Cidade em tempo de muros
Construir uma barreira é a melhor maneira de se criar a ilusão que se está a fazer algo quando não se está verdadeiramente. Quase toda a gente o sabe. E, no entanto, continuamos a querer construir muros. (...)

Cidade em tempo de muros
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Construir uma barreira é a melhor maneira de se criar a ilusão que se está a fazer algo quando não se está verdadeiramente. Quase toda a gente o sabe. E, no entanto, continuamos a querer construir muros.
TEXTO: Muros há muitos. Sempre houve. E continua a haver. É uma aspiração com saída nos dias que correm. E não é apenas Donald Trump que sonha deixar obra feita na zona fronteiriça com o México. Ainda há dias, o partido da extrema-direita espanhola Vox propôs a edificação de um na fronteira de Ceuta e Melilla — onde já existe uma vala —, de forma a conter a entrada de imigrantes oriundos de África. Há-os, aliás, para todos os gostos e bolsas. Na Arábia Saudita, desde 2007, existe um modernaço dotado de sistema de vigia por radar, ao largo da fronteira com o Iraque. Consta que a barreira electrificada de Caxemira na Índia também é requintada. O que separa Israel da Palestina não é para todas as carteiras, custando cerca de um milhão de dólares por quilómetro ao governo israelita. Mas não tem que ser assim. No interior de Pádua, Itália, existe um mais em conta, para isolar um bairro de imigrantes africanos, e em Belfast, na Irlanda do Norte, o que divide protestantes e católicos também tem um ar mais modesto. Em Lima, no Peru, existe um que personifica muitos outros espalhados pelo mundo fora. Começou a ser construído em 1980 e hoje já tem mais de 10 quilómetros, separando um dos bairros mais ricos de um dos mais pobres da capital peruana. Quem habita na margem pobre chama-lhe “muro da vergonha” olhando-o como exemplo supremo de discriminação. Para quem mora do lado rico trata-se apenas de uma questão de segurança. Houve um tempo em que se achou, romanticamente, que Berlim era o fim da indústria dos muros. Mas eles foram germinando. Símbolos da impotência, do fracasso do diálogo, da dificuldade em pensar-se com o “outro”. Vive-se na era de globalização, mas há cada vez mais barreiras. O pretexto é sempre a protecção perante os que não conhecemos bem, os “diferentes”, os que criam “mau ambiente”, e a receita também: muros, estados policiais ou políticas públicas a favor de interesses específicos. No interior das cidades tendem a ser mais refinados. Podem ser menos ou mais visíveis, materiais ou imateriais, mas estão sempre presentes. O propósito é dividir ou apartar. O que não é fácil no mundo de hoje. Até se pode habitar num luxuoso condomínio privado, mas ainda assim o contacto com desconhecidos, de origens, credos, classes, idades, etnias, opções e estilos de vida diversos, é inevitável. Estamos obrigados a coexistir. E, no entanto, passamos o tempo a procurar refúgios de semelhança. E ao fazê-lo privamo-nos de entender, negociar e experimentar, pondo-nos em contacto com a nossa diferença e dos outros, como é inevitável que aconteça num espaço de diversidade como é uma cidade. Quanto mais tempo existirmos num meio uniforme, apenas na companhia de iguais, sem nos expormos às tensões, não nos esforçando por traduzir outras formas de estar, maior será a dificuldade em alcançar modelos de coabitação, seja entre países, cidades ou bairros. Nas últimas semanas muito se falou disso em Lisboa a propósito da vedação projectada para o miradouro do Adamastor ou do possível gradeamento à volta da praça do Martim Moniz. Sim, são fenómenos localizados. Mas os princípios norteadores são os mesmos em quase todo o lado. Expressão de desistência perante problemas de difícil resolução. Lei do simplismo. Proibir em vez de analisar. Demonizar em vez de agregar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nada de novo. Basta perceber a estratégia dos populismos hoje em dia que é construir a imagem clara de um inimigo. Podem ser imigrantes, estrangeiros, os “drogados”, um clube de futebol ou um país. A partir de determinado momento tudo o que acontece se deve a essa entidade hostil. Dessa forma ocultam-se as debilidades próprias e simplifica-se grosseiramente uma realidade complexa. Passa a existir só um foco que encobre tudo o que acontece à volta. No Brasil votou-se em Jair Bolsonaro na expectativa de que resolva os problemas de corrupção e violência urbana, que se associou a um partido, sem se ter em atenção que não só dificilmente isso ocorrerá, como é a própria democracia que se está a pôr em causa. No Adamastor, quem defende a vedação e a estetização do lugar fá-lo na expectativa de erradicar dali os que são considerados indesejáveis, numa visão parcelar da realidade, que não se detém sobre o conjunto de questões que ali se projectam e como se relacionam entre si. E sem essa reflexão nunca se chegará a perceber que tipo de intervenção poderá ser mais satisfatória para uma maioria de pessoas. É aí que surgem os muros. São sempre a solução casuística, nunca a definitiva, porque se intervém sobre os sintomas e não sobre as causas, acabando por se criar a médio e longo prazo mais problemas do que aqueles que se tenta resolver. Construir uma barreira é a melhor maneira de se criar a ilusão que se está a fazer algo quando não se está verdadeiramente. Quase toda a gente o sabe. E, no entanto, continuamos a querer construir muros. É caso para dizer que os piores estão em algumas cabeças mais duras do que betão.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei violência vergonha discriminação
Donald Trump chama "Pocahontas" a Elizabeth Warren, possível vice de Hillary
Insultos em campanha eleitoral, depois de a senadora ter dito que estaria disponível para ser a número dois de Clinton. (...)

Donald Trump chama "Pocahontas" a Elizabeth Warren, possível vice de Hillary
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Insultos em campanha eleitoral, depois de a senadora ter dito que estaria disponível para ser a número dois de Clinton.
TEXTO: Depois de a senadora democrata Elizabeth Warren se ter mostrado disponível para ser a “vice” de Hillary Clinton, Donald Trump chamou-lhe “Pocahontas”, repetindo a piada que já tinha feito na sexta-feira de manhã no Twitter. “Não estou a ser justo… com a Pocahontas”, disse o candidato republicano às presidenciais. Não é a primeira vez que Trump chama Pocahontas a Warren - fá-lo porque a senadora diz ter antepassados nativos-americanos, embora haja cepticismo sobre isso. Trump e Warren digladiam-se frequentemente nas redes sociais ou nos media, note-se. Trump tem tentado mostrar-se mais presidenciável nas últimas semanas, e tem-se esforçado por seguir o teleponto nos discursos que faz. Mas no discurso que fez na sexta-feira à noite na Virginia, para cerca de 6000 pessoas - uma sala que estaria meio cheia, diz o Washington Post -, abandonou-o para fazer a piada sobre a senadora Warren. A plateia reagiu com gritos de guerra de índios e gritou “USA, USA” e “constrói o muro”. Trump garantiu que o muro que quer construir, se for Presidente, para travar a imigração vinda da América Latina, será “um muro muito bonito, tão bonito quanto um muro pode ser”. Este regresso aos discursos improvisados, num momento em que o candidato republicano pretendia mostrar-se mais convencional e abrangente, e depois de ter sido acusado de racismo por causa de declarações a propósito de um juiz hispânico, parece ser uma reacção irritada contra a possibilidade de Elizabeth Warren, senadora do Massachusetts e uma popular figura da esquerda do Partido Democrata, vir a tornar-se escolhida por Clinton para concorrer ao seu lado como candidata a vice-presidente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Warren, que já tinha sido apontada como uma possível candidata à presidência, manteve-se fora da corrida democrata, mas na sexta-feira declarou o seu apoio a Clinton, dizendo-se disponível para ser a sua "número dois", numa entrevista à NBC. No mesmo dia, Clinton e Warren encontraram-se, na residência em Washington da candidata democrata – embora nenhuma das partes tenha feito declarações após o encontro. Desconhece-se ainda se na convenção democrata, entre 25 e 28 de Julho, haverá um ticket exclusivamente feminino – mas há muita especulação. Se Clinton escolher Warren, seria uma forma de agradar aos partidários de Bernie Sanders, que se recusa a sair da corrida, embora não tenha já hipóteses de ser nomeado o candidato dos democratas. A senadora do Massachusetts navega mesmas águas mais à esquerda que Sanders, pelo que tê-la como candidata a vice seria uma espécie de oferta de Clinton aos partidários do seu adversário nas primárias.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra imigração racismo espécie
Novo relatório revela maior dimensão da interferência russa nos EUA
Documento da Universidade de Oxford entregue ao Senado norte-americano diz que houve uma campanha de desinformação para além do Facebook e do Twitter e critica resposta "tardia e descoordenada" das empresas. (...)

