Morreu o médico Agostinho Almeida Santos, pioneiro da procriação medicamente assistida
Professor catedrático de Coimbra tinha 77 anos. (...)

Morreu o médico Agostinho Almeida Santos, pioneiro da procriação medicamente assistida
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Professor catedrático de Coimbra tinha 77 anos.
TEXTO: O professor catedrático de Coimbra e médico pioneiro da procriação medicamente assistida em Portugal Agostinho Almeida Santos morreu neste sábado, aos 77 anos, disse fonte da família. O médico e professor catedrático de ginecologia, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), realizou, pela primeira vez, em Portugal, a técnica de procriação medicamente assistida, designada por GIFT (Transferência de Gâmetas para a Trompa), "método que propiciou o nascimento do primeiro bebé em Junho de 1988", refere um resumo curricular de Agostinho Almeida Santos do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Segundo a mesma nota, Agostinho Almeida Santos fundou e dirigiu o programa de reprodução medicamente assistida, que funciona em Coimbra, desde 1985. Entre 2005 e 2007, foi o presidente do Conselho de Administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Na vida académica, publicou 185 trabalhos científicos, proferiu mais de 400 palestras e foi o responsável pelas disciplinas de Obstetrícia e Ética, Deontologia e Direitos Médicos da FMUC. Membro de 18 sociedades científicas nacionais e internacionais, desempenhou funções de perito da Comunidade Económica Europeia na área de investigação em bioética. Autor do livro Razões de Ser, associado aos problemas e futuro da bioética, Agostinho Almeida Santos manteve uma actividade universitária de forma ininterrupta desde 1965, sublinha a mesma nota curricular. Em 2011, com a intervenção da troika, alertou para a necessidade de se ajudar os portugueses mais pobres, no acesso aos cuidados de saúde. "Vamos ter em Portugal, dentro de pouco tempo, pessoas que não têm dinheiro, nem amigos, mas vão precisar de ter acesso à saúde", disse então, frisando que se tratava de "um problema cívico", que devia mobilizar todos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Agostinho Almeida Santos criticou igualmente a empresarialização dos hospitais, que considerava "uma falsa medida", que podia pôr em risco a situação financeira Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em 2009, Agostinho Almeida Santos foi designado cônsul honorário de Cabo Verde para a Região Centro, depois de anos de trabalho de cooperação com este país africano, na área da medicina materno-infantil e na formação de internos em obstetrícia. Segundo fonte da família, o corpo de Agostinho Almeida Santos vai estar, a partir das 15h30 deste sábado, em câmara ardente na Igreja de Nossa Senhora de Lurdes, em Coimbra, realizando-se o funeral no domingo, às 15h, a partir da mesma igreja.
REFERÊNCIAS:
Entidades TROIKA
Morreu o jornalista e cineasta António Loja Neves
Autor de documentários morreu domingo, aos 65 anos. (...)

Morreu o jornalista e cineasta António Loja Neves
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DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Autor de documentários morreu domingo, aos 65 anos.
TEXTO: O jornalista, escritor e realizador de cinema António Loja Neves morreu no domingo aos 65 anos, em Lisboa, na sequência de um enfarte, disse à Lusa fonte familiar. Nascido na Madeira em 1953, António Loja Neves era jornalista do semanário Expresso há mais de 30 anos, tendo trabalhado também na área do cinema, na programação ou no júri de festivais, na realização e até como actor em filmes de Manoel de Oliveira e João Mário Grilo. Foi também um dos fundadores do SOS Racismo. Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores em 2001, pelo livro Barcos, íntimas marcas, António Loja Neves lançou recentemente, com Margarida Neves Pereira, o livro Arménia: Povo e identidade, pela Tinta-da-China. "No final da adolescência mudou de ilha e de arquipélago e as mornas de Cabo Verde marcaram-lhe a alma para sempre, ditando um empenhamento pela vida política e cultural dos PALOP (Países Africanos Língua Oficial Portuguesa) que o acompanharia vida fora", escreve o semanário Expresso. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Portugal, ainda passou pelo curso de Medicina, antes de se envolver na luta anticolonial e contra a ditadura. A cinefilia falou mais alto e António Loja Neves acabou por se licenciar em realização pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Esteve na fundação da Federação Portuguesa de Cineclubes, da Apordoc – Associação Pelo Documentário e do Panorama – Festival do Documentário Português, foi coorganizador dos Encontros Internacionais de Cinema de Cabo Verde e comissariou mostras de filmes lusófonos em diversos países, do Brasil a Moçambique. Foi ainda director da revista Cinearma, passou pela Cinema Português e pelo semanário África, tendo realizado os documentários Ínsula (1993) e O Silêncio (1999), este com José Alves Pereira. O velório decorrerá entre as 19h e as 21h30 de terça-feira na Rua das Gaivotas6, o espaço do Teatro Praga em Lisboa, numa cerimónia com música cabo-verdiana, um desejo do próprio jornalista.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola racismo
Navio negreiro português classificado como património nacional da África do Sul
Classificação coincide com nova exposição sobre o São José Paquete de África, um dos primeiros a fazer a ligação Moçambique-Brasil. Estima-se que 212 escravos tenham morrido neste naufrágio ocorrido a 27 de Dezembro de 1794 nas imediações do Cabo da Boa Esperança. (...)

Navio negreiro português classificado como património nacional da África do Sul
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Classificação coincide com nova exposição sobre o São José Paquete de África, um dos primeiros a fazer a ligação Moçambique-Brasil. Estima-se que 212 escravos tenham morrido neste naufrágio ocorrido a 27 de Dezembro de 1794 nas imediações do Cabo da Boa Esperança.
TEXTO: Os destroços do navio negreiro português São José, que naufragou ao largo da Cidade do Cabo em 1794, causando a morte a mais de 200 escravos, foram declarados este mês património nacional da África do Sul. Este sítio arqueológico subaquático, a que correspondem aqueles que serão eventualmente os primeiros vestígios alguma vez encontrados de um navio que se afundou ainda com escravos africanos a bordo, está agora classificado e é motivo de uma nova exposição. O São José Paquete de África transportava 512 negros acorrentados. Vinha de Lisboa, de onde saiu em Abril de 1794, e passou por Moçambique para carregar escravos. Em Dezembro, encetava uma viagem que se previa que durasse perto de quatro meses, rumo ao Brasil, onde os escravos eram esperados como mão-de-obra forçada nas plantações de cana-de-açúcar. Mas a difícil travessia do Cabo da Boa Esperança revelar-se-ia fatal. Fará precisamente 224 anos esta quinta-feira, 27 de Dezembro, que o navio encontrou um rochedo e se estilhaçou, a cerca de 50 metros da costa, na zona de Clifton, perto da Cidade do Cabo. O comandante, o português Manuel João Perreira (irmão do proprietário do barco, António Perreira), e a tripulação sobreviveram, mas estima-se que 212 pessoas — metade dos escravos — terão morrido afogadas. Os escravos sobreviventes foram depois vendidos na Cidade do Cabo. Durante mais de dois séculos, o navio esteve submerso. Os caçadores de tesouros que primeiro encontraram os seus destroços, há cerca de 30 anos, identificaram-no inicialmente como um navio holandês, mas em 2015, depois de uma investigação dos arqueólogos do projecto Slave Wrecks Project, concluiu-se que se tratava do navio português São José Paquete de África. Um dos elementos essenciais para a sua identificação foram as barras de ferro com que o navio saíra de Portugal e que serviam de lastro ou contrapeso, conforme a carga humana variável. A informação constava do manifesto de carga do São José depositado no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. A classificação oficializada no início do mês coincidiu com a inauguração de uma exposição no Museu Iziko, da Cidade do Cabo. Unshackled History: The Wreck of the Slave Ship, São José, 1794 exibe alguns artefactos recuperados do fundo do mar, incluindo, além das referidas barras de ferro, grilhetas e correntes usadas para prender os moçambicanos escravizados, que estavam cobertas por sedimentos e areia. Se não tivesse naufragado pelo caminho, o São José Paquete de África teria cumprido uma das primeiras viagens de tráfico humano entre Moçambique e o Brasil, rota que se tornaria frequente e estaria activa durante mais de um século. “Estima-se que mais de 400 mil pessoas da costa oriental africana tenham feito essa viagem entre 1800 e 1865. Transportadas em condições desumanas em viagens que demoravam dois a três meses, muitas não sobreviveram à viagem”, recorda o museu sul-africano. A mostra conta ainda com uma simulação interactiva do local do naufrágio e dos respectivos destroços, uma ferramenta desenvolvida pelo Museu Smithsonian de História e Cultura Afro-Americana, que acolheu já uma exposição sobre o navio português e que está intimamente associada ao projecto – não sem algumas críticas pela sua preponderância sobre a do país africano. De acordo com a South African Broadcasting Corporation, o United States Ambassador’s Fund for Cultural Preservation doou cerca de 420 mil euros para a investigação do Slave Wrecks Project em 2016. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Portugal foi pioneiro no tráfico transatlântico. Mais de 40% dos escravos foram levados em navios portugueses, um valor superior ao de qualquer outro país – Espanha, Grã-Bretanha, França, Holanda”, lembrava em 2016 ao PÚBLICO o antropólogo Stephen Lubkemann, coordenador internacional do Slave Wrecks Project. Um naufrágio coloca sempre algumas questões sobre a titularidade do património – no caso, o navio é português, as vítimas são moçambicanas, os destroços foram encontrados em águas sul-africanas. Esta classificação pela África do Sul visa, independentemente disso, contar a história do São José e das suas vítimas. “Era uma nota de rodapé na História”, comentou à emissora pública sul-africana o arqueólogo marinho Jaco Boshoff, envolvido na coordenação da exposição. “Dar memória à história do São José num contexto global é um projecto significativo e notável”, destaca em comunicado Rooksana Omar, presidente do Museu Iziko. “É mais do que história africana, americana, moçambicana ou europeia. É uma história sobre as nossas histórias partilhadas. ”
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
EUA pedem extradição de Manuel Chang, ex-ministro das Finanças de Moçambique
Manuel Chang é acusado de lavagem de dinheiro e fraude fiscal. Jornal moçambicano diz que este é "o início da revelação de vários casos de grande corrupção e branqueamento de dinheiro envolvendo as elites políticas". (...)

EUA pedem extradição de Manuel Chang, ex-ministro das Finanças de Moçambique
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Manuel Chang é acusado de lavagem de dinheiro e fraude fiscal. Jornal moçambicano diz que este é "o início da revelação de vários casos de grande corrupção e branqueamento de dinheiro envolvendo as elites políticas".
TEXTO: O antigo ministro das Finanças moçambicano Manuel Chang foi detido no sábado, na África do Sul, e os Estados Unidos, onde é acusado de lavagem de dinheiro e fraude financeira, pediram a sua extradição. Se for julgado, pode ser condenado uma pena cumulativa de 45 anos de prisão. A prisão foi confirmada à Lusa neste domingo pela embaixada de Moçambique em Pretória. Porém, ao início da noite, circulava a notícia de que teria sido libertado por ordem de um juiz de Pretória. Manuel Chang foi detido ao abrigo de um mandado de captura internacional emitido pelos Estados Unidos a 27 de Dezembro, sob acusações de fraude e lavagem de dinheiro, especificou fonte da embaixada sul-africana citada pelo canal privado de televisão de Moçambique STV. De acordo com o jornal electrónico Carta de Moçambique, os americanos já pediram a extradição do antigo ministro moçambicano e actual deputado na Assembleia da República pela Frelimo, o partido no poder. Manuel Chang foi ministro das Finanças de Moçambique no Governo de Armando Guebuza, entre 2005 e 2010. É um dos envolvidos nas chamadas dívidas ocultas, contraídas indevidamente no período de Gebuza – serão 1, 35 mil milhões de euros, tendo parte dele sido usado para a compra de equipamento militar, segundo explica a edição em português da Deutsche Welle. As acusações de que é alvo nos EUA não estão relacionadas com estas contas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Contactado pela Lusa, o porta-voz da Polícia da República de Moçambique, Inácio Dina, disse que a corporação ainda não recebeu uma informação oficial sobre o caso. O Carta de Moçambique diz que há outros moçambicanos "sob a mira do FBI", a polícia federal dos EUA. "Chang e outras figuras de revelo, cujos nomes ainda não podemos relevar, são indicados como estando ligados a uma pequena entidade financeira operando em Maputo (que também ainda não podemos revelar), através da qual faziam operações fraudulentas", escreve o jornal. Uma fonte identificada como jurista disse ao Carta de Moçambique que a prisão de Manuel Chang é "o inicio da revelação de vários casos de grande corrupção e branqueamento de dinheiro em Moçambique, envolvendo as elites políticas locais".
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Entidades EUA
Os Gala Drop foram ao encontro da sua voz
São uma confluência feliz de pessoas arrebatadas por música nas suas mais diversas expressões. O segundo álbum, II, está aí para o demonstrar, com uma sonoridade expansiva, agora com voz. Na quinta-feira há concerto de apresentação no B.Leza. (...)

Os Gala Drop foram ao encontro da sua voz
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: São uma confluência feliz de pessoas arrebatadas por música nas suas mais diversas expressões. O segundo álbum, II, está aí para o demonstrar, com uma sonoridade expansiva, agora com voz. Na quinta-feira há concerto de apresentação no B.Leza.
TEXTO: A música popular é um labirinto. Passamos o tempo a cartografar os mais diversos géneros musicais, fazendo-os coincidir para um determinado espaço e tempo geográfico, mas será que vale a pena?Oiça-se a música dos portugueses Gala Drop. É espacial, rítmica, oceânica e psicadélica. Sincretismo de épocas e tipologias, do pós-punk dos anos 1980 ao krautrock alemão dos anos 1970, do dub jamaicano ao disco nova-iorquino dos anos 1970, do tecno de Detroit a africanismos contemporâneos de Lisboa, numa mescla para onde confluem sugestões de Can, Lee Perry, Arthur Russell ou Brian Eno. Uma coisa é certa. Ao longo dos anos o colectivo foi-se transformando, não apenas em termos sónicos como também de formação, mas o ritualismo, os ecos exóticos e os climas cósmicos nunca os perderam. Mesmo agora, ao segundo álbum, sobriamente intitulado II, vislumbramos essas características, mescla de sintetizadores de som espacial e ritmos percussivos, mas agora povoados por uma voz. Trata-se da voz do percussionista americano Jerrald James, mais conhecido por Jerry The Cat, músico de 64 anos, a viver em Lisboa há meia dúzia de anos. É natural de Detroit, a cidade do garage rock, da Motown e do tecno, e quando foi convidado a ingressar no colectivo traçou de imediato uma linha transatlântica em direcção a Lisboa. “Senti-me de imediato identificado com a música, porque existe qualquer coisa nela que remete para o psicadelismo e para ambientes tecno”, afirma, recordando o primeiro embate com o som do grupo. Para além de Jerry que entrou quando partia um dos fundadores, Tiago Miranda, o grupo é hoje constituído por Nelson Gomes nos sintetizadores, Afonso Simões na bateria, Rui Dâmaso no baixo eléctrico e Maria Reis, que substituiu Guilherme Gonçalves, na guitarra. As entradas e saídas da formação, segundo Nelson, têm contribuído para que o grupo, sem perder a identidade, se vá abrindo a novos espaços de inspiração. “A forma como a integração dos músicos tem sido feita permite que vão trazendo coisas novas, sem que se perca a linha condutora”, reflecte. “Quando o Guilherme entrou, trouxe um novo instrumento, a guitarra, e isso conduziu-nos para lugares que até aí não tínhamos explorado. O mesmo aconteceu com a entrada do Jerry. ”Nelson faz parte da produtora Filho Único e da editora Príncipe, para além de assinar a solo como Black, mas os outros também têm outras actividades. Os Fish & Sheep e Phoebus no caso de Afonso, os Loosers, no caso de Jerry e Rui e as Pega Monstro, no caso de Maria. Numa fase inicial Jerry era apenas percussionista. Depois aconteceu a revelação vocal. “A partir de determinada altura vimos que ele tinha uma excelente voz, que era uma ferramenta que sempre quisemos utilizar – no primeiro álbum existem algumas vozes, mas abstractas – mas com a qual nenhum de nós se sentia à vontade”, afirma Nelson. No passado, Jerry, já havia tocado ao lado de formações lendárias do funk como os históricos Funkadelic e Parliament, ou com mestres da música de dança contemporânea de Detroit, como os produtores Theo Parrish e Moodymann, mas a sua voz nunca fora uma das prioridades. Um dia Nelson e Afonso ouviram o máxi-single Nuclear funk de Arttu, onde Jerry surge a vocalizar, e ficaram impressionados. “Quando ouvimos aquele tema ficamos surpresos e percebemos de imediato que ele tinha capacidades extraordinárias, que provavelmente nunca explorara devidamente. Acabámos por desafia-lo e ele aceitou. Foi preciso chegar aos 60 anos para cantar numa banda”, ri-se Nelson. “Nunca tinha pensado em mim próprio como cantor”, sorri Jerry, “mas como ninguém o queria fazer, resolvi tentar”. A introdução da voz obrigou-os a repensar as noções de estrutura e de espaço, mas o “vínculo entre música e voz acabou por não ser difícil”, diz Nelson. A voz do americano enquadra-se sem dificuldade no som escultórico, na forma como ecos e reverberações do dub coabitam com vozes, percussões extravagantes e sintetizadores cósmicos, com camadas de som sobrepondo-se, desaguando em temas mais dolentes como “You and i” ou “All things”, ou mais expansivos como Big city e Sun gun. O disco foi sendo criado ao longo de quatro anos, com o processo de composição centralizado no ano passado. “Tivemos que tirar um ano de pausa de concertos para que eu e o Afonso nos concentrássemos de forma a finalizarmos o corpo estrutural da música. O processo de composição demorou um ano e a gravação e mistura oito meses. ”Na quinta-feira, dia 6, e sábado, dia 8, realizar-se-ão os concertos de lançamento do álbum, no B. Leza, em Lisboa, e no Plano B do Porto e a única forma de adquirir bilhetes será comprar o CD ou LP na Fnac. Depois seguir-se-ão mais concertos em território português e no exterior. Essa tem sido aliás a aposta do grupo ao longo dos anos, visível nas diversas digressões encetadas ou no facto de lançarem discos pela editora nova-iorquina Golf Channel Recordings. “Sem o acolhimento inicial que obtivemos em alguns círculos internacionais e sem os concertos por essa Europa fora provavelmente já teríamos acabado”, reflecte Nelson. “Se não tivéssemos tido a capacidade e o investimento em irmos lá para fora teria sido muito difícil continuar. ”No início andaram em digressão europeia com os americanos Excepter e Gang Gang Dance e já depois do lançamento do álbum homónimo de estreia em 2008, deram alguns concertos relevantes como no Anfiteatro ao ar livre da Gulbenkian em Lisboa ou a primeira parte dos Sonic Youth no Coliseu. Mais tarde percorreram a Europa com os Six Organs Of Admittance e acederam a um convite de Panda Bear (Animal Collective) para um concerto num festival em Nova Iorque. Em 2010 editaram o EP Overcoat Heat e dois anos depois acabou por surgir Broda, um máxi-single colaborativo com o americano Ben Chasny (Six Organs Of Admittance), a que se seguiu uma digressão. Antes já haviam travado conhecimento com Jerry, que se tem vindo a afirmar, desde então, como uma personalidade influente no seio do grupo. No início do seu ciclo como músico integrou vários grupos de jazz de fusão e quando estava na universidade teve oportunidade de tocar com os Parliament e Funkadelic. Nos anos 1990, dava então aulas, viria a ser sugestionado pelos seus alunos a visitar o clube The Music Institute, a meca do tecno em Detroit, onde haveria de conhecer pioneiros como Juan Atkins, Derrick May ou Kevin Saunderson. “A partir de determinada altura comecei a comprar música em vinil e à minha volta os meus amigos foram-me convencendo, pelo meu passado, a actuar como DJ”, recorda. “Durante um ano pratiquei em casa e todo o meu salário de professor ia para discos”, diz ele, evocando encontros com Parrish ou Moodymann em lojas de discos. Depois de DJ passou a produtor, começando a assinar em nome próprio e, como tantos outros americanos da cena de Detroit, acabou por desembarcar na Europa. “Às tantas um dos temas que produzi tornou-se popular em Paris e convidaram-me para tocar lá”, recorda. “Fiquei seis anos”, ri-se. Depois regressou a Detroit, mas sentia saudades da Europa. Paris deixou de ser opção, “pela pouca qualidade do ar”, diz ele, um asmático precoce, e acabou por ficar em Lisboa. Os outros Gala Drop revêem-se na sua personalidade. “É alguém tranquilo e que ao mesmo tempo emana um brilho muito próprio” refere Nelson, justificando dessa forma também o som mais solto e luminoso que o grupo expõe hoje em dia, enquanto Jerry sorri, argumentando que as letras das canções contêm referências ao seu passado, mas nada de muito específico. “As letras acabam por ser um processo de abstracção” afirma, referindo que a língua não tem segredos para si, numa alusão aos anos que passou no sistema de ensino nos EUA. “Aliás, ainda estou muito ligado às coisas da língua”, comenta ele, “porque aqui em Portugal o meu principal trabalho é ensinar inglês. ”Em Lisboa parece ter encontrado muitas das pontas perdidas que ao longo da vida foi seleccionando no campo da música, acabando por dar-lhes novos sentidos nos Gala Drop. Na verdade é como se o grupo, em II, conseguisse conectar, com descontracção, as pontas que ligam linguagens africanas hipnóticas, com o minimalismo envolvente do tecno de Detroit, através das técnicas do dub e da bonomia portuguesa. É um álbum que se move por entre vários cenários, num composto impreciso de cadências nostálgicas, electrónicas e linhas de baixo narcóticas, numa viagem por várias geografias e temporalidades, mas onde se sente, afinal, que nunca saímos verdadeiramente da Lisboa dos nossos dias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Autoria: Gala Drop; Golf Channel RecordingsLisboa, B. Leza - R. Cintura do Porto de Lisboa, Armazém B (Cais do Sodré). Dia 6/11. Quinta às 22h. Porto, Plano B - R. Cândido dos Reis, 30. T. 222012500. Dia 8/11. Sábado às 22h.
REFERÊNCIAS:
Até os marimbondos ajudaram para criticar José Eduardo dos Santos
Numa marcação homem a homem, João Lourenço apresentou-se em Portugal como o Presidente anti-Dos Santos. Na substância, no estilo e na forma. (...)

Até os marimbondos ajudaram para criticar José Eduardo dos Santos
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Numa marcação homem a homem, João Lourenço apresentou-se em Portugal como o Presidente anti-Dos Santos. Na substância, no estilo e na forma.
TEXTO: A expressão “quem vê caras não vê corações” não foi inventada para João Lourenço, mas encaixa-lhe bem. Mal começou a primeira visita de Estado a Portugal, o Presidente angolano disse que “os amigos querem-se juntos”. Foram no entanto precisas seis horas de cerimónias e discursos para lhe ver o primeiro sorriso. E aqui acabam as semelhanças com o seu antecessor. Nos seus 38 anos no poder, José Eduardo dos Santos também nunca foi homem de grandes sorrisos em momentos oficiais. Em tudo o resto, o novo Presidente de Angola usou o primeiro dia de visita a Portugal para sublinhar o contraponto com o ex-Presidente e evidenciar a viragem. Na substância, no estilo e na forma. O general Lourenço vem de dentro e do sistema, mas é o Presidente anti-José Eduardo dos Santos. É uma marcação homem a homem. O que disse, onde foi, o que fez e até na abertura dos contactos com a imprensa — reservou uma hora para uma entrevista colectiva com a imprensa portuguesa no sábado —, João Lourenço afirma-se pelo seu programa e ideias, mas também pela diferença com o regime anterior e por aquilo que quer destruir do que herdou. Já sabíamos que José Eduardo dos Santos só visitou Portugal quatro vezes em quatro décadas e, dessas, só duas foram visitas de Estado. Já sabíamos, mas João Lourenço abriu a intervenção no Palácio de Belém, com Marcelo Rebelo de Sousa ao lado — a sorrir, claro — dizendo isto: “Viemos corrigir algo que nos parece anormal: o facto de termos deixado passar um período bastante longo sem que tivesse havido a troca de visitas de chefes de Estado. Os amigos querem-se juntos, os amigos devem visitar-se. A última vez que um chefe de Estado angolano visitou Portugal foi há nove anos. Alguma coisa terá falhado nesta busca permanente de alimentar uma amizade. ”Nos últimos 14 meses, tornou-se um hábito ouvir o novo Presidente usar o verbo corrigir. “Corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”, disse quando assumiu a presidência do MPLA em Setembro. O que está mal? “A corrupção, o nepotismo, a bajulação e a impunidade. ” Já sabíamos que João Lourenço tem um estilo tranquilo e directo e que chama as coisas pelos nomes. Mesmo assim, o novo líder angolano fez questão de dizer, na Assembleia da República portuguesa, que a sua ambição é maior. “Estamos a construir uma nova Angola”, disse ao lado de Marcelo e Eduardo Ferro Rodrigues. Não é melhorar Angola, é fazer um novo país. Uma Angola onde há “transparência” (versus corrupção), “concorrência leal nos negócios” (versus nepotismo), “moralização da sociedade” (versus impunidade), “reposição da autoridade das instituições do Estado” (versus bajulação). Mas o contraste é até mais simples. O Presidente anti-Dos Santos foi o primeiro chefe de Estado de Angola a discursar no Parlamento português, uma “distinção rara” reservada aos “amigos” próximos, notam os diplomatas. Moçambique discursou três vezes, o Brasil quatro (e essas são sete das 19). Até os marimbondos ajudaram para criticar José Eduardo dos Santos e a sua filha Isabel, que Lourenço afastou da Sonangol e que ontem saiu em defesa do pai lançando um tom de alarme. Os marimbondos são vespas que caçam aranhas e a sua picada está no topo da escala da dor das picadas de insectos. Fazem parte da cultura popular angolana e há até um poema de Ernesto Lara Filho, Picada de Marimbondo, que foi musicado pelo célebre Waldemar Bastos (e que Fausto adaptou para o seu disco A Preto e Branco). Porque está a falar para dentro, mas também para fora, Lourenço usou a imagem com calma: “Quando nos propusemos combater a corrupção em Angola, tínhamos noção de que precisávamos de ter muita coragem, sabíamos que estávamos a mexer num ninho de marimbondos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Até se costuma dizer que a picada da vespa é mais dolorosa do que a picada da abelha, por isso imaginem. . . Nós sabíamos que podíamos ser picados. Já começámos a sentir as picadelas. Mas isso não nos vai matar. Não é por isso que vamos recuar. É preciso destruir esse ninho de marimbondos. Quantos marimbondos existem nesse ninho? Não são muitos. Angola tem 28 milhões de habitantes, mas não há 28 milhões de corruptos. O número é bastante reduzido. Há uma expressão em Angola: somos milhões e contra milhões ninguém combate. Essa expressão continua viva, não morreu. Que ninguém pense que, por todos os recursos que tem, de todo o tipo, consegue enfrentar-nos. ” O recado ficou dado. Mais tarde, um jornalista angolano lembrou que a frase de propaganda das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), que ele ouviu muitas vezes quando era um jovem pioneiro, não é apenas “somos milhões e contra milhões ninguém combate. ” Tem mais uma frase: “Quem combater, será derrotado. ”Foi só ao fim da tarde que se viu Lourenço sorrir. O presidente da Câmara de Lisboa, que ofereceu as chaves da cidade ao seu convidado, teve três ideias que ajudaram. Para a cerimónia solene, o autarca convidou embaixadores, antigos estudantes angolanos que usaram a Casa dos Estudantes do Império e uma turma de crianças de uma escola pública. “Senhoritas e senhoritos”, registou o general, com uma pequena vénia. O outro sorriso aberto — e a quebrar o protocolo — foi para ir abraçar o embaixador António Monteiro, chefe da missão de Portugal junto da Comissão Conjunta Político Militar (CCPM) em Luanda a seguir aos Acordos de Bicesse. Hoje o dia é mais executivo. Em vez de recados, haverá reuniões para fechar acordos e tempo para tentar abrir novos negócios. A cooperação, fico dito, tem de ser “mutuamente vantajosa”.
REFERÊNCIAS:
“Portugal não é o principal esconderijo” das fortunas ilícitas de Angola
As relações entre Portugal e Angola “são muito boas”, disse o Presidente angolano João Lourenço. “Não posso dar nota 10 porque o objectivo é atingirmos a excelência. E não se pode dizer que as relações já sejam excelentes.” (...)

“Portugal não é o principal esconderijo” das fortunas ilícitas de Angola
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.166
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As relações entre Portugal e Angola “são muito boas”, disse o Presidente angolano João Lourenço. “Não posso dar nota 10 porque o objectivo é atingirmos a excelência. E não se pode dizer que as relações já sejam excelentes.”
TEXTO: Portugal não é o “principal esconderijo” das fortunas angolanas com origem ilícita que o governo de João Lourenço quer reaver através da nova lei dos “bens incongruentes”, disse o Presidente de Angola, este sábado, em Lisboa. “Se é o principal esconderijo? Não confirmo. Acreditamos que essas fortunas — e estou a falar de fortunas, não apenas de dinheiro — estarão espalhadas pelo mundo fora, muito provavelmente, além de Portugal, em locais nunca antes imaginados. É nossa obrigação, com os meios que dispomos e os contactos com outros Estados, tentar localizar essas fortunas. Estará em Portugal, mas também em muitos outros países. ”Lourenço não quis comentar se Angola considera que Portugal recebeu com demasiada facilidade essas fortunas sem verificar com rigor a origem do dinheiro. “Essa pergunta seria mais para as autoridades portuguesas, e não para mim. ” Ninguém quis ainda estimar quanto capital angolano de origem ilícita estará em Portugal, mas serão milhões. O penúltimo momento da visita de Estado do Presidente da República de Angola a Portugal — a terceira nos 40 anos de democracia angolana — foi uma conferência de imprensa com os media portugueses, seguida de um almoço com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no Palácio de Belém. Depois de três dias a repetir, em Lisboa e no Porto, a mensagem de que as relações bilaterais estão num “novo patamar”, que “o irritante [jargão da diplomacia para problemas graves] desapareceu” e que Portugal “é um país muito querido pelos angolanos”, João Lourenço disse de novo que “não existem obstáculos na relação entre Angola e Portugal e, se existiu algum, foi de menor importância — é uma situação que está ultrapassada”. De 1 a 10, que nota dá João Lourenço à relação entre os dois países? “Não posso dar nota 10 porque o objectivo é chegarmos ao 10, é atingirmos a excelência das relações. E não se pode dizer que já sejam excelentes. São muito boas e por isso temos obrigação de continuar a trabalhar para a excelência. ”O Presidente não adiantou novidades sobre a dívida do Estado angolano a empresas portuguesas e disse apenas que Portugal concordou com a certificação já feita por Angola — 270 milhões de euros, dos quais metade já foram pagos e o resto deverá ser pago em breve. Mas deu boas notícias a alguns empresários. Sem falar directamente do BCP, Lourenço afirmou ter “sossegado” uma empresa que o abordou na sexta-feira à noite para saber se o Estado angolano ia sair do capital. O BCP? “Estou a referir-me a um banco”, respondeu. Sobre o BCP, Lourenço tinha dito ao Expresso, ainda em Luanda, uma frase enigmática que causou nervosismo em Lisboa: “Não estou a dizer que vamos sair amanhã. ” Este sábado o tom foi diferente. A Sonangol entrou no BCP em 2007 e detém 19, 5% (é o segundo maior accionista). Um alto quadro do BCP disse ao PÚBLICO, este sábado, que, após a visita de Estado, o banco “está tranquilo”. Sobre a Galp Energia, onde a Sonangol é accionista ao lado de Isabel dos Santos, através da Amorim Energia, Lourenço nada disse. Ao Expresso, antes de chegar a Portugal, o Presidente classificou a participação da Galp como “uma dispersão”, numa altura em que a Sonangol está a iniciar um plano de venda de activos. Questionado sobre o tweet de Isabel dos Santos, no qual a filha do ex-Presidente alerta para a crise profunda que se vive em Angola, o chefe de Estado apenas rejeitou que o país esteja, ou venha a estar, perante uma crise. Sobre o futuro dos bens de Isabel dos Santos, nada disse. Apostado na diversificação da economia angolana, Lourenço voltou a apelar ao investimento português: “Gostaríamos de ver os empresários portugueses em Angola e em força. Não gosto muito desta expressão e quem sabe da história sabe porquê. ” Em 1961, quando rebentou a guerra colonial, António de Oliveira Salazar, Presidente do Conselho durante a maior parte do Estado Novo, pediu que os portugueses fossem “para Angola, rapidamente e em força!” lutar contra os guerrilheiros. Mais tarde, foi anunciado que Rebelo de Sousa fará uma visita de Estado a Angola entre 6 e 8 de Março de 2019. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. PÚBLICO, RTP, SIC, TVI, Diário de Notícias, Expresso, Lusa, Bloomberg, TSF e Rádio Renascença participaram na “entrevista colectiva” organizada pela embaixada de Angola no Hotel Ritz, em Lisboa, onde o Presidente ficou hospedado. Quando a terceira pergunta foi feita, uma órfã do 27 de Maio de 1977 levantou-se de repente, apresentou-se e pediu ao Presidente para ler um poema em memória dos pais, vítimas da repressão após a alegada tentativa de golpe de Estado em Angola. Lourenço autorizou a intervenção da cidadã, mas não a leitura do poema, pedindo-lhe para conversarem no fim. Ao retomar a palavra, o líder angolano disse que o “27 de Maio” é “um dossier delicado” que ainda representa "feridas profundas”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra filha lei
Ribeiro Telles quer abrir portas internacionais para a CPLP
Com uma certificação internacional junto do BAD e da União Europeia, a CPLP pode ganhar um novo fôlego financeiro, diz Francisco Ribeiro Telles, novo secretário-executivo da comunidade. (...)

Ribeiro Telles quer abrir portas internacionais para a CPLP
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.066
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Com uma certificação internacional junto do BAD e da União Europeia, a CPLP pode ganhar um novo fôlego financeiro, diz Francisco Ribeiro Telles, novo secretário-executivo da comunidade.
TEXTO: Francisco Ribeiro Telles, que este sábado toma posse como o primeiro português secretário-executivo da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), é visto por deputados e diplomatas como alguém com perfil para dar uma “lufada de ar fresco” à organização. Mas quando atende o telefone em Roma, onde até sexta-feira era embaixador de Portugal, o diplomata apressa-se a dizer que a sua função é “executar o programa” de Cabo Verde — que neste momento tem a presidência rotativa da CPLP — e que o seu mandato só tem dois anos, metade do previsto pelos estatutos. “Não tenho um programa. O meu programa de acção é o que foi definido por Cabo Verde e, por isso, a minha principal preocupação será pugnar pela sua implementação”, diz Ribeiro Telles. O tema escolhido pela presidência cabo-verdiana (2018-2020) é “As pessoas, a cultura e os oceanos”, “uma síntese feliz dos traços identitários da CPLP”, diz o novo secretário-executivo. Traduzindo: “Como aproximar a CPLP dos cidadãos, como projectar a língua portuguesa no mundo, e os oceanos, porque somos nove Estados marítimos, temos 2, 5% da superfície marítima do planeta e este é um tema da agenda mundial. ”Ribeiro Telles, que tem 65 anos e entrou no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) em 1983 — vindo do Serviço Nacional de Parques, onde era ornitólogo — trabalhou como diplomata em Angola, Brasil e Cabo Verde e acompanhou o dossier de Timor-Leste como chefe de gabinete de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros nos anos 90. Em Portugal e noutros países do “clube lusófono”, é visto como um “candidato natural” a secretário-executivo da CPLP. Nestes 35 anos de MNE, foi assessor diplomático nos palácios de São Bento e de Belém (em mandatos de Mário Soares) e conheceu a fundo quatro países da comunidade. É preciso actualizar e repensar a CPLP? “Não é preciso repensar a CPLP. A comunidade tem uma nova visão estratégica, que saiu da cimeira de Brasília”, diz Ribeiro Telles. “A análise e o diagnóstico estão feitos. O importante é começar a implementar medidas e projectos concretos em relação à nova dinâmica. ”Os princípios orientadores dessa “nova dinâmica” estão na Declaração de Brasília, assinada pelos chefes de Estado e de Governo na cimeira de 2016. O texto prevê uma Nova Visão Estratégica da CPLP para 2016-2026 e o “reforço da actuação” em três pilares ao longo da década: concertação político-diplomática, cooperação e promoção da língua. Mais de meio ano foi logo perdido: só oito meses depois é que o Conselho de Ministros da CPLP aprovou o “caderno de encargos” operacional. Além disso, muitas das 56 “iniciativas e acções” previstas no Documento de Operacionalização da Nova Visão Estratégica, aprovado em Julho de 2017, são genéricas. Uma acção é “reflectir” (sobre a criação de procedimentos), outra é “fortalecer” (intercâmbios), outras “aprofundar” (“o conhecimento mútuo”) e “fomentar” (“o estudo da língua”). Mas uma das 56 acções é “identificar objectivos realistas” para as presidências rotativas. Inspirado nesse documento e nesse apelo ao realismo, Ribeiro Telles vai tentar obter a certificação internacional da CPLP junto de organizações como o Banco Africano do Desenvolvimento (BAD) e a União Europeia (UE) para a comunidade poder concorrer como bloco a financiamentos e fundos que essas organizações têm para projectos de cooperação e desenvolvimento. “A CPLP tem que se afirmar mais no plano internacional”, diz o embaixador. “Estabelecer parcerias com outras organizações internacionais dará fôlego financeiro à CPLP. O processo de certificação é longo e complexo, mas vale a pena tentar. Com esse certificado, as organizações têm mais facilidade a candidatarem-se a fundos do que um Estado a nível bilateral. A Commonwealth e a Francofonia têm esta certificação internacional e tiram vantagem disso. O Instituto Camões também tem. Não há razão para a CPLP não ter. ”“Promover a visibilidade da CPLP” é outras das 56 acções da nova estratégia e, em 2017, os governos dos nove deram ao Secretariado Executivo a tarefa de diversificar as “fontes de captação de recursos” para a comunidade, “desde contribuições voluntárias à negociação de financiamentos para projectos”. A certificação internacional seria uma forma de responder a esse objectivo. “Vou estudar e ver como podemos começar a abrir a porta neste sentido, ver até que ponto podemos implementá-lo num futuro próximo. O que sabemos é que sem a certificação internacional há projectos que neste momento estão vedados à CPLP. ”Ribeiro Telles entra em funções a 1 de Janeiro e o seu primeiro acto oficial é nesse mesmo dia: a tomada de posse do Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em Brasília. As regras da CPLP obrigam a que o novo secretário-executivo tome posse perante a presidência em exercício. Por isso, e para aproveitar o facto de o Presidente de Cabo Verde estar em Portugal, a cerimónia é este sábado, na sede da CPLP, no Palácio dos Condes de Penafiel, no centro histórico de Lisboa. A assistir, estarão também os Presidentes de Portugal e de São Tomé e Príncipe e os chefes da diplomacia de Angola, Cabo Verde e Portugal. “Há quem diga que a CPLP tem feito pouco, mas na maioria dos casos as críticas são injustas”, diz Ribeiro Telles. “A CPLP tem 22 anos, é uma organização jovem. ” A Commonwealth nasceu em 1931, a Organização dos Estados Ibero-americanos em 1949 e a Organização Internacional da Francofonia em 1970. “A CPLP está a fazer o seu caminho”, diz o diplomata. “Cada vez há mais a percepção de que a CPLP pode vir a ser muito importante para a política externa. Ter 19 observadores associados — mais dez do que os Estados-membros — é a prova. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nos primeiros 20 anos, a CPLP teve sete observadores associados (Maurícias, Guiné-Equatorial, Senegal, Geórgia, Japão, Namíbia e Turquia). Mas nos últimos quatro aumentou para 19: em 2016 entraram quatro (Hungria, República Checa, República Eslovaca e Uruguai) e em 2018 mais nove (Luxemburgo, Andorra, Reino Unido, Argentina, Chile, França, Itália, Sérvia e Organização de Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI). “São países dos quatro continentes e mesmo na Europa sete quiseram ter este estatuto. Uma das coisas que eu quero — na sequência do trabalho da minha antecessora Maria do Carmo Silveira — é saber até que ponto esses países associados podem ser úteis à CPLP. O que é que eles podem dar à CPLP e o que é que a CPLP lhes pode dar?”A língua “será sempre a matriz identitária da CPLP”, diz o novo secretario-executivo. “Mas a realidade de 1996 é muito diferente da actual. A nova escala introduz uma dimensão económica que não foi pensada no momento da constituição: 50% dos recursos petrolíferos descobertos na última década estão nos países da CPLP; em meados deste século, Angola, Brasil, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe vão representar 30% da produção mundial de hidrocarbonetos, equivalente à produção do Médio Oriente; as perspectivas não são despiciendas para o próprio futuro do Porto de Sines [em Portugal], como plataforma de entrada do gás com destino a uma Europa que não quer estar tão dependente do petróleo russo. Estes são dados objectivos que podem projectar a CPLP para outros patamares. ”O mandato de Ribeiro Telles acaba em 2021. É por essa altura que o conselho de ministros da comunidade fará o primeiro “exame” à implementação das 56 acções previstas. Se correr bem, ajudará à festa do 25. º aniversário da CPLP.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE CPLP MNE OEI
Angola? “Não se preocupe, tudo tranquilo”
João Lourenço impressionou, mas é ainda uma incógnita. "É como o Papa Francisco. Não é uma mudança de regime, é apenas uma mudança de orientação." (...)

Angola? “Não se preocupe, tudo tranquilo”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.416
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: João Lourenço impressionou, mas é ainda uma incógnita. "É como o Papa Francisco. Não é uma mudança de regime, é apenas uma mudança de orientação."
TEXTO: Nunca tinha ouvido, num concentrado de 72 horas, tantas vezes a mesma resposta: “Tudo tranquilo. ” O Presidente de Angola veio a Portugal e os diplomatas ficaram optimistas, os empresários confiantes, os bancários “podem dormir sossegados” e o Governo de Portugal entusiasmado. Mas, sobretudo, ficaram todos “tranquilos”. Como se tivesse entrado uma poção mágica no Hotel Ritz e nos palácios de Belém e de São Bento, a cada pergunta sobre Angola feita nos últimos dias, o início da resposta foi sempre igual. Por vezes, foi mesmo a única resposta. “Tudo tranquilo. ” Com sotaques e entoações diferentes, portugueses e angolanos foram dizendo “tranquilo”, “está tudo tranquilo”, “pode estar sossegada”, “esteja descansada”, “não se preocupe, tudo tranquilo”, “fiquei tranquilo”, “não posso dizer mais nada a não ser que estamos tranquilos”. João Lourenço apresentou-se em Portugal como o Presidente anti-Dos Santos, que vai moralizar o país, punir quem participou do “banquete” — a expressão é sua — dos 38 anos do eduardismo, combater a corrupção, diversificar a economia (“gostaríamos de esquecer que o petróleo existe”, disse em Belém ao lado do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa), pagar as dívidas às empresas portuguesas (pagou metade nas últimas semanas), aceitar as regras de transparência (e o financiamento) do Fundo Monetário Internacional e reaver o que é de Angola e foi roubado aos cofres públicos. Ninguém sabe se a nova política angolana vai provocar um abanão na economia portuguesa — e se o abanão, a existir, vai ser bom ou mau. Há muito dinheiro angolano ilícito em Portugal? “Tudo tranquilo. ”Se for muito, seria com certeza mau se fosse retirado de uma só vez. No sábado, em Lisboa, no seu estilo que por vezes parece saído de um guião de cinema, Lourenço disse que Portugal “não é o principal esconderijo” e que as “fortunas [de dinheiro “incongruente”] estarão espalhadas pelo mundo fora, muito provavelmente — além de Portugal —, em locais nunca antes imaginados”. Na véspera, no Porto, o primeiro-ministro António Costa disse ter garantias da parte de Luanda de que a “caça das fortunas” — a expressão também é do Presidente — “não porá em causa a estabilidade do nosso sistema financeiro”. “A minha aposta é que não será muito”, diz um diplomata que conhece profundamente o dossier das relações bilaterais. “Poderá haver casos aqui e ali, mas não serão muitos. Não creio que haja risco de ser sistémico. ”Desde a crise de 2009, os bancos adoptaram regras mais apertadas de controlo de risco e exigência sobre a origem dos depósitos. Mas em 2008, o Governo de Muammar Khadafi, da Líbia, ainda transferiu para a Caixa Geral de Depósitos (CGD), em Lisboa, 1200 milhões de euros, que mais tarde subiram para 1300 milhões — dinheiro que a seguir à Primavera Árabe e à morte de Khadafi foi congelado pelo Conselho de Segurança da ONU e pela União Europeia e depois “repatriado” para a Líbia. Esse “investimento” do regime líbio representava 2% dos depósitos da CGD. O caso é muito diferente, mas serve para dizer duas coisas. Tal como entra, o dinheiro sai. E sai de forma menos abrupta se as relações diplomáticas entre os países forem boas. Não sabemos se o Governo português está sereno porque está outra vez “tudo tranquilo” com Angola, se é porque não tem razões para recear. O que sabemos é que o “banquete” em Angola foi grande, que os cofres estão vazios, que muito dinheiro veio para Portugal e que João Lourenço é uma incógnita. Quem acompanha a política interna angolana de forma diária resume o último ano com dois cartoons publicados em Angola: num, João Lourenço foi desenhado como uma marioneta dócil e inerte a ser manipulada por José Eduardo dos Santos; noutro, era um exterminador implacável. Nenhum dos dois retratos será verdadeiro, mas entre os dois cartoons só passaram seis meses. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A rapidez da mudança angolana surpreendeu os mais conhecedores e por isso académicos e diplomatas estão cautelosos. Mais de 90% da política angolana foi reciclada. João Lourenço afastou muitas pessoas, mas manteve muitas mais. Basta olhar e falar com a delegação que acompanhou o Presidente a Portugal: Carolina Cerqueira, ministra da Cultura (já tinha a mesma pasta), Luís da Fonseca, ministro da Economia e Planeamento (foi vice-ministro no governo anterior), Archer Mangueira, das Finanças (manteve cargo), Ângelo da Veiga Tavares, ministro do Interior (mantém a pasta), Manuel Domingos Augusto, ministro das Relações Exteriores (foi vice do anterior chefe da diplomacia de José Eduardo dos Santos), Manuel Nunes Júnior, ministro do Estado e do Desenvolvimento Económico e Social (é novo na pasta, mas tinha papel importante no partido do governo e foi ministro da Coordenação Económica), Victor Lima, secretário para os Assuntos Diplomáticos (foi embaixador no Japão e em Espanha), Bernarda Martins, ministra da Indústria (manteve pasta após mudança) e Manuel Tavares, ministro das Obras Públicas, que é o único que nunca foi ministro no eduardismo. Só um ministro nunca teve uma pasta nos governos de José Eduardo dos Santos. Não fiz de propósito para a excepção ficar no fim. É esta a ordem pela qual os ministros estavam “arrumados” no palanque em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, onde houve a primeira cerimónia da visita de Estado. Há outros sinais. Como o ex-vice-Presidente Manuel Vicente. Foi acusado em Portugal de corrupção e Angola exigiu que fosse julgado no seu país. Transferido o processo — e feitas as pazes — pensar-se-ia que o novo Presidente quereria manter alguma distância em relação a um homem sob suspeita de ter feito parte do “banquete”. Mas Alex Vines, da Chattam House, disse esta semana numa conferência organizada pelo Clube de Lisboa e a UCCLA, que ele faz parte do círculo de confiança de Lourenço, mantém uma influência significativa junto do núcleo duro do poder e é um dos conselheiros principais na reforma da indústria petrolífera que está a ser feita. Do mesmo modo, nada foi dito de crítico em relação aos generais Hélder Vieira Dias (“Kopelipa”) e Leopoldino do Nascimento (“Dino”), homens muito próximos de José Eduardo dos Santos, que em 2012 começaram a ser investigados pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal em Portugal por indícios de fraude fiscal e branqueamento de capitais. Segundo o jornal angolano Novo Jornal, esta semana, quando Dos Santos fez uma bizarra conferência de imprensa, o general Dino estava lá, em demonstração pública de lealdade. Ainda não é claro se a moralização de que Lourenço fala vai ser aplicada de forma transversal ou se vai centrar-se no clã Dos Santos. Se for levado à letra, a elite do MPLA não ficará contente. Nem provavelmente alguns bancos dos “lugares improváveis”. Sem o MPLA, Lourenço não pode governar. Diz um dos tranquilos-optimistas: “É como o Papa”. Bento XVI saiu, mas continua lá perto, enquanto Francisco trabalha e muda o que consegue. “Isto não é uma mudança de regime. É apenas uma mudança de orientação. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Cutileiro, o diplomata que percebeu Mandela antes dos outros
Nos 100 anos do nascimento de Nelson Mandela, fomos ouvir diplomatas e políticos portugueses que acompanharam o fim do apartheid. Uma história de instintos, tensões e diplomacia na corda bamba. E de um embaixador com ideias diferentes. (...)

Cutileiro, o diplomata que percebeu Mandela antes dos outros
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nos 100 anos do nascimento de Nelson Mandela, fomos ouvir diplomatas e políticos portugueses que acompanharam o fim do apartheid. Uma história de instintos, tensões e diplomacia na corda bamba. E de um embaixador com ideias diferentes.
TEXTO: Um mês depois de aterrar na África do Sul como embaixador de Portugal, José Cutileiro enviou um telegrama secreto para o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros em Lisboa. Se o gesto era normal, a mensagem de banal não tinha nada. Em 1989, viviam na África do Sul meio milhão de portugueses, muitos deles fugidos de Angola e de Moçambique com a roupa que tinham no corpo e uma convicção: tinham sido abandonados por Lisboa. Por essa razão — mas não só —, tudo o que a diplomacia portuguesa fazia na África do Sul era executado com pinças. Como a maioria, Portugal era contra o apartheid. Mas era, ao mesmo tempo, um dos raros países europeus que votavam contra as sanções para asfixiar o regime. Isolados, os líderes sul-africanos tinham pouquíssimos interlocutores na Europa. Lisboa, que via o diálogo com Pretória como vital, era um deles. O objectivo era defender três “interesses nacionais”: Angola, Moçambique e a comunidade portuguesa na África do Sul. “Era um equilíbrio entre a defesa dos nossos princípios e a defesa dos nossos interesses”, diz ao PÚBLICO Aníbal Cavaco Silva, então primeiro-ministro. Uma diplomacia na corda bamba? “Naquela altura, naquelas circunstâncias, é uma imagem correcta. É realpolitik”, diz com um sorriso, o único numa hora de entrevista no seu gabinete no antigo Convento do Sacramento, em Lisboa. No ano em que o embaixador Cutileiro chegou à África do Sul, o Congresso Nacional Africano (ANC), que combatia o apartheid há meio século, ainda estava ilegalizado e os seus líderes estavam presos (como Nelson Mandela e Walter Sisulu) ou exilados em Londres (Oliver Tambo) e em Lusaka (Thabo Mbeki). Já havia sinais de mudança mas, na televisão, o ministro dos Negócios Estrangeiros sul-africano, “Pik” Botha, repetia a frase “na África do Sul nunca haverá o sistema um homem-um voto”. É neste cenário que, em Maio, um mês depois de chegar ao novo posto, José Cutileiro propõe uma mudança radical na abordagem da diplomacia portuguesa. A sua ideia — falar com os negros da oposição sul-africana — parece hoje natural e lógica. Mas há 30 anos chocou parte da comunidade portuguesa local e preocupou parte do governo português. Segundo vários diplomatas ouvidos e muitas dezenas de telegramas secretos da época lidos pelo PÚBLICO, essas pontes vieram, no entanto, a ser úteis à integração dos portugueses na África do Sul democrática nascida em 1994 e à relação próxima estabelecida com Nelson Mandela. Não é por acaso que, depois de 27 anos na prisão, Mandela encontrou tempo para receber o embaixador Cutileiro a 28 de Fevereiro de 1990, mal foi libertado — exactamente 17 dias depois. Em Maio de 1989, quando Cutileiro envia o telegrama 244 para João de Deus Pinheiro, ministro dos Negócios Estrangeiros, ainda faltam nove meses para Mandela sair da prisão Victor Verster, perto da Cidade do Cabo. A sua proposta para mudar a atitude oficial portuguesa na África do Sul é apresentada em quatro pontos escritos em duas páginas de letras maiúsculas, como é habitual na correspondência diplomática. “Neste país os dados estão lançados”, escreve Cutileiro ao abrir o telegrama de balanço do primeiro mês em Pretória. “Um homem-um voto num Estado, mais ou menos federalista, mas único, será a estrutura constitucional dentro de alguns anos. A relação de forças já é clara: à saída [da cerimónia de entrega] das minhas credenciais [como embaixador], pensei que a pessoa que deveria ir ver logo a seguir, por representar o único poder real além do poder afrikans, seria o Senhor Nelson Mandela. O facto de não saber quanto tempo a transição demorará não nos pode distrair do essencial. Primeiro, porque em vez de muitos, poderão ser poucos anos. Segundo, porque a maneira como agirmos durante esses anos será da maior consequência para os nossos interesses futuros. ”A seguir, Cutileiro recomenda “medidas elementares” e anuncia — usando o clássico “salvo instruções contrárias de Vexa [Vossa Excelência]” — as duas coisas que vai fazer “desde já”: “alargar os contactos” da embaixada às “organizações da oposição extraparlamentar”, ou seja, aos negros; e “proibir os funcionários de embaixada, consulados e ICEP de participarem em actividades político-partidárias” do regime sul-africano, como comícios, sessões de esclarecimento e festas de angariação de fundos, sem a sua autorização prévia. No dia em que Cutileiro envia este telegrama, Mandela está não só longe de ser libertado, como mais longe ainda de ser Nobel da Paz e a cinco anos de tomar posse como o primeiro Presidente da África do Sul democrática. “Cutileiro viu antes dos outros”, diz ao PÚBLICO João da Câmara, hoje embaixador em Nova Deli e que, em 1989, como jovem diplomata de 30 anos, era terceiro-secretário na embaixada de Portugal em Pretória. “Foi um pioneiro e um protagonista da mudança. Mesmo com os reparos de Lisboa, não deixou de fazer o que sentiu que tinha de ser feito. ”O embaixador Álvaro Mendonça e Moura, então número dois em Pretória e hoje secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), lembra-se do “reparo” como se fosse hoje: “Digamos que Lisboa nos chamou à atenção em termos que não são muito vulgares. É uma coisa pequenina basicamente dizendo-nos: ‘Chega. ’ É um telegrama do director político e a mensagem subjacente é: ‘Estão a ir longe de mais’. ” Ao telefone, a partir da Índia, João da Câmara reforça: “Lembro-me bem desse telegrama. Dizia que limitássemos aos mínimos os contactos com a oposição negra. O Cutileiro ficou furioso. O que nós estávamos a fazer era só, e simplesmente, o que todas as outras embaixadas estavam a fazer. Até os ingleses e os americanos, que eram muito amigos do regime. Era uma patetice que fôssemos desaconselhados a fazer contactos com quem ia ser governo — era apenas uma questão de tempo. ”Também ao telefone, mas em Bruxelas, onde vive há anos, Cutileiro ouve a pergunta e hesita por um momento. “Não me lembro de todo”, diz ao PÚBLICO. “Nem desse telegrama, nem de nada que alguma vez me tenha impedido de fazer o meu trabalho. Houve alguma preocupação, algum incómodo da parte do primeiro-ministro Cavaco Silva, mas o Deus Pinheiro foi sempre impecável. ”O raspanete de Lisboa foi enviado para Pretória a 23 de Agosto de 1989 e tem de facto apenas cinco linhas. É assinado por José Maria Shearman de Macedo, na altura director-geral de Política Externa do MNE: “Contactos tipo descrito Vexa devem ser efectuados forma discreta e espaçada”, diz a primeira instrução para Cutileiro. “E mensagem a transmitir seus interlocutores deve reflectir nossa conhecida posição moderação. ” A terminar: “Conviria sobretudo continuar a evitar-se dar ideia houve mudança substancial posição Governo português quanto a opositores esse regime. ”A 30 anos de distância, João da Câmara resume o mood da época: “No ministério, a questão não era não verem a mudança que estava a acontecer na África do Sul; era não quererem a mudança. Muitos achavam que na nossa embaixada havia uns perigosos comunistas que ‘agora só falam com o ANC’. ”José Cutileiro tinha 55 anos quando aterrou como embaixador na Cidade do Cabo. Chegou “sem uma ideia preestabelecida: ia ver”, conta. Desfez as malas e instalou-se. Os anos anteriores tinham sido intensos: fora embaixador em Moçambique, director-geral dos Assuntos Político-Económicos no MNE, negociador da adesão de Portugal à União da Europa Ocidental e a seguir da renovação do acordo com os EUA para a utilização da Base das Lajes, nos Açores. “Na manhã a seguir a chegar a Cape Town, sentei-me à beira da piscina e pensei: que bela vida aqui vou ter!”Hoje com 83 anos, Cutileiro conta o episódio como quem diz uma anedota. Descansar foi coisa que nem ele nem ninguém à sua volta fez naqueles meses históricos de transformação. “Mas pouco depois tornou-me evidente o que ia acontecer. Se não se vivesse num casulo, era evidente que o Mandela ia ser libertado rapidamente e era evidente que aquilo tinha acabado. O fim do apartheid ficou escrito a partir do momento em que se percebeu que a União Soviética estava a desmoronar-se e a Guerra Fria a acabar. O Muro de Berlim caiu sete meses depois. Se queríamos tratar do futuro, tínhamos de falar com os negros. ”O embaixador fez uma lista dos activistas que faziam oposição ao regime racista de Pretória e começou a visitá-los. “Simplesmente fui ver e ouvir pessoas que achei que era importante ver e ouvir e que a embaixada não costumava ouvir. Sei isso porque o meu motorista ia dizendo que nunca tinha ido àqueles lugares. Mas não me dei conta de estar a fazer nada de particularmente diferente, até porque o Álvaro Mendonça e Moura, que tinha sido encarregado de negócios durante uns meses antes de eu chegar, já tinha percebido tudo e já tinha feito algumas coisas”, conta. Deixar “Tokyo” Sexwale feliz fora uma delas. “Um dia, já Mandela tinha sido libertado, estava eu numa sala à espera para ser recebido por ele, quando sai lá de dentro um homem grande, com ar de atleta, que vem ter comigo e pergunta: ‘O senhor é o embaixador de Portugal?’ Eu disse que sim e ele: ‘Queria agradecer-lhe muito a cassete que vocês mandaram do jogo em que o FC Porto ganhou a Taça dos Clubes Campeões Europeus [1986-87] contra o Bayern Munique! Aquilo foi uma maravilha na prisão, uma grande ajuda! Muito obrigado. ’” Cutileiro ri-se e conclui: “Tinha sido o Álvaro Mendonça e Moura. E aquilo, uma coisa tão simples, fez subir a quota de Portugal milhares de andares na hierarquia do ANC!” Mosima “Tokyo” Sexwale, que nos anos 2000 viria a ser ministro e a seguir a fundar a Mvelaphanda Holdings, cotada na Bolsa de Joanesburgo, foi libertado de Robben Island em 1990, meses depois de Mandela e após 13 anos de prisão, condenado por “terrorismo e conspiração” contra o regime. “O Álvaro fez coisas”, insiste Cutileiro. “Antes dele, penso que não. Mas antes de mim, os embaixadores não tinham tanta pressão: a ideia era a de que o apartheid ia durar para sempre. ”José Manuel Villas-Boas, o embaixador anterior (e ex-número três e número dois em Pretória entre 1959 e 1963), percebeu que as coisas iam mudar? “A mudança é com Cutileiro”, responde sem hesitar Mendonça e Moura, que chegara em 1985 e trabalhou com ambos. “Mas é preciso ver que Villas-Boas sai em 1987 e é depois da sua saída que se dá o derrame cerebral do Presidente P. W. Botha [Janeiro de 1989] e se acelera a evolução. São tempos diferentes. Vindo de fora, com distância, e tendo sido embaixador no Maputo, Cutileiro percebe que P. W. Botha está fora, que há um novo líder, Frederik de Klerk, e que isto vai mesmo mudar. Não é inspiração divina. Este é também o momento em que se intensificam os contactos do regime do apartheid com a oposição negra”, diz o hoje secretário-geral do MNE, no seu gabinete no Palácio das Necessidades. Sem esperar pela anuência de Lisboa, a embaixada portuguesa em Pretória — talvez a única que, na Primavera de 1989, quase não tinha contactos com a oposição negra — põe o novo plano em marcha. Cada diplomata assume um papel distinto. Conta João da Câmara, então o mais novo da equipa: “O Cutileiro chamou-me e disse: ‘Temos de estabelecer relações com os partidos da oposição. Veja se consegue contactos com os seus amigos das outras embaixadas’. ” Antes de prosseguir a história, o agora embaixador na Índia apressa-se a fazer um esclarecimento: “Mas não fui eu que abri os contactos com o ANC. O Cutileiro percorreu a oposição ao nível dele e achou que precisava de ir às bases, aos quadros mais novos, e pediu-me para contactar ‘pessoas diferentes’. ” Em 1989, João da Câmara — mais tarde director do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) — era “solteiro e bom rapaz”, brinca Mendonça e Moura, “e isso deu-nos muito jeito!”. “Queríamos chegar aos militantes e aos activistas da oposição e o João abraçou a causa de alma e coração. Era ele quem ia aos comícios e às manifestações da oposição. Nós precisávamos de alguém que fosse beber umas cervejas com eles, que fosse para os copos com eles, que fosse dançar com eles, que percebesse como era aquilo por dentro. O João estabeleceu óptimas relações, que foram utilíssimas, porque começámos a perceber muito melhor a palpitação do país. Estamos em 1989, quando já era público que o governo está a negociar com o ANC no exílio, mas o ANC continua ilegalizado. ”Recebidas as instruções, João da Câmara foi falar com colegas das embaixadas da Austrália, Reino Unido, França, Canadá e EUA. Uma das primeiras pessoas que conheceu no movimento anti-apartheid foi Gadija Vallie, uma advogada indiana que trabalhava num escritório de advogados de Mandela. “Foi através da Gadija Vallie que conheci o Trevor Manuel, depois ministro das Finanças e da Economia [e actual ministro da Presidência], o Chris Hani, secretário-geral do Partido Comunista que viria a ser assassinado, a Winnie Mandela e outros activistas”, conta. “Os contactos eram muito fáceis, como acontece quando as pessoas estão na oposição e não têm sequer expectativa de ir para o poder. ”Da equipa de Pretória, todos se lembram bem dessas conversas iniciais. Do primeiro encontro com Gadija Vallie, o embaixador Câmara recorda duas coisas em particular: a sua abertura em falar com a embaixada de Portugal e a sua desconfiança em relação à comunidade portuguesa. “O ANC via a comunidade como estando muito próxima do partido no poder, muito pró-regime — e via isso como um problema. ” Em poucos meses, além de dar nas vistas no congresso do Pan Africanist Congress (PAC), porque era praticamente o único branco a assistir, tornou-se o diplomata que, nas reuniões do ANC, “já todos conheciam”. Nessa altura de incerteza, os britânicos, “que pareciam ter informação mais privilegiada”, valorizavam sobretudo o PAC e a organização de Steve Biko, que eram mais radicais do que o ANC. “Diziam-nos que esses eram os partidos que iam ter votações mais expressivas quando houvesse eleições democráticas nas quais os negros pudessem votar. Nós não sabíamos. O que víamos era que o ANC tinha brancos, mestiços e indianos, e que era mais abrangente e mais moderado. Mas não era só eu que tinha contactos com os movimentos negros”, sublinha Câmara. “Todos na embaixada começámos a ter. ”A história do telefonema que Mendonça e Moura fez a Murphy Morobe, hoje porta-voz da associação dos veteranos do ANC e na altura um jovem activista anti-apartheid que estivera preso com Mandela em Robben Island mas fora libertado em 1982, é contada por João da Câmara como prova material: “Já era tarde quando o Álvaro Mendonça e Moura lhe telefona. O Morobe atende e à pergunta ‘Mr. Morobe…?’, ele responde: ‘Sleeping. ’ Sleeping em vez de speaking. . . ”Às vezes, conta José Cutileiro sobre este início dos contactos, “como era a primeira vez que falavam com um embaixador de Portugal, perguntavam-me se estava ali sob instruções do meu governo. Eu simplesmente dizia que era embaixador de Portugal e, naturalmente, falava em nome do meu país. ”A 29 de Agosto 1989, seis dias depois de ler o telegrama de Lisboa indicando que os contactos com a oposição ao apartheid devem ser “espaçados”, Cutileiro responde ao MNE. O telegrama, “urgente” e “secreto”, é breve e segue apenas para o Serviço da África Subsariana, já não para o ministro:“Muito agradeço instruções Vexa. Conviria esclarecer seguinte. 1. Contactos referidos fazem parte variedade encontros chegada posto venho efectuando com figuras direita, centro e esquerda cena política e religiosa, com militares, homens de negócios, académicos, intelectuais, jornalistas, etc. Ditos contactos — apenas aqui evitados por embaixadas Chile e Paraguay [sic] — são necessários compreensão RAS [República da África do Sul], cautelares futuro comunidade luso-sul-africana e indispensáveis nossa credibilidade potência interventora região. 2. Como é óbvio, uso esses contactos — e os outros que aqui mantenho — para tornar conhecida e respeitada nossa posição. É importante que meus interlocutores saibam que governo português pratica e advoga política coerente e bem fundamentada em relação este país — quer concordem com ela, quer não. Nomeadamente que Portugal abomina o apartheid mas abominaria igualmente colapso económico e opressão política que uma revolução leninista aqui provocaria. Por isso nos opomos a sanções económicas mas — quer directamente quer quadro CEE — faremos o que estiver ao nosso alcance para ajudar transição pacífica RAS Estado Direito pós-apartheid. a) Cutileiro. ”João de Deus Pinheiro, ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1987 e 1992, não se lembra nem desta troca de telegramas, nem de qualquer atrito entre o ministério e a embaixada. “Normalmente, não era o ministro que fazia os telegramas, mas sim o director Político ou o secretário-geral do MNE. Eu via-os, mas não era eu que respondia. Conhecendo o Cutileiro, raspanetes não estou a ver. Acho aliás muito estranho, porque nessa altura o director Político era o diplomata que tinha sido seu subdirector — o Shearman de Macedo. Não estou a ver o Zé Maria Shearman a dar raspanetes ao Zé Cutileiro nem nada que se pareça. Não sei se algum dos secretários de Estado terá tido alguma influência nessa resposta. O Cutileiro era um homem que eu respeitava profundamente. Nunca tivemos nenhum conflito. Quando muito, o ministério deve ter dito qualquer coisa do tipo: ‘Cuidado, isto é um terreno movediço'. ”Cavaco Silva também não se lembra nem de enviar reparos nem de receber protestos da comunidade portuguesa contra a nova política de aproximação da embaixada aos movimentos negros sul-africanos, vistos por muitos como “perigosos comunistas”. “O Cutileiro era um embaixador com quem eu gostava de falar. É um diplomata extraordinário, sabe? Ele é um pensador”, diz o ex-primeiro-ministro. “O que me lembro bem é de começar a dar instruções claras aos embaixadores para preparar a comunidade portuguesa para uma mudança de regime. ”Junho de 1989 é, na sua leitura dos acontecimentos, o momento em que o Governo português passa a olhar para a África do Sul com outros olhos. “Os sul-africanos não eram recebidos em praticamente nenhum país europeu”, conta Cavaco Silva, que, aos 78 anos, está a escrever o segundo volume das suas memórias políticas. “Em 1989, decidi receber De Klerk, se calhar porque a informação que me tinha chegado do nosso embaixador em Pretória era a de que ele podia ser um homem diferente, porque esses telegramas são enviados ao primeiro-ministro — e eu era uma pessoa que lia todos os telegramas. ” Desde a chegada de Cutileiro, em Abril, a embaixada enviara para Lisboa mais de 100 telegramas, quase todos políticos. Logo a 11 de Maio, o novo embaixador envia três longos relatórios sobre o primeiro encontro de De Klerk com os representantes dos Doze (então, o número de Estados-membros da CEE, antecessora da União Europeia). De Klerk “pareceu muito à vontade e seguro de si, criando rapidamente atmosfera bastante amigável que marcou contraste profundo com imagem e ambiente tantas vezes rodeia actual chefe Estado”, conta Cutileiro, na primeira de nove páginas. O retrato que faz é o de um país em mudança. Deste primeiro almoço, Cutileiro ressalta “dois pontos com particular nitidez: novo líder nacionalista compreendeu que será insustentável para sua futura liderança manutenção actual impasse nas discussões com líderes negros e pretende passar, como ele próprio afirmou, da fase de conversações dispersas para negociações propriamente ditas”. Estando o partido a “baloiçar entre o reconhecimento da urgência e inevitabilidade de mudanças e o medo de perder a sua base de apoio e, pura e simplesmente, a oposição a reformas”, De Klerk “representará uma evolução positiva em relação paralisia política aqui se verifica”. O segundo ponto é mais sombrio: “Sr. F. W. De Klerk continua a tomar como base [de] todo [o] sistema a existência de grupos diferenciados numa base rácica. ” E acrescenta: “Se nacionalistas vão negociar com líderes negros [que] lhes estão mais próximos, deixando de fora aqueles que são realmente representativos na esperança [de] evolução processo [que] obrigue estes a reconsiderar, encaminhar-se-ão para situação em que conflitos se irão agudizar. […] Quanto aos verdadeiros interlocutores com os quais Governo terá de negociar um dia problemas deste país, teremos ainda de assistir a diversas tentativas de os marginalizar antes que Governo reconheça inevitabilidade de com eles se entender. a) Cutileiro. ”Minutos depois, segue terceiro telegrama. Numa análise mais macro, o embaixador expõe duas ideias:“1. Primeiro encontro com chefe Nacionalistas e futuro Presidente deixou-me impressão haveria vantagem ter rapidamente contacto directo estadistas países ocidentais, os quais seriam porventura politicamente mais fáceis antes assunção altas funções lhe estão destinadas. Com efeito, Senhor De Klerk — nado e criado num ambiente solidamente afrikaans — parece considerar passos até agora dados Governo sul-africano direcção desmantelamento apartheid muito mais significativos do que nos parecem a nós. Além disso continua a chamar dirigentes UDF e ANC ‘radicais’, como se aqueles representassem franjas ideológicas desprezíveis — estatística e moralmente — da população. Não parece, por fim, compreender que governo só ganhará tempo e terreno com libertação Mandela se for para considerar este [um] interlocutor privilegiado [no] debate constitucional. Imagem de Mandela solto e Governo insistindo em discutir o futuro do país com os chamados ‘moderados’ negros confrange pela falta de realismo político. 2. É claro que salutares lições alguns estadistas ocidentais não deixariam de querer dar a Senhor De Klerk sobre o que seria ou não aceitável como regímen político na África do Sul […] não iriam alterar convicções profundas chefe Partido Nacionalista. Mas talvez o ajudassem perspectivá-las quadro mais amplo do que o fornecido pelas peculiaridades mais ou menos monstruosas que aqui passam por ordem natural das coisas. ”Dos quatro candidatos à sucessão de P. W. Botha, De Klerk “era o mais ortodoxo e, a priori, o menos disponível para uma evolução positiva”, diz Mendonça e Moura. “Os candidatos eram o ministro do Desenvolvimento Constitucional, que queria fazer evoluir o regime mas não sabia como; o ministro das Finanças, o mais novo e considerado o mais liberal; ‘Pik’ Botha, que era ministro dos Negócios Estrangeiros mas tinha algo de leve, de bon vivant, de menos sólido, e De Klerk, que era ex-líder do Partido Nacionalista no Transvaal, onde o partido era mais duro. ” A sua ascensão não permitia leituras simplistas: “Era o homem que mais dificuldades tinha colocado a P. W. Botha em relação a ideias de evolução, mas também era o homem mais poderoso do partido — e nada como um radical de esquerda para fazer evoluir um regime à direita ou um radical de direita para fazer evoluir um regime à esquerda. É uma regra perene em política. ”Não é por isso de admirar que, em vésperas de receber De Klerk em São Bento, a atitude de Cavaco Silva fosse de prudência. “Não conheço De Klerk, vou tentar apurar, posso estar um pouco de pé atrás…”, conta o ex-primeiro-ministro ao PÚBLICO. Ainda no mês anterior, a França e o Reino Unido, um dos raros “amigos” que Pretória tinha na Europa, haviam expulsado seis funcionários das embaixadas sul-africanas em Paris e Londres, acusando-os de envolvimento em tráfico de armas para o movimento terrorista da Irlanda do Norte. Além disso, com o Presidente Botha, “que era um autocrata, um homem muito arrogante”, “nunca conseguimos ter boas relações”, diz Cavaco Silva. Pelo contrário: “Foram relações muito difíceis. Em 1987, escrevi-lhe uma carta, foi o [então secretário de Estado das Comunidades Portuguesas] Durão Barroso que a levou, sobre Nelson Mandela, à qual ele respondeu de uma forma violenta e disse que, tal como os outros líderes europeus, eu era ‘um ignorante’, ‘desconhecia a situação’ e ‘não percebia nada do que se passava na África do Sul’. Ele usou mesmo a palavra ‘ignorante’!”No ano seguinte, numa passagem por Lisboa, coube ao ministro Deus Pinheiro ir buscar Botha ao aeroporto e acompanhá-lo até São Bento. “Ao longo de todo o trajecto, devo ter trocado umas dez palavras com ele… E eu falo relativamente bem inglês, não seria por isso”, conta Deus Pinheiro. “O encontro com o primeiro-ministro foi duríssimo: Cavaco a dizer que eles tinham de libertar Mandela, que Mandela não podia continuar preso, que fazer de Mandela um mártir era o pior que podia acontecer para o futuro da África do Sul; Botha a dizer a Cavaco que ele não sabia nada de África nem da África do Sul; e Cavaco, com aquele feitio dele, encrespado mas sem querer mostrar, a insistir que eles tinham de libertar Mandela. Foi um encontro como eu nunca assisti na minha vida entre dois estadistas. ”Mesmo com “Pik” Botha, bon vivant e visita frequente das festas da comunidade portuguesa na África do Sul, a relação era tensa. “Tive reuniões com o ‘Pik’ Botha absolutamente delirantes”, diz Deus Pinheiro. “Numa, em 1986 ou 1987, no MNE, ele ameaçou sair da sala e eu disse: ‘Saia. A porta é ali, está a ver…?’ Claro que não saiu. Ele recusava admitir que os sul-africanos estavam em Angola e nós tínhamos informação da nossa intelligence a garantir o contrário. Em Moçambique, era mais um apoio logístico à Renamo, mas em Angola era mesmo com tropa que os sul-africanos lá estavam a apoiar a UNITA, eram mercenários pagos pelos sul-africanos e soldados sul-africanos que eles mascaravam de mercenários. Era um choque cada vez que nos encontrávamos. ”De Klerk era ainda ministro da Educação de P. W. Botha, mas já líder do Partido Nacionalista e candidato a Presidente, quando entra em São Bento a 24 de Junho de 1989. “E promete três coisas: ‘Eu libertarei o Mandela, eu vou pôr fim ao estado de emergência e eu vou trabalhar para a reconciliação e para criar uma democracia multirracial. ’ Gostei de ouvir. Ele convenceu-me da sua boa-fé. Falámos muito e construímos uma relação, que se mantém até hoje — ainda há pouco me escreveu”, diz Cavaco Silva. Em 1990, já como Presidente, De Klerk volta mais duas vezes a Portugal. “Nessa altura, falávamos muito ao telefone e ele dizia: ‘Peço a sua ajuda para convencer os seus colegas do Conselho Europeu de que eu irei fazer isto e isto, e que me dêem algum tempo. Eu preciso de algum tempo. ’ Nos Conselhos Europeus e em reuniões bilaterais, falei várias vezes sobre De Klerk. Eu dizia: ‘Ele é o homem certo. ’ Mas havia um grande cepticismo entre os líderes europeus. Levou tempo até acreditarem que ele era o homem que podia mudar. Penso que levou anos. ”É com base nos telegramas que recebia de Pretória, mas sobretudo naquele primeiro encontro, quando ganha “a convicção profunda de que De Klerk era o homem certo”, que se dá uma “mudança da atitude portuguesa”, diz Cavaco Silva. “Presumo que o convencimento de que haverá um desmantelamento do apartheid pela via da negociação se dá depois desta visita de De Klerk. ”Parece difícil reconstituir o exacto momento em que os dois lados — diplomatas e governo em Lisboa e diplomatas em Pretória — ficam em sintonia. Para quem estava no terreno, “foi preciso explicar para Lisboa”, como diz o embaixador Mendonça e Moura. Esta é a sua síntese: “A embaixada teve o mérito de fazer o papel que lhe competia: alertar Lisboa. Não podia ser Lisboa a alertar a embaixada. Às vezes isso acontece, mas é absolutamente dramático, é um atestado de incompetência. Para além do enorme prazer de ter trabalhado com Cutileiro, acho, com satisfação, que fizemos o que éramos pagos para fazer. Quem estava lá tinha uma visão mais aberta do que quem estava cá. Isso é claro e é normal: víamos as coisas evoluir mais depressa. Cá, estavam ainda numa visão muito macro — mas a ficar ultrapassada —, de Guerra Fria. ‘Quem é o ANC?’, ‘Quem é o regime branco?’, ‘Quem são os amigos do ANC?’ Eram as perguntas que nos faziam de Lisboa. No fundo, o ANC eram os comunistas. Quem eram os aliados do ANC? Não era a América do Ronald Reagan. Não era a Inglaterra da senhora Thatcher. Era a União Soviética!”Enquanto Lisboa fazia perguntas, nos escritórios de Pretória e da Cidade do Cabo, os três diplomatas portugueses prosseguiam a nova estratégia: contactar os líderes negros num país onde os negros não podiam votar mas que, na sua perspectiva, iriam em breve ter o poder. “Visitei ontem reverendo Frank Chikane, secretário-geral Conselho Igrejas África do Sul”, diz Cutileiro a 11 de Agosto de 1989, sobre o activista negro que estivera preso no passado e que, no fim desse ano, fora alvo de uma tentativa de assassinato através de um plano que teve tanto de caricato quanto de complexo, incluindo coser a sua roupa interior com um veneno mortal — em 2007, cinco homens do aparelho de segurança do tempo do apartheid foram condenados a dez anos com pena suspensa pelo crime. Um deles era Adriaan Vlok, que em 1989 era ministro da Polícia do Presidente De Klerk. “Encontrei-me ontem com Senhor Azhar Cachalia, advogado, dirigente UDF”, informa Cutileiro a 18 de Agosto, referindo-se ao advogado indiano que poucos anos antes estivera preso e fora banido da Universidade de Wits, em Joanesburgo. É cinco dias depois do encontro com Cachalia que o protesto de Shearman de Macedo chega à embaixada de Pretória. Cutileiro lê e ignora a instrução. “Devo ter interpretado à minha maneira. . . E continuei a fazer todos os contactos que achei necessários. Lisboa não tinha estratégia. Estava à espera de ver o que ia acontecer. ” Anos mais tarde, António Valente, um diplomata seu amigo que nessa altura estava na assessoria diplomática no Palácio de Belém, disse-lhe qualquer coisa como “aqueles seus telegramas de quando chegou a Cape Town não seguiram pelos canais normais de distribuição porque iam assustar muita gente”. Ainda hoje isso lhe causa espanto: “Era absurdo, era cegueira voluntária, era curteza de vistas. Naquela altura, até a senhora Margaret Thatcher já tinha reconhecido o ANC, que já tinha um escritório em Londres, embora fosse ilegal na África do Sul. Quando lhe perguntaram porque é que autorizara isso, sendo o ANC ‘terrorista’ como os irlandeses do IRA, ela respondeu: ‘It’s different, they have the vote. ’ Normalmente, não recebemos instruções de Lisboa. Vamos fazendo as coisas e no fim escrevemos qualquer coisa como ‘salvo instruções em contrário’. Foi o que fizemos. ”Em Outubro, 12 dias depois da libertação de Sisulu, preso durante quase três décadas, Cutileiro já está a conversar com ele. “Eu próprio visitara de manhã, em sua casa, Senhor Walter Sisulu, que me impressionou pela moderação, equanimidade, falta de amargura e, até, sentido de humor com que encara situação do país e sua própria”, escreve, en passant, no fim de um telegrama de 27 de Outubro de 1989. Antes da libertação, Cutileiro visitava Albertina Sisulu, mulher do activista, com frequência. E entendiam-se: “Um dia começámos a discutir as sanções e a conversa aqueceu a um ponto que eu pensei: ‘Ela vai pôr-me na rua. ’ Mas em vez disso bateu-me com a mão no ombro e disse: ‘Ok my friend, do something about the death penalty’. ”Olhando para trás, o ministro Augusto Santos Silva, actual chefe da diplomacia portuguesa e que, em 1989, era um jovem académico (professor auxiliar da Faculdade de Economia do Porto), diz que “hoje é claro que a actuação do embaixador José Cutileiro foi notável”: “Teve a inteligência de perceber a tempo o que ia acontecer e teve a coragem de assumir uma ruptura e, ainda mais notável, fazer essa mudança numa altura em que, por todos os critérios, saberia que iria estar mais por sua conta. Já há estudos sobre o que era a política externa conduzida pelo primeiro-ministro Cavaco Silva que explicam bem que não era propriamente uma política que estimulasse pensar fora da caixa, ter grandes rasgos ou capacidade de antecipação. Compreendo bem que a actuação mais determinada do embaixador Cutileiro tivesse gerado anticorpos no Ministério dos Negócios Estrangeiros porque, tirando os dossiers específicos de Angola e Moçambique e outros países de língua portuguesa, o MNE não era sensível a pensar fora da caixa. ”Na leitura de Mendonça e Moura, uma das ideias novas de Cutileiro, além da aproximação à oposição negra, foi a forma de olhar para a comunidade portuguesa: “A defesa da nossa comunidade passava por conseguir que ela viesse a conseguir integrar-se na futura África do Sul. Esse é que foi o clique. A preocupação com a comunidade era a mesma. A maneira como a defendíamos é que passou a ser diferente. O que nós não queríamos — mas quem fez a mudança foi o Cutileiro, não fui eu — era que a comunidade não percebesse a dinâmica. Era fundamental, para os defender, que a comunidade percebesse que aquilo ia mudar. Estamos a falar de um governo do professor Cavaco Silva, mas quando falávamos da mudança que ia acontecer no país, várias vezes ouvimos acusações do tipo: ‘Cá está Lisboa a querer entregar-nos outra vez. ’ É preciso perceber que o governo em Lisboa tinha essa consciência e que, na sua perspectiva, não ia fazer à comunidade portuguesa na África do Sul o que governos anteriores tinham deixado fazer aos portugueses de Angola e Moçambique. ”A comunidade era — e é — muito grande e isso faz toda a diferença. “Tínhamos meio milhão de pessoas”, diz Mendonça e Moura. “É um número empolado, uma extrapolação, mas foi um número muito útil, porque fixa-se facilmente. A questão é que nós tínhamos uma comunidade gigantesca e os outros países não tinham. Havia cinco milhões de brancos, meio milhão eram portugueses: é um décimo. ”A 25 de Outubro de 1989, dias depois da libertação de um grupo de dirigentes do ANC (Sisulu, Ahmed Kathrada, Jeff Masemola, Raymond Mhlaba, Billy Nair, Wilton Mkwayi, Andrew Mlangeni, Elias Motsoaledi e Oscar Mpetha) — lida como sinal inequívoco de que as promessas reformistas de De Klerk eram genuínas —, Cutileiro envia um telegrama “secreto” e “muito urgente” para Durão Barroso:“Fonte limpa traz-me de serviços informações RAS avaliação comportamento comunidade portuguesa aqui que julgo dever referir Vexa. Autoridades sul-africanas veriam com apreensão alheamento praticamente geral nossos compatriotas debate político interno RAS, sua tendência isolarem-se resto sociedade, provadas ou alegadas transferências capital para exterior por parte mais ricos e racismo extremo manifestado por mais pobres. Como Vexa se dignará verificar esta avaliação é muito semelhante às que nos têm sido apresentadas, em várias ocasiões, por dirigentes oposição extra-parlamentar negra. Apoio tradicional dado a Partido Nacionalista por notáveis comunidade e até seus membros humildes parece assim diminuir talvez à proporção da perda de poder relativo do partido. Perante incertezas futuro, não terão sido encontradas alternativas válidas: uns poucos apoiam conservadores, entre mais instruídos [da] nova geração vigoram algumas simpatias democráticas. Para além daí, de um ou outro lado, não me consta que se inclinem ou arrisquem — embora publicações periódicas mais radicais Joanesburgo sejam impressas parque tipográfico ‘Século’, a contendo comercial ambas as partes. 2. Esta espécie de alheamento militante que luso-sul-africanos parecem impor-se, compreensível em termos culturais (língua, religião) e históricos (descolonização Angola e Moçambique) é agora exacerbado por percepções de mudança que animam em muitos projectos de partida. Entretanto, porém, mantém-se hagiografia e retórica pró-nacionalistas predilectas associações portuguesas, nas paredes de cujas sedes mais facilmente se encontram retratos presidentes Botha e De Klerk (e Vervoerdt) do que de Sexa PR e nos discursos de cujos dirigentes a expressão ‘nosso ministro dos Negócios Estrangeiros’ designa, as mais das vezes, Senhor ‘Pik’ Botha. 3. Nossa política africana tem pressuposto permanência da comunidade portuguesa significativa este país e papel importante mesma mediação inter-racial anos se vão seguir. Dado panorama exposto acima julgo que esta embaixada e consulados dependentes deveriam dar a luso-sul-africanos sinais claros de simpatia governo português por processo reforma aqui em curso com vista abolição apartheid e viabilização sociedade futura próspera e democrática. Tais sinais — por via esclarecimentos, apoios, subsídios, até comendas — ajudariam aqueles já apostados [na] mudança e serviriam também, porventura, para tranquilizar os muitos outros que vêem no futuro apenas catástrofe ou êxodo. a)Cutileiro. ”A 15 de Fevereiro de 1990, quatro dias depois de Mandela ter sido libertado, novo alerta. “Reacções comunidade portuguesa [ao] momento histórico país atravessa, tanto quanto nos chega de informações consulados e contactos directos, são de apreensão. Como entre outros brancos, grupos pobres sentem-se mais directamente ameaçados. Entre gente mais próspera, e mais informada, já se notam variações no grau de inquietação. Regista-se aumento percentual pedidos passaportes, mas números absolutos são baixos de mais para permitir por enquanto ilações. Cabe-me tentar acalmar excitação comunidade e sobretudo esclarece-la quanto posição autoridades portuguesas perante reformas em curso. […]. Haverá sem dúvida novos sobressaltos mas parecem-me de excluir situações de descalabro geral remotamente comparáveis às de Angola e Moçambique em 1975. a) Cutileiro. ”É nesta primeira fase do princípio do fim do apartheid — em Agosto de 1991 já Cutileiro está de regresso a Lisboa — que a RTP passa “programas alarmados e alarmistas de Mário Crespo que visitava portugueses na África do Sul”, conta Cutileiro, tendo o próprio jornalista sido um dos portugueses a fugir de Moçambique para a África do Sul logo em 1974. Às tantas, o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, Manuel Correia de Jesus, telefona ao embaixador e pergunta se seriam precisos aviões para levar os portugueses do país. “Respondi-lhe que não, que bastava levar o Mário Crespo. ”Oito meses depois, em Outubro de 1990, Cutileiro regressa ao tema. “Apreensão manifestada [pelo] Presidente De Klerk [na visita a Lisboa] quanto [à] inclinação conservadora muitos portugueses aqui vêm a revelar parece-me fundamentada, depois diversos contactos desde que voltei de férias”, escreve o embaixador, que nota “o número crescente nossos compatriotas” que “toma por boa garantia defesa privilégios lhe são caros” da retórica do Partido Conservador, de extrema-direita. “Presidente De Klerk é por eles visto como traidor brancos”, diz. “O que preocupa é clara predilecção [dos portugueses e luso-sul-africanos] por grupos políticos destinados à derrota ou, quanto muito, à periferia do poder da África Sul futura. ” O embaixador está preocupado. Estas “preferências têm sido gabadas em público”, escreve, e por isso, “vai-se gerando clima antiportuguês entre sul-africanos”. Há excepções, “mas a maioria está, indubitavelmente, contra a nova África do Sul, contra a orientação do governo de Pretória — e contra a orientação do governo de Lisboa”. Na altura, diz o ministro Santos Silva, “injusta ou justamente, a comunidade portuguesa era claramente percepcionada como tendo uma proximidade política e etnicista ao regime do apartheid e era vista com muita desconfiança por parte dos opositores ao regime”. “E hoje” — termina — “essa desconfiança ainda não se desvaneceu completamente. ”Quando a notícia veio, “ficámos boquiabertos”, conta Mendonça e Moura sobre o momento em que o pedido de reunião a sós com Mandela foi aceite. O futuro Presidente fora libertado a 11 de Fevereiro, a 19 reunira-se com os (poucos) chefes de missões diplomáticas com escritório no país (à excepção do Chile, Paraguai, Taiwan e bantustões) e no dia 22 veio a resposta: “Minha entrevista com Senhor Nelson Mandela está marcada para próxima segunda-feira em sua casa Soweto”, informa o telegrama enviado para Lisboa. “Fomos a correr”, diz o actual secretário-geral do MNE, a quem coube a tarefa de tirar notas da conversa. “Mandela recebeu-nos muito cedo, na sua casa pequenina, no Soweto, numa sala do tamanho deste tapete. Penso que éramos só quatro: Cyril Ramaphosa, secretário-geral do sindicato dos mineiros e hoje Presidente da África do Sul, e eu a tirar notas, Cutileiro e Mandela a falar. Fiquei muito impressionado. Nunca tinha sentido — nem voltei a sentir na minha vida —, algo de tão estranho em relação a alguém. Várias vezes me tenho perguntado porquê. Porque era um mito? Porque dois anos antes nós não pronunciávamos sequer a palavra ‘Mandela’, nem entre diplomatas? Porque de repente vejo entrar um mito numa sala pequena? Havia um magnetismo… Não sei explicar. Pode dizer-se: foi depois de ele ter começado a falar? Mas não. Foi mal entrei. ”Como todos os outros, no Arquivo Diplomático do MNE está guardado o telegrama desse primeiro encontro. “Senhor Mandela recebeu-me hoje de manhã. Estiveram presentes Senhor Ahmed Katrada, militante Partido Comunista RAS e seu companheiro de prisão em Robben Island, Senhor Cyril Ramaphosa, secretário-geral da ‘National Union of Mineworkers’, e Mendonça e Moura”, informa Cutileiro a 28 de Fevereiro de 1990. “Senhor Mandela começou por agradecer honra visita embaixador Portugal lhe dava. Referiu-se amavelmente sua passagem Lisboa em 1962, lembrando que à chegada lhe tinha sido oferecida uma garrafa de Porto que muito apreciara. Falou nessa altura convite Sexa Presidente República [Mário Soares]: tornou agradecê-lo e explicou que ‘National Executive Comittee’ ANC não tinha ainda estabelecido seu programa viagem estrangeiro, salvo próximas idas Lusaka, Harare, Dar-es-Salaam e Estocolmo, onde visitará Senhor Tambo” e, “a propósito, lamentou acidente Dr. João Soares e quis informar-se estado saúde deste”. A mensagem política de Mandela foi clara: “Era preciso não considerar que normalização já tinha chegado” (“as condições necessárias para negociar” o desmantelamento do apartheid n ainda não tinham sido satisfeitas). E a de Cutileiro também: “Falei-lhe nossa comunidade e nossos interesses nesta parte do mundo. Estamos aqui para ficar e por isso convinha que nos entendêssemos de parte a parte. ” E, por isso, o embaixador pediu a Mandela que “fizesse referência [à] nossa comunidade, indicando que continuaria a ser bem-vinda”. Conta Mendonça e Moura que, “se era óbvio que Mandela ia ser o líder do ANC”, não era óbvio ainda que seria líder da África do Sul: “Dependia de as coisas correrem bem e ainda não era líquido que corressem bem — podiam correr muito mal. ” O aviso está vincado no telegrama. “Dado figura chave [que] Senhor Mandela desempenha [no] processo reformista, sua predisposição genérica favorável comunidade portuguesa é de bom agoiro — desde que, evidentemente, ANC a for confirmando na prática e comunidade (ou seus principais corifeus) esteja disposta a aproveitá-la. Salvo instruções contrárias Vexa, explorarei esta via. ” Os dois discutem a possibilidade de Deus Pinheiro visitar a África do Sul, que Mandela não quer que seja já para, justamente, evitar ideia de que se alcançara uma “normalização”. Cutileiro propõe que seja depois de o estado de emergência ser levantado, quando “talvez atitude moderada Senhor Mandela tenha conseguido impor-se a ANC”. No fim, deixa um alerta: “Se, porém, moderação não houver prevalecido, estaremos diante processo ainda mais complexo e incerto do que já se afigura; benefício de dúvida agora damos ANC terá de ser revisto e visita decorreria então nesse diferente quadro. a) Cutileiro. ”Antes do embaixador de Portugal, Mandela recebera apenas o embaixador britânico. “E quando entrámos na casa dele, estava a sair o presidente da Anglo-American [gigante da exploração de diamantes] que, para o ANC, era o demónio encarnado!”, conta Mendonça e Moura. Por que razão Mandela recebeu o embaixador de Portugal tão depressa? “Por causa da importância que atribuía à comunidade portuguesa”, responde Cutileiro. “Havia meio milhão de pessoas na África do Sul que podiam pedir um passaporte português. Não convinha a Mandela ter problema nenhum com essa comunidade. ”A partir deste dia, tornaram-se evidentes os frutos da nova estratégia de aproximação acelerada aos líderes negros, iniciada dez meses antes, dizem vários diplomatas ouvidos pelo PÚBLICO. “Se eu tivesse seguido as instruções do MNE, não teria havido quem facilitasse o contacto com Mandela quando precisei de falar com ele”, diz Cutileiro. Este primeiro encontro não teria acontecido tão cedo sem a intervenção de Dullah Omar, um advogado indiano do gabinete de Mandela — que mais tarde foi o seu primeiro ministro da Justiça — com quem Cutileiro falara muitas vezes, estava ainda Mandela na prisão. “As amizades dos diplomatas são como as das crianças nos hospitais: sabemos que vão durar pouco, mas enquanto duram, somos bons amigos. Isso foi importante porque nem toda a gente no gabinete de Mandela tinha simpatia pelos portugueses e havia mesmo quem não gostasse nada dos portugueses”, diz o embaixador. “Aconteceu o mesmo mais tarde, quando Deus Pinheiro foi à África do Sul, estava tudo marcado para a visita com Mandela e, três horas antes da reunião, chegou notícia do cancelamento. Liguei logo ao N’zo, que era chefe de gabinete e um comunista que tinha aquele rigor com as coisas combinadas, e em 15 minutos a entrevista estava de pé outra vez. Julgo que alguém muito próximo de Mandela que não gostava dos portugueses tentou cancelar o encontro. ”Mas a realpolitik de que Cavaco Silva fala não era exclusivo português. Nessa primeira conversa, “por duas vezes, Cutileiro fez uma provocação a Mandela, perguntando-lhe como é que ele olhava para os 27 anos que tinha passado na prisão”, conta Mendonça e Moura. “Queria saber, sem perguntar directamente, como é que este homem que ia liderar as negociações olhava para o governo do dia. Da primeira vez, Mandela não percebeu. Daí a um bocado, Cutileiro fez a mesma pergunta de outra forma e, uma vez mais, Mandela não percebeu. À terceira, Mandela — que obviamente tinha percebido desde a primeira vez — disse-lhe só: ‘Embaixador, não há nada que eu possa fazer em relação aos 27 anos na prisão, portanto, isso não me interessa’. E acrescenta: ‘Mas em relação ao futuro, você pode ajudar-me. ’ E nós: ‘Ajudar, eu?!’ ‘Você tem uma larga comunidade portuguesa aqui e eu preciso de pontes para ela. ’ Não foi pelos nossos lindos olhos. ”A resposta está aí, ou na fórmula proposta pelo ministro Santos Silva: 95%-5%. “Mandela sempre teve o cuidado de, na promoção da África do Sul como país arco-íris, onde cabem todos, reservar um lugar próprio para a comunidade portuguesa. Em 95% tem que ver com a sua personalidade e a sua política, e 5% terá tido que ver com o facto de os diplomatas portugueses em Pretória terem mostrado capacidade de adaptação e antecipação, em condições muito difíceis, sem o apoio explícito de Lisboa e com muitas resistências, para não dizer antagonismo, dentro da comunidade portuguesa. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As pontes criadas durante o apartheid foram decisivas nos anos seguintes. Por exemplo para fechar o primeiro acordo de comércio livre entre a UE e Pretória, em 1999, ao fim de longas negociações, conta Deus Pinheiro. Num dos momentos de impasse, o então comissário europeu recebeu um telefonema de Mandela: “‘Vou a Davos, você não quer vir lá ter comigo?’, ‘Com certeza’, disse eu. E lá conseguimos encontrar formas de ceder aqui e ali. ” A “relação continuada com Mandela foi fruto das circunstâncias, mas também de termos criado uma relação pessoal que facilitou imenso no futuro: de outra maneira não teríamos conseguido fechar o acordo de comércio livre. ”Na sua autodisciplina de sacudir piropos, José Cutileiro remata: “Aprendi uma coisa com o embaixador Vasco Futscher Pereira: um mau embaixador não representa o seu país; um embaixador mediano representa o seu país; um bom embaixador disfarça o seu país. Aqueles anos na África do Sul foram qualquer coisa de extraordinário: nenhum de nós teve outra coisa assim. Calhou-nos estar ali, calhou-nos apanhar a transição, calhou-nos conhecer o Mandela. Foi uma história moral. Foi um lugar que valeu a pena. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos PAN LIVRE