Açores lembram a Passos Coelho obrigações de serviço público
Primeiro-ministro realiza esta semana a sua primeira vista a uma região autónoma (...)

Açores lembram a Passos Coelho obrigações de serviço público
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Primeiro-ministro realiza esta semana a sua primeira vista a uma região autónoma
TEXTO: O governo regional dos Açores espera que a visita do primeiro-ministro ao arquipélago, que decorre de domingo à noite até quarta-feira, sirva para "dar um grande impulso" para o cumprimento de obrigações de serviço público para as ligações aéreas com o continente, Universidade, rádio e televisão. A revitalização da base das Lajes, de onde os EUA ponderam retirar parte significativa do contingente que ali têm, é outro assunto incontornável na primeira vista oficial do actual primeiro-ministro a uma região autónoma. “Esta pode ser uma boa oportunidade para dar um grande impulso na resolução destes dossiês e, se não resolvê-los definitivamente, pelo menos, habilitar, desde logo, o senhor primeiro-ministro e a comitiva que o acompanha, a um conhecimento mais detalhado, mais aturado, daquelas que são as questões inerentes a esses dossiês", afirmou o presidente do executivo açoriano, Vasco Cordeiro. A aguardar a aprovação de diplomas regulamentares pelo Conselho de Ministro está o novo modelo de ligações aéreas para a região, acordado pelos governos da República e da Região em Julho. O modelo fixa uma tarifa máxima para todos os residentes de 134 euros nas ligações áreas com o continente e prevê a liberalização das rotas entre o continente e as ilhas de São Miguel e Terceira. Vasco Cordeiro diz não ter "motivo nenhum para pôr em causa a vontade do Governo da República em cumprir o que foi acordado" sobre as ligações aéreas. O novo modelo terá de ser atempadamente ratificado para permitir aos operadores interessados incluírem este destino na sua programação do verão de 2015. A definição do serviço público de rádio e televisão dos Açores é outro dos assuntos pendentes entre os governos central e regional. O executivo açoriano enviou há três meses uma contraproposta a Poiares Maduro, que remeteu o processo para o Conselho Geral Independente da RTP. Em Abril passado, numa deslocação a Ponta Delgada, o ministro com a tutela da comunicação social apresentou uma proposta para a RTP/Açores que passa pela criação de uma empresa regional para garantir a parte de conteúdos audiovisuais, ficando a RTP com a área da informação. Em Junho, o governo açoriano enviou três alternativas ao ministro, propondo a criação de uma "empresa 100% pública, 100% regional", a criação de uma "empresa de capitais partilhados" entre o executivo açoriano e a RTP e uma "solução minimalista", que mantém o actual centro regional da RTP. Questões financeiras deverá estar também presentes na cimeira entre governos, nomeadamente os constrangimentos da Universidade dos Açores e a subida dos impostos no arquipélago devido à alteração à lei das finanças regionais imposta pela troika na sequência do plano de resgate da Madeira. Os açorianos reivindicam o regresso aos 30% do diferencial fiscal. Na sua primeira visita oficial a uma região autónoma desde que foi empossado como primeiro-ministro, em Junho de 2011, Passos Coelho desloca-se às três ilhas onde estão sedeadas as principais instituições autonómicas. Na segunda-feira reúne com o executivo açoriano na cidade de Ponta Delgada (ilha de ao Miguel) e com a presidente do parlamento regional na Horta (Faial). No dia seguinte tem encontros com o representante da República e com o presidente da Associação de Municípios dos Açores em Angra do Heroísmo (Terceira). O programa inclui uma visita à fábrica Unileite, ao departamento de oceanografia e pescas da Universidade dos Açores, à base militar das Lajes, ao museu da vinha do Pico e à zona do Lajido, classificada como património da Humanidade da Unesco. Como líder nacional do PSD, Passos Coelho deslocou-se duas vezes a Ponta Delgada para participar na sessão de encerramento do congresso regional do partido, em Abril de 2012 e Janeiro de 2013. Na Madeira, que nunca visitou na qualidade de primeiro-ministro, também esteve três vezes, sendo duas para encerrar o congresso regional do partido, em Abril de 2011 e Novembro de 2012, e, antes, convidado pela câmara do Funchal como líder da posição nacional para a sessão do Dia da Cidade em Agosto de 2010.
REFERÊNCIAS:
"Tenho um medo permanente de isto ter acabado"
António Lobo Antunes escreve Caminho como uma Casa em Chamas, um livro com cenário num prédio de quatro andares e um sótão. O amor, a morte, o tempo, o envelhecimento e o que cada um faz da sua vida são o pretexto para muitas interrogações. Algumas estão nesta conversa meio vadia (...)

"Tenho um medo permanente de isto ter acabado"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.6
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: António Lobo Antunes escreve Caminho como uma Casa em Chamas, um livro com cenário num prédio de quatro andares e um sótão. O amor, a morte, o tempo, o envelhecimento e o que cada um faz da sua vida são o pretexto para muitas interrogações. Algumas estão nesta conversa meio vadia
TEXTO: O sol bate nas cortinas e é entre elas que a conversa começa na casa onde vive na Rua do Conde de Redondo, em Lisboa, um antigo café. A olhar para uma fotografia nova na sala. A mãe. “Era muito bonita. Foi embora há menos de um mês. ” Que idade na foto? “A gente tem a idade com que nasce. Dez, setenta. Ela era muito nova”. A conversa alonga-se, uma tarde inteira. Pede algumas reservas. Vai sendo assim. Com interrupções e alguns entusiasmos sobre si enquanto protagonista de uma escrita que diz não controlar, rodeado pelos livros dos outros, por frases e palavras escritas a marcador nas paredes, como fazia em criança no quarto em casa dos pais, em Benfica. Essa casa que se fechou agora e pode voltar a abrir-se como museu, ou fundação. Não quer falar disso. Estamos no espaço onde António Lobo Antunes lê e onde escreve o tempo todo entre cigarros e a certeza de que quer escrever até morrer. Parece ser a única num homem que diz não ter um discurso sobre a sua literatura quando completa 35 anos de escrita publicada. A outra foi queimada na figueira do quintal porque era má e íntima. “Não falo de livros, falo do que me vem à cabeça…” É mais ou menos assim…Vamos falar deste livro?Não me lembro de nada. Já escrevi um a seguir que talvez seja a coisa melhor que fiz. E agora estou com outro que está complicado. Numa das suas crónicas, disse que ele nasceu quando começou a desenhar uma casa. Sim, era o plano. Mas foi só isso. Não sei o que me passou pela cabeça porque escrevo sem plano, é o livro que se faz a ele mesmo. Mas para este desenhei várias casas, a ver quem punha aqui e ali, no rés-do-chão, no primeiro andar… [faz no ar o movimento da caneta no papel]. Em 25 romances tem ideia de quantas personagens já criou?Eu não tenho personagens. Mas tem gente, vozesNão faço a menor ideia. Só aparecem quando estou a escrever. Depois calam-se e só voltam com a caneta na mão, quando estou sentado. De resto, não penso nas vozes. Ao princípio ficava a pensar no livro, agora só quando me voltar a sentar àquela mesa, daqui a nada. Tem horas para isso?Tenho. É o tempo todo. Diz que não gosta de chamar romances aos seus livros. O que são?É, não sei se são romances. Tenho tantas dúvidas em classificar aquilo. Para mim são livros. Não há histórias. Acho que tive muita sorte. A Memória de Elefante sai por acaso, ninguém sabia que eu escrevia, e um amigo meu, o Daniel Sampaio, andou com aquilo pelas editoras e ninguém queria. A Bertrand, onde estava a minha actual editora, a Maria da Piedade Ferreira, recusou o livro. Acabou por sair numa editora pequenina chamada Veja, em 1979, e vendeu loucamente. Percebo porquê. Nos escritores antes do 25 de Abril a acção passava-se em países imaginários, ou na antiguidade; a seguir ao 25 de Abril ficámos à espera dos romances que estavam na gaveta, já escritos e não podiam ser publicados, e não saiu nada. Aparece em 1977 o livro do Dinis Machado, O Que Diz Molero. E foi só. O Memória de Elefante já estava escrito nessa altura. Três meses depois sai Os Cus de Judas, que estava pronto havia tempo, e chega uma carta da América de um agente…Nestes 35 anos que passaram escreveu-se muito sobre si, deu muitas entrevistas. Como constrói ainda o seu discurso sobre a literatura que faz? Eu não falo dos livros. Falo do que me vem à cabeça, mas não falo dos livros. Porquê?Tenho muito pudor, tenho vergonha. Não acha que os livros são a sua maior exposição?Acha? Talvez seja então por isso. Eu mostrava os livros ao Zé [Cardoso Pires], fazíamos editing um ao outro. Ele dava-me páginas e páginas com sugestões que eu não seguia. Era a única pessoa que lia os meus livros antes de saírem. Sempre escrevi e ninguém lia. Eu não mostrava a ninguém. Queimava tudo na figueira do quintal. Porquê?Porque era íntimo e porque era mau. Mas, o que o inibe a falar deles, é o medo da crítica, o julgamento do leitor?Não tenho nenhum medo da crítica porque sei o que eles valem. Não sou parvo. Mas acho que não tenho direito de estar a maçar as pessoas. Está a fazer-me pensar em coisas sobre as quais não sei bem o que dizer. Por exemplo, esta pilha [aponta para um monte de folhas A4]. É o que estou a fazer agora e acho que está tudo mal. Os últimos livros têm saído exactamente como eu queria e este não, este foge-me. Não nos estamos a dar bem, não me sinto confortável com ele e se calhar ele não se sente confortável comigo. E o modo como escreve, tem mudando?Normalmente cada vez escrevo mais depressa. O problema são as correcções. Aí perco muito tempo. Mas a primeira versão sai-me mais depressa. Antes, trabalhando o dia inteiro, saía-me meia página por dia. Continuo a escrever à mão. Começo por escrever em folhas pequenas, depois passo para folhas A 4 em letra maior e começo a corrigir. Faço umas dez correcções e mando dactilografar. Quando vem já não parece escrito por mim e há muito menos narcisismo nessa leitura, sacode a água a mais. [Olha para a capa do livro] Esta capa… Não sei se gosto se não gosto. Não folheei o livro, sequer. Mas não escolho as capas. É a editora. Mas lembra-se da dedicatória, “Ao Zé Manel, com amorzade”?Lembro-me. Gosto do amorzade, que não é meu. É uma dedicatória do Valerio Adami. Ele vive em Paris na casa do Dali, mesmo diante da igreja em Montmartre. Escreveu-me num desenho: “para o António com amorzade”. E eu gostei tanto daquela fórmula e acho-a tão verdadeira e tenho amorzade por esse homem. Este livro está cheio de perguntas sobre a vida, o amor, a morte, o tempo. Tem dito que há mais perguntas que respostas. Continua a ser assim, um inquiridor…?Acha que sou? Não faço muitas perguntas. Talvez seja uma das técnicas da análise, nunca fazer uma pergunta com ponto de interrogação. Se quer saber qualquer coisa, aprendi quando era médico, é repetir a última frase da pessoa que está a falar. Por exemplo, a pessoa diz: “hoje estou muito nervosa”, e em vez de perguntar porquê, dizer: “estou muito nervosa…” Isso obriga o outro a transformar a linguagem noutra linguagem. Mas há alguns pontos de interrogação. Quando um dos inquilinos do prédio fala sobre a relação com o divino, “o que sente um judeu?”, a tal pergunta mais íntima. Como vai a sua relação com o sagrado?Uma vez perguntaram ao Voltaire como era a relação dele com Deus: “cumprimentamo-nos mas não nos falamos”. É uma relação ao mesmo tempo complicada e simples. A minha relação com Deus modificou-se desde que estreitei amizade com [Frei] Bento Domingues. Ele diz, por exemplo: “eu não vou ao cemitério porque não está lá ninguém”. Eu faço perguntas como estas: “E os que morrem, onde é que estão?”; “Andam por aí”, reponde ele. Não sei, houve uma altura da minha vida em que lia muito os físicos… Porque é que os grandes físicos, e grandes matemáticos, eram quase todos profundamente crentes? O Einstein dizia “esta coisa de Deus, por exemplo, os meus filhos têm de Deus a ideia de um vertebrado gasoso”. É a ideia que nós temos todos, e que a catequese nos dá. E Deus não é um vertebrado gasoso, como é evidente. Começamos a perceber que é qualquer coisa muito para lá disso. Passei por coisas difíceis nestes últimos anos em