Quando as luzes se apagarem, brilharão os corpos que pagaram a crise
Dos estaleiros de Viana do Castelo aos bairros mais duros da Grande Lisboa, Marco Martins vem-se fixando obstinadamente nos despojos da crise. Desta vez, foi encontrá-los em Inglaterra, onde nos tornámos os melhores a esquartejar perus e a limpar rabos de reformados com Alzheimer. Provisional Figures Great Yarmouth, peça que agora chega ao Porto e a Lisboa, tinha tudo para ser um matadouro, só que não: este espectáculo salvou várias vidas. (...)

Quando as luzes se apagarem, brilharão os corpos que pagaram a crise
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Ciganos Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dos estaleiros de Viana do Castelo aos bairros mais duros da Grande Lisboa, Marco Martins vem-se fixando obstinadamente nos despojos da crise. Desta vez, foi encontrá-los em Inglaterra, onde nos tornámos os melhores a esquartejar perus e a limpar rabos de reformados com Alzheimer. Provisional Figures Great Yarmouth, peça que agora chega ao Porto e a Lisboa, tinha tudo para ser um matadouro, só que não: este espectáculo salvou várias vidas.
TEXTO: Os números sempre foram provisórios, como no título que Marco Martins acabou por roubar ao jargão das estatísticas da imigração, mas, mais desemprego, menos “Brexit”, ainda hoje haverá cinco ou seis mil portugueses que sabem marcar com um X no mapa de Inglaterra o lugar exacto onde o zumbido das agulhas dos salões de tatuagens se cruza com o cheiro a fritos dos estaminés de fish & chips e com os néons intermitentes daquela que só pode ser a maior concentração de casas de máquinas a oeste de Las Vegas. Há dias em que parece uma trip das boas, com castelos insufláveis e algodão doce. Há dias em que parece um apocalipse de obesidade mórbida, gravidez adolescente e overdoses de heroína. É o lugar exacto onde ainda hoje, mais desemprego, menos “Brexit”, o bacalhau para demolhar, as alheiras de Mirandela e o vinho em boxes de cinco litros se pagam em libras num dos dois minimercados Lusa, onde há missa em português ao primeiro domingo do mês na igreja católica da Regent Street (“Tens de dizer ‘Rua Augusta’, se não ninguém conhece”), onde à entrada de um beco sem saída alguém escreveu “Dukes of Ribatejo”. O tipo de lugar a que por sorte ou por azar cinco ou seis mil portugueses passaram a chamar casa. Great Yarmouth. “The finest place in the universe”, escreveu Charles Dickens em 1849, quando para ali levou um dos mais amados working class heroes da Inglaterra vitoriana, David Copperfield, sem imaginar que 160 anos depois a indústria alimentar e a doentia atracção dos ocidentais por carne processada e perus para rechear no Natal lhe dariam abundante descendência portuguesa. “Uma cidade de merda”, actualiza Victoria, que numa vida anterior, quando tinha 22 anos, tentou afogar num jacuzzi com cinco desconhecidos a tragédia proletária de se ver coroada Miss Great Yarmouth (200 libras não pagam um ano de sorrisos nos jornais locais e de presenças em quermesses, mas pagam uma dívida a um dealer, e Victoria tinha e ainda tem uma irmã bastante pragmática). A ela nunca lhe disseram que Great Yarmouth era “o Algarve inglês”. Nunca lhe mentiram, ou pelo menos não acerca disso. Também não a chamaram para uma entrevista depois de responder a um anúncio do Correio da Manhã, nem lhe pediram para mostrar as mãos e os dentes, nem lhe disseram que ia para Inglaterra embalar fiambre, also known as esquartejar perus (peitos para a Europa, testículos para a China). Victoria e Carmo continuariam até hoje a viver vidas paralelas em Great Yarmouth se não se tivessem cruzado num ensaio do espectáculo que Renzo Barsotti convenceu Marco Martins a montar, depois de ter descoberto “os portugueses da Bernard Matthews” (also known as Bernardo Mateus), então um colosso da indústria alimentar do Reino Unido movido a mão-de-obra barata importada da periferia da União Europeia. Em 2012, já fora o produtor italiano, para quem o trabalho é definitivamente “o grande tema do século XXI”, a levá-lo aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, então já em estado terminal, onde Marco Martins acabaria por levantar um auto popular com 16 trabalhadores; aí se iniciou uma aproximação aos “despojos da crise” que, radicalizando o vaivém entre ficção e realidade, o encenador e cineasta prosseguiu no seu último filme, São Jorge (2016), descida ao submundo das cobranças difíceis e da sobrevivência nos bairros mais duros da Grande Lisboa, e agora aprofunda nesta peça em que junta no mesmo palco crepuscular quatro working class heroes da última vaga da imigração portuguesa, quatro outcasts locais que não tiveram pernas para fugir quando a explosão do turismo low-cost no Mediterrâneo apagou a costa inglesa do mapa, e ainda um cozinheiro esloveno. É para eles finalmente sobressaírem que as luzes se vão apagar sexta-feira e sábado no Porto, onde, depois da estreia de há duas semanas no Norfolk & Norwich Festival, Provisional Figures Great Yarmouth se apresenta no Rivoli, via FITEI — Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, e depois, de 28 de Junho a 4 de Julho, em Lisboa, no Maria Matos, onde encerrará o ciclo Migrações (e todo um período da vida daquele teatro municipal, mas essa já seria outra história, outra despedida). No escuro, veremos como brilham os corpos que pagaram a crise. Hão-de mostrar-nos o cabelo quebradiço, os braços que já não dá para esticar totalmente, as pernas que passaram a coxear, as cicatrizes da queda aparatosa que pôs fim a uma vida inteira de trabalho, a pele que tiveram de largar, as tatuagens que fizeram para poder aguentar, e as que desfizeram porque já não aguentavam. “Great Yarmouth? Deus do céu, é a primeira vez que lá vais?”, pergunta o funcionário na bilheteira da estação, ar apreensivo até perceber que a viagem vai ser de ida e volta. Great Yarmouth. Carmo (dois ataques cardíacos, um osso sobreposto a outro no ombro esquerdo, uma tendinite crónica, e o pior ainda foram as depressões) tem jeito para frases bombásticas à mesa do café: “Se vivesses aqui morrias. ”Encenação:Marco Martins Porto. Teatro Rivoli. Praça Dom João I. T. 223392200. 15 e 16 de Junho. Sexta às 21h30; Sábado às 19h00 (FITEI 2018 - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica). 7, 50€ Lisboa. Maria Matos Teatro Municipal. Avenida Frei Miguel Contreiras, 52. T. 218438801. De 28 de Junho a 4 de Julho. Terça a domingo às 21h30. 6€ a 12€ (c/desconto)Ao longo dos últimos dois anos, Marco Martins foi apanhando aviões para lá e para cá na esperança nem sempre muito realista de muitas milhas depois ter um espectáculo para estrear, um espectáculo a que pudesse chamar, para esconjurar a dor e a poesia de atrás dos números haver pessoas, Provisional Figures. Tinha uma história de trabalho com Renzo Barsotti e o seu Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua que, antes de chegar a Viana do Castelo, já vinha da comunidade cigana da Baralha, em Santa Maria da Feira, e o tema interessava-lhe “muito” — mas a primeira ida a Great Yarmouth “foi devastadora”, diz ao Ípsilon horas antes da segunda apresentação do espectáculo na cidade que, com o tempo (e com as idas e vindas dos portugueses que nunca deixaram de estar ali apenas provisoriamente, mesmo que entretanto já se tenham passado 15 anos), se impôs como protagonista. “Lembro-me de ir para a paragem às 4h da manhã, a hora em que saía o autocarro para a Bernardo, e de os portugueses passarem por mim como se fossem fantasmas. O regresso, à noite, ainda era mais duro. E depois havia os ingleses que eu via dia e noite a fumarem de pijama à porta de casa, com montes de filhos à volta. Estava a acabar o São Jorge e na minha cabeça Great Yarmouth ia ser um filme: as imagens eram muito fortes. ”Não foi um filme (talvez ainda venha a ser). Quando Marco Martins começou a fazer entrevistas para escolher os seus não-actores, já se tinha tornado claro que Great Yarmouth ia ser “um espectáculo sobre a vida dos imigrantes portugueses em Inglaterra e sobre o trabalho na Bernardo Mateus” (os anúncios dos anos em que a fábrica só tinha trabalhadores ingleses, e que hoje são memorabilia alojada no YouTube, pareceram-lhe, diz, “material muito sugestivo”). Mas a intermitência da produção à distância e da própria comunidade portuguesa, naturalmente flutuante, obrigaram-no a reconfigurar o projecto mais uma vez. “Era impossível manter um grupo fixo. Passava dois ou três meses sem cá vir e quando regressava as pessoas tinham desaparecido para outro trabalho, para outra cidade. Mudei de estratégia e pedi ao director de casting com que costumo trabalhar, o Zé Pires, para passar cá um mês a fazer entrevistas. À medida que ia vendo o que ele me mandava — a Victoria que foi Miss Great Yarmouth, o Bob que trabalhou na reserva ornitológica… —, fui percebendo que tinha de abrir o espectáculo a esta cidade estranha onde vêm parar tantas pessoas perdidas, tantas pessoas em fim de vida. O contraste entre os portugueses fechados na fábrica 12 horas por dia e os habitantes originais da cidade tornou-se uma via. ”Através deles, das suas histórias de infância, juventude e lágrimas nos olhos quando os filhos nasceram ou saltaram pela primeira vez no castelo insuflável vermelho com estrelas azuis e brancas, Great Yarmouth é outra vez a cidade technicolor dos circos ambulantes e dos sorvetes, dos hotéis chiques para os ricos e das pensões para a classe média, dos luna parks e das barracas de praia, dos bikers e dos mods; a cidade que se reconverteu, esgotado o ciclo de prosperidade do arenque e mal refeita da destruição da Segunda Guerra Mundial, em estância balnear de massas. Os casinos, os carrosséis, os pontões e o Jardim de Inverno, agora abandonado, enchem-se de gente feliz em férias e não apenas de casais de adolescentes com bebés ao colo ou de reformados que desistiram de andar a pé porque o mercado lhes impinge cadeiras de rodas eléctricas ou scooters de mobilidade em suaves prestações mensais. A Regent Street ainda não se chama Rua Augusta nem é este amontoado de lojas de souvenirs baratos e de roupa em “SALDOS SALDOS SALDOS”. As fábricas ainda não olharam para tantos quartos e parques de campismo vazios e pensaram que podiam fazer de Great Yarmouth um dormitório para operários polacos, lituanos e portugueses. Através deles, também, das suas histórias de perda, fracasso e noites mal dormidas, Great Yarmouth é de novo a cidade que correu mal. Uma bolsa de pobreza endémica, white trash, numa região genericamente rica, um fracasso estatístico em termos de desemprego, abandono escolar, gravidez adolescente, obesidade, doença mental, alcoolismo e abuso de heroína que nas eleições locais de 2014 deu 41% dos seus votos ao UKIP (entretanto já os reduziu a menos de 5%) e dois anos depois, no referendo do “Brexit”, se revelou a quinta cidade mais eurocéptica de toda a Inglaterra, com 71, 5% de votos “leave”. “Um lugar bizarro”, confirma Joe McIntosh, director do SeaChange Arts, o centro de criação ligado ao circo e às artes de rua que co-produziu Provisional Figures e o acolheu na Drill House. “No período vitoriano, Great Yarmouth ganhou fama como estância balnear para gente com dinheiro, daí os belos edifícios e toda a parafernália de entretenimento da marginal. Hoje continua a ser uma das três estâncias balneares mais frequentadas de Inglaterra — recebe seis milhões de visitantes por ano —, mas quando a classe média começou a ir para o estrangeiro ficou com o refugo do mercado. A pesca e a transformação do arenque, que durante séculos foram o pilar da economia local, já tinham acabado, a marinha mercante passou a operar com barcos demasiado grandes para a barra que aqui havia, e Great Yarmouth entrou numa espiral de decadência. Há famílias que não trabalham há três gerações, desde que o avô perdeu o emprego na pesca. ”O lucro gerado pelas reservas de petróleo e de gás descobertas mais recentemente passa literalmente ao largo de Great Yarmouth e dos seus quase 99 mil habitantes. O novo maná da energia eólica também. “É riqueza que não fica na cidade. Quem trabalha nesse sector tende a viver fora daqui. Restam as fábricas, e a indústria dos cuidados domiciliários, mas essas só parecem entusiasmar a mão-de-obra imigrante”, diz Joe McIntosh. Sorte, azar ou lei da oferta e da procura, enquanto o desemprego local se mantiver galopante, muitos polacos, lituanos e portugueses (mas também cabo-verdianos, angolanos, curdos, paquistaneses…) continuarão a ter aqui o seu lugar a esquartejar perus ou, como se ouve dizer num dos cafés da King’s Street, “a limpar rabos de reformados com Alzheimer”. Não será o “Brexit” a fazer os ingleses salivar com isso. Pouco passa do meio-dia, a hora em que os mais pobres dos pobres se juntam à porta do Exército da Salvação para a distribuição de comida. Raparigas de pele acastanhada pela heroína, punks de 60 e tal anos ainda com a crista intacta, só que murcha. Não há portugueses aqui. Esses caminham em passo apressado, vindos “lá do office”, onde “a assistente social não estava”. Jogam sueca no Café Tropical, SIC Notícias ligada. Trocam receitas de bolo de mármore na biblioteca, onde há um escaparate inteiro de livros sobre como lidar com a demência e permanecer são. Já terão sido mais. Na King’s Street, os cafés e as mercearias portuguesas ainda se sucedem, há sempre gente a entrar e a sair da Fernanda Lopes Hairdresser, mas o Pátio das Cantigas (“Portuguese foods, wines and delicacies”) fechou. Cátia e Hugo, que há sete anos vieram de Almada (ele à frente, “com um contrato de trabalho na Bernardo”, depois ela e os dois filhos, que entretanto já são três), têm visto muitas famílias a irem de férias para já não voltarem. “Umas dez só no ano passado. ” Na mercearia de que tomaram conta há oito meses, e que além de portugueses também abastece cabo-verdianos, angolanos e guineenses (“Essa variedade toda de feijões é por causa deles”) e ainda polacos, lituanos e moldavos que "vêm à carne e aos enchidos”, os clientes queixam-se do aumento do custo de vida, “dizem que não compensa trabalhar só para pagar as despesas”. “Há menos dinheiro, menos avios grandes. Mas vamos ficar, agora são as crianças que já não querem ir embora. O ‘Brexit’ não nos assusta, trabalhamos os dois a tempo inteiro, os miúdos estão cada um na sua escola. ”A imigração portuguesa em Great Yarmouth esteve no auge entre 2009 e 2014, o ano em que o UKIP fez o seu sinistro brilharete eleitoral. Mesmo depois desse sinal, “a votação expressiva no ‘Brexit’ foi um choque para os portugueses, não tinham noção de que não eram bem-vindos”, conta Marco Martins. “No dia seguinte muitos tiveram medo de sair à rua. De repente descobres que o teu vizinho não te quer aqui — e começam a aparecer histórias. Nessa fase senti um enorme decréscimo de interesse no projecto, havia o receio de que quiséssemos falar de política e as pessoas esquivavam-se. ” De resto, acrescenta Renzo Barsotti, a descoberta de que a comunidade portuguesa em Great Yarmouth não é verdadeiramente uma comunidade como as que caracterizaram a emigração das décadas de 50, 60 e 70, de que “é cada um por si” (“A precariedade laboral também é uma precariedade identitária, os processos de identificação e desidentificação com Portugal e com Inglaterra são contínuos, complexos e concorrentes”), foi “dura, pessoal e artisticamente”. E uma dor de cabeça para o encenador. “Estava perdido. Sabia que queria trabalhar com as histórias pessoais, mas faltava-me um corpo de texto que lhes desse chão. E então o Gonçalo M. Tavares sugeriu-me que fizesse um espectáculo sobre aquilo em que as pessoas estão a pensar enquanto matam animais. Passou a ser sobre isso. ”No processo de passar a ser sobre isso, os nove não-actores que acabaram por chegar à estreia tiveram de se transformar em animais de palco. Mesmo quando trabalharam com a sua própria verdade. Sobretudo quando trabalharam com a sua própria verdade. A verdade dos movimentos repetitivos da Carmo na linha de montagem da Bernardo (“choques eléctricos, cortar o pescoço, tomates para a China, furar o cu, tirar pulmões”), aqui convertida em número de circo. A verdade dos cabelos em desalinho do Bob em mais um dia ventoso, quando ainda não precisava de binóculos para ver o sol reflectido na penugem de uma pêga, a sua ave favorita. A verdade da receita de peru recheado que o Ivan cozinhou na Alemanha, na Suíça, na Jamaica, em Miami, no Havai, até vir parar a Great Yarmouth, este desterro para imigrantes e misfits que já não vivem, apenas vegetam. A verdade de que o Pedro nunca ficará sem um par. A verdade da filha da Ana a dançar Nirvana em versão Patti Smith. A verdade da tatuagem que o Richard, coração partido, esfolou com uma lixa depois de uma noite de copos e drogaria. A verdade do casting que poderia ter feito da Victoria uma das Spice Girls, em vez de uma Miss Great Yarmouth. A verdade dos invernos em que dormia num quarto diferente todas as noites e dos verões em que ficava sem quarto para dormir, e de que o Peter, cujos pais geriram um hotel em Great Yarmouth, não quer falar. A verdade dos dois amores que o Sérgio teve no circo, e que estão longe de chegar ao amor que o vemos a gritar pelos pais, antes de abrir as asas do anjo que tem nas costas e voar. Só dois dos nove não-actores de Provisional Figures alguma vez tinham entrado num teatro. Nenhum tinha lido os manifestos de Marinetti, Yvonne Rainer ou Mierle Laderman Ukeles. Quase todos parecem ter nascido para isto. “A primeira regra do trabalho com não-actores é não os pôr a representar personagens”, explica Marco Martins na sessão de perguntas e respostas que a Drill House abre na noite de estreia, minutos após o fim da peça e o momento Cristiano Ronaldo do Sérgio — que, claro, com a sua cicatriz de uma ponta à outra da nádega e as suas lágrimas verdadeiras roubou o palco como estava escrito (lá fora, o filho de Victoria, que estuda teatro na universidade, comenta que “nasceu uma estrela, um performer nato”). Peter, o primeiro a entrar em cena, já não esfrega as mãos uma na outra para libertar a tensão dos últimos instantes antes de as luzes se apagarem, e fala agora pelos cotovelos dos amigos portugueses que fez nos ensaios, e de como passou a andar para todo o lado com o Sérgio, apesar de esse veterano em Great Yarmouth que antes disso foi funcionário da limpeza no aeroporto de Gatwick e embalador de lasanhas numa fábrica de Bristol ainda não conseguir completar uma frase em inglês ao fim destes anos todos. Quase na outra ponta da meia-lua de cadeiras, Bob continua “a tremer como uma folha”: quando o foco se acendeu em cima dele, a marcação que dá início ao espectáculo, percebeu que não conseguia arrancar nenhuma palavra da boca. Foi já no fim de um processo de criação particularmente lento, e para o qual precisou de recorrer a “facilitadores" (Nuno Lopes, Sara Carinhas, Romeu Runa e Victor Hugo Pontes), que Marco Martins percebeu que os dois pólos do espectáculo só podiam ser esses “dois homens da mesma idade, mais ou menos da mesma altura, mas com histórias de vida radicalmente diferentes” e, o que também interessava, “uma relação com os animais fatalmente distinta”: “Antes de trabalhar na manutenção de um parque de auto-caravanas, o Bob passou muitos anos em projectos de conservação da natureza. O Sérgio andou com um circo, teve aquela história com a rapariga das cobras, e depois matou perus na Bernardo. ”Naturalmente, o corpo impôs-se num espectáculo que, por causa das assimetrias no domínio da língua, nunca teria podido depender exclusivamente do texto. Mas impôs-se também porque “a própria morfologia de cada um diz muito acerca do que foram estas vidas”, aponta o encenador, “basta olhar para a diferença entre a Carmo e o Bob”: ela pequena e densa, os músculos deixados a amolecer à sua sorte desde a reforma antecipada, ele esguio e frágil (“como uma folha”, de facto), as bochechas mirradas praticamente coladas aos maxilares sem dentes. Estes corpos contam desamores, internamentos em unidades psiquiátricas, suicídios falhados. Duas gravidezes, anos a fio no Colégio Militar, uma nova vida a dar aulas de zumba. E contam uma crise. Não apenas porque Marco Martins a tenha querido contar, mas porque ela estava lá: há uma diferença entre a poesia destas vidas e a sua pornografia. “Não gosto daqueles espectáculos comunitários em que cada um vai lá lamentar-se como se fosse o café do bairro organizado em forma de palco. Talvez venha daí a minha obsessão de levar isto para um lado que se sobreponha ao testemunho. Na verdade, quando lhes peço para me contarem as suas histórias, dou por mim a interessar-me sempre pelas coisas mais poéticas, não pelas mais gráficas. E depois esforço-me por encontrar uma zona em que o intérprete sinta que o que está a contar é importante e significativo não só para mim mas também para ele. É muito complicado. E muito delicado. Queres sempre saber mais acerca destas pessoas. A realidade nunca deixa de estar à flor da pele porque aqui tudo muda diariamente de uma forma drástica — é isso que torna Great Yarmouth tão apaixonante. ”Great Yarmouth. Uma sucessão de casas de máquinas com nomes flamejantes (Caesar Palace, Silver Flipper, Flamingo, Circus Circus, Golden Nugget, The Mint, Gold Rush, Leisure Island), e no fim o bingo dos anos 60 em que dois cartões só custam dez pence. Um pub de esquina onde se chega ao fim da tarde para comer caracóis e ver reality-shows da TVI. Hotéis que agora são residências para seniores de classe média-baixa porque o clima aqui é o melhor de toda a ilha — mesmo com esta ventania. Um esloveno grande e volumoso que chegou para ser catering manager de uma rede de casinos e acabou a fazer voluntariado no centro de refugiados local, entre 1001 outras actividades comunitárias, porque quando regressou ao lugar onde nasceu percebeu que os amigos casaram/emigraram/morreram e ele passou a ser um estranho: Ivan, que ainda hoje não entende como é que Marco Martins o quis no elenco final (dos 15 participantes do último workshop foram escolhidos apenas nove), se havia “pessoas mais profissionais” e ele nem sequer pode dar um passo sem as muletas. Uma portuguesa de Sintra que há 15 anos, “por causa de um amor proibido e de um capricho que se tornou um pesadelo” (“Eu achava que a vida lá fora era um mar de rosas, não um dia-a-dia árduo de desgaste físico e psicológico”), respondeu a um anúncio e se viu a esquartejar perus de noite e a dormir em quartos de pensão partilhados de dia (ou foi ao contrário?): Carmo, que em Provisional Figures representa “a fábrica em si e o que a maior parte da imigração portuguesa viveu” e que desde os ensaios, diz-nos o filho de 22 anos, atende o telefone com outra voz. Um inglês da cidade grande mais próxima que só veio a Great Yarmouth beber uma cerveja com a irmã e ficou a fazer uma peça de teatro com “oito completos estranhos”: Richard, um trabalhador da construção civil que precisou de se expor no palco para “fechar um capítulo” pessoal que mete uma tatuagem e uma ex-mulher, e que daqui só sai ou para o próximo filme de Marco Martins (“Seria fantástico, seria o ideal”) ou para o Sul da Europa, onde pretende abrir um parque de campismo para motoqueiros com a nova namorada. Uma descendente de cabo-verdianos que saiu de Oeiras para se juntar ao irmão em Londres e que ao fim de dez anos “daquela vida agitada” desembarcou em Great Yarmouth para umas férias e decidiu ficar, por causa do sol e de uma certa vida portuguesa que encontrou nos cafés e nos minimercados: Ana, a agitadora local, que fundou uma associação de dança comunitária, a Afrolusa, e entretanto abriu o seu próprio negócio de aulas de zumba. O filho de um guarda-costeiro que cresceu junto ao rio, a apanhar boleias dos barcos-piloto, quando ainda não havia estrangeiros em Great Yarmouth a não ser a rapariga asiática da escola e “o chinês do take-away”: Bob, uma cabeça tão extraordinária e tão disponível para tudo (“Nunca deves deixar de aprender, é fixe fazeres coisas que nunca fizeste antes: expandem-te como pessoa”) que na vida já estudou as migrações das salamandras, já tratou sozinho dos oito hectares de uma reserva ornitológica, já consertou telhados, e agora é um intérprete em digressão internacional. Um moçambicano que o pai meteu com dez anos num avião para Lisboa, direcção Colégio Militar, “para dar um futuro ao puto”, e que depois de reprovar no último ano veio parar a Inglaterra, onde entre outros expedientes limpou o chão da Bernard Matthews (bem menos mau “do que tirar as tripas ou estar no deboning”): Pedro, que entretanto descobriu que numa cidade onde “as pessoas vêm morrer” — “descansar em paz, era assim que eu devia ter dito” — podia ganhar a vida a cuidar de idosos e deficientes, pelo menos “se não der certo andar pelo mundo como rapper”. Um inglês que aos 12 anos veio com os pais abrir um hotel em Great Yarmouth e depois se entusiasmou quando regressou, já adulto, “com a quantidade de imigrantes”: Peter, que não sabia se ia conseguir conseguir levar Provisional Figures até ao fim porque quando chegou aos ensaios vinha de “uma série de problemas pessoais” que lhe deixaram “a auto-confiança muito em baixo”, e depois ainda passou por “uma ruptura amorosa”. Um português de olhos azuis e rosto de actor de cinema que ainda sabe de cor todos os transportes que teve de apanhar para se mudar de Bristol, onde rebentou duas hérnias inguinais a levantar tabuleiros industriais de molhos de lasanha, para Great Yarmouth, onde trabalhou 15 anos na Bernardo até “um acidente na sanitation” o deixar incapaz: Sérgio, para quem todos os dias são iguais, “um cafezito” de manhã, “uma volta até ao shopping para ver as lojas de uma libra” pela tarde, “um copito” no Galante ao cair da noite. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Uma ex-Miss Great Yarmouth que nos últimos meses, “em vez de continuar sentada ao sol no jardim a detestar a vida por ter fodido tudo com as drogas”, teve um trabalho, coisa que já não lhe acontecia há nove anos: Victoria, a quem este espectáculo deu “uma razão para viver”. Ivan, Carmo, Richard, Ana, Bob, Pedro, Peter, Sérgio, Victoria. Também conhecidos por Great Yarmouth. O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto e do Teatro Maria Matos
REFERÊNCIAS:
A esquizofrenia: o Brasil entre dois turnos
Sim, dizer que uma eleição se está a resolver em “grupos de Whatsapp” é estranho. Porém, é isso mesmo que está a acontecer. (...)

A esquizofrenia: o Brasil entre dois turnos
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sim, dizer que uma eleição se está a resolver em “grupos de Whatsapp” é estranho. Porém, é isso mesmo que está a acontecer.
TEXTO: Um dos candidatos presidenciais que o Brasil escolheu para o segundo turno é professor. Enquanto ministro da Educação, abriu o ensino universitário para milhões de alunos de baixa renda e, enquanto prefeito de São Paulo, melhorou o trânsito endémico da cidade e foi o primeiro a apresentar uma dívida menor do que a que recebeu. O outro é um deputado e militar sem méritos que ficou famoso por atacar os direitos humanos, defender o armamento da população e elogiar o único homem declarado torturador pela justiça brasileira. Diria a lógica que Haddad não teria problemas no confronto com Bolsonaro. Porém, a lógica vale cada vez menos no Brasil desde o “golpe branco” que foi o impeachment de Dilma. A luta política hoje é uma disputa pelas almas do povo em que as frases de efeito valem mais do que o currículo. E é nas redes sociais em que elas circulam que se escreveu a melhor frase sobre estas eleições. Segundo Carlos Mandacuru, a esquizofrenia brasileira traduz-se hoje em "eleger um fascista de verdade, achando que é de mentira, por causa de um comunismo de mentira que acham que é de verdade”. Algo como: “Que importa que o Haddad tenha criado uma controladoria autónoma que recuperou quase 300 milhões de reais desviados do município? Haddad é do PT e vai transformar o país numa Venezuela. Só Bolsonaro pode resolver essa situação”. Na verdade, não é exagerado dizer que Bolsonaro e sua equipa parecem completamente inaptos para resolver qualquer situação. O seu programa de Governo parece um trabalho feito na véspera da data final, as suas propostas são inconsequentes e disparatadas e os atropelamentos da sua equipa económica são constantes. O grande sucesso de Bolsonaro foi entender o crescimento do antipetismo e construir-se como o homem providencial contra ele. O seu eleitorado fecha os olhos à incompetência, às acusações de desvios de fundos e ocultação de património que varam o seu núcleo duro, ao nepotismo do candidato e ao crescimento suspeito do património da sua família. Nada disso importa, desde que se tire o PT do poder. Nem todos caíram na esparrela. O Brasil, efetivamente, está dividido nos grupos do Whatsapp. A mentira é um vírus Sim, dizer que uma eleição se está a resolver em “grupos de Whatsapp” é estranho. Porém, é isso mesmo que está a acontecer. O compromisso da ubíqua aplicação de mensagens com a privacidade dos utilizadores implica que imagens de uma criança amordaçada com a legenda “Haddad quer legalizar a pedofilia” não possam ser denunciadas. Uma vez solta, a mentira espalha-se como um vírus. E o medo também. Há dias, um colega disse-me que espera mudar-se para Portugal no ano que vem. Perguntei porquê. “Too gay for Nazi Brasil”. Zanguei-me. “Eles que se ferrem, pá”. Mas não tive resposta para o que veio em seguida: “eu não quero morrer”. Um exagero? Depois do primeiro turno, pipocaram casos de agressões contra negros, homossexuais, mulheres ou contra quem simplesmente declarou votar PT. Um mestre de capoeira na Bahia foi assassinado depois de uma discussão política. Um rapaz no Paraná levou com uma chuva de garrafas em cima por usar um boné do MST. Insultos e ameaças de estupro, morte e agressão foram distribuídos pessoalmente e pela Internet. Suásticas apareceram pintadas em paredes de norte a sul do país. E tudo isso foi acompanhado da frase “Bolsonaro 17”. Não saiu nas notícias o caso da minha amiga que correu assustada para casa depois de um homem que passava de carro lhe gritar: “Sua vadia! Agora é Bolsonaro!”. Ou o do meu amigo bancário que ouviu, de um homem farto de esperar na fila, “cê vai ver só quando eu puder trazer a arma!”. Ou o da minha amiga que, pela primeira vez, tem medo de ser atacada por ter ascendência japonesa. Ou o do meu amigo gay e negro que diz “vamos ter de encontrar novas formas de sobreviver” como se fosse um refugiado de uma guerra. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois de anos alimentando um eleitorado à base de frases homofóbicas, racistas e misóginas, o candidato — que disse não ter nada a ver com os ataques — tornou-se o mantra invocado nos crimes de ódio do Brasil, porque a onda que o carrega é, ela própria, uma festa movida a ódio. Desde Hannah Arendt que sabemos que podemos apoiar alguém assim por ação ou por inação. No Brasil, o sangue que correu já mancha as mãos de Bolsonaro e as dos seus apoiantes, mesmo as dos que “não concordam com tudo o que ele diz” e as dos que acham que ele “é mal preparado, mas tem que ser”. Viver no medo do presente e do futuro. Esse é o preço para que Fernando Haddad não ganhe? Posso dizer já, com toda a certeza: não vale a pena.
REFERÊNCIAS:
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Os Ultras
Bolsonaro, o “Trump Tropical”, protagoniza apenas o mais recente episódio desta série de terror. (...)

Os Ultras
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Bolsonaro, o “Trump Tropical”, protagoniza apenas o mais recente episódio desta série de terror.
TEXTO: Et tu, Brasil? A extrema-direita disparou na primeira volta das eleições brasileiras, tornando real a possibilidade de alcançar a presidência. Jair Bolsonaro bradou declarações de ódio a mulheres, negros, homossexuais, fez a apologia da tortura e incitou à violência. Mesmo assim (ou também por isso?) foi o candidato mais votado, com 46% dos votos. Como é possível? Como chegamos aqui?Algumas opiniões tentam explicar o ascenso da extrema-direita com questões locais ou nacionais. O localismo diz que os EUA abraçaram a extrema-direita pela perda de perspetivas dos operários brancos, que na Inglaterra esteve em causa o soberanismo, em França o terrorismo, em Itália foi a crise dos refugiados (ou na Suécia, Áustria, Alemanha, etc. ), que na Índia é pelo Paquistão, que no Paquistão é pela Índia, que no Japão é pela China, no países bálticos é pela Rússia e na Rússia é pela NATO. . . Enfim, a lista de países continua de forma cada vez mais assustadora e, para todos, é apresentada uma explicação própria para o ascenso da extrema-direita. Este pensamento localista afirma que a viragem no Brasil foi motivada pelo antipetismo, a insegurança e a corrupção. Adiciona-se a tragédia durante a campanha eleitoral que se tornou golpe de sorte para o candidato vítima de esfaqueamento. E, acrescento eu, bebeu muito da polarização que o país viveu com a destituição de Dilma Rousseff e o consequente eclipse do centro político partidário. Contudo, ficarmos apenas pela análise nacional é olhar para a árvore e não ver a floresta. É claro que existem diferenças entre países e os processos políticos nacionais que estamos a assistir. Mas, num mundo globalizado, considerar que o furacão ultra conservador reconhece fronteiras é algo do domínio da fé, não da realidade. Assistimos a uma gigantesca viragem mundial nos panoramas políticos e é para isso que temos de nos preparar. Só isso explica a ruína de sistemas político-partidários que duravam há décadas e a ascensão eleitoral meteórica de propostas populistas, xenófobas e racistas. A crise financeira de 2007/2008 é a origem desta movimentação de placas tectónicas. Por esses dias, num ápice, a economia de casino ruiu e levou consigo largos setores da economia mundial. Uma década depois, somos confrontados com a inevitabilidade: a arrumação social imposta pela primeira crise do capitalismo global teria necessariamente efeitos no sistema político-partidário. Progressivamente, assistimos à introdução de uma nova ideologia que justifica e legitima a divisão social e tem como roupagem uma demagogia de grande alcance popular. É a política da exclusão, do ódio, que ganha força na redefinição do conceito de comunidade pela exclusão de largas franjas da população. O velho “dividir para reinar”, numa casa global onde falta o pão, aplicado com um crescente autoritarismo do Estado. O arco do autoritarismo chega a mais de metade da população mundial: China, Rússia, Egito, Turquia, Índia, Paquistão, crescentemente nos EUA e em implementação no Brasil, só para citar alguns exemplos. Bolsonaro, o “Trump Tropical”, protagoniza apenas o mais recente episódio desta série de terror, mas não será o capítulo final. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A “trumpização” da política a que assistimos é a vitória desse projeto reacionário, que está a conseguir seduzir parte considerável da direita tradicional. Na concorrência com o sucesso eleitoral dos projetos de extrema-direita, a direita tradicional abraça cada vez mais as propostas extremistas numa tentativa de se salvar. São areias movediças, que depois de pisadas não têm retorno, nem bom resultado para os povos. Bolsonaro ganhou, mas ainda não venceu. O Brasil assustou, mas ainda se pode salvar. Três semanas é o tempo que nos separa do abismo. Lá, como por cá, precisamos de um projeto forte para uma sociedade inclusiva, que defende os povos da globalização e criar uma economia onde cabem todas e todos. É essa a salvação da democracia das garras dos ultras. O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA NATO
A pediatra que se tornou uma best-seller mundial
A americana Nadia Hashimi foi buscar as suas origens afegãs para os seus livros. Acabou por se descobrir a si própria. (...)

A pediatra que se tornou uma best-seller mundial
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento 1.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A americana Nadia Hashimi foi buscar as suas origens afegãs para os seus livros. Acabou por se descobrir a si própria.
TEXTO: Nadia Hashimi, uma pediatra de Potomac, no estado de Maryland, tornou-se romancista quase por acaso. Já tinha planeado a sua vida de médica quando, em 2009, ela e o marido, Amin Amini, um neurocirurgião, foram de férias para a ilha grega de Naxos. Amini gostava de ficar na praia, a conversar, mas Hashimi estava concentrada nas suas leituras de Verão, que incluíam Joyce Carol Oates. O marido sugeriu-lhe que, já que lia tantos livros, o melhor era começar a escrevê-los. Ela nunca tinha pensado nisso, conta, mas a origem afegã do casal era um material possível para explorar. Hashimi nasceu nos Estados Unidos há 37 anos, filha de pais afegãos. O marido, de 42, nasceu no Afeganistão, de onde partiu aos 17 anos, precisamente quando a ocupação soviética chegou ao fim. As suas vidas reflectem as de muitos novos cidadãos americanos cujas experiências tantas vezes geram controvérsia no debate americano: será que estes estranhos pertencem aqui?Aqueles que lançam essa pergunta desconhecem a vida e a cultura das pessoas que chegam ao país legal ou ilegalmente, e que podem acabar, por exemplo, como empregados domésticos, num dos extremos, ou neurocirurgiões, no outro. Quando estava na Grécia, Hashimi começou a olhar à sua volta. Nessa altura, o país era um destino para os refugiados da guerra no Afeganistão, entre outros, e muitos deles chegavam sem nada. Decidiu escrever sobre a experiência de emigração e começou o seu primeiro romance quando estava grávida do primeiro filho. Escreveu entre turnos nas urgências do Children’s National Medical Center em Washington. Queria acabar a história antes do nascimento do bebé, e conseguiu. A escrita surgiu naturalmente. Ou por outra, sentiu que a história já estava dentro de si, só à espera do momento para sair. “E depois googlei: ‘Como encontrar um agente literário’”, recorda. “Obrigada, Google!” Enviou sinopses ou capítulos do que seria When the Moon is Low a vários agentes. Helen Heller ligou-lhe, precisamente quando estava em trabalho de parto. “Não consegui atender”, diz Hashimi. “Por isso ela voltou a ligar e eu disse ao meu marido: ‘Por favor, liga a esta mulher porque não quero que ela pense que estou a ignorá-la’. ”E assim, ao mesmo tempo que nascia o filho, em 2010, nascia também uma ligação que resultaria numa escritora best-seller internacional, com dois romances já publicados e um terceiro a caminho, todos passados no Afeganistão — um país que Hashimi visitou durante apenas duas semanas, pouco depois da queda dos taliban, mas de que ouvira falar durante toda a sua vida. “Ela tinha tudo o que eu achava necessário”, diz Heller. “Fez com que eu me preocupasse com as personagens. ”Hashimi escreveu um segundo livro, que seria o primeiro a ser publicado, por William Morrow: The Pearl that Broke its Shell. É um absorvente “e maravilhoso romance de estreia”, escreveu-se no Washington Post. “Um relato lírico e pungente de vidas silenciadas”, considerou a Kirkus Review. Publicado no ano passado, teve mais de 18 edições nos EUA e no estrangeiro. The Pearl. . . conta a história de Rahima, uma jovem que, porque os pais não tiveram rapazes, teve de se vestir e viver como um menino até chegar à puberdade. Este hábito — conhecido como basha posh — permite-lhe liberdades com as quais uma rapariga afegã nem sonharia. A história é intercalada com a da sua trisavó, que um século antes se vestia à homem. When the Moon is Low foi editado este Verão. Fala de uma mulher que se torna adulta, casa e constitui família no Afeganistão, exactamente no momento em que os taliban tomam o poder. O romance segue-a, e a Saleem, o seu filho adolescente, na sua fuga, em viagens separadas, para o Irão, depois para a Turquia, de seguida para a Europa, numa tentativa desesperada de refazer a vida em Inglaterra. Hashimi é uma tradutora cultural, diz uma amiga, a escritora afegano-americana Fariba Nawa. “As pessoas não sabem nada sobre as mulheres afegãs. A escrita de Nadia lança uma luz porque ela vem de lá. ”Os livros chegam numa altura em que o futuro do Afeganistão é uma incógnita após 14 anos de guerra. Hashimi não é particularmente optimista quanto às mulheres conseguirem manter os direitos duramente conquistados durante a ocupação dos aliados ocidentais. As forças fundamentalistas taliban lutam arduamente para reconquistar o poder e voltarão a impor restrições às mulheres e raparigas, limitando a sua possibilidade de trabalhar e estudar. A infiltração recente das forças do Estado Islâmico complicou o já de si instável ambiente político. Entretanto, o caos instalado nos territórios islâmicos desencadeou uma emigração de refugiados em massa, que procuram segurança na Europa. As personagens de When the Moon is Low bem podiam ser sírias, iraquianas, libanesas. Qualquer um dos muitos milhões que estão à mercê das atrocidades. Numa altura em que centenas de milhares abandonam a Síria e que as imagens gritantes daqueles que não sobrevivem à viagem são partilhadas em todo o mundo, a história da família de emigrantes de When the Moon is Low é ainda mais pungente e contundente. Por isso, de certa forma, o romance reflecte tanto o passado como o presente — acontecimentos familiares recorrentes que atingiram Hashimi e o marido, apesar de terem tido muito mais sorte do que as personagens do livro. Os pais de Hashimi conheceram-se no início da década de 1970 quando estudavam na Universidade de Cabul. Viviam num Afeganistão sem parecenças com o país que é hoje. Na capital, as mulheres vestiam roupas ocidentais, os jovens iam ao cinema e ouviam música. Foi antes dos taliban, antes da imposição da burqa. Era um tempo de relativa calma, mas com pouco emprego, e por isso o pai foi para a América na esperança de encontrar uma vida melhor. Em Nova Iorque, partilhou o apartamento com outros emigrantes, fazendo turnos para ocupar a única cama que havia. A mãe foi para a Europa estudar Engenharia antes de ir ter com o futuro marido. Casaram-se na câmara municipal e a seguir foram a um restaurante chinês. A mãe de Nadia tirou um mestrado, mas nunca conseguiu usá-lo devido a complicações com vistos e autorizações de trabalho; o pai abandonou os estudos de Engenharia Aeronáutica para tentar encontrar emprego. Trabalhavam em restaurantes, até o pai conseguir poupar dinheiro para comprar um franchise de um restaurante de frangos. Viria a ser dono de vários estabelecimentos desses. Nadia nasceu em 1977. Ela e o irmão mais novo tiveram uma infância típica de subúrbios em New Jersey e no Norte do estado de Nova Iorque, com aulas de ballet, natação e carpool. Falavam inglês em casa por conveniência — os pais trabalhavam e o inglês era a língua da babysitter. Insistiam na importância de uma boa aprendizagem. Hashimi conheceu Amini numa conferência, quando frequentava a Suny Downstate College of Medicine. Ele tinha deixado o Afeganistão e feito uma passagem pela Europa. O pai, um general do Exército afegão durante o domínio soviético, conseguiu, através de conhecimentos, tirar a família de Cabul. Depois de terminarem a especialidade, casaram-se, a 4 de Julho de 2008, num casamento tipicamente afegão. “Era um casamento mediano para os padrões afegãos”, diz Hashimi rindo, recordando a festa com mais de 200 convidados. Hoje, vivem numa grande casa num bairro de classe alta em Potomac, com dois filhos e uma filha. Hashimi acabou por aprender farsi, a língua dos pais, que fala ocasionalmente com o marido quando querem que os filhos não percebam o que estão a dizer. Recentemente, Hashimi senta-se, de manhã, na sua sala de estar decorada a bege e dourados. Está com o cabelo solto, a dar-lhe pelos ombros, sorri frequentemente e do outro lado vêm os gritos persistentes de um papagaio africano cinzento chamado Nickel. O pássaro sabe dizer os nomes dos seus três filhos — está grávida do quarto. Agora passa a maior parte do tempo em casa, concentrada na escrita, com a publicação do seu terceiro livro prevista para o próximo ano. Ocasionalmente ainda faz turnos nas urgências do hospital. Por cima do sofá está um grande quadro com um poema escrito à mão chamado Children of Adam, do poeta persa do século XIII Sa’adi. Foi Amini quem o escreveu. “O poema diz que fazemos todos parte da humanidade, estamos interligados, e que aquilo que afecta um de nós afecta-nos a todos”, diz Hashimi. “É algo em que acredito — algo que, espero, seja expresso através da minha escrita também. ”As sobrancelhas perfeitamente arqueadas levantam-se quando recorda que a casa dos pais era um ponto de encontro de muitos amigos e familiares afegãos. Na casa de New Jersey havia sempre gente por todo o lado — pessoas que passavam lá o fim-de-semana em vez de regressarem para Nova Iorque no final de um dia de piqueniques e convívio. Mas como era a vida no Afeganistão? Em 2002, com os taliban derrubados [pelos Estados Unidos], era possível ir lá saber. E foi o que fez, na companhia dos pais. “Não fui lá porque queria escrever um livro. Fui lá porque queria pisar aquela terra”, conta. Hashimi descreve a sua viagem como um momento de descoberta e não de regresso a casa. Ela e a mãe nem sabiam que tipo de lenços usar para tapar a cabeça de forma a não darem nas vistas. Quando os familiares as foram buscar ao aeroporto ficaram atónitos com os hijabs apertados das visitantes, muito diferentes dos lenços simples e soltos usados pelas mulheres locais. Hashimi sempre pensou nos pais como emigrantes, como afegãos de Cabul, por isso ficou surpreendida, ao andar pelas ruas de terra batida à procura de vestígios das casas que costumavam conhecer, que bastava um esgar para as suas roupas para as pessoas dizerem: “As estrangeiras chegaram. ”Nos anos que se seguiram à partida, a família tornou-se estrangeira na sua própria terra. “Havia sem dúvida este tipo de separação: as pessoas de fora e as pessoas que viveram lá durante a guerra e que nunca saíram”, conta. “Sobreviveram a tanto e a nossa experiência foi tão diferente. Aquilo fez-me pensar nos meus pais: ‘Afinal, onde é a terra deles?’. ”Foram visitar a casa da família do pai. Ainda viviam lá dois dos seus irmãos — cada um ocupou um andar, com a mulher e os filhos. Mas o ambiente familiar da infância sofreu uma transformação quase surreal durante os 30 anos que passaram na América: a mãe conseguiu localizar a antiga casa da sua família, identificando-a pelo corrimão que sobrava de umas escadas. A estrutura solitária, abandonada, era tudo o que restava na rua inteira. Tudo o resto tinha sido reduzido a pó. Uma segunda casa de família recuperou uma nova vida quando um dos primos se mudou para lá. Para Hashimi, foi um momento “arrepiante” quando ela e a mãe foram à cave da casa onde os avós maternos viveram e começaram a vasculhar os caixotes que ali estavam. Lá dentro, encontrou o seu antigo eu, que a olhava fixamente. Era um retrato tirado quando andava no segundo ano da escola. Os pais tinham enviado muitas cartas e fotografias à família. “Foi como uma cápsula do tempo de tudo o que se passou até ali”, conta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A jovem estudante de Medicina tinha percorrido 11 mil quilómetros para chegar a uma cave poeirenta à procura de fogachos da vida dos outros e acabou por encontrar um bocadinho dela própria. A escolha dos pais de emigrar significou que Hashimi teve uma vida totalmente diferente da que teria se não tivesse sido assim. Mas o Afeganistão tinha ficado com ela, à espera de emergir. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Complexo do Alemão: O poder já não é paralelo
Daiana casou entre tanques. Eduardo vendeu pão entre tiros. Thiago treina para as Olimpíadas. E toda a gente vê o que nunca vira: o Estado no Complexo do Alemão. (...)

Complexo do Alemão: O poder já não é paralelo
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-12-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Daiana casou entre tanques. Eduardo vendeu pão entre tiros. Thiago treina para as Olimpíadas. E toda a gente vê o que nunca vira: o Estado no Complexo do Alemão.
TEXTO: A vantagem de Mozart é morar no Complexo do Alemão. Mozart, claro, é um brasileiro, e quando o PÚBLICO pára o táxi dele na rua e fala no Alemão, ele vira a cara radiante. Isto acontece ao fim de uma hora em que a rádio-táxis ainda não conseguiu um condutor que aceite ir lá. Todo o Rio de Janeiro dos postais é Zona Sul. O Complexo do Alemão fica na Zona Norte. Não é nada difícil chegar lá de táxi se forem três da tarde e não houver engarrafamento na via rápida que sai do centro: demora 40 minutos, custa 20 euros. Mas o Alemão está a emergir da mais fulminante operação que o Rio já viu, e ninguém a deu como terminada. Ainda há buscas (homens, droga, armas) a que alguma imprensa chama "caça". A atmosfera é volátil, e portanto ainda há medo. Não Mozart, claro. "Essa operação foi excelente. A minha casa até valorizou. " Casa-casa, junto à entrada principal do Alemão. Saiu barata por estar na linha de tiro. "Agora bala perdida vai acabar porque a polícia vai permanecer e eles vão colocar UPP. "UPP - Unidade de Polícia Pacificadora - é a sigla que nos últimos dois anos mudou uma parte do Rio. Não a maior parte, mas uma parte crescente. A polícia tomou vários morros da Zona Sul, o que foi empurrando o tráfico ainda mais para a Zona Norte e inchou o Complexo do Alemão. Complexo por ser um complexo de favelas, aliás, de comunidades. "Já não diz favela", avisa Mozart. "Os moradores não gostam. A palavra é comunidade. "Nas comunidades do Complexo o poder verdadeiro era o Comando Vermelho, um gang com origens na prisão da Ilha Grande (estado do Rio de Janeiro), quando presos políticos politizaram presos comuns, há mais de 30 anos. Mas a recente onda de arrastões e carros incendiados que deixou a Zona Sul em pânico precipitou a queda do Comando Vermelho no Alemão. O poder oficial avançou com tudo. Já se sabia que ia acontecer, mas aconteceu agora e assim porque era preciso responder, e responder certo. O mundo estava olhando, em 2014 há Copa do Mundo, em 2016 Olimpíadas. O poder paralelo transbordara. "Quem provocou essa queima de carros foram eles, a ordem partiu daqui de dentro", diz Mozart, apontando o amontoado que é o Alemão, barracos de tijolo e cimento entre morros. Num dos morros sobressai um teleférico, quase pronto. A seus pés, fábricas velhas e igrejas novas (Igreja Cristo Rei - o Poder Pentecostal). Ao longo da via rápida, um canal de esgoto. O primeiro soldado aparece junto à antiga fábrica da Coca-Cola. É aí que os militares estão acampados, com as suas rações de combate. O trânsito flui, o soldado vai mandando avançar, não há controle de identidade. Quarteirões cheios de habitação social novinha em folha, com painéis do Governo Federal ("Conjunto Habitacional Jardim das Palmeiras"). Anúncios de clínicas e Bolsa Família. Um esforço de mostrar trabalho. Mas quando o PÚBLICO se despede de Mozart na Itararé, última rua asfaltada por onde passam carros, a primeira coisa que vê, morro acima, é um cartaz a dizer: "Sras Autoridades, Socorro. Convivemos com muito lixo, ratos e caramujos africanos. Pedimos obras nesta rua. " Os caramujos africanos são uns caracóis gigantes que transmitem doenças e se reproduzem velozmente. Todos (quase) contentesA principal entrada do Alemão é a Joaquim Queirós, uma rua sem trânsito um pouco caótica, daquelas onde tanto se vendem mangas como mochilas do chinês, e a gente se senta em degraus partidos ou caixas voltadas ao contrário, e fica na conversa. Podia ser um campo de refugiados no Líbano, mas com raparigas de alcinhas e bebés ao colo, e rapazes com nomes de rapariga tatuados nos braços, e todo o mundo chinelando no pó. O que todo o mundo vai dizer é que "antes" - ou seja, há uma semana - os traficantes gingavam por aqui, bem armados. E agora o que se vê é o Estado numa azáfama.
REFERÊNCIAS:
Deve a imagem de um homicídio premeditado ser a fotografia do ano?
Burhan Özbilici ia cobrir uma inauguração banal e acabou a fotografar o homem que assassinou o embaixador russo em Ancara. A imagem que correu mundo parece saída de uma peça de teatro e já na altura a sua publicação gerou controvérsia. Agora que ganhou o World Press Photo a discussão continua. (...)

Deve a imagem de um homicídio premeditado ser a fotografia do ano?
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Burhan Özbilici ia cobrir uma inauguração banal e acabou a fotografar o homem que assassinou o embaixador russo em Ancara. A imagem que correu mundo parece saída de uma peça de teatro e já na altura a sua publicação gerou controvérsia. Agora que ganhou o World Press Photo a discussão continua.
TEXTO: Era um acontecimento rotineiro a que Burhan Özbilici não teria dado qualquer atenção se o clima político fosse outro – a Rússia e a Turquia começavam a reaproximar-se, com a guerra na Síria como pano de fundo, e a inauguração de uma exposição de fotógrafos russos na capital turca, com direito à presença do embaixador de Moscovo em Ancara, Andrei Karlov, passava a ter outro peso. O fotojornalista da Associated Press (AP) decidiu então cobrir a abertura, explica num texto que escreve no site da agência de notícias norte-americana, aproveitando o facto de a galeria ficar a caminho da sua casa, o que não lhe exigia desvios nem esforço. Estava longe de imaginar o que se seguiria. Estávamos a 19 de Dezembro de 2016 e Andrei Karlov discursava já quando Mevlüt Mert Altintas, um jovem polícia à civil que supostamente ali estava para o proteger, o matou pelas costas, dirigindo em seguida à assistência uma série de frases em árabe: “Não se esqueçam da Síria! Não se esqueçam de Alepo!”, gritou, braço esquerdo erguido e dedo em riste, com o revólver que usara para alvejar o embaixador na mão direita, apontado a quem o ouvia. “Afastem-se! Só a morte me vai tirar daqui. Os que tiveram algum papel nesta opressão vão morrer, um a um. ”A intervenção do atirador pode seguir-se graças a um vídeo amador feito por um dos convidados, que inundou rapidamente as redes sociais e foi reproduzido por muitos órgãos de informação em todo o mundo, mas foi Burhan Özbilici quem fez as fotografias que fixaram o momento e que depois alimentaram o debate. Imagens como esta devem ser publicadas? São sensacionalismo ou notícia? Informam ou glorificam a violência, dando eco a um discurso extremista e servindo de incentivo a outros? São produto de um verdadeiro fotojornalismo ou apenas um rastilho que a imediata divulgação através da Internet, muitas vezes sem qualquer mediação ou enquadramento sério, pode levar a uma explosão descontrolada? A estas perguntas junta-se agora outra: o registo de um assassinato deve ser considerado a melhor fotografia do ano, escolhida entre mais de 80 mil imagens?Ainda que a resposta a estas e outras perguntas seja complexa e passível de separar as águas, certo é que uma das imagens que Burhan Özbilici fez do embaixador russo morto aos pés de Mevlüt Mert Altintas lhe valeu esta segunda-feira o Prémio de Fotografia do Ano do World Press Photo 2017 (WPP), o maior concurso de fotojornalismo do mundo, assim como o primeiro lugar na categoria de Spot News Stories (Notícias Locais). Para aqueles que já se manifestaram contra a publicação da imagem e a atribuição do prémio de Fotografia do Ano a Özbilici, como o próprio presidente do júri desta 60. ª edição do WPP, Stuart Franklin, não é sua a qualidade que está em causa, mas o impacto que pode vir a ter. Num artigo de opinião no jornal britânico The Guardian, Franklin explica por que razões fez questão de votar contra a escolha desta imagem “de terror”, lembrando que é a terceira vez que a cobertura de um homicídio recebe o grande prémio do concurso criado em meados da década de 1950, sendo a mais famosa das anteriores a que mostra um alegado vietcongue a ser executado com um tiro na cabeça pelo chefe da polícia de Saigão, tirada pelo norte-americano Eddie Adams em 1968. "É a fotografia de um homicídio, o assassino e a vítima, ambos na mesma imagem, e tão problemática de publicar como uma decapitação feita por terroristas", continua o fotógrafo, que não deixa de considerar merecido o prémio dado a Özbilici na categoria de Notícias Locais. O problema é que colocar esta fotografia num pedestal tão alto (o do grande prémio do concurso) é um convite àqueles que ponderam reproduzir este tipo de acontecimentos de grande espectacularidade e reafirma “a associação entre martírio e publicidade”: “Para ser claro, não defendo que o fotógrafo bem-intencionado deva ver ser-lhe negado o reconhecimento que merece, mas temo que estejamos a amplificar a mensagem do terrorista através da publicidade adicional que o prémio principal atrai”, resume Stuart Franklin, sublinhando que Özbilici fez o seu trabalho de forma “heróica” naquela galeria de Ancara. “O que é controverso é que uma imagem representando um homicídio premeditado, executado numa conferência de imprensa para garantir o máximo de visibilidade, seja a Fotografia do Ano do World Press Photo. "Luís Vasconcelos, director do maior concurso de fotojornalismo português, o Estação Imagem, não tem dúvidas de que a fotografia de Burhan Özbilici deve ser publicada e, pelo que viu nas galerias do WPP de 2017, merece bem o prémio. “É uma imagem poderosa, não há como não dizer isto. E feita por um fotojornalista que achava que ia cobrir uma inauguração numa galeria, mas que esteve à altura do que ali se passou e que fez o que tinha de fazer”, defende em declarações ao PÚBLICO este fotógrafo que trabalhou na imprensa durante 40 anos. É claro, diz Vasconcelos, que se pode rotular esta imagem como “sensacionalista” – muitos já o fizeram, incluindo a direcção do Expresso, que explicou as razões por trás da decisão de não publicar a fotografia de Özbilici – mas isso não lhe retira o valor noticioso e o peso do “testemunho”. “Há tantos assassinatos no mundo todos os dias. Este tornou-se próximo porque praticamente vimos a pessoa morrer em directo, sabemos como se chama. Isto muda as coisas do ponto de vista da percepção, mas não muda a sua essência”, acrescenta, chamando a atenção para o facto de diariamente se publicarem em todo o mundo imagens potencialmente mais chocantes do que esta, de crianças com fome, de refugiados, de vítimas da guerra. Imagens que provavelmente deveriam ficar por publicar. Daniel Rocha, um dos editores de fotografia do PÚBLICO, concorda com Luís Vasconcelos: “É óbvio que esta imagem tem de se publicar, como se têm de publicar a do homem que se atira de uma das torres no 11 de Setembro, a da criança morta na praia [Aylan Kurdi, o pequeno sírio que em Setembro de 2015 foi arrastado para uma praia da estância balnear turca de Bodrum], ou, se quisermos recuar, as fotografias das crianças a fugirem de uma aldeia destruída por napalm no Vietname [Nick Ut, 1972] ou a do [Robert] Capa da morte do miliciano [Guerra Civil de Espanha, 1936]… Se nos chocam? Claro que sim, mas infelizmente também mostram que o mundo é um sítio perigoso para se estar. ”Para Daniel Rocha é importante reflectir sobre o poder de imagens como a do fotojornalista turco, mas o seu valor noticioso impõe-se. “Podemos discutir, mas não há aqui grande espaço para controvérsia – o fotógrafo estava lá para uma inauguração, uma coisa banal, e acabou por fazer aquelas fotografias. Podemos argumentar que o atirador contou com a exposição que uma conferência lhe dava, mas não podemos dizer que o fotógrafo contava com aquele homicídio. É a situação, a realidade, que é uma loucura, não é o mensageiro”, acrescenta, ressalvando que “mostrar a morte é sempre muito, muito complicado”, mas que isso não faz com que ela deixe de existir. Luís Vasconcelos fez a cobertura dos Jogos Olímpicos de Los Angeles com Eddie Adams (1933-2004), o autor da célebre fotografia da execução em Saigão, e lembra-se bem de o norte-americano falar do quanto se sentia atormentado pela dúvida, questionando-se se teria sido a sua presença a levar o polícia a disparar. “Ele falava muitas vezes nesse assunto porque o preocupava – e é de preocupar. Mas, na realidade, nunca saberemos… Aqui é completamente diferente. O fotógrafo turco estava numa galeria, não estava numa cidade em guerra. ”No texto que escreveu no site da Associated Press, o fotojornalista de 59 anos admitiu que demorou alguns segundos a aperceber-se do que acontecera – “um homem morreu à minha frente; uma vida desapareceu diante dos meus olhos” – e que depois, mesmo com medo, conseguiu colocar-se numa posição em que podia fotografá-lo, no meio do verdadeiro pandemónio que se instalara na galeria, com homens, mulheres e crianças a gritar, atirando-se para o chão e procurando proteger-se como podiam. À medida que lhe vinham à memória os amigos e os colegas que tinham perdido a vida em zonas de combate, Özbilici fotografava. “Isto era o que eu estava a pensar: ‘Estou aqui. Mesmo que seja atingido e ferido, ou morto, sou jornalista. Tenho de fazer o meu trabalho. Podia fugir sem fazer quaisquer fotos… Mas não teria uma resposta decente para dar quando as pessoas mais tarde me perguntassem – Porque é que não tiraste fotografias?’. ”A “coragem” e o “sangue frio” demonstrados por Özbilici enquanto Mevlüt Mert Altintas disparava “pelo menos” oito vezes, matando o embaixador russo e ferindo outras três pessoas antes de ser abatido pelas autoridades, também são dignos de nota: “Ele faz aquelas imagens apontando a sua arma – a câmara é isso – a alguém que acaba de matar uma pessoa e que sabe que vai morrer. Não sabe o que se passa na cabeça daquele homem”, diz o fotógrafo do PÚBLICO. “É um acto de coragem, é certo, mas é sobretudo um trabalho de grande profissionalismo”, diz João Silva, fotojornalista luso-sul-africano já premiado pelo World Press Photo e membro do júri desta edição. “A coragem existe, diria eu, em todos os homens e mulheres que participaram no concurso, mas aqui temos uma grande imagem. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É por causa desse “grande profissionalismo”, diz João Silva, fotógrafo reconhecido pelo seu trabalho em cenários de guerra (foi gravemente ferido em 2010 no Afeganistão) e pela sua cobertura do fim do apartheid na África do Sul (é um dos quatro membros do mítico Bang-Bang Club), que o fotojornalista da AP foi capaz de “fazer uma imagem que ainda dará que falar daqui a 50 anos”: “Esta é uma daquelas fotografias que dividem opiniões e que vão continuar a dividir. O que aconteceu no júri, com a discussão muito dura e o presidente a votar contra, é o que está a acontecer na sociedade. Podemos usar a palavra ‘sensacionalismo’ se quisermos, mas é muito mais do que isso – é uma imagem que retrata uma realidade brutal, um acto de ódio incrível… Aquele homem [o atirador] é o rosto do ódio e o fotógrafo está lá para os retratar – a ele, ao ódio…”Um retrato que poderia ter saído de uma peça de teatro ou de uma produção lírica, com um “certo glamour” – “tudo parece perfeitamente encenado, como se alguém tivesse feito marcações no chão; até o morto está no sítio certo”, nota Luís Vasconcelos – mas que é a vida de todos os dias, “o mundo não-higienizado”, acrescenta Silva: “Neste ponto da história global temos de ser confrontados com imagens destas para reagir. A Europa está partida em bocadinhos, a Rússia é o que sabemos e os Estados Unidos estão perigosos. Tenho medo pelos meus filhos, não por mim. No meu caso, mais guerra menos guerra tanto faz, mas no deles o ódio conta – o ódio que muda o mundo sempre para pior. ”E quando um fotojornalista está no sítio certo à hora certa para ser testemunha desse ódio, o seu testemunho só pode ser uma fotografia.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Sem complexos, Instituto Diplomático homenageia ministro de Salazar
Nos 100 anos do nascimento de Franco Nogueira, último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, família doa espólio de centenas de milhares de documentos que nunca foram lidos por nenhum historiador. (...)

Sem complexos, Instituto Diplomático homenageia ministro de Salazar
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nos 100 anos do nascimento de Franco Nogueira, último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, família doa espólio de centenas de milhares de documentos que nunca foram lidos por nenhum historiador.
TEXTO: Convencido de que a “política africana” do regime de Oliveira Salazar não era realista, em 1964 — quando a guerra em Angola ia no terceiro ano e o regime perdera o apoio de muitos aliados — o jovem diplomata Francisco Grainha do Vale pede uma audiência com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Franco Nogueira. “Achei que devia dizer alguma coisa, por uma questão de lealdade”, conta o agora embaixador reformado, de 86 anos. Franco Nogueira, que defendia o colonialismo com paixão, aceitou e ele, “com cuidado, disse-lhe que ser ministro era muito interessante, mas que havia dificuldade em atingir o resultado”. Resposta: “Mas o que quer que eu faça? Quer que entregue Angola aos americanos ou aos russos?”; “estava a pensar mais numa solução diplomática, que não fosse tão drástica”; “enquanto nós lá estivermos, temos que ter a porta bem fechada: sugere que se entreabra a porta. No dia em que fizermos isso, é o desastre”. Na sala estavam o ministro da Defesa e o secretário de Franco Nogueira, António Bandeira. É ele quem, depois de os ministros saírem, lhe pergunta: “’E agora, para onde é que vais?’ E eu respondo: ‘Estava a pensar ir jantar a um bistrô na Ópera. ’ E ele: ‘Não é isso: para onde é que vais trabalhar? Depois do que disseste ao ministro, vais ter de sair da carreira!’. ”Francisco Grainha do Vale, que tinha 32 anos, conta o episódio na Biblioteca da Rainha, no Palácio das Necessidades. Os seus colegas embaixadores — alguns dos quais trabalharam com Franco Nogueira e eram amigos dele — estão a sair. A sala encheu-se para a cerimónia de evocação dos 100 anos de nascimento do último chefe da diplomacia de Salazar mas, de todos os que ali estão, ele terá sido o único a questionar frontalmente aquilo que, no Estado Novo, se chamava “política ultramarina”. “O que mais me impressionou é que, nos anos a seguir, sempre que nos cruzávamos num corredor, ele vinha falar comigo, um mero 1. º secretário de 30 anos, para discutir alguma notícia do dia que tinha lido nos jornais. ”Na sua intervenção no púlpito, o embaixador Marcello Duarte Mathias falou da “alma livre e espírito independente” de Franco Nogueira, “à semelhança de tantos que nesta casa serviram Portugal”, e sublinhou como sendo “saudável” a evocação organizada pelo Instituto Diplomático, que funciona na parte sul do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “É corajoso. Vivemos no politicamente correcto e no ortodoxo. Como serviu o Estado Novo, há logo reservas. Mas foi um grande diplomata e deve ser homenageado. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ainda é difícil, concordam alguns diplomatas presentes, de várias simpatias políticas, ouvidos pelo PÚBLICO. “Sobre a II Guerra Mundial já há algum consenso, embora ainda não haja sequer unanimidade entre os diplomatas sobre o cônsul Aristides de Sousa Mendes, porque um diplomata tem que seguir instruções e há quem considere que ele não devia ter feito o que fez. Quando se chega ao ultramar, é muito difícil: não há recuo para se analisar com frieza”, diz o embaixador Manuel Côrte-Real, ex-director do Instituto Diplomático e chefe do Protocolo do Estado e hoje responsável pela missão do património e bens do ministério. Margarida Lages, directora do Arquivo Diplomático ao qual a família doou esta segunda-feira os papéis de Franco Nogueira, não hesita: “Não estamos a celebrar um fascista, mas uma pessoa determinante da nossa história. É importante saber como funcionava a diplomacia no Estado Novo, com quem os diplomatas falavam e o que faziam. Esta doação vai iluminar o acervo que temos. ”Vinte e cinco anos após a morte de Franco Nogueira, a família doou o espólio do antigo ministro. São centenas de milhar de documentos, talvez um milhão, e nunca foram lidos por nenhum historiador. Carlos Gaspar, investigador do IPRI, defendeu que Franco Nogueira teve uma “carreira diplomática brilhante e pouco convencional” e, “ironia do destino”, ajudou a criar “uma capacidade excepcional dos aparelhos da política externa portuguesa” que “sobrevive intacta” e “é penhor dos seus sucessos nas Nações Unidas nos últimos anos, como ficou demonstrado nas campanhas da diplomacia portuguesa por Timor-Leste, nas sucessivas eleições de Portugal para o Conselho de Segurança, ou nas campanhas de António Guterres para Alto-Comissário dos Refugiados e para secretário-geral das Nações Unidas ou de António Vitorino para a Organização Internacional das Migrações (OIM). ”
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Partidos LIVRE
Nobel da Paz atribuído a Denis Mukwege e Nadia Murad contra a violência sexual na guerra
Os dois galardoados "fizeram uma contribuição crucial para combater este tipo de crimes de guerra", justificou o Comité Norueguês do Nobel. (...)

Nobel da Paz atribuído a Denis Mukwege e Nadia Murad contra a violência sexual na guerra
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-10-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os dois galardoados "fizeram uma contribuição crucial para combater este tipo de crimes de guerra", justificou o Comité Norueguês do Nobel.
TEXTO: A atribuição do Prémio Nobel da Paz a dois dos mais destacados activistas contra a violação sexual em contexto de guerra vem trazer alguma luz para uma das dimensões menos conhecidas, mas igualmente atroz, dos conflitos em todo o mundo. O Comité Norueguês do Nobel decidiu atribuir o galardão a Nadia Murad, uma iraquiana yazidi que foi raptada e escravizada pelo Daesh, e a Denis Mukwege, um médico congolês que operou dezenas de milhares de mulheres violadas de forma bárbara. “Cada um deles contribuiu à sua maneira para dar maior visibilidade à violência sexual em tempo de guerra para que os seus responsáveis respondam pelas suas acções”, justificou o comité quando apresentou o prémio. "Nadia é a testemunha que denuncia os abusos cometidos contra si e outras", afirmou a porta-voz do Comité Norueguês do Nobel, Berit Reiss-Andersen. Mukwege tornou-se no "símbolo mais unificador da luta para acabar com a violência sexual nas guerras". A escolha mereceu elogios consensuais por parte de dirigentes políticos e activistas em todo o mundo. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse que a atribuição do Nobel da Paz integra um “movimento crescente que reconhece a violência e as injustiças” contra mulheres e crianças em todo o mundo. Os dois activistas, declarou Guterres, “ao defenderem as vítimas de violência sexual nos conflitos, estão a defender os nossos valores partilhados”. A Alta-Comissária para os Direitos Humanos da ONU, Michele Bachelet, disse ser “difícil pensar noutros dois vencedores mais dignos do Prémio Nobel da Paz” que não Murad e Mukwege. O Presidente iraquiano, Barham Saleh, disse que a entrega do Nobel a Murad “é uma honra para todos os iraquianos que combateram o terrorismo e a intolerância”. O deputado yazidi, Vian Dakhil, afirmou tratar-se da “vitória do bem e da paz sobre as forças da escuridão”. “As violações nas guerras são um crime há séculos”, disse à Reuters o director do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), Dan Smith. “Mas era um crime na sombra e os dois laureados lançaram luz sobre isso”, acrescentou. Apesar dos elogios, o trabalho dos dois activistas está longe de estar terminado e as suas missões continuam a enfrentar muitos desafios. Mukwege tem sido uma voz crítica do Presidente congolês Josepho Kabila, que acusa de querer eternizar-se no poder. Kabila devia ter abandonado o cargo no final de 2016, mas tem adiado a marcação de novas eleições. A reacção do Governo congolês à atribuição do Prémio Nobel ao médico não escondeu o mal-estar. "Estamos muitas vezes em desacordo com Denis Mukwege, de cada vez que tenta politizar a sua obra que, todavia, é importante do ponto de vista humanitário”, afirmou o porta-voz do Governo, Lambert Mende, citado pela AFP. Kabila não se pronunciou. A própria situação na República Democrática do Congo permanece preocupante. Embora a guerra civil tenha terminado oficialmente em 2003, há grupos armados que continuam a aterrorizar aldeias e cidades. O Nobel também traz à memória os inúmeros casos que envolvem missões de capacetes azuis da ONU em várias zonas do planeta, desde a República Centro-Africana ao Haiti. Em 2016, quando foi revelado que membros da missão de pacificação na República Centro-Africana pagavam a crianças por sexo, o então secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, disse tratar-se de “um cancro no sistema”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para Nadia Murad, o seu trabalho também está longe de terminar. Com a derrota do Daesh, a atenção do mundo em relação às escravas sexuais dos extremistas esmoreceu. Porém, milhares de mulheres e crianças yazidis continuam desaparecidas e muitas outras permanecem em campos de refugiados com pouco apoio médico e psicológico. A própria sobrevivência deste povo – uma das minorias religiosas mais antigas a habitar o actual território iraquiano – continua a correr perigo. Quando recebeu o Prémio Sakharov de 2016, em Estrasburgo, Nadia disse que a única solução para preservar o seu povo é a “criação de uma zona de protecção em coordenação com o Governo iraquiano e com o governo autónomo do Curdistão”. Depois de um ano marcado pela sucessão de casos de abusos sexuais e num clima de uma abertura inédita para que sejam denunciados – conhecido como movimento “Me Too” – o comité Nobel fez questão de separar as águas, embora não negue pontos de contacto. “O ‘Me Too’ e os crimes de guerra não são bem a mesma coisa”, afirmou a presidente do comité, Berit Reiss-Andersen, durante a conferência de imprensa. “Mas ambos têm em comum verem o sofrimento das mulheres, os abusos contra as mulheres e que é importante que as mulheres deixem de lado o conceito de vergonha e falem”, acrescentou.
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Entidades ONU
Até onde vai a impunidade dos capacetes azuis acusados de crimes sexuais?
Investigação da Associated Press, centrada numa rede de exploração sexual criada por tropas cingalesas em missão no Haiti, diz que continua impune o antigo secretário-geral da ONU descreveu como "um cancro no sistema" da organização. (...)

Até onde vai a impunidade dos capacetes azuis acusados de crimes sexuais?
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.05
DATA: 2017-04-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: Investigação da Associated Press, centrada numa rede de exploração sexual criada por tropas cingalesas em missão no Haiti, diz que continua impune o antigo secretário-geral da ONU descreveu como "um cancro no sistema" da organização.
TEXTO: A pobreza era total e a comida praticamente inexistente para o grupo de crianças que viviam num antigo resort de luxo, onde há 30 anos Mick Jagger ou Jackie Onassis apanhavam sol junto à piscina, mas agora abandonado e reclamado pela selva. Sobreviviam do pouco dinheiro acumulado a pedir nas ruas e dos pedaços de comida que recuperavam dos caixotes de lixo. Até que um contingente de capacetes azuis se mudou para as proximidades. Traziam com eles alimentos e ofereciam-nos às crianças. Muitos, porém, não a ofereciam de forma gratuita. Mais de uma centena de capacetes azuis formaram uma rede de exploração sexual que se prolongou por, pelo menos, três anos. No início de 2016 correu mundo o escândalo que envolveu os capacetes azuis da ONU enviados para a República Centro-Africana, acusados de terem pago para ter sexo com crianças de 13 anos de um campo de refugiados. A notícia voltou a trazer à tona uma questão que o então secretário-geral da ONU, Ban-Ki Moon, classificou como “um cancro no sistema” da organização, a dos casos de violência sexual exercida por tropas de pacificação no exercício das suas funções. Uma investigação publicada esta quarta-feira pela Associated Press é reveladora da vastidão do problema e da impunidade de que gozam os capacetes azuis acusados de tais práticas. O cenário é agora o Haiti onde, entre 2004 e 2016, foram registadas 150 suspeitas de abuso e exploração sexual. Consequências? Dada a protecção conferida às tropas perante a justiça do país onde estão estacionadas e a pouca vontade demonstrada pelos responsáveis dos exércitos e tribunais dos países de origem em investigar e castigar os responsáveis, as consequências são praticamente inexistentes. A rede de exploração sexual referida no primeiro parágrafo foi criada no seio do contingente cingalês estacionado no país caribenho. A investigação da AP, que se deteve nas missões da ONU à volta do mundo nos últimos doze anos, regista duas mil suspeitas de exploração e abuso sexual por parte dos capacetes azuis e outro pessoal. Os acusados são de vários países - Sri Lanka, Brasil, Bangladesh, Nigéria, Jordânia, Paquistão e Uruguai – e, segundo a AP, haverá nacionais de outros países envolvidos, tendo em conta que as Nações Unidas só começaram a revelar essa informação nos seus relatórios em 2015. Os depoimentos recolhidos revelam cenários de total degradação humana e de crime continuado. Uma rapariga haitiana conta que, entre os 12 e os 15 anos, manteve relações sexuais com cerca de 50 soldados cingaleses (um deles, comandante, "gratificou-a" com 75 cêntimos). Quando a rede formada entre os capacetes azuis do Sri-Lanka foi denunciada, a investigação da ONU levou ao seu desmantelamento. Cento e catorze foram enviados de volta para o país de origem, sem que nenhum tivesse sido preso. Casos como este, ou de o do adolescente haitiano violado em grupo por capacetes azuis uruguaios – “foi uma brincadeira que acabou mal”, alegaram, negando as acusações de violação -, ou o da mulher violada aos 16 anos por um soldado brasileiro, que agora transporta a filha do homem que a violou sob ameaça de arma, depois de a atrair com a promessa de lhe dar um pão barrado com manteiga de amendoim, são alvo de toda a atenção de um advogado haitiano, Mario Joseph, que tenta obter compensações para as vítimas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Joseph teve em mãos o caso de um surto de cólera mortífero (terá atingido cerca de dez mil pessoas) ligado a capacetes azuis nepaleses, e ocupa-se agora em conseguir suporte parental para mulheres haitianas que engravidaram após violadas por funcionários da ONU. “Imaginem se as Nações Unidas fossem até aos Estados Unidos e violassem crianças e espalhassem cólera? Os direitos humanos não são apenas para pessoas brancas ricas”, afirmou o advogado à AP na capital haitiana, Port-au-Prince. A missão da ONU no país envolve actualmente um contingente de cinco mil pessoas, entre tropas e outros profissionais. Em Março, o novo secretário-geral, António Guterres anunciou uma luta sem tréguas para acabar com casos como os relatados nesta investigação. “Declaremos a uma só voz: não toleraremos que ninguém cometa ou perdoe a exploração e abuso sexual. Não deixaremos que ninguém cubra estes crimes com a bandeira da ONU”. O novo secretário-geral terá muito trabalho pela frente. A começar pela sistematização da informação recolhida nas investigações levadas a cabo pela própria organização. Num relatório de 2008 eram assinalados 19 casos só no Haiti, mas nas suas contas oficiais a ONU inscreveu apenas dois envolvendo menores no mundo inteiro. Os números totais relatados na investigação são insuportáveis, tendo em conta a natureza e estatuto das missões dos capacetes azuis. E não batem certo. Nada bate certo.
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Entidades ONU
A guerra de Marie Colvin está nos cinemas para nos obrigar a ver
O filme chama-se Uma Guerra Pessoal. A guerra é a da jornalista que viveu a correr para lugares de onde outros querem fugir – dela e daqueles a quem nunca parou de dar voz. Até ser apanhada por Assad, há seis anos, em Homs. (...)

A guerra de Marie Colvin está nos cinemas para nos obrigar a ver
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O filme chama-se Uma Guerra Pessoal. A guerra é a da jornalista que viveu a correr para lugares de onde outros querem fugir – dela e daqueles a quem nunca parou de dar voz. Até ser apanhada por Assad, há seis anos, em Homs.
TEXTO: Hudheida, com 600 mil pessoas encurraladas num Iémen a morrer. Campos de deslocados no Nordeste da Nigéria, onde aos confrontos entre o Exército e o Boko Haram se juntou a cólera e meningite. Noroeste e Sudoeste dos Camarões, as duas regiões anglófonas do país em que protestos separatistas se transformaram numa guerra que já matou 500 pessoas e obrigou 400 mil a fugirem. Se pudesse, Marie Colvin estaria com grande probabilidade num destes lugares. O Iémen vive a maior crise humanitária do mundo, a guerra étnica nos Camarões é talvez o conflito menos noticiados da actualidade. As três crises arrasam áreas de acesso difícil e de onde os civis têm muita dificuldade em sair. Como acontecia em Fevereiro de 2012 no bairro de Bab al-Amr, em Homs, cercado pelas forças de Bashar al-Assad e debaixo de fogo permanente. “Esta é a realidade. São 28 mil civis, homens, mulheres e criança escondidos e indefesos. Aquele pequeno bebé é uma das duas crianças que morreram hoje […]. Não há alvos militares aqui [. . . ]. É uma mentira absoluta que não estejam a bombardear civis. O Exército sírio está a atacar civis esfomeados e com frio. ” Vemos imagens de um menino de dois anos a morrer depois de ter sido atingido por estilhaços no peito e ouvimos Marie, em directo para a CNN. No testemunho à BBC, a jornalista compara Homs com Srebrenica, lembrando que o mundo disse que “nunca mais seria possível”. Marie fez o que muito poucos tentaram na altura – entrar em Homs. Depois, o que quase ninguém ousou fazer – ficar. Houve uma evacuação do centro de media improvisado onde se encontrava com o fotógrafo Paul Conroy. Paul fez o que pôde para convencer Marie a sair. Há gritos a avisar para um ataque iminente e parece que todos vão embora, a correr pelo mesmo sistema de túneis subterrâneos por onde tinham entrado. Até que Marie pára. “Tenho de voltar ao hospital, conseguir mais imagens. ” Paul diz que ficar é morrer. Ela volta para trás, ele vai com ela. Isto é o que acontece no filme Uma Guerra Pessoal; na realidade, eles chegaram mesmo a sair e foi quando se percebeu que não tinha havido nenhum ataque contra o centro que Marie quis voltar. Paul, o fotógrafo com que trabalhava desde a invasão do Iraque, em 2003, teve “um mau pressentimento” e tentou dissuadi-la. “Vivemos com o medo de um massacre”, é o título do último artigo que enviou para o seu jornal de sempre, o Sunday Times, a 20 de Fevereiro. No filme Uma Guerra Pessoal vemos e ouvimos as vozes das mulheres sírias que Marie cita nesse texto. A reportagem onde ficamos a conhecer Noor, de 20 anos, que conta como perdeu o marido e uma filha e se agarra à pequena Mimi, de três anos, ao mesmo tempo que Mohamed, o filho de cinco, não lhe larga a abaya, foi a última que Marie assinou. “Seria errado chamar a isto guerra. É um cerco medieval e uma chacina”, diria dias depois, em Londres, Paul, sobrevivente do ataque que matou Marie e o fotógrafo francês Rémi Ochlik (28 anos) a 22 de Fevereiro. A nova-iorquina que passou a maior parte da vida em Londres foi exemplo para gerações de jornalistas em diferentes partes do mundo. Ia onde era preciso. Escrevia com todas as letras o que via e ouvir. Marie gostaria de ver mulheres sírias nos ecrãs de cinemas em todo o mundo. São sírias as mulheres que aparecem no filme sobre a sua vida que estreia esta quinta-feira em Portugal. As suas tragédias e lágrimas são verdadeiras, garante o realizador Matthew Heineman, que filmou as cenas de guerra na Jordânia, com refugiados sírios e iraquianos. Afinal, era por causa das pessoas que Marie corria na direcção de onde quase todos fogem – um filme sobre ela que não desse voz às vítimas não lhe faria justiça. Em Homs, contou depois o colega e amigo Bill Neely, da ITV, Marie estava frustrada porque o texto só podia ser lido por assinantes e não podia estar disponível na Internet, e ela “queria que as suas palavras da Síria chegassem à maior audiência possível”. Talvez tenha sido por isso que voltou atrás e insistiu em falar para televisões. Amigos e colegas veteranos jornalistas de conflito passaram muito tempo a questionar-se sobre essa decisão. Marie tinha 56 anos e um problema de alcoolismo alimentado pelo stress pós-traumático que nunca tratou. Talvez tivesse perdido a capacidade para avaliar os riscos. Nunca saberemos. Há o azar e há a teimosia. Marie foi morta por ambos. Ou então por se ter convencido que poderia realmente salvar aquelas pessoas. Marie foi morta por Bashar Al-Assad, que não terá perdoado a crueza da sua descrição. Afinal, Marie não era uma repórter qualquer. Era muito respeitada. Marie foi morta por Assad e pela impunidade que o mundo lhe permitiu. Líbia em revolta contra Muammar Kadhaffi, hotel onde se reúnem os jornalistas: alguns passam a carregar os corpos de outros. “Ele era sempre o primeiro a chegar e o último a sair”, diz Marie. No filme “ele” é Norm Coburn, o amigo fotojornalista. É uma personagem compósita: inspirada em Tim Hetherington, o britânico que morreu ao fotografar a frente de combate em Misurata. “Ele” é um pouco de todos os colegas que Marie viu morrer em 30 anos. “Em Timor ele fez-me uma T-shirt que dizia ‘Sou jornalista, não dispare’. Ele era invencível”, diz uma Marie arrasada a Paul. “Há jornalistas ousados e há jornalistas velhos. Não há jornalistas velhos e ousados”, responde-lhe Paul. “Tu sabes isso. ”Claro que “ele” não era invencível tal como Marie não era imortal. Afinal, “é preciso ser completamente doido varrido” para fazer o que ela fazia, diz-lhe no filme a personagem do editor de Internacional do Sunday Times. Ela estava doente mas não era “doida varrida”. Se fosse não tinha pesadelos nem bebia demasiado nem se questionava sobre o que fazia. Ela era humana, muito humana, como tem de ser alguém que consegue que outros lhe abram o coração e a alma e contem das suas tragédias. Adorava divertir-se, “tinha sentido de humor e uma imensa alegria de viver”, descreveu o seu verdadeiro editor, John Witherow. Faz sentido, é difícil ter-se empatia sem humor. Como é impossível passar num checkpoint de soldados de Saddan Hussein fingindo ser enfermeira e “provando-o” com o cartão do ginásio sem frieza e coragem. E como riem Marie e Paul e Mourad, o tradutor iraquiano que os acompanha, passado o perigo. "Bravura não é ter medo de ter medo”, afirmou um dia Marie. “Eu vejo estas coisas para que tu não tenhas de as ver”, grita a personagem na conversa com o editor. É isso que faz um jornalista que vai a zonas em conflito, vê tudo e depois escolhe o que partilha. Nas palavras de Colvin, a jornalista, não a personagem, “cobrir uma guerra significa ir a sítios devastados pelo caos, pela destruição e pela morte, e tentar ser testemunha”, e, “sim, correr riscos”. Nas palavras da jornalista que abrem e fecham o filme, num depoimento em que lhe perguntam como quer ser lembrada: “Bem, penso que [era bom] olhar para trás e dizer que me preocupei o suficiente para ir a estes lugares e, de alguma forma, escrever algo que possa fazer com que outra pessoa se preocupe tanto como eu na altura”. No caso de Marie, estes “lugares” podiam ser aqueles onde mais ninguém ia. Como em 2001, no Sri Lanka, quando insistiu em entrar no território controlado pela guerrilha dos Tigres Tâmiles, onde não havia ocidentais. Não o fez para cobrir confrontos mas a fome e a doença que aniquilavam os civis tâmiles. Os 48 km que percorreu a pé pela selva para evitar as tropas do Governo não foram suficientes: atingida no rosto, perdeu a visão do olho esquerdo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A pala negra que passou a usar só fez crescer o mito da jornalista guerreira, nunca fanfarrona mas absolutamente determinada. A nova-iorquina (“da parte pobre” de Long Island, diz no filme a Paul) cujo instinto a levava a conseguir histórias que outros não procuraram por não acreditarem ou julgarem que não valia a pena. Marie Colvin foi uma jornalista excepcional. Hoje, teria 62 anos. Com ou sem pala, armada de caderno, caneta, telefone e computador, continuaria certamente a trabalhar. Se não estivesse no Iémen, na Nigéria ou nos Camarões estaria provavelmente a tentar entrar em Idlib, a grande cidade que ainda escapa a Assad e para onde fugiram mais de 1, 5 milhões sírios. “Estas pessoas não têm voz”, disse Marie, anos antes de morrer. “Sinto que tenho uma responsabilidade moral, que seria cobarde ignorá-las. Se os jornalistas têm uma hipótese de salvar as suas vidas devem fazê-lo. ” Muito poucos têm a certeza que o fizeram, como Marie. Foi em 1999, quando decidiu ficar no complexo de Díli onde a ONU ameaçava abandonar 1500 civis aos quais prometera protecção. O resto é uma tentativa permanente de chegar a pessoas suficientes para que alguém, em algum lugar, decida fazer alguma coisa. E sim, isso pode tornar-se numa “guerra pessoal”.
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