Novo relatório revela maior dimensão da interferência russa nos EUA
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.212
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Documento da Universidade de Oxford entregue ao Senado norte-americano diz que houve uma campanha de desinformação para além do Facebook e do Twitter e critica resposta "tardia e descoordenada" das empresas.
TEXTO: Um novo relatório feito a pedido do Senado norte-americano diz que a campanha de interferência russa antes, durante e depois das eleições presidenciais nos EUA, em 2016, foi mais abrangente do que se pensava. Segundo os autores do estudo, os responsáveis pela campanha de desinformação criaram contas e páginas em todas as principais redes sociais, e não só no Facebook e no Twitter, "para beneficiarem o Partido Republicano – e especificamente Donald Trump". O relatório, feito pelo Projecto de Propaganda Computacional da Universidade de Oxford e pela empresa de análise de redes sociais Graphika, vai ser divulgado até ao final da semana pela Comissão de Serviços Secretos do Senado, em conjunto com outro estudo cujo conteúdo não é ainda conhecido do grande público. As conclusões do relatório da Universidade de Oxford e da Graphika foram avançados esta segunda-feira pelo jornal Washington Post. No centro da campanha de interferência, segundo o relatório, está a empresa russa Internet Research Agency, com sede em São Petersburgo. Esta empresa e 13 cidadãos russos foram acusados formalmente pelo Departamento de Justiça norte-americano, em Fevereiro passado, de interferirem de forma criminosa nas eleições de 2016. O estudo da Universidade de Oxford e da Graphika foi feito a partir de milhões de mensagens, vídeos e fotografias publicados até meados de 2017 e enviados ao Senado pelo Facebook, Twitter e Google. A partir daí, os investigadores puderam também avaliar o alcance da campanha de desinformação em serviços como o Instagram (detido pelo Facebook), o Youtube e o Google+ (da Google), mas também no Tumblr e no Pinterest, por exemplo. "O que é evidente é que as mensagens procuraram beneficiar o Partido Republicano – e especificamente Donald Trump", dizem os autores do relatório, segundo o Washington Post. "Trump é referido na maioria das campanhas direccionadas a eleitores conservadores e da direita, com as mensagens a encorajarem estes grupos a apoiarem a sua campanha. Os grupos que poderiam opor-se a Trump recebiam mensagens destinadas a confundi-los, distraí-los e, em última análise, a desencorajá-los de votarem. "Segundo o Washington Post, o relatório diz que as mensagens direccionadas aos eleitores conservadores centravam-se em temas como o controlo das armas e a imigração, enquanto as mensagens direccionadas ao eleitorado afro-americano, por exemplo, tinham como objectivo "minar a sua fé no processo eleitoral e disseminar informação enganosa sobre como votar". O relatório acusa também as gigantes norte-americanas de tecnologia de terem dado uma resposta "tardia e descoordenada" quando já havia sinais de que estava em curso uma campanha de desinformação nas redes sociais. Os autores do relatório dizem que a informação entregue ao Senado pelas empresas, em meados de 2017, contêm provas de "descuido" por parte dos russos, incluindo o uso de rublos para a compra de anúncios e números de telefone e moradas na Rússia – informações que, segundo o relatório, seriam suficientes para fazer soar os alarmes nas empresas norte-americanas antes e durante as eleições de 2016. Os autores do estudo dizem que as 20 páginas de Facebook mais populares geridas pela empresa russa ("Being Patriotic", "Heart of Texas", "Blacktivist" e "Army of Jesus", entre outras) geraram 39 milhões de "likes", 31 milhões de partilhas e 3, 4 milhões de comentários. No Instagram a empresa russa chegou a gerir 133 contas. Apesar de ser responsável pela divulgação do relatório, a Comissão de Serviços Secretos ainda não disse se concorda com as conclusões. Tal como qualquer outra comissão do Senado ou da Câmara dos Representantes, a Comissão de Serviços Secretos é constituída por senadores do Partido Republicano e do Partido Democrata, e é liderada por um senador republicano porque é este o partido que está em maioria no Senado. A investigação desta comissão é apenas uma de muitas que foram abertas no ano passado sobre as suspeitas de interferência russa nas eleições de 2016 nos EUA – também a Câmara dos Representantes e o Departamento de Justiça, através da equipa do procurador especial Robert Mueller, estão a investigar essas suspeitas. Mas a comissão do Senado tem actuado com mais colaboração entre os membros dos dois partidos do que a comissão da Câmara dos Representantes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Março, a Comissão de Serviços Secretos da câmara baixa do Congresso norte-americano, liderada pelo republicano luso-descendente Devin Nunes, deu por terminada a sua investigação, concluindo que houve interferência russa, mas que essa interferência teve como objectivo semear a divisão, e que não há indícios de conluio entre as duas partes. Por seu lado, a comissão do Senado não só se mantém aberta, como os seus membros disseram, em Julho, que as agências de serviços secretos do país têm razão quando acusam a Rússia de interferir em benefício de Trump. Uma das consequências negativas para a Casa Branca da vitória do Partido Democrata nas eleições para a Câmara dos Representantes, no mês passado, é que vários congressistas já prometeram reabrir a investigação que foi dada como concluída pela maioria republicana em Março passado.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Descobrimentos, radicalismos e museu
Pretende-se agora que a mera palavra “descobrimentos” faz de quem a usa cripto-colonialista ou “luso-tropicalista”. (...)

Descobrimentos, radicalismos e museu
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pretende-se agora que a mera palavra “descobrimentos” faz de quem a usa cripto-colonialista ou “luso-tropicalista”.
TEXTO: Referi-me antes neste jornal ao que penso sobre um futuro “Museu das Descobertas”, que preferiria chamar “Museu da Viagem”, não por mera questão de nome, mas por verdadeiro programa alternativo de conteúdos (v. Um museu, muitos nomes: a narrativa de Portugal e o mundo, PÚBLICO, 18. 4. 2018). Não pensaria voltar ao assunto, até porque estou convencido que nada acabará por ser feito. A sucessiva troca de argumentos sobre o assunto faz-me porém voltar ao assunto, sobretudo pela crescente dimensão ética e geracional que se pretende existir, distinguindo entre “novos” (sem ideologia, quimicamente puros, porque académicos de raiz anglo-saxónica), sensíveis à denúncia do colonialismo, observado distantemente pela óptica “pós-colonial”, e “velhos” (de esquerda ou de direita, tanto faz), agentes activos da luta anticolonial em muitos casos, mas presos, quais títeres, aos mitos do colonialismo ou aos seus sucedâneos. Voltando ao assunto, tenho necessariamente de começar pelo princípio. No meu tempo de Instrução Primária aprendíamos que tínhamos em Portugal uma “história de santos e heróis”, acrescentando o livro de textos logo de seguida que era “a mais bela história do mundo”. E tudo se fazia para nos inculcar, desde crianças, a ideia de que tivemos uma “idade de ouro”, a dos Descobrimentos, fautora de um Império (ainda hoje a praça fronteira aos Jerónimos leva esse nome), de que nos devíamos orgulhar, pois seríamos um País pluricontinental, “do Minho a Timor”. Todo o meu crescimento, desde que pude começar a pensar por cabeça própria, foi feito contra esses mitos, nacionalistas e coloniais. Aquele não era de todo o meu País, nem o País dos que me rodeavam ou mais admirava. Estes eram, antes de tudo, os “ventres ao sol” ou os “famélicos da terra”, ou seja, era o País dos pobres e da injustiça social que via grassar à volta. Também era o País dos muitos que, mesmo ricos, faziam naquele presente, como tinham feito em passados seculares e milenares, a opção pelo progresso social, dentro dos limites epistemológicos de cada época e das vinculações de classe que naturalmente os condicionavam. Era o País da nobreza patriótica, mas terra-tenente e déspota, da Revolução de 1383-85; era o País da burguesia democrática, mas colonial, da Revolução Republicana (saudada por exemplo por Lenine como o primeiro e melhor exemplo de revolução burguesa patriótica do século XX); era até o País do “general coca-cola”, no seu arrastão popular contra a Ditadura. Sentia portanto que tinha, e continuo a sentir que tenho, um País, uma Pátria, onde se conjugam plataformas interclassistas de defesa do nosso modo de vida, da nossa independência contra o domínio estrangeiro, seja este representado por políticos e exércitos, seja por capitalistas e multinacionais. Declarava-me, e declaro-me hoje também, patriota – e uso a palavra sem temores. Pretende-se agora que a mera palavra “descobrimentos” faz de quem a usa cripto-colonialista ou “luso-tropicalista”. Até os vereadores comunistas da Câmara Municipal de Lisboa são disso acusados porque propuseram festival literário que tivesse os “descobrimentos” como tema agregador em algum ano futuro. Dir-se-á que não se trata do mesmo Partido que lutou consequentemente contra a Ditadura, considerando a sua queda indissociável do fim do colonialismo. Extraordinária ironia, quando todos sabemos bem onde param hoje a maior parte dos que no imediatamente pós-25 de Abril de 1974 clamavam “nem mais um soldado para as colónias” (palavra de ordem do MRPP, especialmente dirigida contra os partidos da esquerda e o MFA). E o ponto é mesmo este: o do regresso despudorado desse “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista” que então combatíamos activa e até fisicamente. Ora, sendo certo que se trata de fenómeno antigo (“esquerdismo, doença infantil do comunismo”), nem por isso ele é menos irritante quando resvala para acusações de ordem moral ou ética. Claro que o valor semântico das palavras evolui com o tempo e é substancialmente diverso no espaço (“nigro/negro”, “black/preto”, “collaborateur/colaborador”. . . ). E neste sentido admito que o termo “descobrimentos”, e bem assim o seu sucedâneo “descobertas”, deva ser usado criticamente. Trata-se, além do mais, de termo polissémico. Alberga-se nele a chamada “epopeia dos descobrimentos”, grandíloqua e de “projecto nacional”, tal como contada pelo Estado Novo, quando na verdade os “descobrimentos” foram antes do mais um processo de desenvolvimento do capitalismo mercantil, transportado então para a escala mundial. Mas, sendo isto, foram também condição de desenvolvimento científico e de efectiva “descoberta” recíproca. E se os “descobrimentos” conduziram à exploração e até escravização dos povos colonizados, sobretudo onde (ou a partir de onde) tal era também já praticado pelos poderes dominantes locais, a verdade é que não se traduziram em factor de enriquecimento do povo português. Bem pelo contrário: acentuou-se a pobreza congénita, secular, senão milenar, dos portugueses ou de quem neste território viveu e vivia. E foi a pobreza talvez o mais original traço da nossa colonização, aquele que obrigou a promover na prática, e depois por decreto real, o cruzamento com os povos colonizados. Feios, porcos e maus éramos – tanto como quaisquer outros. Em certos casos até mais em qualquer destas dimensões. Mas éramos também mais pobres – e isso fez, fazia e faz toda a diferença, até no plano da moral e dos costumes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Todavia, mais do que patriota, como me afirmei acima, sinto-me tributário da terra. E estou convicto que esta é a mais fecunda aproximação do passado, especialmente no caso do espaço que veio a ser fixado como País/Estado/Nação a que chamamos Portugal. Somos aquilo que a nossa posição geográfica de Fim de Mundo fez de nós; somos o produto de uma espessa acumulação de presentes, de hibridizações constantes, desde a mais remota antiguidade até ao presente. Faz hoje sentido contar esta história de trajectos e naufrágios, no sentido literal e no sentido metafórico? Creio que sim, porque todos os exercícios de memória merecem sempre a pena, desde que feitos de forma pluralista, com o maior número possível de pontos de vista (incluindo, portanto, dimensões como a da denúncia dos mitos fascistas sobre os “descobrimentos” e de acentuação da exploração e escravatura dos povos colonizados). Mas creio sobretudo que tal narrativa e projecto de museu vale a pena, tal como tenho dito e redito, dentro de uma óptica mais ampla, a da “Viagem” (subsumindo dimensões como as da Emigração e da Língua), a do permanente dar e receber de quem se constitui precisamente pela acumulação e cruzamento de “desvairadas gentes”, sejam elas selvagens próximo-orientais e norte-africanos, bárbaros do setentrião europeu, civilizados árabes, escravos africanos. . . ou eslavos de olhos azuis, imigrantes do Leste europeu. Entendo finalmente que o projecto que fica enunciado não se encontra, nem poderá vir a encontrar, em nenhum museu já existente e por isso faz falta um novo. E de museu se deve tratar, não de arquivo/centro de estudos ou então de luna-parque comercial. Desde que existem, os museus têm sido combatidos e a sua morte foi já inúmeras vezes anunciada. Foram, na origem, combatidos pela aristocracia do Antigo Regime, quando a Revolução Francesa inventou o conceito de cidadania e colecções outrora fechadas passaram a ser de acesso livre; são hoje combatidos por muitos capitalistas como impedimento ao desenvolvimento do mercado, por se reclamarem ser entidades sem fins-lucrativos, postas ao serviço da emancipação cidadã. O combate que lhe fazem constitui a melhor garantia da sua utilidade e perenidade.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Orbán visita Netanyahu: a estranha aliança entre radicais europeus e Israel
A Hungria apoia Israel dentro da União Europeia, mas isso obriga o primeiro-ministro israelita a ignorar o antisemitismo no país. (...)

Orbán visita Netanyahu: a estranha aliança entre radicais europeus e Israel
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.02
DATA: 2018-07-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Hungria apoia Israel dentro da União Europeia, mas isso obriga o primeiro-ministro israelita a ignorar o antisemitismo no país.
TEXTO: Israel recebeu nesta quarta-feira o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que visita o país durante dois dias. Mas a imprensa israelita tem publicado artigos sobre o Governo de Orbán e as suas decisões cada vez mais anti-democráticas e, pior, anti-semitas. Mas há também artigos a defender que Israel tem o direito de fazer alianças tácticas, como os outros países, ainda por cima quando tem um ambiente hostil da parte dos seus vizinhos. As vozes críticas usam sobretudo dois argumentos: que a Hungria de Orbán é cada vez menos democrática, e que este usou uma campanha anti-semita para ganhar as últimas eleições. “As circunstâncias únicas de Israel, incluindo de segurança, levam a que procure desenvolver a maior rede de apoios possível”, disse o antigo embaixador americano em Israel Daniel Shapiro, citado pela revista americana Foreign Policy. “Mas penso que seria bom evitar manchar a sua identidade democrática ao aliar-se menos com o clube das democracias e mais com esta coligação muito diferente. ”Outra questão é o crescente anti-semitismo da Hungria, a que Orbán não tem sido alheio. O primeiro-ministro elogiou o líder húngaro aliado da Alemanha nazi Miklós Horthy (“um estadista excepcional”); uma sondagem diz que dois terços dos judeus húngaros reconhecem que há um problema de anti-semitismo no país; Orbán fez uma campanha apresentando o sobrevivente do Holocausto George Soros como alguém que quer destruir a Hungria e os seus valores cristãos, usando imagens como a do banqueiro judeu que quer dominar o mundo – um clássico dos ataques anti-semitas. Num episódio revelador, o embaixador israelita em Budapeste fez um apelo a Orbán para parar a campanha contra Soros, a pedido da liderança da comunidade judaica da Hungria, incomodada pelo tom anti-semita da campanha. Mas o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel não demorou a desautorizar o diplomata, clarificando num comunicado que Israel também critica Soros. Soros "põe em perigo os governos eleitos de forma democrático em Israel ao dar verbas a organizações que difamam o Estado judaico e tentam negar o seu direito a defender-se a si próprio”, diz a declaração. Soros financia organizações da sociedade civil que lutam por mais abertura e respeito dos direitos dos palestinianos e árabes israelitas. Há quem veja aqui um padrão: desvalorizar um certo anti-semitismo em troca de apoio ao Estado de Israel, aponta a Economist. Netanyahu também permitiu uma cláusula numa declaração conjunta com a Polónia (que terminou a polémica sobre uma lei que criminalizava o uso da expressão “campos polacos”) sobre o papel dos polacos no Holocausto que é, segundo o museu Yad Vashem de Jerusalém, “factualmente incorrecta”. A declaração dos líderes polaco e israelita diz que o governo polaco no exílio na altura da ocupação alemã da Polónia tinha “criado um mecanismo de ajuda sistemática e apoio ao povo judaico”. Os historiadores israelitas dizem não só que o governo no exílio fez pouco pelos judeus, e que a resistência polaca não só não ajudou os judeus, mas por vezes perseguiu-os. O primeiro-ministro israelita “tomou nota”, mas não alterou a declaração. “Algo que parece estranho para Netanyahu”, nota a revista britânica The Economist, já que ele é “filho de um historiador”. Mas Netanyahu tem um interesse especial em manter boas relações com a Polónia – e com a Hungria também. Numa União Europeia muitas vezes crítica de Israel (que chama a atenção para a existência de colonatos judaicos em território ocupado, etc. ), estes países não partilham estas posições. Netanyahu, diz a Economist, vê o chamado Grupo de Visegrado – Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia – como os seus principais aliados na Europa. A Hungria tem ajudado a evitar decisões contra Israel na União Europeia (o maior parceiro comercial do Estado hebraico), por exemplo na discussão sobre se os produtos importados vindos dos colonatos têm de mencionar a sua origem. Na ONU absteve-se na resolução criticando Trump por reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, e também no pedido da Comissão de Direitos Humanos para ser formada uma comissão de inquérito à violência nos protestos de Gaza, em que militares israelitas mataram mais de 130 pessoas acusando-as de tentar passar para Israel para levar a cabo ataques (nenhuma conseguiu passar). Responsáveis e comentadores defendem o direito de Israel ter alianças baseadas em partilhas de valores e outras alianças partilhadas em interesses comuns ou tácticas. “Israel não tem muitas vezes escolha a não ser manter ligações com regimes desagradáveis ou autoritários”, disse Jonathan Schanzer, vice-presidente da Fundação para a Defesa das Democracias, à agência noticiosa JTA (Jewish Telegraphic Agency). “Este tipo de alianças não devem ser confundidas com a que existe com os EUA, assente em valores. ”Críticos desta política do Estado hebraico – como o jornalista do Ha’aretz Chemi Shalev – notam algumas semelhanças entre a Hungria de Orbán e Israel de Netanyahu. “Ambos desejam um iliberalismo etnocêntrico. Ambos partilham um desdém em relação a valores liberais, especialmente os admirados pela grande maioria dos judeus americanos. Ambos agitam contra imigrantes. Ambos são inimigos figadais da imprensa livre. Ambos têm uma afinidade com Putin e ambos têm ligado o destino dos seus países a Donald Trump”. Esta tendência de aliança entre partidos populistas europeus já começou há muitos anos, quando em 2008 o político anti-islão holandês Geert Wilders visitou Israel meses depois de ter provocado polémica com o seu filme Fitna. A relação teve os seus altos e baixos, mas Wilders foi apenas um de vários líderes a mostrar anti-semitismo tendo ao mesmo tempo uma posição pró-Israel, justificada pelo que consideram ser uma ameaça comum: o islão. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Outros líderes de partidos de direita racista, xenófoba, anti-imigração ou populista da Europa têm visitado Israel, embora nem sempre tenham sido recebidos pelo Governo – em 2011, Filip Dewinter, antigo líder do partido belga Vlaams Belang, que questionou a extensão do Holocausto e glorificou os nazis; em 2016, Heinz-Christian Strache do austríaco FPÖ, partido que não tem conseguido negar convincentemente acusações de glorificação do nazismo e anti-semitismo; no mesmo ano, o líder da italiana Liga, Matteo Salvini. Tanto Strache como Salvini fazem hoje parte das coligações no Governo na Áustria e em Itália. O contexto hoje é diferente do de 2008, quando Wilders fez a sua visita, sublinha o antigo embaixador Shapiro: “Uma onde de iliberalismo ameaça o mundo democrático, da América à Europa passando também por Israel – e assim, pode haver tentações de alinhar com aqueles que parecem estar a subir: Trump, Putin, Orbán, Duterte” (o Presidente das Filipinas também vai visitar Israel). “O próprio distanciamento de Trump dos seus aliados democráticos e as expressões de apoio a autocratas encorajam, sem dúvida, esta tendência. ”O jornalista do Ha’aretz Anshel Pfeffer, que esteve na Hungria para uma série de artigos sobre Orbán, conta o que um rabino lhe disse: “O mundo está a tornar-se um lugar menos liberal, um lugar onde os que não são judeus estão a esquecer o Holocausto. Os judeus precisam de uma estratégia, para não acabarmos outra vez por ser vítimas. Isso quer dizer ser uma nação forte alinhada com outras nações fortes. Não com as vítimas. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
"Não é um papel. Quero ser o tipo. Vou com ele”
Entre jouer la comédie e encarnar personagens, Vincent Lindon não brinca: escolhe “encarnar”. (...)

"Não é um papel. Quero ser o tipo. Vou com ele”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Entre jouer la comédie e encarnar personagens, Vincent Lindon não brinca: escolhe “encarnar”.
TEXTO: Telefonema de um amigo a Vincent Lindon, antes de almoçarem, tal como contado em Paris num dia de Janeiro:“ —Tudo bem?— Sim, porquê?— Porque é que és sempre esses tipos, porquê sempre esses filmes? Tem cuidado, ocupa-te de ti. ”E depois, aos jornalistas, Vincent — que já recebera o prémio de interpretação de Cannes, por A Lei do Mercado, e estava à beira de ser distinguido com os Césares, os prémios da indústria cinematográfica francesa, pelo mesmo filme — rematava: “É verdade, fico com dez por cento de cada personagem em mim. Quando alguém testemunha um ambiente terrível, isso ficará para sempre no seu inconsciente. É como o big bang. Mesmo se somos actores e estamos a interpretar, é com os nossos olhos que vemos, é com os nossos ouvidos que ouvimos. E quando regresso a casa tudo fica na minha memória para sempre. ”Isto, por outras palavras, e referindo-se a Thierry, a personagem do desempregado de A Lei do Mercado, o belíssimo filme de Stéphane Brizé: “Não foi difícil interpretar um tipo que sofre. O que é difícil é tudo em volta, carregar o problema do desemprego, o que é difícil é mesmo os lugares onde filmámos, as pessoas que conhecemos — porque é difícil perceber que se é privilegiado. ”Uma coincidência reveladora: nesse dia de Janeiro em que falava à imprensa em Paris, Vincent, 58 anos, promovia na TV francesa o seu último filme, Les Chevaliers Blancs, de Joachim Lafosse — história de associações humanitárias e de adopção de crianças africanas vítimas da guerra. Num telejornal nacional, era recebido como herói moral do cinema francês. A sê-lo, é o heroísmo do homem normal, melancólico e a vencer amargas vitórias — se se recordarem de Welcome (2009), de Philippe Lioret (professor de natação, ajudava um imigrante curdo a atravessar o canal de França para Inglaterra), ou Les Salauds, de Claire Denis (marinheiro, vinha de longe, como um vingador, para resolver os problemas da família, que era o verdadeiro problema). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O heroísmo de Lindon — Brizé fala dele como representando a rectidão do homem normal, e é por isso também que tanto evoca, como intérprete, uma tradição extinta dos actores que eram blocos unos de tensão e valores, tudo isso sem palavras — é angustiado. Quase que se diria: banhado por um sentimento de culpa, porque antecipa o mal-estar do regresso a casa. “Em todo o mundo é o mesmo problema. A diferença entre ricos e pobres é cada vez maior. Quando chegamos ao fim do nosso trabalho e regressamos a casa, regressamos ao nosso mundo, é complicado para a nossa consciência. Somos como voyeurs. Aproveitamo-nos do mundo. Por isso é importante deixar uma memória de como os nossos contemporâneos vivem. Daqui a 20 anos alguém vai dizer depois de ver A Lei do Mercado: “Assim era a França. ” A minha história é pequena, é ficção. Mas a grande História é o que está atrás: a vida em França. Todos os bons filmes são aqueles que fazem a transição entre as páginas da cultura e as páginas da sociedade. ”Entre jouer la comédie e encarnar personagens, Vincent não brinca: escolhe “encarnar”. “Não sou actor suficientemente bom para interpretar. Entre personagem e actor deve haver um acordo: ‘Eu dou-te o meu corpo e o meu melhor para te encarnar. O que é que me dás? O que é que eu tiro de ti que me dá um pouco a tua vida?’ É uma troca. É um instrumento pessoal. Temos de estar em harmonia com a personagem. Não é um papel. Quero ser o tipo. Vou com ele. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra lei cultura homem corpo desemprego imigrante
A fábula de uma luta de classes que já acabou
A recordação dum país, a Itália, a recordação dum cinema que interpretou esse país: Feliz como Lázaro, de Alice Rohrwacher. (...)

A fábula de uma luta de classes que já acabou
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-13 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181013140819/http://publico.pt/1846734
SUMÁRIO: A recordação dum país, a Itália, a recordação dum cinema que interpretou esse país: Feliz como Lázaro, de Alice Rohrwacher.
TEXTO: É um mundo estranho, aquele para onde Feliz como Lázaro nos convoca. É a Itália, indubitavelmente, a Itália que se reconhece da realidade, e também a Itália que se reconhece de algumas memórias do cinema italiano, mas é como se sobre essa Itália Alice Rohrwacher lançasse um manto de fantasia e alegoria, e tudo se passasse num lugar à parte, criado pelo cinema e para o cinema, entre os contos de fadas clássicos (até um pouco Disney reflectido num espelho fosco, como a personagem da Marquesa interpretada por Nicoletta Braschi) e, por exemplo, as peculiares fábulas de Pasolini, como Passarinhos e Passarões (do protagonista Lázaro, a cargo do não-actor Adriano Tardioli, Rohrwacher extrai um tipo de ingenuidade vitalista que não fica longe de lembrar Ninetto Davoli). Mas é bem a Itália que se encontra no fim destes cruzamentos todos, e na parte final do filme, já na cidade, vemos mesmo alusões a um das questões candentes da cena política italiana contemporânea, a presença dos emigrantes africanos ou árabes. Seja o espectador, então, bem-vindo à aldeia de Inviolata (nome que é, como se costuma dizer, “todo um programa”), onde os habitantes, “operários e camponeses” (como no título do filme de Straub e Huillet), são mantidos num suave cativeiro, cortado do resto do país, pelos dotes “prestidigitadores” da Marquesa Alfonsina, que assim os mantém docilmente ao seu serviço. Depois, o filho dela, Tancredi, quer ir conhecer a cidade, e com a ajuda do cândido Lázaro congemina um plano de fuga – e aí começa a aventura. Realização: Alice Rohrwacher Actor(es): Adriano Tardiolo, Agnese Graziani, Luca Chikovani, Nicoletta BraschiQue é muito diferente de O País das Maravilhas, o precedente filme de Alice Rohrwacher, também a sua introdução ao público português. História de uma família, de evidentes inspirações autobiográficas, e já piscando o olho a um realismo mágico, o mundo de O País das Maravilhas dá lugar, em Feliz como Lázaro, a outra coisa. “Não gosto de ficar no que já tenho”, diz Alice ao telefone com o Ípsilon, “para mim o cinema como uma pesquisa contínua tem que se ir sempre um passo adiante rumo ao desconhecido”. Para ela, desde o princípio que o ponto fulcral passava pelo encontro entre a realidade e a fantasia, o realismo e o conto de fadas, e narra-nos o estímulo essencial da sua visão: “Perto de minha casa há um jardim público onde há uma escultura peculiar: uma casa, completamente realista, onde inclusive se pode entrar, mas que está suspensa na diagonal; é assim que penso no filme, um ‘conto social inclinado’, que é também uma maneira de desassossegar o espectador”. Se pensamos no realismo mágico da literatura, ou nas alegorias semi-fantasiosas no centro de muitos dos filmes em que Otar Iosseliani contou a história da Geórgia, pensamos também, obviamente, na rica tradição das “fábulas sociais” que encheram o cinema italiano, de de Sica a Pasolini. “Não há uma inspiração precisa”, diz, “mas há uma inspiração profunda”. Há um reconhecimento, o reflexo duma memória – “não pretendo deliberadamente inscrever-me numa tradição, mas fazendo essa tradição parte da minha memória, é óbvio que ela acaba por aparecer, como uma recordação”. Mas, precisa, é “a recordação dum país, a Itália, e a recordação dum cinema que interpretou esse país e dele construiu uma imagem que lhe sobrepôs”. Justamente, a Itália, e a Itália contemporânea. Na violência discreta mas intrínseca (ou simbólica), nas alusões à organização social, aos fenómenos da imigração, Feliz como Lázaro favorece uma aproximação à actualidade, sempre em espelho distorcido. Quando Alice escreveu o argumento, há dois anos, ainda não havia Salvini no governo mas agressividade social (mormente face à imigração) já se verificava. “Foi por isso que quis centrar o filme na migração doméstica, algo que sempre aconteceu em grande escala na Itália, e é um fenómeno que a Marquesa, que personifica uma espécie de ‘grande enganadora’, esconde do seu povo”. “É um filme”, continua, “sobre as prisões que existem hoje, prisões mentais, não evidentes, como o rio que os camponeses têm medo de cruzar, e um filme que tenta reagir contra ‘o medo do outro’, que está na raiz da violência total e assustadora que verificamos hoje em Itália”. Há qualquer coisa na Marquesa, na sua “prestidigitação” vulgar e barata, que lembra a televisão – esse velho tema que assombra o cinema italiano desde os anos 70 (quando apareceram as cadeias privadas de Berlusconi), tão bem estampado nos últimos Fellinis, em quase todo o Moretti, em muito do Bellocchio. Mesmo em O País das Maravilhas havia essa presença, nefasta, da televisão. De modo que perguntamos directamente: a Marquesa é a televisão? Alice também responde directamente: “sim, representa uma posição que na realidade é desempenhada pela televisão”. É o engano, a manutenção dum statu quo, mas também a legitimação dos sentimentos, como se “o único drama legítimo” fosse o “drama da burguesia”. A televisão italiana, diz, “não existe para legitimar os sentimentos dramáticos dos camponeses, existe para os fazer espectadores dos dramas da burguesia”. E dá um exemplo de uma cena do filme em que pensou em expor isto visualmente: “a cena em que a filha de Nicola foge, com gestos e gritos muito dramáticos, a que os camponeses assistem como se estivessem a ver televisão”. São os camponeses prostrados perante a única dramaturgia aceitável, a da burguesia. O que dá, finalmente, um retrato de uma Itália bastante feudal. É nesse feudalismo que Alice reconhece, ainda hoje, o seu país? “Sim, estou convencida de que sim. Quer dizer, a luta de classes já acabou, e acabou porque alguém a ganhou – foram as Marquesas”. E a luta foi ganha, continua, “pela neutralização do próprio espírito de classe, pela desactivação de qualquer aspiração colectiva, trocadas por um amontoado de aspirações individuais”. Frisa que, no filme, mesmo as personagens mais simpáticas à câmara (Lázaro, Tancredi) agem em nome e interesse próprio, não há altruísmo: “Lázaro não vai ao banco buscar dinheiro para as pessoas que precisam dele, Tancredi chora por si, não pelos outros”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. De algum modo, todo este risco de sobrecarga simbólica entra em diálogo com a constante oscilação do tom do filme – do real para a fantasia e vice-versa, do humor para a gravidade e em caminho contrário. “É como ser um funâmbulo”, diz Alice, “andar sobre um fio correndo o risco de cair”. Inclusive, o risco de cair no ridículo. É assim que concebe o seu métier: “Queria voluntariamente chegar a um ponto de contacto com o ridículo, mas parar um passo antes; aliás, com o trágico também, chegar lá perto mas ficar a um passo”. Foi a ideia que a guiou, e que partilhou com a equipa com os actores. Os actores, que configuram outro encontro, na coexistência de profissionais e amadores sem experiência prévia. “A luta do cinema”, diz Alice, é sempre “feita de encontros perigosos e difíceis”. Entre o argumento e a sua transfiguração pela mise en scène, mas também “entre pessoas muito diferentes, no perfil e na experiência”, que é o que gosta de fazer acontecer quando junta profissionais a não-actores. Nem Adriano Tardioli (que encontrou na escola técnica, e foi difícil de convencer a trabalhar no filme) nem Luca Chikovani (que, conta Alice, é uma “estrela do YouTube italiano, estava habituado a dirigir-se a si próprio mas totalmente inexperiente na posição de ser dirigido por outrem”) possuíam qualquer experiência prévia. Pelos seus rostos e pelas suas presenças passa também muita da estranheza deste filme e deste mundo, desta dramaturgia alegórica que corre alegremente, e corajosamente, o risco de “cair” – um risco que, valha a verdade, não se vê com muita frequência.
REFERÊNCIAS:
Os populismos do nosso tempo
Infelizmente, há mais confusão do que certezas sobre a natureza do fenómeno a que chamamos populismo. (...)

Os populismos do nosso tempo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Infelizmente, há mais confusão do que certezas sobre a natureza do fenómeno a que chamamos populismo.
TEXTO: Não há dia que passe sem que ouçamos a palavra “populista”. Trump é “populista”. Os "coletes amarelos" em Paris são “populistas”. O "Brexit" só podia ter existido em resultado de uma campanha de desinformação “populista”. É verdade que existe hoje um mal-estar na democracia que não existia há poucos anos atrás. Mas se queremos perceber as causas do que se está a passar diante dos nossos olhos em Paris, Washington, Brasília ou Manila, temos que começar por fazer luz sobre a natureza do fenómeno a que chamamos populismo. Infelizmente, há mais confusão do que certezas neste momento. Há dias, o jornal Guardian avançava com a seguinte definição: “Um partido é considerado populista se apresenta a vida política como uma luta entre uma massa de cidadãos virtuosos e uma elite mal-intencionada e venal. Os partidos populistas, obviamente, assumem-se como representantes do bem ('nós', 'o cidadão comum') contra o mal ('eles', 'as elites'). "Uma definição mais vaga era difícil. Este mínimo denominador comum populista é insuficiente, e aumenta a confusão. Não explica, por exemplo, se os “populistas” são os políticos que usam a oposição entre “nós” e “eles”, se os eleitores que neles votam, ou se ambos. Daqui à vilipendiação daqueles que insistem em votar de forma “errada” (os “deploráveis” de Hillary Clinton) é um pequeno passo. A falta de precisão e clareza pode levar a que se ignorem as causas do atual descontentamento com as nossas democracias. Na realidade, se continuarmos a ignorar a natureza do fenómeno político mais importante do nosso tempo, o mais provável é que acabemos por agravar os problemas que lhe deram origem. A única alternativa realista é tentar compreender porque é que as pessoas insistem em protestar e votar nos candidatos “errados” ou “perigosos”. Para isso, é necessário perceber a natureza do populismo. O populismo não é uma cor partidária, como a ideologia. Dizer-se que “o partido A é populista” ou que “o partido B não é populista” é um erro, tal como é espúrio contar o número de vezes que o político C usa a palavra “povo”. O populismo é uma forma de fazer política. Significa isto que todos os partidos e políticos, de A a Z, podem comportar-se de forma populista, dependendo das circunstâncias. E quanto melhor percebermos como o populismo funciona, melhor perceberemos as suas causas e se devemos estar preocupados. Um político age de forma populista se falar às emoções e aos interesses de um eleitorado que se sinta, por exemplo, indignado com a crescente desigualdade de distribuição de rendimentos. É injusto que assim seja, e basta que alguém o diga com todas as letras para levar as pessoas que se sentem injustiçadas a sair de casa para votar ou protestar. Mas a lógica populista não acaba aqui. Se acabasse, nada distinguiria populismo de movimentos como o Black Lives Matter e a sua justa indignação contra o racismo. O populismo nasce daqui, mas só se desenvolve quando se decide apontar as responsabilidades por esta situação a um certo grupo. Quem este grupo é ao certo não interessa. O que importa é assacar a responsabilidade, quando não mesmo a culpa, quer seja à caravana de emigrantes ou à elite capitalista, pelos problemas reais que as pessoas enfrentam no seu dia-a-dia. Os “emigrantes” ou os “ricos” são alvos fáceis porque ambos podem ser vistos como rivais na procura de emprego, no acesso à saúde, ou no aumento do rendimento: é porque “eles” ficam com tudo e não sobra nada que “nós” estamos a passar mal. É neste ponto que o populismo ameaça a democracia. Se nos opormos a “eles” se torna mais importante do que sabermos o que “nós” queremos vir a ser, a cooperação e o compromisso tornam-se muito difíceis, se não mesmo impossíveis. Paradoxalmente, é exatamente aqui que reside a virtude do populismo. Democratas e populistas falam a mesma linguagem. Ser-se democrata é falar e agir em nome do “povo”. É igualmente em nome do povo, um novo povo a construir a partir do cumprimento das promessas democráticas de igualdade e respeito próprio, que um político age de forma populista. Nem uns nem outros são saudosistas. Ambos falam ao futuro. Mas se os democratas aceita projetos coletivos a médio e longo prazo, à luz dos quais tornam aceitáveis sacrifícios “aqui e agora”, os populistas propõem-se cumprir as promessas democráticas num futuro imediato, com fórmulas simplistas quando não demagógicas. Isto sucede porque a indignação, o desespero, por vezes mesmo a inveja, alimentam-se de circunstâncias reais da vida de todos os dias. Este sofrimento vive no presente, não nas memórias de erros passados ou oportunidades perdidas; promessas a longo-prazo, sobretudo as tecnicamente muito complexas, são vistas com desconfiança. É “aqui e agora” que se tem que pôr termo a este sofrimento imerecido. É por isto que o populismo é um barómetro da saúde da democracia e, simultaneamente, um dos seus mais perigosos inimigos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Até por esta relação ambivalente que o populismo tem com a democracia é fundamental tentar compreender melhor como funciona. Podemos começar precisamente por evitar perguntar se há partidos populistas entre nós – uma pergunta não só errada, como estéril – e tentar perceber antes em que circunstâncias certos partidos, movimentos ou políticos tentam conquistar votos convencendo os seus eleitores de que os problemas que estes enfrentam se devem a outro grupo de eleitores – e não à ação de quem os governa ou representa. O facto desta lógica populista de fazer política ser feita, por norma, em nome de um novo Portugal “mais moderno”, “mais justo” e “mais solidário” torna a destrinça entre populismo e democracia muito difícil. Mas confundi-los acarreta custos elevados. Continuar a ignorar o sofrimento imerecido da maioria da população, em particular os mais desfavorecidos e sem voz. Continuar à procura de “partidos populistas”, à medida que no nosso sistema político a forma populista de ganhar votos se reforça sem que alguém se pareça dar conta. Continuar a minar a confiança em projetos coletivos com fôlego e rasgo, quase sempre postos de lado entre nós em favor de remendos habilidosos só porque se atenta nos custos político-financeiros a curto prazo e se desvaloriza os seus benefícios a longo prazo. Não será que estas razões bastam para começarmos um debate sério sobre os populismos do nosso tempo?O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave racismo igualdade
Esta América não é um filme
Num momento em que os EUA se fecham sobre si, os Encontros de Fotografia de Arles provocam a reflexão com o ciclo America great again! À boleia dos 60 anos da publicação do poema visual The Americans, de Robert Frank, cinco exposições de autores “estrangeiros” ensaiam o que pode ser toda a América (...)

Esta América não é um filme
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Num momento em que os EUA se fecham sobre si, os Encontros de Fotografia de Arles provocam a reflexão com o ciclo America great again! À boleia dos 60 anos da publicação do poema visual The Americans, de Robert Frank, cinco exposições de autores “estrangeiros” ensaiam o que pode ser toda a América
TEXTO: A imagem vem de um dos “melhores capítulos” de Moby Dick, de Herman Melville, e foi dada por Paul Graham ao Libération como metáfora sobre o que é estar na América, como ele está desde 2002. Dentro da barriga da besta refere-se ao sentimento de ter sido engolido por um “ser” tão indizível quanto indomável, uma “entidade” tão mastodôntica quanto complexa; um cosmos e um caos que se movimentam num labirinto sem centro, para usar outra imagem, desta vez do escritor Jorge Luis Borges para definir a tensão irresolúvel e em crescendo que percorre “página a página” Moby Dick, mas que aqui também se pode colar à marcha errática de um país enleado nos seus medos, esbracejante, desnorteado. Formatado pelo fotojornalismo humanista da Europa, quando Raymond Depardon chega ao EUA, no final dos anos 60, descobre uma abordagem à fotografia mais instintiva. Deslumbra-se com o trabalho de Gary Winogrand, Lee Friedlander, Leon Levinstein e Harry Callahan e começa a seguir-lhes as pisadas, da Costa Leste à Costa OesteA brancura da baleia que no tal capítulo aterrorizava Ismael, o narrador da obra-prima de Melville, é também o título da trilogia que o artista inglês apresenta este ano nos Encontros de Arles, naquela que é uma das melhores exposições do festival, um vislumbre sereno sobre as profundas contradições que marcam o quotidiano das muitas Américas que co-existem, tantas vezes lado a lado, sem nunca se cruzarem. São Américas dentro de uma América que nas fotografias de Graham parece um lugar cada vez mais alienado, um mundo ligado por uma teia de referências frugais, de reflexos condicionados e mensagens subliminares – os dog whistle do jargão inglês, como o já célebre e ainda fresco Make America great again!, de que os Encontros se apoderaram para uma pequena provocação, subtraindo-lhe o “make”. A ironia é fina, mas está lá. Sem o verbo, a carga propagandística arrebanhadora do slogan fica enfraquecida e quem ganha é a ambiguidade. Embora exista também grandiloquência, símbolos de poder e algo que lembra o american way of life como um produto de sucesso, a grande maioria das imagens das cinco exposições alinhadas no ciclo America great again! mostra o lado B do país, as margens, os pequenos nadas e, sobretudo, os desequilíbrios sociais e a discriminação — entre outras, a racial — como fonte permanente de tensão, um estado de nervos colectivo. Embora abarcando um arco de seis décadas, estes cinco olhares podem ser entendidos também como um diagnóstico actualizado tanto das feridas que estão por sarar, como daquelas que, entretanto, foram sendo abertas. À boleia dos 60 anos da publicação do seminal The Americans (Delpire, 1958), de Robert Frank (Zurique, 1924), o director artístico dos Encontros, Sam Stourdzé, meteu no carro mais quatro viajantes com olhares “estrangeiros” sobre o país, Raymond Depardon, Paul Graham, Taysir Batniji, Laura Henno, num critério que não deixa de ter uma carga provocadora face a tudo o que tem sido o discurso anti-imigração da presidência de Donald Trump. É uma escolha tão diversificada quanto certeira, na medida em que convoca alguns dos olhares mais familiares da imagética ligada aos EUA (Frank, Depardon); como outros menos conhecidos, mas igualmente empenhados nas profundezas (Graham); ou ainda os que, mais recentemente, se dedicaram a investigar a singularidade de certas comunidades (Batniji, Henno). Os ingredientes deste caldeirão formam um retrato denso e informado, um panorama que nos demonstra como são fundamentais os olhares dos outros sobre nós. Quando Taysir Batniji chegou à América para reencontrar primos que não via há décadas, as famílias que encontrou tinham incorporado outras nacionalidades e origens que não a da sua família palestiniana. Ainda assim, descobriu que muitos rituais e símbolos continuam a apelar às origensQualquer país, espaço ou comunidade precisa do confronto com a imagem que dela fazem os que chegam de fora. E se houver disponibilidade para um olhar sobre si pelos olhos dos outros, é muito provável que se descubram os pormenores mais profundos, os traços menos óbvios, os sinais mais mitigados, “ainda que esse olhar possa devolver coisas que queremos esquecer, ou o que ficou gravado no lado sombrio da memória”. “Muitas vezes os visitantes reflectem a imagem que nos esforçamos por construir, o atavismo mais enraizado. Outras vezes, no entanto, conseguem que a idiossincrasia do seu olhar revele o que, pela proximidade, não vemos. ” (Delfim Sardo)Sam Stourdzé não esconde a alfinetada: “Neste período de retrocesso [nos EUA], convém mostrar que os estrangeiros também ajudaram a moldar a imagem do país. ” A sequência de exposições America great again! é reveladora de uma postura atenta e activa da liderança artística de Stourdzé que nos últimos anos tem sabido olhar para o desenrolar dos acontecimentos mais imediatos de uma forma crítica, propondo pela via da imagem fotográfica pistas para descodificar e melhor compreender os dias que correm. O sentimento de ambiguidade em que se move alguém que muda de um país para outro, ou mais simplesmente a condição de estrangeiro num lugar que se habita, terão sido parte do combustível para a determinação e curiosidade sem preconceitos com que Robert Frank partiu para retratar a América e os americanos. Quis descobrir “como eles vivem no presente”, o “seu quotidiano e os seus domingos, o seu pragmatismo e os seus sonhos, a aparência das cidades, vilas e estradas”, desejos que de tão simples, e depois de termos visto toda a sensibilidade poética que passou para The Americans, ressoa hoje desconcertante. Em Home Improvements (1985, espécie de confessionário filmado sobre os momentos mais marcantes da sua vida), Frank observou que, nesse tempo, “olhando de fora, tentava olhar para dentro – tentava dizer algo que fosse verdade”, postura que coincide com a arrumação do célebre fotolivro como tendo sido realizado por um “verdadeiro estranho”, isto num país que percorreu de uma ponta à outra, entre 1955 e 1956. Certo é que esse entendimento que por vezes é acenado como uma bandeira para afirmar posicionamentos políticos mais eufóricos ou para servir interesses como os que a Suíça (de onde Frank é originário) tem nos Encontros de Arles (para além da França, é um dos países mais representados ano após ano) tem sido posto em causa. Por exemplo por Sarah Greennough, curadora de fotografia da National Gallery of Art, Washington, que, por ocasião do 50. º aniversário de The Americans sustentou que nos EUA “Frank era simultaneamente um estrangeiro e um não-estrangeiro, privado do seu tempo e da sua cultura, mas a mesmo tempo parte dela”. Mais: para Greennough, a obra-prima de Frank é o resultado “de uma fusão da Europa e da América”, especificamente das vanguardas artísticas do pós-guerra que foram surgindo dos dois lados do Atlântico (existencialismo, expressionismo abstracto, literatura beat, pop art…). Para Martin Gasser, comissário de Sidelines, esta imagem “simboliza toda a história do país: o contraste entre os miúdos que brincam e, pousado magicamente nas costas do rapaz, este quadro de George Washington, um dos pais fundadores, que surge centrado na composição, como se fosse o coração da América”Se hoje se olha para Robert Frank dos anos 1950 afinal como “um americano”, à época da publicação de The Americans as críticas foram ferozes e vieram alimentadas pela raiva de ver um “estrangeiro” a mostrar imagens de “ódio e desespero”. Ou seja, aquilo que, na verdade, nunca fora mostrado de uma forma tão funda e intuitiva. Robert Frank rasgou as cortinas que tapavam um país que muitos sabiam que existia, mas que poucos conheciam, revelou uma cultura profundamente crivada pelo racismo, alienação e isolamento, onde pontuavam políticos messiânicos e profetas do consumismo e da fé, nacionalismo, falsa piedade e corrupção política. Ao mesmo tempo, Frank quis também transmitir-nos o seu encantamento pela superfície brilhante de uma jukebox ou a sua emoção perante a beleza de uma cadeira solitária numa barbearia fechada. Uma poética do quotidiano que não aplacou críticos como Bruce Downes: “Frank é um mentiroso, perversamente celebrando a miséria que perpetuamente procura e obstinado cria. ”Para lá do incómodo com o lado sombrio e decadente do “sonho americano”, o livro enfureceu também os puritanos que não gostaram de ver debaixo do título The Americans negros, índios e marginalizados. O que se pode ver em Arles em Sidelines, exposição comissariada pelo suíço Martin Gasser, é muito do percurso fotográfico de Robert Frank até chegar a The Americans, livro-farol que “não foi fruto de um súbito golpe de génio", mas, sim, de “uma sólida formação ao lado de fotógrafos extraordinários [entre outros, Gotthard Schuh e Jakob Tuggener], depois de um enorme trabalho e também de muita intuição e perseverança”. Na primeira parte, os passos iniciais na procura de uma forma de exprimir “verdades subjectivas”, seguindo-se uma vasta selecção de fotografias mais poéticas que Frank tirou por toda a Europa antes da sua primeira estadia em Nova Iorque (1947), e que deixaria plasmadas na maquete de Black White and Things (1952), que como Peru (1949), também em maquete, constituem a génese da mestria da mise en page de Frank, uma construção ritmada, interligada, por vezes dissonante, outras harmoniosa. No meio das salas, as muitas provas de contacto que deram origem ao livro permitem apreciar as escolhas do artista, numa espécie de espreitadela por cima do ombro. Na segunda parte, há muitas imagens até agora desconhecidas do grande público, que foram realizadas na primeira metade dos anos 1950 e que são agora colocadas no seu contexto original, entre uma selecção de algumas das fotografias mais célebres de The Americans, que mais do que um documento literal da América, pode ser lido como uma ode ou um poema. Entre todas as exposições de America great again! a que nos dá o olhar mais deslumbrado e embevecido pelo país é Depardon USA, 1968-1999, que reúne pela primeira vez o corpo de trabalho que o francês Raymond Depardon (Villefranche-sur-saône, 1942) realizou nas inúmeras viagens e estadias no país. A relação traçada no espaço Van Gogh começa com a cobertura da Convenção Nacional Democrata e de uma manifestação contra a Guerra da Vietname em Illinois, Chicago, em 1968, quando o fotojornalismo ainda mantinha a sua força no panorama mediático, e prolonga-se até 1999, quando Depardon decide dar uma guinada na sua abordagem fotográfica assumindo a errância como parceiro de viagem. Num campo criativo distante do de Depardon, o inglês Paul Graham (Stafford, 1956) – “um farol na fotografia contemporânea” – propõe uma abordagem entre o documentalismo e o conceptualismo para uma aproximação aparentemente tímida a um território por onde deambula uma sociedade entre o individualista, o anestesiado e o alheado. Do tríptico informal La Blancheur de la Balene fazem parte American Night (1998-2002), a shimer of possibility (2004-2006) e The Present (2009-2011), onde se aborda a injustiça social e racial, a textura do quotidiano, a natureza da visão, da percepção e da própria fotografia enquanto suporte criativo. “Alguém me disse um dia que, de certa maneira, uma fotografia isolada é uma declaração, e que duas fotografias tornam-se uma questão. A segunda proposta interessa-me muito mais”. Na série The Present, Paul Graham tenta desconstruir o tempo associado à imagem fotográfica captando uma cena e imediatamente depois o seu duploO palestiniano Taysir Batniji (1996), a viver em França depois de, em 2006, lhe ter sido negado o regresso à Faixa de Gaza, onde nasceu e cresceu, apresenta Gaza to America, Home Away from Home, retrato da vida de sucesso de seis primos que se instalaram nos EUA durante os anos 60. É uma das (boas) surpresas destes Encontros, um trabalho profundo e sensível que, através do vídeo, da fotografia e do desenho, analisa o desenraizamento, a construção de identidade, o sentimento de pertença, a memória, a impermanência, a nostalgia e a itinerância. Em paralelo a esta exposição, pode ver-se ainda uma retrospectiva selectiva da sua obra, realizada entre 1999 e 2012, onde o conflito israelo-palestiniano reclama boa parte das séries apresentadas. Maryann e Jack-Jack são banhados por uma luz que mal deixa abrir os olhos no meio de um descampado de Slab City. São duas das cerca de 300 almas que habitam um antigo campo militar em pleno deserto californianoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A luz dourada da hora mágica marca as imagens da francesa Laura Henno (Croix, 1976) em Redemption, dando-lhes uma estranha sensação de conforto e até de algum romantismo. Mas quanto mais se fica a olhar para estes retratos de gente que se entregou a uma vivência árida e desprotegida, mais essa luz cintilante mingua e se transforma em cores pálidas, espelho, aliás, do ar resignado com que algumas das cerca de 300 pessoas deambulam por Slab City, a cidade perdida no coração do deserto da Califórnia, emblema de uma América reduzida a um lendário acampamento de marginalizados. Inspirada pelo documentário Below Sea Level (2008), do italiano Gianfranco Rosi, Henno passou dois meses de 2017 a viver numa caravana em Slab City, onde observou esta comunidade que parece decidida a contrariar clichés condenatórios e a lutar por um futuro melhor, enquanto líderes como o pastor evangélico Dave vai prometendo a redenção nas récitas pronunciadas num templo de materiais esvoaçantes e esfarrapados. Para além da luz quente que vai arrefecendo, à medida que percorremos estas imagens temos a sensação de estar perante figurantes, personagens de filmes de aventuras como Mad Max. Até que vemos crianças descalças no cascalho, olhar perdido e com feridas no nariz. A América – esta América – não é um filme. É verdade.
REFERÊNCIAS:
A batalha pela globalização
Macron merece uma vitória clara nas urnas. A França, a União Europeia e também Portugal ficarão mais bem servidos. (...)

A batalha pela globalização
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-05-11 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170511073519/https://www.publico.pt/n1771260
SUMÁRIO: Macron merece uma vitória clara nas urnas. A França, a União Europeia e também Portugal ficarão mais bem servidos.
TEXTO: Já todos sabemos que a França está dividida em duas. Hoje é dia de saber qual é o tamanho das facções. Como de um lado está Le Pen, seria fácil antecipar uma leitura entre racistas e humanistas. Mas o problema é bem mais complexo, porque quem hoje se revê nas propostas populistas de Le Pen só o faz porque ou é ou se sente como perdedor neste modelo globalizante de que a União Europeia é um dos principais representantes. Por isso é que a batalha eleitoral deste domingo em França deve ser vista como o mais importante capítulo na luta pelo futuro das sociedades abertas. O modelo europeu no qual se investiu durante toda a segunda metade do século XX — e que tanto ajudou Portugal — funcionou enquanto a economia ajudou. A crise do euro deixou à mostra as fragilidades de um sistema que tem fortes debilidades de representação democrática e ainda maior incapacidade de resposta a quem não está preparado para as exigências do modelo social e económico liberal. Os descontentes foram durante anos acolhidos pelas várias esquerdas, que tratava de os manter dentro do sistema. Acontece que a deriva liberal iniciada por Tony Blair e seguida como cartilha por quase todas as esquerdas europeias abriu um fosso de falta de representação a quem ficou nas margens do sistema. E a crise económica e financeira aumentou as fileiras dos descontentes que, sem acolhimento pelos actores tradicionais, foram à procura de respostas nas franjas do sistema. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Encontraram-nas nos movimentos populistas, os mesmos que nos deixam a engolir em seco de cada vez que há uma eleição num país ocidental. Esses aproveitaram para crescer, dinamitando a esquerda tradicional — como se viu em França, em Espanha, em Itália e se verá em Inglaterra daqui a um mês. As causas são comuns e os eleitores de Le Pen são os mesmos de Mélenchon em França, mas também do Podemos em Espanha e do Bloco em Portugal — o que, aliás, explica as recusas de todos em declarar apoio a Macron e a semelhança do discurso ideológico contra a União Europeia. França não vive uma situação muito diferente da da maioria dos países europeus. Mas tem algumas particularidades que contribuem para que sirva de exemplo neste conflito entre defensores e críticos da globalização. Em França, em grande medida, a integração dos imigrantes está por fazer. A crise identitária, que é mais cultural que económica, também é pesada. E a longevidade da Frente Nacional também a torna mais credível. É neste contexto que se joga esta eleição entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen. Macron pode ser fraco, mas é o líder dos defensores da sociedade aberta, e por isso merece um apoio declarado e entusiástico. Merece também uma vitória clara nas urnas. A França, a União Europeia e também Portugal ficarão mais bem servidos.
REFERÊNCIAS:
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