que tinha muitas probabilidades de morrer e o que é engraçado é que não tinha medo. Estava tão espantado e indiferente, demasiado absorvido pelo sofrimento físico, que foi brutal. Passei por uma quimioterapia de grande violência. Não sabia se ia viver ou morrer. Só gostava de viver mais uns tempos porque tinha mais uns livros dentro de mim -- e sinto que ainda tenho – e queria escrevê-los. Mas não queria que Deus me salvasse da morte. As noites nos hospitais são tremendas. É um bocado como conta o Proust, ficar à espera da manhã como se a manhã salvasse de alguma coisa e não salva de nada. E depois pensava: tenho vivido tão mal. . . Porquê?Porque havia uma data de coisas para as quais eu tinha os olhos fechados. E porque procuramos a porta nas paredes em que sabemos que não há porta, quase nos sentimos culpados de ser felizes, se é que isso existe… Mas estar aqui sentado já é uma vitória do caraças, sair para a rua, ver o sol. Disse que não queria morrer porque sentia que tinha mais livros para escrever. Os livros são a sua vida?Há uma serie de anos o Libération ressuscitou aquele inquérito dos surrealistas, Porquoi écrivez-vous? Havia pessoas que respondiam uma página inteira. A resposta mais curta era a do Beckett, Bon qu’à ça. Eu digo que escrevo porque não sei dançar como o Fred Astaire. Se soubesse dançar como ele escusava de escrever. Não quer dizer que trabalhasse menos. Escrever é a mesma coisa. O Renoir sustentava que não há talentos, há bois. Mas há muito poucas pessoas com talento. Já reparou no deserto? Compare com o século XIX em que tinha 30 génios ao mesmo tempo. Na Rússia, de repente, Tolstoi, Dostoiesvki, Gogol, Pushkin, Lermontov, podemos continuar… Em França uma data deles, em Inglaterra… Agora não há. Quem é que o António lê?Gosto muito de ler, sempre foi um prazer enorme. Há livros bons de que a gente não gosta e outros de que gostamos e não são tão bons. Por exemplo, o Thomas Mann é bom mas não gosto, chateia-me. O Musil é bom, mas não gosto. O Broch já gosto, o primeiro capítulo de A Morte de Virgílio é espantoso. É a experiência de vida a ditar o gosto?Claro. Se tivesse de falar assim de repente em escritores de que gosto, o Conrad, o Tolstoi… já reparou o que ele faz com frases tão simples? “Está frio, a cerejeira floriu, amanhã vamos à cidade”, com frases destas ele consegue exprimir tudo, filho da puta. Os manuscritos dele estão cheios de emendas. O que aquele homem trabalhava os textos… Só d’A Morte de Ivan Ilitch, do primeiro capítulo, há catorze versões conhecidas. Em Portugal nunca tivemos grandes escritores, ao nível destes. Quem é que o nosso século XIX tem para apresentar? O Eça e o Camilo. Uma vez vi uma crítica inglesa ao Eça que o destruía por completo porque o comparava com escritores de quem ele era contemporâneo. São estes nomes de que falámos. E de facto ao pé deles ele é um pigmeu. Temos óptimos poetas. Há poetas vivos muito bons. Mandaram-me um livro do José Luís Barreto Guimarães e gostei imenso daquilo. É bom. O José Tolentino Mendonça é bom. Mas em prosa não consigo. O problema pode estar em mim. O que falta?O meu pai tinha uma expressão para isso: falta faísca. Quando aparecia um bom artista ele dizia “tem faísca”. É um não sei o quê. Não sei o que faz com que o Proust seja o Proust ou o Céline seja o Céline. Noutro dia pus-me a reler o Céline e não tem uma prega. O Sartre tinha consciência disso porque quando lhe diziam: “este é o século do Sartre”, ele dizia: “não este é o século do Céline”. E ninguém lê o Sartre, já o Céline continua vivo da Costa. Aquilo não tem uma prega. Isto leva-nos também para o escritor e a sua biografia. Mas repare, quem são os dois escritores franceses do século XX? Este não é um desporto de competição, mas os nomes que me vêm à cabeça são os de Céline e o Proust, que tiveram histórias pessoais completamente diferentes. Homens tão diferentes, que escreviam de formas tão diferentes. Uma vez estava a falar com o meu editor francês e quando lhe perguntei “mas tu gostas do Beckett?” Ele respondeu: “Je respecte”. É o que eu sinto em relação ao Beckett. Mais respeito do que gosto. Gosto do Molloy (1951), mas o resto acho chato. É o meu gosto pessoal. O Ulisses… às vezes irrita-me por sentir a proeza pela proeza. No Faulkner aquilo está ao serviço do texto. Mas depois vai ler o Nabokov que diz mal desta gente toda. Para ele o Conrad era um escritor para crianças, o Faulkner escrevia histórias de plantadores de milho. Então de quem é que gosta? Updike e Robbe Grillet… ou seja aqueles que não lhe podem fazer sombra. O que acha do Nabokov?Não gosto. Uma vez estava a falar disto com o [George] Steiner quando fui a Cambridge para estar com ele. Nós temos sempre medo que a pessoa que a gente admira nos desiluda e ele, o Steiner, não me desiludiu nada. É um homem excepcional, com uma apreensão do fenómeno literário… A certa altura falei na Emily Bronte…O Monte dos Vendavais?Sim, dizendo que tinha gostado muito. Ele fez uma pausa comprida e disse-me: “mas não acha o livro um bocado histérico?” Eu nunca tinha pensado nisso e, de repente, dei por mim a olhar para aquele livro com os olhos dele. E conseguiu ver histeria?Sim, ele tinha razão. Ele preferia a Jane Austen, que é uma grande escritora, de facto. Ou a George Eliot. Tenho tanto respeito pelos escritores, gente que… como é que o Apollinaire diz no verso? “Pitié pour nous qui combattons toujours aux frontières. De l’illimité et de l’avenir…”É o trabalho condenado a não estar inacabado?Pois é. Essa frase que disse o Marcel Duchamp, que um quadro nunca está inacabado, está definitivamente inacabado. Porque é sempre possível melhorar. Permanece um “e se…”?Claro. Acho que está acabado quando o livro está farto de mim, não quer mais emendas… é como quando deixamos de gostar de uma pessoa e se dorme num cantinho da cama que pode ser que ela não nos toque, quando já qualquer toque nos irrita. É tão triste o fim de uma relação…Com o livro também?Também. Sinto que já não querem que lhes toque. Não sei explicar isto. Passa-se a numa espécie de estado segundo que não consigo traduzir em palavras. Sei lá porque é que escrevo estas coisas. Não sei. Muita gente já lhe disse que a sua escrita é muito marcada, reconhecível. Entra-se num livro seu e percebe-se logo a autoria…É isso que me chateia. A marca?Estava a escrever a Explicação dos Pássaros [1981] na Alemanha em casa da tradutora e do marido, e mostrei-lhe, dizendo que era diferente dos outros. Ela respondeu que lhe bastava ler três linhas e percebia que era meu. Tenho uma maneira de escrever muito marcada e isto dá para a malta imitar. É como a caricatura. Há imitadores por todos os cantos e não me refiro a Portugal. E porque acha que o imitam?Não sei. Não sei porque é que escrevo assim. Isto foi a pouco e pouco. Acho que só comecei a fazer livros como deve ser para aí no sétimo ou oitavo. A Memória de Elefante é claramente um primeiro livro cheio de incorrecções. Noutro dia recebi uma edição nova, já vai em mais de trinta edições – e continua a vender— e fiquei espantado porque o livro está cheio de erros de principiante, mas tem uma força… Os erros, já os esperava, mas a força do livro é que me espantou. Como é que lida com o seu erro?Em que sentido?No sentido em que sempre que um livro é lançado diz que faz o melhor que pode, mas…Acho que faço, mas posso estar enganado. Acho que o livro a seguir a este é a melhor coisa que já escrevi na vida. Deste não me lembro mesmo. Não sei porquê, ficou apagado em mim. Tanto assim que eu não queria publicá-lo. Mas acho que uma parte da obra, aquela mais experimental, em que tento algumas coisas novas para mim como na Exortação aos Crocodilos (1989), Não Entres tão depressa Nessa Noite Escura (2000), Eu Hei-de Amar uma Pedra (2004)… Aqueles calhamaços são difíceis de ler como o caraças e eu achava aquilo claro e estava todo contente. Com a vida que há agora é muito difícil ler aqueles livros. Não dá para estar sempre a interromper. A vida não é assim, as pessoas têm de trabalhar no dia seguinte. Isto devia apanhar-se com uma doença. Falava nas conversas com escritores. O que há de fantástico nelas, o chegar perto do enigma, do enigma do talento?Talvez. Não sei. Ainda vou à feira do livro e fico a olhar para a fila dos autógrafos dos outros e a olhá-los porque eles escrevem. Os autores. E volto a ser o miúdo que era quando vinha do liceu e passava ao pé do Jardim Zoológico. Havia ali uma cervejaria chamada Coral onde comiam grandes génios à quinta-feira, a Natália Correia, o David Mourão-Ferreira, e eu ficava do lado de fora, com 14 ou 15 anos, fascinado a olhar para aquela gente. Atraem-me os escritores. Parece que têm contacto com outra instância qualquer. Também lhe acontece, ver alguém olhar para si com esse fascínio?Talvez, mas não é a mesma coisa. Se vou a um restaurante as pessoas reconhecem-me, algumas começam com o telemóvel a tirar fotografias e a pôr no facebook. Eu não sei, não tenho computador nem telemóvel, mas acontece. Ontem fui ao dentista e estava a comer numa tasquinha ali na Avenida de Roma e umas pessoas vieram falar-me: “Não ganhámos este ano”. Referiam-se ao Nobel?Sim. Não percebo porquê, mas as pessoas vêm. Parecem que as pessoas lêem. E não me lêem só a mim, como é evidente. Mas eu olho para os escritores como alguém com acesso a instâncias que nós não temos…O António é escritor. Há esse acesso?Não sei… Estou a olhar ali para baixo (estante em frente) e a ver o Stendhal de que gosto muito. A pensar que ele faz O Vermelho e o Negro em 54 dias, a maior parte ditado, e sai aquela obra-prima e passa dois anos com o Lucien Leuwen, que é o pior livro dele. Então, existe génio?Não sei como lhe chamar, mas existe qualquer coisa porque há pessoas que produzem estas coisas. A gente fica com uma inveja saudável, como é que isto se faz? Acho que isto é feito numa espécie de inocência, se calhar. Todo o escritor se acha o melhor senão não vale a pena escrever. Para não ser o melhor não vale a pena, mas acho que depois quando estão a escrever têm uma dimensão angélica… e a sensação de que escrevem só para mim. Quando era miúdo, no liceu, se alguém falava de um escritor de que eu gostava ficava furioso porque o homem só escrevia para mim e aqueles livros eram feitos de propósito para mim. Tenho uma relação pessoal com os escritores de que gosto e tenho ciúmes dos outros leitores. Isto às vezes é carnal, tem uma dimensão física evidente. Não sei se gostava de viver com uma escritora [pausa]. O facto é que sabemos mais do que sabemos. Ontem estava a ler as entrevistas da Paris Review e há uma com o Nabokov. A certa altura há um adulto que pergunta à criança o que está a desenhar. Ela responde que está a desenhar Deus, “mas ninguém sabe como é Deus”, diz-lhe o mais velho. “Quando acabar o desenho já sabem”, responde a criança. Isto tocou-me imenso, e o Nabokov que me irrita, aquela vaidade, em pose constante, a agressividade inútil. Não lhe serviu para nada, para quê? Dizer mal de toda a gente, o azedume… Mas lá veio o Steiner outra vez pôr-me no lugar: “ele é que inventou as Lolitas e agora há-as por todos os lados”. E tem razão. Antes não havia Lolitas. Tecnicamente tem coisas boas, sem dúvida. Mas as nossas ideias misturam-se tanto com as nossas paixões. Eu gosto, logo é bom; eu não gosto, logo é mau. A crítica é sempre muito emocional. E depois as pessoas começam a dar estrelinhas que é a coisa mais cretina que há no mundo. Eu não daria estrelinhas a ninguém. Se fosse crítico fazia como o Truffaut nos Cahiers du Cinèma, só dizia bem porque só escrevia sobre os filmes de que gostava. Eu só falava dos livros de que gosto. O problema é como é que vou partilhar o meu gosto com as outras pessoas, com os leitores, que muitas vezes lêem apressados, que saltam parágrafos. Enquanto escritor fala muitas vezes do bom leitor. Acha que tem bons leitores?Não sei. Tenho bons editores e tenho uma coisa que me ajudaria muito se eu fosse inseguro: pessoas que respeito muito a porem-me nos cornos da lua. Há uma citação que me tem ajudado imenso que é do general Montecuccoli [século XVII]: “é preciso agarrar a oportunidade pelos cabelos mas não esquecer que ela é careca. ” É tão verdade. Mas eu não sou os livros… Ou sou? E daí. . Sei lá. Há uma pergunta explícita no livro, a da sobrinha da velha actriz no terceiro andar: “o que é ser eu?” O que é ser António Lobo Antunes?Nunca me fiz essa pergunta. Nos dias mais negros acho que só sirvo para fazer livros e que não sei fazer mais nada de jeito. Não me tenho em grande conta. Sou tão comum. Quer dizer… agora estou a ser parvo. Há um lado de insatisfação. Com os livros nem tanto. Acho que fiz o que devia fazer, mas gostava era de ser poeta. Até aos 18 anos não escrevi outra coisa. Depois um tio, irmão da minha mãe, meu padrinho, fez-me uma assinatura da Nouvelles Littéraires quanto eu tinha 13 anos e logo no primeiro número vinha o poema do [Blaise] Cendrars, Les Pâques à New York. Fiquei varado, o que se pode fazer com as palavras! E achei-me uma merda. Tive tanto desprezo por mim. Agora tenho andado amargo porque não estou a gostar do que estou a fazer. Tenho um medo permanente de isto ter acabado. Se isto seca é uma gaita. O que é que eu faço? Não gosto de ir a bares, não gosto de estar com muita gente. Posso ler. Às vezes nos intervalos dos livros, são três, quatro meses; a gente lê oito horas por dia, mas ao fim de uma semana já está um bocado farta desse ritmo. Mesmo que só se leia o que se goste. Porque é que a literatura portuguesa é tão má?É?Não é? Acho que a Ana Margarida Carvalho fez um livro bom. Antes do gravador estar ligado falava de amigos felizes com o que fazem. Sente isso?Não. Nunca?Lembro O Diário de Tolstoi, quando ele escreve: lutei para ser melhor que o Shakespeare. E sou e depois? E para ser que o Molière e sou e depois? O que é ganho com isto? O Mozart com cinco anos tocou para a Maria Antonieta e acabou o concerto com toda a gente a aplaudir. Ele correu, sentou-se ao colo dela e disse: âimez-moi. Usa-se o talento que se tem para se ser amado?Para se ser amado? Que amor é que se recebe com os livros? Estou a ser injusto. Ganhei amigos, ganhei pessoas, ganhei a vida, ganhei muita coisa e acho que tive sorte e quando estou alegre sou divertido. Tem saudades de ser médico?Gostei muito de ser médico. O que eu gostava mais era quando as pessoas melhoravam. Eu não era um grande médico, mas acho que era um médico honesto. Era bom na cirurgia, tinha boas mãos, mas na cirurgia o principal é a capacidade de decisão não são as mãos. Nunca cheguei a estar numa posição de dirigir uma equipa. Não tinha de tomar decisões, tinha de receber ordens e sente-se a impaciência e a aflição deles muitas vezes. As pessoas sofrem tanto e sofremos por nadas tantas vezes. Agora vem o inverno que eu detesto. Tenho saudades do sol. Este bairro é feio como a gaita. Contava que o seu pai disse que gostava de passar aos filhos o gosto pelas coisas belas. E passou. Obrigava-nos a ouvir sinfonias, a ler, mesmo em férias, a fazer resumos de capítulos. Começava por escritores que ele achava mais fáceis. Ler um capítulo da Bovary e fazer um resumo. Vivíamos no meio disso. Mas foi enquanto médico que ouvi as frases mais extraordinárias. Uma vez numa aula de neurologia, onde se apresentavam com casos clínicos, estava uma mulher com uma doença neurológica que mal se conseguia mexer com dores horríveis, uma mulher analfabeta. O professor perguntou-lhe como é que conseguia fazer as coisas da casa e ela teve a definição da dor mais extraordinária que alguma vez ouvi: “é tudo a poder de lágrimas e ais…” Às vezes ouvia frases destas. Já era médico, uma senhora pediu-me para passar só uma embalagem em cada receita porque não tinha dinheiro para tudo e depois chegou-se a mim e disse: “sabe, é que quem não tem dinheiro não tem alma”. Este livro está cheio dessas frases que não são bem as de um rapaz de Lisboa, que cresceu e viveu na cidade, num ambiente protegido. Pois, mas é que a parte mais importante da minha infância foi na Beira Alta e não aqui. Foi o sítio onde fui mais feliz, em Nelas. Podia andar por todo o lado. Gostava da burra, da carroça, daquilo tudo. Era a família do lado da minha mãe. Venho de gente muito humilde. Não na geração do meu pai nem da do meu avô, mas nas anteriores. O meu brasão só tem enxadas. É a ideia de belo que o persegue quando faz um livro?Não. É a de fazer bons livros. O que é um bom livro?É aquele sobre o qual penso: bolas, gostava imenso de ter escrito isto. Não sei fazer mais nada, não faço mais nada. Outro dos seus temas é a memória. A minha memória e terrível. Tenho uma memória péssima, lembro-me de tudo. Parece aqueles tecidos a que se pega tudo. Então a poesia, como gosto muito de poesia. Olhe, o Appolinaire. Gosto tanto, o Auden, o Yates. Tantos, tão variados. Consegue eleger o seu livro, entre os que escreveu?Gosto deles todos. Acho que tenho orgulho no meu trabalho, não me apetece morrer mas acho que já morria me paz. Como, se ainda diz que tem livros para escrever?Mas há-de sempre ficar incompleto.
REFERÊNCIAS:
O movimento da vida, a ligar o desenho e a geometria
Na Galeria Filomena Soares, Desenho, de Helena Almeida, e Escada, de Artur Rosas são duas exposições que se separam. A primeira com o corpo que os traços criam, a segunda com a geometria das formas. E que se aproximam, com as histórias partilhadas pelos artistas. (...)

O movimento da vida, a ligar o desenho e a geometria
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na Galeria Filomena Soares, Desenho, de Helena Almeida, e Escada, de Artur Rosas são duas exposições que se separam. A primeira com o corpo que os traços criam, a segunda com a geometria das formas. E que se aproximam, com as histórias partilhadas pelos artistas.
TEXTO: Entre as duas exposições patentes até 7 de Março na Galeria Filomena Soares existe um laço que transcende a natureza das obras: os (dois) artistas formam um casal: Helena Almeida (Lisboa, 1934) e Artur Rosa (Lisboa, 1926). Todavia esse facto, por si só, não oferece qualquer orientação ao espectador. As obras estão separadas no espaço, em duas galerias, uma escurecida, a outra banhada pela luz. Ainda assim, aborde-se, com a reserva certa, os contornos deste reencontro. “Já não expúnhamos juntos há vinte anos”, recorda a artista. “Pensámos em voltar a fazê-lo antes, mas o Artur abandonou as artes plásticas para se concentrar na arquitectura e só recentemente, depois da insistência de uma amiga comum, decidimos fazer esta exposição. Foi quase à força [risos]”. A presença de dois tempos revela-se na história das obras. As séries de fotografias de Helena Almeida foram realizadas entre 2012 e 2014, a escultura de Artur Rosa, <i>Escada</i>, data de 1984. E não é apenas a disjunção temporal que as distingue. “Não há qualquer diálogo entre elas. Somos completamente opostos. Ele é muito geométrico, eu não. Eu trabalho com o meu corpo e o meu corpo é o desenho”. Helena Almeida aponta para a série que tem diante de si: “Estas são as de 2014. Há uma raiva aqui. Uma raiva de não conseguir o que quero e, depois, de me estar nas tintas para tudo. Dou um berro. Às vezes sai-me um trabalho assim. Há até um risco de queda, mas não caí. Equilibrei-me bem. ”É assim que a artista descreve a série mais recente. Mas junte-se-lhe uma descrição alternativa. Um corpo “pintado” de negro luta com um pedaço de papel vegetal. Segura-o entre as pernas, deixa-o deslizar até ao chão. Apanha-o com um pé e suspende-se no ar num movimento drástico e inusitado. Um passo de dança. Assoma a estranheza. O que se vê? Um animal, uma mulher, um corpo animado por impulsos. Desenho, desenhos. Tudo começa com desenho, com o traço, com a mão, antes da fotografia. Numa vitrina, estão esquissos, formas desenhadas sobre papel. Identificam-se alguns dos movimentos, dos gestos, das coreografias que Helena Almeida projecta ou reencena nas imagens fotográficas. “Faço estes desenhos em qualquer bocado de papel. Imagino, visualizo, desenho, desenho até cair, até dizer ‘acabou-se’. Por vezes, considero-os um disparate, mas quando os volto a ver, descubro que foi a melhor coisa que já fiz. É claro que o trabalho passa por muitas fases, tenho que unir os materiais, mas o desenho é directo. E tão fantástico, é um mistério”. O primeiro a verArtur Rosa foi sempre uma testemunha privilegiada deste processo. Assistiu ao momento em que Helena Almeida começou a pintar sobre as fotografias, afastando-se das telas e do óleo. “Sou sempre o primeiro. Vejo os desenhos e depois vejo a Helena. Quando ela se afastou da pintura, comprei uma máquina e comecei a fazer as fotografias. De alguma forma, ela puxou-me lá para dentro”. Esta observação não é gratuita. Nalgumas das obras da exposição Andar, Abraçar, comissariada por Delfim Sardo no ano passado, no BES Arte Finança, viam-se mãos, braços, dorsos que não eram os de Helena Almeida. Pertenciam aos do seu companheiro de vida. “Estive dentro das suas fotografias. Mas habitualmente limito-me dar uma opinião. É a Helena que decide e quando vejo os trabalhos finalizados, quando clico, emociono-me”. Se Artur Rosa entrou nas fotografias de Helena Almeida, esta foi uma escultura de Artur Rosa. A projecção de slides, que documenta a produção do artista, abre com a imagem de uma escultura de 1961, um peça delicada, mas forte, hirta, de ferro. “Foi o meu primeiro trabalho”, recorda. “Estava a terminar uma obra, o edifício da STET [no Prior Velho] e, num conjunto de vigas metálicas abandonadas, vi formas geométricas que podia transformar numa composição. Pedi que mas guardassem e numa oficina, depois de um trabalho de soldagem, construí ‘Helena’ com chapas de ferro”. Mas a história não se concluí neste baptismo. A escultura seria apresentada numa exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, e mereceu uma recensão elogiosa da autoria do ensaísta e escritor Alfredo Margarido nas páginas de um diário lisboeta. “Não sei precisar o título do jornal, mas lembro-me muito bem do texto. A descrição que ele fazia da escultura era a descrição da própria Helena! E ele nunca tinha falado com ela! Mais tarde, encontrámo-nos todos em Paris e [o Alfredo Margarido] pôde finalmente conhecer a mulher que tinha inspirado a escultura”. Nos anos seguintes, Artur Rosa continuou a fazer esculturas, ora inspirado pela op art, ora jogando com as possibilidades trazidas pela descoberta da malha logarítmica. Interessava-lhe explorar o movimento no espaço dos triângulos, dos losangos, dos quadrados, das esferas, e a ideia de sequência e de repetição. Realiza peças como Evolução de um losango numa malha logarítmica ou, em 1969, a escultura para a entrada da Fundação Calouste Gulbenkian, onde as faces de um cubo desvelam o movimento de uma esfera. O gosto pelo jogo das formas, das linhas, dos volumes, entre o interior e o exterior, estender-se-ia ao espaço público em 1999, com Escultura para Espaço Urbano (que pode ser vista na Avenida Conde de Valbom, em Lisboa), ao género do auto-retrato e ao design, numa fotografia a que Helena Almeida empresta o seu olhar. Na Galeria Filomena Soares, contudo, só uma obra ganha existência material: Escada. “É uma peça que vem do trabalho com a malha logarítmica. É instável e estável e imprime uma ideia de movimento. Pode servir para subir ao céu ou provocar uma queda”, comenta Artur Rosa. Na outra galeria, Helena Almeida continua a fitar as fotografias. “Quando exponho, faço um corte. As coisas vêm cá para fora, as pessoas comentam. Acaba um período. Tem de ser. Agora vou iniciar outra coisa”, diz. A ideia de corte não significa propriamente um corte com o passado. “Há coisas que vou buscar aos anos 70, estão sempre cá. Os desenhos com os fios, o papel vegetal, mas sinto sempre que há um recomeço. Por vezes, as pessoas não compreendem, não gostam. Acham que há uma história muito grande por detrás. Não é fácil explicar-lhes que o desenho está no meu corpo, está aqui. ” E Helena Almeida aponta para o estômago antes de sair, de braço dado com Artur Rosa.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher negro género corpo animal
Prometeu que ia ser engolido por uma anaconda mas só conseguiu ser enrolado por ela
Discovery Channel anunciou documentário onde um homem seria comido vivo por anaconda. Programa foi para o ar, mas isso não aconteceu. (...)

Prometeu que ia ser engolido por uma anaconda mas só conseguiu ser enrolado por ela
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Discovery Channel anunciou documentário onde um homem seria comido vivo por anaconda. Programa foi para o ar, mas isso não aconteceu.
TEXTO: Foi há cerca de um mês que a história começou a dar que falar. O naturalista Paul Rosolie anunciou que o íamos ver na televisão a ser comido vivo por uma anaconda numa produção do Discovery Channel. O documentário foi no domingo para o ar e afinal, para surpresa de todos, Rosolie não foi engolido. Os espectadores sentiram-se defraudados e chovem críticas. “Da próxima vez que assistir a um programa que se chame Comido Vivo, é bom que alguém seja mesmo comido vivo”, ironizou no Twitter uma pessoa, ao mesmo tempo que outra punha uma foto de um cão a morder o dedo e a perguntar ao Discovery Channel se podia também ter direito a um programa. Desilusão, escreve o The Independent. Um grande nada, lê-se na Variety. “É uma pena que a promessa final do programa não tenha sido cumprida”, aponta o The Guardian. As reacções ao programa multiplicam-se nos jornais e nas redes sociais com duras críticas ao Discovery Channel. O problema? O alarido que se criou no último mês em torno deste documentário de duas horas. Intitulado Eaten Alive (Comido Vivo), a produção liderada por Paul Rosolie foi notícia no momento em que foi anunciada. Gerando uma expectativa crescente, o naturalista disse ter sido engolido vivo e ter saído para contar a história. Pequenos vídeos foram sendo revelados, antecipando momentos de grande tensão. Mas nunca, em momento algum, se disse que o homem afinal não foi nada engolido. Pelo contrário, todas as antecipações do documentário falavam de como este tinha sido engolido e saído de dentro da anaconda. E de como ficou tudo bem também com a própria cobra, em resposta a ambientalistas e defensores dos direitos dos animais que rapidamente protestaram contra a exibição de Eaten Alive, lançando uma petição em que classificaram o acto de “nojento”. “Vomitar uma refeição é muito stressante para o sistema interno da cobra. Não só ela não está a receber os nutrientes da sua comida, mas o processo de regurgitação rouba ácidos digestivos essenciais à cobra”, alegava a petição. Mas vamos à história, a anunciada há um mês: Rosolie viajou com uma equipa do Discovery Channel e outros colaboradores até à floresta da Amazónia a fim de encontrar uma anaconda para a sua experiência. Usando um fato especial, oxigénio e uma corda de emergência presa ao tornozelo para poder ser puxado, Rosolie banhou-se com sangue de porco para se tornar o mais apetecível possível à cobra. No trailer vemo-lo já equipado da cabeça aos pés a deitar-se em frente à cobra e esta a reagir. E eis o que aconteceu afinal: a anaconda de facto reage mas assim que se começa a enrolar a Rosolie num abraço mortal e a querer de facto engoli-lo, este queixa-se e pede ajuda. “O meu braço está a torcer, esta coisa vai partir”, diz o naturalista, pedindo ajuda aos seus colaboradores, que rapidamente o socorrem. E isto acontece apenas nos últimos 30 minutos do documentário. A primeira hora e meia é dedicada à caça da anaconda e serve de suspense para o que vemos depois. O documentário foi visto por 30 milhões de espectadores e foi um dos tópicos mais falados no Twitter.
REFERÊNCIAS:
A ZdB faz 20 anos e Amen Dunes sopra as velas
O músico americano estreia-se nos palcos portugueses a 4 de Outubro. Bonnie "Prince" Billy, Rodrigo Amarante e o ex-Sonic Youth Lee Ranaldo regressam a Lisboa para concertos. (...)

A ZdB faz 20 anos e Amen Dunes sopra as velas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O músico americano estreia-se nos palcos portugueses a 4 de Outubro. Bonnie "Prince" Billy, Rodrigo Amarante e o ex-Sonic Youth Lee Ranaldo regressam a Lisboa para concertos.
TEXTO: A celebrar 20 anos de vida, a Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto, tem muitos motivos para alegrar as nossas almas. Amen Dunes e Ty Segall fizeram dois dos melhores discos do ano e estarão em Lisboa nos próximos tempos. Amen Dunes apresenta as suas canções na ZdB a 4 de Outubro (no dia anterior fá-lo em Guimarães, no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura). Damon McMahon passou a infância entre ácidos e leituras de Emily Dickinson; esteve na China; estudou taoísmo; fez folk para uma multinacional; teve uma banda com hype de que a história não rezará. Como Amen Dunes, projecto solitário criado em 2006, ora faz folk desarranjada, ora psicadelia caseira. Love é isso, mas é outra coisa: um monumental álbum, um clássico à nascença. Manipulator, lançado há poucos dias, é o disco definitivo de Ty Segall, que actua a 25 de Outubro no Lux. Levou um mês a fazê-lo, o que diz bem do estatuto que Segall foi conquistando num circuito de bares amigos das guitarras e numa rotina de discos feitos em três tempos. As canções estão à altura da confiança depositada no californiano: unem as pontas que Segall já explorara (melodias à Beatles, ataque de guitarras à T. Rex e Kinks, vertigem eléctrica à Sabbath), mas surgem como ideias totalmente realizadas, já não meras (embora excitantes) sugestões. Bonnie ‘Prince’ Billy regressa a Lisboa, apresentando-se com Matt Sweeney, velho cúmplice, e dois outros músicos, no São Luiz Teatro Municipal, a 16 de Novembro. As suas canções mudaram ao longo dos anos, mas mantêm a pureza austera com que surgiram nos anos 1990, criando, quase do zero, um género que une uma música maldita (a country) ao indie rock. O disco homónimo que lançou em 2013 mostra como aquela voz é ainda uma força sem rival. Antes, a 5 de Outubro, Marissa Nadler mostra a sua visão da folk: July, editado este ano, tem a candura das cantoras folk dos anos 1960, mas também o negrume que encanta os artistas black metal que com ela já trabalharam. Um dia antes, Nadler passa pelo festival Amplifest, no Porto. No dia 10 de Outubro, o brasileiro Rodrigo Amarante leva as canções do elogiadíssimo Cavalo (2013) ao Palácio Sinel de Cordes, depois de ter esgotado a sala da ZdB por duas noites em Junho. Será uma noite radicalmente diferente da que bEEdEEgEE (Brian DeGraw, dos Gang Gang Dance) protagonizará a 15 de Outubro na ZdB:música pop com o twist próprio de quem procura sempre o estranho. No dia 18, a Igreja anglicana de St. George, junto ao Jardim da Estrela, recebe a música pós-Sonic Youth de Lee Ranaldo (menos ruído, mais amor aos Grateful Dead). Ranaldo e os seus The Dust tocam no dia seguinte na Reitoria da Universidade do Minho. Outro ícone, mais subterrâneo, sobreviveu às drogas para nos continuar a entusiasmar: nas mãos de Jennifer Herrema (Royal Trux, RTX) o rock é sempre um bicho estranho. Os seus Black Bananas estão aí para o provar – agendar, s. f. f. : 1 de Novembro, ZdB. Por fim, o “avant-garage” dos Pere Ubu – o rótulo é uma piada de David Thomas, a única constante da formação norte-americana – está a caminho de Lisboa: apresentam Carnival of Souls na Galeria Zé dos Bois a 4 de Dezembro.
REFERÊNCIAS:
Aventuras de Chicago em Guimarães, terra de Mucho Flow
A 3 de Outubro, os Bitchin Bajas montam a sua máquina de sonhos no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura de Guimarães. (...)

Aventuras de Chicago em Guimarães, terra de Mucho Flow
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: A 3 de Outubro, os Bitchin Bajas montam a sua máquina de sonhos no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura de Guimarães.
TEXTO: Robert Fripp tinha as Fripptonics, eles, os Bitchin Bajas, inventaram as Bitchitronics. É mais do que piada: como Fripp, sobem aos céus por via da tecnologia, moldando o som às suas ambições ascéticas. Bitchitronics é o nome do álbum que os músicos de Chicago lançaram em 2013 na Drag City, música sem estrutura feita de diálogos de loops (a parte maquinal) e manipulação zen (a parte humana). No final de Agosto último, lançaram um disco homónimo onde ouvem-se cordas plácidas, padrões de percussão sonhadora, flautas panteístas e mantos de som hipnótico – só coisas boas. A 3 de Outubro, os Bitchin Bajas montam a sua máquina de sonhos no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura (CAAA) de Guimarães. É a segunda edição do festival Mucho Flow, organizada pela promotora local Revolve, que leva cinco anos de vida. O minifestival terá também o krautrock dos Cave, conterrâneos e colegas de editora (a Drag City) dos Bitchin Bajas. Deles já se disse que mostram o quão vital o riff ainda é. Fazem-no recuperando as frases repetitivas da parte mais excitante do rock alemão dos anos 1970: repetição na bateria metronómica na motorik; repetição no velho órgão que enche o som; repetição no baixo que bombeia energia e impõe o mergulho de quem escuta. O krautrock está vivo e mora em Chicago. O Mucho Flow terá ainda as magníficas canções de Love, o magnífico álbum que Amen Dunes lançou este ano. Damon McMahon quis fazer “um disco de escritor de canções produzido por uma banda de jazz espiritual, como se Elvis tivesse Pharoah Sanders a apoiá-lo” – seja lá o que isso for. Em vez disso, fez um conjunto de deliciosos lamentos acústicos e eléctricos. A ZDB também o receberá, a 4 de Outubro. Os norte-americanos The Vacant Lots, duo rock’n’roll que deve tanto aos Gun Club como aos Jesus and Mary Chain (o álbum de estreia, Departure, saiu em Julho), Sculpture (outro duo, que cruza a música – ruidosa e hiperactiva, como a dos Black Dice – com a animação), os vimaranenses Toulouse e Movimento Perpétuo e DJ Lynce preenchem o cartaz do Mucho Flow, que promete música das 19h30 às 4h.
REFERÊNCIAS:
Tempo Outubro Julho Agosto
Por que razão surge a arte?
O aparecimento da representação simbólica em suporte material só foi possível porque o Homo sapiens dispunha de uma notável capacidade inexplorada de pensamento simbólico. (...)

Por que razão surge a arte?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O aparecimento da representação simbólica em suporte material só foi possível porque o Homo sapiens dispunha de uma notável capacidade inexplorada de pensamento simbólico.
TEXTO: No último verão, tive uma experiência inesquecível no Sul de França, na região dos Pirenéus, ao visitar a gruta de Niaux, no vale de Vicdessos. Feita uma reserva com grande antecedência, cheguei na hora e dia combinados e, na imensa entrada natural da gruta decorada por uma bela escultura metálica do arquiteto Massimiliano Fuksas, formou-se um grupo de cerca de vinte pessoas munidas de lanternas portáteis. Penetrámos na completa escuridão da caverna e caminhámos lentamente num solo pedregoso e encharcado com poças de água, uma distância de cerca de 800 metros. Apontei diversas vezes a lanterna para as paredes daquelas vastas abóbadas cobertas de estalactites, na busca de algum sinal humano, mas em vão. Quando o cansaço começava a ganhar o grupo, o chão ficou enxuto, começámos a andar sobre areia, cascalho e rochas cristalinas e chegámos a uma sala vasta, mas de teto baixo. À entrada, à direita, a parede angulosa estava coberta de variados sinais e figuras geométricas de cor vermelha, incluindo os claviformes que provavelmente caracterizam uma cultura, ao surgir repetidos desde as grutas do Cantábrico, em Espanha, até aos Pirenéus franceses. Mais adiante, virámos para uma galeria larga em que o terreno arenoso sobe até se atingir uma sala circular de proporções majestosas e de paredes onduladas que o arqueólogo Émile Cartailhac, em 1906, designou por Salão Negro. É nas paredes desta sala que se encontram desde há cerca de 13. 000 anos desenhos magníficos de bisontes, cavalos e cabras (Capra ibex). Curiosamente, não há representações de renas, que constituíam a principal fonte alimentar destes nossos antepassados. São frisos sucessivos de desenhos feitos com uma mistura de carvão vegetal, dióxido de manganés e gordura animal a servir de ligante, subtis, expressivos e que nos permitem “ver” os animais, por vezes em alto-relevo, aproveitando as formas das paredes. Picasso, quando viu pela primeira vez as gravuras de Altamira, pertencentes à mesma cultura magdaleniana que floresceu entre 17. 000 e 12. 000 anos atrás, exclamou: “Después de Altamira todo el arte parece decadente”. Há mais desenhos nas paredes das imensas galerias de Niaux, mas a maior parte está no Salão Negro. Porquê?É impossível responder à maioria das perguntas que nos ocorrem quando apreciamos a arte rupestre do Paleolítico Superior. Contudo, o Salão Negro é magnífico na sua forma, na proporção das suas dimensões, no seu isolamento e posição recuada no interior da gruta. Muito provavelmente os Homo sapiens que o decoraram pensariam algo semelhante. Não há vestígios de a gruta de Niaux ter sido habitada pelos humanos, mas sabe-se que era visitada por adultos e também por crianças, cujas pegadas na lama se fossilizaram e são ainda visíveis. Note-se que, apesar da entrada da gruta estar relativamente elevada na encosta da montanha, é possível concluir que, há cerca de 20. 000 anos, em pleno período glacial, quando a temperatura média global atingiu um mínimo, o vale de Vicdessos estava coberto por um glaciar que bloqueava a entrada da gruta. Só mais tarde, há cerca de 14. 000 anos, quando o clima aqueceu, a entrada da gruta ficou liberta, permitindo que os caçadores-recolectores madgalenianos a descobrissem, explorassem e desenhassem nas suas paredes. Para entrar na gruta era preciso caminhar na encosta íngreme ao lado de um grande glaciar. A entrada da gruta ficava no limite da imensa região de glaciares e campos de gelo que cobriam os Pirenéus no último período glacial. Era a fronteira mais avançada sobre uma barreira de gelo, fatal e intransponível, e também o ponto de passagem da caça que no Outono descia das montanhas para os vales. Perante este cenário e o pouco que se consegue reconstruir sobre essa época, surgem as perguntas: qual a origem e a razão da arte rupestre pré-histórica? Qual a origem da representação simbólica em suporte material?Há muitos sistemas de explicações para responder a estas perguntas, tais como a magia da caça, os rituais de fecundidade, os “mitogramas” de André Leroi-Gourhan, o “diálogo com a gruta” de Michel Lorblanchet e, mais recentemente, o xamanismo de Jean Clottes. Todas estas conceções são esclarecedoras e importantes para procurar compreender a arte do Paleolítico Superior, mas necessariamente parciais. Em lugar de as aplicar e debater detalhadamente, procuremos traçar uma visão evolutiva mais abrangente. O Homo sapiens surgiu em África há cerca de 200. 000 anos, saiu desse continente através do Médio Oriente há cerca de 70. 000 anos e começou a colonizar a Eurásia e em particular a Europa Ocidental há aproximadamente 50. 000 anos, onde ficou conhecido por Cro-Magnon, nome da gruta em Les Eyzies, no Sudoeste de França, onde os primeiros fósseis foram descobertos, em 1868. Durante aquele longo período de tempo até há 50. 000 anos a representação simbólica foi pouco expressiva e limitou-se a pinturas corporais, tatuagens, objetos de adorno, tais como colares de dentes ou de conchas furadas. Os registos gráficos mais antigos são sinais gravados nas paredes rochosas ou em pequenas placas, pontos alinhados, traços paralelos, círculos, cruzes, retângulos e também desenhos de mãos e de vaginas. Há cerca de 40. 000 anos na Europa, no período da cultura do aurignaciano, as formas de representação simbólica dos Cro-Magnon diversificaram-se de forma extraordinária. Surgem novas técnicas de caçar e de produzir artefactos talhados na pedra, no osso e no marfim de mamute. Há uma grande variedade de imagens de humanos e de animais, desenhadas, gravadas, pintadas, esculpidas e também de objetos de adorno. Entre as esculturas mais antigas e notáveis está a Vénus de Hole Felds, descoberta em 2008, com uma idade compreendida entre 40. 000 e 35. 000 anos, e a mulher-leoa da gruta de Stadel, com cerca de 40. 000 anos. Qual a razão desta aceleração do desenvolvimento cultural? Não sabemos ao certo, mas há várias conjeturas. Poderá ter resultado do encontro do Homo sapiens, adaptado fisiologicamente aos climas de África, com populações de Homo neanderthalensis, adaptado aos climas mais frios da Europa, onde se encontravam há mais de 300. 000 anos, e com as quais competiam por recursos naturais escassos e aleatórios. Outra hipótese, porventura mais provável, é ter origem numa evolução social resultante de uma maior densidade demográfica das populações de Homo sapiens. A maior proximidade promoveu uma interação social mais complexa, propiciadora do desenvolvimento de aptidões e manifestações culturais transmissíveis de geração em geração. Desde o seu aparecimento, o Homo sapiens tinha uma capacidade potencial para o pensamento simbólico, conferida pela sua configuração biológica, especialmente no que respeita ao cérebro, mas só mais tarde esta capacidade foi usada e desenvolvida com estímulos exteriores. Os humanos utilizavam certamente formas de representação sem suporte material, a mais importante das quais terá sido a linguagem. Mas as representações verbais são insuficientes para manter a coesão de sistemas sociais com comportamentos e identidades de complexidade crescente. As representações em suporte material completam e valorizam a linguagem. Devido à sua durabilidade, podem ser partilhadas por várias gerações, o que, além de lhes conferir uma autoridade acrescida, permite-lhes transmitir as mensagens que transportam muito para além da vida dos seus autores. Conseguir reproduzir, no fundo de uma gruta, a visão de bisontes e cavalos por meio de simples traços e manchas feitas com misturas de pós minerais e gordura deveria ser algo extraordinário, misterioso e deslumbrante para os que viam as obras, fossem contemporâneos dos autores ou seus descendentes. Hoje em dia, quando vemos as pinturas de Altamira, Lascaux, Chauvet, Niaux e de muitas outras grutas, o nosso deslumbramento é diferente e resulta do mistério da origem da representação simbólica e da beleza daquelas imagens primordiais no contexto da história da arte, um conceito que é um produto das sociedades ocidentais modernas. O aparecimento da representação simbólica em suporte material, ou representação plástica, só foi possível porque o Homo sapiens dispunha de uma notável capacidade inexplorada de pensamento simbólico que os seus antepassados e o Homo neanderthalensis não possuíam ou não chegaram a usar. Nas condições específicas que o Homo sapiens encontrou na Europa, onde coabitaram pela última vez duas espécies do género Homo, a representação simbólica por meio de gravuras, pinturas e esculturas antropomórficas e de animais foi provavelmente uma forma de adaptação de natureza cultural. A representação plástica não floresceu apenas na Europa, mas em todos os continentes e regiões habitadas pelo Homo sapiens, o que revela ter sido uma inovação cultural progressivamente selecionada à escala global devido às vantagens que trouxe para os grupos que a adotaram e desenvolveram. As representações plásticas através do mundo e da história adquiriram um valor e uma diversidade notáveis, fruto das suas funções específicas no contexto social, religioso, político, económico e ambiental em que se inseriram e da criatividade dos seus autores. Hoje em dia, integramos estas representações na história da arte, mas importa não esquecer que o conceito de arte pela arte surgiu apenas no princípio de século XIX.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos cultura mulher negro social género animal marfim
Fascismo é quando um homem quiser
O texto de José Rodrigues dos Santos representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas. (...)

Fascismo é quando um homem quiser
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2016-06-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: O texto de José Rodrigues dos Santos representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas.
TEXTO: Em 2016, o panorama editorial português fica marcado pela publicação de dois best-sellers altamente tóxicos: O Pavilhão Púrpura, de José Rodrigues dos Santos, e A Minha Luta, de Adolf Hitler. Em O Pavilhão Púrpura, Rodrigues dos Santos sustenta que o "fascismo alemão" se chamava "nacional-socialismo" por uma razão muito simples: o sufixo "socialismo" significa que o nazismo é um movimento de origem marxista. Em A Minha Luta, logo no segundo capítulo, Adolf Hitler descreve os seus tempos em Viena, e diz: "Foi nessa altura que os meus olhos se abriram para dois perigos que eu mal conhecia e cuja assustadora importância para a existência do povo alemão eu estava longe de suspeitar: o marxismo e o judaísmo". Um pouco mais à frente, Hitler confessa: "Fiz um esforço sobre mim próprio e tentei ler as produções da imprensa marxista, mas a repulsa que elas me inspiraram acabou por tornar-se tão forte que procurei conhecer melhor os que urdiam estas canalhices". Eram os judeus, obviamente. "Contudo, dos milhões de palavras proferidas por Hitler de que há registo, nenhuma indicia que se debruçou sobre os escritos teóricos do marxismo, que tenha estudado Marx ou Engels, ou Lenine (que esteve em Munique não muito antes dele), ou Trotsky (seu contemporâneo em Viena). Fosse em Munique ou em Viena, Hitler não lia para se cultivar ou aprender, mas para confirmar os seus preconceitos", escreve Kershaw na sua monumental biografia do líder nazi (cf. Ian Kershaw, Hitler, Vol. 1 – 1889-1936: Hubris, Londres, 1998, pág. 84). Adolf Hitler, portanto, nem sequer leu Karl Marx antes de se proclamar anti-marxista. E José Rodrigues dos Santos, pelos vistos, nem sequer leu Adolf Hitler antes de proclamar que o nacional-socialismo tem origem no marxismo. Quanto ao fascismo em termos mais genéricos, recomenda-se-lhe a leitura de um livro saído entre nós em 2011. Logo nas primeiras páginas de Fascistas, Michael Mann tem um capítulo chamado Para uma definição de fascismo (pp. 34ss). Aí, passa-se em revista a abundante literatura académica que tem sido produzida pelos maiores especialistas mundiais sobre o tema. Certamente por lapso ou lamentável distracção, não se menciona o nome do doutor Rodrigues dos Santos, nem os seus recentes trabalhos de filosofia política, como As Flores de Lótus e O Pavilhão Púrpura, ambos demonstrativos da tese de que o fascismo tem origem no marxismo. Mas Michael Mann cita, por exemplo, o insuspeito Ernst Nolte, que, num clássico de 1963 (Der Fascismus in seiner Epoche), identificou um "mínimo fascista", o qual combina três "antis" ideológicos: o antiliberalismo, o anticonservadorismo e… o antimarxismo. No esmagador History of Fascism (1995), Stanley Payne considera a definição de Nolte insuficiente, mas adere à sua ideia de que o antimarxismo constitui uma das características essenciais do fascismo. O texto de Rodrigues dos Santos publicado neste jornal representa um lamentável exemplo de como uma amálgama confusa de referências e factos históricos pode conduzir a conclusões erradas, sobretudo quando se pretende, com pontinha de imodéstia, apresentar um sound bite provocatório, estratagema promocional que, de resto, já fora usado pelo autor no lançamento de outros títulos da sua pavorosa bibliografia. Concedendo-lhe um piedoso benefício da dúvida, podemos até pensar que o autor acredita mesmo naquilo que diz, julgando ter feito descobertas revolucionárias, assombrosas, como os heróis dos seus romances. Nesse caso, o problema será de outro foro, mais grave, surgindo geralmente diagnosticado com o epíteto de mitomania. Metendo-se por caminhos sinuosos e veredas que não conhece, o autor de O Pavilhão Púrpura julga que descobriu uma "verdade" onde afinal só existia uma ignorância – a sua. Como se estivesse perante um júri académico ou numa sala de audiências, convoca as "provas que apresento nos meus romances". Infelizmente, nada apresenta de novo. O socialismo juvenil de Mussolini, por exemplo, foi minuciosamente descrito por Renzo de Felice em Mussolini il revoluzionario, 1883-1920 (Turim, 1965, pp. 1-200), por Luciano Dalla Tana em Mussolini massimalista (1964), por Emilio Gentile em Mussolini e "La Voce" (1976) ou por Gerhardo Bozetti em Mussolini direttore dell’Avanti (1979). A esta excelsa bibliografia deveremos juntar, a partir de agora, dois romances de José Rodrigues dos Santos, que, ao contrário da presunção do autor, nada acrescentam ao que já consta de publicações respeitáveis como a Wikipedia, quer sobre a influência de Sorel e de Michels, quer sobre as metamorfoses do sindicalismo revolucionário em Itália. A complexa e turbulenta evolução dos movimentos políticos italianos, aliás, passa completamente ao lado do nosso romancista de sucesso. Não se tem presente, por exemplo, que na fundação, em 1919, na Piazza Santo Sepolcro de Milão, dos Fasci Italiani di Combatimento, é já bem notório o predomínio do sindicalismo nacionalista sobre o sindicalismo revolucionário. Dizer que "o fascismo tem origem no marxismo" estará correcto, num certo sentido, mas é o mesmo que dizer nada, absolutamente nada, do ponto de vista historiográfico e politológico. Como observa Ernst Nolte, é óbvio que sem o marxismo não existiriam o fascismo e o nazismo, justamente porque estes se afirmaram como anti-marxistas (e, para ser coerente, entre as "provas" que revela nos seus romances Rodrigues dos Santos deveria ter apresentado declarações a favor do ideário marxista feitas por Mussolini na sua fase fascista pós-1920 ou por Adolf Hitler nas páginas de Mein Kampf). Em suma, para o ponto que interessa – a classificação tipológica dos regimes políticos – qualificar o fascismo como um movimento de origem marxista é um erro, pois as supostas "raízes marxistas" do fascio não caracterizam a essência do seu perfil. Pegando no texto de Rodrigues dos Santos, também poderemos dizer, se quisermos, que o fascismo tem origem no evolucionismo de Darwin ou que o nazismo se inspirou nas leis de Newton. Entra-se no vale-tudo, pois, de facto, isto anda mesmo tudo ligado. Com jeito e audácia, poderemos até sustentar que o Benfica foi campeão de futebol este ano porque o Beira-Mar falhou aquele penálti decisivo contra o Leixões nas semifinais da Taça de 1967. Já agora, e porque nestes últimos livros se aventurou por terras do Oriente, Rodrigues dos Santos deveria ter referido o "fascismo japonês", de que os soviéticos começaram a falar em 1934. A esse propósito, poderia até ter citado o nome do jornalista nipónico Motoyuki Takabatake (1886-1928), antigo anarquista que traduzira O Capital em 1924 e, pouco depois, abraçava a causa nazi – mais uma prova irrefutável de que "o fascismo tem origem no marxismo". À defesa, Rodrigues dos Santos vem agora dizer que o pensamento dos fascistas "continuou a evoluir", o que é próprio dos seres humanos e doutros animais. Todavia, não esclarece os leitores que, na sua etapa plenamente fascista, Mussolini já havia rompido com o socialismo de juventude. Rodrigues dos Santos afirma, por último, que os fascistas se declararam como antimarxistas, "o que, a partir de certo ponto, realmente aconteceu". É nesse ponto que bate o ponto. Foi precisamente a partir daí que o fascismo se afirmou, cresceu e alcançou o poder, florescendo como um movimento que não só não era marxista como se manifestava, na teoria e na prática, como militante e combativamente antimarxista. Como nota Stanley Payne, só no Outono de 1920 o termo "fascismo" se tornou uma expressão corrente, servindo para designar os cada vez mais violentos Fasci di Combatimento, que se afirmavam nas ruas como vanguarda agressiva e nacionalista de uma "guerra contra o bolchevismo". O número de filiados passou de 20. 000, em finais de 1920, para 100. 000, em Abril de 1921, quase duplicando esta cifra no mês seguinte. Em Novembro, os Fasci tinham já 320. 000 aderentes. Eram agora um movimento de massas, com muitos membros que, sobretudo nas zonas rurais do Norte de Itália, passaram directamente da CGL socialista para o fascismo. As eleições de 1921 foram um triunfo pessoal de Mussolini, tendo os socialistas descido de 32% para 24% e o novo partido comunista obtido uns ínfimos 2, 8%. A campanha eleitoral foi de enorme violência: de acordo com um relatório policial, nos primeiros quatros meses de 1921 houve, no mínimo, 206 assassinatos políticos. A violência era tanta que Mussolini foi instado a controlar as suas hostes, expulsando do movimento criminosos de delito comum e outros militantes particularmente agressivos. No dia a seguir às eleições, foram mortos 10 socialistas. Estes reagiram com igual violência, matando 18 "camisas negras" em Génova, em Julho de 1921. De vendetta em vendetta, foi impossível alcançar a paz; e Mussolini percebeu que era melhor organizar a violência a seu favor do que tentar controlá-la. Transformados os Fasci no Partito Nazionale Fascista, este configura-se como uma organização paramilitar e, em Outubro de 1922, marcha sobre Roma, sendo dispensável contar o resto da história. De há muito que os socialistas eram os alvos principais da violência dos fascistas (e vice-versa, note-se), pelo que dizer que o "fascismo tem origem no marxismo" é não perceber nada da sequência temporal dos factos. Numa síntese arriscada, quando o fascismo verdadeiramente surge, quando emerge como autêntico fascismo, de há muito tinha abandonado as suas origens sindicalistas-revolucionárias; e, mais ainda, agora perseguia a tiro e a golpes de navalha os socialistas e os membros de outros grupos de esquerda. De permeio, é certo, muitos dirigentes fascistas das zonas rurais gritaram "a terra a quem a trabalha". Talvez num próximo romance José Rodrigues dos Santos nos traga a revelação sensacional de que as ocupações no Alentejo em 1975 tiveram origem em Mussolini e nos seus adeptos. Que Deus lhe perdoe. Jurista e historiador
REFERÊNCIAS:
Religiões Judaísmo
Até sempre, engenheiro Belmiro
Sendo jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação, há um lado de Belmiro de Azevedo pelo qual tenho um particular interesse, admiração e gratidão. (...)

Até sempre, engenheiro Belmiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-12-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sendo jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação, há um lado de Belmiro de Azevedo pelo qual tenho um particular interesse, admiração e gratidão.
TEXTO: Belmiro de Azevedo foi um grande empresário, não só em Portugal. Foi-o à escala global. Construiu o seu percurso e o seu império empresarial sabendo investir e sabendo gerir, dois conceitos que parecem ter caído em desuso num país em que o amiguismo e o tráfico de influências (“cunha”, em linguagem popular) se tornaram as armas para construir carreiras de gestores e empresas, além, claro, para conseguir crédito bancário. Belmiro de Azevedo era um grande empresário e, como tal, era determinado. Ao ponto de não se calar. Ao ponto de, por diversas vezes, ter lançado comentários violentos, sobre o país ou sobre a classe política. Ao ponto de ter entrado em polémicas com o poder institucional. Aconteceu há uma década com o Governo de José Sócrates a propósito da compra da Portugal Telecom, em que o Estado usou a golden share para impedir a Sonae de lançar uma OPA sobre esta empresa de comunicações. Mas aconteceu também antes com Cavaco Silva a propósito do Banco Português do Atlântico (BPA). E com António Guterres novamente em relação ao BPA. Belmiro de Azevedo não se coibia de ser provocador. Um dos exemplos ficou nos anais da história parlamentar, quando foi chamado a uma comissão de inquérito ao suposto favorecimento da Sonae pelo Governo de Guterres pedido pelo PSD de Marcelo Rebelo de Sousa. Fazendo saber que começava a trabalhar cedo, exigiu ser ouvido às 8h da manhã, obrigando os deputados a antecipar a reunião. Belmiro de Azevedo tinha três características que prezo particularmente. Sabia apostar nos outros, confiava e promovia aqueles em quem via capacidades e mérito. Preparava-se intelectual e tecnicamente, sempre, para enfrentar os riscos dos negócios em que se metia. E, last but not the least, não tinha medo de correr riscos. E correu-os. Belmiro de Azevedo era um homem desassombrado. Mas Belmiro de Azevedo era igualmente um homem simples. Mais: não era deslumbrado. O dinheiro nunca lhe subiu à cabeça. Percebi a sua frugalidade e despojamento quando, em 1999 — naquela que foi a primeira das grandes entrevistas que deu ao PÚBLICO —, acompanhei a Teresa de Sousa e o Pedro Camacho ao Algarve, para o entrevistarmos, estava ele de férias num resort da Sonae. Deliciei-me não só com a frontalidade e até ironia das respostas mas também com a gestualidade e os hábitos de pessoa comum, de pessoa que era o que era, sem armações, sem pseudobetices, sem “ceninhas postiças”. Senti mesmo um prazer íntimo ao ver o à-vontade com que nos recebeu de calções e bebia goles de Água das Pedras pela garrafa. Como é normal, sendo jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação e tendo entrado nesta redacção em Setembro de 1989 como estagiária — ainda o jornal ia começar a treinar os “números zero” —, há um lado de Belmiro de Azevedo pelo qual tenho um particular interesse, admiração e gratidão: a forma como soube perceber o projecto jornalístico que lhe foi apresentado no final dos anos 80 do século passado por Vicente Jorge Silva, Augusto Seabra, Jorge Wemans, José Manuel Fernandes e Nuno Pacheco. Fê-lo com desprendimento, com distanciamento, com frieza de cálculo de gestão e com visão estratégica. Percebeu que podia revolucionar a comunicação social em Portugal e arriscou. Fez um jornal que marcou e marca o panorama da comunicação social portuguesa. É certo que o PÚBLICO foi um investimento financeiro que raramente deu lucro. É certo que várias vezes Belmiro de Azevedo deu um murro na mesa. Chegou a dar um prazo de vida ao jornal. Mais de uma vez, o PÚBLICO sofreu convulsões, cortes e constrangimentos por razões financeiras. O que me parece legítimo como acto de gestão do ponto de vista do empresário, já que, sendo também um investimento, não era nem deve ser para perder dinheiro, ou pelo menos não perder muito. Creio, contudo, que Belmiro de Azevedo sempre aceitou perder dinheiro com o jornal porque sabia que o PÚBLICO era e é muito mais do que isso. É um projecto que tem uma função social. É um agente de uma sociedade democrática. E creio estar certa quando penso que Belmiro de Azevedo sempre se orgulhou de fundar e de ser dono do PÚBLICO. É preciso dizer, porém, que Belmiro de Azevedo nunca se serviu do jornal. Não interferiu na linha editorial nem no trabalho da redacção. E manteve sempre a devida distância. Visitou duas vezes a redacção, uma no início, outra quando o jornal se mudou, em 2013, para as actuais instalações em Lisboa. E, dentro dos constrangimentos financeiros a que esteve e está sujeito, o PÚBLICO sempre viveu em total liberdade e independência editoriais. O espírito de liberdade, a marca-d’água do PÚBLICO, permitiu à redacção manter viva a chama do jornalismo independente. Uma liberdade que foi e é acompanhada, quase sempre, mesmo em momentos de crise interna, por um clima de informalidade e de frontalidade só possível numa redacção livre. Há uma história do início do jornal que demonstra de forma quase caricatural este espírito aberto. Nas instalações da Quinta do Lambert, em Lisboa, o jornal adoptou dois cães vadios: o Sonae, que depois ganhou uma namorada, a Belmira. Acredito que Belmiro de Azevedo, se soube, terá achado graça. Quando, no início de 1990, fazíamos mais um “número zero”, a editora da Política, Áurea Sampaio, mandou-me ao aeroporto de Lisboa para pedir um comentário de Alberto João Jardim sobre um assunto que se perdeu na minha memória. O que não esqueci nunca foi a cena em si. Apresentei-me como jornalista do PÚBLICO e fiz a pergunta. O presidente do Governo da Madeira respondeu-me: “Não falo a jornais do continente. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na minha ingenuidade de então e desconhecendo ainda o léxico de Jardim, achei que ele estava a dizer que não falava ao PÚBLICO porque era o jornal do supermercado Continente. Até porque, à época do lançamento do PÚBLICO, era comum ouvirem-se comentários jocosos sobre o jornal ser de um homem conhecido pela sua cadeia de supermercados. Ouvi mesmo por várias vezes o comentário de ser paga pelo “lucro da venda de alfaces e de amendoins”. Sempre foi motivo de orgulho, para mim, ser paga com dinheiro “da venda de alfaces e de amendoins”. É bom saber que não sou paga pelo lucro de negócios escusos, de investimentos em offshores ou que as pessoas suspeitem até de que a origem do financiamento do PÚBLICO esteja ligada a cartéis de droga. Por isso, e por tudo o resto que o PÚBLICO representou e representa, tenho um enorme orgulho e uma imensa honra de trabalhar há quase 30 anos para Belmiro de Azevedo e para a sua Sonae. Obrigada, senhor engenheiro.
REFERÊNCIAS:
Partidos PSD LIVRE
O homem que viveu a fazer até ao fim
Belmiro Mendes de Azevedo morreu nesta quarta-feira no Porto aos 79 anos de idade. O seu legado concreto mede-se facilmente no universo empresarial que criou. O seu exemplo como gestor permanece alvo de devoções. Mas a voz dura do empresário inconformado, exigente e rebelde parece ter-se perdido. (...)

O homem que viveu a fazer até ao fim
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-12-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Belmiro Mendes de Azevedo morreu nesta quarta-feira no Porto aos 79 anos de idade. O seu legado concreto mede-se facilmente no universo empresarial que criou. O seu exemplo como gestor permanece alvo de devoções. Mas a voz dura do empresário inconformado, exigente e rebelde parece ter-se perdido.
TEXTO: “O problema de morrer tem mais que ver com quem fica e não com quem vai. Com a morte não se tem relação, nem se procura. ” Em 2004, quando proferiu esta declaração desprendida, Belmiro Mendes de Azevedo tinha mais três anos de líder destacado da Sonae e mais 13 anos de vida. Nesta quarta-feira, o “problema” aconteceu. Depois de poucos dias de internamento, Belmiro faleceu, no Porto. Tinha 79 anos vividos quase sempre numa espiral interminável de actos de inconformismo e rebeldia. Contra a situação, contra o imobilismo, contra o comodismo, contra a inércia, contra os favores de uma sociedade cristalizada, que “se verga cedo de mais” como se a memória dos “reis” permanecesse incólume, contra uma maneira de fazer negócios previsível, conformada e subserviente aos poderes. Mais do que um empresário, Belmiro foi um exemplo de exigência permanente, um homem livre e corajoso, amigo do risco, da disciplina interior, da educação pela vida fora, da “ética rigorosa”. Foi um apologista de uma necessidade íntima de fazer e desfazer para voltar a fazer de novo, como se a realização pessoal dependesse dessa permanente contradição. “Morre o maior empresário depois do 25 de Abril, a classe empresarial portuguesa estará de acordo com isto. Morre uma figura inspiradora para milhares de quadros. E morre uma voz que nunca baixou a cerviz”, diz Daniel Bessa, que trabalhou pela primeira vez com Belmiro “há mais de 40 anos”. Olhando o seu percurso de vida, todas essas características acabam por obedecer a um traço de temperamento que desde sempre marcou Belmiro. Foi a sua coragem física, a liberdade de dizer o que pensava e agir de acordo com o risco dessa atitude que o levou de uma pequena empresa industrial nos anos 60 do século passado à construção de um dos maiores grupos privados nacionais. Foi a sua permanente disponibilidade para o risco que o levou a definir as visões sobre os novos hábitos de consumo nos hipermercados ou a antecipação de um mundo onde as pessoas estariam permanentemente ligadas por um aparelho sem fios – o telemóvel. Foi a introdução da exigência na gestão e a aposta numa cultura meritocrática, cristalizada nos famosos dez mandamentos do “Homem Sonae”, que levaram centenas de jovens a entrar na Sonae ou a enveredar por carreiras de gestão. O movimento yuppie dos anos 90 deve-se a ele. Belmiro Mendes de Azevedo nasceu em Tuías, nas imediações do Marco de Canavezes, no dia 17 de Fevereiro de 1938. Para ele, a origem sempre foi um privilégio e uma ponte. “Eu sou um homem do Marco, freguesia de Tuías. Depois, estou dentro de todos os outros universos: sou do Norte, sou de Portugal, sou da Europa e sou do mundo”, diria. Pela vida fora, o empresário gostaria sempre de sublinhar a sua origem humilde, embora nesse tempo de extremas privações os Azevedo fossem uma família de classe média. A mãe, Adelina, que o fascinará pelo rigor e pela devoção ao trabalho, era costureira e o pai, Manuel, carpinteiro. Mas as heranças tinham-lhes garantido ao menos terrenos de cultivo que nessa época eram capazes de separar uma vida de penúria de uma situação remediada. Sempre havia milho para panificar, vinho, leite e carne quando possível. Belmiro é o primeiro filho do casal e jamais abdicará desse estatuto. Sempre assumiu um papel complementar ao dos pais na educação dos seus irmãos. Nada na sua primeira experiência escolar permitiria adivinhar o seu percurso académico. No primeiro ano, reprovou. Não por culpa dele, diria sempre, mas pelo laxismo e incompetência do seu professor, por sinal um amigo de caça do seu pai. Quando muda de professor e de escola, Belmiro muda também. Torna-se um aluno exemplar. O mérito, dirá, foi do seu professor, Carlos da Silva Andrade. “Ele era rigoroso, exigente e disciplinador e teve um grande impacto no meu carácter. Por sua influência fui sempre (e ainda sou) um leitor ávido e interessado nas grandes questões materiais e espirituais sobre a condição humana. Foi, na verdade, graças a ele que saí da província e me lancei no mundo. Sem esse impulso, seguramente não estaria aqui hoje”, diria Belmiro de Azevedo num discurso de reconhecimento à homenagem que a Ordem dos Engenheiros lhe fez há dois anos. Seria, de resto, o professor do ensino básico a influenciar os pais para a necessidade de o primogénito continuar os estudos. Aos 11 anos, Belmiro parte para o Porto, para estudar no liceu. Por falta de condições, tem de ficar hospedado na casa do tio Belmiro da Mota, na altura fiscal nas obras de construção do Observatório da Serra do Pilar, em Gaia. Nesse encontro com o tio, Belmiro colherá a segunda experiência de vida que marcará indelevelmente outra das facetas marcantes da sua personalidade: um certo espírito libertário e irreverente. Belmiro da Mota era um velho republicano carbonário que guardara armas em casa, conhecera a perseguição da PIDE e a prisão no Aljube. Para o jovem vindo de Tuías, a sua cultura política, a sua dedicação aos livros e às ideias políticas tornaram-se uma revelação. “Era muito meu amigo. Vivemos juntos durante muito tempo. Era um filósofo, ateu. Ou agnóstico. Para ele, Jesus Cristo não era um líder religioso, mas um grande filósofo. Lia muito sobre aquilo, não tinha educação superior e passava a vida a explicar-me isso. Morreu com um enfarte violentíssimo, à uma da manhã, estávamos os dois em casa. Foi a primeira pessoa que vi morrer”, diria, em 2010, numa entrevista à Visão. Após a morte do tio, Belmiro de Azevedo, com 15 anos, muda de novo de vida. Aluga um quarto na Rua do Bonfim, no Porto, perto do liceu Alexandre Herculano que frequentava ao lado de, entre outras figuras conhecidas, Rui Vilar, o chairman da Caixa Geral de Depósitos. As suas notas garantem-lhe mais tarde uma bolsa de estudos da Fundação Calouste Gulbenkian. Mas tem de dar explicações para garantir a sua sobrevivência. “O maior investimento que fiz na minha vida foi quando aos 17 anos decidi ser empreendedor e comecei a dar explicações para financiar o meu curso. ‘Ginasticou-me o caco’ e o retorno do investimento tem sido infinito. Por isso, a formação é o melhor investimento que qualquer pessoa pode fazer”, explicou em 2001 ao Expresso. Estava na hora de ir para a universidade. Os pais viriam em 1958 para o Porto, e Belmiro encontrou aí estabilidade e previsão. Entre explicações e noitadas a jogar cartas com os amigos, Belmiro de Azevedo licenciar-se-ia em Engenharia Química, com 16 valores. Houve anos em que arriscou em excesso e quase não fazia exames. Mas acabou com média suficiente para ser convidado para ser docente na Faculdade de Engenharia do Porto. Não era, no entanto, esse o caminho que queria seguir. Mal acaba o curso, em 1963, aceita um emprego num dos gigantes nortenhos da fiação, a Efanor. O mundo pareceu-lhe aí muito cristalizado. “Mandava toda a gente”, diria. Desse primeiro emprego ficaria uma ligação simbólica. Efanor é ainda a holding pessoal da família Azevedo. Em 1965, Correia da Silva, o administrador delegado da Sonae, uma empresa do universo do banqueiro Afonso Pinto de Magalhães que se dedicava a produzir um aglomerado a partir do bagaço de uva, lança-lhe um desafio: mudar o sistema de produção da fábrica. Belmiro chegou como um vendaval. “A minha primeira tarefa como jovem engenheiro foi ter de mandar para a sucata metade dos equipamentos e mudar substancialmente as pessoas que lá estavam. Durante muito tempo trabalhava durante 24, 48, 72 horas seguidas de modo a cumprir a completa transformação”, explicaria numa memória para uma edição interna da Sonae. Mas essa transformação não se ficou pelas máquinas e pelos trabalhadores. Abrangeu o próprio produto. Em vez de estratifite, a Sonae passou a produzir laminite e saiu da crise grave em que se encontrava. Logo no princípio da carreira Belmiro mostrara o traço fundamental do seu perfil de gestor. Para ele, não podia haver barreiras ao que entendesse como necessário para cumprir uma missão. À sua chegada à Sonae instalou o “caos organizado” que defenderia vida fora. Numa entrevista ao PÚBLICO em 1995 explicaria esse conceito inaugural do seu percurso: “Costumo dizer — e acredito nisso — que só funciono bem no caos organizado. É preciso saber gerir o caos. Uma empresa, para ter criatividade e competitividade interna, tem de, permanentemente, ser capaz de gerir num certo ambiente de desordem, o que significa mudanças permanentes. A nossa maneira de estar, a nossa estabilidade é sermos instáveis. ”Entre as tarefas na gestão da Sonae, Belmiro dedica-se a uma das paixões que conservará até ao limite da sua resistência física: o desporto. Quando era adolescente, causava espanto aos moradores de Tuías ao dedicar-se a longas corridas pela aldeia. Na universidade pratica, com reconhecido talento, andebol. Primeiro no clube desportivo da universidade, depois no seu clube de paixão, o FC. Porto. Aos 18 anos, na praia de Leça, conhece entretanto Maria Margarida Teixeira, que tinha à época 15. Nas suas primeiras saídas românticas, Belmiro recordaria um dia de 1958, ano da campanha de Humberto Delgado para as eleições presidenciais, quando, ao subirem a Rua 31 de Janeiro, teve de lhe pegar ao colo para a proteger do tumulto gerado num confronto com a polícia. Margarida e Belmiro de Azevedo casar-se-iam em 1963, quando ela era ainda estudante de Ciências Farmacêuticas – Belmiro ganhava 5600 escudos na Efanor. Margarida foi talvez a pessoa mais influente na sua vida. Foi, pelo menos, a pessoa que desde sempre teve mais poder para controlar o lado mais impulsivo e tempestuoso do engenheiro. O filho que lhe sucedeu nos negócios da Sonae, Paulo, diria mais tarde numa reunião internacional com quadros do grupo que a Sonae tinha um CEO (chief executive office) – Belmiro – e uma CEO (chief emocional officer) – Margarida. Nunca ninguém teve o mesmo poder de dizer não ao gestor que a sua mulher. Belmiro reconheceria um dia numa entrevista à Visão, com humor e embevecimento, esse poder de influência. “[Margarida Azevedo é] a única que lhe diz não?”, perguntou a jornalista Cesaltina Pinto. Belmiro respondeu: “Ela?! É muito pior do que isso. Nem me deixa assinar os cheques da farmácia. ”Em 1971, Belmiro de Azevedo é já pai de três filhos. Nuno, o primeiro, nascera em 1963. Duarte Paulo, o segundo, em 1965. E Cláudia em 1970. Pouco antes de entrar numa fase de aceleração, ao adquirir a Novopan em 1971, e de se ter iniciado na produção das resinas industriais necessárias à produção de aglomerados após um conflito de preços com a poderosa Hoecht, a Sonae consolida-se como uma indústria de futuro na economia nortenha. Tem produto próprio, métodos inovadores, mercados externos e solidez financeira. A empresa entra na turbulência do 25 de Abril numa situação confortável. Isso seria reconhecido quando os trabalhadores fazem “uma greve ao contrário” – em defesa dos seus accionistas e da sua administração. Em 1978, na sequência de uma nacionalização parcial após o 11 de Março de 1975, o Estado tenta mudar a administração. Os trabalhadores paralisam e colocam-se ao lado de Belmiro. Durante quatro meses de instabilidade monta-se uma rede de cooperação entre trabalhadores e gestores que garante a actividade da empresa. Nesse período, todos os salários foram iguais. Belmiro venceria o conflito. E torna-se o senhor Sonae, mesmo quando as acções da empresa ainda estão parqueadas no IPE, uma sociedade de capitais públicos em que ficou a titularidade das empresas nacionalizadas. Três anos depois, quando o Governo da AD descongela os anos da revolução, chegaria o momento de se saber quem mandava e quem detinha, de facto, a Sonae, na época uma apetecível empresa industrial que ocupava 45 mil metros quadrados. Belmiro e a equipa de gestão, em que se incluíam velhos companheiros de rumo como Jaime Teixeira, Romão de Sousa ou Fernando Carvalho? Ou o accionista, o banqueiro Afonso Pinto de Magalhães, que depois do 25 de Abril se exilara no Brasil?Quando regressa a Portugal, em 1982, o banqueiro ensaia uma solução de compromisso. Faz um pacto com Belmiro, que na época considera a hipótese de regressar à universidade – falava-se também numa proposta para gerir um grupo brasileiro: ele ficaria, na condição de ser accionista e gestor. “Quando o senhor Pinto de Magalhães regressou do Brasil (eu tinha ficado aqui como ‘feitor’ a tomar conta da ‘quinta’ deles), eu quis voltar à universidade. Como ainda estavam bastante assustados e eu lhes tinha tratado bem dos negócios, ofereceram-me 20% das acções a um preço simbólico. Eu comprei, com um financiamento do Lloyds Bank, e depois fui comprando mais, com o pêlo do cão, como se costuma dizer”, recordaria o empresário. No ano seguinte, com a abertura do mercado de capitais, a Sonae entra na bolsa e Belmiro aproveita a onda. No final de 1984 era já o principal accionista, o que gerará uma vaga de ressentimento dos herdeiros de Pinto de Magalhães, falecido em 1983. Com as rédeas na mão de Belmiro, a Sonae aceleraria a sua espiral de crescimento. Se os anos de 1960, com a integração de Portugal no espaço da EFTA, tinham sido propícios aos investimentos na indústria exportadora, nos anos de 1980 a liberalização da economia e as perspectivas da integração europeia abriam um novo mundo às empresas nacionais. Belmiro compreendeu-o como poucos. Em 1984 faz uma parceria com os franceses da Promodés para lançar o primeiro hipermercado em Portugal. A inauguração do Continente de Matosinhos foi uma revolução que atraía multidões de curiosos para conhecer uma loja onde se podia comprar tudo. Pelo meio, a Sonae adquiriu a Agloma, estreou o Porto Sheraton e lançou-se em Inglaterra com a Sonae UK para garantir a distribuição dos seus produtos industriais. Estava na hora de criar uma cultura de grupo capaz de encaixar as vagas de crescimento que se antecipavam. Num tom meio apologético, meio influenciado pelo misticismo da auto-ajuda, Belmiro de Azevedo redige os dez princípios da “cultura Sonae” e os dez mandamentos do “homem Sonae”. Aí, aplica os seus próprios ensinamentos de vida e ajusta-os a uma estratégia de gestão de recursos na qual há espaço para o risco e para o fracasso, mas nunca para a indecisão, para o estatuto ou para a indiferença. “As elites verdadeiras não têm privilégios. Privilégio está conotado com favoritismo, nepotismo, favores de heranças, etc. (. . . ) Os verdadeiros líderes são-no naturalmente. Não são impostos, impõem-se”, escreveria. Para depois afirmar, numa frase célebre, que “O ‘homem Sonae’ ou é líder ou candidato a líder. ” Mas não o será a qualquer custo: “Deve ter um código ético e deontológico rigoroso”, e “tem de ser adulto no pensamento, firme, sem ser duro, na decisão, corajoso, sem ser aventureiro, na acção”. Belmiro começava já a ser uma figura de projecção nacional. Não apenas pelas suas realizações empresariais, mas pela determinação e pela capacidade de enfrentar dificuldades. Tornara-se um bulldozer. “Sou heterodoxo e o grupo é motivado nesse sentido. Com ortodoxias não se vai a lado nenhum, apenas se faz mais do mesmo”, dizia. Ele não era assim. “Sempre gostei de fazer coisas diferentes. Portanto, quando uma área está consolidada e o método de trabalho está bem concebido, vou pregar para outra freguesia”, acrescentava anos mais tarde. Nortenho assumido, com costela de Tuías, preferia a realização pessoal do self made man à herança nobiliárquica. Quando, num congresso do PCP, Álvaro Cunhal se pronuncia contra a tríade dos capitalistas exportadores (os Mello, os Espírito Santo e Belmiro), o empresário protesta: “Sem querer estar aqui a insinuar que eu é que sou um gajo porreiro, eles formaram grupos em regime de benesses decorrentes do condicionamento industrial. Ora a posição da Sonae foi toda conquistada no mercado. ”O mercado, por essa época, era generoso. A economia crescia rapidamente na segunda metade dos vertiginosos anos 80. A euforia da Bolsa atraía como nunca mais se viu as poupanças dos portugueses. O “gato por lebre” que o então primeiro-ministro Cavaco Silva sinalizara ainda não estava no horizonte. O Governo, com Miguel Cadilhe nas Finanças, estimulava com mecanismos fiscais as famosas OPV (ofertas públicas de venda). Nesta euforia, Belmiro lança em 1987 não uma, mas sete OPV ao mesmo tempo – as da Agloma, Ibersol, Modelo Continente, Publimeios, Robótica, Selfrio e Viacentro. Miguel Cadilhe suspeita de “falta de transparência” no processo. O próprio Belmiro reconhece que as operações foram lançadas no limiar da legalidade, mas recusa qualquer irregularidade. “É verdade que nós jogámos com a lei”, admitiria Belmiro num depoimento a Magalhães Pinto, autor da sua biografia. Mais tarde os tribunais dariam razão à Sonae. As sete OPV, mesmo tendo implicado mecanismos financeiros que exploravam buracos na lei, não eram ilegais. O processo acabaria arquivado. E a Sonae tinha arrecadado quatro milhões de contos na venda de acções ao mercado. Estava na hora de dar novos saltos. Enquanto a área da distribuição crescia, a Sonae investia no imobiliário, no turismo e na comunicação social. Em 1990, o PÚBLICO nascia. Belmiro tornara-se um personagem incontornável da vida nacional. “A Sonae tem, de vez em quando, de fazer algumas coisas que não têm ligação directa com a rentabilidade. E entendi, há dez anos, que fazia falta um diário de referência, que dignificasse o jornalismo, com meios, qualidade e independência – era um bom contributo para a sociedade portuguesa. O jornal nunca favoreceu a Sonae, nunca interferi na sua linha editorial, sempre me distanciei dele senão estava lixado”, explicaria em 2001 numa entrevista a José Carlos Vasconcelos, em 2001. O primeiro director do jornal, Vicente Jorge Silva, diria que o PÚBLICO era “a peninha” no chapéu de Belmiro. Leu-o diariamente até ao final da sua vida. O que mais o preocupava era a sua falta de rentabilidade – embora por vezes o apresentasse como um projecto de responsabilidade social. Não se conhecem vestígios de que alguma vez interviesse na sua linha editorial. Os anos 90 foram fulgurantes para a economia e para a Sonae. O seu crescimento foi imparável: 200 milhões de contos de volume de negócios em 1991, 357 milhões em 1995, 615 milhões em 1998. Nem tudo correu, no entanto, de modo a justificar esta explosão nos resultados. Nessa década, Belmiro conheceu alguns dos seus principais problemas e teve de se confrontar com vários dissabores. A começar, um conflito com a família Pinto de Magalhães. Ao lançar um aumento de capital de 15 para 40 milhões de contos na Sonae, em 1992, Belmiro ameaçava reduzir a posição da família para níveis próximos dos 10% do capital da empresa – os Pinto de Magalhães não tinham forma de acompanhar o aumento de capital. As reacções não se fizeram esperar. O Tribunal Cível suspende o aumento de capital ao longo de 18 meses. O diferendo instala-se como uma novela na praça pública. “Se hoje a família tem dinheiro, deve-o aos trabalhadores da Sonae”, dizia Belmiro, lamentando “que só tenham sabido delapidá-lo”. Carolina Magalhães, viúva do banqueiro, responderia em declarações ao PÚBLICO: “Não gosto das atitudes dele e estou muito sentida. Acho que a família Pinto de Magalhães não merecia tanto aquilo que ele tem feito e procura fazer. É uma pessoa dura, não tem coração. ”Mas o desgaste com a família Pinto de Magalhães (e com outros accionistas minoritários que se queixavam da forma autocrática como geria os negócios) seria apenas uma ponta do icebergue dos problemas que viriam a seguir. Belmiro tenta controlar o processo de privatização do BPA e acaba por perder para o BCP de Jardim Gonçalves. Tenta o controlo do Totta e volta a perder, desta vez para José Roquette. O desfecho destes negócios intermediados pelo Estado leva-o a aumentar a sua suspeição sobre a isenção da política. Perder, para ele, não era uma tragédia – até porque no caso do BCP retirou-se com uma mais-valia estimada em três milhões de contos. “Isto tem muito que ver com a minha formação desportiva: ganhar, perder, receber e dar caneladas”, dizia. Mas a cada passo queixava-se da sua condição de outsider nortenho, distante do poder. “O Governo tem um discurso afirmando que não é de Lisboa, mas na prática verificamos que as decisões finais têm favorecido os grupos de Lisboa. Quanto a mim, em muitos casos, injustamente”, dizia em 1995. O conflito com os políticos tornou-se então frequente. Belmiro mostra nesse atrito constante a sua aura temerária que lhe mereceu um boneco no Contra-Informação – “Belmiro Mete Medo”. “Tenho a cara um bocado vincada, marcada, do Mete-Medo, mas eu não meto medo a ninguém”, ironizaria. Mas, instado a prestar declarações no Parlamento, obrigou os deputados a ouvi-lo às oito da manhã. E ao longo do tempo foi distribuindo farpas. Marques Mendes? “Não dava nem para porteiro da Sonae. ” Ministros da Economia? “O Pina Moura era como Estaline e o Carlos Tavares como o Brejnev e quase tivemos o António Mexia na Economia. Tivemos ainda o Fernando Castro e o Jorge Armindo, estilo Tchernenko e Gromiko. ” A ida de Durão Barroso para Bruxelas? “Não há nenhum cargo internacional mais importante para um cidadão português que defender no seu país as suas ideias (…). A minha convicção é de campónio: quem foge ao combate é cobarde. ” Santana Lopes? “É incompetente. ” Cavaco Silva? “É um ditador. Mandou quatro amigos meus, dos melhores ministros, para a rua, assim de mão directa. ” Referia-se a Álvaro Barreto, Teresa Patrício Gouveia, Miguel Cadilhe e Eurico de Melo. Mas a maior animosidade era com Marcelo Rebelo de Sousa. “É um entertainer político que se diverte à custa dos desprazeres que provoca”, dizia. “O Marcelo é pluri-pluri. Tem dez respostas, todas boas, para a mesma pergunta. Não sofre de pensamento único”, ironizava. Marcelo tinha sido o principal instigador, em 1997, de um inquérito parlamentar ao alegado favorecimento de grupos económicos privados pelo Estado e o então líder do PSD avisara Belmiro de que “Portugal não é o faroeste nem é dominado por máfias”. Belmiro responderia com contundência: “Tenho seguramente o direito de exprimir um juízo sobre um líder político que, desafiando todas as probabilidades, acalenta o desejo de chegar a primeiro-ministro: no meu critério, não serve para tal lugar, como não serve para qualquer outro que recomende um mínimo de carácter e de sentido público. Di-lo-ei sempre que for necessário lembrá-lo. (…) Aqui tem, professor Marcelo Rebelo de Sousa. Por mim, escusamos de ficar por aqui: não me calo nem que Cristo desça à terra. E desengane-se: dito por mim, isto quer dizer realmente isso mesmo. ”Nesta animosidade contra a classe política, só Mário Soares parecia escapar. “A única pessoa que eventualmente pus no poder foi o Mário Soares. Foi a única vez em que declarei por antecipação em quem votava. Nunca mais fiz isso”, dizia. Mas não se vislumbra que Belmiro o tivesse feito por convicções ideológicas. Ao menos, Soares partilhava da sua rebeldia. De resto, Belmiro confessaria que o PSD fora o partido em que mais vezes votara, pelo menos até 1992. Definia-se como “um liberal com preocupações sociais” ou como “um social-democrata moderno” que desprezava a ideia de solidariedade “no sentido de dar” e gostava da ideia de criar emprego no quadro mais favorável do capitalismo para “dignificar a pessoa”. Entre avanços e recuos, a Sonae continua a consolidar os seus focos de negócios com investimentos solenes como o Colombo, em Lisboa, alarga o retalho à moda ou aos electrodomésticos, torna-se o maior fabricante mundial de aglomerados de madeira depois de comprar a alemã Glunz e em 1998 lança a Optimus – os estudos de mercado derrotaram a escolha de Belmiro de Azevedo, que preferia o nome Amigo. Pelo meio, acalentava a ideia de se tornar “maior no Brasil do que em Portugal”. Em 2000 o universo Sonae dividia-se por cinco pólos: indústria, com 39 unidades industriais; turismo, com a Star, a Solplay e já com a Torralta; imobiliário, com os shoppings; telecomunicações com 17% quota de mercado com a Optimus a Novis e a Clix; distribuição: 350 lojas em Portugal e no Brasil, onde era o terceiro maior operador, com vendas acima dos 850 milhões de contos. Tinha já 60 mil trabalhadores. Não era essa escala de sucesso que, porém, o levava a acomodar-se. Por essa altura, quando o país entrava no entorpecimento que o levaria a registar um dos piores crescimentos económicos do mundo, Belmiro lamentava que os portugueses fossem sedentários, viajassem pouco e se fixassem nas actividades tradicionais sem abrir novos horizontes. “As pessoas nascem, fazem xixi e morrem no mesmo lugar. Do ponto de vista da ginástica intelectual é mau”, notava. Ele, entretanto, cumpria na acção o que prometia por palavras. Nem os problemas de saúde que teve (uma úlcera calosa e uma pancreatite “daquelas que nunca se sabe como acaba”) lhe detiveram a marcha – embora nessa época tenha pela primeira vez reflectido sobre o problema da morte. “Tinha a minha vida toda organizada. É preciso estar sempre preparado para qualquer eventualidade, um acidente de viação, um acidente vascular”, diria mais tarde. Nesse momento, deixou cartas à família que permanecem secretas. Belmiro recuperou em força. Na década passada, a Sonae evoluiu, sempre nos eixos da destruição criativa que o gestor lhe impusera desde que lá chegara. Em 2006 Belmiro, com o filho Paulo ao lado, anuncia ao país uma estratégia que ninguém ousara sequer imaginar: uma oferta pública de aquisição sobre a PT. A sorte dessa operação é conhecida. A sorte da PT e do seu principal usufrutuário, o BES, também. Os seus estilhaços judiciais andam ainda no ar a perturbar a vida pública. Como diria Belmiro: “É verdade que às vezes erramos e ‘estampamo-nos’ contra a parede. Mas não há nada que um bocado de tinta e uma ida ao bate-chapas não resolva. É melhor errar do que não decidir. Pelo menos aprende-se. ” No caso da PT, mais evidente do que um eventual erro foi a aprendizagem. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Após a OPA, o fantasma da sucessão foi-se tornando nítido no grupo com o avanço da idade do “engenheiro”. Em 2001, ele avisara que esse não era um problema. “Falam-me muitas vezes do problema da minha sucessão. Não há problema nenhum. As coisas estão de tal modo organizadas, que só pode haver candidatos a mais”, dizia. Em 2007, numa célebre cerimónia de apresentação de contas, deu a notícia: o seu sucessor seria o seu filho Paulo Azevedo. Não houve dramas. Para muitos analistas avisados sobre os dramas com as passagens de testemunho nas empresas de raiz familiar, a transmissão do poder na Sonae foi exemplar. Paulo mudaria o estilo e refinaria o rumo do grupo, mas sem perder o esteio do crescimento. No ano passado, a Sonae facturou 5, 1 mil milhões de euros. Belmiro de Azevedo continuou a estar perto da gestão do filho pelo menos até 2015, quando se retirou em definitivo. Ocupava o seu velho gabinete na Maia, ao lado da fábrica que ainda conserva as máquinas que instalou há mais de meio século. Lia os jornais, analisava relatórios de gestão, continuava a dar trabalho às secretárias, esforçava-se a fundo por seguir. Empenhava-se em acompanhar a Porto Business School, um dos seus projectos mais empenhados. Mas não se ficava por aí. “Tendo saúde, vou-me ocupar sobretudo do sector primário em Portugal, onde há falta de gestão e sobretudo de investimento na floresta, agricultura e na pesca”, dizia. Na prática, continuava imparável entre visitas aos campos de nectarinas no vale da Vilariça ou ao armazém de kiwis no Marco. Fazer era para ele uma forma de viver. E viveu fazendo até aos limites.
REFERÊNCIAS: