Eis o novo rosto do povo de Luzia, um dos fósseis humanos mais antigo das Américas
Um homem que viveu há dez mil anos em território agora brasileiro acaba de ter o seu rosto recriado a partir do crânio, incorporando novos dados genéticos sobre a sua população. Ele pertencia ao povo de Luzia, uma mulher que tinha vivido mais de um milénio antes. Através dele e dela contamos parte da pré-história das migrações humanas no continente americano. (...)

Eis o novo rosto do povo de Luzia, um dos fósseis humanos mais antigo das Américas
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.068
DATA: 2018-11-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um homem que viveu há dez mil anos em território agora brasileiro acaba de ter o seu rosto recriado a partir do crânio, incorporando novos dados genéticos sobre a sua população. Ele pertencia ao povo de Luzia, uma mulher que tinha vivido mais de um milénio antes. Através dele e dela contamos parte da pré-história das migrações humanas no continente americano.
TEXTO: O fóssil de Luzia, um dos esqueletos humanos mais antigos das Américas, descoberto no Brasil em 1975, saltou para as notícias mundiais com o incêndio que destruiu o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em Setembro. Luzia era uma das suas preciosidades, com uma idade estimada de 11. 500 anos. Apesar desta tragédia, recuperaram-se dos escombros cerca de 80% dos seus ossos. Agora chegam-nos mais novidades do povo a que pertenceu Luzia, vindas directamente do mundo da ciência: pela primeira vez, conseguiu-se extrair ADN de fósseis dessa população e, em conjunto com uma análise genética em larga escala de esqueletos de pessoas que viveram há vários milénios pelas Américas, de Norte a Sul, reconstitui-se uma parte da história complexa das migrações humanas deste continente muito antes da chegada dos europeus. Usando já estas informações genéticas, fez-se uma nova reconstituição facial do povo de Luzia. Apresentemos Luzia. O seu fóssil foi descoberto na região de Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais, numa missão franco-brasileira liderada pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire (que morreria pouco depois). Trata-se do fóssil de uma mulher, que teria à volta de 20 anos na altura da morte. Mas entre a sua descoberta em meados da década de 1970 e a sua valorização científica passaram-se 20 anos, sem que tivesse havido alguma investigação sobre este fóssil. Foi em 1995 que o antropólogo e arqueólogo Walter Alves Neves, agora professor aposentado da Universidade de São Paulo, estudou a morfologia do crânio de Luzia e de outros crânios com cerca de dez mil anos encontrados na região de Lagoa Santa. Todos de Homo sapiens, ou humanos modernos, a nossa espécie que saiu de África há cerca de 50 mil anos tendo-se espalhado pelo mundo, para a Europa, Ásia, Austrália, até chegar à América. Quanto a Luzia, recebeu esta alcunha dada por Walter Neves numa alusão a Lucy, o fóssil famoso de uma fêmea com 3, 5 milhões de anos de Australopithecus afarensis, descoberto na Etiópia em 1974. Ainda que Luzia tenha sido encontrada há pouco mais de 40 anos, os esqueletos humanos da região de Lagoa Santa são conhecidos a nível mundial desde o século XIX, quando os primeiros foram recuperados pelo explorador dinamarquês Peter Lund, considerado o “pai” da arqueologia e paleontologia brasileiras, nota um comunicado do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo a propósito do novo trabalho científico. “Nenhuma outra região do continente americano apresenta esqueletos tão antigos, preservados e abundantes”, sublinha o comunicado. A partir do estudo da forma dos crânios de Lagoa Santa, incluindo o de Luzia, Walter Neves propôs que os grupos de humanos que habitavam há dez mil anos essa região tinham uma ligação recente – sublinhe-se: recente – a populações de África, da Melanésia e Austrália. Não seriam nativos americanos, também designados ameríndios ou índios. O povo de Luzia seria não-ameríndio. Representaria uma população que teria chegado à América antes dos antepassados dos ameríndios actuais. Isto porque, segundo esta hipótese denominada “paleoamericana”, a forma do seu crânio era diferente da dos ameríndios de hoje. Tendo por base a proposta de Walter Neves, o especialista britânico Richard Neave fez uma reconstituição facial de Luzia ainda na década de 1990. Foi apresentada como tendo uma fisionomia marcadamente africana, com traços que lembram não só os negros de África como os aborígenes da Austrália. Agora os novos resultados baseiam-se em análises de ADN extraído pela primeira vez de dez esqueletos de Lagoa Santa e vêm indicar “de forma categórica”, segundo o comunicado da Universidade de São Paulo, que Luzia e os seus conterrâneos não tinham uma ligação recente a grupos humanos da Melanésia ou da Austrália. Afinal, Luzia e o seu povo já eram de origem ameríndia. “A forma do crânio não é um marcador confiável de ancestralidade ou de origem geográfica. A genética, por seu lado, é a técnica que se presta por excelência a esse tipo de inferência”, acrescenta o comunicado sobre este trabalho publicado esta quinta-feira na revista Cell por uma equipa da Universidade de São Paulo, da Universidade de Harvard (EUA) ou do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana (Alemanha), entre muitas outras instituições. Por que é que nunca se tinham feito análises genéticas a fósseis pertencentes ao povo de Luzia? As tentativas anteriores de extracção de ADN fóssil esbarraram sempre em obstáculos técnicos, principalmente porque o clima tropical dificulta a preservação de materiais biológicos. “A fragmentação extrema e a alta incidência de contaminação fez com que durante quase duas décadas diferentes grupos de pesquisas tentassem sem sucesso extrair material genético dos ossos de Lagoa Santa. ” O Instituto Max Planck tem estado na dianteira da recuperação de ADN antigo e tornou agora possível a análise de ADN dos esqueletos de dez indivíduos do povo de Luzia. Já iremos à nova história – tudo menos simples – contada pelo ADN sobre as antigas migrações humanas pelas Américas, incluindo a zona de Lagoa Santa. Antes, apresentemos a nova fisionomia de um indivíduo masculino pertence ao povo de Luzia. Esta reconstituição facial não fez parte do estudo actual, mas tem já em consideração as novas informações genéticas. Desta vez, a recriação forense ficou a cargo da antropóloga Caroline Wilkinson (da Universidade John Moores, em Liverpool), discípula de Richard Neave e que fez, por exemplo, a reconstituição do rosto do rei Ricardo III. Para tal, a especialista britânica utilizou um modelo digital retrodeformado do crânio antigo de um homem da região de Lagoa Santa, encontrado na gruta de Lapa do Santo. Também na região de Lagoa Santa, Luzia estava noutro sítio arqueológico, a gruta da Lapa Vermelha. “É comum que os fósseis sejam deformados com a passagem do tempo. Esse método remove essa deformação usando algoritmos matemáticos em ambiente virtual 3D”, explica-nos André Strauss, bioarqueólogo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, e um dos autores do artigo na Cell. “Por mais acostumados que estejamos com a tradicional reconstrução facial de Luzia, com traços fortemente africanos, a nova reconstrução reflecte de forma muito mais precisa a fisionomia dos primeiros habitantes do Brasil, apresentando traços generalizados e indistintos a partir dos quais, ao longo de milhares de anos, a grande diversidade ameríndia se estabeleceu”, adianta o comunicado. Se o povo de Luzia não veio numa onda migratória recente da Melanésia ou da Austrália, então de onde veio?Primeiro, recuemos ainda mais no tempo. Há mais de 20 mil anos não havia pessoas nas Américas. Mas, nessa altura, uma população vinda da Ásia estava já instalada na região onde hoje é o estreito de Bering, que ficou emersa na última idade do gelo, permitindo a ligação por terra entre a Ásia e a América do Norte. Em vez do estreito de Bering, havia uma ponte terrestre, a Beríngia. Uma vez aí estabelecidos, os beringianos antigos começaram a avançar pelo continente americano adentro. Foi assim que há 20 mil anos, segundo os dados arqueológicos e genéticos, começou a chegar ao Novo Mundo uma única população numa onda migratória. Há cerca de 16 mil anos, essa população inicial dispersava-se muito depressa por todo o continente americano e, há 14 mil anos, já tinha chegado ao Sul do Chile. Nalgumas regiões do continente americano, como o Sul do Brasil, essas populações iniciais mantiveram-se praticamente inalteradas até à chegada dos europeus, no início do século XVI. Mas noutras regiões da América do Sul a história das suas populações foi diferente, em particular na região de Lagoa Santa, que fica no Leste do Brasil. A história dá aqui mais umas reviravoltas e vai conduzir-nos agora – com calma – ao encontro de um outro povo famoso que ocupou extensas regiões da América do Norte há cerca de 13 mil anos. Esse povo fundou aí já a sua própria cultura, conhecida como Clóvis, o nome da aldeia do Novo México (EUA) onde se encontraram as suas primeiras ferramentas de pedra. Ora os autores do artigo na Cell, assinado em primeiro lugar por Cosimo Posth, do Instituto Max Planck, estabeleceram uma ligação até agora totalmente desconhecida entre os humanos da cultura Clóvis e o povo de Luzia. É uma das maiores descobertas deste estudo, assinala a Universidade de São Paulo. Na América do Sul, nunca se encontraram artefactos da cultura Clóvis (como pontas de lanças em pedra), o que sugeria que este povo não tinha migrado para sul. Mas a genética trouxe relevações, através da análise do ADN de esqueletos humanos antigos encontrados em vários países. A equipa comparou o ADN de um indivíduo do povo Clóvis com quase 13 mil anos, cujo esqueleto tinha sido encontrado no Montana (EUA), com ADN extraído de ossos de indivíduos que viveram entre há nove mil e 11 mil anos na América Central e do Sul. Verificou-se que havia pontos em comum quanto à ancestralidade. O que significava que o povo Clóvis não se tinha limitado a ficar na América do Norte e prosseguiu até à América do Sul. Misturou-se aí com populações que não fabricavam as ferramentas típicas desta cultura, deixando descendentes em várias regiões – “algo inimaginável até então”, frisa a Universidade de São Paulo. “A nossa descoberta principal é que um indivíduo da América do Norte associado à cultura Clóvis, com cerca de 12. 800 anos, partilha uma ancestralidade distintiva com os indivíduos mais antigos do Chile, Brasil e Belize”, resume Cosimo Posth, num comunicado da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard. “Isto apoia a hipótese de que a expansão de pessoas que disseminaram a cultura Clóvis na América do Norte alcançou também a América Central e do Sul”, acrescenta o cientista. “Surpreendentemente, o povo de Luzia, que se imaginava ter uma ancestralidade não-ameríndia, revelou-se como uma dessas populações descendentes de Clóvis”, conclui-se na nota da Universidade de São Paulo. Portanto, esta linhagem populacional ligada à cultura Clóvis contribuiu significativamente para os indivíduos datados com nove mil a dez mil anos de Lagoa Santa. Esta informação genética não bate certo com a hipótese de que as populações de Lagoa Santa derivavam de uma migração que tinha chegado à América vinda recentemente da Ásia. “O ADN mostra que o povo de Luzia tinha uma genética totalmente ameríndia”, resume André Strauss. Por razões desconhecidas, o povo de Luzia e outros descendentes sul-americanos das populações Clóvis desapareceram há cerca de nove mil anos. “Ela desaparece sendo substituída pelos ancestrais directos dos grupos indígenas que habitavam o Brasil durante o período colonial”, diz a Universidade de São Paulo. Por essa razão, a linhagem genética associada à cultura Clóvis não se encontra hoje nos sul-americanos nem em amostras de ADN antigo com menos de nove mil anos. “Esta é a nossa segunda descoberta importante. Mostrámos que houve uma substituição populacional à escala continental iniciada há pelo menos nove mil anos”, indica o geneticista David Reich, da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A publicação destes resultados coincide com a divulgação de outros dois artigos científicos, um na revista Science e outro na Science Advances, que traçam um retrato amplo das migrações pré-históricas pelo continente americano, desde o Alasca até à Patagónia, usando diversos genomas humanos antigos. André Strauss, também entre os autores do artigo na Science, diz-nos que neste trabalho analisou-se ainda o ADN de esqueletos de Lagoa Santa guardados no Museu de História Natural da Dinamarca, uma colecção recolhida por Peter Lund. “Os resultados também mostram que a população de Lagoa Santa era parte integrante das populações ameríndias. ” A pré-história das migrações pelo continente americano vai muito para lá de Luzia. Mas ela e o seu povo são as nossas estrelas.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Portugal é dos países europeus com mais violência policial
Afrodescendentes e estrangeiros correm mais riscos, o que demonstra que a polícia faz discriminação racial, acusa Comité Europeu contra a Tortura. (...)

Portugal é dos países europeus com mais violência policial
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-12-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Afrodescendentes e estrangeiros correm mais riscos, o que demonstra que a polícia faz discriminação racial, acusa Comité Europeu contra a Tortura.
TEXTO: Portugal está no topo dos países da Europa Ocidental com o maior número de casos de violência policial, diz a advogada Julia Kozma, responsável pela delegação do Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa que visitou Portugal em 2016. Os riscos de abusos são maiores para afrodescendentes portugueses e estrangeiros, o que indicia discriminação racial pela parte das forças de segurança na altura da detenção e durante o período em que as pessoas ficam à sua guarda, acrescenta. O comité, que lança esta terça-feira um relatório sobre Portugal, lamenta “a ausência” de “consciência” pela parte do Ministério da Administração Interna (MAI) de que existe um alto risco de maus tratos pela Policia de Segurança Pública ou pela GNR. “Pensa que o facto de existir a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) é suficiente", mas “isto é algo estrutural e sistemático, a solução tem que vir do MAI”. Contactado pelo PÚBLICO o MAI responde à crítica dizendo que "a formação das polícias incorpora a prioridade dada aos direitos humanos e firme oposição a quaisquer práticas xenófobas ou racistas, contribuindo para a boa avaliação de Portugal como país inclusivo e tolerante". Além disso, "as violações à lei são investigadas pelas próprias forças de segurança, pela IGAI e transmitidas de imediato ao Ministério Público". Mas para o comité isto não está a ser totalmente garantido. O documento alerta que é urgente tomar medidas e garantir a investigação dos casos, nomeadamente alargando as competências e recursos humanos da IGAI. Este órgão do Conselho da Europa faz visitas-surpresa a instituições que têm à sua guarda pessoas privadas da liberdade (o nome completo é Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e Tratamentos Degradantes ou Desumanos, CPT, na sigla em inglês) e visita regularmente os países. Foi criado pela Convenção que lhe dá o nome, aprovada em 1989 e ratificada por 47 Estados-membros. Uma delegação esteve em Portugal entre 27 de Setembro e 7 de Outubro de 2016. A preocupação com a violência policial já existia no relatório de 2013, no qual chamavam a atenção para a ausência de sanções. Embora tenha dados quantitativos, revelá-los não é uma prática do CPT. Porém, diz que registou em Portugal um número considerável de casos em que se confirmaram abusos. “Na nossa linguagem dizer 'um número considerável' é muito”, afirma Julia Kozma. A advogada explica que as comparações são retiradas das centenas de entrevistas que fizeram em Portugal, e nos outros países, a pessoas que tiveram contactos com a polícia e não só. Há oito anos a trabalhar para este órgão, Kozma garante que as entrevistas não se limitam a registar queixas, são seguidas de uma investigação. “Faço isto em vários países, tenho noção do conjunto das alegações. Trabalhamos com médicos que examinam as pessoas a apuram as suas queixas. "O número de queixas de violência policial que chegam à IGAI também é indicador da escala onde o CPT coloca o país: o relatório cita dados de 2015 que somam 248 queixas de ofensas físicas pela parte da GNR e PSP. E, mesmo assim, demonstram “apenas parte” da realidade, refere. Uma das lacunas referidas na análise do CPT é a ausência de resposta da parte do Ministério Público sobre o número de casos que chegam aos tribunais. “Muitos dos casos que estão na IGAI deviam ser levados à justiça. É preciso ter noção de que isto é um problema", sublinha a advogada. Segundo a sua análise, predomina um sentimento de impunidade já que as queixas não têm tido consequências criminais. Para o CPT, a IGAI deveria ter competência para desenvolver investigação criminal e ter mais meios para ser independente. Isto porque o trabalho de investigação “detalhado e exaustivo” que a IGAI desenvolve acaba por ser um “desperdício de recursos”, considera. Mas essas funções iriam implicar uma alteração legislativa, alerta a IGAI na sua resposta oficial ao relatório. No entanto, o processo da sua investigação, que origina processos disciplinares, é lento, lamentam os autores do relatório – dão o exemplo de um caso que demorou seis anos, acabou em processo disciplinar, ficou suspenso por ter sido pedido recurso e os agentes continuaram a trabalhar no mesmo local. Este está longe de ser um caso único, sublinham. Criticam ainda a incapacidade de a IGAI para pedir exames médicos forenses, o que limita a investigação, já que estes são centrais em casos de abusos. Por isso, esta inspecção, que actualmente depende do aval do MAI para iniciar uma investigação, deveria ter autonomia, defendem. Um dos vários casos que relatam é de um cidadão do Bangladesh que terá sido detido com violência por quatro agentes, amarrado a uma cadeira e alvo de socos na esquadra, em Fevereiro de 2016 – seria levado para o hospital da Amadora. Os agentes terão apontado uma pistola e dito: “Mereces morrer”, relata o relatório. Outro caso passou-se no Porto, em Junho de 2016, : quatro agentes terão dado socos e pontapés a um homem, apontando-lhe uma pistola à cabeça e, mesmo depois de este sangrar, não lhe foi dada assistência médica até ser transferido para a prisão da Polícia Judiciária e, depois, enviado para o hospital. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Já no que diz respeito aos estabelecimentos prisionais, o relatório é menos crítico mas não deixa de mostrar preocupação com a sobrelotação das prisões e condições de habitabilidade em algumas, como Caxias, Lisboa e Setúbal – é referido o reduzido tamanho de celas de Caxias e Setúbal e a existência de ratos em Lisboa, por exemplo. O CPT está optimista quanto às reformas do Ministério da Justiça para diminuir a população prisional. “Temos a sensação muito positiva que as reformas estão a ser levadas a sério”, disse a chefe da delegação. Porém, a grande preocupação está no Hospital Prisão Psiquiátrico Santa Cruz do Bispo, visitado pelo CPT, que ficou chocado com as condições. Ainda não há consciência de que é preciso alterar o paradigma: “Trata-se de pacientes em primeiro lugar, e as autoridades têm que repensá-lo nesses termos. Não pode ser gerido como uma prisão, tem de ser gerido como um hospital e ter pessoal médico e não prisional. "
REFERÊNCIAS:
Entidades GNR PSP MAI
Quando os polícias vão a tribunal acusados de agressão. Sete casos recentes
Há 17 agentes de Alfragide a ser julgados, mas outros casos têm sido notícia. E mais três envolvem a mesma esquadra. (...)

Quando os polícias vão a tribunal acusados de agressão. Sete casos recentes
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 17 agentes de Alfragide a ser julgados, mas outros casos têm sido notícia. E mais três envolvem a mesma esquadra.
TEXTO: Na semana em que três agentes da PSP foram condenados a pena suspensa por terem agredido e tratado um jovem "como lixo", e em que três outros polícias começaram a ser julgados por agredirem um jovem de origem angolana em pleno tribunal, o PÚBLICO recorda os casos mediáticos mais recentes em que polícias respondem por agressões. Vários agentes que pertenciam à Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial de Alfragide — onde trabalhavam os polícias que esta sexta-feira regressaram ao Tribunal de Sintra acusados de tortura e racismo — são ou foram arguidos em processos diferentes. No ano passado chegaram à Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) 267 queixas de ofensas à integridade física por parte das forças de segurança, a maioria delas enviadas pelo Ministério Público. Foram instaurados 16 processos disciplinares a elementos da GNR e da PSP e, dos processos concluídos, aplicaram-se apenas seis penas disciplinares. A esmagadora maioria dos processos — 20 — foram arquivados.
REFERÊNCIAS:
Entidades GNR PSP
Cova da Moura sem lei?
Esperemos que este caso levado à justiça formal permita enfim ao país proceder a um ato de justiça substancial. (...)

Cova da Moura sem lei?
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Esperemos que este caso levado à justiça formal permita enfim ao país proceder a um ato de justiça substancial.
TEXTO: O mito de uma Cova da Moura sem lei vem dos meados dos anos 90. O semanário O Independente fez então sair uma primeira página com “os bairros de Lisboa onde a polícia não entra”. A Cova da Moura era dos mais proeminentes destes bairros — e era também um bairro predominantemente negro. Passado pouco tempo, notícias no Expresso e reportagens na SIC, citando fontes policiais, voltavam a referir a Cova da Moura como um local onde gangs criminosos proliferavam e a polícia não conseguia entrar. O preconceito racial facilitou, é claro, a transmissão dessa narrativa. Uma boa parte do resto da imprensa e da sociedade acreditou no que as fontes policiais diziam e a fama do bairro cristalizou-se naquela ideia de que a polícia não conseguia lá entrar. Só que isto era mentira. E sei que era mentira porque nessa época, como voluntário da Associação Moinho da Juventude, eu dava aulas no Alto da Cova da Moura — o nome correto do bairro — e lá ia todas as semanas. A polícia foi sempre presença habitual nas ruas do bairro, com toda a normalidade. E uma ou duas vezes por semana eu via, com os meus olhos, uma realidade que jornais e televisões negavam — uma primeira experiência, profundamente frustrante, acerca de como uma narrativa fomentada por fontes interessadas se pode rapidamente tornar inamovível entre a população em geral. Há mais. Nas conversas ocasionais no bairro uma outra história foi emergindo. Era contada até com um encolher de ombros: sim, claro que a polícia entrava no bairro; nos dias em que os homens recebiam dos trabalhos na construção civil até acontecia confiscarem-lhes o dinheiro como se fosse produto da venda de droga, diziam-me, na convicção de que nenhum queixoso entraria pela esquadra a declarar-se vítima de extorsão, uma vez que o trabalho era em geral sem contrato e a origem honesta do dinheiro jamais poderia ser provada. Ao contrário do mito anterior, que eu sei que é mito porque vi a realidade, não tenho forma de saber se esta outra história não é apenas um contra-mito disseminado entre a população do bairro. Mas o que retenho da justaposição das duas histórias é que desde esse tempo, entre o preconceito da população exterior ao bairro e a passividade de muitos dos seus habitantes, a Cova da Moura era já o símbolo de um desencontro de narrativas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para quem era de fora, “a Cova da Moura sem lei” era aquela onde a polícia não entrava. Mas para quem era de dentro, a “Cova da Moura sem lei” era aquela em que a polícia agia com regular impunidade. Sem a imagem que cá fora tínhamos da primeira, a segunda não poderia existir lá dentro. E assim foi, até esta semana. Graças à coragem de um grupo de jovens do bairro que levou por diante uma queixa contra violências policiais que consideram ter sofrido em 2015, graças à persistência da advogada que os acompanhou, e graças à ação objetiva do Ministério Público, temos pela primeira vez na Cova da Moura uma história que é capaz de não se ficar pelo desencontro de narrativas. Segundo acusação deduzida pelo Ministério Público, dezoito agentes da PSP serão agora julgados pelos crimes de “falsificação de documento agravado, denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e sequestro agravado”, todos relativos aos acontecimentos de 2015. Veremos o resultado do julgamento para tirar conclusões. Mas a acusação é já uma decisão cujo significado não pode ser desprezado. Esperemos que este caso levado à justiça formal permita enfim ao país proceder a um ato de justiça substancial. Esperemos que ele nos dê a ocasião para reconhecer que há no nosso país um racismo estrutural que tem roubado a muitos cidadãos, particularmente jovens, o acesso a oportunidades iguais de desenvolvimento. E depois desse reconhecimento, esperemos que se tomem finalmente decisões claras para ajudar a prevenir esse racismo estrutural e a corrigir os danos que ele provoca. Já tarda.
REFERÊNCIAS:
Entidades PSP
Fernando Haddad, a melhor solução política para o Brasil
Foi um excelente ministro da Educação e desempenhou com competência a tarefa de presidente da Câmara de S. Paulo. Revelou-se um político absolutamente contrário ao modelo cesarista/populista tão frequente no mundo latino-americano. (...)

Fernando Haddad, a melhor solução política para o Brasil
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi um excelente ministro da Educação e desempenhou com competência a tarefa de presidente da Câmara de S. Paulo. Revelou-se um político absolutamente contrário ao modelo cesarista/populista tão frequente no mundo latino-americano.
TEXTO: 1. No próximo domingo, salvo gigantesca surpresa, Fernando Haddad e Jair Bolsonaro passarão à segunda volta das eleições presidenciais brasileiras, confirmando a polarização da vida política do seu país, há já muito anunciada. Esta polarização tem suscitado justificada inquietude entre vários analistas da sociedade brasileira, que temem o surgimento de dois Brasis irreconciliáveis. Se esse receio tem algum sentido, há, contudo, que salvaguardar a inexistência de qualquer tipo de paridade entre os dois pólos e as duas candidaturas em confronto. Por muitos erros que o Partido dos Trabalhadores tenha cometido no desempenho da governação, a verdade é que continua a ser um partido democrático, empenhado num projecto de superação das profundas desigualdades sociais que continuam a caracterizar o Brasil. Esse projecto pode ser discutido, mas não levanta qualquer dúvida quanto ao seu compromisso com a liberdade e o pluralismo. Ademais, Fernando Haddad é um homem de elevada estatura intelectual, professor na Universidade de São Paulo, autor de uma obra respeitável nos domínios do pensamento jurídico e filosófico e detentor de uma biografia política que o recomenda para o exercício da função presidencial. Foi um excelente ministro da Educação e desempenhou com competência a tarefa de presidente da Câmara de S. Paulo. No cumprimento destas funções, revelou-se um político absolutamente contrário ao modelo cesarista/populista tão frequente no mundo latino-americano. Do outro lado depara-se-nos um candidato destituído de qualquer qualidade moral, intelectual ou política. Basta recordar o elogio que Bolsonaro fez ao militar que torturou Dilma Rousseff no tempo da ditadura, no momento do voto do seu impeachment, em pleno Congresso Nacional, para aquilatarmos o grau de vilania desta personagem. Bolsonaro é ostensivamente racista, declaradamente misógino, despudoradamente violento. Que um bandido deste calibre concite amplos apoios em quase todos os sectores da sociedade brasileira e se prepare para alcançar, logo à primeira volta, votações muitíssimo significativas nos Estados como o de São Paulo ou do Rio de Janeiro, revela bem a dimensão dos problemas que afligem o Brasil contemporâneo. A constatação é dolorosa, mas inevitável: a sociedade brasileira permanece uma sociedade enferma e o respectivo Estado manifesta, sob vários aspectos, um elevadíssimo grau de disfuncionalidade. Diversos historiadores, antropólogos, sociólogos e economistas afadigam-se na busca de explicações para tão inusitada situação. O que terá corrido mal a este imenso e – sob vários pontos de vista – prodigioso país?Serão múltiplos os factores, desde a herança escravocrata até às recentes vagas de obscurantismo evangélico, que concorrem para tão negativo quadro social, cultural e político. Apesar dos grandes avanços observados no período democrático, subsistem muitos dos graves problemas impeditivos da plena modernização do Brasil: o arcaísmo e arrogância das elites política e económica, a impreparação cultural de quase toda a classe média, a condescendência com práticas de corrupção e nepotismo, a valorização de interesses corporativos, a incapacidade de aplicar um projecto reformista que articule racionalidade económica e justiça social. A esquerda brasileira tem responsabilidades nestes fracassos. Julgo que o seu maior erro foi não ter conseguido associar uma corrente tipicamente social-democrata, aberta ao mundo e às dinâmicas da globalização, a uma outra corrente mais ligada aos movimentos sociais de base e herdeira de uma visão desenvolvimentista de carácter nacional e estatizante. A primeira seria representada por Fernando Henrique Cardoso e o projecto inicial do PSDB. A segunda corresponderia ao PT. Este último partido cometeu, a meu ver, um erro gravíssimo quando optou por corporizar uma oposição radical e de matizes populistas a Fernando Henrique Cardoso, quer quando este, enquanto ministro das Finanças, aplicou o designado Plano Real, que permitiu o controlo da inflação, quer posteriormente, quando, na qualidade de Presidente da República, se empenhou numa acção reformista de inegável qualidade. Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de reputação mundial, estadista de primeira grandeza, acabou ele próprio por se aproximar bastante do centro-direita brasileiro, por força das circunstâncias. O que é inegável é que foi um homem que deu prestígio e dignidade à função presidencial. Lula da Silva, ao contrário do que hoje levianamente se quer fazer crer, foi um Presidente sensato e muito realista. A dada altura, percebeu que para ascender ao poder tinha de abandonar o radicalismo discursivo. Assim que tomou as rédeas do país, empenhou-se em conciliar o rigor na gestão económica e financeira com a promoção de políticas sociais capazes de combater a ancestral pobreza de largas camadas do povo brasileiro. Fê-lo com sucesso e com o devido reconhecimento público. Quando deixou a Presidência da República, a sua taxa de aprovação era da ordem dos 75%. Hoje sabe-se que havia um lado sombrio na actuação política do PT: a sua adesão às tradicionais práticas de clientelismo e corrupção da política brasileira. A sucessora de Lula, Dilma Rousseff, mulher impoluta, governou em circunstâncias extraordinariamente difíceis e acabou por ser afastada da Presidência de um modo particularmente sórdido. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O grande desafio que se coloca hoje à esquerda brasileira é o de conceber um projecto político nacional que articule um reformismo anticorporativo com a valorização adequada de um mercado a funcionar seriamente e com um Estado resoluto na promoção da igualdade. É ao PT que poderá incumbir essa tarefa histórica. 2. Há momentos em que não pode haver qualquer tipo de dúvida. Se eu fosse brasileiro, no próximo domingo votaria em Fernando Haddad, com convicção e com esperança. Haddad provém da ala moderada do PT; uma vez eleito terá condições para estabelecer compromissos com outros sectores da esquerda democrática e mesmo com as áreas mais progressistas do centro político brasileiro, de modo a liderar um projecto de modernização do país sem preconceitos ideológicos primários nem aventureirismos irresponsáveis. Um país ainda tão desigual, tão dramaticamente marcado pelo racismo étnico e social, tão permeável ao elogio da violência, precisa de um Presidente da República empenhado na promoção da igualdade como condição de afirmação da própria liberdade. Não tenho dúvidas de que neste momento, face às circunstâncias políticas prevalecentes, Fernando Haddad é a melhor solução política para dirigir os destinos do Brasil. 3. É cada vez mais óbvio que o juiz Sérgio Moro, seja por que razão for, está dominado por uma obsessão anti-PT que lhe retira clarividência e o condena a um comportamento que contende com os deveres de independência inerentes à função judicial. A divulgação de um depoimento obtido através da delação premiada, em plena campanha eleitoral, a oito dias das eleições, constitui um escândalo e uma indignidade. Custou-me chegar a esta conclusão, mas há hoje razões muito fortes para suspeitar da idoneidade deste juiz. Esta suspeita mancha o Estado de Direito do Brasil.
REFERÊNCIAS:
O Parlamento Europeu e os povos indígenas
O relatório aprovado visa alertar para a reiterada violação dos direitos indígenas e a indevida apropriação de terras em larga escala (...)

O Parlamento Europeu e os povos indígenas
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O relatório aprovado visa alertar para a reiterada violação dos direitos indígenas e a indevida apropriação de terras em larga escala
TEXTO: Há mais de cem anos, um antropólogo norte-americano de origem alemã, Franz Boas, rompeu com a concepção de uma antropologia evolucionista de fundamentação racista, e iniciou uma outra forma de olhar para o mundo indígena. A sua obra constituiu uma verdadeira reviravolta epistemológica, dotada de um enorme potencial transformador nos planos político e cultural. Essa transformação verificou-se de facto no mundo da antropologia, e para isso basta lembrarmos alguns dos seus nomes mais conhecidos, como Malinowski e Lévi-Strauss. Não é certo que as consequências no plano político tenham sido de idêntica dimensão. Ainda hoje os povos indígenas são percebidos por largos sectores da humanidade como expressões de uma resistência anacrónica ao progresso e à contemporaneidade. Nem o facto de a própria ideia de progresso ter sido submetida a uma dura apreciação crítica na cultura Ocidental conduziu a uma alteração radical desse tipo de percepção sobre a natureza dos indígenas. Ora, esta visão concorre fortemente para o estatuto de subalternidade que continua a afectar pelo menos 370 milhões de seres humanos dispersos por todo o planeta, que integram a categoria de povos indígenas. Eles são, na maior parte dos casos, objecto de um olhar racista, que não raras vezes os remete para um estatuto quase infra-humano, que se traduz na sujeição a uma violência real e simbólica absolutamente insuportável. Não estamos sequer a falar da sua história nos últimos séculos, mas sim daquilo que constitui a sua vivência presente. Os indígenas são vistos e tratados como uma espécie de “lumpenhumanitat”, destinado a desaparecer e tratado sordidamente. Foi justamente por ter contactado com esta realidade, quer através de vários encontros com representantes destes povos que se deslocaram a Bruxelas e a Estrasburgo, quer através de diversas visitas que realizei nos últimos anos a algumas destas comunidades no espaço latino-americano, que me empenhei na elaboração de um relatório subordinado ao tema das violações dos direitos dos povos indígenas no mundo e da apropriação ilegal de terras. Esse relatório foi discutido esta semana no plenário do Parlamento Europeu em Estrasburgo e aprovado com os votos de mais de três quartos dos deputados europeus. Num tempo de crise política e moral em grande parte suscitada pela dificuldade em encontrar uma resposta adequada à questão das migrações, esta expressiva votação ainda diz muito acerca do comprometimento dos representantes políticos europeus, da direita à esquerda, com alguns dos valores que commumente reclamamos como matriciais no projecto europeu. É claro que é mais fácil votar a favor de um relatório do que agir de forma consequente e útil na promoção de princípios, valores e direitos concretamente associáveis a grupos de populações anatematizadas. Contudo, um voto é já um compromisso, uma clara declaração de intenções, uma expressão de um ideal regulador. Por isso mesmo, creio que o Parlamento Europeu esteve à altura das suas responsabilidades ao aderir ao conteúdo de um texto que visa sobretudo alertar para duas questões de inegável actualidade: a reiterada violação dos direitos indígenas por esse mundo fora e a indevida apropriação de terras em larga escala, por parte da indústria extractiva e do agronegócio, que põem em causa os ancestrais direitos de algumas comunidades humanas ao usufruto da terra e prejudicam o equilíbrio ambiental planetário devido à redução drástica da biodiversidade e à destruição de amplas áreas florestais. Convirá referir que não está subjacente a este relatório qualquer propensão para a idealização acrítica dos estilos de vida e das práticas sociais e culturais prevalecentes nas múltiplas comunidades indígenas. Tão-pouco ignoramos a natureza complexa que caracteriza a necessária articulação destas mesmas comunidades com os contextos sociais e estatais em que estão inevitavelmente inseridas, para já não falarmos da sua inserção no fenómeno da globalização. Tal como em todos os restantes casos, recusamos qualquer perspectiva essencialista que aponte para uma identidade rígida e fechada. É óbvio que a aceleração do tempo histórico também se repercute em sociedades que não podem ter um estatuto a-histórico. Como sabemos, são raríssimos os casos de comunidades indígenas que optaram pelo isolamento voluntário em relação ao resto do mundo. Reconhecendo assim o carácter inevitavelmente problemático das articulações atrás referidas, o que está em causa é a salvaguarda do direito das comunidades indígenas decidirem sobre o seu próprio futuro e sobre a natureza, o ritmo e os modos da sua interacção com a realidade circundante. Infelizmente, verificamos que este direito lhes tem sido sistematicamente sonegado, o que não quer dizer que não existam bons exemplos em vários países do mundo. Por outro lado, e sem qualquer enfoque meramente utilitarista, temos que reconhecer que a preservação de vastos territórios sob parcial jurisdição indígena contribui fortemente para evitar a escalada de monoculturas agrícolas ou de gigantescas extracções mineiras que a serem concretizadas produziriam efeitos muito negativos para toda a humanidade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Haverá quem argumente que a União Europeia não dispõe de legitimidade para se pronunciar sobre este tema. A prova mais evidente da mediocridade desta tese reside no facto de inúmeros representantes destes povos solicitarem directamente ao Parlamento Europeu a adopção de posições claras sobre este assunto. Não incumbindo ao Parlamento Europeu o papel de provedor-geral da humanidade, não pode contudo deixar de o responsabilizar o facto de, por mérito próprio, ter despertado inegáveis expectativas em todos quantos se dedicam à salvaguarda e promoção dos direitos humanos. Isto desautoriza um certo discurso anti-Ocidental, primário e grotesco, que continua a ser produzido por alguns sectores mais extremistas das nossas sociedades. Tal discurso é tão negativo como aquele, de sinal contrário, que se extasia no enaltecimento da proclamada superioridade de uma suposta civilização Ocidental de carácter puramente essencialista e despudoradamente racista. Felizmente, o Ocidente não é nem uma coisa, nem outra, e o espaço político europeu tem-se revelado o mais aberto à compreensão do outro em todos os planos em que este se manifesta. Que o Parlamento Europeu, no meio de tantas urgências, de tão diversas solicitações sectoriais, de uma quase inevitável propensão para a abordagem mecânica dos temas mais mediáticos, tenha encontrado tempo para discutir um relatório sobre os povos indígenas é algo que a meu ver merece ser registado. Que deputados comunistas, verdes, liberais, conservadores, democratas-cristãos e, naturalmente, socialistas como eu próprio, se tenham empenhado profundamente numa discussão que para muitos poderia ser vista como ociosa ou anacrónica, revela, a meu ver, uma coisa: a Europa está muito longe de estar tão doente como por vezes se apregoa.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos humanos violência cultura violação espécie racista ilegal
E levar a sério o “levar a sério os eleitores”?
A única forma de não ser co-responsável pelo que um fascista venha a fazer é não votar nele. Melhor ainda, votar no seu adversário. Ainda estão a tempo. (...)

E levar a sério o “levar a sério os eleitores”?
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.33
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: A única forma de não ser co-responsável pelo que um fascista venha a fazer é não votar nele. Melhor ainda, votar no seu adversário. Ainda estão a tempo.
TEXTO: Já levamos tempo suficiente desta vaga nacional-populista para saber que depois de um racista ou fascista ter tido um bom resultado eleitoral demora mais ou menos dois dias até alguém fazer a pergunta: achas mesmo que x por cento dos eleitores são racistas ou fascistas?A pergunta parte do princípio que, em caso de resposta positiva, estaríamos a insultar um terço ou uma metade de uma nação. Ou então que, sendo impossível que um terço dos franceses seja racista ou metade dos brasileiros fascista, é também impossível que o candidato em que votaram o fosse — e assim durante muito tempo os candidatos acabavam branqueados por via do seu eleitorado. Deixem-me contar-vos uma história. Como o Brasil foi a minha segunda casa durante muitos anos, poucas coisas me dão tanto prazer como ficar conversando com brasileiros sobre o Brasil. Na maior parte das vezes, de coisas banais: de onde vêm as suas famílias, de que estado são, em que cidades temos amigos em comum, a comida local, o futebol, etc. Nestes tempos que correm, porém, a política está sempre a espreitar. No outro dia entabulei conversa com um luso-brasileiro muito afável, de cerca dos seus sessenta anos. Na primeira parte da conversa ele disse-me, muito afavelmente, como tinha sido a sua vida na Beira Alta e no Rio de Janeiro. Na segunda parte da conversa disse-me, exatamente com a mesma afabilidade, que o erro da ditadura no Brasil tinha sido matar pouca gente. Sem uma alteração no tom de voz, explicou-me que “fuzilar duzentos ou trezentos mil já teria sido um começo”. Não foi preciso prolongar a conversa para saber em quem o senhor iria votar. Quando pomos pessoas reais na resposta, as perguntas ficam mais complicadas. Se a pergunta for se aquele senhor acorda fascista, respira fascista e ronca fascista na cama, a resposta é: certamente que não. Se a pergunta for se aquele senhor é simpático e trata toda a gente à sua volta bem, eu juraria que a resposta será: certamente sim. Julga ele ter um único osso fascista no corpo? Provavelmente não. Mas se a pergunta for se ele, apesar de ser boa pessoa, é capaz de votar conscientemente num fascista, sabendo que é fascista, e talvez precisamente por ser fascista e não apesar disso, a resposta só pode ser: claro que sim. E o mesmo vale para milhões de eleitores. Todos os que votaram em Bolsonaro? É impossível saber. Mas mais impossível seria que de todos os eleitores que votaram em Bolsonaro não houvesse uma percentagem muito significativa de saudosistas da ditadura. Muita gente que nos diz para “levar os eleitores a sério” só leva a sério o seu próprio conselho até ao ponto em que ele não se torna demasiado desconfortável. Os eleitores são para levar a sério até ao momento em que votam num fascista ou racista. Quando o fazem, é preciso haver uma justificação qualquer: é a ansiedade económica, ou a raiva contra o sistema, ou outra coisa qualquer. O problema é que não levar os eleitores a sério significa desresponsabilizá-los. Significa dizer-lhes que terão sempre uma escapatória se tiverem de justificar um voto fascista. E significa desresponsabilizar o candidato também. Tal como o eleitor pode dizer “eu não achei que o Fulano falasse sério”, o candidato pode dizer “eu racista?! isso é insultuoso para os milhões de pessoas que votaram em mim”. Não podemos entrar na alma das pessoas. Nunca saberemos o que elas pensam ou sentem da manhã à noite. Mas duas coisas têm de ser certas: temos de levar a sério o voto dos eleitores e os eleitores têm de levar a sério o seu voto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Faz hoje oitenta anos que Hitler deu por finda a sua primeira agressão internacional, a da Checoslováquia. Por muito que nos custe, Hitler não foi eleito por extraterrestres, mas por eleitores comuns. Foi eleito prometendo que ia fazer o que fez. E invadiu a Checoslováquia com um papel assinado por outros políticos internacionais que acharam que ele iria ficar por ali. Por alguma razão só se vota quando se é adulto. Porque quando se é adulto somos responsáveis pelos nossos atos. Levar a sério os eleitores não significa concordar sempre com eles, ou procurar sempre uma desculpa para a maneira como votam — isso é precisamente o contrário de levar a sério. Mas levar a sério significa sempre responsabilizar as pessoas pelos seus atos. Principalmente quando votam em políticos sabendo aquilo em que estão a votar. Houve uma dezena de candidatos nas eleições brasileiras, da esquerda à direita, do PT ao antipetismo — e um fascista. Milhões de eleitores escolheram não votar nos outros dez, mas votaram em primeiro lugar no fascista. Desresponsabilizá-los é o pior serviço que lhes podemos fazer a três semanas da decisão final. Pelo contrário, precisamos de lhes dizer: a única forma de não ser co-responsável pelo que um fascista venha a fazer é não votar nele. Melhor ainda, votar no seu adversário. Ainda estão a tempo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave corpo racista ansiedade
Desmemória e fascismo
O apagamento da memória ameríndia que o Museu Nacional do Brasil conservava prolonga a “história de apagamentos e silenciamentos” que tem sido a história do Brasil. (...)

Desmemória e fascismo
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O apagamento da memória ameríndia que o Museu Nacional do Brasil conservava prolonga a “história de apagamentos e silenciamentos” que tem sido a história do Brasil.
TEXTO: Ardeu tudo. Ou quase tudo. O quinto maior acervo museológico do mundo, reunido na mais antiga instituição científica brasileira, 20 milhões de itens classificados; duas bibliotecas inteiras, meio milhão de obras, 2400 das quais classificadas como raras. As coleções de Etnologia reuniam objetos únicos que, ainda hoje se diz na página online do Museu, “mostram a riqueza da cultura indígena [e da] cultura afro-brasileira”. Perdeu-se definitivamente um arquivo oral com gravações de conversas, cantos e rituais de dezenas de sociedades indígenas, muitas feitas durante a década de 1960, e que não haviam sido digitalizadas. Uma parte essencial da memória histórica das nações ameríndias anteriores à colonização portuguesa - já de si completamente desvalorizada por uma cultura hegemónica de matriz colonial que, como acontece em quase todas as Américas, imagina o Brasil como uma nação ocidental “resgatada” à “incivilização” indígena - está reduzida a fumo e cinzas. Centro de investigação para muitos arqueólogos, o que resta do Museu transformou-se agora, ele mesmo, num sítio arqueológico. . . O caso não é único. Só nesta década, e só em São Paulo, quatro outros grandes acervos sofreram incêndios: o Instituto Butantan (2010), o Memorial da América Latina (2013), o Museu da Língua Portuguesa (2015), a Cinemateca Brasileira (2016). Em todos os casos, é nos cortes orçamentais das políticas liberais que é inevitável buscar responsabilidades. Já de si sistematicamente insuficiente nas últimas décadas, a quebra brutal da dotação financeira que o Governo Temer dedicava à Universidade que fazia a gestão do Museu veio confirmar os piores receios. “Os fios desencapados [que podem ter provocado um curtocircuito] estão nos gabinetes do Palácio do Planalto e do Ministério da Educação. O ministro, ninguém sabe quem é, nomeado a título de barganha em troca de votos no Congresso. (. . . ) Do Museu Nacional, um património da humanidade, só ouviu falar depois da tragédia do incêndio. ” (Álvaro Caldas, Jornal do Brasil, 7. 9. 2018) “O Brasil é um país onde governar é criar desertos. (. . . ) Destrói-se a natureza e agora está-se destruindo a cultura, criando-se desertos no tempo. Estamos perdendo com isso parte da história do Brasil e do mundo”, dizia há dias Eduardo Viveiros de Castro ao PÚBLICO (4. 9. 2018), que receia agora que “se tente vender o canto de sereia da privatização dos museus, retirá-lo da universidade, transformá-lo numa fundação privada”. É arrepiadoramente simbólico que tudo isto ocorra no momento em que o Brasil pode estar a semanas de ver eleito um presidente fascista como Jair Bolsonaro – sobretudo agora que, vítima de uma facada de um homem psicologicamente transtornado, pode vir a beneficiar do mesmo efeito que Hitler obteve com o incêndio do Reichstag dias antes das eleições de 1933. Duplamente simbólico: por um lado, Bolsonaro assegura que entrou na corrida à Presidência “por uma missão de Deus” (El País, Brasil, 6. 9. 2018), a mesma que o seu atacante reclama para si; por outro, perante o incêndio Museu Nacional, Bolsonaro declarou que nada mais poderia ser feito: “se não há dinheiro, paciência”. Paciência, mesmo. Porque este é o racista (e o misógino, e o homófobo, e o anticomunista) que tem o apoio de empresários do agronegócio como Luiz Antonio Nabhan Garcia, que espera que Bolsonaro ponha na ordem “essa gente da Fundação Nacional do Índio, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, do Ministério Público, que não respeita a propriedade privada” (El País, Brasil, 2. 9. 2018). Por outras palavras, o homem que homenageou o torturador de Dilma Rousseff ao votar o impeachment, que promete mandar “fuzilar os petralhas” (ou seja, os dirigentes do PT), “dar um pé no traseiro do comunismo”, restabelecer a pena de morte e, no país com mais homicídios per capita no mundo, liberalizar o porte de arma, é também aquele que de quem se espera que acabe com “essa politicagem de Direitos Humanos”, expressão que ele usa para designar as políticas de defesa dos direitos dos povos indígenas. O apagamento da memória ameríndia que o Museu Nacional do Brasil conservava prolonga a “história de apagamentos e silenciamentos” que tem sido a história do Brasil. “Um povo que não conhece seu passado, que não compreende suas referências e suas origens, perde a chance de reparar seus erros históricos e não é capaz de trilhar seu caminho a um futuro de respeito aos direitos humanos e à democracia. ” (Rogério Sottilli, ex-secretário de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo, cartacapital. com. br, 5. 9. 2018)
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte humanos cultura educação homem racista
As eleições europeias
Haverá quem acredite nesta ideia de projecção da “geringonça” no plano europeu. Lamento dizê-lo, mas só gente propensa a uma credulidade infantil pode cair neste ludíbrio. (...)

As eleições europeias
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: Haverá quem acredite nesta ideia de projecção da “geringonça” no plano europeu. Lamento dizê-lo, mas só gente propensa a uma credulidade infantil pode cair neste ludíbrio.
TEXTO: 1. Francisco Lucas Pires, ao que consta, terá afirmado um dia que as eleições constituem o mais passional dos acontecimentos políticos. Tê-lo-á dito num contexto de crise pós-eleitoral. A tese é interessante e aplicável, provavelmente, na esmagadora maioria dos casos. Há, contudo, excepções. No último domingo tal asserção não teve correspondência na realidade. Na sequência dos resultados eleitorais nada mudou, pelo menos à superfície, na vida política portuguesa. Os líderes partidários não foram questionados e as orientações estratégicas não originaram nenhum tipo de contestação especial. Numa das mais fecundas afirmações filosóficas da nossa contemporaneidade Nietzsche proclamou que “não há factos, só há interpretações”. A tese é polémica e originou um amplo debate filosófico que se perpetua no momento presente. O que nos interessa aqui é a sua aplicação no plano político. Não há dúvida que perante realidades substancialmente idênticas é possível construir avaliações essencialmente diferentes. Isso observou-se nas eleições do passado domingo. Pela circunstância de ter sido um interveniente activo no penúltimo acto eleitoral europeu abstenho-me da formulação de considerações sobre o ocorrido nas pretéritas eleições. Há, porém, uma nota que não quero deixar de salientar. Visto de fora o processo eleitoral afigurou-se sofrível, muito distante da qualidade reconhecida aos principais protagonistas da contenda. Pedro Marques é muito melhor do que a burlesca figuração que pretenderam fazer dele. Paulo Rangel é, obviamente, pelas suas inquestionáveis qualidades intelectuais e políticas, um deputado europeu de eleição. Nuno Melo está muito para além do radical direitista a que o pretenderam reduzir. O que terá concorrido para que personalidades políticas de inequívoca qualidade como aquelas que referi atrás, a que acrescento sem qualquer dúvida João Ferreira e Marisa Matias, possam ter originado uma campanha eleitoral tão débil e tão distante das grandes questões que animam o presente debate político europeu? Não é fácil responder a tal questão. Há várias razões que concorrem para tão lastimável ocorrência. Uma delas consiste na maneira como a comunicação social aborda toda a discussão incidente sobre os temas europeus. Não tenhamos medo de enunciar a verdade. Uma parte dos nossos jornalistas não dispõe de uma cultura política suficiente que lhes permita uma abordagem séria e exigente dos temas existentes no espaço público europeu. Também aqui se verifica a falta de meios humanos com que se debatem hoje as redacções no nosso país. Sendo que os jornalistas continuam a desempenhar um papel fundamental na formatação do espaço público, esta insuficiência reveste-se de enorme importância. É certo que alguns protagonistas políticos rejubilam com tal debilidade, sempre prontos a utilizar a ignorância alheia como factor de promoção artificial de méritos objectivamente não existentes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Contrariamente ao que se antecipava relativamente aos resultados eleitorais europeus, as grandes formações pró-europeístas continuaram a suscitar uma adesão maioritária do eleitorado. Há aqueles que, com a leviandade própria dos que se extasiam com a superfície das coisas, falam da emergência de uma espécie de “geringonça europeia”. A utilização desse conceito de génese exclusivamente portuguesa para caracterizar a situação é de um ridículo atroz. Não passa pela cabeça de ninguém a constituição de uma maioria parlamentar pró-europeia integrando formações políticas contrárias ao presente projecto europeu. Quando o primeiro-ministro António Costa fala de uma maioria progressista na Europa refere-se a algo substancialmente distinto da maioria parlamentar que assegura a governação em Portugal. Não só distinto como até contraditório. O que há de comum entre a vontade liberalizante de Macron em França e as opções anti-liberais do Bloco de Esquerda e do PCP em Portugal? Rigorosamente nada. Haverá quem acredite nesta ideia de projecção da “geringonça” no plano europeu. Lamento dizê-lo, mas só gente propensa a uma credulidade infantil pode cair neste ludíbrio. O que António Costa tem feito no plano europeu, a meu ver bem, contradiz absolutamente a solução política prevalecente em Portugal. 2. Manuel Morais, pessoa que não conheço, revelou uma extraordinária coragem na forma como abordou a questão da existência de racismo no seio da sociedade portuguesa e, em particular, no interior das forças policiais. Estou certo que tudo o que disse corresponde à realidade. É óbvio que há racismo na sociedade portuguesa e que tal se manifesta no seio das mais diversas instituições, e nomeadamente também no interior das forças policiais. Por ter dito esta elementar verdade foi compelido a demitir-se das funções que desempenhava num sindicato policial. Estranhamente pouca gente expressou indignação perante o sucedido. É lamentável e preocupante que assim seja. Onde estão aqueles que habitualmente se indignam, e bem, perante toda e qualquer manifestação de racismo e de xenofobia? O que justifica tão arrepiante silêncio? Pela minha parte quero exprimir a minha absoluta solidariedade a Manuel Morais.
REFERÊNCIAS:
Partidos PCP
Desmascarar o colonialismo português dentro e fora de um contentor
Até 29 de Julho, o Teatro Experimental do Porto apresenta na Praia do Homem do Leme uma instalação e um programa de conferências em que se procura desmontar a historiografia oficial da colonização e discutir as suas heranças. (...)

Desmascarar o colonialismo português dentro e fora de um contentor
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Até 29 de Julho, o Teatro Experimental do Porto apresenta na Praia do Homem do Leme uma instalação e um programa de conferências em que se procura desmontar a historiografia oficial da colonização e discutir as suas heranças.
TEXTO: Em 2019 assinalam-se os 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães, descrito nos livros de História como um dos grandes navegadores portugueses. Além de supostamente ter provado que a terra é redonda, foi também pioneiro em várias práticas criminosas, como queimar aldeias de indígenas ou roubar e enclausurar as suas populações, sempre com a Cruz de Cristo ao seu lado, já que destruir as religiões locais também fazia parte da sua “missão civilizadora” (e não, não deu a volta ao mundo como muitas vezes se ensina, pois morreu a meio da viagem). Nada disto está nos livros de história escolares, apesar de aparecer escrito, ainda que com alguns eufemismos, em relatos das viagens marítimas do século XVI. Mas está na fanzine do NAU!, projecto multidisciplinar desenvolvido pelo Teatro Experimental do Porto (TEP), que até 29 de Julho se dedica a falar sobre as verdades omitidas da expansão-invasão e do colonialismo portugueses, dentro e fora de um contentor estacionado junto à Praia do Homem do Leme, no Porto. À boleia do programa municipal Cultura em Expansão, e através de um conjunto de actividades de acesso gratuito que incluem conferências, concertos e uma instalação, o TEP antecipa as celebrações dos 500 anos da circum-navegação de Magalhães para “trazer à tona o avesso” da historiografia oficial, uma historiografia exemplarmente e perversamente higienizada, adulterada, romantizada. Como disse a artista e escritora Grada Kilomba em entrevista ao PÚBLICO, a história do colonialismo português é também uma “história de tortura, genocídio, desumanização, exploração patriarcal”. O NAU! começou a germinar há dois anos, quando o TEP levou o espectáculo Casa Vaga ao Festival de Artes Cielos del Infinito, em Punta Arenas, na Patagónia chilena, que fica precisamente junto ao Estreito de Magalhães e onde se encontra uma estátua do navegador, também conhecido lá fora por Ferdinand Magellan. “O director do festival, o Antonio Altamirano, disse-me que seria muito interessante começar a fazer um programa que colocasse o sul do mundo no mapa”, explica Gonçalo Amorim, director artístico da companhia. “Pensámos em aproveitar a circum-navegação e as comemorações que se estão aproximar para conseguir alterar algumas das palavras recorrentemente usadas quando se fala neste assunto: a ideia da ‘descoberta’, dos ‘descobrimentos’. Alterar o paradigma de que o sul do mundo estava mais do que necessitado de civilização. ”O elemento aglutinador do NAU! é o contentor que funciona como uma instalação “imersiva que procura também a emersão”, concebida por Catarina Barros e Cristóvão Neto. Lá dentro, parte do dispositivo está forrado com sacos de especiarias, numa referência às rotas de Fernão de Magalhães. Os rasgos de luz no tecto ensaiam uma aproximação esteticizada aos porões dos navios e o som tenta provocar uma espécie de desequilíbrio, de desfasamento. O que se passa no interior é gravado e reproduzido no exterior do contentor, que não surgiu aqui por acaso. “Partimos do [livro] The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study [de Fred Moten e Stefano Harney], que fala da conteinerização de corpos. A movimentação de pessoas dentro de contentores nunca desapareceu, desde o colonialismo à escravatura, passando pelo tráfico de migrantes”, nota Gonçalo Amorim. “A ideia é fornecer informação ao espectador para contrapor às narrativas que já se tem destas viagens”, acrescenta Raquel S. , também da direcção artística do NAU!. “Por um lado tens esta versão sensorial da instalação, por outro lado tens as conferências e a fanzine. É um conjunto articulado. ” Na fanzine, um dos objectivos foi compilar momentos que passaram “na peneira da história”, assinala Raquel S. “Temos noção do nosso lugar de fala privilegiado — a equipa artística deste projecto é branca, ocidental, com alguns recursos financeiros —mas há aqui uma questão importante que é fazer o papel de olhar para a narrativa que foi escrita e sublinhá-la, riscá-la, fazer saltar a sua parte criminosa. ” E, pelo caminho, desmontar imagens glorificadas que “foram construídas sobre o sangue dos outros. ”O programa de conferências — que acontecem aos fins-de-semana, a partir das 19h, na esplanada improvisada à volta do contentor — é um eixo central deste projecto. A par da fanzine, é também a forma mais clara de perceber como o que aconteceu lá atrás enformou e continua a enformar o presente. “A premissa fundamental é levantar questões normalmente invisibilizadas. Não são questões pessoais. O racismo, por exemplo, afecta muitos portugueses e isso é resultado de 500 anos de colonialismo e desse poder simbólico”, diz Gonçalo Amorim. As conferências arrancam este domingo com Elísio Macamo, professor de estudos africanos na Universidade de Basileia. O título da sua apresentação, Ver Com Um Olho, parte de uma referência a Luís de Camões para problematizar as visões parciais da historiografia portuguesa no que toca à chamada expansão marítima. Ao sociólogo moçambicano seguem-se Jota Mombaça, Marta Lança, Manuela Ribeiro Sanches, Rita Natálio e Mamadou Ba. No dia 28, a artista e investigadora Rita Natálio estreia a performance-conferência Geofagia, em que se propõe a pensar o colonialismo “num sentido mais amplo, a partir do gesto extractivista da terra e dos corpos que são desqualificados de uma noção de humanidade”, adianta ao PÚBLICO. “Pensei na geofagia, ou seja, na ideia de comer terra, que tanto está presente de uma forma mitológica em algumas culturas, nomeadamente indígenas; como na prática da extracção criada pela colonização, continuada hoje; e ainda, no contexto da escravatura, o comer terra como forma de suicídio. ”Activando leituras de textos de autoras e autores como Macarena Gómez-Barris, Elizabeth A. Povinelli ou Fred Moten, a performer quer “assumir” que “as práticas iniciadas na pré-modernidade com o estabelecimento das viagens marítimas” são “a base” do que acontece hoje. “Quando se faz um projecto como o NAU! a ideia não é só relembrar. É pensar aqui, hoje, que o racismo e o extractivismo vêm de um projecto colonial. E pensar o que é, de facto, descolonizar. ”O que significa descolonizar? é, justamente, o mote (e o dilema) da conferência de dia 15, da performer e ensaísta brasileira Jota Mombaça, que colaborou com Rita Natálio no espectáculo Antropocenas (2017). “Descolonizar significa o fim de um certo mundo”, introduz Jota Mombaça. “Significa um trabalho continuado, muito implicado e cuidado para acabar com o mundo construído graças e através da colonização, ou seja, através da destruição de uma série de outros mundos que não puderam vir a acontecer ou que foram interrompidos de acontecer. Mas também graças à actualização do colonialismo: falo do imperialismo, do neoliberalismo, de todas essas forças neo-coloniais que se actualizam no presente em várias partes do mundo. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Jota Mombaça acredita que o debate público sobre estes temas em Portugal “está a querer sair do espaço da negação”, o que é “importante”, mas ainda é dominado e protagonizado, na sua maioria, por pessoas brancas com determinadas posições de poder. “Esse centramento das vozes brancas revela um medo grande de deixar que certas narrativas emerjam, nomeadamente as narrativas negras e afro-portuguesas, e que evidenciem, sem retoques, o que sustenta essa subjectividade branca portuguesa. ”Mais do que os indivíduos, o problema é “uma episteme branca”, nota a performer — e criticar a branquitude “é mais fácil, ou mais possível, de um lugar de branquitude, no sentido em que a branquitude é, no geral, o lugar de fala e de escuta”. Descolonizar, sublinha Jota Mombaça, passa também por “desmontar essas posições”. Perder espaço, dar vazão para que “outros corpos venham à tona”. Como diz a escritora feminista bell hooks, importa “interromper e transformar” a história com novos discursos.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura suicídio homem racismo medo espécie feminista escravatura