Alberto de Lacerda: toda a luz e solidão do mundo
Passou a vida entre Londres e os EUA, privou com a elite cultural do mundo, viveu pobremente e reuniu um espólio único. Falta conhecê-lo. Labareda, o mais recente livro da colecção de poesia da Tinta-da-China, quer resgatá-lo para as novas gerações e estimular a curiosidade para uma poética e uma vida invulgares. (...)

Alberto de Lacerda: toda a luz e solidão do mundo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-08-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Passou a vida entre Londres e os EUA, privou com a elite cultural do mundo, viveu pobremente e reuniu um espólio único. Falta conhecê-lo. Labareda, o mais recente livro da colecção de poesia da Tinta-da-China, quer resgatá-lo para as novas gerações e estimular a curiosidade para uma poética e uma vida invulgares.
TEXTO: Há uma imagem que se vai construindo a partir da memória de quem conheceu Alberto de Lacerda: um homem caminha ao longo de uma rua, passo acelerado, levando quase sempre na mão um saco de supermercado cheio de jornais e livros. Na maior parte dos seus dias, a rua era Kings Road, em Chelsea, o bairro londrino de que mais gostava. Mas muitas vezes também foi a Commonwealth Avenue, a maior rua de Boston, cidade onde viveu e deu aulas na universidade. Um dia, no início dos anos 60, escorregou e caiu numa rua estreita de Lisboa, cidade onde viveu pouco tempo. Ou seja, esse homem coxeia. A imagem vai ficando mais clara à medida que se quer saber da sua poesia, da razão do quase esquecimento em Portugal, e é a partir dessa indagação que se chega à biografia de um poeta independente de grupos ou escolas, difícil de classificar poeticamente, amante de artes plásticas e de música, desde sempre leitor voraz e coleccionador compulsivo. Quando morreu, aos 78 anos, deixou mais de mil poemas por publicar e um espólio de milhares de livros, discos e obras de arte, um insólito, já que quando morreu, em 2007, vivia numa assoalhada em Londres. Agora, 11 anos após a sua morte e quando completaria 90 anos de idade, sai um volume que reúne parte da sua poesia e que quer dá-lo a conhecer a uma nova geração. Labareda revela a singularidade poética e biográfica de Alberto de Lacerda e traz 33 inéditos. São poemas escolhidos por Luís Amorim de Sousa, também poeta, amigo de Alberto de Lacerda e seu executor testamentário. É o autor do prefácio onde apresenta um homem ambíguo, a viver entre a exaltação e a tristeza, a exuberância social ou a solidão mais profunda, a luz e a sombra, o que transpôs para uma poesia cheia de referências e contágios do que lia, ouvia, das pessoas com quem se dava. Artistas e poetas como Octávio Paz, John Ashbery, Edith Sitwell, Elizabeth Bishop, T. S. Eliot, David Wevill, Louis Zukofsky, Robert Duncan, Manuel Bandeira ou Carlos Drummond de Andrade, além dos portugueses Sophia de Mello Breyner, Mário Cesariny ou António Ramos Rosa, e de Paula Rego e Vieira da Silva, com quem teve intensa amizade. “De tudo o poeta retirava a matéria para os seus poemas. Neles se inscreve uma teia prodigiosa de evocações, referências, meditações, e a solidão que o amargurava”, escreve no prefácio Luís Amorim de Sousa, onde relembra a extensa teia de ligações de uma poesia sem artifícios nem muletas. Numa esplanada de Lisboa, longe de Oxford, onde vive, Luís revela uma memória apaixonada do amigo. Na juventude partilharam a mesma cidade, Lourenço Marques, mas só se conheceram em Londres, onde passaram a partilhar a vida. “Conheci o Alberto nos anos 50 nas páginas amarelas de uma revista que teve um número único e era publicada em Moçambique. Eu tinha uns 20 anos e o Alberto já estava em Londres”, conta, recuando ao grupo de amigos e ao modo como essa revista lhe chegou às mãos. “Eu pertencia a um grupo onde estavam o José Craveirinha, o Rui Nogar, o Rui Knopfli. . . Toda a poesia que fazíamos tinha de ser de combate. Era preciso combater o regime. Nesse grupo havia uma figura ausente, Noémia de Sousa, mulata com uma personalidade bem marcada. Só falei com ela ao telefone, mas o Rui Nogar queria mostrar a poesia dela e trouxe-me essa revista proibida dentro de um jornal desportivo. Na primeira página havia uma sequência de poemas do Alberto, entre eles um poema pequenino que é assim. . . ” Cita, então, de cor o poema breve que só se alonga naquele momento porque é preciso conter a emoção. As lágrimas teimam e é com elas que Luís chega ao final porque esse final descreve o lugar onde se situa a poesia e a vida de Alberto de Lacerda: “Nos ímpetos de luz enfim desfeitos encontro a solidão definitiva. ” Pausa curta. “Escreveu isto era um miúdo, tinha 17 ou 18 anos. Fiquei então muito emocionado; é de uma brevidade eloquente, a necessidade de luz e a escuridão definitiva que envolviam o jovem poeta. Mais tarde ele diria de si próprio: sou um ser solitário com uma vida social extremamente activa. ”É nesse mundo de contradição que Alberto de Lacerda se movimenta sempre, causando admiração, desconcerto e permanente efeito de surpresa. Nunca se revelava totalmente, estabelecendo um pacto tácito com os amigos: havia uma intimidade inviolável e ela era-lhe necessária. “Apesar de Alberto ter muitos amigos e deleitar-se na sua companhia, havia nele um aspecto impenetrável, uma privacidade ferozmente mantida. Ele podia ser tremendamente hospitaleiro mas nunca convidava ninguém a entrar em sua casa”, refere a escritora americana Jhumpa Lahiri num artigo publicado na revista Poetry. Conheceu-o em 1993, foi sua aluna num seminário sobre Pessoa na Universidade de Boston, onde, apesar de nunca ter completado o quinto ano do liceu, Alberto de Lacerda era professor de Literatura Comparada. Outro ex-aluno em Boston, Scott Laughlin, diz: “Alberto ensinou-me que ser escritor era um modo de vida”. O agora professor, tradutor e co-autor de um festival de que desde 2011 se realiza em Lisboa em memória de Alberto de Lacerda, sublinha que era um poeta em todos os sentidos. “A arte, poesia, literatura, pintura, dança, música eram elementos essenciais na sua vida, mas não estava encerrado numa torre de marfim. Era um homem do mundo e das pessoas. Ele marchou contra Salazar e foi preso. Deviam vê-lo a atravessar uma rua cheia de trânsito em Londres. ”Jhumpa e Scott foram alunos no seu último emprego, numa vida feita de trabalhos precários, entre uma passagem pela BBC, a escrita de artigos para jornais e revistas, os anos em que ensinou na Universidade do Texas, em Austin, e que Luís Amorim de Sousa descreve como os mais felizes da vida do amigo. No espaço e no tempo dividiu-se assim: Moçambique, Lisboa, Londres, Austin, Nova Iorque, Boston, Londres. Depois de Boston, regressou a Londres, cidade que adoptou como casa. Mas em todo o lado era o homem que deambulava pelas ruas, galerias, teatros e cafés — considerava os cafés essenciais à civilização — sempre envolto numa nebulosa criativa. “Como o seu herói Picasso, acreditava que os artistas nasciam e se alimentavam do processo de estudar outros artistas”, continuava o artigo de Jhumpa Lahiri. No obituário que escreveu para o Independent, em Setembro de 2007, o poeta americano John Ashbery salientava a confusão que ele conseguia criar em quem se cruzava com ele no seu percurso habitual. “Pegaram-lhe no braço e expulsaram-no para sempre de uma galeria em Cork Street por ter exigido saber o preço de um Picasso; saiu da lista do seu centro de saúde depois de perguntar a nacionalidade à recepcionista. Evelyn Waugh também se enganou ao descrevê-lo nos seus dias de juventude como ‘um homenzinho moreno que parecia um judeu mas dizia ser português’. ”Carlos Alberto Portugal Correia de Lacerda nasceu na Ilha de Moçambique a 20 de Setembro de 1928, filho de um administrador colonial. Passou os primeiros anos em itinerância até se fixar em Lourenço Marques onde fez o liceu. Tímido, solitário, lia compulsivamente e começou a escrever poesia aos 14 anos. Aos 18 foi para Lisboa aprender inglês e francês. Conheceu Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner, Casais Monteiro, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Júlio Pomar. O editor de Fernando Pessoa aceita publicar o seu primeiro livro de poesia. Morreu pouco depois e o projecto que ficou adiado. Em 1950 fundou a revista Távola Redonda, com António Manuel Couto Viana, Luiz de Macedo e David Mourão-Ferreira. Saiu depois de uma desavença e em 1951 foi para Londres com um contrato para a secção portuguesa da BBC. Começou o seu contacto com o mundo das artes numa Londres em ebulição criativa. “O Alberto era uma pessoa singularíssima, conhecia toda a gente na sua época”, sintetiza Luís Amorim de Sousa que o conhece em Londres vindo a trabalhar na mesma delegação das BBC. “Nasceu uma cumplicidade pessoal e criativa. O Alberto sentia-se bem no mundo de língua inglesa e eu também. As saudades que ele tinha de Portugal eram ligadas a valores muito nossos, a começar pela língua. ” Uma ligação tão forte quanto ambígua. Colado a ela, inseparável dela — sempre escreveu em português —, a sua língua lembrava-lhe uma angústia: a de ser tratado pelos portugueses de Portugal como se não lhe pertencesse. Há um poema que trata dessa relação visceral. “Esta língua que eu amo/ [. . ] Esta maravilha/ Assassinadíssima/ Por quase todos que a falam/ [. . . ] Esta língua/ É minha Índia constante/ Minha núpcia ininterrupta/ Meu amor para sempre/ Minha libertinagem/ Minha eterna/Virgindade”. Vai-se alimentando dela com os amigos de Londres. Paula Rego, Helder Macedo e, claro, Luís, mas também na correspondência que mantinha e nas férias em casa de Vieira da Silva. O seu primeiro livro, 77 poemas, é publicado em 1955. Seguem-se mais 11 em vida, a maior parte na Imprensa Nacional Casa da Moeda. É traduzido para inglês. A vida corre e um dia anuncia que vai para o Texas. “Foi no dia em que Picasso, o seu ídolo, fez 80 anos. Havia um programa na BBC sobre as ofertas do Picasso em que participam o Alberto Lacerda e a Paula Rego, e estamos os três sentados na cantina quando o Alberto anuncia que tinha assinado um contrato com a Universidade do Texas. Fiquei angustiado. Imaginá-lo entre cowboys não era fácil”, comenta Luís Amorim. Mais uma vez surpreendeu-se. Alberto parecia feliz. Tinha um ordenado, coisa a que não estava habituado, e “encontra uma América diferente, vibrante, e cheia de paixão. Foi o momento em que muitos americanos se opuseram à guerra do Vietname; em que aparecem os movimentos de libertação da mulher, dos homossexuais, dos negros”, continua Luís Amorim. Homossexual que dizia que a liberdade era a sua obsessão, Alberto de Lacerda sente isso, “está de repente num mundo de energia que lhe falava ao coração e encontra amigos. Octávio Paz, Christopher Middleton, David Wevill, primeiro marido de Assia Gutmann, a amante de Ted Hughes. E há convites para visitar o Robert Duncan em São Francisco e Louis Zukofsky em Nova Iorque. ” Luís Amorim podia passar dias a contar histórias do amigo, desfazer equívocos, como diz, emocionar-se. “Há histórias contraditórias. O facto é que ele era um pobretanas que não tinha onde cair morto, comia um bolo seco ao almoço porque não tinha dinheiro para comer uma omelete e encheu a casa de tesouros porque se endividava para comprar coisas. ” Assim fez o espólio que Mário Soares aceitou receber na sua fundação. “Quadros, desenhos, poucas coisas emolduradas, tudo em pastas, trabalhos em papel, sobretudo; discos, livros, catálogos, coisas a ver com o mundo da cultura. À chegada a Portugal, pesava 16 toneladas. Morre e deixa-me tudo nas minhas mãos. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Tentou que o espólio não se dispersasse. Não aconteceu e o espólio está por vários lugares. “É inesgotável”, resume o homem que gostava que Alberto de Lacerda fosse mais lido. Ele mesmo selecionou os poemas que agora compõem Labareda, o mais recente da colecção de poesia dirigida por Pedro Mexia na Tinta-da-China. “É um poeta que me interessa por várias dimensões, uma é a ligação à cultura anglo-saxónica, à Inglaterra em particular, que se tornou hegemónica nas últimas décadas, mas que durante muito tempo era a excepção”, diz Pedro Mexia, justificando a entrada de Lacerda numa colecção que quer também recuperar nomes para as novas gerações. Já aconteceu antes com Ruy Cinatti e António Reis. Mexia fala de Labareda como o livro de apresentação de um poeta a quem nunca o leu e pode a partir daí querer saber mais. Da poesia e da singularidade do homem que acreditava que os poetas são feitos da mesma matéria que os sonhos. “Há um livro dele de que gosto especialmente, Elegias de Londres. Há ali um fôlego e um lado meditativo em que está tudo. Está África, está Portugal, está Londres. É um livro importante da poesia portuguesa. E há duas características notórias e que talvez dificultem a recepção do Alberto Lacerda por um leitor actual: um lado de êxtase e de maravilhamento que parece um contínuo. Embora tenha alguns poemas mais azedos, é um poeta distante de um certo sentimento cínico. Aquele lado e permanente descoberta da coisas — do corpo, da cidade, etc — talvez seja poesia de outro tempo, e também não era a poesia do seu tempo em Portugal. ”E Portugal parece não tê-lo compreendido no seu tempo. “É a tragédia de viver fora”, diz Mexia. Mas há coisas a acontecer. Por exemplo o tal festival Disquiet, organizado por Scott Laughlin, que todos os anos traz a Lisboa autores americanos. Nesta edição, Jorge Silva Melo irá ler Alberto de Lacerda. O encenador e actor recorda a primeira sensação ao ler Lacerda. “Surpreendeu-me a poesia muito diferente da poesia portuguesa. Muito lírica, elegíaca, muito próxima de alguma poesia inglesa. ” Continuou a acompanhá-lo e lembra a fase americana, “próxima dos movimentos sociais. Muito whitmaniana, mais beat” e tenta levar essa diversidade para os recitais sobre ele. Assim será, no dia 10 de Julho, numa poesia que John Ashbery definiu como tendo uma potência pessoal e romântica, de alguém que é “tanto um mestre no soneto clássico como nos saltos da imaginação surrealista ou da perfeição minimalista oriental”, alguém que celebrava a paixão pela música, pela dança, pelo teatro pelo cinema e pelo quotidiano.
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu
Bruno Santos: “Nunca encarámos a Cristina Ferreira como o rosto mais importante da TVI”
Director-geral de antena e de programas da TVI apresenta uma nova grelha com a apresentadora estrela de saída. Canal quer continuar líder e para isso tem de ser "atrevido". (...)

Bruno Santos: “Nunca encarámos a Cristina Ferreira como o rosto mais importante da TVI”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.45
DATA: 2018-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Director-geral de antena e de programas da TVI apresenta uma nova grelha com a apresentadora estrela de saída. Canal quer continuar líder e para isso tem de ser "atrevido".
TEXTO: Bruno Santos está há sete anos na direcção de programas da TVI, o canal de televisão mais visto do país há 13 anos consecutivos. “A posição do líder é muito mais incómoda, porque tem de desbravar território”, defende em entrevista ao PÚBLICO no dia em que apresenta a nova grelha. É a primeira em 16 anos que não terá Cristina Ferreira, a apresentadora e directora de conteúdos não-informativos que este Verão se mudou para a SIC e surpreendeu o mercado. Mas ainda haverá um pouco de Cristina Ferreira na grelha da estação de Queluz, com programas já gravados ainda por transmitir, bem como novas novelas e séries, concursos e mais reality shows. “A TVI quer continuar e vai continuar a ser líder”, diz Bruno Santos numa conversa em que considera prejudicial a admissão de publicidade nos canais públicos na TDT e em que garante estar preparado para os desafios do streaming e da dispersão dos espectadores. “Não vamos fazer protestos contra o Netflix” como “os taxistas”, garante. A transferência de Cristina Ferreira agitou o mercado. Que impacto tem a saída de Cristina Ferreira na TVI e na grelha que hoje apresentam?Já dissemos o que queríamos dizer sobre isso: já virámos a página e quando falo isso não é retórica. A TVI é muito pragmática nessa matéria. A Cristina Ferreira era um quadro importante e foi embora. Temos outras soluções, acreditamos na nossa força e capacidade de liderança e é assim que estamos trabalhando. Muito serenamente, já passou e olhando para a frente. Ainda há programas da Cristina Ferreira na TVI para ir para o ar. Há um cenário em que ela estará no ar nos dois canais? É uma pergunta a que não posso responder. Temos de facto programas gravados com a Cristina Ferreira. Como é que isso ficou assegurado nesta transição? Fez parte do acordo e evidentemente nunca esteve em cima da mesa a hipótese de não emitirmos esses programas. São muitos milhares de euros que estão em causa e não fazia sentido deitar isso para o lixo. Isso não é confuso para o espectador? De manhã ver a Cristina Ferreira na SIC e ao fim da tarde vê-la na TVI? Não sei o que está na cabeça do espectador. Acredito que vejam o Apanha se Puderes não só e apenas por causa da Cristina Ferreira mas também por que é um bom programa. Sobre se faz ou não sentido, é uma boa pergunta para a SIC, que contratou a Cristina sabendo que tínhamos esses programas pré-gravados. Somos pragmáticos, nunca nos passou pela cabeça o contrário. Ficou algum engulho no relacionamento entre a TVI e a SIC? Não, de jeito nenhum. Continuamos com excelentes relações tanto ao nível da administração quanto das direcções. Isso faz parte e é bom que aconteça, no mundo do futebol, do espectáculo, das televisões. Esses movimentos são naturais, acontecem. Não nos passa pela cabeça que uma coisa dessas ponha em causa uma relação institucional. Saindo Cristina Ferreira, quem lhe sucede nesse papel de rosto da TVI? Sendo um dos rostos da TVI, era indubitavelmente o mais popular e fulgurante do momento? Nós nunca encarámos a Cristina Ferreira como o rosto mais importante da TVI. Nunca tivemos esse discurso. Tínhamos, sim, uma primeira linha de apresentadores – composta pelo Manuel [Luís Goucha], pela Fátima [Lopes] e pela Cristina. Continuamos a ter esses dois. Ninguém é insubstituível. Não vai entrar ninguém como figura que a substitua. Vamos fazer o nosso trabalho, estamos a trabalhar intensamente no Você na TV [das manhãs] porque sabemos que a concorrência vem com muita força. Não é a primeira vez que sofremos esse tipo de ataques, portanto sabemos o que temos de fazer. O Manuel Luís Goucha vai dividir o ecrã com quem?Não vou dizer. Não vamos apresentar já. Nas transferências de Verão, a TVI ficou com Miguel Sousa Tavares e tem angariado actores da SIC para o seu lote de exclusivos. Tudo com o objectivo de continuar líder? A TVI é líder há 13 anos. A TVI quer continuar e vai continuar a ser líder. Para nós é uma afirmação de posicionamento e de mercado. Já aconteceram muitas movimentações no mercado, até entre directores e administradores, e a TVI continua líder porque a sua base, o seu know how continua a ser muito bom. Estou na TVI há sete anos, aprendi imenso aqui e sim, a TVI vai continuar a fazer tudo para manter a liderança não só universo total dos targets mas sobretudo também no horário nobre e no target dito comercial, que para nós é muito importante. Como vai fazê-lo e o que vão ter na nova grelha, sobretudo num mercado em que os canais generalistas continuam a ser centrais, mas perdem o seu peso? Há um preâmbulo importante: a queda das FTA [Free to Air, canais em sinal aberto] é uma inevitabilidade, algo que ocorre no mundo inteiro e somos perfeitamente conscientes disso. Não podemos parar o vento com as mãos e fazer igual aos taxistas. Não vamos fazer protestos contra o Netflix, contra essas plataformas. Olhamos para esses fenómenos como novas formas de se consumir televisão. Achamos que as pessoas estão a consumir de forma diferente mas estão a consumir cada vez mais. Nunca houve tanto consumo de vídeo, de conteúdo de televisão. Esse é que é o desafio. A TVI, sabendo que a força está na sua antena aberta, está também noutras plataformas. Sobre como o faremos, eu poderia não fazer nada. Em relação à SIC neste momento estamos com uma liderança muito confortável. Em todas as faixas do dia. Sei que a SIC está a reagir, a RTP também mudou a direcção [de programas]. Vamos fazê-lo, como sempre, nos três eixos em que temos mais força: entretenimento, informação e ficção. Se enquadrarmos o desporto dentro da informação, a Liga dos Campeões joga um papel muito importante nessa estratégia de fim de ano. Na ficção, A Herdeira acabou no sábado e estreámos Valor da Vida, que é uma produção muito atrevida. E é isso que faz a diferença da TVI para o resto. Todos temos acesso a informação, teoricamente sabemos o que o espectador quer mas acreditamos que na TVI somos mais atrevidos, fazemos coisas diferentes, mais inovadoras. O nosso mote é sempre esse, liderança com inovação. Valor da Vida é uma novela que vem na sequência de A Única Mulher, Ouro Verde, A Herdeira, que tem uma narrativa muito mais ágil do que o normal. O nosso desafio é tentar atrair públicos novos que possam estar mais dispersos nessas novas fórmulas de consumo de televisão, mas ao mesmo tempo não perder o público mais tradicional das FTA. É um equilíbrio difícil, cada vez mais difícil. Cada vez mais difícil. Mas desafiante. Nós pelo menos temos conseguido. Temos tido bons resultados com as últimas novelas, todas são líderes de audiência tanto na primeira linha quanto na segunda linha. Acreditamos que o caminho é esse, o caminho da diferenciação e a cada novela que estreia não ser só mais uma novela. Estreámos recentemente um produto que nem chamamos de novela, é a série Onde Está Elisa, que está no final da noite e que já é líder e bate a novela da Globo que a SIC tem naquela faixa horária. É uma espécie de thriller em torno de uma miúda que desaparece misteriosamente e é uma adaptação internacional, mas o Valor da Vida também tem uma narrativa de tramas paralelas de duas pessoas que acordam, uma depois de muitos anos em coma, a outra misteriosamente acorda sem saber quem é, muito bem entrelaçada. Gravada no Líbano, na Chapada Diamatina no Brasil com cenários idílicos, muito aspiracional e muito, sobretudo, internacional. Acho que o público procura sempre uma coisa mais globalizada que tenha mais a ver com o mundo de hoje. É por isso que as pessoas vão procurando outros produtos noutras plataformas. A TVI foi a grande impulsionadora da indústria de novelas portuguesas. Nos últimos anos criou-lhes temporadas e alterou o ritmo narrativo. Para fidelização dos espectadores ou também porque os canais temáticos e o streaming mudaram o público?Não sei se se pode separar as duas coisas. A TVI faz isso para acompanhar os tempos. O espectador está muito mais exigente hoje. O acesso aos conteúdos está muito mais fácil e a quantidade é enorme. O consumidor de telenovela hoje não é o mesmo de há 10, 20 anos. Na idade, na formação ou no gosto?É um pouco de cultura televisiva. Uma novela mexicana é ainda quase caricatural. No México o público é muito mais tradicional nas FTA. Aqui não, precisamos de introduzir não só densidade nas personagens mas também agilidade nas tramas, que podem ser um pouco mais intricadas porque as pessoas não só gostam mas exigem. Ainda este ano vamos ter a estreia de A Teia, uma ficção policial sem enquadramento de telenovela. Tem um ritmo de série, com perseguições…Semanal?O produto semanal em Portugal tem que se lhe diga. O público português também não está acostumado a isso. Hoje em dia até as formas de consumo diferenciadas não há ninguém que pegue no Netflix para ver uma série por semana, isso já não existe. A TVI também lançou os reality shows, que não têm o fulgor inicial. Há uma fadiga no formato? O que pode substituí-lo na TVI? A televisão é cíclica. Os realityshows, tal como a ficção, também têm de se adaptar aos novos tempos. Acho que não está cansado porque conseguimos ter um canal 24h com realityshows. Se as pessoas estivessem cansadas esse produto não existiria. Qual a audiência do canal?Tem 0, 7% de share numa plataforma [de televisão por subscrição] só, com 50% de cobertura. Se o canal tivesse cobertura total ele passava muito facilmente para o Top 5 de todos os canais. Porque quando se diz que há erosão nos FTA, o que é que é o cabo? Se formos ver TVI, SIC, RTP, o canal do cabo seguinte tem… A TVI tem 20 [% de share], SIC deve estar com 16, a RTP está na casa dos 10, o canal do cabo seguinte deve ser a CMTV que está com 3%, 4% e depois há dois pontos e uma série de canais com 1 ponto e centenas de canais com menos de um ponto de share. O que mostra a força das FTA quando comparadas com canais que têm a mesma cobertura. Vão continuar a apostar nos reality shows – e que tipo?Temos uma espécie de reality show de manutenção, que é o Love on Top actualmente no ar, que não precisa de uma exposição muito grande na antena da TVI, nem o desejamos porque tem uma linguagem muito forte. Está no cabo e no late night da TVI e consegue ter boas audiências. A nossa intenção é manter A Casa dos Segredos, que é uma marca poderosíssima. A última teve a transição de apresentadores com o Manuel Luís Goucha, temos uma nova tipologia de concorrentes, o jogo foi muito mais jogo, muito menos gritaria, briga e sexo, e mesmo assim as pessoas gostavam de ver portanto achamos que faz sentido. O que é que os reality shows trazem à antena?Audiência. Diferenciação. E um certo atrevimento. Os reality shows têm uma outra importância, muito grande, no digital. Quando temos um reality show em antena sentimos que o nosso digital cresce muito. E o que é que um espectador retira de um reality show como A Casa dos Segredos ou o Love on Top?Está a perguntar se o reality show está aí para educar alguém?É uma pergunta bastante aberta. Fizemos questão, na última Casa dos Segredos, de introduzir uma história de um casal gay, que foi muito bem contada, mudou muita mentalidade e abriu muita consciência não só individualmente mas a nível familiar. Acho que nenhum outro programa poderia fazer isso de forma tão eficaz como um reality show. Há um factor de educação social?A nossa missão é entretenimento mas sabemos que temos alguma responsabilidade e quando fazemos um casting procuramos casos que possam ir nesse sentido. O próximo reality show tem a ver com casamentos, uma natureza muito próxima do que a SIC também tem. Vai haver um espelho entre a TVI e SIC?Nisso estou muito à vontade porque a nossa característica é liderança e inovação. Para um bom observador é muito fácil dizer quem é que se cola a quem. Portanto a SIC está a colar-se à TVI?Não estou a dizer isso. Não é um bom observador?Sou um bom observador mas não posso dizer certas coisas. Mas é verdade que há muitos movimentos que a TVI faz e que são seguidos pela concorrência. A TVI é o farol e os outros canais, nomeadamente a SIC, vão atrás?A posição do líder é muito mais incómoda, porque tem de desbravar território. Não temos nenhum problema em assumir essa posição. A posição do follower é muito mais confortável, vê o que líder está a fazer e tenta colar-se para chegar lá. Só que quando chegar lá nós já queremos estar dois passos à frente. É isso que tem acontecido e é assim que queremos manter as coisas. A CMTV vai fazer a sua primeira novela. Como reage a isso?Com muita atenção. Não desprezamos nenhum movimento de nenhum concorrente. A CMTV tem uma postura muito atrevida e orçamentos muito mais limitados que os generalistas, mas estamos muito atentos. A MediaCapital é o maior produtor, com a Plural, de ficção. Ainda há por onde crescer nesse mercado em Portugal? Há espaço para a Plural trabalhar para a concorrência?Temos todo o gosto em conseguir poder fazer isso para a concorrência. Não é um caminho fácilE preferencialmente não fazem. Sim. Os outros players do mercado preferem fazer com outras produtoras mas nós já fazemos muita coisa na Plural, que não só ficção, como entretenimento como o Apanha se Puderes, e a Plural também começa a olhar para fora. Portugal é um mercado pequeno…Que outras novidades têm na programação? Temos o First Dates. É um produto que, não sendo um reality show — e não temos problema em assumir os nossos reality shows —, está enquadrado mais no doc reality. Já ganhou muitos prémios noutros países, e é um pouco cheesy mas é muito interessante. Tantos anos, reality shows e exposição depois, os participantes ainda conseguem ser genuínos? Também nos fazemos essa pergunta. Os concorrentes vão ficando cada vez mais profissionais. Mas é impossível ficar 24 horas em acting em função de câmaras, há uma hora em que desligam e começam a ser eles próprios, é inevitável; é impossível manter a pose o tempo inteiro. No entretenimento, além do First Dates, criámos um concurso familiar de superação chamado 50 Horas, que vamos emitir este ano. Os programas físicos estão na moda nos mercados internacionais. São três famílias que têm que superar uma série de provas físicas em 50 horas. É todo gravado em outdoor, na Póvoa de Lanhoso. Vão mudar alguma coisa na filosofia de grelha? Não olhamos para a grelha como algo rígido e estático, mas o ser humano é um animal de hábitos. E nós temos uma grelha que começa líder às 10h e termina à 1h – não tenho muitos motivos para fazer grandes revoluções na programação. Vão chegar dois canais à TDT. A TVI pensa candidatar-se, sozinha ou em consórcio? Estamos a olhar para isso. A nossa posição é de expectativa e esperar os detalhes, depois vamos ter uma posição. Temos sempre interesse: se o negócio for bom e viável e trouxer benefícios para o grupo. A TVI estaria mais bem preparada para um canal de informação ou de desporto, tendo em conta a recente parceria com a Eleven Sports? Esta parceria com a Eleven Sports é muito pontual e tem uma terceira parte, a Nowo. Foi uma janela de oportunidade de adquirir direitos da Liga dos Campeões. Como gestor – que também já trabalhou anos na RTP -, o que pensa de os canais públicos virem a ter publicidade na TDT?Só quem trabalha nas generalistas comerciais é que sabe das dificuldades que temos de manter o nosso negócio saudável. Tudo o que signifique dificultá-lo ainda mais na obtenção de receita vai prejudicar uma indústria que dá pão para muitas famílias. E a taxa do audiovisual? É admissível o aumento? Isso é uma matéria política que tem consequências para o consumidor. Muitas vezes essa concorrência torna-se desleal. O enquadramento da RTP é um debate eterno. Trabalhei lá nove anos, vivi mil e uma situações das mais variadas. Como estão as operações internacionais da TVI? Continuamos em expansão permanente, sobretudo para os mercados lusófonos. Estamos em mais de 50 países com a TVI Internacional, TVI África e TVI24. São operações rentáveis, a TVI só faz operações rentáveis. Quais são hoje os principais desafios da TV generalista e como lhes dar a volta? Pegando no exemplo da ficção e extrapolando para as outras áreas, seja informação ou entretenimento, é tentar fazer coisas diferentes e inovadoras, que cativem outros públicos. Por exemplo, o Pesadelo na Cozinha: ninguém imaginou que um programa como aquele pudesse ter o impacto que teve nas audiências e continua a ter. Foi uma novidade nossa e trouxe muito público novo para as FTA. A TVI é líder nas redes sociais, tem 65% do mercado no digital comparado com SIC e RTP. Temos uma agressividade nessa área porque entendemos que o consumidor está nessas plataformas. Há décadas que se diz que a solução é fazer coisas inovadoras. Ainda há espaço para inventar coisas novas em TV? Acho que há. No entretenimento e na informação a TV generalista tem que se reinventar um pouco. Na ficção, por exemplo, temos feito um trabalho notável de reinvenção, de adaptação a novas formas de consumo. Existe uma espécie quase de mito: o mindset das pessoas é que as FTA são uma coisa antiga e que o moderno e o novo estão no Netflix. E o Netflix tem algumas pérolas, é verdade, mas a maioria das coisas são miseráveis. O mesmo acontece nas redes sociais, no mundo digital. Ou seja, a TV é e continua a ser o meio que mais e melhor impacto tem no espectador, que melhor cobertura dá aos anunciantes, que mais garantias dá às marcas, sem dúvida. A curadoria que fazemos na TV não se faz nos meios digitais. Mas o Netflix, o streaming coloca o espectador na posição de programador, ou de organizador da sua grelha. Nós temos o TVI Player, com muita gente a entrar por aí, é uma forma de poder ver a TVI de forma mobile e de consumir stock. É difícil competir contra o Netflix mas nós vamos começar a produzir conteúdos específicos para o TVI Player. Já nesta temporada? É ficção? Sim, agora. (risos) É digital. É muito difícil conseguir o modelo de negócio para produzir ficção a um nível muito bom, com retorno. O Netflix é por subscrição, o nosso é aberto. Vão começar a cobrar pelo TVI Player? A curto prazo não. Fizemos uma experiência há mais de cinco anos, em que tínhamos um reality show na TVI e a emissão 24 horas estava só na plataforma digital, as pessoas tinham que assinar, mas agora há um canal. O TVIPlayer tem um milhões de acessos por mês. Mas para nós é relevante. Falou na necessidade de reinventar a informação, é um adepto de uma filosofia de infotainment, de maior entrosamento com o entretenimento?Sim. Não falo pela Informação, mas temos diálogo diário e já fazemos esse tipo de entrosamento. Não quer dizer que seja no Jornal das 8 clássico. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O noticiário da noite é linha vermelha intransponível? Não, aqui não temos linhas vermelhas intransponíveis. Em grandes eventos já temos jornalistas e repórteres do entretenimento a fazer cobertura juntamente com a informação. Não sei se esse é o caminho, mas nós estamos a fazer esse caminho. E sempre que as duas partes estejam confortáveis com ele, porque não trilhá-lo?
REFERÊNCIAS:
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Azinhaga, a única aldeia onde Saramago poderia ter nascido
No dia em que José Saramago celebraria 96 anos, regressamos à aldeia que o viu nascer. (...)

Azinhaga, a única aldeia onde Saramago poderia ter nascido
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: No dia em que José Saramago celebraria 96 anos, regressamos à aldeia que o viu nascer.
TEXTO: “Deixa-te levar pela criança que foste”, pede-nos o escritor à entrada num rosto de menino ampliado até ao tecto. Há um ano que o núcleo da Fundação José Saramago na Azinhaga se mudou para a antiga escola primária da aldeia, contando em objectos da época parte d'As Pequenas Memórias vividas pelo escritor na terra que o viu nascer há 96 anos, celebrados esta sexta-feira. Num quarto e numa cozinha recriados nas antigas salas da escola, recordam-se os Verões vividos com os avós maternos, a quem Saramago dedicou parte dos discursos proferidos ao receber o Prémio Nobel da Literatura, há 20 anos. “Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama”, lê-se nos Discursos de Estocolmo. A velha cama de ferro enlaçado, onde “o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa”, é o ex-líbris da exposição, comprada pela junta de freguesia a um membro da família (a colorida cabeceira está, neste momento, numa exposição itinerante no Brasil). É Vítor Guia, então presidente da junta e amigo de Saramago, quem nos conta a história. “A cama é esta, não tenho a mínima dúvida, mas as cores não eram estas”, recorda-se de Saramago lhe dizer quando voltou a ver a peça, então coberta de branco. “Acabei por ser eu e a secretária da junta a raspar com mil cuidados até conseguirmos chegar à última camada de tinta e lá estava o rosa e, nas flores, o verde e o amarelo”, conta Vítor. “Ele tinha uma memória extraordinária. ”Quem não o conhecia, poderia tomá-lo por “um homem austero, revoltado”, mas quem convivia com Saramago “apercebia-se que, por trás, havia um homem de afectos, sensível e de uma humanidade impressionante”, defende, recordando a forma como o escritor “vivia os problemas dos outros, se dedicava às causas, defendia o semelhante e conseguia interagir com as crianças”. “Tenho um orgulho grande por ter tido a possibilidade de conviver de perto com Saramago e por tê-lo conhecido em si. ”As histórias vão-se somando enquanto passeamos pela aldeia. Como a da estátua de Saramago, exposta sobre um banco de jardim no largo principal da Azinhaga, que o próprio escritor veio inaugurar em 2009. “Quando o abordei pela primeira vez, estávamos em Lanzarote a conversar ao jantar, e a primeira reacção foi logo um não. 'Pede-me tudo, menos isso. Quando eu morrer, façam-me as estátuas que quiserem que eu já cá não estou para ver, mas enquanto for vivo, não. '”. Vítor não se deixou ficar. Esgrimiu os argumentos que levava no bolso: “Quando você morrer, qualquer câmara com poder financeiro pode mandar fazer uma estátua e colocá-la em qualquer lado, mas a junta de freguesia não tem essa hipótese e eu gostaria imenso que a Azinhaga fosse a primeira a ter uma estátua sua. É que nem são dinheiros públicos, são leitores seus que juntaram dinheiro para pagar a estátua. " Quando se foram deitar, a resposta ainda era negativa. “No outro dia de manhã, ao pequeno-almoço, diz-me ele: 'Tenho uma novidade para te dar. Manda lá fazer a estátua, que eu lá estarei para a inaugurar'. ” E assim foi. Da inauguração, Vítor destaca dois momentos. “A primeira reacção foi dizer que se reconhecia naquele trabalho e depois recordou-me o que tinha dito quando aceitou: Ai de mim que ele cá viesse e visse a estátua cagada dos pombos”, ri-se. Durante o discurso que Saramago proferiu naquele dia, uma “frase que ficou marcada nas pessoas” da terra: a Azinhaga não era apenas a aldeia onde nasceu, era a única aldeia onde poderia ter nascido. No largo, Saramago tira os olhos do livro que tem entre as mãos para pousá-los no edifício do outro lado da rua, hoje à venda numa imobiliária, anuncia um cartaz entre as janelas. Era naquela casa, de portas bordadas a amarelo, que ficava a loja do “sapateiro prodigioso”, Francisco Carreira, que “já na altura lia Fontanelle”. “Era um senhor que tinha uma cultura muito acima da média e aqui juntava-se a nata de pessoas que já tinham alguns conhecimentos, que já sabiam ler e escrever e, inclusivamente, alguns perseguidos pela PIDE”, recorda Vítor. A história vem descrita no livro As Pequenas Memórias, que José Saramago veio lançar à Azinhaga em 2006, e é um dos trechos da obra que o antigo edil ainda gostava de ver exposta junto à fachada. Para já, existem 13 painéis de azulejos com citações retiradas do livro (e de outras três obras onde Saramago refere a Azinhaga) ao longo do rio Almonda que, juntamente com as oliveiras, “era a grande paixão de Saramago aqui na Azinhaga”. “É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo”, descreveu Saramago em Protopoema. Para mais tarde, já n'As Pequenas Memória, se lamentar que a “humilde corrente de água” esteja “hoje poluída e malcheirosa”. Não chegam odores ao passadiço sobre a margem quando passeamos por ali, mas Vítor reconhece que “o Almonda hoje não tem nada a ver com o de Saramago”. Nem com o que Vítor conheceu na “meninice”, anos mais tarde, quando ali vinha à pesca com os amigos. “A gente via os limos e os peixes dentro dos limos. Se vinha um mais pequeno, tirávamos o anzol para o peixe não morder”, recorda. “Infelizmente, com a poluição que vem do concelho vizinho, a água não está cristalina e o rio está cheio de plantas. ”O percurso começa com as palavras iniciais d'As Pequenas Memórias e há-de terminar, já longe do rio, num único painel solitário, onde se lê a história que as encerra. Foi ali, precisamente ali, que Saramago “viu o lagarto verde pela última vez”. A ideia é fazer dali um jardim de leitura, à sombra da oliveira centenária, irmã da que foi trasladada para guardar as cinzas do corpo do escritor, em frente à Casa dos Bicos, em Lisboa. E continuar caminho, sempre com mais histórias e recordações relatadas pelo escritor. “É uma forma de dar a quem nos visita a hipótese de percorrer a aldeia e de estar junto dos locais que mais marcaram Saramago na juventude dele”, resume. Por vezes, calçar as memórias de Saramago é uma experiência emotiva. Muitos leitores lacrimejam ao passar pelas fotografias, pelas citações, pelos livros, pelas mesmas paisagens que um dia definiram o escritor. Às vezes, largam-se a chorar, agarrados a Vítor ou sentados no chão, as “lágrimas a escorrer pela cara abaixo”. Como a miúda brasileira que um dia chegou cá com os pais para visitar a fundação em dia de fecho e Vítor veio de propósito abrir a porta. Ou a peregrina, “vinte e poucos anos”, que fez questão de cá vir antes de continuar caminho rumo a Compostela. Uma segunda-feira, estava Vítor fora e a fundação de folga, telefonaram-lhe a dizer que estava uma alemã no largo da aldeia. Tinha aterrado naquela manhã em Lisboa, apanhado um táxi directamente para a Azinhaga e naquele mesmo dia voltava a Düsseldorf. Mais de quatro mil quilómetros num dia para visitar a aldeia onde Saramago nasceu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em breve, quem sabe, outras histórias serão devolvidas aos lugares onde foram vividas pelo escritor. Memórias pequenas não faltam. Seguem pela estrada que Saramago percorria em direcção ao Mouchão dos Poejos. Param nos lugares onde outrora se erguiam as casas onde o escritor nasceu e os avós viveram, hoje substituídas por edifícios mais modernos, de azulejos azuis e verdes, de outros proprietários. Seguem pela antiga prisão, primeira sede do núcleo da fundação, onde “o tio de Saramago esteve preso por ter roubado uma galinha à avó”. Ou junto ao local onde Josefa entrava na carroça para ir buscar o neto à estação de caminhos-de-ferro de Mato Miranda. E podem, por fim, estender-se às duas ruas que se enlaçam, não muito longe da biblioteca, atribuídas a José Saramago e a Pilar del Río, a mulher “que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”. Porque foi nesta “pobre e rústica aldeia” que Saramago nasceu. “A bolsa onde o pequeno marsupial se recolheu para fazer da sua pessoa, em bem e talvez em mal, o que só por ela própria, calada, secreta, solitária, poderia ter sido feito. ”
REFERÊNCIAS:
Diletante: “É isso que sinto que é o meu trabalho”
Sobretudo não lhe chamem cineasta punk... é o que ele pede. Mas então o que é um “cripto-budista-ateu”, como se define? Talvez a serenidade de Paterson ajude a responder. É um filme sobre as “pequenas coisas”. Conversa com Jim Jarmusch, livro de poemas de Apollinaire nas mãos. (...)

Diletante: “É isso que sinto que é o meu trabalho”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sobretudo não lhe chamem cineasta punk... é o que ele pede. Mas então o que é um “cripto-budista-ateu”, como se define? Talvez a serenidade de Paterson ajude a responder. É um filme sobre as “pequenas coisas”. Conversa com Jim Jarmusch, livro de poemas de Apollinaire nas mãos.
TEXTO: Numa época de euforia com as séries de televisão e em que os filmes de acção dominam o entretenimento no grande ecrã, Jim Jarmusch acaba de realizar o seu filme mais sereno. Paterson é definitivamente de uma calma zen, tal como Adam Driver, que representa a personagem com o mesmo nome. Não deixa de ser surpreendente, após a nervosa aparição do actor na série Girls, e o seu mais sombrio papel em Guerra das Estrelas: O Despertar da Força. Mas, tal como Tom Hiddleston antes dele em Só os Amantes Sobrevivem, Driver estava disposto a fazer o que fosse necessário para entrar no universo de Jarmusch, onde o argumentista e realizador claramente evita qualquer das regras que dominam Hollywood. “Nunca li o livro das regras de Hollywood; se alguma vez conseguir pôr as minhas mãos em cima dele, queimo-o”, diz de forma irónica Jarmusch, 63 anos, com a sua característica voz profunda. “Quando fizemos Para além do Paraíso (1985), Homem Morto (1995) e todos esses outros filmes, fizemos uma escolha consciente de que iríamos fazer filmes que gostaríamos de ver e que o resto das pessoas nunca o iriam ver, de forma alguma. Se tentássemos fazê-lo para agradar ao resto das pessoas, então, bem podíamos tentar ir para Hollywood e arranjar um emprego no marketing e nos estudos de mercado. Também existe lugar para esses filmes, não estou a dizer que os odeio, simplesmente não é o que faço. Não consigo fazer isso. O meu trabalho é fazer filmes que eu gostaria de ver e que as pessoas que colaboram comigo gostariam de ver. ”Paterson regressa e tem ligações aos dois títulos que menciona, aquele que em 1984 o atirou para a ribalta, o minimalismo a preto e branco de Para além do Paraíso, e Homem Morto, de 1995, em que Johnny Depp interpreta contabilista do Ohio chamado William Blake. Paterson, motorista de autocarro que vive em Paterson, estado de New Jersey, é o tipo de poeta da classe operária que Jarmusch admira. Tendo crescido na cidade industrial de Akron (Ohio), no Midwest, e tendo lido a poesia de Rimbaud e Baudelaire na adolescência, apaixonou-se pelo cinema novo. Nos anos que passou em Paris enquanto estudante de intercâmbio universitário devorou, na Cinemateca Francesa, os filmes da Nouvelle Vague – o seu filme de 1999, Ghost Dog: O Método do Samurai, é uma homenagem a O Ofício de Matar, filme de 1967 de Jean-Pierre Melville – e dos mestres japoneses Ozu e Mizoguchi. “Gosto de filmes que às vezes são calmos e acerca de pequenas coisas”, admite. Hoje traz consigo um livro de poemas de Guillaume Apollinaire traduzidos para inglês por Ron Padgett. “Ron pertence a uma escola de poetas de Nova Iorque que celebram os pequenos pormenores. Ele escreveu os poemas para o nosso filme e estava a trabalhar nestas traduções há uns 50 anos. Sei ler em francês, mas estes ficaram tão belos. ” Jarmusch diz que Paterson apresenta uma estrutura poética de que nos apercebemos à medida que observamos a rotina diária do motorista de autocarro de New Jersey e a sua bem mais dinâmica mulher e dona de casa Laura (interpretada pela iraniana Golshifteh Farahani). A personagem é uma homenagem à longa relação de Jarmusch com Sara Driver, que surge creditada como consultora de argumento e montagem. “Os sete dias [em que decorre o filme] são quase como que estrofes de um poema e dentro delas existem repetições de coisas que podemos quase considerar como rimas internas ou pequenos detalhes: o relógio de pulso dele, os locais onde ele vai, a caixa do correio, beber uma cerveja. E tenho que dizer que só estou a notar estas coisas após ter terminado o filme. ”Reconhece que a sua grande força reside na intuição. “Se analisar as coisas perco a minha força. ”Apenas vê uma vez os seus filmes e detém a propriedade de todos os negativos, à excepção do documentário sobre Neil Young, Year of the Horse. Contribuiu, com a sua banda Squrl, para a banda sonora dos seus últimos dois filmes, e muitas vezes – mas não em Paterson – convida os amigos músicos para aparecerem como actores. O falecido Joe Strummer [The Clash] surgiu em O Comboio Mistério, John Lurie [The Lounge Lizards] entrou em dois filmes, Tom Waits participou em três. “Tenho um novo papel para o Tom, mas ainda não falei com ele sobre isso. ” Mais recentemente, Iggy Pop, que apareceu em Cafés e Cigarros e Homem Morto, transformou-se no principal tema do filme de Jarmusch sobre os Stooges, Gimme Danger, e o cantor desvairado até consegue ser mencionado em Paterson. “Normalmente escrevo com determinados actores em mente, mas não escrevi especificamente para o Adam ou a Golshifteh. Escrevi especificamente pensando no Masatoshi Nagase, porque gosto imenso dele e não trabalhava com ele há muito tempo”, diz referindo-se ao actor que entrou em O Comboio Mistério, o seu filme de 1989, e que surge no final de Paterson. Jarmusch queria trabalhar com a estrela iraniana exilada Golshifteh Farahani, de 33 anos, uma das actrizes mais decididas e interessantes no activo, e que está em ascensão a nível internacional devido ao seu papel em Piratas das Caraíbas: Os Mortos Não Contam Histórias. “Vi-a pela primeira vez em Meia Lua, um belíssimo filme curdo-iraniano [realizado por Bahman Ghobadi] que adoro, quando ela era muito nova. Depois vi-a numa série de outros filmes. Não queria que Laura fosse interpretada por uma americana, parecia-me demasiado óbvio. Por isso pensei: ‘Bem, escolhe a actriz que adoras e incorpora a etnicidade dela. ’ Golshifteh disse que aceitava. Fiquei muito contente e depois acrescentei algumas coisinhas, alguma música pop persa que Laura escuta, e algumas das suas roupas apresentam alguns motivos de caligrafia farsi. ” Da mesma forma, queria aproveitar as experiências de Adam Driver nos Fuzileiros, uma instituição rigorosa que muito raramente origina actores talentosos, como Harvey Keitel e Steve McQueen. “Coloquei apenas umas poucas referências, a fotografia e, claro, a forma como ele domina Everett no bar mostra que obviamente é alguém com treino militar. Não quis tornar essas coisas mais relevantes dado que eles não estão a fazer deles próprios. Mas queria ter algumas pequenas partes deles próprios. ”Acabou por encontrar no seu protagonista alguém com interesses e feitio semelhantes, e ajudou o actor de grande poder físico, 33 anos, a conseguir a sua actuação mais intimista, e uma das mais faladas para os prémios dos próximos meses. “O Adam protege-se da mesma forma que eu, pois nunca vê os filmes em que participa, acredita que a sua força reside na capacidade de reagir, e nisso tem razão. ”Tilda Swinton (Só os Amantes Sobrevivem, Os Limites do Controlo) apelida Jarmusch de “estrela de rock” do cinema, e o seu tufo de cabelo branco espetado e os seus óculos escuros ajudam a compor essa imagem. Parecendo espantosamente bem preservado para a idade, sem qualquer ruga à vista, dificilmente levará um estilo de vida rock’n’roll, e nos últimos vinte anos tem passado pelo menos uma semana por mês no seu retiro rural nas Montanhas Catskills. Mostra-se relutante em divulgar o segredo da sua juventude, brincando: “Talvez seja de ocasionalmente beber sangue humano. ”Sendo um produto do punk, afirma que muitas dessas bandas diziam-lhe muito e agora é amigo delas, mas desagrada-lhe se lhe chamamos um cineasta punk. “Preferia que não o fizesse. É certo que sinto que isso faz parte da minha vida, são esses os meus amigos, Joe Strummer, Mick Jones e Don Letts. Sou padrinho dos filhos do Don”, conta. Mas é também fã de hip-hop, admite que não é fechado na sua atitude face à música. “Não gosto de todo o hip-hop, mas gosto de hip-hop desde os seus inícios nos anos 70, porque é uma extensão dos blues. Gosto de soul, e é claro que gosto de reggae. A música reggae dos‘sound-systems’, que foi trazida da Jamaica, foi o início da cultura hip-hop. ”Apenas ouve música, ou também dança?“Não tem nada a ver com isso!”, replica. “Sou mais um ouvinte”, ri-se. “Não sou grande dançarino. Não sei movimentos de breakdance ou coisas do género. ”Mas acredita que nunca se é demasiado velho para apreciar o hip-hop…“Não sei como é que a nossa idade nos pode afastar de algo. E não é só isso, é que também tenho algumas ligações a crianças. Elas ouvem as rádios pop ‘mainstream’ e não quero ser um velho que está sempre a dizer ‘Mas que porcaria é esta que está a tocar?’. Por isso tenho que ouvir Justin Bieber e Selena Gomez e Taylor Swift e tenho que perceber o que é aquilo, e alguma parte daquilo é boa. ”Jarmusch gostaria que os jovens aprendessem alguma coisa sobre poesia, arte e música – e não apenas cinema – com os seus filmes. “Ficaria muito contente, felicíssimo, se algum miúdo no Kansas retirasse alguma coisa dos meus filmes. Mas não sou nenhum curador cultural. Reconheço que sou um diletante e algumas pessoas pensam que isso é negativo. Na minha opinião, isso acontece porque na minha vida não tenho tempo para aprender apenas sobre um tema, por isso interesso-me por todos esses assuntos. Sou um micólogo amador… hã, é a identificação de cogumelos [o seu interesse provém de quase ter morrido após ter ingerido um cogumelo venenoso], e adoro música inglesa do século XVII. Quero apenas absorver as coisas que são importantes. O cinema incorpora e apresenta tantas formas, pelo que, na minha opinião, muitos dos grandes realizadores de cinema são diletantes. Eles sabem de uma data de coisas diferentes. ”Se ainda não o perceberam, eis a prova de que Jarmusch é um coração-mole. Quando lhe perguntamos acerca de como escolheu o cão de Paterson – um filme onde o elemento canino é parte importante da história –, o realizador, que vive em Nova Iorque desde 1977, fica com a voz embargada. “No argumento eu tinha colocado um Jack Russell, porque eles são muito activos e pensei que podia ser divertido. Mas o treinador com que estávamos a trabalhar disse que não tinha nenhum Jack Russell treinado, mas provavelmente conseguiria encontrar algum. Mas sugeriu que eu visse uma bulldog-inglesa chamada Nellie, que vinha de um canil e que era espantosa. Disse-me que não queria interferir no meu processo criativo, mas fez dois comentários relativamente ao argumento. Um é que um Jack Russell tem metade do peso de um bulldog, e que um bulldog seria mais apropriado quando os membros do gangue aborrecem Paterson com comentários acerca de quanto dinheiro valem os cães. Sabe-se que um bulldog para venda nas ruas, especialmente nas zonas mais problemáticas, vale muito mais. Depois recebi os vídeos e conheci a Nellie, ela fez de transexual [diz a brincar, pois no filme o cão chama-se Marvin] e foi incrível. Ou seja, tudo no filme, as vocalizações, os latidos, as rosnadelas, é tudo ela. Não são dobrados de outros cães, ela fez todas as suas habilidades e cenas e foi fantástica. Mas após termos filmado ela ficou com cancro e morreu meses depois. Tinha oito ou nove anos, e nesta raça vivem um máximo de doze anos. Teve uma boa vida como cão estrela de rock. ”Uma das suas maiores influências tem sido Nicholas Ray, realizador de “Rebel without a cause/Fúria de Viver”, que também teve impacto nos realizadores da Nouvelle Vague que Jarmusch tanto aprecia. “Quando eu era novo fui assistente de Nicholas Ray, durante os últimos anos da vida dele”, relembra. “Ele teve um programa de rádio com música dos Appalaches nos anos 30, teve uma companhia de teatro, Bertolt Brecht dormiu no sofá dele, estudou arquitectura com Frank Lloyd Wright, e sabia tudo o que havia a saber sobre pintura e literatura. Conhecíamo-lo mais como um grande realizador, e era um diletante no melhor sentido da palavra. E é isso que sinto que é o meu trabalho. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A nível pessoal, aproxima-se da abordagem budista no que respeita à forma como encara a vida. Já no tema da religião revela-se particularmente pitoresco. “Sou tipo cripto-budista-ateu. Costumava ser ateu militante, agora já não acredito em dizer a outras pessoas o que elas devem pensar. Creio que as religiões se assemelham à superstição e não gosto de ser controlado por nada daquilo que elas fazem. Não gosto do monoteísmo ou da ideia de um velho com barba lá em cima no céu a julgar-nos após a nossa morte. No que me diz respeito, bem podem fazer o pino e adorar o rato Mickey. ”Após aceitar um investimento financeiro da Amazon, sob a estrita condição de que Paterson seria primeiro exibido nos cinemas, Jarmusch poderá agora até aventurar-se na televisão, pois escreveu um episódio-piloto baseado em Ghost Dog: O Método do Samurai, juntamente com outro dos seus colaboradores habituais na área da música, RZA dos Wu-Tang Clan. “Passa-se no futuro próximo e tem muitas pessoas a viver naquilo que tinha sido o sistema de Metropolitano de Nova Iorque”, explica. “A ideia é eu ser o produtor-executivo, e até poderei dirigir o episódio-piloto. Acho que o argumento é tão bom que eles provavelmente não se interessarão por ele. ”
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Francisco José Viegas diz que “os portugueses têm medo do futuro”
O Le Monde esteve em Lisboa para entrevistar Francisco José Viegas – o escritor e criador do inspector Jaime Ramos, não o secretário de Estado da Cultura. “Pertenço a uma geração que a um determinado momento deve responder ‘sim’. E aceitar compromissos. Quando o nosso país atravessa uma crise terrível, escrever em jornais ou em blogues o que deve ser a cultura ou a sociedade, como fazer o cinema sair do marasmo ou salvar as bibliotecas, já não basta...”, diz, o autor de Longe de Manaus, que aceitou trocar os livros por um lugar de secretário de Estado num governo PSD-CDS. (...)

Francisco José Viegas diz que “os portugueses têm medo do futuro”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.3
DATA: 2012-08-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Le Monde esteve em Lisboa para entrevistar Francisco José Viegas – o escritor e criador do inspector Jaime Ramos, não o secretário de Estado da Cultura. “Pertenço a uma geração que a um determinado momento deve responder ‘sim’. E aceitar compromissos. Quando o nosso país atravessa uma crise terrível, escrever em jornais ou em blogues o que deve ser a cultura ou a sociedade, como fazer o cinema sair do marasmo ou salvar as bibliotecas, já não basta...”, diz, o autor de Longe de Manaus, que aceitou trocar os livros por um lugar de secretário de Estado num governo PSD-CDS.
TEXTO: “Subitamente, eu, o editor feliz, o escritor sem preocupações, cometi este erro de aceitar um cargo político. Mas, não vamos falar disso pois não?” A reportagem Le Portugal ne rêve plus (Portugal deixou de sonhar), publicada na edição desta sexta-feira do diário francês, é assinada por Yann Plougastel e faz parte de uma série de Verão em que os escritores de policiais ajudam a fazer o retrato do seu país (L’Eté en séries – Série Noire en Europe). O próximo será dedicado à Irlanda com Stuart Neville, autor do best-seller The Twelve. “Acredito que a nossa relação com a Europa não é feliz porque uma parte essencial das nossas raízes continua em África e no Brasil. . . Com a crise, muitos regressaram para lá. Em dez anos, fizemos todas as reformas pedidas pela Europa (o aborto, o casamento homossexual). Foi sem dúvida rápido, mas ao mesmo tempo a nossa economia não conseguiu criar bases sólidas. Estamos muito dependentes da situação espanhola, grega, irlandesa. Perdemos a nossa agricultura, a nossa pesca e a nossa indústria já pouco conta. Só nos resta a nossa cultura e o mar como oferta turística”, diz o escritor ao Le Monde. A falta de capacidade de sonhar que dá título ao artigo explica-a Viegas pela história do país: “Vivemos numa sociedade que perdeu os seus sonhos. Os portugueses têm medo do futuro, de falar. E isto acontece depois da Inquisição, que foi há 300 anos, e de 50 anos de regime fascista de Salazar. Hoje, com a crise, continua. É terrível. ”
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Palavras-chave aborto cultura medo casamento homossexual
Warren Sonbert, um cineasta dos gestos
Começa a revelar-se esta segunda-feira na Cinemateca Portuguesa uma obra preciosa: o cinema experimental e humanista de Warren Sonbert. Até dia 14. (...)

Warren Sonbert, um cineasta dos gestos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-12-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Começa a revelar-se esta segunda-feira na Cinemateca Portuguesa uma obra preciosa: o cinema experimental e humanista de Warren Sonbert. Até dia 14.
TEXTO: O cinema de Hollywood e as experiências do underground. Música pop, música clássica e ópera. Impressões de Nova Iorque, Europa, África ou do Médio-Oriente. Espaços públicos e momentos privados. Tudo isto faz parte do cinema aberto, frágil e apaixonado de Warren Sonbert (1947-1995), que a Cinemateca Portuguesa revela a público português até ao próximo dia 14. Mas quem foi este cineasta que ainda adolescente se destacou com Amphetamine (1966), filme de uma provocadora languidez (rapazes drogam-se e beijam-se ao som de Where did our love go, das Supremes)? Pese embora um intenso protagonismo até anos 1990, e as retrospectivas que o seu trabalho mereceu, quando pensamos em cinema experimental não recordamos o seu nome. Uma injustiça perfeitamente reparável, nas palavras de Jon Gartenberg, organizador do ciclo e arquivista americano da história do cinema e filmes de vanguarda. “A presença da sua voz e visão na história do cinema experimental é inegável, é um autor tão importante como o Ken Jacobs ou Stan Brakhage, sobretudo pelo como modo como explorava a ideia de edição e montagem”. “Carriage Trade” (dia 11, 18h), obra de 1972, que Jonas Mekas apelidou de “filme-canto”, com imagem recolhidas ao na Europa, Ásia, Africa e Estados Unidos, ilustra muito bem esta asserção: “As imagens são de lugares diferentes, mas ele associou-as através do gesto humano, das texturas, das cores. É isso que as põe em relação para criar uma espécie de sinfonia global que era sua visão do mundo”. Na visão do mundo de Warren Sonbert, homossexual e jovem prodígio do cinema underground dos anos 1960 (gravitou em torno da “família” de Andy Warhol) cabe uma multitude de sons, imagens, referências, sempre justapostas, desvelando-se num processo delicado, evocativo e não linear. A música pop, em particular a da Motown (mas não só) escorre lentamente sobre vários filmes, amplificando sem irrisão o que as imagens figuram: os beijos de Amphetmanine (dia 10, 18h), os gestos dos jovens casais de The Bad and The Beautiful. (dia 10, 18h), um dos melhores filmes do ciclo) ou os encontros e as situações que povoam The Tenth Legion (dia 11, 18h). Já o cinema de Hollywood surge “representado” de um modo mais oblíquo, em fugazes metonímias. Nas imagens dos casamentos e dos casais (um dos motivos recorrente de Warren Sonbert), enquanto promessas de histórias de amor, (de novo) nos gestos (o abraço apaixonado de Amphetamine é uma citação de Vertigo, de Hitchcock) ou na própria estrutura do filme (a montagem de Noblesse Oblige (dia 10, 18h) foi realizada a partir de The Tarnished Angels, de Douglas Sirk)“Ele estudou muito bem a estrutura dos filmes Hollywood. Era um amante do cinema clássico. Escreveu sobre Hitchcock e Douglas Sirk”, lembra Jon Gartenberg, “mas preferiu trabalhar com um estrutura mais aberta e com a ideia de associação na tradição de Dziga Vertov. Por isso as suas obras, em particular as que fez após Carriage Trade, abrem-se, desenvolvem-se perante nós, sem guião. Há uma tensão equilibrada, uma associação não linear de momentos, um pouco como a vida”. É frequente encontrarmos num filme imagens de outro filme. Por exemplo, os casais de The Bad and The Beautiful reaparecem em Carriage Trade, as mesmas imagens de desfiles ou espetáculos de circo atravessam Whiplash (dia 10, 18h) e The Tenth Legion. Ver o cinema de Warren Sonbert é aceder a uma memória e a um arquivo. “Sim, é verdade. Nos processos de pesquisa e estudo da sua obra, à medida que fomos vendo os filmes fomos descobrindo e redescobrindo outros. Ele de facto trabalhava a partir de um arquivo pessoal e histórico que era o seu. Por exemplo, as imagens das manifestações depois dos assassinatos do Harvey Milk são imagens que ele fez [com a sua habitual câmara portátil] e isso para mim é um aspecto fascinante”. Warren Sonbert morreu em 1995, vítima da Sida (e neste ciclo não faltam obras que abordam a sua mortalidade), mas o cinema, intenso e frágil, que nos deixou, permanece eterno. Várias instituições têm colaborado na sua preservação, incluindo a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, mas para Jon Gartenberg ainda há muito a fazer: “Quero reunir e mostrar não só os filmes, mas os artigos que ele escreveu sobre cinema e música. Não só o produto da sua actividade, mas tudo aquilo que a informou. Para tratá-la com a importância que tem, que na minha opinião será a mesma da obra de um Godard ou de um Warhol”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave adolescente estudo espécie homossexual circo
Na Turquia Apollinaire não é literatura e pode levar à prisão
O editor e o tradutor turcos de um livro de Apollinaire podem vir a ser presos por divulgarem conteúdos obscenos. (...)

Na Turquia Apollinaire não é literatura e pode levar à prisão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: O editor e o tradutor turcos de um livro de Apollinaire podem vir a ser presos por divulgarem conteúdos obscenos.
TEXTO: O Supremo Tribunal turco declarou que o clássico da literatura erótica As proezas amorosas de um jovem Don Juan, do escritor francês Guillaume Apollinaire não é arte. Esta decisão pode significar a prisão do tradutor e editor do livro na Turquia, se a próxima sentença considerar o livro pornografia. Na Turquia, a circulação de pornografia fora dos circuitos autorizados é proibida por lei, excepto se estiver em contexto científico ou artístico. Depois de quatro anos de processos em tribunal, o Supremo Tribunal anulou as decisões de tribunais anteriores e confirmou que o livro, publicado pela primeira vez de 1911, não é literatura devido à sua “linguagem simples e vulgar”, lê-se na sentença. O livro que conta experiências sexuais de um jovem de 15 anos, contém segundo o tribunal turco “perversão para com mães, tias, irmãs, pessoas do mesmo sexo e animais”. Esta decisão faz com que o processo volte ao tribunal anterior que fica encarregado de decidir se o livro é pornografia. Se for, o editor Irfan San, premiado em 2010 (pouco tempo depois do início do processo) pela Associação Internacional de Editores com o prémio Freedom to Publish, pode ser condenado a até nove anos de prisão, e o tradutor Resit Imrahor, até seis anos. A decisão de lançar este e outros livros foi, para Irfan Sanci, manter viva a tradição de literatura erótica otomana dos séculos XVII e XVIII. “Se publicássemos esses textos hoje, poderíamos esperar ataques muito mais violentos, porque são bastante mais explícitos que estes livros que publicámos”, disse o editor e noticiou o jornal espanhol ABC. No início deste ano, o governo turco acabou com a lista de livros proibidos que mantinha há décadas, mas a literatura continua a ir a tribunal. Este processo iniciado em 2009 foi aberto também contra o clássico da literatura indiana Kama Sutra, um texto otomano e Conos, do escritor espanhol Juan Manuel de Prada. Ainda no início deste ano, o Ministério da Educação turco tentou eliminar das escolas as obras Ratos e Homens, do Nobel da Literatura John Steinbeck, e Meu pé de laranja lima, do brasileiro José Mauro de Vasconcelos. Não é a primeira vez que obras de Guillaume Apollinaire levam editores a tribunal na Turquia. Rahmi Akdas foi condenado por publicar As onze mil vergas, que foi declarado “material obsceno ou imoral susceptível de despertar e explorar o desejo sexual entre a população”. Akdas recorreu para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que decidiu a seu favor acrescentando que a decisão turca impedia o acesso ao património europeu e violava a liberdade de expressão. O processo contra Irfan San e Resit Imrahor está no âmbito do artigo 226 do código penal turco, uma lei contra a obscenidade, mas levanta questões de liberdade de expressão. O Supremo Tribunal apelou na sentença a que a liberdade de expressão fosse usada com “responsabilidade”, defendendo no entanto que a tradução e publicação de um livro não podem ser vistas como actos de liberdade de expressão. “As liberdades podem ser limitadas e sujeitas a regras para prevenir desordens e preservar a moral e a saúde da sociedade”, diz a sentença. Em Maio deste ano, o pianista Fazil Saypor viu anulada a sua condenação a dez meses de prisão com pena suspensa por cinco anos por ter parodiado algumas práticas religiosas islâmicas no Twitter. Para os tribunais turcos, os seus tweets foram insultuosos para o islão. A condenação tinha levado a Comissão Europeia a pedir o "pleno respeito" pela liberdade de expressão na Turquia.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos homens lei tribunal educação prisão homem sexo sexual
A sensibilidade dos Belle & Sebastian na despedida em grande de Paredes de Coura
No último dia do festival, dos Calexico aos Palma Violet ou aos Ducktails, houve muito, e muito bom, para ver. (...)

A sensibilidade dos Belle & Sebastian na despedida em grande de Paredes de Coura
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: No último dia do festival, dos Calexico aos Palma Violet ou aos Ducktails, houve muito, e muito bom, para ver.
TEXTO: Ouve-se então Assim falava Zaratustra, de Johann Strauss, e as gentes agitam-se, o povo corre porque tem que correr para ver tudo muito bem enquanto outro povo, cansado de cinco dias de actividade e de noites longuíssimas, se mantém imperturbável (leia-se a dormir o sono dos justos, insolentemente esparramado da relva, grosseiramente indiferente às movimentações à sua volta). Assim falava Zaratustra, o épico, usado como Stanley Kubrick nunca imaginaria: como porta de entrada no DJ set dos Justice que encerrou oficiosamente a 21. ª edição do festival Paredes de Coura. Oficiosamente porque depois dos flashes, das passagens por Marvin Gaye, 2 Unlimited, Dandy Warhols, funk e disco e techno e Don’t stop me now, dos Queen, para encerrar a festa em delírio comunal, ainda houve actividade no recinto até altíssima madrugada. O DJ set dos Justice - “portentoso espectáculo de luz e som protagonizado por dois guedelhudos franceses que a juventude deveras aprecia”, dir-se-ia caso o festival estivesse a ser coberto pela RTP na década de 1970 (e não haveria imagens, já que a banda proibiu os fotógrafos de fazer o seu trabalho) -, funcionou como celebração final. O duo ofereceu a música, o anfiteatro foi discoteca e esta discoteca era uma discoteca especial. Há mosh e crowd surf e vê-se ao longe, entre o público, uma cruz (indispensável na iconografia da banda) construída com caixas de sapatos e muita fita adesiva ser engolida pela multidão. Passamos por duas figuras com máscara de cavalo dançando perto de um baloiço, observamos ao longe um rapaz com máscara de lobo e um admirável corajoso coberto de lycra verde, um alien da cabeça aos pés – cerveja na mão, conversa com os amigos do lado, tudo normal, é o último dia de festival, “no pasa nada”. O quarto dia do Paredes de Coura, sexta-feira, fora, como titulámos, “calmo, demasiado calmo”. Felizmente, foi só para enganar: sábado, na despedida, não houve tempo a perder. Tantos focos de interesse. As maravilhosas canções dos Belle & Sebastian a aquecerem-nos o coração e os Calexico em viagem transfronteiriça com trompete mariachi e guitarra pedal steel. Salsa com country dentro e uma versão de Alone again or, dos Love, ou de Love will tear us apart, dos Joy Division, porque há que ser generoso com aqueles entre o público que não sabiam ao que vinham. Isto já com a noite caída sobre o anfiteatro natural, com o sempre incrível céu tão estrelado que o protege e o cenário sempre irresistível das árvores tão altas, tão frondosas e tão iluminadas que se erguem por trás do palco principal. Antes, à tarde, os Ducktails de Matt Mondanile, maravilha dolente, música solar que faz da introspecção uma arma (mas que rocka muito, eléctrica e muito elegante quando a ocasião o pede), trouxeram as canções para fazer esquecer por momentos os Real Estate (a outra banda de Mondanile) que gravaram no óptimo The Flower Lane e anteciparam o futuro com algumas guardadas para nova edição. De caminho, inauguraram uma tendência deste último dia de Paredes de Coura. “Portugal é o meu sítio preferido”, exclamou Mondanile algures, antes de informar que a banda gostou tanto de tudo isto que decidiu ficar mais uns dias pela região e que muito agradecia se alguém os acolhesse. “Somos quatro bons rapazes”, disse então e são mesmo e esperamos que estejam por esta altura muito bem alojados entre Douro e Minho. A tendência foi, então, o elogio ao festival e às suas redondezas. Horas depois, Joey Burns, dos Calexico, estaria a declarar o seu amor ao Minho e ao seu vinho (“o branco, o tinto, o verde, o Touriga Nacional”). Stuart Murdoch, pelos Belle & Sebastian, lá falaria do rio e do banho que não tomou no Coura mas que gostaria de ter tomado (“se ainda fosse um homem jovem”), lá falaria de como o cenário que encontraram é bonito e bonitos são eles, os Belle & Sebastian, mas Murdoch tem razão. Em 2014 há maisQuando o palco principal encerrara actividade e a animação se transferira para o Vodafone FM, os norte irlandeses And So I Watch You From Afar, gente de nervo pós-rock sem espaço para subtilezas, impressionados com o fervor posto no estoirar dos últimos cartuchos pelo público, soltariam um “vamos voltar, temos que voltar”. E muitas horas antes, os londrinos Palma Violets, uma das boas surpresas deste último dia, banda com um álbum no currículo, 180, músicos com os discos de Undertones, Clash (e um par de compilações de garage da década de 1960) bem digeridos e transformados em canções à beira do descontrolo (mas sempre com destino certo bem definido), haveriam de improvisar um comicamente sincero “Portugal I love you, and I always will”. Uma das suas canções tem por título Step up for the cool cats e eles não estão aqui para enganar ninguém. Havia muitos a esperá-los e a celebração não demorou: corpos surfando sobre a multidão, a banda a entregar-se nos braços do público, o novo punk para uma nova geração a iluminar a tarde quente. Despediram-se com 14, só guitarra e bateria (o teclista e o baixista dançavam, saltavam, mergulhavam entre o público), abraço final entre banda e plateia. O último dia do Paredes de Coura 2013 foi precisamente isso. Um longo abraço, ora terno e reconfortante, como aconteceu com os Belle & Sebastian, ora intenso e selvagem, como no mosh pit aberto nos Palma Violet, no crowd surf com o rock’n’roll muito negro, visceral do power trio Bass Drum Of Death, na viagem magnífica dos barcelenses Black Bombaim, acompanhados pelas teclas de Shella, pelos saxofones de Pedro Sousa e por um theremin que deu nova camada a estas digressões psicadélicas tão intensas quanto exploratórias. Olhando em frente, registam-se os factos: a edição 2014 está assegurada e as datas e a primeira banda em cartaz serão anunciadas brevemente. Em balanço muito factual, registam-se as cem mil entradas contabilizadas pela organização ao longo dos cinco dias de festival, três mil das quais de público estrangeiro vindo maioritariamente de Espanha. Guarda-se na memória a enchente para Alabama Shakes, o magnífico psicadelismo dos Unknown Mortal Orchestra e o transe tuaregue de Bombino. Continua-se a debater a performance dos The Knife e a lembrar a festa pop dos Hot Chip ou a perfeição indie dos Veronica Falls. Porque gostamos tanto dos seus álbuns clássicos, lutamos para esquecer o concerto dos Echo & The Bunnymen. E porque o rock’n’roll é uma expressão tão viva e tão libertadora, a memória da aparição a meio da tarde de quinta-feira dos Glockenwise continua a deixar-nos um sorriso no rosto. E depois há o festival para além das bandas: as ruas da vila ocupadas sem resistência, o ambiente bucólico retemperador, as margens do rio Coura e a sensação de que todo este cansaço bom que cai sobre nós ao fim de cinco dias é um conforto para o espírito de quem vê na música um mapa de vida muito preenchido. Para muitos dos que estavam sábado no Paredes de Coura, os Belle & Sebastian estão nele abundantemente representados. Perfeito, portanto, vê-los na despedida em grande de um festival como este. Foram, nos anos 1990, refúgio seguro das inseguranças de quem apanhava então com a vida de frente. Foram vitória da sensibilidade de quem quer encontrar sentido nas coisas, trouxeram Bacharach e a Motown (e os Smiths e os Feelies e por aí fora) para novas canções. Ofereceram-nos um guia que podíamos seguir, conduzidos pela Sukie que passeia pelo cemitério, pelo Boy with the arab strap, pela Judy and the dream of horses – só para ficarmos por canções visitadas no concerto. Hoje, Stuart Murdoch pode ser velho para ir dar uns mergulhos no rio, mas as canções, estas canções interpretadas pela trupe de músicos (a que se juntaram quarteto de cordas e metais português), não têm uma ruga que seja. A terceira passagem por Portugal, depois de um Sudoeste de 2002 e de um Coliseu lisboeta em 2006, mostrou-o novamente. Nos rostos de quem estaria a aprender a ler quando os Belle & Sebastan editaram Tigermilk, o álbum de estreia, em 1996, e que cantava letra após letra nas primeiras filas. Nos passos de dança do muito feliz Stuart Murdoch; no sorriso do seu fiel escudeiro, o guitarrista Stevie Jackson; na forma como recebíamos canção após canção como conhecidas de longa data que não perderam nenhum do encanto – I want the world to stop é desejo que não nos abandonou e as Stars of track and field são tão bonitas como quando lhes pusemos os olhos pela primeira vez. Bolas de sabão atravessam o ar enquanto ouvimos Sukie in the graveyard e o cenário não podia ser mais apropriado – até porque a delicadeza da música dos Belle & Sebastian esconde manchas negras sob a superfície límpida. Dançamos depois o stomp Motown de If she wants me, vemos Stuart Murdoch chamar pela segunda vez público ao palco porque dançar sozinho não tem piada e duas mãos cheias de gente juntam-se à gente que tocava Simple things. Já não há separação entre palco e plateia e Boy with arab strap e Legal man depois dela são cantadas por um Stuart Murdoch rodeado de rostos felizes. Chega Judy and the dream of horses, essa Judy que “who never felt so good except when she was sleeping”. Chega o encore, Murdoch avisa que só há tempo para mais uma canção e pensamos no que ouvimos e no que queríamos ainda ouvir. Não ouvimos Like Dylan in the movies. Veio Get me away from here, I’m dying. Não ficámos a perder, ficámos de alma preenchida. O delírio Justice seguir-se-ia dentro de momentos. A edição 2013 de Paredes de Coura despedia-se. Uma despedida em grande.
REFERÊNCIAS:
“A cozinha vai tornar-se o grande tema filosófico”
Tal como aconteceu com a sexualidade nos anos 1960, problematizada e transformada em tema filosófico e político, o mesmo começa a acontecer hoje com a cozinha e a alimentação, diz Daniel Innerarity. Afinal, “aí joga-se todo o humano”. (...)

“A cozinha vai tornar-se o grande tema filosófico”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 5 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Tal como aconteceu com a sexualidade nos anos 1960, problematizada e transformada em tema filosófico e político, o mesmo começa a acontecer hoje com a cozinha e a alimentação, diz Daniel Innerarity. Afinal, “aí joga-se todo o humano”.
TEXTO: Filósofo espanhol, investigador do centro Ikerbasque da Universidade do País Basco, director do Instituto de Governação Democrática, Daniel Innerarity é um pensador interessado sobretudo nos temas da política e da democracia. O que o levou então a escrever, com o chef basco Andoni Aduriz, um livro — Cocinar, Comer, Convivir — no qual ambos reflectem sobre o papel da comida nas nossas vidas?Innerarity esteve em Lisboa para participar, ao lado de Aduriz, no Congresso dos Cozinheiros, organizado pelas Edições do Gosto e que aconteceu no início de Outubro na Lx Factory. A comida foi o ponto de partida para uma conversa com o P2 que se transformou numa reflexão sobre o mundo hoje e o olhar que um filósofo pode ter sobre ele. Porque é que decidiu juntar-se a um chef como Andoni Aduriz para fazer um livro?Andoni e eu somos amigos há anos e escrevemos este livro de uma forma não intencional. Juntávamo-nos para comer e íamos falando de temas, ele gostava de filosofia, eu gostava do que ele fazia e fomos trocando opiniões, às vezes por escrito, eu comentando conferências que ele preparava e que me mandava. Até quase ao final, o que estávamos a fazer era a manter uma conversa. Mas no final do processo decidimos que o que estávamos a fazer era um livro. Há um lado filosófico no trabalho de Andoni?Sim, conheço alguns cozinheiros e Andoni tem a peculiaridade de ser especialmente reflexivo, interessa-lhe muito fazer perguntas acerca do significado do que faz. O recurso a um filósofo foi-lhe útil e eu gosto de estar com pessoas que têm problemas, não os que têm soluções. Esse carácter reflexivo de Andoni encontrou um aliado em mim, que sou um curioso insaciável. O que é que torna uma conversa filosófica? Todos podemos estar no café a falar da vida mas o que é que coloca algo ao nível da filosofia?O que diferencia a conversa filosófica de qualquer outra é o afã de problematização das coisas. Qualquer pessoa fala de futebol, do tempo, de política, com os seus vizinhos e os seus amigos mas em geral creio que nas conversas vulgares há mais respostas do que perguntas. Nas conversas de tipo filosófico há mais perguntas do que respostas. O que nos interessa é perguntar pelo sentido que existe nas coisas, um sentido que não é imediato ou fácil. Por exemplo, no mundo da cozinha, a mim o que me atrai — e eu sou um filósofo que me dedico fundamentalmente à filosofia política — é que há uma microssociedade. A cozinha é, como diria Marcel Mauss [sociólogo francês, que morreu em 1950], um facto social total. Aí joga-se todo o humano, as questões que têm que ver com a família, a política, a sustentabilidade, o meio ambiente, as relações sociais, a materialidade, as relações homem-mulher. Creio que isso é o que faz com que o tema seja tão potencialmente filosófico. Há uns anos, quem nos diria que a sexualidade se poderia converter num dos grandes temas filosóficos quando era um assunto que tinha que ver com o privado, sem especial relevância, algo destinado à mera reprodução. Os filósofos dos anos [19]60 convertem-no num tema-estrela. Creio que em muito pouco tempo, a cozinha começará a ter, e continuará a ter, um significado parecido. Vai ser o grande tema. Precisamente por isso, porque aí joga-se todo o humano, para o bem e para o mal. Porque é algo de básico, essencial e vital? Há outros temas filosóficos que não fazem a diferença entre viver e morrer, mas a alimentação é tão vital como a sexualidade. Exacto. Pensar que a sexualidade é um procedimento para a reprodução é reduzi-la a uma parte muito pequena. É como pensar que o drama de Tristão e Isolda poderia ser resolvido por um ginecologista. No drama de Tristão e Isolda está todo o humano, toda a paixão, a tristeza, o engano. Se entendermos a comida como a mera ingestão de material para a sobrevivência individual, estaremos a fazer algo similar. Na história da filosofia, alguma vez a comida foi pensada com este nível de atenção?Há alguns precedentes, alguns filósofos falaram um pouco da comida como um elemento interessante mas não foi um problema teórico até que Brillat-Savarin [gastrónomo francês, 1755-1826] começasse a reflectir sobre ele. Ainda não tem o estatuto teórico que adquiriu a sexualidade nos anos 60 do século passado, mas já há muitas aproximações filosóficas e antropológicas à cozinha e estou convencido de que ainda agora começou. Continua, no entanto, a haver algum preconceito. Uma discussão sobre cozinha, gastronomia, comida, não é vista da mesma forma como uma discussão sobre política ou economia. Sim, nos sentidos humanos, há uma espécie de hierarquia muito elitista, que vem de Aristóteles e que considera que o sentido da vista e do ouvido são os mais nobres e os outros de menor valor. As artes ligadas à vista e ao ouvido têm um estatuto arrogante, elitista e falta-nos uma reivindicação do paladar e do olfacto como ligados a temas que se podem considerar como arte. É o caso da comida. É preciso fazer uma certa revolução dos sentidos menores, com menos prestígio, para que este tema tenha o tratamento que merece. Porque é que esses sentidos foram considerados menores?Provavelmente porque aparecem como os menos teóricos, os menos próximos da razão. A razão e a vista são bastante próximas, mais abstractas, e os sentidos relativos ao comer são mais materiais. Por trás disto, há toda uma revolução antropológica a fazer acerca do que é importante. Mas prossigamos com a analogia e pensemos nos séculos em que a sexualidade foi considerada como algo de pouca importância, banal, sem identidade filosófica. Não podemos sequer dizer que privilegiamos os sentidos mais próximos dos animais, porque estes também têm visão e audição. Creio que tem que ver com esse carácter abstracto, mais próximo do racional e mais distante do objecto. O ouvido, mas sobretudo a vista, são os que mais nos distanciam da objectividade. O que rodeia a comida é pura materialidade. Há que voltar a pensar a materialidade humana sem essa hierarquização das faculdades sensíveis herdada de Aristóteles. Podemos dizer que houve uma intelectualização excessiva do pensamento e hoje estamos a assistir a uma…… materialização. O mexer na terra, o interesse sobre a forma como os alimentos crescem, o toque. Essa reaproximação tem que ver com uma necessidade actual?Uma nova concepção da materialidade humana é um assunto muito revolucionário. Certos discursos conservadores falam de um materialismo imperante. Creio, pelo contrário, que às vezes estamos numa sociedade muito espiritualista no pior sentido da palavra, uma civilização que considera o seu humano separado do seu meio, achando que ele pode pensar-se sem esse contexto material. Esta revitalização do local é o que nos diz que não podemos viver fora de certos contextos. As alterações climáticas são muito eloquentes e estão a dizer-nos que precisamos de meios ambientes com uma certa temperatura, com certas condições de reprodução material. A consciência ecológica e os riscos ligados às alterações climáticas voltaram a despertar uma civilização que olhava para o sujeito humano como emancipado do seu meio material. Deste novo materialismo faz parte também o enobrecimento das coisas do comer. Nos anos 60, esse interesse pelas questões da sexualidade não foi acompanhado por outros temas como a comida, por exemplo. Não foi uma época em que se pensasse muito a comida e, no entanto, é a importância dos sentidos que está em causa em ambos os casos. Provavelmente porque o tema da sexualidade teve, a partir do Maio de 68, uma dimensão muito política e transgressora de valores e normas anteriores. É quando as coisas assumem um carácter político que ganham uma nova importância. Claro, por isso, a minha tese é que possivelmente estamos agora a descobrir a força política que têm os nossos hábitos de comer. Comendo, comemos o mundo. E podemos fazer política com o carrinho de compras. A nossa maneira de consumir, os nossos hábitos alimentares, se comemos sozinhos ou em companhia, com ordem ou desordenadamente. Deveríamos redignificar a força transformadora dos actos de conduta, das nossas microdecisões. Às vezes, pensamos como é difícil mudar o mundo, mas do mesmo modo que o #MeToo pode estar a mudar o mundo, as microdecisões de cada um de nós, de consumir de uma determinada maneira e não de outra, têm um potencial transformador da sociedade. É preciso uma politização das realidades ligadas ao comércio. Porque a ideia do que é político muda nos diferentes momentos da História. Totalmente. Ao longo da História, o que se considera político e o que não se considera foi mudando. Ao mesmo tempo, há uma ampliação progressiva do espaço do político. Cada vez há mais coisas que se re-politizam. No fundo, politizar significa que uma coisa que era considerada como dada pelo destino ou aceite por todos ou indiscutível passa a ser objecto de tematização geral. Passou-se com o corpo, com o estatuto da mulher, com o privado, pode acontecer também com a comida. Nos seus artigos, fala com preocupação do estado da democracia. É o meu tema central. Neste momento, as coisas parecem estar a agravar-se. É como se já aceitássemos como uma inevitabilidade que a democracia está condenada a entrar num ciclo decrescente. A comida também tem que ver com a democracia, por exemplo em temas como quem controla as sementes e, portanto, o alimento. Sim, há muitos pontos de contacto. Um deles é a ideia de que temos de ganhar autodeterminação culinária. Isto significa, entre outras coisas, que temos de aprender a cozinhar para nós, que estamos a delegar demasiadas coisas noutros que cozinham para nós. A ideia de produção própria tem que ver com a democracia. Tal como tudo o que tem que ver com a justiça alimentar, com a igualdade no acesso aos bens da alimentação, com uma melhor articulação entre o global e o local. A globalização foi entendida há 30 ou 40 anos como um nível supralocal, hoje pensamos que é preciso articular as coisas. Podemos falar da comida como um lugar de trabalho da democracia. Estamos também a pensar muito na inteligência artificial, no que faz de nós humanos, no que estamos a transferir para as máquinas, e há aí uma fronteira que tem precisamente que ver com os sentidos. As máquinas não podem saborear. Os sentidos ainda são uma coisa muito humana. Muito material, muito pouco substituível. Defendo que a tecnologia, que me interessa muito, não resolve nem destrói problemas humanos básicos da existência. O relevante é como a inserimos num contexto social. Pensar que ela vai substituir o humano é puro determinismo. Escrevi para o El País um artigo chamado A Decisão de Siri. Vamos confiar todas as nossas decisões às máquinas? Não, mas faríamos bem em confiar muitas delas. Passámos de uma certa euforia de pensar que toda a tecnologia vai ser a grande solução a ter hoje uma visão particularmente negativa da tecnologia. É preciso equilibrar. A tecnologia pode fazer-nos prescindir de muitos trabalhos mecânicos, aumentar a produção de bens de consumo, incluindo a comida, mas isso tem de ser decidido com equilíbrio e por nós próprios. É verdade que há muitas decisões que estamos a transferir, porque os algoritmos têm uma maior capacidade de resposta, mas isso é precisamente o contrário de recuperar os métodos de produção ou de cozinharmos nós mesmos. É abdicarmos disso para uma entidade que não é um Governo, uma instituição, nem sequer uma empresa, mas algo de mais difuso. O que acontece é que as tecnologias mais sofisticadas incluem sempre, quando estão bem desenhadas, uma certa desobediência ao autor. Se todas as nossas tecnologias nos obedecessem demasiado, não funcionariam bem. O exemplo mais claro são os travões do carro, que nos obedecem salvo em alguns casos, por exemplo, de pânico, quando travamos a fundo, porque senão acabaríamos por nos matar. No desenho das tecnologias, temos de incluir não só controlo, mas também autolimitação. Quando houve o acidente da German Wings, em que o piloto do avião se suicidou [provocando a queda do aparelho e a morte de 150 pessoas, em 2015], toda a tecnologia de segurança estava pensada para que o inimigo fosse exterior, como se pudesse ser unicamente alguém que entrasse na cabine. Não pensamos que às vezes nós somos os nossos piores inimigos. Temos de ter o controlo sobre os processos em que estamos implicados, mas esse controlo é mais eficaz quando inclui algumas limitações. Voltando à questão da comida, há uma elite que vai aos restaurantes como o Mugaritz, de Andoni Aduriz, e gosta de reflectir sobre estas coisas. Mas nota-se algum cansaço relativamente a um discurso mais intelectual sobre a comida. Sente isso também?A alta-cozinha não está feita para irmos lá comer todos e de forma habitual. Em primeiro lugar, porque não temos dinheiro para isso. Digo, e creio que Andoni está de acordo, que esses restaurantes são instituições didácticas. Não é preciso irmos todos à universidade para termos uma sociedade cada vez mais inteligente. De alguma maneira, as instituições de alta-cultura difundem o conhecimento no seu meio ambiente. Com a alta-cozinha, que é muito experimental e inovadora, cometeríamos um erro se pensássemos que se trata de comida para consumir quotidianamente. É como os desfiles de moda muito sofisticados — trata-se de marcar tendências. São instituições educativas, cuja justificação última é contribuir para a formação do gosto. Se calhar, no tempo dos nossos avós, as pessoas não decidiam o que comer, isso era decidido pela estação ou as posses. Hoje há cada vez mais gente confrontada todos os dias com a decisão de o quê, como e com quem comer. E existirem instituições focadas na cozinha tem uma grande utilidade. Não para irmos lá, mas para que se difunda, se experimente, se criem novas formas de comer. Entendo a pergunta, às vezes, há uma certa intelectualização, mas creio que isso se passa com todas as realidades humanas. Quando há uns anos, em Espanha, houve um treinador de futebol que começou a falar em termos filosóficos e chamaram-lhe “filósofo do futebol”, eu contemplei isso com absoluto cepticismo porque não me interessa nada a futebol, mas achei interessante ver como um tema se convertia em algo um pouco mais sofisticado do que dar pontapés a uma bola. Havia um certo nível de reflexão e eu gosto disso. Vi o mundo da cozinha intelectualizar-se e isso pareceu-me bem, mas agora há seguramente muita conversa sem interesse e, com a passagem do tempo, restarão apenas alguns discursos. Há pessoas para quem a reflexão é séria e outras que estão a seguir uma moda. No caso de Andoni, corresponde a uma verdadeira inquietação?Sim, Andoni não está a seguir a moda, está a criá-la. Quando uma coisa lhe sai bem, deixa de a fazer. O que admiro nele e de certo modo me torna semelhante a ele é que, quando crê que já sabe uma coisa, dirige-se a outro sítio. Se num grupo humano és o mais inteligente, tens de ir a outro grupo onde és o mais estúpido, porque é aí que aprendes. Quando fizeres bem uma coisa, tens de ir para outro problema. É essa inquietação que nos mantém curiosos, despertos. O momento da História em que nos encontramos é mais estimulante para um filósofo do que era há 20 anos, por exemplo? É um momento apaixonante para a filosofia. Nunca vi na história da humanidade tantas transformações ao mesmo tempo. A nós, filósofos, interessa-nos fundamentalmente dois tipos de problemas: as coisas que já não são o que eram e as coisas que não são o que parecem. E numa cultura como a nossa, há muitos assuntos que têm que ver com isso. Mas é muito inquietante para os nossos cidadãos que se vêem confrontados com temas que os angustiam e os deixam perplexos — o meu último livro chama-se precisamente Política para Perplexos. As pessoas que não têm a mesma tolerância à incerteza que nós, filósofos, temos podem não reagir tão bem. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Isso torna-o menos angustiado que outros?Nós, filósofos, temos poucas vantagens competitivas. Mas fomos habituados pela nossa maneira de trabalhar a viver com um excedente de problemas que para outros seriam intoleráveis. Por isso há poucos filósofos — e não tem de haver muitos. [Søren] Kierkegaard dizia que se tornou filósofo quando se apercebeu de que toda a gente se dedicava a tornar a vida mais fácil para os outros e ele achou que tinha de haver alguém que fizesse exactamente o contrário. E as pessoas não esperam dos filósofos sistemas fechados de explicação do mundo?Podem esperar sentadas. A contribuição que podemos dar aos problemas do nosso tempo é formulá-los melhor. Enquanto colectivo, estamos mais ou menos inteligentes?Estamos numa sociedade que quando se organiza bem, quando está bem dirigida, pode ser mais inteligente que cada um dos seus membros individualmente considerados, podemos construir verdadeiros sistemas inteligentes constituídos por gente relativamente medíocre. E podemos fazer exactamente o contrário: fazer com que gente muito inteligente quando se junta em vazios normativos, com culturas políticas torpes e sem regras razoáveis, actue de maneira muito estúpida. Esse é um dos grandes desafios do nosso tempo: sejamos mais inteligentes actuando em grupo, enquanto inteligência colectiva, e evitemos todas as situações colectivas de geração de estupidez pela simples agregação, desde as euforias que criam as bolhas financeiras, às estupidezes que cometemos quando entramos em pânico económico ou simplesmente quando se forma um engarrafamento automobilístico. Estamos nesse tipo de bifurcação. Podemos ir por um caminho ou outro, e isso não depende de você e eu sermos inteligentes ou não, depende de a cultura, as normas e as regras serem inteligentes. Gosto de dizer que poderíamos prescindir das pessoas inteligentes e não aconteceria nada, mas não podemos prescindir dos sistemas inteligentes porque é aí que jogamos tudo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte humanos cultura mulher homem social consumo igualdade espécie corpo sexualidade alimentos pânico
"Mereço amplamente o Prémio Camões"
Por fim o desabafo quando faz 60 anos de carreira. Zangado com o estado do mundo, mas não com a vida, Urbano Tavares Rodrigues confessa a mágoa de não ter um prémio que acha que lhe é devido e diz que foi tudo o que queria ter sido. Sabe, escrevi uma novela em três ou quatro dias. . . " Urbano Tavares Rodrigues antecipa-se a qualquer pergunta para revelar uma ousadia para alguém a pouco tempo de fazer 89 anos. Ver o que dá escrever de um fôlego. Um desafio para um escritor que continua a cultivar o erotismo e a estar atento ao mundo, mesmo condicionado à casa, grande, forrada a quadros e a livros e cheia de fotog... (etc.)

"Mereço amplamente o Prémio Camões"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-09 | Jornal Público
TEXTO: Por fim o desabafo quando faz 60 anos de carreira. Zangado com o estado do mundo, mas não com a vida, Urbano Tavares Rodrigues confessa a mágoa de não ter um prémio que acha que lhe é devido e diz que foi tudo o que queria ter sido. Sabe, escrevi uma novela em três ou quatro dias. . . " Urbano Tavares Rodrigues antecipa-se a qualquer pergunta para revelar uma ousadia para alguém a pouco tempo de fazer 89 anos. Ver o que dá escrever de um fôlego. Um desafio para um escritor que continua a cultivar o erotismo e a estar atento ao mundo, mesmo condicionado à casa, grande, forrada a quadros e a livros e cheia de fotografias de António, o filho de seis anos que diz que ele é o maior escritor do mundo. Não conseguir vê-lo crescer é a sua grande angústia, uma falta que tenta preencher com palavras. Serão a sua grande herança. Uma carta para António abrir quando tiver dez anos. Falar de tolerância. Aqui fala-se dessa e de outras histórias de um escritor que é comunista e que foi tudo o que quis. Disse recentemente numa entrevista que cada vez mais escreve novelas e contos porque tem medo que o tempo não o deixe terminar um romance. Pois é. Este livro, Escutando o Rumor da Vida seguido de Solidões em Brasa, era para ser um romance, mas depois olhe, saiu assim. Sinto que não vou viver muito. Um dos meus médicos diz-me, meio a brincar, que é um milagre eu estar vivo. Mas sabe, escrevi agora uma novela em três ou quatro dias. . . Chama-se A Rosa das Profundezas. Um miúdo anda a brincar e vê uma rosa no fundo de um charco. Arregaça o bibe e tira-a. É uma rosa esquisita, azulada. A minha ideia foi fazer uma coisa explosiva. Conseguir uma escrita muito nova, arriscada, na fronteira do delírio, mesmo, a alucinação. Essa perspectiva delirante sobre o mundo já vem no seu último livro. Já. Mas esta é uma novela mais pequena. Rápida. Deve ter umas 40 páginas. Foi um desafio?Foi. Escrevi loucamente. A escrita está bonita. Aquilo é louco mesmo, e ainda não sei muito bem o que vale. Uma amiga minha está a digitalizar o texto. Ela gostou imenso, mas não me chega uma opinião, porque ela é muito minha amiga pode-se deixar influenciar. E porque que é uma coisa muito louca?Porque é. Tem partes delirantes, de fuga às regras da lógica. O rapaz cresce e acaba por ir trabalhar para uma agência de viagens. Tem um contrato e Paris e vai para lá. Podemos dizer que é uma coisa da paz, mas a paz acaba por ser guerra. Entra naquilo a que o Mário Soares chama de "capitalismo selvagem neofascista" que está instalado na Alemanha. Os seus temas sempre foram o amor, o tempo, a morte. Há alguma mudança?Nesse aspecto não. Não consigo escrever qualquer coisa que seja completamente nova, mas consigo escrever de uma maneira nova e cada vez mais olho o amor como uma necessidade absoluta do mundo. Uso a palavra "amor" no sentido mais lato, não só sexual. A grande lição para o mundo futuro é uma grande dose de amor, de compreensão dos outros. Não sei se nota isso nos meus livros. Quando, por exemplo, se abstém de fazer juízos morais sobre o comportamento das suas personagens?Sim, a minha função não é julgar. É trabalhar sobre os sentimentos, sobre a palavra. É difícil escrever sobre erotismo?Sim, mas há escritores que têm conseguido coisas boas nesse aspecto. É preciso tacto, trabalho de linguagem. As palavras existem. São para ser usadas. Todos nós tivemos dificuldade na transição do fascismo para a liberdade, com o 25 de Abril. Eu também tive, porque escrevia com alguns eufemismos. Mas habituei-me. O Lobo Antunes também escreve dessa maneira, com bastante liberdade. . . [Pausa] Tanto eu como o meu irmão Miguel somos muito longevos. Ainda tenho capacidade erótica para ter relações sexuais. Continuo a ter desejo e a transportar isso para os meus livros, corresponde a uma certa vivência. Considera-se um provocador?Não. Não é o meu objectivo. A provocação por si não me interessa. Pode haver falsa provocação, o que é outra coisa. Os seus livros continuam a reflectir uma atenção sobre o mundo à volta. Estar em casa não lhe retira a capacidade de observar?De modo nenhum. leio jornais, vejo televisão, converso com as pessoas. essa escrita não vem por por obrigação, mas porque de facto já tenho mesmo ódio ao que se passa. Até mesmo aqui em Portugal está instalado um capitalismo selvagem neo-fascista, com o Passos Coelho. Perante a força da insurreição popular não sei como é que isto vai acabar. É imprevisível. Qual é o papel da literatura em momentos como este?Sou comunista e sou escritor e nunca obedeci a pedidos para fazer dos meus livros instrumentos de combate do PC, mas como a minha ideologia é essa ela projecta-se e essa projecção é útil neste momento porque as massas necessitam do apoio dos intelectuais e eu estou a dá-lo embora dentro da minha linha, que é estética e intimista. Uma vez chateei-me com um tipo do partido que queria que eu pusesse mais sangue, mais vermelho naquilo que escrevia. Eu disse-lhe que punha o vermelho que entendesse. Foi um dos dirigentes do sector intelectual do PC. Como é que faz a sua militância, hoje?Continuo a ser. Pediram-me para não abandonar. De vez em quando escrevo textos que me pedem. Porque se diz um heterodoxo?Sempre fui profundamente anti-estalinista e tive alguns problemas com o partido por causa disso. Estive nitidamente a favor da insurreição de Praga e escrevi contra a invasão dos tanques soviéticos, das barbaridades que se fizeram. Eu era a favor da Primavera, do chamado socialismo de rosto humano. Já está a ver que a minha ideia do comunismo é a de uma economia de Estado, mas com uma certa abertura à iniciativa privada, que não seja totalitária, que não seja opressora, para poder haver espontaneidade, beleza, variedade. A favor da liberdade de culto. Sou perfeitamente agnóstico, mas acho que se deve respeitar todos os cultos. Vítor Córdova, personagem de Solidões em Brasa, o segundo conto do seu mais recente livro, diz-se um agnóstico e há uma aluna que o interpela, afirmando que isso é o que ele diz, mas que é um espiritual, um místico. É o seu caso?Se sou místico é só numa comunhão profunda com a natureza. Isso é mais ser panteísta do que místico. O que lhe interessa é o homem soviético, como à sua personagem Vítor Córdova que distingue entre ser comunista e ser pró-soviético?É mais um ponto em comum. O homem soviético era cordial fraterno, tinha qualidades interessantíssimas. Na primeira viagem que fiz à União Soviética, fui um bocado iludido, porque os guias davam-me uma imagem da realidade que não era verdadeira. Cheguei deslumbrado com uma fábrica onde os delegados da comissão directiva eram representantes dos trabalhadores, dos funcionários e dos engenheiros e aquilo funcionava muito democraticamente. Tinha uma gestão operária. Mas quando comecei a conhecer alguns escritores eles abriram-me os olhos, dizendo que aparentemente aquilo era verdade, mas que de facto era tudo combinado. Aquilo era uma mistificação. Fiquei lixado. Depois comecei a descobrir que havia muito mais sequelas do estalinismo do que eu pensava, a história do Gulag. O pior foi que o Estaline destruiu completamente tudo o que era verdadeiramente socialista, a discussão interna no comité central, o debate de ideias. Acabou com tudo isso. Já não tinha nada do socialismo marxista. Os estilhaços chegaram ao PC português. Era inevitável. Nunca fui estalinista, mas eu vivi em Paris num período em que os pp camaradas do Partido Comunista Francês com quem e convivia que me disseram que o Gulag era verdade. Abrira-me os olhos. Como o Aragon [Louis Aragon, poeta e escritor surrealista, 1897-1982], de quem me tornei muito amigo. Esse nunca deixou de ser comunista, mas não era estalinista. Também foi amigo de Albert Camus. Que memória tem dele?Profundo afecto. Uma vez apresentou-me uma namorada brasileira. . . Ele tinha muitos problemas. A mulher adorava-o e ele também gostava imenso dela, mas era um homem de muitas mulheres, uma coisa complicadíssima. Ele tinha dificuldade em romper e às as vezes acumulava duas e três até que aquilo era uma confusão dos diabos. Ele custa-lhe fazer sofrer. Era um tipo giríssimo. Nessa época tentou o que nunca ninguém conseguiu: ser existencialista sendo comunista. Como olha para essa fase?É verdade, uma enorme contradição. mas era muito jovem. Era um disparate, mas tentei. E achava que era possível ter ideias marxistas ligadas à filosofia da existência. Era uma utopia. Em A Porta dos Limites (estreia, em 1952, e na Vida Perigosa (1955) sente-se isso. Já com A Noite Roxa (1956) passou-se uma coisa interessante. Com as minhas artes consegui passar a fronteira e ir visitar a então RDA. Estive lá cinco ou seis dias e não gostei. Era um país comunista autoritário, sentia-se a presença da polícia política. Aquilo desagradou-me e voltei um bocado baralhado para o chamado lado ocidental da Europa. Eu estou contra este ocidente capitalista mas não posso estar com aquele socialismo policial. Numa recente entrevista dizia que Álvaro Cunhal lhe perdoava uma série de rebeldias ideológicas dizendo-lhe: "tens uma alma comunista". O que é isso de ter uma alma comunista?Eu tinha-lhe proposto uma coisa com a qual ele não concordava, uma aliança pontual com o Mário Soares. Sou muito amigo do Mário Soares, desde o tempo da faculdade. Discordamos ideologicamente, mas em alturas muito difíceis, e sem que eu lhe pedisse, ele ajudou-me, arranjou-me lugar no Colégio Moderno, até a Pide me impedir, dizendo que eu tinha ideias subversivas. Há pouco tempo ele mandou-me uma carta do Algarve, despedindo-se "com um grande abraço deste seu camarada antifascista". Foi o que ele encontrou de comum. [Risos]. Bom, o que é certo é que eu achava que havia uma série de coisas que se podiam fazer em comum, O PC com o Soares. Em que circunstâncias?Já não me lembro muito bem, mas ele odiava o Mário Soares. Quando se falava em Mário Soares arrepiava-se todo. Uma vez disse-me: "ai Urbano, às vezes parece que tens teias de aranha na cabeça, mas o teu coração é comunista". E o que é isso?Um comunismo de solidariedade com os pobres e os infelizes que é profundamente ligado ao socialismo. Eu tornei-me comunista um pouco por influência de um primo meu que casou com a irmã do Álvaro Cunhal, o Fernando Medina. Ele deu-me a ler textos comunistas quando eu tinha 13 ou 14 anos. Fiquei tocado com a solidariedade para com os pobres e humilhados. Eu antes de ser comunista estava ligado a uma espécie de socialismo cristão, embora repudiando a confissão e tudo isso. Descobri muito cedo que era uma farsa. Teve essa educação católica?Sim, tive catequese e tudo. Fiz a primeira comunhão. E como é que descobriu "a farsa"?Quando me pediam para prometer não repetir determinadas acções e que tinha de rezar uns tantos Padre-Nossos e eu sabia perfeitamente que ia repetir. Por exemplo?Umas histórias que eu já tinha com umas priminhas, em que havia sexo, embora sem chegar ao fim. Tinha uns 13, 14 anos. Achava de uma desonestidade profunda dizer que não repetia. E mandei isso à fava. E alguma vez sentiu culpa?Nunca a sexualidade me pareceu um pecado. Aí estava muito mais de acordo com os gregos. Noutras coisas senti. Por exemplo, no relacionamento que tive com as mulheres. Algumas vezes acho que as magoei. Posso ter sido egoísta. Disso arrependo-me. Em Escutando o Rumor da Vida começa com uma das personagens, Francisco Medeiros, a lidar com o remorso em relação ao modo como lidou com algumas mulheres. Esse remorso é seu?Sim. As suas personagens masculinas têm cada vez mais de si. Escolhe as personagens para se expor?Acho que não faço essa escolha, mas não há dúvida de que há muito de mim no Francisco Medeiros e a figura de Lídia, a mulher, inspira-se muito na minha primeira mulher, na Maria Judite de Carvalho (escritora, 1921-1998). Uma mulher muito doce, que me adorava e era indulgente para com os meus desvios eróticos. Gostei muito dela. Foi o meu grande amor e a Ana Maria, a minha actual mulher, a grande paixão. Outra personagem com quem tenho muito que ver é o Michel/Olimpia (traficante redimido de Solidões em Brasa) no aspecto da aventura. Eu era quase inconsciente, não tinha medo de nada. Na clandestinidade em Portugal fiz coisas do arco da velha. Não tinha a consciência do perigo. Quando fala de medo fala de quê?Não sou medroso, mas não tenho a mesma coragem nem o mesmo impulso. Mas apesar da minha falta de condições físicas, já neste estado, dei um soco a um tipo que foi malcriado com a minha mulher por causa de um problema no trânsito. É perigoso ser seu amigo? Podemo-nos ver de repente num livro, expostos?É, isso é. Eu não resisto. É irresistível. Já alguma vez teve problemas com isso?Não. Parece que está sempre a despedir-se da vida, mas depois sempre a regressar a ela. No livro anterior, Assim se esvai a Vida, há quase uma despedida. Neste, uma espécie de reconciliação. É verdade. Há alturas em que tenho vontade de morrer, mas depois luto. Contra a angústia. Acabo por me aguentar. A escrita ajuda?Ajuda muito. Pertence à comissão de leitura da Fundação Gulbenkian. Continua a ler autores recentes. . . Sim, muito atento e acho que temos grandes escritores actualmente. Por exemplo?Gosto muito da Dulce Maria Cardoso, da Hélia Correia, que já é de outra geração mas é uma escritora extraordinária. Gosto muito do João Tordo, O Bom Inverno é um livro excelente. O José Luís Peixoto, de quem sou profundamente amigo. O Gonçalo M. Tavares não me entusiasma muito. É uma mistura de Brecht e de Kafka, dos alemães que ele conhece muito bem. O único livro dele que em entusiasmou foi o Jerusalém. Como é que gere o tempo que tem?De manhã faço tratamentos, depois um bocadinho durante a tarde trabalho, escrevo. À noite não escrevo. Ainda estou a recuperar da loucura que foi escrever esta novela . . . Escrevia de manhã à tarde e à noite. É avô, pai de um rapaz de seis anos. Qual a diferença entre ser pai aos 82 anos e ser avô antes disso. Eu tive muitas dúvidas em ser pai tão tarde. Mas era importante para a minha mulher. Estive preocupado até o António nascer, angustiado com a hipótese de um defeito físico. Ele diz que o pai é o melhor escritor do mundo [risos]. Mas a relação nem sempre a relação é boa, ele consegue ser muito carinho, confidente, outras vezes é provocante. Tem dito que uma das coisas que mais o angustia é temer não poder acompanhar o crescimento do seu filho. É verdade que escreveu uma carta para o seu filho ler quando tiver dez anos?Sim. Ele já sabe umas coisas do que lhe quero dizer. Quero que ele compreenda o pai que teve. A importância da tolerância, da fraternidade, da generosidade. Ninguém é totalmente generoso. Tenho consciência disso. Mas sou dos menos egoístas que conheço. Tem uma filha bastante mais velha, a escritora Isabel Fraga. Sim. Dou-me muito bem com ela. Tivemos uma relação muito carinhosa. Levei-a a Paris no Maio de 68, ainda chegámos no fim. Ela tinha 14 anos. Eu a Maria Judite e ela. O Vítor Córdova procura o sentido da vida. Já encontrou o seu?Não. Encontrei aquilo que eu gostava que o meu filho compreendesse de mim, que é um misto de tolerância, de compreensão e respeito pelos outros. Sem ódio. Com algumas excepções. Posso sentir ódio contra aqueles que vivem de explorar os outros. . . [pausa] mas eu tenho sido mais vítima de ódio. Ainda não tive o prémio Camões porque soube recentemente que há membros do júri que dizem: "esse comunista não terá o Prémio Camões. Sente mágoa por não ter o prémio?Tenho revolta. Mereço amplamente o Prémio Camões. Não é pelas honrarias, que já tive muitas. Até em França já me deram a Legião de Honra, mas isto é asqueroso. Está a escrever alguma coisa?Agora escrevi esta novela e nã sei o que farei. Tenho para aqui uma série de contos para serem publicados num livro que está previsto. Há um conto que se chama Os Merdosos. E quem são os merdosos?São aqueles tipos que andam com os cães, que andam na droga, às vezes na prostituição. São os merdosos. Há uns tipos que resolvem fazer uma experiência, ir apanhá-los. Propõem-lhes uma grande festa e só há dois ou três que não querem ir. . . Alguns saem desse meio, outros regressam. Como é que se põe a par dessa realidade?Acompanho. Estou informado. Tenho amigos e família nessa geração. É um optimista?Sim, mas é mais uma vontade que de as coisas corram bem. O que é que gostava de ter sido e não foi?Eu fui o que gostava de ter sido. Escritor e professor. É vaidoso?Não. . . tinha uma certa vaidade. Era considerado um homem bonito na juventude, que foi até muito tarde. As mulheres estabeleciam comigo uma relação de ternura e essa ternura acabava por se transformar em sexo. Muitas vezes estive muito apaixonado, outras vezes eram amizades eróticas, com muita ternura e com desejo. Era um D. Juan?Não. O D. Juan era o conquistador. Eu era o conquistado. Havia uma aproximação terna que acabava por gerar uma relação erótica. Umas vezes estive profundamente apaixonado. Um mulherengo pode ser um tipo ternoFoi um mulherengo?[risos] Acho que não, mas tive muitas mulheres. Às vezes fico comovido quando encontro uma dessas pessoas de quem gostei.
REFERÊNCIAS: