Serra Leoa quer "diamantes de sangue" que Taylor ofereceu a Naomi Campell
O Comissariado dos Direitos Humanos da Serra Leoa pediu a devolução dos “diamantes de sangue” que o ex-Presidente da Libéria terá dado à supermodelo britânica Naomi Campbell, em 1997, quando se encontraram na África do Sul. (...)

Serra Leoa quer "diamantes de sangue" que Taylor ofereceu a Naomi Campell
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2010-08-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Comissariado dos Direitos Humanos da Serra Leoa pediu a devolução dos “diamantes de sangue” que o ex-Presidente da Libéria terá dado à supermodelo britânica Naomi Campbell, em 1997, quando se encontraram na África do Sul.
TEXTO: “Se essas pedras preciosas são realmente o produto do conflito na África Ocidental, devem ser convertidas em dinheiro que possa ser usado em proveito das vítimas da guerra civil de 11 anos que se travou na Serra Leoa”, de 1991 a 2002, disse Yasmin Jusu-Sheriff, a comissária dos Direitos Humanos, internacionalmente conhecida como defensora dos direitos das mulheres . A entidade que dirige solicitou ao Presidente da Serra Leoa, Ernest Bai Koroma, e ao Tribunal Especial criado pelas Nações Unidas para os crimes cometidos no país - que está a julgar Taylor e levou Naomi Campbell a depor - que “recupere os diamantes de sangue” entregues à modelo. Estes terão ido parar às mãos dela após um jantar oferecido pelo Presidente sul-africano Nelson Mandela a uma série de personalidades internacionais, num evento de beneficiência. O depoimento de Campell no tribunal de Haia tem estado no centro as atenções, dado as notícias de que Taylor lhe teria oferecido alguns diamantes em bruto que eram oriundos do conflito na Serra Leoa e que ele levara consigo a fim de adquirir na África do Sul mais armamento continuar a guerra na Serra Leoa, que ele ajudava a fomentar. Evasiva, a supermodelo disse apenas aos juízes que alguns homens lhe tinham batido à porta do quarto e entregue “umas pequenas pedras sujas”. Mas a sua agente dessa altura, Carole White, e a actriz norte-americana Mia Farrow, que também estavam presentes no jantar de Mandela, foram mais explícitas: as “pedras” eram nem mais nem menos os diamantes que Charles Taylor lhe prometera durante a refeição. Campbell disse que entregara estas “pedras sujas” ao então director executivo da Fundação Nelson Mandela para o Auxílio à Infância, Jeremy Ratcliffe. Ratcliffe entregou finalmente agora três “diamantes de sangue” à polícia sul-africana. Taylor está há três anos a ser julgado pelos crimes de guerra de que é acusado na Serra Leoa, dando aos rebeldes da Frente Revolucionária Unida (RUF) as armas de que necessitavam, em troca dos diamantes que eles iam extraindo. A República da Serra Leoa é um dos países com menor Índice de Desenvolvimento Humano, só ultrapassada no último relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) pelo Afeganistão e o Níger.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
José Eduardo dos Santos tem poderes "quase absolutos"
O jornalista angolano Mário Paiva, freelancer especializado na área económica, afirmou hoje ao PÚBLICO, pelo telefone, não “estar consumada a transição democrática” no seu país, que amanhã completa 35 anos de independência. (...)

José Eduardo dos Santos tem poderes "quase absolutos"
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2010-11-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O jornalista angolano Mário Paiva, freelancer especializado na área económica, afirmou hoje ao PÚBLICO, pelo telefone, não “estar consumada a transição democrática” no seu país, que amanhã completa 35 anos de independência.
TEXTO: Os “poderes quase absolutos do Presidente da República”, os “cenários autoritários” e as restrições à liberdade de imprensa e de expressão caracterizam, na óptica daquele profissional, o presente momento da vida em Angola, onde ainda na segunda-feira foi bloqueada em Luanda uma manifestação que cerca de mil mulheres procuravam fazer contra a violência doméstica. “Consolida-se o partido-estado; e grupos alegadamente privados, mas ligados ao poder, estão a tomar conta de semanários que eram considerados independentes, sendo esta mais uma grande ameaça ao pluralismo”, disse Paiva, que já trabalhou para a agência britânica Reuters e para a alemã DPA, entre muitos outros órgãos da informação internacional. “Trinta e cinco anos depois de proclamada a independência e oito anos depois de terminada a guerra civil (entre o Estado-MPLA e a UNITA), Cabinda continua a registar ataques, como o que ainda há dias se verificou contra uma viatura da Sonangol, com mortos e feridos. Lá não há uma solução militar; terá de ser política, com o empenhamento de todas as forças e um diálogo inclusivo”, prosseguiu aquele antigo militante de movimentos estudantis, que logo aos 18 anos foi “preso e torturado, enquanto outros eram assassinados”. O profundo fosso social existente e que está a agravar todo o tipo de tensões, “podendo potenciar novos conflitos”, foi outra das facetas da realidade angolana destacadas por Mário Paiva, que era adolescente no dia 11 de Novembro de 1975, quando o MPLA proclamou unilateralmente a independência do país, depois de não se ter conseguido uma concertação com as demais forças políticas. “O grande desnível social tende a transformar Angola numa sociedade violenta, com um número reduzido de muito ricos e um número imenso de muito pobres”, sintetizou aquele jornalista. Na semana passada, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no seu Índice do Desenvolvimento humano, colocou os angolanos no lugar 146, abaixo do Uganda, do Senegal e do Haiti, com uma esperança de vida de uns escassos 48, 1 anos.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra violência adolescente social mulheres doméstica
Portugal é o terceiro país da Europa com maior taxa de adultos com VIH
Em Portugal estima-se que vivam 42 mil pessoas com o vírus da imunodeficiência humana (VIH), responsável pela sida. Um valor que coloca o país como o terceiro com maior taxa de prevalência da infecção em adultos na Europa Ocidental e Central, logo depois da Estónia e da Letónia. (...)

Portugal é o terceiro país da Europa com maior taxa de adultos com VIH
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-11-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Portugal estima-se que vivam 42 mil pessoas com o vírus da imunodeficiência humana (VIH), responsável pela sida. Um valor que coloca o país como o terceiro com maior taxa de prevalência da infecção em adultos na Europa Ocidental e Central, logo depois da Estónia e da Letónia.
TEXTO: Os dados fazem parte do Relatório Global da ONUSIDA - Epidemia da sida, divulgado esta terça-feira, e que neste campo volta a confirmar que o país está em contracorrente com a tendência mundial: pela primeira vez, desde 1999, o número de novos doentes a nível mundial diminuiu 19 por cento, passando de 3, 1 milhões de pessoas para 2, 6 milhões em 2009. Em Portugal, pelo contrário, o número total de infecções (prevalência) subiu de 31 mil pessoas para 42 mil (35 por cento), das quais 13 mil são mulheres, indica o documento. Aliás, a diferença entre homens e mulheres está também espelhada no risco de contrair VIH, que nos homens é de 25 por cento e nas mulheres baixa para dez. Preservativo ainda é esquecidoEm sentido contrário está o uso de preservativo como método contraceptivo, que é mais comum nos homens entre os 15 e os 49 anos que tiveram mais do que um parceiro sexual nos últimos 12 meses (50 por cento) do que nas mulheres (45 por cento). Neste ponto, é de destacar que se se olhar para os dados apenas entre os 15 e os 19 anos a percentagem sobe para 74 por cento nos homens e 65 nas mulheres. No que diz respeito à taxa incidência, isto é, ao aparecimento de novos casos, e não ao número total, o relatório mostra que há muitas semelhanças entre os países da Europa Ocidental e Central (um total de 33 países). Mesmo assim, também neste parâmetro Portugal volta a ser, em 2009, o quinto país com um maior número de novos casos (entre 1000 e 2300), um valor que só é superado por França, Itália, Alemanha e Espanha. Ainda assim, existem alguns dados positivos a destacar, como o facto de 100 por cento dos doentes com tuberculose infectados com o vírus da sida terem acesso ao tratamento com anti-retrovirais. Contudo, nos toxicodependentes essa percentagem derrapa para os dez por cento. A taxa de sobrevivência de doentes infectados com VIH que fazem anti-retrovirais situa-se nos 80 por cento e o todo o sangue doado é objecto de análise para o VIH. Na tabela onde é feita a contabilização das mortes relacionadas com sida, Portugal fica-se pelas 500, o que corresponde ao sexto lugar, em empate com Estónia e Grécia. Direitos humanos e igualdade de género protegidosComo pontos a destacar sobre Portugal, o relatório - que inclui dados de 182 países de todo o mundo -, no capítulo sobre os direitos humanos e a igualdade de género, destaca que a legislação portuguesa prevê a protecção e a não-discriminação de pessoas infectadas com o vírus da sida, dirigindo-se também a grupos mais específicos como as mulheres ou os toxicodependentes. Além disso, todas as escolas disseram ter incluído de alguma forma a abordagem deste tema junto dos alunos. A ONUSIDA lembra que o objectivo continua a ser "discriminação zero, zero novas infeções por VIH e zero mortes relacionadas com a sida", o que passa pelo acesso à prevenção da doença, ao tratamento em caso de infecção e a cuidados e apoio. E, a nível mundial, dá como exemplo dos ganhos conseguidos o facto de, dentro de um total de 15 milhões de pessoas que precisam de anti-retrovirais nos países de rendimento baixo ou intermédio, 5, 2 milhões já terem acesso a estes fármacos. Os dados são especialmente animadores em África, onde o aparecimento de novos casos caiu 25 por cento entre 2001 e 2002. "As maiores epidemias na África subsariana – Etiópia, Nigéria, África do Sul, Zâmbia e Zimbabwe – ou estabilizaram ou apresentam sinais evidentes de declínio", refere o estudo. E lembra: "Parar as infecções, salvar vidas e melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem com o VIH continuam a estar no centro da resposta global à sida. Os sucessos e os desafios contínuos, descritos neste relatório, devem servir de catalisadores para a acção continuada. "
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos homens humanos campo doença igualdade género estudo sexual mulheres discriminação
Morreu Rita Levi-Montalcini, a grande dama da ciência italiana
Aos 103 anos, a Prémio Nobel da Medicina de 1986, co-descobridora do factor de crescimento NGF, morreu na sua casa em Roma (...)

Morreu Rita Levi-Montalcini, a grande dama da ciência italiana
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.4
DATA: 2012-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Aos 103 anos, a Prémio Nobel da Medicina de 1986, co-descobridora do factor de crescimento NGF, morreu na sua casa em Roma
TEXTO: A cientista e senadora italiana Rita Levi-Montalcini, Prémio Nobel da Medicina de 1986, morreu neste domingo, aos 103 anos, na sua casa, em Roma. “O corpo faz aquilo que quer. Eu não sou corpo: sou a mente”, disse numa entrevista, quando cumpriu 100 anos. Infatigável, a cientista nascida em Turim a 22 de Abril de 1909 numa família judia sefardita (pai engenheiro, mãe pintora), foi nomeada em Agosto de 2001 senadora vitalícia pelo então Presidente da República italiana Carlo Ciampi, pelos seus “grandes méritos no campo científico e social”. Ela não parava. “Vou muito bem, física e moralmente, e nunca trabalhei com tanto entusiasmo como neste último período da minha vida”, garantia no seu 101º aniversário, meses depois de ter partido um fémur. Membro das mais prestigiadas academias científicas internacionais, como a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos ou a Royal Society no Reino Unido, Rita Levi-Montalcini foi a primeira mulher italiana galardoada com um Nobel científico e também a primeira a ser admitida na Academia Pontifícia de Ciências. A investigação científica que lhe valeu o Nobel da Medicina de 1986, partilhado com o norte-americano Stanley Cohen, que com ela trabalhou na década de 1950 na Universidade Washington em St Louis (Missouri, EUA), foi a descoberta de uma proteína importante para o crescimento, manutenção e sobrevivência dos neurónios – um factor de crescimento. Na verdade, foi o primeiro de muitos outros factores de crescimento a ser descrito, e recebeu o nome de NGF (nerve growth factor). Esta proteína evita ou pelo menos reduz a degeneração celular, e problemas na sua produção podem estar relacionados com várias doenças em que são afectadas as células nervosas, como Alzheimer, esclerose múltipla, demências e esquizofrenia. O factor de crescimento NGF pode também desempenhar papéis importantes nas doenças cardiovasculares. “A minha inteligência? Um pouco acima de medíocre. Os meus únicos méritos foram empenho e optimismo”, disse Rita Levi-Montalcini, cujo leve sorriso era uma imagem registada. Foi a galardoada com o Nobel que mais tempo viveu, até agora. Rita Levi-Montalcini, no entanto, teve de enfrentar a vontade do pai para se tornar cientista: não era uma coisa comum uma rapariga inscrever-se em Medicina na Universidade de Turim. Mas ela conseguiu e saiu de lá com o curso feito em 1936. Pouco tempo depois, no entanto, teve de deixar Itália, por causa das leis raciais do ditador Mussolini, porque a sua família era judia. Foi para a Bélgica, e ainda voltou para Itália, mas não tinha condições para trabalhar, e arriscava a deportação para os campos da morte. Após a guerra, recebeu um convite para trabalhar nos EUA – onde fez a sua carreira científica. Só voltou a viver em Itália em 1977, depois de se reformar. Esteve na origem da criação, em 2002, do Instituto Europeu de Investigação sobre o Cérebro (EBRI, na sigla em inglês), com sede em Roma; presidia a uma fundação com o seu nome, criada em 1992 e que tinha por objectivo financiar os estudos de mulheres africanas, na Etiópia, no Congo e na Somália. No regresso a Itália e ao continente europeu, foi coberta de elogios, que ontem se repetiram em Roma. Muitos políticos recordam-na com palavras bonitas. Mario Monti, o primeiro-ministro cessante, fala de uma mulher carismática e tenaz, que lutou toda a vida para defender os valores em que acreditava. “Representou a consciência civil, a cultura e o espírito de investigação do nosso tempo. Soube juntar o rigor científico com o nível máximo de humanidade”, disse Gianni Alemanno, presidente da Câmara de Roma.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Grada Kilomba é a artista que Portugal precisa de ouvir
Escritora e artista portuguesa a residir em Berlim, é um nome cada vez mais celebrado na arte contemporânea. A partir de hoje temos as suas primeiras exposições individuais em Portugal. Vamos ouvir Grada Kilomba – e isso é olhar de frente para a história colonial, é olhar de frente para nós. (...)

Grada Kilomba é a artista que Portugal precisa de ouvir
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Escritora e artista portuguesa a residir em Berlim, é um nome cada vez mais celebrado na arte contemporânea. A partir de hoje temos as suas primeiras exposições individuais em Portugal. Vamos ouvir Grada Kilomba – e isso é olhar de frente para a história colonial, é olhar de frente para nós.
