapa”, um espaço de paredes toscas e telhado de zinco. “Desculpe de estar tudo velho”, diz sobre o seu café novo. Disseram-me que eu nunca trabalhei em Portugal. ” Como, se ele ajudou a construir o El Corte Inglés, a Gare do Oriente, às vezes jornadas de 19 horas de trabalho“Lá já encontrei a crise. Pelo menos cá estou ao pé da família. Tenho oito filhos em Cabo Verde. Pensei que lá estava melhor. Não quero voltar. Talvez se fosse mais novo. ” Mas isso é António, 50 anos. Assomada é a segunda cidade de Santiago, da Praia demora-se a lá chegar uma hora, numa ilha que leva duas horas a percorrer de uma ponta à outra. É início da tarde de uma quinta-feira e há dezenas de jovens na rua com ar desocupado. Numa esquina há um jovem que destoa dos outros, falta-lhe um dente da frente, mas não é por isso, é pela postura, parece que está pronto a ir em direcção a algum sítio. Tem vestido uns calções pretos e brancos debruados a amarelo, ténis da Reebok. Está trajado para correr, como se estivesse junto a uma meta, pronto a partir para uma prova de atletismo que nunca mais começa. Chamam-lhe Obikwelu, é a alcunha que trouxe de Portugal e que quase apagou o seu nome de baptismo, Nelson Lopes Tavares. Obikwelu foi deportado, em 2010, mas é difícil que acreditem que não foi “por ser bandido. Eu não sou traficante, eu sempre trabalhei”. Foi para Portugal com 17 anos, viver com o tio, “trabalhava até ao sábado, ao domingo ia à missa”. O problema é que em Portugal ele nunca foi Nelson, só foi Obikwelu, que era como o chamavam, por ter a mania das corridas. Francis Obikwelu é um célebre atleta medalhado nascido na Nigéria naturalizado português. A condição imposta pela senhora amiga que aceitou levá-lo para Portugal, em nome do filho Edmilson, foi não poder levar consigo nenhum documento que pudesse contrariar a história de que ele era Edmilson. “Nem passaporte cabo-verdiano. Não levei nada. Não podia levar nada. ”Sempre que alguém saía das obras, ele ficava a substituí-la, descontou para a segurança social “de um tal João, de um tal Edmilson”, como aquele que ele era suposto ser, e trabalhou em obras em que não se importavam que ele não fosse ninguém. Arranjou trabalho no Algarve e conheceu Telma, viviam juntos há sete anos. Tudo certinho, a renda sempre em dia, recibos no nome dela. Era um Dia dos Namorados e foram passear a Faro. “Apanharam-me. Tinha de ser recambiado. ”“Disseram-me que eu nunca trabalhei em Portugal. ” Como, se ele ajudou a construir o El Corte Inglés, a Gare do Oriente, às vezes jornadas de 19 horas de trabalho. “Os patrões conheciam-me e gostavam de mim. Prenderam-me numa segunda, na sexta estava de volta a Cabo Verde. ”“Os meus pais ficaram abalados. Somos dez filhos, estão todos aqui. Fui eu o único que saí, e não consegui. Havia meses que conseguia mandar 50 a 80 euros por mês, umas migalhas, mas ajudava. ”Mas ele e a namorada portuguesa tinham um plano. Ele veio numa semana, a Telma veio na semana a seguir. Casaram-se por procuração. Estava convencido de que bastaria para ele poder regressar, afinal, ele agora era casado com uma portuguesa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Era uma questão de tempo. Obikwelu não tinha fracassado. Não era como os outros “recambiados”. Amigos, familiares, pediam-lhe o que tinha trazido, os ténis Puma, os Nike, os Reebok. “Dei ténis, dei roupa, dei tudo, eu ia voltar. ” Como é que ele podia negar? Ele ia voltar para Portugal, para a Europa, lá ia poder comprar outros Puma, outros Nike, outros Reebok, não era como eles, que iam ficar sempre em Cabo Verde. “Quando vi que não dava para voltar. . . Fiquei sem nada. ”Para continuar a correr em Cabo Verde, um amigo português com quem fala por messenger, o Tiago, mandou-lhe pelo correio os únicos ténis que tem agora, os Reebok pretos e verdes que traz calçados. Treina quatro horas por dia, já tirou passaporte cabo-verdiano no seu nome verdadeiro. Nelson Lopes Tavares está pronto para voltar.
REFERÊNCIAS:
“Nem para morrer se pode ser cigano”
Associações ciganas pedem intervenção do Governo e apelam à CDU para que tome "as devidas providências". (...)

“Nem para morrer se pode ser cigano”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 Mulheres Pontuação: 6 Ciganos Pontuação: 21 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Associações ciganas pedem intervenção do Governo e apelam à CDU para que tome "as devidas providências".
TEXTO: A Associação Nacional dos Mediadores Ciganos, Letras Nómadas, Sílaba Dinâmica de Elvas e Associação para a Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas manifestaram nesta sexta o seu “repúdio” pelos últimos acontecimentos na Junta de Freguesia de Cabeça Gorda no concelho de Beja, frisando que “nem para morrer se pode ser cigano”. Reportam-se à decisão tomada pelo presidente da junta, Álvaro Nobre (CDU), que impediu a deposição do corpo de José António Garcia, cidadão cigano e pastor da Igreja Evangélica de Filadélfia, alegando que não tinha nascido nem era morador na freguesia. Acontece que, contrariamente ao que disse o autarca, o cidadão cigano que faleceu “era morador recenseado” na freguesia e a viúva “tem as suas raízes na Cabeça Gorda”, lê-se no comunicado emitido pelas associações ciganas em que repudiam o argumento de Álvaro Nobre de que o “falecido passava a maior parte do seu tempo noutras freguesias vizinhas”. E perguntam se “às pessoas não ciganas de Cabeça Gorda que, por questões laborais, passam a maior parte do seu tempo fora da freguesia” o critério do autarca é o mesmo. A justificação apresentada pelo autarca revela “um desrespeito moral e físico pelo cidadão falecido e sua família, além de ser claro estarmos perante um acto de discriminação racial”, refere o comunicado das associações, cujo tema é "Nem para morrer se pode ser Cigano?!"Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “A violação da lei é mais que visível neste caso”, assinalam as associações ciganas, assumindo que vão recorrer a “todos os meios democráticos, sejam ele judiciais ou através dos mecanismos democráticos ao alcance, para que se faça justiça e se puna este autarca”. E neste sentido solicitam à ministra de Administração Interna e ao ministro-adjunto Eduardo Cabrita, através da secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade e Alto Comissariado para as Migrações, que “se posicionem nesta situação" que consideram "ser deplorável, indigna de um estado de direito”. O apelo é extensivo “ao Comité Central do PCP bem como aos partidos da coligação CDU” para que tomem as “devidas providências face a estes acontecimentos que envergonham os partidos e o país”.
REFERÊNCIAS:
Partidos PCP