TEXTO: “Vieram ter comigo e disseram: ‘mas como é que aqui em Portugal não se sabe quem tu és?’”Grada Kilomba é a artista que Portugal precisa de ouvir, mas a quem Portugal andou a prestar pouca atenção durante demasiado tempo. Escritora, professora e artista portuguesa a residir em Berlim, é um nome cada vez mais requisitado e celebrado nos circuitos internacionais de arte contemporânea, mas que nos últimos anos contou apenas com uma curta apresentação por cá, em 2015, nos Encontros para Além da História do Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Finalmente, isso está a mudar. A 30 de Junho trouxe ao Porto a performance Illusions, o pontapé de saída de Incerteza Viva: Uma exposição a partir da 32. ª Bienal de São Paulo, no Museu de Serralves. Este Outubro, em Lisboa, têmo-la em dose quádrupla. Primeiro na Galeria Municipal da Avenida da Índia, com a primeira individual em Portugal, A Língua Mais Bela/ The Most Beautiful Language (de 26 de Outubro a 4 de Março). Também a 26 de Outubro inaugura Secrets To Tell no MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia. Segue-se uma conversa no Maria Matos sobre o seu trabalho, a 28 de Outubro, com Carla Fernandes, jornalista e mentora do audioblogue AfroLis (quem não conseguir estar presente terá sempre o live streaming). Uma outra conversa com a artista acontecerá na Hangar, a 3 de Novembro. “É esquizofrénico mostrar o meu trabalho regularmente em tantos sítios, do Brasil à África do Sul, passando por várias cidades da Europa, e ter sido tão difícil fazê-lo em Portugal”, diz ao Ípsilon. Na verdade, mais do esquizofrénico, é perversamente coerente: entrar no trabalho de Grada Kilomba – nas suas instalações de vídeo e som, nas suas performances, nas suas leituras encenadas, nos seus textos – é ter de lidar com a história violenta do colonialismo e pós-colonialismo, história na qual Portugal está profundamente entranhado mas que teima em fingir que não é nada com ele. “Ainda estamos em negação”, resume a artista. Desde o sistema educativo, em que se continua a perpetuar o mito do “bom colonizador”, essencial para alimentar uma certa biografia nacional, à crença romantizada de que Portugal não é um país racista. “Nós falamos dos mares, dos ‘descobrimentos’, das naus com um romantismo tal, como se a história colonial e da escravatura, que aqui é completamente banalizada, fosse um encontro intercultural e não uma história de tortura, genocídio, desumanização, exploração patriarcal”, aponta. Uma banalização que chega a vários sítios, inclusive à restauração: recentemente abriu em Lisboa um bar-restaurante chamado Café Colonial, cujo conceito é “a celebração das raízes lusófonas” (as críticas não demoraram a multiplicar-se). “A negação está sempre ligada a uma glorificação do passado”, afirma. “Podemos falar no medo de perder poder e privilégio branco, com certeza, mas acho que tem a ver também com não arriscar chegar ao presente”, assinala. “Há uma certa estupidez logística em Portugal no sentido em que há outros países que conseguiram perceber que têm essa história colonial e racista brutal e que ela tem de ser abordada. Que é importante, como diz bell hooks, interromper, ocupar e transformar a história e os espaços com novos discursos, novos sujeitos, novas configurações de poder. ”Apesar de tudo, isso “está a começar a acontecer” em Portugal, sublinha Grada Kilomba. Os convites em catadupa que recebeu são, acredita, um sinal disso mesmo – e é significativo o facto de terem vindo de “instituições grandes”. “Acho que também tem a ver com uma nova geração de curadores que agora estão em posições de poder. Como o João Mourão [ex-director das Galerias Municipais, que iniciou toda esta vinda de Grada a Lisboa], Pedro Gadanho, Paula Nascimento, João Ribas, Pedro Faro ou a Inês Grosso. ”Numa altura em que têm surgido em Portugal várias plataformas dedicadas ao combate ao racismo, à divulgação das culturas africanas e ao feminismo negro – como a Djass, a Femafro, a Consciência Negra ou a AfroLis –, entre documentos de investigação relevantes como o livro Racismo em Português – O Lado Esquecido do Colonialismo da jornalista do PÚBLICO Joana Gorjão Henriques, Grada Kilomba encontra agora um contexto diferente daquele em que começou a trabalhar. “Os estudos pós-coloniais em diálogo com o conhecimento performativo interessavam-me, mas não havia plataformas cá. ” Depois de tirar o curso de psicologia clínica e psicanálise no ISPA, em Lisboa, e de ter trabalhado no Hospital Júlio de Matos com um psicanalista e sobreviventes de guerra, Grada foi para Berlim fazer o doutoramento, à boleia de uma bolsa da Fundação Heinrich Böll. A partir da capital alemã, o seu trabalho ganhou ritmo, espaço, visibilidade. E tentáculos internacionais. “Comecei a publicar, a trabalhar noutras cidades, a dar aulas em universidades no Gana, na Áustria, em Londres. Sempre com projectos muito experimentais, em que cruzo os estudos pós-coloniais, estudos de género, performance, literatura”, explica a artista, que trabalha regularmente com o teatro berlinense Maxim Gorki e é representada pela Goodman Gallery, na Cidade do Cabo. Influenciada por pensadores e escritores negros como Frantz Fanon e bell hooks, Grada começou desde cedo a cimentar um dos pilares identitários da sua obra: a fusão entre a linguagem artística e a académica. “Acho muito fascinante trabalhar dentro das artes com conhecimento e sublinhar que se está a produzir conhecimento. ” Nesse processo, reclama a autoria, a autoridade e a validade da sua própria história – o que é, por si só, um acto político, um acto de descolonização numa estrutura académica e artística cujas hierarquias de poder ainda são brancas e patriarcais. “Sou o sujeito, não o objecto. Trabalho para mim, para perceber quem sou, para completar um puzzle que foi fragmentado. Essa é a diferença de um trabalho feminista e descolonial para um trabalho clássico. ”“Quem pode falar? Quem pode produzir conhecimento? Que conhecimento é reconhecido como tal?” são as veias que percorrem todos os seus projectos. Projectos híbridos que fintam a catalogação. “Não estou interessada em trabalhar numa só disciplina; estou interessada em contar histórias. Depois cada uma dessas histórias precisa de formatos diferentes”, nota Grada. “É uma forma de subverter as práticas artísticas que têm sido representadas pelo homem branco, pelo sujeito dominante. É descolonizar o conhecimento, é trazer a questão da raça, do género, da sexualidade como partes inseparáveis de um discurso. Eu não sou apenas uma mulher, sou uma mulher negra. Para mim é importante pensar nessa complexidade e trazê-la para a minha arte. ”Essa intersecção de linguagens e métodos vai ser clara na exposição A Língua Mais Bela, na Galeria Avenida da Índia, com curadoria de Gabi Ngcobo e produção criativa de Moses Leo. Cada peça terá “um formato diferente”, mas sempre com a palavra no centro, outra das marcas distintivas do trabalho de Grada Kilomba. Em Illusions – instalação reconfigurada a partir da performance homónima apresentada na última Bienal de São Paulo, na documenta 14, em Kassel, e em Serralves –, Grada transporta para um contexto pós-colonial e encena os mitos de Narciso e Eco, posicionando-se como uma contadora de histórias, uma griot contemporânea. “Quis recuperar a tradição africana de produção oral de conhecimento no papel de uma mulher griot. ”Já Printed Room será uma blackbox revestida por páginas de um dos livros escritos pela artista, Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism (2008). Mais exactamente páginas enviadas por leitores de vários países, da Bolívia à Suécia, com apontamentos e notas. O público será acompanhado pelo áudio de actores a lerem o livro (livro que “a maior editora de Portugal” não teve interesse em traduzir para português, conta a autora, ficando entregue ao Brasil). Sem revelar demasiado, haverá ainda a instalação The Dictionary, em que a artista apresenta o processo de consciencialização e desconstrução do racismo não como etapa moral, mas psicológica. São cinco passos, explicados a fundo em Plantation Memories: “negação, culpa, vergonha, reconhecimento, reparação. ” De resto, o título da exposição deixa entrever um jogo irónico: “Dizemos que temos a língua mais bela, mas não pensamos em todas as exclusões e opressões coloniais e patriarcais dentro da sua terminologia”, diz Grada (por exemplo, por que não usar o termo “expansão marítima violenta” em vez de “descobrimentos”?)Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A palavra volta a ser assunto na exposição Secrets To Tell no MAAT, que dá início à programação da sala Project Room. É curada por Inês Grosso e pensada a partir da vídeoinstalação The Desire Project, concebida para a Bienal de São Paulo e entretanto adquirida pela Fundação EDP. “É uma instalação com três canais de vídeo simultâneos em três actos: enquanto eu caminho, enquanto eu falo, enquanto eu escrevo. Recupero a figura da Escrava Anastácia para falar das narrativas que foram silenciadas”, explica a autora. “Depois passa-se para um espaço digital e futurista, com um batuque composto pelo Moses Leo. Trabalho com a sonorização e a visualização da escrita. ”Para Grada Kilomba é “fundamental tornar o conhecimento vivo, corpóreo, físico”. “Através das artes consegues formular, sem impor, uma plataforma em que o público levanta questões que não estavam lá antes. Aí começa-se a descolonizar o conhecimento. Para mim, arte é isso: quando ela consegue entrar dentro de ti emocionalmente e fisicamente, e transformar-te. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra mulher negro homem racismo medo género sexualidade racista negra feminista vergonha raça escravatura feminismo
Falar sobre pornografia “não é um bicho-de-sete-cabeças”
Abordar o tema da pornografia com crianças e jovens pode ser constrangedor. Mas mais vale fazê-lo do que ignorar o assunto. A realizadora de pornografia feminista Erika Lust criou três guias a pensar nos mais novos. E para ajudar a desbloquear a conversa. (...)

Falar sobre pornografia “não é um bicho-de-sete-cabeças”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-16 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181216185833/https://www.publico.pt/n1840720
SUMÁRIO: Abordar o tema da pornografia com crianças e jovens pode ser constrangedor. Mas mais vale fazê-lo do que ignorar o assunto. A realizadora de pornografia feminista Erika Lust criou três guias a pensar nos mais novos. E para ajudar a desbloquear a conversa.
TEXTO: Um smartphone, um tablet, um computador. A maioria das crianças e jovens portugueses tem acesso a pelo menos um destes equipamentos desde cedo — em Portugal, as primeiras utilizações rondam os dez anos, altura em que as crianças terminam o 1. º ciclo. São ferramentas que lhes permitem estar em contacto com os pais, falar com amigos, jogar, fazer trabalhos da escola. Mas também lhes facilitam o acesso a infindáveis outros universos menos prosaicos, como o da pornografia. É inevitável que cheguem a este mundo através dos ecrãs, dizem os especialistas. Mais tarde ou mais cedo, durante a adolescência, os jovens entram em contacto com conteúdos sexuais explícitos disponíveis na internet ou na televisão e em revistas. Seja porque, sem querer, estes conteúdos surgem nos seus ecrãs em janelas pop-up ou em filmes que passam na TV, porque um amigo enviou uma imagem através do Snapchat ou num grupo do Whatsapp, ou porque eles próprios os procuram. O que é mais difícil de definir é a idade em que crianças ou jovens entram em contacto com a pornografia. Dados do EU Kids Online — um inquérito que avalia a forma como os adolescentes europeus utilizam a internet — mostravam, em 2014, que 27% das crianças portuguesas entre os nove e os 16 anos tinham tido contacto com imagens de cariz sexual no último ano, quer fosse através da internet, do telemóvel ou de filmes e livros. E quanto mais velhos são os adolescentes, mais provável é que tenham acedido a esse tipo de conteúdos. Os resultados do mesmo inquérito indicam que com a idade, a proporção daqueles que viram essas imagens aumenta. Quase metade dos jovens (44%) com 15/16 anos afirma ter visto estes conteúdos no último ano. São o maior grupo. Entre os adolescentes com 13/14 anos, 34% dizem ter tido acesso a imagens do género. “A forma mais comum de exposição a imagens de teor sexual acontece através da televisão ou de filmes (16%), revelando a importância que os meios de comunicação audiovisuais clássicos continuam a ter na disseminação deste tipo de imagens. As redes sociais são o meio indicado em segundo lugar, estando bastante abaixo (9%). Em ambos os casos, existe um claro efeito da idade: os adolescentes mais velhos tendem a estar mais expostos a este tipo de imagens”, detalha o documento. Um estudo britânico mais recente (2017), promovido pela NSPCC (National Society for the Prevention of Cruelty to Children), mostra que quase metade (48%) dos jovens entre os 11 e os 16 anos vêem pornografia. Entre os que dizem fazê-lo, 46% afirmam que as imagens simplesmente apareceram no ecrã na primeira vez em que tiveram acesso a estes conteúdos. A pesquisa autónoma por pornografia torna-se mais significativa à medida que os jovens ficam mais velhos. Aos 14 anos, 94% dos adolescentes que tinham respondido a este questionário já tinham tido contacto com conteúdos pornográficos. Quanto aos hábitos de consumo de pornografia pelos jovens, o mesmo estudo da NSPCC revela que 34% acede a estes conteúdos uma vez por semana ou mais. Há mais rapazes do que raparigas a dizer que vêem pornografia. Mas os jovens não são indiferentes àquilo que vêem. Num outro inquérito também promovido pela NSPCC em 2015, um rapaz de 15 anos mostrou-se preocupado: “Eu estou sempre a ver porno e alguma é muito agressiva. Ao princípio não achei que me estava a afectar, mas comecei a ver as raparigas de uma forma diferente e isso preocupa-me. ”Os pais nem sempre querem reconhecer que os filhos têm contacto com estes conteúdos. “Portugal está entre os países com maior discrepância entre as práticas declaradas de ver imagens sexuais online pelos filhos (13%) e admitida pelos pais (4%)”, indicavam os resultados do inquérito EU Kids Online feito às crianças portuguesas em 2012 (o trabalho de 2014 não faz referência a este aspecto). O que permite tirar uma conclusão: “O contacto com as imagens sexuais online parece ainda ser objecto de tabu nas famílias”, admitiam os autores — o trabalho em Portugal é coordenado pela professora Cristina Ponte, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Mas não é só em Portugal que isto acontece. Há muitos pais constrangidos em falar sobre sexo. “Percebemos que as pessoas têm vergonha de falar sobre isso e têm medo, por isso, precisam de orientação”, explica Erika Lust (o nome verdadeiro é Erika Hallqvist), uma realizadora sueca que produz filmes pornográficos feministas. Tem duas filhas de sete e 11 anos — que estão a par da profissão da mãe — e desde cedo se preocupou com a importância de falar sobre pornografia e de explicar que os conteúdos pornográficos a que os jovens têm acesso são “uma ficção muito exagerada do sexo”. Foi esta discrepância entre o que é realidade e ficção e apercebendo-se que tanto ela como o marido Pablo Dobner — que gere a produtora de filmes — têm muita descontração em falar sobre sexo levaram Erika a fundar o projecto The Porn Conversation. Em parceria com sexólogos e terapeutas, criou três guias diferentes que oferecem dicas sobre como ter “a conversa”. E a dica principal vai exactamente na indicação do momento mais oportuno para este diálogo. Não deve ser uma conversa em que toda a família se senta num sofá e, num ambiente constrangedor tanto para pais como para filhos, se decide falar sobre pornografia. A introdução do tema deve acontecer em momentos mais descontraídos, num passeio de carro ou ao pequeno-almoço. Importante a ter em mente, lê-se num dos guias, é que “o silêncio, ou seja, não dar uma resposta, é educação só por si e, normalmente, quando não se fala sobre algo é porque se assume que é perigoso, indecente ou inapropriado discutir o tema”. Falar sobre sexo e pornografia “não é um bicho-de-sete-cabeças”. Para as crianças dos nove aos 11 anos (a faixa etária mais baixa), as sugestões passam por explicar que a pornografia não é “sexo real”, sublinhar a importância de não se despir “para ninguém que faça pressão para tal” e não se deixar fotografar sem roupa — aqui uma alusão ao hábito crescente do sexting entre adolescentes. O guia sugere também formas como os pais podem limitar o acesso a esse tipo de conteúdos, nomeadamente através de aplicações que bloqueiam sites e de browsers específicos para crianças. Para aquelas que têm entre 11 e 15 anos, o guia aconselha um discurso mais focado em aspectos como o racismo, a falta de diversidade dos corpos representados, a assunção de que aquilo que surge no ecrã está longe da realidade; ou como a pornografia convencional “lucra com os clichés”, informando que existem alternativas “éticas”. A conversa com os adolescentes que têm mais de 15 anos deve abordar todos os outros pontos e voltar a frisar um aspecto: “Se alguém quiser tirar fotografias tuas ou filmar-te, tem em atenção que o cenário mais provável é que se torne viral — pelo menos entre as pessoas que conheces e o teu grupo de amigos. ”E com que idade deve começar-se a falar? Erika diz que deve ser “cedo”. E explica: “O que eu sinto é que, quando são mais jovens, não têm vergonha. Eles não têm medo de falar sobre isso. ” A realizadora dá o exemplo da própria filha de sete anos que, curiosa, lhe perguntou: “Mãe, se os pénis são todos diferentes, os de dois irmãos gémeos idênticos vão ser iguais ou diferentes?”. É este à vontade que, diz, se vai perdendo na adolescência. O enfermeiro de saúde escolar na Escola Secundária da Ramada, em Odivelas, Alexandre Oliveira, alerta, porém, que em certas idades, nomeadamente entre crianças mais jovens, corre-se o risco de ficarem “incomodadas”. O especialista admite que só se deve falar sobre o tema caso tenham dúvidas ou se o seu comportamento indicar que estão a aceder a estes conteúdos. Para Paula Pinto, coordenadora da Sexualidade em Linha e membro da comissão para a educação sexual da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC), “é importante que os pais tenham em conta que os filhos podem aceder a estes conteúdos e que tenham a informação necessária” para interpretá-los. Iniciar esta conversa pode ser o mote para “falar sobre muitas outras coisas que são muito importantes”, sublinha Erika Lust. Por exemplo, sobre a imagem corporal, o consentimento, como tratar os outros, os papéis de género, o feminismo, a identidade sexual. . . “Há tantas coisas que tocam nessa conversa. ”Para a realizadora, uma coisa é certa: os pais “precisam de falar sobre pornografia. Não há como fugir. Faz parte da sociedade em que vivemos hoje. ”“Apesar da preocupação pública com os conteúdos de natureza sexual (imagens e mensagens sexuais), importa ter em conta a idade, contrariando deste modo o pânico moral gerado à volta do assunto. No caso particular das imagens, embora a internet torne acessível este tipo de conteúdos a crianças e jovens, a regulação de meios de comunicação tradicionais (como a televisão) continua a ser importante, pois constituem a forma de acesso mais referida”, destaca o relatório de 2014 dos investigadores portugueses no âmbito do projecto EU Kids Online. A terapeuta sexual e uma das “embaixadoras” do projecto The Porn Conversation, Yana Tallon-Hicks, diz que “o Google e os smartphones mudaram o jogo quando se trata da quantidade de dicas e conteúdo sexual disponível para os jovens”. “A idade média da primeira exposição a pornografia na internet nos EUA é de 11 anos. Os adultos são insensatos ao pensar que podem simplesmente permanecer em silêncio sobre isso. Em vez disso, devemos todos trabalhar mais para ajudar os jovens a encontrar e utilizar informações precisas e desenvolver suas próprias habilidades para pensar criticamente sobre o sexo que consomem. ”A especialista conta que se juntou ao projecto de Erika Lust pela forma como a realizadora “se compromete a criar pornografia ética, que prioriza o consentimento, o prazer e a conexão entre seres humanos”. “Se eu for a esses sites [de pornografia] há muita agressão, violência, punição sobre as mulheres. E isso tem valores sexuais muito negativos”, lamenta a realizadora cujo trabalho na área começou precisamente pelo seu desagrado em relação à pornografia que via enquanto consumidora. “Acho que esses valores afectam muitos jovens que não têm muita experiência sexual. Eles acham que o sexo é assim. Quando começam a fazer sexo, querem reproduzir o que aprenderam na internet. Eles não terão prazer porque esse tipo de sexo não dá prazer às pessoas. Porque é rápido e furioso e sem sentimento. ” Além disso, “mostra factos que não são verdadeiros, como a mulher a ter um orgasmo com penetração. Isso não é correcto. A maioria das mulheres precisa de estimulação clitoriana para poder ter um orgasmo”. Alexandre Oliveira diz que a questão não será tanto a necessidade de replicar o que vêem. O problema, diz o enfermeiro de saúde escolar, é que os adolescentes interpretam a pornografia como algo que é “comum” e que “têm dificuldade” em perceber que não é real. Essa dificuldade pode levar a problemas de performance, especialmente entre os rapazes, que constroem uma “percepção errada da duração e continuidade do acto sexual” e acabam por ficar frustrados, diz o enfermeiro. Erika Lust: “Estou sempre a ouvir histórias de jovens rapazes que começam a sufocar as suas namoradas durante o sexo porque pensam que isso vai excitá-las. Há uma desconexão [com a realidade]. ”A realizadora produz filmes pornográficos desde 2004. Mas tem uma abordagem diferente daquilo que é feito pela maioria da indústria que classifica como mainstream. Erika Lust diz que os seus filmes representam a sexualidade feminina, os desejos das mulheres e a colocam no centro da trama. Já quanto à restante indústria, aponta algumas falhas e diz que, quem faz estes filmes “precisa de ter mais cuidado com a representação das pessoas e com a diversidade que se está a mostrar”. Frisa também a necessidade de “incluir pessoas de diferentes origens, etnias, tipos de corpo, idades e outro tipo de equilíbrio de poder entre homens e mulheres”. Lúcia Ramiro é professora de inglês, sexóloga e coordenadora de uma pós-graduação em Educação Sexual. “Não considero que a pornografia tenha mais desvantagens hoje do que há cinquenta anos. Hoje, a pornografia coexiste num mundo em que também existe educação sexual, educação para a cidadania e direitos humanos”, diz a professora na Escola Secundária Poeta Al Berto, em Sines. “De um modo geral, a pornografia pode contribuir para dar expectativas irrealistas sobre a imagem do corpo (tamanho do pénis, formato do clitóris, tamanho dos mamilos etc. ) e do ato sexual (duração da erecção, entre outros), promover a objectificação do corpo, e promover a ideia errada de que a mulher ‘serve’ o homem e que a relação sexual não está ligada à relação amorosa (com tudo o que a caracteriza). ”Para Marta Reis, também sexóloga, o perigo da pornografia está no “empobrecimento da capacidade de fantasiar e ser criativo”. “Para já, o que se vê nos filmes pornográficos não é o que acontece na realidade, há um desfasamento muito grande e, ao verem esses filmes, os jovens vão tentar repetir, vão achar que é uma realidade (que depois não existe). Os filmes servem para ajudar o utilizador a obter uma resposta sexual muito rápida e não propriamente para uma melhoria de sexualidade. ” Para esta especialista, “os jovens precisam de conhecer o seu corpo, de entendê-lo e de perceber o que lhes gera prazer e satisfação e como estas questões estão normalmente ligadas ao relacionamento com o outro”. Mas Erika Lust é categórica: “A pornografia tornou-se na educação sexual das nossas crianças. ” Num dos guias do The Porn Conversation é citado um séxologo dinamarquês, Christian Graugaard, que sugere que se mostre pornografia a alunos entre os 15 e os 16 anos na sala de aula e que esse momento seja acompanhado de uma discussão crítica sobre papéis de género, misoginia, diversidade e poder de decisão. E levanta a questão: “Será demasiado radical ou apenas prático?” Certo é que na Dinamarca, um dos primeiros países a legalizar a pornografia, “a educação sexual é obrigatória em todas as escolas e a maioria oferece uma semana inteira de conteúdos sobre saúde sexual e relacionamentos”, frisa o guia. E esta cultura pode ter uma relação directa com taxas mais baixas de prevalência de infecções sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e abortos. Em Portugal, há 17 anos que a educação sexual nas escolas está regulamentada. Em 2009, um decreto-lei veio esclarecer alguns aspectos e as orientações curriculares hoje seguidas datam de 2010. A pornografia não é um tema directamente contemplado nestas orientações publicadas pelo Ministério da Educação. Contudo, a abordagem de temas como “diversidade e respeito”, “sexualidade e género” e “prevenção dos maus tratos e das aproximações abusivas” é obrigatória e leva a que se toque na questão da pornografia. A conversa pode acontecer “quando surgem questões sobre o assunto”, explica Paula Pinto. O que a educação sexual deve fazer é frisar que aquilo que é representado na pornografia não corresponde à “vivência real da sexualidade”. No fundo, fazer compreender que o que ali está “é ficção”, uma “representação muito empolada da realidade”. “Há muitas noções erradas sobre o contacto sexual e o risco de que os jovens repliquem isto nas suas relações futuras”, diz Rui Ferreira Carvalho, um jovem médico, interno na especialidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência no Hospital de Santa Maria. Ainda estudante, começou o projecto SexEd. A ideia: ir a escolas secundárias e falar sobre sexo e sexualidade de igual para igual. Desde 2012, Rui e os colegas já foram a mais de 50 escolas. Na maior parte das vezes são convidados por professores para, em 90 minutos e num tom informal, abordar o tema com os alunos. “A pornografia não costuma surgir como tema isolado”, diz. Mas toca-se lá quando se fala em consentimento. Quanto à própria situação da educação sexual nas escolas portuguesas, Rui Ferreira Carvalho diz que “muitos professores não conseguem abordar estas questões com os alunos com que vão passar o resto ano”. Já tiveram relatos de casos em que dançar um slow numa aula de educação física contou para a hora que devia ser alocada à educação sexual e o mesmo com a análise de poemas românticos numa aula de português. “Percebemos as dificuldades dos professores”, afirma. A sexóloga Marta Reis diz que, entre os alunos com quem contacta, “a grande maioria acha, que se pode fazer muito mais; mas também reconhecem o progresso, em conhecimentos e comportamentos face à sexualidade, que é visível em jovens universitários de hoje”. Marta Reis e Lúcia Ramiro estiveram envolvidas no estudo que avaliou o ponto de situação da aplicação da educação sexual nas escolas, que data de 2014. Na altura, concluíram que 83, 2% dos 428 agrupamentos que participaram no estudo tinham cumprido a carga horária estipulada. “Sem dúvida que o caminho percorrido é positivo, mas ainda continua a haver muito a fazer. Impõe-se continuar a formação sistemática dos professores, envolver os pais em acções conjuntas, tornar a educação sexual parte da cultura da escola. Os gabinetes de apoio aos alunos, essenciais como locais privilegiados de reflexão e ensino para os estudantes, necessitam de revitalização porque, nalguns casos, estão transformados em locais para onde são enviados jovens com ‘mau’ comportamento. E os professores entrevistados na avaliação lamentaram a perda da redução da componente lectiva, o que se traduz por sobrecarga no trabalho quotidiano, nem sempre bem compreendido pelas direcções escolares”, resume Marta Reis. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mariana Carrito, investigadora do Sex Lab — uma unidade de investigação da Universidade do Porto dedicada à sexualidade —, diz que “existe evidência que, apesar de haver conhecimento explícito de que aquilo que é retratado na pornografia em geral é ficcional e distinto da realidade, o conteúdo apresentado influencia tanto os comportamentos como as crenças dos consumidores”. E que “algumas mulheres, mesmo admitindo saber que o que é representado na maioria dos conteúdos pornográficos não corresponde à realidade, evidenciam, por exemplo, sentimentos de desvalorização da própria imagem corporal e baixa auto-estima após a visualização dos mesmos”. A investigadora conclui assim que “a pornografia constitui um instrumento que pode contribuir para o bem-estar sexual, mas também para a propagação de mensagens alusivas a interacções não consensuais entre intervenientes com aparências físicas estereotipadas e não representativas da diversidade existente”. Mas é preciso distinguir as “muitas pornografias dentro da pornografia”, diz Patrícia Pascoal, presidente da SPSC. “Há materiais sexualmente explícitos que mostram práticas positivas (por exemplo, o uso de preservativo) e relações de paridade e consentimento e consequentemente podem conter materiais pedagogicamente relevantes. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Na intimidade de Tordre o pessoal é político
O espectáculo do coreógrafo francês Rachid Ouramdane apresentado este sábado no Teatro Constantino Nery, Matosinhos, em mais um capítulo do Festival DDD – Dias da Dança, é uma dança de partilha centrada nas particularidades de duas mulheres. (...)

Na intimidade de Tordre o pessoal é político
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: O espectáculo do coreógrafo francês Rachid Ouramdane apresentado este sábado no Teatro Constantino Nery, Matosinhos, em mais um capítulo do Festival DDD – Dias da Dança, é uma dança de partilha centrada nas particularidades de duas mulheres.
TEXTO: Tordre arranca com uma espécie de desfile de duas bailarinas ao som de Funny Girl, o musical de William Wyler. Uma rasteira irónica, já que o que se segue pouco tem que ver com as fantasias e os arquétipos da Broadway, apesar da pele clara e dos olhos azuis das intérpretes. Annie Hanauer é uma bailarina com um braço protético, particularidade que molda a relação com o seu próprio corpo e a sua lógica interna de dança. Lora Juodkaite gira à volta dela própria sem parar, um estranho vocabulário de movimento que começou a desenvolver em criança como forma de se acalmar e procurar segurança. “O início da peça com o Funny Girl, também utilizado no final, é uma referência aos padrões de beleza dominantes e aos modelos com que estamos habituados a representar mulheres num palco”, diz ao PÚBLICO Rachid Ouramdane, coreógrafo francês que criou Tordre em 2014, espectáculo agora apresentado em estreia nacional no Festival DDD – Dias da Dança, este sábado no Teatro Constantino Nery, em Matosinhos. Não é uma “simples crítica ao cânone”, assinala, mas uma tentativa de propor outro ponto de vista. “Mentalmente, fisicamente, esse cânone e essa gramática não combinam com estas mulheres. Este espectáculo lida com preconceitos que temos em relação a pessoas mas também em relação à arte, ou seja, em que medida é que nos permitimos a ver de modo diferente. ”Em Tordre, Rachid Ouramdane também se permitiu criar de forma diferente. Deixa de lado a abordagem documental que tem vindo a edificar boa parte do seu reportório – uma mudança de direcção de certa forma iniciada em Tenir les Temps, que trouxe ao Centro Cultural de Belém em 2015 – para se centrar no corpo, no movimento. Tordre não é sobre os refugiados climáticos e o abismo ecológico retratados em Sfumato, nem sobre a tortura falada na primeira pessoa em Des Témoins Ordinaires, nem sobre a Justiça e os métodos de repressão abordados em Polices!. Mas não deixa de ser político, considera o autor. “O meu interesse principal é como lidamos com pessoas que são diferentes da maioria. E tanto a Lora como a Annie têm algo nelas que foge à norma”, observa. Depois de vários anos a trabalhar com as duas bailarinas, que o foram acompanhando nas suas investigações, Rachid Ouramdane percebeu que “elas próprias podiam ser o assunto”. Para isso foi preciso esperar até conseguir “um certo grau de cumplicidade” – afinal, Tordre é um espectáculo profundamente íntimo, sem ser invasivo e sem encarar as particularidades de cada mulher de um modo patológico ou voyeurista. É uma dança de partilha, compreensão e superação entre a tensão, a obsessão e uma beleza apaziguadora, em que se drena impurezas e a fragilidade é usada como instrumento de empoderamento. O lado pessoal é político e um veículo para “tocar em algo que possa dizer respeito a uma comunidade”. “Acho que é isso que eu tento sempre fazer no meu trabalho: tocar em assuntos maiores a partir de casos particulares”, explica o coreógrafo, que assume a direcção do CCN2 – Centro Coréographique National de Grenoble juntamente com Yoann Bourgeois, também ele presente no DDD com Celui Qui Tombe, espectáculo de encerramento do festival. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Tordre funciona como um ponto de encontro entre Lora e Annie, que vão ocupando o palco à vez, com solos. A ligação (e a confiança) entre elas vai crescendo, e a peça acaba por se transformar progressivamente num dueto pouco convencional. A coreografia, marcada por música trepidante e quase hipnótica, semeia um tempo só dela. Ou, melhor dizendo, só delas. “A Lora e a Annie são mais do que intérpretes, são co-autoras. Elas trazem uma força transformativa ao espectáculo”, assinala Ouramdane. Há ainda uma terceira mulher, Nina Simone, que ouvimos a meio de Tordre, num solo desarmante de Annie Hanauer, com a canção Feelings, mais exactamente a interpretação ao vivo no Montreux Jazz Festival de 1976. “A Nina Simone canta de forma brilhante, como sempre, mas ao mesmo tempo expressa como já não concorda com a letra da música. Ela mostra uma certa complexidade da vida e acho que é isso que a Annie também faz. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher comunidade criança espécie mulheres corpo
Bin Laden teve 4 filhos e viveu em 5 casas após o 11 de Setembro
O líder da Al-Qaeda era um dos homens mais procurados do mundo, mas enquanto vivia clandestinamente teve mais quatro filhos e viveu em cinco casas nos anos que se seguiram aos atentados de 11 de Setembro de 2001, contou à polícia a mais jovem das suas mulheres. (...)

Bin Laden teve 4 filhos e viveu em 5 casas após o 11 de Setembro
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-03-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O líder da Al-Qaeda era um dos homens mais procurados do mundo, mas enquanto vivia clandestinamente teve mais quatro filhos e viveu em cinco casas nos anos que se seguiram aos atentados de 11 de Setembro de 2001, contou à polícia a mais jovem das suas mulheres.
TEXTO: Osama Bin Laden foi morto numa operação das forças especiais norte-americanas em Maio do ano passado, no Paquistão. Com ele estavam várias crianças e mulheres, entre elas a iemenita Amal Abdul Fateh, que contou às autoridades paquistanesas alguns pormenores sobre a vida do líder da Al-Qaeda nos anos que se seguiram aos atentados que derrubaram as Torres Gémeas de Nova Iorque. Amal tem 30 anos, é a mais jovem das mulheres de Bin Laden e ficou retida pelas autoridades paquistanesas logo após a operação norte-americana em que foi tomada de assalto a casa onde o líder da Al-Qaeda vivia com a família na localidade de Abbottabad. O seu depoimento, ou parte dele, relata a fuga de Bin Laden do Afeganistão após a intervenção militar norte-americana em 2001, e conta também o nascimento de quatro filhos, dois deles em hospitais públicos. No relatório da polícia a que a AFP teve acesso, com a data de 19 de Janeiro, Amal conta que entrou legalmente no Paquistão em Julho de 2000 e depois deslocou-se a Kandahar, no Sul do Afeganistão. Terá sido aí que casou com Bin Laden, a cidade era então um bastião dos taliban. A família acabou por separar-se após os atentados de 11 de Setembro, quando Bin Laden se tornou no homem mais procurado do mundo. Amal diz ter-se refugiado em Carachi, no Paquistão, com Safia, a primeira filha do casal. Contou na altura com a ajuda do filho mais velho de Bin Laden, Saad, voltou a encontrar-se mais tarde com o líder da Al-Qaeda em Peshawar, também no Paquistão. Segundo o relatório da polícia citado pela AFP, não voltariam a separar-se até ao dia em que foram capturados. Mantiveram-se naquela região entre 2002 e 2005, primeiro em Swat, depois em Haripur, a hora e meia de Islamabad, até que se instalaram em Abbottabad. Nesse tempo, já após o 11 de Setembro, Amal de Bin Laden tiveram quatro filhos. Dois nasceram em Haripur, uma rapariga em 2003 e um rapaz em 2004, ambos no hospital local onde Amal ficou apenas “duas ou três horas”. Já em Abbottabad nasceram outra rapariga, Zainab, em 2006, e um rapaz, Hussein, em 2008. As autoridades paquistanesas já anunciaram que vão acusar Amal e outras duas mulheres de Bin Laden encontradas na casa de Abbottabad – bem como as filhas adultas de Bin Laden, Maryam, de 21 anos, e Sumaya, de 20 – de entrada ilegal no país. Nenhuma delas apareceu em público após a captura de Bin Laden, e só Amal aceitou colaborar com a polícia e prestar declarações. A operação norte-americana aumentou a tensão entre os EUA e o Paquistão. As autoridades de Islamabad não foram informadas da operação e nos EUA questionou-se como foi possível o líder da Al-Qaeda viver tanto tempo em território paquistanês sem ter sido detectado pelos serviços de informação e sem qualquer espécie de conivência por parte das autoridades. O depoimento de Amal foi também divulgado pelo jornal paquistanês Dawn e pelo The New York Times. Em Washington não houve comentários sobre o teor das declarações, mas responsáveis norte-americanos consideraram que condizem com as movimentações que se conhecem do líder da Al-Qaeda.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Joana Marques, Cátia Domingues e Beatriz Gosta querem “escavacar estereótipos”
São humoristas que seguem um guião que elas próprias escreveram. Nenhuma faz questão de empunhar a bandeira da luta de género, mas inevitavelmente a condição de mulheres é-lhes devolvida a toda a hora. (...)

Joana Marques, Cátia Domingues e Beatriz Gosta querem “escavacar estereótipos”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 11 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: São humoristas que seguem um guião que elas próprias escreveram. Nenhuma faz questão de empunhar a bandeira da luta de género, mas inevitavelmente a condição de mulheres é-lhes devolvida a toda a hora.
TEXTO: Não há muitas como elas no universo da comédia. São humoristas que seguem um guião que elas próprias concebem. Nenhuma faz questão de empunhar a bandeira da luta de género, mas inevitavelmente a condição de mulheres é-lhes devolvida a toda a hora, sendo reflectida na forma como se posicionam e comunicam através da sua actividade. Joana Marques é guionista e humorista, tendo-se afirmado nas Produções Fictícias, ao mesmo tempo que é uma das caras do emblemático programa Altos & Baixos do Canal Q e tem hoje, segundo ela, “uma rubrica diária nas manhãs da Antena 3 que se chama Extremamente Desagradável, que é um dos [seus] principais traços de personalidade”. Da mesma geração, 36 anos, é Marta Bateira, mais conhecida por Beatriz Gosta, seja como humorista, ou ao lado da rapper Capicua, com quem partilha o palco nos concertos. “Estava exaurida no meu trabalho de designer de moda numa empresa e a Capicua, um dia, disse-me: ‘Tu és óptima contadora de histórias. ’ Então fui para o YouTube contar histórias e virei youtuber. ” É isso. O YouTube foi a sua porta de entrada no espaço do humor, mas hoje podemos vê-la e ouvi-la em todo o lado, da rádio à televisão. “Agora faço uma rubrica no 5 para a Meia-Noite, a avacalhar bonito, assim, e a despentear o povo”, afirma. Um pouco mais nova, 30 anos, é Cátia Domingues, publicitária, criadora do blogue e página do Facebook humorístico One Woman Show, que se apresenta como “argumentista” que faz “essencialmente sátira política”. Trabalha actualmente no Canal Q “onde tem algumas rubricas”, para além de ter o desejo de “salvar o mundo”. Brinca, claro. Mas, a sério, apanhou o ano passado um avião até à ilha grega de Chios, onde esteve como voluntária num campo de refugiados, cerca de 800 imigrantes à mercê da neve. Nela, o activismo rima com humor. Encontrámos as três, há dias, de manhã. E a conversa começou por aí. Culto – O mundo pode dividir-se entre homens e mulheres, mas também entre pessoas que gostam de acordar cedo e começar logo a trabalhar ou as que só conseguem fazê-lo à noite. Como é que é com vocês?Joana Marques (J. M. ) – Essa divisão faz até, em algumas áreas, mais sentido do que ser-se homem ou mulher. Uniram-nos aqui sob o pretexto de falar das mulheres no humor, mas faz mais sentido separar-nos assim. Felizmente – porque o meu trabalho na rádio é matinal – sempre funcionei muito melhor de manhã. Não me importo nada de acordar às seis da manhã. Às sete da tarde já ninguém pode quase falar comigo, porque estou pronta para ir dormir. Cátia Domingues (C. D. ) – É a mesma coisa. Gosto de trabalhar de manhã. Tenho um biorritmo de passarinho. Quando começa a escurecer, sou uma idosa e tenho vontade de dormir. Limita bastante a minha vida social. Gosto de trabalhar de manhã e pronto, à noite, não me chateiam. À noite, geralmente, é arranjar material. Como escrevo muito sobre a actualidade, à noite é lamber tudo o que se passa, para depois no dia a seguir, de manhã, acordar cedo e começar a escrever sobre isso. Beatriz Gosta (B. G. ) – Eu é à noite. Porquê? A culpa não é minha! São os concertos. Até faço um esforço para treinar logo às 9h da manhã, para começar o dia mesmo em bom. Mas nem sempre posso. Às vezes, estou sempre lá e cá [vive no Porto], tenho concertos em que me deito às 3h da manhã. Nunca tenho horários. À noite, até quando escrevia rap, baixa ali uma coisa criativa ou, pelo menos, estás contigo própria. Mas adoro a manhã e até uma certa idade conseguia conciliar deitar-me tarde e acordar de manhã, mas aos 36 anos já não é bem assim. Qual é o vosso primeiro gesto quando acordam? Lavam os dentes, vão para as redes sociais, vêem o email? O que fazem exactamente?C. D. – A primeira coisa: agarro no Twitter e vejo tudo o que se passa. Eu tenho aquela coisa, cenas modernas — o fomo (fear of missing out). Então a primeira coisa que faço é ir ao Twitter. J. M. – Ver se aconteceu alguma coisa enquanto estavas a dormir. C. D. – Exactamente! Se alguém já bateu em alguém. B. G. – Tu vais para o Twitter?J. M. – Sim, mas esqueço-me que tenho e só vou lá de mês a mês. As redes sociais são um bocadinho divididas por estilos de pessoas. No Twitter estão os mais ressabiados de todos. O Facebook é mais para toda a gente. Tenho lá a minha avó! O Twitter é mais de nichos. Tem gente muito recalcada. Há ali assim uns ódios muito viscerais. Não vou lá muito, mas tenho, infelizmente, o mesmo hábito da Cátia de estender logo a mão para o telefone, não [vou] ao Twitter, mas ao email. Queria erradicar isso, mas ainda estou longe de o conseguir. B. G. – Também tenho essa coisa de ir para as redes e ponho logo música. Mas faço um esforço para deixar o telemóvel na sala e ir tomar banho. É a primeira coisa que faço, mal possa é ir tomar banho senão fico logo preguicenta e fico no café e no telemóvel, então vou logo tomar banho e aí obrigo-me a começar o dia. C. D. – Isso é uma boa técnica. Vou tentar adoptar isso. B. G – Deixas o telefone na sala por causa da ansiedade, sabes? A minha cama já está com insónia. C. D. – Tu não levas o telefone para a casa de banho?J. M. – Muito raramente. C. D. – Ai, eu levo!B. G. – Eu levo com a coluna, para bombar no banho. E cantam no chuveiro?J. M. – Olha quem! Claro. B. G. – Canto e danço. Sinto-me muito assim no espelho. Não é todos os dias. Todos os dias ponho a coluna. Nos últimos meses, quando me sentia assim mais em baixo, tinha este vício. No chuveiro somos todos grandes cantores. O problema começa quando se sai do banho e nos confrontamos com os outros, como nas redes sociais. E como é no humor? Existe em Portugal essa ideia de que existem poucas humoristas, pelo menos que sejam também autoras, para além de intérpretes. É verdade?J. M. – Comecei a colaborar com as Produções Fictícias em 2006/2007 e tinha um bocadinho essa ideia, mas reparei que havia muitas mulheres como guionistas. A capacidade autoral sempre esteve muito presente. Muitos sketches que vimos do Herman José eram escritos por mulheres e nem o sabíamos, porque depois acabaram por não ser as pessoas que vieram a dar a cara, como o Ricardo Araújo Pereira. Muitos guionistas deram aquele passo em frente e apareceram. As mulheres não fizeram tanto isso. Mas já havia algumas e agora cada vez mais. Conseguem explicar isso?J. M. – Há menos mulheres no lado da performance, de subir ao palco e fazer, mas nunca reflecti muito sobre isso. B. G. – No rap é a mesma coisa. Não fui criada a ser incentivada. A ter essa confiança. C. D. – As mulheres sempre estiveram no público, não é? Historicamente o fenómeno de as mulheres estarem no palco é relativamente recente. A questão da exposição, com todo o contexto, e expectativa, tudo isso retrai um bocadinho as mulheres de se exporem tanto. J. M. – Até porque muitas vezes o olhar do outro é diferente para a mulher e para o homem. Numa mulher vão-se centrar mais rapidamente se está gorda, se está magra ou se está despenteada. B. G. – Fizeram várias vezes isso comigo!J. M. – No homem não vês muito esse tipo de comentário. Mesmo as pessoas que querem, por exemplo, criticar o Herman José, não vão dizer que está gordo — isso não interessa. Acham graça ou não. Nas mulheres observa-se isso muitas vezes. Não se liga tanto ao conteúdo, mas à forma. B. G. – É por ter o cabelo curto e chamarem-me fufa, como se fosse um insulto! Ou quando apresentei os prémios com o Fernando Alvim e eu “não estava bem naquele macacão, [tem]o rabo demasiado grande”! E o Alvim com uma barriga! Mas não! Ele estava imaculado e eu é que estava péssima!J. M. – Às vezes as próprias reacções de terem mais medo do ridículo, uma coisa que vem desde sempre, não é? Muitas vezes o palhaço da turma é mais o rapaz do que é a rapariga, não é? Acredito que já não seja bem assim. Se formos às escolas, já vemos miúdas que se destacam e que escolhem outras profissões que não são aquelas tão habituais. B. G. – Mas uma mulher para se rir dela própria tem de ser espontânea, só agora é que dão mais liberdade para tu não estares tão direitinha. A estares descabeladona. C. D. – É bom estares diferente. Sou ligeiramente mais nova, mas na minha altura tudo aquilo que era “fazer parte da matilha” não era grande coisa. Tu destacares-te e seres diferente é que era uma cena fixe. B. G. – Destacares-te por teres piada e não porque és a boazona da cena. J. M. – Da mesma forma que há profissões ao contrário. Não são tão faladas, mas vais a uma creche e quase todas as educadoras de infância são mulheres e as pessoas ficam espantadas quando há um homem e fazem muitas perguntas como nos fazem a nós. B. G. – Ficam preocupadíssimas quando têm lá um homem. J. M. – “O que é que este homem está aqui a fazer?”B. G. – Há preconceito. “Ai que ele pode abusar. ”J. M. – Tudo o que é diferente chama a atenção. Não é preciso querermos criar aqui a obrigação de que vai ter de ser igual. Acho que nunca vai ser 50/50. Nunca vai haver tantas humoristas mulheres como homens. Acho isso natural. Como nunca vai haver tantos educadores de infância masculinos como femininos – mas isso não é grave. B. G. – Não concordo. No humor? Acho que as mulheres têm um humor mesmo muito bom!J. M. – Têm, mas não vão ter naturalmente esse interesse profissional mais do que os homens. Nunca vai ser algo neutro. O humor, em termos do universo da comunicação, até poderia ser um espaço preferencial para as mulheres desconstruírem estereótipos. C. D. – Mas começam a fazer isso, não é? Parte do nosso trabalho é escavacar estereótipos e partir com isso tudo. Mas é todo um caminho. O facto de estarmos aqui três pessoas e, de repente, a maior parte das entrevistas que damos é sobre ser mulher no humor é significativo. É o que existe. A minha esperança é que com o tempo deixe de haver esta necessidade. B. G. – Quanto mais normal for, menos chama à atenção e menos se justifica. C. D. – Ou seja, a coisa já estará normalizada. Incomoda-vos quando sentem que poderão estar a representar uma ideia de colectivo, no caso as mulheres humoristas? É como se a vossa individualidade pudesse ser passada para segundo plano?J. M. – Não é estar farta. É uma discussão interessante de se fazer. Mas vejo-me como humorista, ponto final. Não por ser mulher ou homem. Identifico-me com outras mulheres humoristas como podia não me identificar nada com a Marta ou com a Cátia e identificar-me muito com o Bruno Nogueira ou com o Ricardo Araújo Pereira ou o Salvador Martinha. A mim, o que me interessa é produzir e não qual é a fonte. B. G. – Mas consideras importante incentivar outras mulheres. J. M. – Gosto de receber mensagens de miúdas mais novas a dizer: “Quero ser humorista. ” É engraçado que elas possam sentir que têm ali uma mulher como referência: “Se ela faz, eu também posso. ” Isso é óptimo. Agora sempre que me ligam, sei que a primeira coisa que me vão perguntar é: “Então e como é que é ser uma mulher no humor”?C. D. – E a segunda é: “Quais são os limites do humor?”B. G. – Sim! Mas tu já sentiste, por seres mulher, alguma insegurança quando começaste? Também começaste pelo jornalismo, não foi?J. M. – Não. Quer dizer, estudei Jornalismo, mas nunca exerci. Sempre fiz isto. Comecei como guionista a escrever para outros. B. G. – E nunca sentiste insegurança?J. M. – Por ser mulher, não. Sentia as inseguranças normais de quem faz uma coisa nova. C. D. – Mas há coisas que tu não sentes diferença por seres mulher?J. M. – Nunca senti isso e quando comecei a trabalhar já havia outras mulheres. Nunca fui a única num grupo de guionistas só de homens. E nunca fiz essa separação, nunca penso nas pessoas assim. B. G. – Também não me intimida estar no meio de homens. J. M. – Nunca me trataram de maneira diferente por ser mulher. Podemos sentir isso depois da parte do público, quando já estás a comunicar para muita gente. Se faço uma piada, por exemplo, sobre futebol, sei que mais tarde ou mais cedo vem o argumento de “As mulheres têm de estar na cozinha”. Ainda há pessoas que vivem numa fase mais primitiva, mas das minhas relações, com quem eu trabalho, nunca me trataram de forma diferente. C. D. – Há coisas que são inconscientes. Tu falas de futebol e é uma coisa mais masculinizada. Com a política é o mesmo. Não quero ser injusta, acredito que é de uma forma inconsciente, mas até nós podemos participar nisso de forma involuntária. No outro dia estava a escrever sobre isto que é: parece que só há lugar para uma. Tu competes com o teu género, não competes entre o género de humor. Dentro daquilo que eu faço existe o Ricardo Araújo Pereira a fazer. Mas não compito com ele, mas com o meu género, o que não tem absolutamente nada que ver. Mas, mesmo assim, a própria indústria, os teus pares fazem-te sentir como se só houvesse espaço para uma. E fazem-te competir. E isto vai contigo. Quando eu comecei. . . Tornas-te e parte disto e se aparecia uma miúda a fazer isto, tu ficavas tipo: “Oi?”J. M. – “Só há uma vaga e já está ocupada. ”C. D. – Para mim, isto foi muito poderoso. Quando tomas consciência disto, que não têm de competir umas com as outras, que há espaço para toda a gente. . . . O país sofre deste problema de escala. B. G. – Se há um leque de homens, porque é que não pode haver um leque de mulheres?!J. M. – Quando alguém está a organizar um festival e quer uma mulher, ligam-me, e por vezes não quero ou não posso, e nesses casos dizem-me logo: “Mas pode-me sugerir outra mulher?” Querem que vá lá um representante daquele género e não dizem: “Pode-me sugerir outro humorista que considere ter graça?”C. D. – Fazem isso de forma automática. Dei por mim a olhar por cima do ombro quando via uma miúda aparecer. E tomo consciência disso, percebo o quão injusto é, mesmo para mim. E, a partir daí, [é] conhecer as minhas colegas e ter um amor imenso e um apoio. Não sou nada sindicalista nesta coisa do género, mas acho que apercebermo-nos disto e unirmo-nos mais, ou pelo menos não termos este sentimento de competitividade umas com as outras, é libertador. J. M. – É uma ideia que se quer formar, mas depois, se formos analisar a realidade, todas trabalhamos em coisas diferentes e que não chocam umas com as outras. A vossa reflexão espelha que as identidades de género é qualquer coisa que acaba por estar presente no vosso humor. B. G. – Reflecte-se e muito. Como o meu conteúdo é hardcore, assim para o espontâneo, fico muito espantada, porque não levo com muito ódio. Falo de temas bastante polémicos, sem tabus, sem filtros, e achava que ia ter muito mais hate do que acontece realmente. E eles são uns doces. Só tive duas ou três mensagens de ódio. J. M. – Que sorte!B. G. – Agora, o meu público é muito mais mulheres e LGBT total. Os homens só curtiram o [vídeo] da papaia ou o coelhinho. Os homens sentem-se postos em causa pelo tipo de humor?B. G. – Sim, é aquele abanão. “Tu falas mal dos homens”, dizem-me. Eu não! Amo homens! Eu é que me ponho a jeito de me ridicularizarem. Acham que a feminista quer os homens na fogueira. Nada disso. Só estou a contar uma história, em que estou ridícula, e está tudo bem. Têm áreas de interesse preferenciais em termos temáticos ou são mais de abordar a notícia ou a polémica de determinada ocasião?C. D. – Sou específica. Seja a actualidade política, nacional ou internacional. Se aparecer alguma coisa de “assunto do momento”, depende. As touradas, por exemplo?C. D. – Para mim, é político. Agora, se for tipo a Maria Leal, que apareceu e que roubou um miúdo… não me interessa. Se for um tema que possa ter um ângulo fixe, eu faço. Nunca faço alvo com o humor, partindo do pressuposto que existe sempre um alvo, a vítima. É sempre o agressor que me interessa. É natural. E nunca é com algo que uma pessoa não escolheu. É sempre com algo que uma pessoa escolheu fazer. Há coisas que já sei que não vou fazer. Quando comecei, foi importante perceber primeiro o que não queria fazer, mais até do que encontrares a tua voz. “O que é que eu não quero fazer mesmo?”J. M. – Foi algo natural. Como na escola não terias vontade de gozar com o miúdo que já está no chão, não é?C. D. – Claro. Tudo isto começou com uma página que eu tenho que se chama One Woman Show, mas se tu tirares a palavra woman da minha página, tu não consegues perceber se é um homem ou se é uma mulher a fazer aquilo, ou seja, tudo o que sejam temas de género “Então e os homens que não sabem baixar a tampa?” — sem desprimor, mas eu não faço, não é isso que me interessa. B. G. – Concordo com a Cátia. Quando queremos ridicularizar alguém, o alvo de qualquer piada deve ser pelo que a pessoa está a fazer e não pelo que é. É a diferença entre ser e fazer. É o que ela escolhe fazer. C. D. – Sim, posso falar do Cláudio Ramos, não por ele poder ser homossexual, mas porque teve um problema com o ar condicionado. É um bocado isto. J. M. – Como faço uma rubrica diária na rádio, ando sempre à volta da actualidade. E pode ser tudo. Não é só a actualidade política. É qualquer área que me interesse e que para a qual encontro um ângulo diferente do que já foi dito – o que é difícil. Hoje nas redes sociais temos milhares de humoristas a competir uns com os outros. E temos de fazer algo diferente sobre esses temas que o dia-a-dia nos traz. Desde a reportagem sobre a golpada da Maria Leal até às horas e horas de directos de Bruno de Carvalho sem se passar nada. Tento encontrar o que é que me indigna em cada questão. É essa a minha escolha. Não estou centrada em nenhum tema específico e também não sinto que seja uma coisa marcadamente feminina. Não acho que tenha um traço muito feminino naquilo que faço. B. G. – A mim marca mais. Se fosse um homem a falar o que eu falo, não chocaria. Têm uma identidade muito definida o que é óptimo, claro, mas também se pode ficar dependente ou preso nessa mesma identidade. B. G. – Beatriz Gosta é uma personagem. Não quer dizer que a Marta não tenha nada que ver, mas sempre senti a necessidade de abordar esses temas. A minha preocupação principal é fazer rir. Independentemente se estou a mandar a dica de que alguém está a queimar a ficha de outrem. Quero é ter graça. Se uma história tem graça, eu pego e conto. O que acabo por abordar são questões que sempre me incomodaram desde nova. Estar num grupo de rapazes e ter de me destacar pela beleza ou por ser toda boa e não poder ter conversas de igual para igual. Eu esforçava-me para estar gata, assim com 14 anos, e depois cruzei-me com a Capicua e, de repente, coisas que não questionava, comecei a ganhar consciência delas e a ter voz. Em Beatriz Gosta as histórias são engraçadas, acabo por abordar várias coisas que mexem com homens e mulheres. A mulher de 2018 tem mais camadas de cinzento. Não é só a mulher pronta para se casar. Há quem defenda que através das redes sociais as mulheres têm mais possibilidades de se auto-representarem, no sentido em que escolhem o que mostrar, estando menos dependentes do olhar, da aprovação ou dos arquétipos projectados pelos homens. C. D. – Isso é muito fruto desta época. Na altura do Picasso as representações femininas proliferavam. As mulheres não tinham a sua própria voz e de repente no humor tens isso e é incrível. Poderes fazer a tua própria representação. J. M. – Isto entretanto já deu a volta, porque, quando falamos daquelas influencers e bloggers, já temos algumas que escravizam namorados e maridos, não sei se já viram, sendo eles os fotógrafos. Eles são os empregados delas. Elas estão impecáveis a posar na praia, com aquelas marcas patrocinadas. E lá vai o pobre coitado atrás para fotografar. B. G. – Eu estive agora na gala dos Blogues do Ano e eles tiram cursos de fotografia só para irem para o mar, com ela na rocha!C. D. – Temos as mulheres a contarem as suas próprias histórias e a auto-representarem-se, mas sinto que, às vezes, o mundo à volta não está ainda preparado para isso. Aquilo que faço, ao contrário da Marta, que é uma coisa que eu sei que tenho de equilibrar, é ter uma mensagem. B. G. – A minha mensagem, a chapada na cara, passa de outra maneira. C. D. – Eu faço alguma pedagogia, tens de equilibrar as palmas e o riso. “Tudo aquilo que tu escreves é para quê?” “É para teres palmas no final ou para teres risos no final?” E este equilíbrio para quem faz sátira política é lixado. Aquela é sempre a minha verdade, o meu ângulo. B. G. – E não podes correr o risco de ser só palmas, senão aquilo parece um comício. C. D. – Exactamente. Eu tenho dado alguns comícios! Estou na profissão errada. Há uns tempos, numa entrevista com um cientista, este dizia-me que não era tanto o resultado final das suas experiências que o entusiasmavam, mas o processo. Com vocês acontece o mesmo?C. D. – Não tenho controlo sobre a mensagem (a interpretação), mas enquanto o Ricardo Araújo Pereira diz que o humor não é uma arma e é para fazer rir, eu acho que o humor é uma arma. O humor tem um papel. Não é uma arma de destruição maciça, mas aleija um bocadinho. E só o aleijar faz dele uma arma. Aleija, tem um efeito e um resultado. No dia em que deixar de acreditar nisso, deixo de fazer isto. Imagina, o cidadão comum vê os debates do Orçamento do Estado, e diz: “Não percebo um cu e sei que me vão lixar no final. ” E depois vêm os comentadores e também não percebem nada. O que faço é descomplicar o Orçamento do Estado de uma forma que as pessoas queiram consumir, aprendendo alguma coisa. Acredito que a informação é poder. J. M. – Por isso é que disseste no início que queres mudar o mundo. B. G. – Também acredito nisso. Há sempre intervenção e no rap, volto a dizer, está sempre tudo ligado. C. D. – Claro. O rap pode ser de intervenção, como o humor também pode ser. B. G. – O rap não começou como intervenção. O rap começou em festa com o DJ que depois chamou o MC, ou declamador. E foi aí que a voz das desigualdades se fez ouvir. J. M. – Em relação ao Ricardo Araújo Pereira, o ideal seria um misto das duas coisas. Ele tem essa noção. Ele insiste muito na ideia de que “é só para fazer rir”, mas sabe que, quando pôs aquele cartaz a criticar o PNR no Marquês de Pombal, aquilo tem algum efeito. Obviamente, não acabou com o PNR, mas gerou qualquer coisa. Tanto que eles ficaram enfurecidos com aquilo. Ele percebe isso, mas põe em primeiro lugar o fazer rir e com isso concordo. Essa tem de ser a intenção. Se pelo caminho conseguimos passar a mensagem e fazer a pessoa pensar um bocadinho naquilo, mesmo que no fim não mude de ideias, tanto melhor. Por exemplo, quando falo das touradas, recebo muitos insultos. Sei que é uma batalha perdida. Eles não vão ouvir aquilo e dizer: “Olha, isto foi muito engraçado e afinal já não gosto de ver os touros ali a serem espetados”, mas trago aquilo para o debate. Mas o meu objectivo final é sempre ter graça. Não consigo ter graça a defender uma tourada, porque é completamente diferente daquilo que eu penso, isso não consigo fazer. Há humoristas que têm quase uma personagem. Não é o meu caso. A mim dá-me mais gozo tentar ter graça e no tal processo estar a divertir-me, acreditando que os outros se divertem com aquilo também. Se estou a analisar um programa da SIC em que eles se casam com pessoas que nunca viram antes, pode haver ali uma crítica do género “isto parece uma coisa muito moderna, mas já era usada há montes de anos, quando havia casamentos combinados, e agora parece aqui com ar de modernidade”. Depois o que quero é pegar naquelas pessoas e brincar com aquilo que elas dizem. Não quero que aquilo no fim tenha moral, enquanto outros temas poderão ter. Vou mais para o lado do entretenimento. A diversão pela diversão, mas gosto de fazer as duas coisas. Quando é, por exemplo, as praxes, que é uma das questões que suscitam mais ódio: sou completamente contra e dá-me gozo sempre que volta a época das praxes tentar dissecar aqueles discursos e porque é que estamos sempre nisto e nada muda. Isso diverte-me, mas se no outro dia for uma coisa mais fútil, digamos assim, diverte-me na mesma. O meu objectivo, no fim do dia, é que tenha graça. E depois, o resto, logo se vê. Falam muito nessa ideia de o objectivo ser fazer rir. Mas isso não é, evidentemente, controlável. Não sabem, à partida, o que vai acontecer. Agora, deve haver algumas coisas que fazem que percebem que podem gerar um efeito qualquer. J. M. – É a tal história de que falavas há pouco do cientista: o processo. Se no processo me divertir muito, tenho quase a certeza que a coisa funciona. Tenho a vantagem da rádio e o impacto nos meus colegas do lado. São uma pequena amostra. E na maioria das vezes não me engano muito. Quando estou em casa a fazer aquilo e me estou a rir, é porque à partida vai correr bem. B. G. – Mas às vezes achas que tem muita graça, e divertes-te muito com aquilo e depois o feedback é uma coisa que até nem curtes muito. J. M. – Isso nota-se mais em espectáculos. Há uma frase e achas que vai ter efeito e não tem efeito nenhum e outra que para ti nem era uma piada, era só uma passagem para outra coisa, e as pessoas riem-se. Como é que se lida com a ausência do riso?J. M. – Lida-se bem, se não assumires aquilo como um fracasso terrível. Só funciona para quem também não assume o riso como uma vitória incrível. É um bocadinho como as críticas de Facebook. Para não ligares àquelas muito más, também não podes ser o tipo de pessoa que liga às muito boas. Quando alguém diz aquelas coisas: “Genial” ou “És a maior”, não ligo. Do género, obrigada, são simpáticos mas não fico “ah, realmente sou”. Nada. E é isso que depois permite que outras não me deitem abaixo e que eu não saia mais de casa, porque este senhor disse que eu sou isto e aquilo. B. G. – Mas a primeira vez que tu leste um ódio… Acho que a cara ficou vermelha e fiquei quente. J. M. – Ah, péssimo. Com o coração a bater. B. G. – A primeira vez, nunca mais me esqueço. Mas lido bem com o ódio. J. M. – Também tens pouco. Vamos começar a mandar-te mais. B. G. – É pouco ódio, mas também não me deslumbro com os elogios. É tipo normal. Não me conhecem. C. D. – No início recebi muito ódio. E ainda recebo algum. Menos. As pessoas também incomodam-se com tudo, não é? Se tomas alguma posição sobre alguma coisa, há sempre pessoas que se vão indignar. Ao início, recebia muito mais, é curioso. Quando era mais desconhecida, recebia mais ódio e ameaças de processos. Mais do que hoje em dia. O tipo de pessoas que ameaçava é aquele tipo de gente que quer assustar, do género “só para ver se te calas”, mas depois perceberam: “Ela não vai sair daqui, mais vale deixar ficar. ”J. M. – Os meus níveis de ódio têm-se mantido mais ou menos constantes. B. G. – São temas específicos, não é?J. M. – Às vezes espanta-me quando é um ódio de que não estou à espera, ou seja, há temas que quando nos vamos meter neles, como o futebol, as touradas, as praxes, a religião, etc. , tu já sabes o que aí vem. É muito mais giro quando é uma coisa que eu acho completamente inócua, como a sátira aos youtubers. Abordei o que era ser youtuber com exemplos dos youtubers mais famosos em Portugal e satirizei cada um deles. A reacção foi também uma coisa geracional?J. M. – Senti-me velha nessa altura. Fui ver as pessoas que me insultavam, com coisas bastante violentas e muitos tinham oito ou nove anos. Sabiam insultos que, na idade deles, me eram desconhecidos. Até ameaças de morte de miúdos de nove anos recebi, com a fotografia de perfil deles com os pais, num passeio, com a família. E penso: os pais, para já, não fazem ideia de que eles andam a contactar com adultos e a insultá-los nas redes sociais. Que tipo de críticas é que fizeram detonar essas reacções?J. M. – Analisava os oito ou nove youtubers mais famosos em Portugal. Quis tentar perceber o fenómeno, mas obviamente é o meu olhar, é o olhar da nossa idade, de quem nós somos. Critiquei um bocadinho aquele universo. E não pensei que fosse a reacção mais violenta de todas. Sentiram-se muito indignados por tudo. O que fiz foi expor ao ridículo aquilo que eu considerava caricato e eles acham isso impensável. É uma afronta terrível. Sentem que são os melhores amigos deles que estão a ser postos em causa. Um sobrinho de um amigo meu não me queria falar cara a cara. Tinha gozado com os amigos dele e o argumento dele era mesmo esse. E provavelmente nem o poderemos criticar a partir dessa situação, porque muitos de nós com nove anos seríamos iguais. Só que não tínhamos esta ferramenta chamada Internet à disposição. B. G. – Não sentem que por serem humoristas as pessoas acham que são mais íntimas?J. M. – Sim, sim!B. G. – Na rua sentem que são minhas íntimas, que me conhecem de outra vida. Vão sem filtro. Chegam, abraçam, até me filmam sem pedir autorização, é uma coisa assim, sabes?Como é que se lida com isso?B. G. – Há dias em que eu estou triste como a noite e que não me apetece mesmo tirar fotos, nem conversas. No outro dia estava no metro, a chorar, com um desgosto. E de repente apercebo-me que alguém estava a tentar aproximar-se há imenso tempo. Eu na minha dor, a tentar não chorar em público e ela: “Podemos tirar uma selfie?” Eu desgraçada, disse: “Olha, hoje não dá mesmo. Um dia a gente cruza-se ou até combina, mas hoje não vai dar. ” E ele. “Anda lá. ” E lá tirei assim com as lágrimas, triste como a noite. Às vezes não apetece e eu digo que não, mas é raro. É chato para quem está comigo. O meu pai, os meus amigos, é chato. Eles até dizem: “Vamos dar-te umas perucas. ” Mas é chato, chato, chato. J. M. – É que a abordagem é logo com muita confiança. E há muito essa coisa do: “Tu é que tens de ir ter com eles. ”B. G. – “Andas cá tu e é se queres tirar uma foto. ” Na noite, bêbados. E académicos? Capas pretas, eu fujo. É muito abraço, muito agressivo. Aí a abordagem para mim é tudo. “Vem com calma. ”Há pouco falavam das gerações mais novas. E como é que é em relação às gerações mais velhas do humor? Sentem que há algum tipo de herança? Como é a essa ligação?J. M. – Tive sorte de escrever para o Herman José, que era uma coisa que eu pensava que nunca iria acontecer e foi muito emocionante. Lembro-me de ter sete ou oito anos e ver o Herman Enciclopédia e, de repente, alguns anos depois poder escrever e contactar com ele. Foi óptimo. Gostei muito. O Herman sempre procurou ter autores mais novos e vemos agora até pela actuação dele nas redes sociais que tenta sempre inovar. Não ficar congelado na sua posição. Gosta de ouvir as pessoas, tem uma curiosidade genuína e as pessoas gostam muito de o ouvir. Tem histórias inacreditáveis, parece que foram noutra vida. E todo os outros com quem tenho contactado e trabalhado é o mesmo. Aliás, eu e a Cátia, daqui a um mês, vamos integrar a equipa do novo programa do Ricardo Araújo Pereira. É uma honra. De todos os humoristas é o que está um passo acima de todos. Está noutro nível. B. G. – Sou megafã. J. M. – Para nós é uma oportunidade excelente. Daquilo que já contactámos com ele percebemos que tem muito interesse e é curioso. Vai muitas vezes sem avisar ninguém a um bar qualquer onde sabe que vai haver stand up comedy. Anda sempre à procura de talento e quer saber mais do que se passa na comédia em Portugal. E existe muita coisa: há os mais visíveis, mas fenómenos mais pequeninos também há muitos. E agora com a Internet, muito mais. Às vezes até convida alguém para ir jantar a casa dele, porque quer saber mais sobre aquele humorista. Acho isso fascinante, porque há sempre o perigo de chegar a um certo patamar – ele está no mais alto de todos nesta área – e esquecer o que está lá em baixo. Ele não tem isso. Tem uma curiosidade, quase infantil, de saber tudo o que se passa e está sempre motivado para fazer coisas novas. E isso, para nós, é muito entusiasmante, porque vemos que ele tem a mesma emoção que tinha quando estava na SIC Radical pela primeira vez a fazer os Gato Fedorento. É quase comovente e espero conseguir manter sempre esse entusiasmo depois de já ter feito tanta coisa como ele. Há muitos humoristas que nunca aprenderam a vertente mais performativa da actividade, o ser actor. No vosso caso, como foi esse desenvolvimento? Como é que se desenrolou essa procura?B. G. – Sofro muito sempre que filmo. Sofro muito até ao momento em que me dizem: “Avança, está fixe. ” Penso sempre que “não estou boa”. Mas tenho sempre uma equipa, ou a Capicua está lá, e é um filtro bacano. Ou então também trabalho com amigos e, se eles dizem que está bom, então está bom. Mas sou muito free style. Se me divirto, a coisa sai bem. Se estou tensa e stressada, vai correr mal. J. M. – Não é bem assim. Tenho de dizer que estive na primeira vez que a Marta actuou ao vivo, com uma plateia de centenas de pessoas. Antes estava quase a morrer e dizia: “Como é que eu vou falar meia hora?” E depois só saiu de lá ao fim de uma hora e tal. B. G. – É verdade. Mas é muito raro. Não acredito em mim, tenho dificuldade. Sou bué insegura. Não parece, mas sou. E, então, sou free style. Levo os temas trabalhados e para onde quero ir, mas às vezes quando me perco é quando tem mais graça. Às vezes estou a descrever a cortina e lembro-me ali de uma coisa qualquer e começo a avacalhar. Por isso é que o trabalho de edição é muito importante. Gosto mesmo de me perder e é aí que tenho mais graça quase sempre. E é isso. Sou muito emotiva, muito intensa, mas sou do free style. Quando as coisas saem direitinhas, escritas e não sei quê, quase de certeza que não vai sair nada com muita graça. J. M. – Não tenho jeito para o humor físico. Não sou muito expansiva e expressiva. O Daniel, que faz comigo o espectáculo Altos e Baixos, é o oposto. É muito mais de humor físico do que eu. Às tantas estou a vê-lo de fora, porque sei que sou a pessoa mais racional e que vai dizer tudo como tínhamos combinado e escrito. Funciona por esse contraponto. Estou sempre a tentar puxá-lo de volta quando ele já está a improvisar tipo a Marta. Aí esse complemento funciona bem. Eu sozinha é uma coisa que acontece menos vezes, pontualmente até para coisas de empresas. E aí tenho mais dificuldade. Sinto que vou ser exactamente eu. Mas muitas vezes as pessoas ouvem-me na rádio, onde tenho este registo, e acabam por não ter a expectativa que eu entre com plumas e que seja uma coisa diferente. O meu registo é o de uma conversa normal de café. Nunca encarei a coisa como uma performance, nunca treinei para isso. B. G. – Eu exagero. A Beatriz já é assim mais bicha. C. D. – Eu sou mais aquilo que sou cá dentro. Sempre fui muito Mafaldinha, digo imensos palavrões, sou muito emotiva e falo do coração. As coisas que já fiz ao vivo é do coração, porque faço aquilo mesmo em que acredito. Sou muito apaixonada por isto. Então, como acaba por ter sempre alguma mensagem, adapto aquela coisa quase de comício. J. M. – Mas vais com texto preparado?C. D. – Na maior parte das vezes não vou. Tenho dois ou três tópicos e falo. J. M. – Eu escrevo tudo mesmo que depois não diga. B. G. – Para interiorizar. C. D. – Tornas aquilo tão natural e vais sentindo o público. A coisa vai e eles vão contigo. Falo sempre de coração, ou seja, tenho muita paixão pelo que faço. Sou muito mais Mafaldinha, muito mais reivindicativa. J. M. – A mim aborrece-me de morte. A história do Altos e Baixos, combinámos fazer apenas Lisboa e Porto. E depois acabámos por fazer 16 datas. Existe o efeito de repetição. Já odeio, porque escrevi e já me ri quando escrevi. Fazer a primeira vez já me chateia um bocadinho, porque sinto que é repetir. Fazer mais de uma dúzia de vezes é um martírio. O Daniel diverte-se imenso, porque para ele é sempre diferente. Eu estou mais ligada àquilo que fiz e que preparei e não me divirto muito. Há sempre reacções diferentes das pessoas, mas não é a parte que me diverte. Divirto-me é em casa, de pijama, a escrever. Para mim esse é que é o momento. Quando descubro aquela piada e “isto funciona” e “isto faz sentido” – isso para mim são os momentos felizes. B. G. – Não te fascina o contacto com as pessoas?J. M. – Se pudesse não contactar com pessoas, estava bem. Queriam ser o quê antes de começarem a fazer humor?B. G. – Nem me considero humorista. Só queria contar histórias. Sempre tive pânico a vida toda, porque nunca tive um dom evidente. E até hoje não sei o que é. J. M. – É porque tens jeito para muitas coisas e isso é dramático. B. G. – Não acho que seja isso. Não tenho jeitinho para nada. Não sou boa em nada e não sei para que é que nasci. Mas sou comunicativa e gosto de dar love também. São duas coisas em que não sou assim tão chunga. C. D. – Quando era pequena, gostava de ser arqueóloga, mas acabei em publicidade — muito fascinante, não é? Mas sempre gostei de escrever e então publicidade foi aquilo que me pareceu melhor. Pensei: “Onde é que eu posso escrever e me pagam?” Na publicidade. E é engraçado que tens muitos humoristas que saíram da publicidade — porque te dá aquela liberdade de te extravasares e de escreveres. Trabalhava em agência e escrevia o que me apetecia nas minhas horas de almoço. Então houve uma altura em que comecei a pensar: “O que é que eu quero mais? Ser mais uma precária, mas fazer o que gosto, ou ganhar dinheiro e ser extremamente infeliz?”B. G. – Eu também passei pelo mesmo. C. D. – Então a escolha, na altura, tinha 20 e tal anos, pareceu-me clara. Para os meus pais foi terrível. “De repente vais ficar precária por opção. ”B. G. – Mas estás arrependida?C. D. – Nada. Agora faço ao contrário. Sou freelancer em publicidade e faço isto a tempo inteiro. Continuo a ter de pagar contas. B. G. – Eu também estava muito infeliz a trabalhar como designer de moda numa fábrica. Sempre trabalhei em agências de moda e nunca numa fábrica e é mesmo duro. Pica-se o ponto, ouve-se a sirene, as costureiras saem de lá com o ordenado mínimo e em condições mínimas. Eu tinha mais privilégios, mas aquilo foi um choque. Conversar com elas e perceber aquelas vidas. Eu chorava para ir trabalhar, sou sincera. Acordava às 6h da manhã e ia para Paredes de comboio às 7h para estar lá e entrar às 8h30. Foi muito duro e o pessoal: “Ai Marta, sai dessa. ” Esperei o tempo certo e estava muito forçada nessa altura e foi quando a Capicua disse: “Tu és uma óptima contadora de histórias, liga aí essa câmara e vamos ver. ” Não tinha intenção. “És uma óptima contadora de histórias, ninguém adormece quando contas uma história. ” E pronto. J. M. – Isso para crianças é péssimo. Não podes fazer isso com crianças. Nós contamos histórias às crianças para elas adormecerem. Tu estragavas isso. B. G. – Aconteceu assim naturalmente, nem me considero humorista. Tudo bem, não é que eu não tenha uma mensagem. Preocupo-me que tenha graça e que passe uma mensagem, claro. Mas quero é que tenha graça, porque, se não tiver, morri. J. M. – A minha mãe conta que eu queria ser pintora, mas devo ter percebido que não tinha jeito. Quando aprendi a escrever, comecei a dizer que queria ser escritora. E os meus pais começaram a dizer: “Eh pá, isso é capaz de ser complicado. ” Gostei sempre de escrever, adorava as aulas de Português. Foi uma ferramenta que arranjei e gostava muito. E a Marta estava a falar de nunca saber bem o que é que havia de escolher. Eu tinha o problema contrário. Fui fazer aqueles testes psicotécnicos que dizem qual é a área para a qual deves ir e a mim dava-me 98% ou 99% de humanidades e letras. Não tenho jeito nenhum para o resto. Matemática, zero. Mesmo para línguas, francês e inglês, nada. Foquei-me no português e, quando chegou a altura de escolher – não havia nenhum curso superior para ser guionista –, fui para Jornalismo, mas rapidamente percebi que também não era por aí. Vejo agora alguns colegas de turma na CMTV a fazer reportagens, coitados, e penso: “Ainda bem que saí disso a tempo. Não é para mim, ia ser infeliz. Nem gosto muito de contactar com pessoas. Então imagina andar atrás de gente com um microfone. ” Felizmente, na mesma altura, surgiu um curso de Escrita de Argumento em que pude começar a escrever num tom mais humorístico. Depois convidaram-me para começar a trabalhar e tive a sorte de nunca ter tido um trabalho que detestasse. Respeito muito quando amigos me dizem que têm trabalhos de que não gostam. Deve ser terrível e considero-me sortuda. Obviamente que temos sempre de responder perante alguém que pode dizer: “Olha, isto não presta, faz outra vez. ” Mas é mais leve do que ter um qualquer patrão ditador. Além de humoristas, são também figuras públicas, sendo solicitadas para as mais diversas coisas, algumas com propósitos que pouco ou nada terão que ver com a vossa actividade. Como gerem isso?J. M. – É bom aprender a dizer não. Ao início queres fazer tudo. Tudo é novo e vais experimentar, porque não? Os anos vão-te fazendo ser mais selectivo por todos os motivos. Tenho feito esse exercício. Claro que ainda hoje há coisas que me entusiasmam menos. Na época do Natal, as empresas dão festas, por exemplo. Nunca sei bem ao que vou e gosto dessa parte do desafio. Mas ainda no outro dia estive na festa de Natal de uma empresa em que estava já tudo bêbado, quando estávamos a entrar. Até fiz sinal ao Daniel a dizer “Vamos tentar ser rápidos”, porque não nos estão a ouvir. Ou seja, é um bocadinho desperdício e isso é chato e é incontrolável. Mas a verdade é que tem um lado financeiro bom para depois às vezes fazeres coisas que não dão dinheiro nenhum – ou seja, tem de haver este equilíbrio, mas, hoje em dia, não faço nada (já aconteceu fazer trabalhos penosos) se sinto que está a ser penoso. Isso já não vale a pena, porque depois é prejudicial. Tento fazer sobretudo coisas em que tenho mais controlo. Isso é bom. Se escrevo uma rubrica de rádio, faço-o para mim. Se correr mal, é culpa minha. Não há aquela coisa de: “Vou entregar um texto a outra pessoa que vai apagar tudo e fazer de novo e vou-me irritar. ” Claro que continuo a gostar de escrever para outros. Esta oportunidade de escrever para o Ricardo Araújo Pereira. . . estou feliz. Sei que ele vem também desse lugar do texto e respeita-o. Não é daquelas pessoas para quem escreves um texto, deita fora e faz ele. “Para que é que estive a perder cinco horas em casa”? À medida que vamos crescendo e fazendo mais coisas, também aprendemos a escolher e a perceber esse equilíbrio que não é fácil. De repente, pode-nos aparecer alguém com muito dinheiro, mas é uma coisa que sabes que vais odiar. Tens de dizer que não e pensar que vai aparecer outra coisa. C. D. – Eu sou das que sofrem menos assédio de marcas. Claramente. Sou pouco atractiva para marcas e ainda bem. O modelo de negócio das marcas é uma coisa que me interessa e portanto chumbam-me todas. O assédio que sofro é de colectivos e outras organizações, e aí penso se faz sentido ou não. De repente, têm uma pessoa que consegue engajar o público que é deles e consegue transmitir mensagens da forma que as pessoas querem consumir. É fixe ter uma pessoa assim no nosso lado e eu tento gerir bem isso. Faço o que para mim faz sentido e não tenho qualquer associação a partidos. Em escrita de humor faço o que quero e para pagar contas faço copy em publicidade e campanhas, porque é extremamente difícil para mim fazer, dentro desta área, uma coisa de que não goste. B. G. – Eu também tenho esse filtro bem marcado. Abri uma excepção no outro dia. Sempre disse “não, não, não” e abri uma excepção por ser a Soares dos Reis, uma escola do Porto muito querida. Os meus amigos saíram de lá e pronto, não me arrependo, porque foi mesmo incrível. Adorei aquele pessoal. Muito mais à frente do que nas faculdades. Nas tunas estão sempre bêbados e embebedam-me e eu saio de lá descabeladona. Os académicos têm uma forma com que não me identifico muito. Mas depende. Vou lá, cheiro de perto, gosto de ver como é que aquilo está. Às vezes fico surpreendida e também deixo lá a minha semente. Acho que consigo matar sem o pessoal me levar a mal, não sei porquê. C. D. – O ódio que recebo ultimamente é mais selecto. São pessoas que estão firmadas na sociedade e que ficam lixadas se tu as pões em causa. E eu sinto que é por ser mulher. Esta é a minha sensibilidade. Sinto que se fosse um gajo, se fosse um humorista qualquer homem a dizer aquela graça, passava. Agora, como é mulher, sentem uma humilhação diferente. B. G. – Concordo. E ainda dizem mais: que és uma ressabiada, de mal com a vida e tal, mal fodida mesmo. C. D. – Mas o que é que estas pessoas sabem da minha vida?B. G. – É porque estás a tocar na ferida. C. D. – “Como é que esta pessoa ousa estar a pôr-me em causa”, parecem dizer. Quem me conhece sabe bem que aquela máxima do “respeitinho é muito bonito” não é para mim. Nunca. E não era agora com 30 anos que a vou perceber. Sempre gostei de me meter com os mais crescidos, os “lá de cima”. Os problemas por norma estão lá em cima. Então, nós temos de olhar um bocadinho para cima, pelo menos é o que eu faço. Começámos a conversa pelo despertar. E qual é a última coisa que fazem antes de se irem deitar?B. G. – Depende de onde venha. Há alturas que chego a casa, tiro a roupa e meto-me na cama. Fica ali pelo chão e piscininha na cama. Por vezes vejo filmes ou séries tipo viciada. E a novela da SIC Segundo Sol. Dou uma puxada. Ou então, como dá muito tarde, à meia-noite menos cinco, colo na novela e depois vou dormir sem ir ao telemóvel, que é para não dar insónia. C. D. – Sem querer parecer uma Twitter junkie, vou ao Twitter, perceber se o mundo está bem, se a vigilante pode ir dormir. Isto afecta mesmo a minha vida. E ler um livro. Às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Antes tinha o hábito de ler muito e agora sinto que está cada vez pior. J. M. – Ganhei o hábito de ir espreitar o meu filho, ver se está a dormir em alguma posição estranha, acho querido. E percebi que é um bom calmante. Passamos o dia em Twitters e Facebooks e, de repente, uma pessoa vê aquilo e pronto. É o mais engraçado lá de casa e dorme em posições cómicas. Depois vou dormir e já não tenho aquela tensão do dia. Às vezes ia ver coisas estúpidas na Net e chegava a sonhar com coisas que via. Sinto que aquilo é um bom calmante natural, é ainda melhor do que Valdispert. Por outro lado, isto não é tão idílico como parece, porque, ao fim de algum tempo, ele acorda e tenho de ir lá. Ele acordar já não tem graça nenhuma e a minha noite é muito acordar e adormecer. B. G. – Vocês aterram logo ou ainda ficam a matutar no trabalho?J. M. – Caio na cama, logo. B. G. – Fogo, tenho uma inveja desse povo. Eu tenho muita insónia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Produção: Marta Lobo Fotografia: Miguel Manso Maquilhagem: Elodie Fiuza Cabelos: Mafalda Belo Assistente de realização: Madalena VilarJ. M. – Às vezes sonho com coisas que podiam ser úteis e depois esqueço-me. É isso. O PÚBLICO agradece à Livraria Ler Devagar, na LX Factory, em Lisboa pela cedência das suas instalações para fazer a entrevista.
REFERÊNCIAS:
Como é envelhecer bem? A arte e os truques de Maria Cavaco Silva, Maria João e Nayma Mingas
Nenhuma tem uma fórmula do tipo "comer uma taça de mirtilos por dia". É sobretudo uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser feliz, querer ser, não ter medo de rir nem de chorar. Três mulheres de três gerações falam sobre envelhecer, pintar o cabelo, o amor e a morte (...)

Como é envelhecer bem? A arte e os truques de Maria Cavaco Silva, Maria João e Nayma Mingas
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nenhuma tem uma fórmula do tipo "comer uma taça de mirtilos por dia". É sobretudo uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser feliz, querer ser, não ter medo de rir nem de chorar. Três mulheres de três gerações falam sobre envelhecer, pintar o cabelo, o amor e a morte
TEXTO: Esta é uma conversa em que se pergunta a idade às senhoras e por isso aqui vai: a manequim Nayma Mingas tem 44 anos, a cantora de jazz Maria João tem 62 e a antiga primeira-dama Maria Cavaco Silva tem 80. O tema é o envelhecimento e a escolha é simples: são três mulheres que, por causa da sua vida pública, estão a envelhecer à frente de todos nós. No fim, depois de falarem sobre viver bem e morrer bem; pintar o cabelo e ir para um “asilo”; máscaras do Congo e eutanásia; fazer trail e ler Séneca; imortalidade e respeito pela Terra; rir e chorar; ter fé e ser ateu; mais os medos e as alegrias que aparecem com os anos e a solidão da viuvez, alguém disse: “Seria impossível ter esta conversa com três homens. ”Igual não seria, isso é certo. Maria Cavaco Silva conta que tem “uma relação amistosa” com a idade e que durante anos se achou parecida com a actriz Audrey Hepburn. Quando o marido, Aníbal Cavaco Silva, foi eleito Presidente, em 2006, sentiu que era olhada como a “imagem-padrão da mulher portuguesa” e preocupou-se um pouco com isso. Mas foi com a avó materna que aprendeu a envelhecer. Maria João diz que nunca pensa no envelhecimento (“juro!”) e que “querer ser” o que é agora é o que a ajuda a não pensar na idade. “Como quero, sou”. Já que tem de morrer, pelo menos que não seja no Verão. Não gosta de falar sobre isso, mas já fez um pedido improvável a um grande amigo. “As pessoas têm de ter o direito de escolha. ”Nayma Mingas tem os pais vivos e por isso ainda é “a filha de”. No caso, de Ruy Mingas, músico (autor do hino nacional angolano), ex-ministro do Desporto de Angola e embaixador em Portugal, e Julieta Mingas, antiga professora de Biologia Celular na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. É ela, mas não só, quem leva a conversa para África, onde os velhos morrem em casa e “cota” é uma palavra bonita. Diz que quando o seu cabelo começar a ficar branco, não o vai pintar. Os truques destas mulheres não são servidos em forma de receitas do tipo “x” comprimidos de vitamina B12 ou uma taça de mirtilos por dia. É mais uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser o mais feliz possível, não ter medo de rir nem de chorar. P: Começo pela Nayma, a mais nova das três. Tem 44 anos e está rodeada por mulheres com metade da sua idade. Sente-se velha?Nayma Mingas (N. M. ): Não, de todo. O peso do envelhecimento tem muito a ver com o ambiente em que estamos. No meu caso, embora as pessoas com quem trabalho sejam muito mais novas do que eu, sei que faço parte da geração que quebrou esse tabu, da geração das mulheres que conseguiu provar que pode continuar a trabalhar como manequim independentemente da idade que tem. P: Como é que se quebrou esse tabu?N. M. : Tem a ver com a surpresa das pessoas quando digo a minha idade. As pessoas acham que eu tenho 30 anos. Ainda hoje o Paulo Macedo [ex-director criativo da Vogue Portugal] me disse: “Miúda, tu não envelheces!” Continuam todos a tratar-me por “miúda”. Perguntam-me se estou conservada em formol… fazem muitas piadas à volta da minha aparência. Mas uma das coisas mais importantes para a longevidade da minha carreira, independentemente da minha aparência, tem a ver com as campanhas internacionais feitas contra a discriminação, a favor da diversidade e a aceitação dos vários tipos de beleza. Isso é muito importante. A própria publicidade mudou. Há 20 anos, lembro-me de ver jovens com 25 anos a venderem cremes anti-rugas e não fazia sentido. Até era desrespeitoso em relação ao cliente. Maria João (M. J. ): Continua. Continua a haver anúncios desses…N. M. : Já não tanto. Até há o resgatar de manequins mais velhas para fazerem essas publicidades. M. J. : É verdade. N. M. : O público já é mais inteligente, já não vai atrás da miragem da beleza perfeita. As pessoas querem ser aceites tal qual elas são. Maria Cavaco Silva (M. C. S. ): Eu já vejo manequins da minha idade, senhoras fantásticas, com a sua idade marcada. . . Acho isso uma grande conquista. P: Hoje há sobretudo o culto do corpo estilizado e asséptico? Esse é o novo preconceito?N. M. : Sim. Vivemos no mundo das redes sociais, muito digital, onde podemos acordar com má cara, mas há uma aplicação que nos tira as olheiras, que nos suaviza a pele e até podemos mudar o cabelo, podemos estar completamente despenteadas e pôr um cabelo perfeito…M. C. S. : …Disto eu não sei nada…N. M. : … E isto cria uma forma de estar na sociedade que é errada. As pessoas estão a habituar-se à perfeição, à vida editável, e isso é mau porque no dia-a-dia as pessoas escondem-se, escondem-se atrás de maquiagens e de muitas formas de estar naturais que devem ser aceites naturalmente. P: Já não há a pressão da juventude eterna?N. M. : Ainda continua a haver, porque as pessoas cada vez mais a procuram. P: Na música há essa pressão?M. J. : Não. Não sinto isso, não senti até agora. Não senti, aliás, nenhum tipo de discriminação neste tempo todo. Sinto-me uma privilegiada. Tive muita sorte, estive sempre rodeada de pessoas incríveis, músicos absolutamente inspirados e que me ajudaram a ser a cantora que eu sou, a música que eu sou. Até agora não sinto, mas não sei se quando ficar mais velha se vou sentir. P: Diz que o seu instrumento “é” o seu corpo e “está dentro” de si. Não tem medo que o corpo envelheça mais depressa do que a cabeça?M. J. : Que os nossos corpos envelhecem mais depressa do que nós, do que nós pensamos e do que nós somos enquanto pensamento e pessoas, isso eu reparo. E reparo nas minhas amigas e nas pessoas à minha volta. Infelizmente é assim. Mas até agora tenho tido essa sorte. P: Como é que trata do seu corpo-instrumento, que truques usa para enfrentar a parte física do envelhecimento?M. J. : Sempre fiz desporto. Desde miúda que faço natação, agora comecei a correr, comecei a sonhar com triatlo, corro trail. Fiz aikido durante 40 anos (agora só parei porque me lesionei)… O desporto é uma coisa maravilhosa para nos mantermos bem. É essa a minha opinião e a minha experiência. Fiz isso com o meu filho: insisti desde sempre que ele fizesse desporto. P: Ele é atleta. . . M. J. : Sim, faz natação de competição e passou ao lado da droga, álcool, fumo. Sou muito fã de desporto e continuo a fazer, custe o que custar. Às vezes levanto-me e penso: “O que é que vou fazer? Vou correr, tenho que ir correr!” Tem de ser, todos os dias, e isso ajuda-nos e dá-nos muitas ferramentas em termos de disciplina, de sacrifício, de esforço, e mantém-nos bem, saudáveis e fortes. E mantém o sangue a correr. P: As cordas vocais envelhecem?M. J. : Até agora, não senti e continuo com esta “vozinha”!… Eventualmente, elas tenderão a envelhecer connosco, estão dentro do corpo…P: O que é que acontece às cordas, já estudou?M. J. : Não, não estudei, nem quero pensar nisso! Até agora, está bem, portanto não quero pensar nisso. Falar de envelhecimento, e debruçar-me muito sobre esse assunto, vai acabar por acabrunhar-me, vou ficar mais perdida. Continuo a fazer tudo o que sempre fiz e sinto-me bem e por isso prefiro não falar nisso, acho uma perda de tempo. P: Acaba de fazer 80 anos. Se pensar nas coisas importantes que aprendeu, o que é que não sabia quando tinha a idade da Nayma Mingas?M. C. S. : Quando tinha a idade da Nayma, estava dar uma grande reviravolta à minha vida. Quase sem sentir e quase sem saber, caiu-me em cima, de pára-quedas. Sei muito mais coisas hoje, mas provavelmente muitas das coisas que sabia quando tinha a idade da Nayma, já esqueci. Há um equilíbrio entre o que se vai limpando, porque é necessário, e o que vamos aprendendo. Continuo a sentir-me como professora, apesar de já estar reformada, mas isso é válido para todas as pessoas: todos os dias aprendemos qualquer coisa e o dia em que não aprendemos há qualquer coisa que falhou. Não creio que seja de ignorar que é importante aprender, mas também será importante desaprender. E é esse equilíbrio entre o aprender e o desaprender que vai continuando e, como a Maria João dizia, talvez haja determinadas coisas que, quando elas aparecerem, logo as enfrentamos. A Maria João disse: “Eu não vou estar já preocupada com isso. ” Lembro-me de uma coisa que o D. Manuel Clemente [cardeal patriarca de Lisboa] me contou há muitos anos, que havia uma senhora que lhe dizia, na parte final da vida, era ele apenas padre: “Ai, padre Manuel, tantas coisas com que eu me preocupei ao longo da minha vida e que não vieram nunca a acontecer!…”. Nunca me esqueci disto, porque isto é muito importante. P: Não sofrer por antecipação…M. C. S. : Não vale a pena estar a sofrer por antecipação. Acabei de fazer 80 anos, mas os meus amigos ainda dizem: “Continuas a ter uma voz de menina. ” [Envelhecer] não quer dizer que a Maria João não vá continuar a ter a sua voz e aquilo que tem feito ao longo dos anos. Ainda há bem pouco tempo a Celeste Rodrigues…P :… que tem 90 e tal anos…M. C. S. : Sim. Eu levei-a a Belém, para uma noite de poesia, e ela foi acompanhada pelo bisneto. O bisneto tocava e ela cantava. E ela dizia: “Tenho de sair de casa, tenho que cantar todos os dias, senão não sou eu, não me sinto bem. ”P: A sua opinião, a sua forma de pensar, mudou com a idade?M. C. S. : Sim, em relação a muitas coisas. Vi aquele filme, achei o filme extraordinário na altura. Agora vou ver outra vez: “Ai não, afinal não é assim tão extraordinário. . . ” Não quer dizer que seja uma questão de exigência… é uma questão…M. J. : … de ponto de vista…M. C. S. : … Não. É estar diferente, encarar as coisas de uma maneira diferente. No meu caso, mais madura. Mas a Maria João dizia — e é verdade — que a cabeça envelhece mais devagarinho. E é uma sorte quando isso acontece, porque depois há todas as doenças com o envelhecimento, as senis, os Alzheimers. Mas quando o envelhecimento é normal e natural, a cabeça vai mais devagar do que o corpo. Às vezes olho para um escadote e digo: “Vou subir. ” E depois digo: “Não, vamos lá tentar…”M. J. : … é melhor não!…M. C. S. : E digo: “Vamos lá tentar… É melhor não. ” E depois começo e concluo: afinal não é tão fácil como parecia. E o meu marido dá-me gritos: “Tu não penses sequer em subir o escadote!” É um risco que se corre com uma certa idade: a pessoa está em casa sozinha, tenho tido muitos exemplos disso, acha que vai, sobe, as coisas correm mal e uma fractura no colo do fémur muitas vezes é mesmo fatal. Portanto, temos de manter o equilíbrio entre a cabeça e o corpo. P: Diz-se que com a idade ficamos mais conservadores e mais de direita — e que isso acontece até às pessoas de esquerda. Como tem sido no seu caso?M. C. S. : Não, não acho. Eu era muito rebelde, mas as minhas colegas aqui [na entrevista] já me disseram: “É tal e qual como eu a conheço. ” Continuo bastante rebelde. P: É rebelde em quê?M. C. S. : Rebelde até nas reacções imediatas, coisas simples do dia-a-dia. Elas estão a dizer que sim [com a cabeça] porque foi nessa linha que elas disseram…M. J. : Foi sempre assim que a conheci, sempre, sempre…M. C. S. : Portanto, não mudei e os meus amigos dizem: “Tu estás sempre na mesma”, nesse aspecto de reagir de imediato, nariz arrebitado, linguinha afiada. . . P: Não é uma mulher ponderada, hoje que tem 80 anos?M. C. S. : Ai, não! Vê, como eu rio?! É que… “Di” jeito nenhum! As duas disseram-me isso. [Nos bastidores], a Nayma disse-me: “Ah, isto é de professoras, porque a minha mãe também é assim. ” Não tem de ser: há professoras muito calmas, muito cordatas, mas eu nunca fui. Não é agora que vou mudar. Mas não sei o que está para me acontecer. P: Quando era pequenina, a Nayma imaginava que ser velha era o quê?N. M. : Para mim, alguém com 40 anos já era muito velha. Tenho uma irmã que é oito anos mais velha do que eu e lembro-me de, a certa altura, olhar para ela, já era uma mulher e eu era ainda uma criança, e de ter jurado a mim mesma que nunca seria igual a ela. Tal era a minha ignorância sobre o crescimento e o desenvolvimento do corpo de uma mulher. Mas para mim ser-se velha nunca foi um termo depreciativo. O mais velho em África é sempre muito respeitado, tanto é que a forma como a palavra “cota” — palavras que vêm de Angola e que foram adoptadas em Portugal — são vistas em Portugal de uma forma… Em Portugal “cota” é ofensivo, para nós é respeito. Hoje já sou tratada por “mãe-grande”, “cota”, por miúdos que têm 18, 20 anos, que conhecem a minha carreira, e por respeito, já me tratam desta forma. Para nós, a pessoa mais velha é a pessoa com mais conhecimento, é a que nos educa, a que nos põe no caminho correcto. Em África, é assim. . . M. J. : É muito verdade, em Moçambique também é assim. M. C. S. : A Europa está um bocado virada. N. M. : A primeira vez que estive num asilo fiquei… não digo em estado de choque… mas em estado de choro. P: Foi em Portugal?N. M. : Sim. Nunca tinha visto os idosos serem tratados assim. P: O que é que viu?N. M. : Vi pessoas abandonadas, o que para nós não existe. Os nossos “cotas” morrem em casa, nós fazemos questão de os ter connosco. P: Em Luanda ainda é assim?N. M. : Sim. Ainda agora estive em Luanda e tive uma situação muito engraçada. Toda a gente ouve falar do trânsito, que é caótico. E eu estava a chegar a casa com a minha irmã, estávamos a entrar na rua da casa dos meus pais, de repente vimos uma senhora a atravessar a rua e eu reparei que estava com muletas. Disse “pára” e saí do carro para a auxiliar. O carro de trás começou a buzinar. No momento em que eles perceberam que eu estava a auxiliar uma senhora mais velha, pararam e começaram logo a pedir desculpa. “Ai, desculpa, desculpa. . . ” É assim que nós reagimos em relação às pessoas mais velhas. P: Não há lares de terceira idade em Luanda?N. M. : Neste momento, não posso dizer que não existam, porque temos muitos refugiados em Luanda, mas quando vim para Portugal, nunca tinha visto um asilo, não sabia o que isso era. M. C. S. : A Nayma chama “asilo” e nós chamamos “lar de terceira idade”. Aqui está a diferença do “cota” em África e do “cota” na Europa e em Portugal. O asilo é uma coisa muito mais negativa. Esta história da língua, para mim que sou professora, é muitíssimo interessante. P: Essa é a principal diferença entre envelhecer em Luanda e em Lisboa: os velhos não estarem sozinhos nos anos finais da vida?N. M. : Talvez. Não quero fazer uma acusação e dizer que todos os idosos são abandonados em Portugal. Talvez se deva ao facto de em Angola termos uma população muito jovem, e por isso cuidamos tão bem dos nossos idosos. A população em Luanda acima dos 65 anos é de 2%. P: É verdade que a pele negra envelhece melhor do que a pele clara?N. M. : Parece que sim. Parece que a melanina tem um peso muito grande na elasticidade da pele. A minha mãe é bióloga, poderia explicar melhor. Estou em crer que sim. Quando me deparo com colegas minhas da minha idade, a pele delas tem uma aparência completamente diferente da minha. Penso que já está provado: quanto mais melanina se tem, mais elástica é a nossa pele e menos tendência tem para envelhecer. P: A Maria João está no meio: se lhe pedisse uma palavra para definir que mulher era aos 20, aos 40 e agora aos 60 anos, qual seria?M. J. : Acho que diria a mesma. Eu sempre achei uma festa fazer anos. Fiz 20, hey! Fiz 30, oh! oh! Fiz 40, ah! Fiz 50, fiz 60, eh! eh! Sempre foi uma felicidade, nunca foi um peso para mim. Sinto-me sempre surpresa quando falamos disto e é a primeira vez que participo numa entrevista em que se fala sobre a idade. Porque eu, realmente — juro! — não penso nisso. Não é que não queira pensar porque tenho medo. Não costumo pensar. Como tudo funciona ainda bem… Olho para trás e vejo que a João dos 20 anos era a mesma coisa dos 30. OK, nos 30 tive o meu filho, portanto, talvez tenha ficado com mais essa responsabilidade, de tomar conta, ajudar a crescer e criar uma outra pessoa, e depois com 50… Julgo que sou a mesma pessoa. Mas se calhar há uma diferença entre aquilo que julgamos e aquilo que somos de facto — e aquilo que queremos. Eu gostaria de manter-me a mesma pessoa, de achar que continuo a ser a mesma João, com os mesmos defeitos e as mesmas qualidades. P: Hoje quer as mesmas coisas que queria há 30 anos?M. J. : Quero ser feliz, quero ser saudável, quero que me deixem fazer as coisas que eu quero, quero ser livre, quero não ter problemas, quero poder amar, não ter problemas para que possa fazer tudo, inclusive amar, porque quando temos problemas, financeiros, por exemplo, não conseguimos nem amar. É isso que eu ambiciono, mas julgo que sempre ambicionei. Quero um dia de sol, quero poder correr, quero que o meu filho esteja saudável, os bichos que eu tenho, os meus amigos…P: Quando vai em digressão — com os concertos, as noites e o peso físico que isso implica — faz coisas diferentes do que fazia há uns anos?M. J. : Não, eu continuo a fazer directas. Uma pessoa chega toda rota ao destino final, mas sempre cheguei toda rota aos destinos finais, porque directas não se fazem, nem agora nem em altura nenhuma. Mas continuo a fazer, tem de ser…P: Não canta a seguir a uma directa…M. J. : Então não!? Tem de ser! Se hoje tenho um concerto em São Paulo e a seguir um em Buenos Aires e se eu não fizer directa já não posso fazer… Não posso fazer o quê?! Claro que vou! Sou viciada em música, eu amo música, e por isso faço estas coisas. P: Quando é que fez a sua última directa em palco?M. J. : Em palco… cantar logo a seguir? Bom, eu arranjo sempre um bocadinho à tarde para desinchar! Para desinchar e para dormir um pouco. Não, não pode ser chegar e fazer o concerto. Isso nem se consegue, porque a voz não sai. Há uma diferença entre aquilo que nós queremos ser e aquilo que somos de facto. Mas o querer ser ajuda. E eu quero ser esta mesma pessoa. Quero as mesmas coisas. Eu quero e, como quero — e isto tem muita força. . . M. C. S. : Querer é poder…M. J. : Como quero, sou. P: No seu caso, faço a pergunta ao contrário: quando tinha 20 anos, como é que imaginou a mulher que seria se chegasse aos 80?M. C. S. : Nunca imaginei. Tenho uma relação bastante amistosa com o passar dos anos…M. J. : . . . “Relação amistosa. ” Não me vou esquecer. M. C. S. : Tenho boas razões para isso. Tenho uma mãe que morreu com 24 anos, com a praga da tuberculose — aliás, a minha avó materna perdeu os dois filhos que tinha. A minha mãe eu não conheci, mas o meu tio, que conheci, morreu dez anos depois com a mesma doença. A vida para mim é um dom, um dom que eu tenho de apreciar, dar muitas graças a Deus, permanentemente. Com 20 anos, eu estava debaixo daquela marca, porque fui criada de uma maneira um bocado calamitosa. Não fui criada com a minha avó. Fui criada com uma mulher da idade da minha mãe, irmã do meu pai, minha tia, em Lisboa, enquanto a minha avó permaneceu no Algarve. A minha avó — e percebe-se: quando eu tinha dez anos, morre-lhe o outro filho — eu espirrava e ela levava-me a Fátima. Costumo dizer: as avós levam os netos ao médico, a minha levava-me a Fátima. Isso fez de mim uma criança um bocadinho frágil, uma criança muito magrinha, assim como a Nayma — agora já sou mais anafadinha —, [uma criança com] um problema que só a Audrey Hepburn, com quem durante uns tempos me achei parecida, é que me salvou, porque a minha avó dizia, quando ela apareceu, muito magrinha. . . P: Uma revelação, Audrey Hepburn…?M. C. S. : Do meu marido eu digo que é parecido com o Cary Grant e ele diz: “A minha mulher era parecida com a Audrey Hepburn. ” Portanto, com 20 anos, tinha essa espada em cima da cabeça. Depois passou-me. Quando cheguei aos 30, já tinha dois bebés e isso saiu-me completamente da cabeça. E depois aos 40 continuei a fazer anos. Continua a ser um presente, portanto eu celebro. Tenho todas as razões para celebrar a vida. Há pouco perguntava à Nayma como é que se envelhece: eu lembro-me que quando a minha avó foi ao meu casamento, não tinha 70 anos ainda, as fotografias mostram uma velhinha, uma velhinha carcomida. P: É a alimentação, o tipo de vida?M. C. S. : Não sei. A minha avó, apesar de ser essa velhinha antes dos 70, viveu até aos 90 e, com esses desgostos grandes, todos os dias a vi dar uma gargalhada e a chorar ao lembrar-se dos filhos que tinha perdido. P: Todos os dias chorava e ria?M. C. S. : Todos os dias chorava e ria. São as faces fundamentais da vida. Uma mulher que chega aos 90 anos, sozinha (o meu avô também já tinha morrido) e que consegue todos os dias dar uma gargalhada, mas uma gargalhada franca, com alguma coisa que alguém dizia, e todos os dias tinha a memória daquilo que tinha perdido. O que tinha perdido nunca a impediu de dar uma gargalhada à vida. Foi ela que me ensinou a envelhecer. P: O seu marido foi primeiro-ministro a primeira vez em 1985 — estamos a falar de 33 anos à frente das câmaras de televisão e sob escrutínio público…M. C. S. : … Pior para ele. P: Isso impôs-lhe uma disciplina particular?M. C. S. : Não. Não me impus nenhuma disciplina. Aliás, falava-se muito nas “gaffes da Maria Cavaco Silva” porque eu continuava a ser a tal criatura…M. J. : … Isso fazia parte do seu charme. M. C. S. : Não pensar, dizer. Não me impus nenhuma disciplina porque isso não tinha a ver com a minha maneira de ser. P: Disciplina no sentido de ter de cuidar de si. . . M. C. S. : Não, não cuidava muito de mim. Tentava apresentar-me arrumadinha, gosto de ser uma velhota arrumadinha. Não me “produzia”, porque não é a minha profissão, a minha é ser professora. Talvez tenha tido mais cuidado quando o meu marido foi Presidente. Enquanto o meu marido era primeiro-ministro, eu trabalhava muito. Mas quando o meu marido foi eleito Presidente, achei que podia ser considerada uma certa imagem da mulher portuguesa e aí já tinha cuidado. Também já era mais velha. P: O que é essa “certa imagem da mulher portuguesa”?M. C. S. : Eu não sabia qual era a imagem da mulher portuguesa. Não há propriamente uma imagem da mulher portuguesa, da mulher inglesa… Eu achava é que as outras pessoas, quando eu viajava — e viajávamos muito — quando olhassem para mim, iam dizer: “Esta é uma imagem-padrão da mulher portuguesa”; “a mulher portuguesa é assim”. Achava eu que eles podiam pensar isso e portanto eu tinha de dar. . . eu dava, no fundo, a imagem daquilo que eu era. . . P: Concordam? Maria Cavaco Silva é a imagem-padrão da mulher portuguesa?M. J. : Acho que sim. N. M. : Também acho que sim. M. J. : E durante muito tempo representou-nos e eu senti sempre orgulho quando olhava para si. M. C. S. : Ai, esta é bonita!. . . M. J. : Sentia-me bem representada. Como mulher portuguesa — enfim, sou meio-meio — sentia-me bem representada por si. P: Para Nayma, o que é “a mulher portuguesa”?N. M. : É uma mulher altiva, por norma fala…M. J. : … pelos cotovelos!N. M. : E é uma mulher muito forte. Nesse aspecto, a mulher portuguesa e a mulher angolana são muito parecidas. São mulheres muito batalhadoras, bastante trabalhadoras, e acima de tudo altivas. O português, de um modo geral, tem esta coisa de falar assim um pouco… de cima. E eu gosto muito desta característica. M. C. S. : A propósito de a Nayma dizer que a mulher portuguesa é altiva, lembro-me de que, na Bulgária, não havia primeira-dama, porque ela não queria, era muito nova, com filhos… e o gabinete [do Presidente] tinha só mulheres, talvez para compensar. Uma delas veio ter comigo — ainda hoje mantemos contacto por e-mail — para dizer: “Sabe o que dizem aqui de si? She walks like a queen. ” Não é que seja mais importante ser rainha… É claro que eu caminhava melhor do que a rainha de Inglaterra caminha actualmente, mas ela continua a caminhar!P: A Maria João está quase a ter descontos nos comboios, nos teatros…M. J. : … Ai, que horror!. . . P: … nos cinemas, nos museus…M. J. : … Ai, que horror!. . . M. C. S. : Recuse os descontos!P: Justamente, é essa a pergunta: vai pedir “bilhete de terceira idade” ou vai fazer de conta?M. J. : Acha?! Nunca!M. C. S. : Tenho uma amiga que fez isso durante muitos anos! Recusou bilhetes mais baratos para não dizer que tinha mais de 65 anos. N. M. : Mas porquê…?!M. J. : Porque estas pequenas coisas acabam por nos influenciar. Uma vez, quando o Mário Laginha partiu um pé, eu andava a empurrá-lo nos carrinhos dos aeroportos, ele sentava-se e eu empurrava. Depois ele precisava de ir à casa de banho e eu dizia: ‘Mário, vai à casa de banho dos deficientes. ’ E ele dizia: ‘Não vou nada. ’ Eu dizia isto para o picar, mas eu compreendo, uma pessoa não quer. . . Nunca hei-de ter esses descontos. Quero lá saber!M. C. S. : Afinal essa minha amiga não está sozinha…N. M. : Eu vou usar os descontos. M. J. : O que é que é isso?!N. M. : Vou, vou. Fiquei tristíssima quando perdi todos os meus privilégios de ter menos de 25 anos. Portanto, quando chegar aos 65, vou aproveitar todos. M. J. : Isso vai influenciar-te…N. M. : Não influencia nada. M. J. : Vais ver. Vais para a fila e ao teu lado estão as pessoas… “nha, nha, nha”…P: A Maria João não sente pressa, não sente que o tempo está a passar e que tem que fazer coisas?M. J. : Ai, não! Não sinto nada disso. Sinto os dias normalmente. Acho que isto acaba por nos influenciar. Se formos para uma fila dos 60, ao nosso lado só estão essas pessoas. Prefiro não. P: Não há filas separadas, é só dizer “tenho mais de 65” e mostrar o B. I. …M. J. : Era só o que faltava, não, não, não! Não, porque eu não me sinto assim e espero que não me façam sentir assim. Tudo o que está relacionado com mais idade e ter mais idade, nunca partiu de mim. Nunca pensei: “Ah, estou mais velha, portanto, oh…!” Já aconteceu, mas vem de fora, alguém que menciona. Apanha-me sempre de surpresa. P: Se calhar a expressão “terceira idade” já não se adequa e está na altura de inventar a “quarta idade”…M. C. S. : Ou quinta e sexta…! O professor Adriano Moreira é da terceira idade?M. J. : A única diferença que sinto dos 20 para agora é que, antes, eu era filha de alguém e depois passei a ser mãe de alguém. Depois de os meus pais faleceram, fiquei “a mãe”, a mãe de alguém. Isso eu senti. Isso foi duro. Deixei de poder dizer: “Oh mãe, eu…” Isso desapareceu. P: Há pouco utilizou a expressão “velhota”. Velhota, velha, idosa, pessoa da terceira idade… Qual é a melhor palavra?M. C. S. : Cada pessoa usa a sua. Eu acho graça à palavra velhota. Terceira idade já não faz grande sentido, como estávamos a dizer. Pessoas como o Adriano Moreira, o Eduardo Lourenço…M. J. : … “Cotinha”… gosto de “cotinha”…M. C. S. : … pessoas com mais de 90 mas que não atiraram a toalha ao chão. Quando digo isso, é por graça. Mas [os anos] estão todos cá. É a tal história do escadote: posso querer subir o escadote, mas se subir pode correr mal e vai doer aqui, vai doer ali, e posso “despencar-me”, como dizem os brasileiros, do escadote abaixo. P: Nas três fases diferentes em que estão, que truques usam para enfrentar o envelhecimento? É a taça de mirtilos diária, é a vitamina B12, é fazer sudoku, desporto, rir e chorar?…M. J. : Comer bem e compreendermos o nosso corpo. Isso é muito importante. Como cantora, preciso de compreender o meu corpo. Como é que ele funciona, o que é que me faz estar cansada, o que posso fazer para melhorar, para colocar a voz bem, o que posso fazer pelo meu corpo. Essa compreensão que eu ganhei, muito por ser cantora e por praticar desporto desde sempre, é muito importante. Se nos compreendermos bem, sabemos ajudar o corpo e a cabeça a caminhar todos os dias. P: Isso exige alguma autocontemplação…M. J. : Não. P: Como é que se faz?M. J. : É viver. Ouvir, ouvir o meu corpo, ver como ele funciona. Dói, não dói, o que falta. P: Estuda os alimentos?M. J. : Agora, sim, tenho cuidados, sou vegetariana. Não é por estar mais velha, é porque tomei consciência da forma como os humanos tratam os animais, que é inadmissível, e causa-me uma dor, uma revolta que é insuportável para mim. A maneira que eu tenho de protestar é não comer carne, não comer peixe, comer coisas saudáveis. Tenho um filho e tenho cães e, portanto, tenho que ir ao talho, porque eles comem carne. Mas se é frango, compro frango do campo, se é ovos, compro biológicos, se é queijo, é biológico. Tento que a minha passagem nesta vida esteja sempre ligada a boas coisas e não à tortura e ao sofrimento. P: Há um estudo que dá como explicação para a extrema longevidade dos japoneses — que têm o recorde mundial de centenários, mais de 65 mil — o facto de terem começado a comer carne. . . M. J. : Eles, se calhar, tratam melhor os seus animais; se calhar, não fazem as barbaridades que nós fazemos. . . P: Os seus truques, Nayma?N. M. : Vou dar uma resposta um bocado cliché, mas acho que tem mesmo a ver com a felicidade. Não troco a mulher que sou hoje pela mulher que era quando tinha 20 anos. Aprendi a estar comigo, a entender-me melhor, aprendi a dizer “não”. Antes, dizia “sim” com muito facilidade, mesmo quando pretendia dizer “não”. E isso deu-me uma serenidade e uma forma de estar, comigo e com os outros, que faz com que me sinta muito mais feliz. Esse é o primeiro passo. Depois, tal como a Maria João, pelo pai que tenho, fui obrigada a praticar desporto. O bem-estar físico é essencial, uma boa alimentação é essencial. Mas a nossa longevidade passa muito por sermos um pouco rebeldes, por termos a capacidade de dizer “não” e gostarmos muito, primeiro, de nós, tratarmo-nos bem. Só assim conseguimos estar bem na sociedade. Eventualmente, ganhar alguns cabelos brancos, que acho bonitos, ganhar algumas rugas. P: Os cabelos brancos serão bonitos, mas noto que todas pintam o cabelo…N. M. : Eu não pinto o cabelo. Já tenho alguns cabelos brancos, mas o meu cabelo é muito escuro. P: Não vai pintar daqui a uns anos?N. M. : Não. Quando a minha mãe pintou o cabelo [para tapar os brancos], eu e os meus irmãos tivemos uma atitude… não agressiva… mas ficámos revoltados, porque achámos que ela tinha de envelhecer naturalmente, com os seus lindos cabelos brancos, que mantém até hoje. Acho que é a melhor forma, aceitarmos o que vem com a idade. Não tenho nada contra os sinais do envelhecimento. P: E a Maria João?M. J. : Acho que fico muito feia com cabelos brancos. Tenho muito pouquinhos, como a minha mãe, mas não gosto de me ver, acho que fico baça, ficamos sem brilho. P: Identifica-se?. . . M. C. S. : Não, não foi tanto isso. A Nayma não vai cumprir, quase de certeza. M. J. : Não vai quê?P: Cumprir…M. J. : Também acho que não. M. C. S. : Vai ficar escrito e gravado e daqui a uns anos vemos!… Começaram a aparecer muitos cabelos brancos quando eu era bastante nova. Tinha uns 30. Quando fiz os 40, disse: “Acabou. ” Comecei por fazer riscas…. Agora, é capaz de ser mais difícil, porque me habituei a não ser baça. M. J. : Castanho é mais bonito do que cinzento. O cinzento é uma cor mortiça. M. C. S. : Há pessoas que ficam muito bem todas brancas. A Barbara Bush, que morreu agora, começou muito cedo, porque teve um problema na vida que fez com que ela, um pouco como a Maria Antonieta — um desastre dos pais e uma filha que morreu com uma leucemia muito bebé e [tudo] isso foi muito próximo — assumisse. Eu achava que ficava bem, não a imaginava de outra maneira. Não era por ter o cabelo branco que parecia mais velha. Mas há uma coisa que eu queria dizer, porque elas não têm experiência: o que nos envelhece, francamente, é a falta de saúde. Agora tive essa experiência: fiz a festa para celebrar os meus 80 anos e, das minhas amigas, quase ninguém pôde estar. Umas tinham morrido, outras estavam doentes ou em lares — os “asilos” — por causa de problemas de saúde graves. O que nos envelhece a sério é quando temos um problema de saúde grave. A saúde é um bem a que eu tenho de agradecer todos os dias. As pessoas dizem: “Mas todos os dias?” Agradeço todos os dias. Quando olho para o espelho de manhã, agradeço. P: Reza todos os dias?M. C. S. : Sim, sim, rezo todos os dias. P: Agradece especificamente o facto de ter saúde?M. C. S. : Agradeço a Deus tudo, mas sabendo que essa é uma das graças. Ter saúde, e o meu marido também, estarmos os dois bem, estarmos os dois um com o outro, porque quando desaparece um… é complicado. P: Fala sobre a viuvez com o seu marido?M. C. S. : Não, não falamos sobre a viuvez, mas falamos muito sobre a doença. E dizemos… O meu marido tem uma coisa que é dizer: ‘Hum. ’ E eu digo: ‘Um, não: dois. ’ E rimos. E dizemos sempre: “Dois é muito melhor do que um. ”P: Isso é uma forma de não falar da morte. . . M. C. S. : Não. É uma forma de agradecer o facto de estarmos os dois ainda. Também não somos assim tão velhos, [mas] sabemos de muitos dos nossos amigos em que já está só um. . . P: Estatisticamente, são sobretudo as mulheres que ficam viúvas. M. C. S. : Porque são mais valentes, lá está, como nós dizemos. M. J. : Sim, somos mais valentes. P: É difícil falar da morte?M. C. S. : É, é difícil falar da morte. Para a minha avó, e para a sua geração, não era. A minha avó nasceu no fim do século XIX e morreu em 1984 — a morte era uma grande naturalidade. As pessoas morriam em casa, na aldeia, fazia-se o velório em casa, era uma grande naturalidade. A nossa contemporaneidade chuta a morte para debaixo do tapete. Mas temos que nos habituar a saber que é para todos. Mas como a Maria João dizia, enquanto estamos bem, temos de aproveitar. Porque sabemos que tudo vai acabar. Para mim, não acaba tudo, porque tenho fé, há um outro lado. Mas não, não é uma coisa que as pessoas… à Maria João é melhor nem lhe perguntar!P: A sua avó não terá lido o Séneca…M. C. S. : Não leu o Séneca!…P: É talvez o filósofo que mais escreveu sobre a morte e que falava, justamente, sobre a naturalidade da morte. . . M. C. S. : A minha avó não considerou natural perder uma filha com 24 anos e um filho com 26. Isso não era natural. Os filhos morrerem à frente dos pais não é natural. E ela, coitada, foi confrontada com isso e passou décadas da sua vida sem filhos. Quando eu nasci, a minha avó tinha 44 anos. P: Outra coisa que o Séneca diz aos amigos é: “Estuda a morte”, “ensaia a morte”. Faz sentido esta ideia de estudar a morte para a recebermos de forma natural — a ideia de saber “viver bem” e saber “morrer bem”?M. C. S. : Depende do que nos acontecer em termos do tipo de doença. . . Eu não gostava nada de morrer num acidente de carro. Era uma morte brusca de mais. Outro dia estava num sítio onde havia vários médicos e um disse: “Eu já decidi: quero morrer com Alzheimer, com um cancro, não. ” E porquê? “Porque com Alzheimer chateio os outros, com o cancro chateio-me a mim próprio. ” Este médico tem esta teoria. Eu não sei. Ninguém sabe. M. J. : Eu espero… já dei por mim a falar com o meu melhor amigo e a dizer: “Um dia que eu fique mesmo toda doente e se vires que eu não tenho safa, tu acaba comigo, ouviste? Porque o João, que é o meu filho, não vai ser capaz. Por isso, tu acaba comigo, que eu não quero isto para nada, por favor. ” Às vezes, nos meus momentos mais lamechas, penso: “Ah, aquelas pessoas que protestaram tanto a meu respeito vão sentir a minha falta e vão estar todas no meu funeral!” Que disparate…M. C. S. : Uma vez estive num debate onde estava o João Lobo Antunes, a Bárbara estava a apresentar aquele livro…P: Na FLAD, sobre imortalidade, da bioeticista Maria do Céu Patrão Neves…M. C. S. : E o João, que morreu novo e que teve um papel muito importante sobre o envelhecimento activo, disse: “Nós não sabemos o que vai acontecer. ” Acho sempre difícil dizer, como a Maria João diz: “Ai acaba comigo”. Sei lá!. . . M. J. : Mas eu estou a torcer [para que haja vida para além da morte]! Seria uma surpresa maravilhosa. Não sabemos. Pelo sim, pelo não, vou tirar o maior partido possível, agora que estou aqui. Não sei se há. Se aparecer, se acontecer outra vida, se continuarmos de alguma forma, será uma bela surpresa. Estou disponível para isso, mas não tenho a certeza. M. C. S. : Certezas não há. Há pessoas que dizem: “Ter fé é uma grande sorte”, mas não. A fé é a interrogação permanente. Estou a ler agora o [padre-poeta José] Tolentino [Mendonça], o retiro que ele preparou para o Papa Francisco [O Elogio da Sede, Quetzal, 2018]. E ele diz isso várias vezes: a crença é uma interrogação permanente, é um grande salto no vazio. Ajuda? Não ajuda? A um amigo que era franciscano, e estava gravemente doente, eu perguntava-lhe isso e ele dizia: “Dá-me impressão que não, que não ajuda, que complica muito, porque nós pomos, talvez, mais questões permanentes do que os ateus. ” Eu acredito e tenho muita fé nessa surpresa. M. J. : Em África é diferente. A vida e a morte estão muito próximas e os mortos coabitam connosco e estão presentes e influenciam-nos e nós sentimos a sua presença. N. M. : Posso falar só por mim? Eu lido muito mal com a morte. Além de gostar muito de estar viva, gosto muito de ter as pessoas que amo à minha volta. Lido muito mal quando perco alguma destas pessoas. Os meus pais, como já passaram dos 70, às vezes gostam de mandar aquelas bocas: “Nós não vamos durar para sempre. ” Nem esse tipo de frases gosto de ouvir. Agora falando de Angola, nós lidamos com os mortos de forma muito respeitadora, são feitas muitas celebrações relacionadas com a evocação do poder de quem já foi, porque acreditamos que eles estão sempre connosco. Recentemente, ofereceram-me uma máscara [de etnia] cuba, do Norte do reino do Congo, lindíssima, que me foi oferecida porque sou coleccionadora de máscaras. Quando fui estudá-la, descobri que é uma máscara de celebração de nascimento e de morte. Até a nossa própria arte liga o nascimento à morte. M. J. : Para nós, europeus — estou sempre a dizer “nós, europeus”, “nós, africanos”, é sempre uma mais-valia, isto de ser moçambicana e portuguesa — mas este peso na Europa, quando morre alguém, será que vem da religião católica? A culpa com que nós ficamos… Um peso, uma coisa horrível. Preferia encarar com uma maior leveza, como os africanos. M. C. S. : Não acho que seja da religião católica. M. J. : É uma pergunta que eu faço. . . M. C. S. : Uma das coisas más de envelhecer é que perdemos muitos amigos e muitos familiares. Acabamos por estar sozinhos. P: Sente essa solidão?M. C. S. : Talvez não sinta tanto porque somos dois, mas isso é difícil. Noto que a própria Igreja Católica e os padres jovens puxam-nos para cima, os funerais têm música, estamos mudando isso. P: Há pouco falou do livro sobre a bioética, que é muito interessante e assustador: sobre como a ciência se prepara para nos dar a imortalidade. Os olhos biónicos, os exo-esqueletos, as impressoras 3D que imprimem órgãos…M. J. : Pensem nesse sonho: uma pessoa está doente e tem um cancro e substitui o órgão, isso é uma boa notícia!M. C. S. : E a cabeça, e o miolo, e o que está cá dentro?M. J. : A nossa alma… é isso?. . . M. C. S. : Não só a nossa alma, mas o cérebro. M. J. : Onde é que fica a nossa individualidade? Aquilo que somos, eu, a D. Maria, a Nayma… se começarmos a substituir tudo?P: Imaginam-se a ter 500 anos?M. J. : Não, mas imagino-me a ter um problema num órgão e substituí-lo. Vou morrer se não o substituir. M. C. S. : Isso já se faz. M. J. : Mas não será para toda a gente. Mais uma vez, a saúde e a imortalidade será para as pessoas que têm posses. M. C. S. : As imortalidades que estão a construir não me interessam. A criogenia, essas partes, esses sobresselentes todos… Se isso fosse possível, já não era uma pessoa. Daqui a 500 anos, era um robô. M. J. : Mas se tiver, de hoje para amanhã – Deus queira que não –, um problema num pulmão, não substitui?M. C. S. : Sim. M. J. : É saber até onde é que vamos substituir as coisas. . . Até à capacidade do nosso bolso!M. C. S. : Já tenho amigos a viver com um coração novo. O seu colega da música, o Salvador Sobral, foi uma alegria. Para um jovem, é uma coisa fantástica. Para uma pessoa de 90 e tal anos, já não sei se será, não sei. M. J. : Será que, quando formos mais velhos, não nos vamos agarrar ferozmente a isto? E todos os dias levantamo-nos e dizemos: “Está um belo dia de sol!”? Eu, quando morrer, espero bem não morrer no Verão. Sentir-me-ia tão triste. Morrer no Outono, ainda vá. Agora no Verão…M. C. S. : A minha mãe morreu na Primavera. N. M. : Não acho nada interessante a ideia de imortalidade. Se o ser humano se torna imortal, o planeta não evolui, vamos ficar com um planeta repleto de pessoas com as mesmas ideias. O interessante da humanidade é a evolução, a diversidade. Podemos, como o Salvador, trabalhar a ciência para salvar os jovens…M. J. : E os outros menos jovens?N. M. : Calma, deixa-me terminar. Eu sempre disse que queria morrer cedo. Acho que o interessante é deixarmos uma história escrita, deixarmos algo. P: É isso que o Séneca diz: “A vida é como as histórias: o importante é como é feita, não se é comprida. Não importa em que momento a acabamos. Pára-a quando quiseres. Mas dá-lhe um bom fim. ”N. M. : Concordo. M. J. : Se pudermos decidir, porque a maior parte das mortes são péssimos fins: doentes, em dor, em sofrimento. A maior parte das mortes que eu vejo são assim. Isso não é nada desejável. Poder aceder à sua morte, poder planear e morrer em beleza, morrer saudável. Eu digo sempre: “Eu vou morrer, mas vou morrer saudável. ” A minha amiga, que fuma, fuma, fuma, diz: “Eu hei-de morrer toda podre. ”P: É a favor da eutanásia?M. J. : Acho que sim. As pessoas têm de ter o direito de escolha. E de decidir. Mais uma vez: nós sabemos de nós. Eu amo a vida, penso que nunca me irá acontecer, a não ser que esteja profundamente doente e em pleno sofrimento. E se eu estiver em pleno sofrimento e se não tiver um caminho para ir, se não tiver… no purpose… nenhum propósito, e se eu escolher, espero que me respeitem. Agora estarem em cima de mim, a proibirem-me, “não, não, não pode porque, porque, porque. . . ” Deixem-me escolher. Mas este é um tema muito profundo. P: E no seu caso?M. C. S. : Sou contra esta visão da eutanásia à escolha, porque muitas pessoas acham que vai ser óptimo, mas o resultado não tem sido tão bom, aquela rampa deslizante tem sido tremenda. Já temos muitos meios, e teremos mais com certeza, para dar uma morte tranquila. Mas também acho que não é neste tipo de conversa que vamos pôr em jogo todas essas…M. J. : …É muito profundo, não há certezas absolutas, não é? É um assunto demasiado delicado, demasiado forte…P: A socióloga Maria Filomena Mónica diz que durante muito tempo se opôs à eutanásia e que o que a fez mudar de opinião foi ver a morte de dois amigos e da sua mãe. M. J. : Há essa pequena coisa. Imaginem-se lá: completamente em pleno sofrimento, não vamos sair dali, temos um cancro terminal, não há um caminho e é só sofrimento a nossa vida, e se eu escolher, se eu escolher em plena lucidez, eu quero terminar isto…M. C. S. : … Se está assim tão mal, a lucidez já não deve estar muito boa. M. J. : E se eu estiver lúcida? Se eu escolher isso, espero que não me venham dizer: “Não vais porque eu acho. . . ”P: Se o corpo está em sofrimento e já nem há lucidez, somos o quê?M. C. S. : Somos uma criação divina que encontrará o seu caminho. A falta de lucidez não nos deixa tomar decisões. Há a decisão, de que os meus filhos estão informados, que é dizer: “Nada de encarniçamentos terapêuticos. ” Mas ainda há muita coisa a fazer para a calma da morte. Tive vários casos a que assisti e percebi que isso foi bom, em que foi possível dar uma morte tranquila. P: Para acabar, se tivessem que escolher um único conselho sobre envelhecer bem, qual seria?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. N. M. : Para mim, é a felicidade. Começa de dentro para fora. M. J. : Para mim, também. Sermos o mais felizes que conseguirmos. Compreendermo-nos, respeitarmos os outros, respeitarmos a Terra em que vivemos, as outras formas de vida. É a felicidade, realmente. M. C. S. : Talvez recordasse o exemplo da minha avó: conseguir todos os dias ter uma gargalhada e lágrimas, que também fazem parte da felicidade.
REFERÊNCIAS: