Raul Brandão: a outra modernidade que a geração de Orpheu ensombrou
Apreciado no seu tempo, pouco lido nas gerações seguintes, agora a ser recuperado, o autor de Húmus prenunciou o expressionismo e, à sua estranha maneira, foi tão experimental como Álvaro de Campos. (...)

Raul Brandão: a outra modernidade que a geração de Orpheu ensombrou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.12
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Apreciado no seu tempo, pouco lido nas gerações seguintes, agora a ser recuperado, o autor de Húmus prenunciou o expressionismo e, à sua estranha maneira, foi tão experimental como Álvaro de Campos.
TEXTO: Nascido há 150 anos na Foz do Douro, numa família de pescadores, Raul Brandão frequentou o Curso de Letras, mas acabou por enveredar por uma tranquila carreira na burocracia militar, da qual se reformou com o posto de capitão, e que nunca teve dificuldade em compatibilizar com uma presença assídua nos jornais e revistas da época. Escreveu ficção, teatro, livros de viagens, memórias, dialogou com os movimentos literários do seu tempo, conviveu na juventude, em Leça, com o grupo de António Nobre, foi depois íntimo de Teixeira de Pascoaes ou Aquilino Ribeiro, e ainda privou com admiradores bastante mais jovens, como Vitorino Nemésio ou José Rodrigues Miguéis. Casou-se aos trinta anos e adquiriu, logo depois, a sua muito amada Casa do Alto, uma quinta em Nespereira, Guimarães, onde se radicaria definitivamente a partir de 1912, ainda que continuando a passar temporadas regulares em Lisboa. Fez uma viagem a Itália com a mulher, em 1906, com regresso por Paris e Londres, e já para o final da vida, em 1924, passou dois ou três meses nos Açores e na Madeira, visita de que resultaria o livro de viagens As Ilhas Desconhecidas (1926). Morreu relativamente novo, aos 63 anos, de um aneurisma da aorta. Foi desta pacata vida burguesa – um percurso profissional sem sobressaltos, uma reputação literária sólida, um casamento que parece ter sido bastante feliz – que emergiu um dos livros mais radicais e mais ferozes de toda a literatura portuguesa: Húmus, uma obra inclassificável, difícil de comparar com qualquer outra, uma experiência limite, um combate metafísico com o absurdo da existência, uma descida textual a esse abismo informe que a humanidade procura a todo o custo preencher com hábitos, rotinas, ninharias. “Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la”, escreve Raul Brandão em Húmus, que abre com uma frase depois retomada de várias formas ao longo do livro: “Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste. . . ”. Da geração que precedeu a de Orpheu – era 21 anos mais velho do que Fernando Pessoa –, Brandão fez parte desse grupo de autores finisseculares de forte influência simbolista a que pertenceram António Nobre ou Camilo Pessanha, nascidos, como ele, em 1867. E não seria muito difícil arrumá-lo como um autor do período se não se tivesse dado o caso de ter escrito Húmus, que ele próprio considerava a sua obra mais importante, e que reescreveu por duas vezes. Mas Húmus veio desarrumar tudo, sabotar todas as possibilidades de catalogação. “É uma experiência única, uma coisa totalmente experimental, tão experimental como o que estavam a fazer Álvaro de Campos ou Almada Negreiros”, diz o ensaísta Pedro Eiras, cuja tese de doutoramento relaciona Brandão com Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol. “Brandão vira as costas ao Orpheu, Pessoa finge que não o lê, e vice-versa, não há ali comunicação possível”, resume Eiras, observando que, no entanto, Húmus é publicado no mesmo ano em que Almada lança a revista Portugal Futurista”. Um acaso que lhe parece mais significativo do que o muitas vezes lembrado ano comum de nascimento que Brandão partilha com Nobre e Pessanha. Se a história literária não fosse, como a outra, escrita pelos vencedores, talvez o autor de Húmus pudesse hoje ser visto como o pioneiro de uma outra via do modernismo português. Um caminho que o afastou de Orpheu e das vanguardas a cuja eclosão ainda pôde assistir, mas que o aproximou de um expressionismo, com a sua tónica na visão interior do artista, que estava a surgir na Alemanha e nos países nórdicos, e que provavelmente o autor português mal terá conhecido. Mas “se se ler uma página do Húmus ao lado de uma tela de Munch [o pintor expressionista norueguês de O Grito], é absolutamente nítido que uma permite comentar a outra”, argumenta Eiras. O ensaísta Luís Mourão, autor de Um Romance de Impoder. A Paragem da História na Ficção Portuguesa Contemporânea – e especialista na obra daquele que é talvez o romancista com uma mais assumida dívida a Raul Brandão, Vergílio Ferreira –, vai ainda mais longe do que Eiras no modo como distingue Húmus de toda a restante produção do autor. “Acho que há dois Raul Brandão: um é o autor de Húmus, que é uma obra ímpar, o outro escreveu as memórias, os livros de viagens, tudo o resto”. Poderá então considerar-se que, não obstante a sua extensa obra, Brandão partilha paradoxalmente com Nobre e Pessanha a circunstância de ser autor de um livro único? A diferença, diz Mourão, é que o Só e a Clepsidra são, respectivamente, Nobre e Pessanha, ao passo que “Húmus é maior do que Raul Brandão”. É “aquele tipo de obra que constitui um ponto-limite de alguém, um combate com todos os fantasmas, uma coisa que só se faz uma vez na vida e que pode destruir uma pessoa”. E “nada do que vem depois pode ir mais longe, só resta recuar, e Brandão até recua bem”. Tanto Mourão como Eiras assinalam a influência do autor de Os Possessos, mas ambos acham redutor ver em Brandão uma espécie de Dostoievski português. E o primeiro também se revê pouco nos que querem fazer do escritor português um antecessor do nouveau roman. “É uma coisa que se diz para mostrar que Húmus sobrevive muito bem na contemporaneidade, mas que acho que passa ao lado do essencial”. Outra perplexidade nunca resolvida é a de saber se Húmus é um romance. O grande biógrafo de Brandão, Guilherme de Castilho, sugere que a evolução do romance moderno, com Joyce ou Proust, veio permitir, a posteriori, que Húmus pudesse ser visto com naturalidade como um romance, um reconhecimento a que os seus primeiros leitores não tinham acesso. Mesmo assim, Eiras resiste a chamar-lhe romance, e sugere que o que Brandão faz em prosa só estava então a ser feito na poesia, “que começava a prescindir de contar uma história”. E se há algumas breves peripécias em Húmus, “elas só lá estão para serem avariadas”, defende ainda o ensaísta. “Ao fim de duas ou três páginas, suspendem-se no momento em que o leitor esperaria um desenlace”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Brandão aprendeu bastante com Eça de Queirós, mas ao contrário dos Maias, onde no final se trata de saber se Carlos “dorme com a irmã ou não dorme, e sabemos que se dormir é a catástrofe”, em Húmus “não há nada que decida coisíssima nenhuma”, observa Eiras: “Os mortos ressuscitam? Não importa. O inferno é cancelado? Tanto faz. E quem são os vivos e quem são os mortos? E quem é o sujeito? E o tu a quem o narrador se dirige continuamente? Não fazemos a menor ideia”. O que mais interessa o ensaísta é justamente esta “avaria do discurso”, “uma coisa totalmente nova, que ninguém tinha feito desta forma”. “Não creio que Raul Brandão fosse um romancista, como o Aquilino, e acho que até podíamos olhar para o Húmus como um longo poema em prosa”, diz Mourão. Eiras concorda: “Até em termos rítmicos, há ali um trabalho formal que o aproxima da poesia”. E se Mourão evoca o Húmus de Herberto Helder, o livro de 1967 em que este parte dos materiais de Brandão para construir o seu próprio poema, como “prova definitiva de que há dois Raul Brandão”, já que “seria impossível fazer o mesmo com qualquer outra obra do autor”, Eiras acrescenta que Herberto demonstrou também na prática que Húmus era poesia. Teríamos assim um último paradoxo: um autor que mais ou menos escreveu tudo menos poesia – ou que apenas compôs alguns negligenciáveis poemas versificados –, talvez tenha sido afinal, mais do que qualquer outra coisa, um grande poeta.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte mulher espécie casamento
O fim do mundo não veio, mas a carreira de Carlos Roa acabou
Titular da Argentina no Mundial 1998 e cobiçado pelo Manchester United, deixou o futebol para se preparar para o apocalipse (...)

O fim do mundo não veio, mas a carreira de Carlos Roa acabou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Titular da Argentina no Mundial 1998 e cobiçado pelo Manchester United, deixou o futebol para se preparar para o apocalipse
TEXTO: Ele estava no auge da carreira quando decidiu abandonar o futebol. A razão? Preparar-se para o fim do mundo. A religião sempre teve um papel central na vida de Carlos Roa, internacional argentino que, aos 29 anos, recusou propostas milionárias e desapareceu durante alguns meses. O tempo passado em isolamento, nas montanhas, permitiu ao guarda-redes “ficar mais próximo da família”. Quando sentiu falta do futebol, regressou “relaxado e feliz” – mas o tempo dele já tinha passado, e a carreira não voltaria a ser o que era. Carlos Roa não teve um início fácil: estreou-se no campeonato argentino aos 19 anos, pelo Racing Avellaneda, mas numa digressão de Verão a África adoeceu com malária e seria transferido para o Lanús. Aí, viria ser treinado por Héctor Cúper, e isso foi o melhor que lhe aconteceu. O clube lutou pelo título, Roa era titular e, quando Cúper se transferiu para o futebol espanhol, levou o guarda-redes consigo para reforçar o Maiorca. A aventura europeia começou em 1997-98 e, nessa primeira época, o emblema das Baleares chegou à final da Taça do Rei: perante o Barcelona, o Maiorca marcou primeiro, mas permitiu a igualdade e a partida só foi decidida nos penáltis. Carlos Roa travou os remates de Rivaldo, Celades e Luís Figo, ainda marcou com sucesso uma das grandes penalidades, só que não conseguiu evitar que o troféu fosse para a Catalunha (mas teve depois a desforra quando conquistou a Supertaça espanhola). Veio o Verão e Carlos Roa juntou-se à selecção argentina para o Mundial 1998. Titular indiscutível na equipa de Daniel Passarella, não sofreu qualquer golo na fase de grupos e voltou a ser decisivo nos penáltis, perante a Inglaterra, nos oitavos-de-final. Em mais um capítulo desta rivalidade, o prolongamento não desfez o 2-2 e nas grandes penalidades Carlos Roa defendeu os remates de Paul Ince e David Batty para garantir o apuramento. Nos quartos-de-final, a albiceleste seria batida pela Holanda. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Roa era um herói nacional e na época 1998-99 foi eleito o melhor guarda-redes do campeonato espanhol. Havia sobre a mesa uma proposta milionária do Manchester United, mas o guarda-redes tinha tomado a decisão de abandonar o futebol para dedicar-se a “transmitir a palavra de Deus”, como pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia. À semelhança de outros crentes, acreditava que a mudança de milénio traria o fim do mundo. A camisola 13 do Maiorca (“O 1 é Deus, a criação, e o 3 porque Cristo ressuscitou ao terceiro dia”) deixou de ter dono, Roa libertou-se de todos os bens e retirou-se para lugar incerto. Passou uns meses numa localidade isolada nas montanhas, mas sentiu a falta do futebol e voltou. Só que já era tarde. Perdeu o lugar no Maiorca, depois rumou ao Albacete na II Divisão e, em 2004, foi forçado a parar de jogar quando lhe detectaram cancro nos testículos. “A mim, que sou vegetariano, não bebo, não fumo, não tomo nada”, disse na altura ao El País. Conhecido como “alface”, devido à sua dieta estritamente vegana, Carlos Roa despediu-se dos holofotes. Agora com 48 anos, é treinador de guarda-redes no Chivas de Guadalajara. E já não pensa no fim do mundo. * Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos. Ouça também o podcast
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave igualdade vegetariano
Fermentar alimentos “é um acto de resistência”
Mudar o mundo, uma fermentação de cada vez — é isto que propõe Sandor Katz no livro Os Segredos da Fermentação, que acaba de ser lançado em Portugal. É uma bíblia do tema, com muitas receitas de fermentados de todo o mundo. E é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a vida e a política. (...)

Fermentar alimentos “é um acto de resistência”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mudar o mundo, uma fermentação de cada vez — é isto que propõe Sandor Katz no livro Os Segredos da Fermentação, que acaba de ser lançado em Portugal. É uma bíblia do tema, com muitas receitas de fermentados de todo o mundo. E é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a vida e a política.
TEXTO: À primeira vista, Os Segredos da Fermentação parece ser um livro de receitas que promete ensinar-nos a fazer uma enorme quantidade de coisas que, apesar de muito diferentes umas das outras, têm em comum o facto de serem fermentadas — do pão da massa-mãe, a chutneys e conservas, vinho e cerveja, picles e kimchi, iogurte e queijo, miso e tempeh. Algumas destas coisas fazem parte das nossas vidas desde sempre — o que é que pode haver de mais básico para a nossa alimentação do que o pão, o queijo ou o vinho? —, outras tornaram-se moda no Ocidente nos últimos anos, como o kimchi, de origem coreana, ou o tempeh. Alguma coisa aconteceu que levou a uma redescoberta deste tipo de processos, que implicam uma outra relação com os alimentos. O norte-americano Sandor Ellix Katz, autor do livro, há muito que mergulhara neste universo e percebera a sua riqueza. Agora que o assunto começa a interessar a muito mais gente, ele leva anos de avanço — daí que Os Segredos da Fermentação, que acabam de ser editados em português pela Lua de Papel, se tenham transformado numa obra de referência (lançado pela primeira vez há 15 anos, tem agora uma nova versão muito mais completa) — não só pelo enorme trabalho de recolha de formas de fermentação de alimentos por todo o mundo, mas também porque, curiosamente, é muito mais do que um livro de receitas: é uma reflexão sobre o que representa, afinal, a fermentação nas nossas vidas. Ele próprio se confessa surpreendido com a procura que o seu trabalho tem tido. “Será possível que este interesse que muitos amigos consideraram arcaico, esquisito ou até nojento quando começou a desenvolver-se, se tenha tornado interessante para tanta gente?”, interroga-se no início do livro. Sandor Katz foi diagnosticado com VIH e em 1999-2000 começou a tomar medicamentos antirretrovirais, facto que é determinante para esta história. Não é por acaso que o livro começa com uma dedicatória a Jon Greenberg, “querido camarada da ACT UP [movimento activista que alerta para o fenómeno da sida e do VIH e pressiona os Governos para que apostem na investigação e na procura de curas]” que, escreve Sandor, foi quem o “apresentou pela primeira vez à ideia de coexistirmos de forma pacífica com os micróbios em vez de lhes declararmos guerra”. Daí que a ideia da vida e da morte e da relação entre as duas percorra o livro. Numa entrevista por email a Sandor Katz, perguntamos se também o vê assim e como é que chega a temas tão profundos, partindo de algo aparentemente simples. “A fermentação é um processo profundo”, responde-nos o autor. “Ela consome plantas mortas e matéria animal e recicla os nutrientes de formas que permitem a existência de mais animais e plantas. Gosto de ligar os lados mais práticos da fermentação às suas implicações mais vastas. ”Na altura em que soube que tinha VIH, Sandor vivia numa comunidade onde se dedicava à agricultura, à jardinagem, à cozinha e, conta no livro, até construiu uma casa “por menos de 10. 000 dólares, usando sobretudo materiais recuperados ou colhidos localmente”. Foi aí que começou a fazer o seu próprio queijo, com leite que ia buscar às cabras, e o seu pão, com massa-mãe. Gradualmente, a fermentação foi-se tornando mais importante na sua vida, até se transformar numa saudável obsessão, que o levou a ser convidado, em 1998, para dar um primeiro workshop sobre como fazer chucrute. A certa altura, escreve, estava transformado num “professor e conferencista internacional”, falando sobre fermentação numa altura em que esta se começa a transformar num tema em voga — “citado como última tendência alimentar, como se o pão, o queijo, a cerveja, o vinho, o chocolate, o café, o iogurte, o salame, o vinagre, as azeitonas, o chucrute e o kimchi não existissem já”. O que é que explica que nos tenhamos afastado de algo que durante toda a história da humanidade foi fundamental na alimentação?, perguntamos-lhe. “As pessoas só começaram a recear a fermentação no século XX, quando os primeiros triunfos da microbiologia, identificando patogénicos associados a doenças específicas, as levaram a associar bactérias com doenças”, responde ao P2 por email. “Agora, a ciência reconhece que vivemos num mundo de bactérias e a nossa maior protecção perante o reduzido leque de bactérias que nos podem deixar doentes são as comunidades saudáveis de bactérias que existem em nós e à nossa volta. ”“Infelizmente”, explica outra activista da área da alimentação, Sally Fallon, na introdução do livro, “os alimentos fermentados desapareceram praticamente da dieta ocidental, o que constitui uma grande perda para a nossa saúde e a nossa economia”. É aqui que o tema, que já tinha um lado filosófico, se torna também político. Perguntamos a Sandor se concorda que o livro tem uma mensagem política ou, colocado de outra forma, se há algo de político no acto de fermentar. “Sim. Não apenas a fermentação, mas todas as formas de produção de alimentos tornaram-se políticas no mundo em que vivemos, em que a comida é feita em massa a partir de sementes patenteadas em quintas-fábricas, para depois ser ultraprocessada e ultra-empacotada. ”Defende, portanto, que “cultivarmos os nossos alimentos e usarmos métodos tradicionais para os transformar e preservar tornaram-se actos de resistência”. Além disso, acrescenta, “a fermentação é uma metáfora poderosa para a mudança social — as ideias estão sempre a fermentar e, quando as condições estão reunidas, essas ideias que fermentaram lentamente podem espalhar-se e impor-se”. Quem quiser lançar-se na arte da fermentação tem neste livro toda a informação necessária, explicada da forma mais prática possível. Um exemplo, na secção dedicada ao iogurte: “É preciso uma cultura-mãe para fazer iogurte. Pode comprar culturas liofilizadas, comprar qualquer iogurte comercial que contenha culturas vivas ou procurar uma cultura tradicional. Se usar um iogurte comercial como cultura-mãe, assegure-se que diz ‘contém culturas vivas’ no rótulo para se assegurar que não foi pasteurizado depois da fermentação, matando as bactérias. ”Relativamente às culturas tradicionais de iogurte, Sandor apresenta uma lista de fontes no final do livro e conta até que há uma loja em Nova Iorque que “faz um iogurte delicioso usando a mesma cultura-mãe que os fundadores da loja trouxeram da Europa do Leste há mais de 100 anos”. No capítulo dedicado aos vinhos, começa com hidromel ao estilo etíope, passa por vinhos de fruta, de flores, champanhe de gengibre ou sopa de borras de vinho. Quem quiser arriscar na área das farinhas pode experimentar umas “panquecas de massa velha da fronteira do Alasca” ou o injera, o pão esponjoso etíope (bom para acompanhar o guisado de batata- doce e amendoim, cuja receita o autor também inclui no livro). Apesar do seu entusiasmo pelo tema, Sandor aconselha moderação quando lhe perguntamos se se pode comer alimentos fermentados em grandes quantidades. “O grande valor na nutrição é a diversidade. Não é por uma coisa ser boa que só se deve comer isso. Comam vegetais e fruta frescos. E comam diferentes tipos de fermentados com moderação. ”Uma das coisas que o têm fascinado nesta viagem de descoberta é a enorme diversidade de alimentos fermentados que existe por todo o mundo. “A transformação microbiana da nossa comida é inevitável, e pessoas inteligentes em todo o mundo desenvolveram métodos de guiar essa transformação para criar alimentos mais deliciosos, mais digeríveis, mais estáveis, em vez de os deixar decompor. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para quem possa ter dúvidas sobre os sabores que vai encontrar, deixa, nas suas respostas, um conselho: “As coisas mais deliciosas do mundo são fermentadas: chocolate, café, queijo, carnes curadas, azeitonas, picles, condimentos… Se um fermentado particular tiver um sabor ou textura que não sejam familiares, tente misturá-lo com algo neutro, que dilua um pouco o sabor. A maior parte dos fermentados pode ser forte ou mais suave. Talvez seja melhor começar por uma versão suave. ”Depois… é começar a revolução. No final do livro, Sandor fala da “reencarnação cultural” e cita Jacob Lippman, pioneiro da microbiologia, que descreve os microorganismos como “o elo de ligação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos” e explica que, “sem eles, os cadáveres acumular-se-iam e o mundo dos vivos seria substituído pelo reino dos mortos”. Por isso, no final, Sandor fala da sua própria morte e pede: “Coloquem-me apenas numa cova na terra, sem caixão, por favor, e deixem-me decompor depressa. ”E conclui: “O poder afirmador destes alimentos básicos encontra-se em profundo contraste com os alimentos sem vida e industrialmente processados que enchem as prateleiras dos supermercados. Inspire-se na acção de bactérias e leveduras e faça da sua própria vida um processo transformador. ” Porque, quer queiramos quer não, we are living in a bacterial world.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra cultura comunidade social alimentos animal
Pôs a raiva numa pintura e agora mandou-a fora
João Viola e Dina Duarte dedicaram-se a ajudar os vizinhos depois dos incêndios. Fizeram reuniões em casa, organizaram voluntários, procuraram ajuda junto de empresários e vão inaugurar um memorial em Nodeirinho. Fizeram disso a sua vida no último ano. O PÚBLICO esteve com eles nos últimos meses e conta-lhe como esta comunidade recupera o dia-a-dia. (...)

Pôs a raiva numa pintura e agora mandou-a fora
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.7
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: João Viola e Dina Duarte dedicaram-se a ajudar os vizinhos depois dos incêndios. Fizeram reuniões em casa, organizaram voluntários, procuraram ajuda junto de empresários e vão inaugurar um memorial em Nodeirinho. Fizeram disso a sua vida no último ano. O PÚBLICO esteve com eles nos últimos meses e conta-lhe como esta comunidade recupera o dia-a-dia.
TEXTO: A luz do fim da tarde torna tudo mais negro, mesmo que os fetos e os rebentos de eucaliptos tenham despontado ainda no Outono. Finalmente, já a Primavera cheirava, começaram a aparecer os primeiros melros na aldeia do Nodeirinho, em Pedrógão Grande. “Achávamos que tinham morrido os grilos todos. ” Mas não. Chegaram primeiro os corvos, que “dão um certo sinal”, depois uma águia, depois um melro, depois um grilo e outro, e outro. O som dos animais que o acompanhava e lhe dava ânimo e alento foi regressando aos poucos. Sentado na cadeira de madeira, que pediu a um amigo para esculpir a partir de uma árvore queimada, João Viola olha em volta – o que se ouve é um “silêncio ensurdecedor”, apenas entrecortado por um ou outro chilrear tímido. Está cansado. De manhã tinha pegado no seu bombo, percorrido uns quilómetros até chegar a um monte na serra da Lousã, ali à beira da vila vizinha de Castanheira de Pêra, para com o som seco daquele instrumento chamar as forças vivas da terra, em que acredita. O fogo matou a fauna agarrada à flora, perdeu-se biodiversidade; sobreviveram os resistentes e as aves migratórias que agora, neste início de Primavera, começam a espreitar. Muitas não ficam. A comida ainda lhes deve saber a cinza, e ainda não há coelhos nem cobras. Viola não desiste. Vai espalhando no carvalho centenário que lhe sobreviveu à porta, bem como na figueira e nas oliveiras que lhe restam, taças com cereais para chamar animais. No incêndio, de que Viola escapou na N236-1, “sobreviveu o ganso”. Qual mascote da resistência desta casa que, de janelas abertas naquele dia, viu o fogo poupá-la graças à teimosia do vento que levou as chamas para alguns metros mais à frente. No meio da tragédia, que chegou com nome de downburst, João e Dina tiveram “sorte”. Foram poupados nos seus bens. Por isso, pegaram nas forças que tinham para ajudar outros, a quem as forças faltaram. “Decidimos que devíamos ajudar todos aqueles que perderam as suas coisas, devíamos lutar por isso. Era a nossa missão”, conta João. Fizeram parte da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG), que abandonaram no início do ano, e agora ajudam amigos e vizinhos por conta própria. “Estas árvores chegaram esta semana”, contava João em Março, quando preparava uma plantação com voluntários. Tem sido assim a vida por aquelas aldeias. De vez em quando chega um autocarro de voluntários de empresas que fazem acções de solidariedade. Mas falta muito. Falta tanto. Faltam muros por pintar, árvores por cortar, eucaliptos para arrancar pela raiz, árvores para plantar e crescer, casas por reconstruir – casas de segunda habitação e casebres que albergavam a lenha e os animais a que todos chamam “barracões”. Passa mais um mês. 17 de Maio de 2018. A paciência existe, mas fraqueja. A porta desta casa onde as flores, o incenso e as pinturas são reis está aberta, sem sequer precisar da chave na porta. À hora marcada entram a Fernanda, a Gina, o Paulo, a dona Cassilda, a Adelaide… São 18 ao todo em volta de uma mesa, onde os profiteroles contrastam com as palavras de desamparo. “Não vamos já pensar numa catástrofe”, diz Viola aos seus vizinhos do Nodeirinho, que lançam dúvidas para o debate. Falta ainda cortar as árvores em torno da aldeia. A lei fala em 50 metros de limpeza, mas querem 100, não vá o diabo voltar a tecê-las. Mas como? Ainda há donos por identificar e decisões por tomar. A Associação Raiz Permanente oferece braços aos fins-de-semana, porque são todos voluntários. Dois fins-de-semana depois lá estariam, oferecendo a força braçal, a tratar de um terreno para o memorial que será inaugurado neste domingo, 17 de Junho, em homenagem às vítimas da aldeia. No meio das dúvidas naquela reunião de habitantes do Nodeirinho na casa de João e Dina, há quem diga que vai cortar as oliveiras, se a lei assim o obriga. “Não!”, gritam de supetão. Nada disso. A legislação não manda cortar árvores de fruto. A campanha agressiva que foi lançada pelo Governo no início deste ano foi fazendo caminho, mas também por aqui foi sendo mal interpretada. Os problemas repetem-se. “Eu tinha um barracão que ardeu [e para o reconstruírem pediam] que o meu marido se inscrevesse na Segurança Social – um homem com 88 anos ia colectar-se?”, questiona, encolhendo os ombros uma das habitantes da aldeia. Ao lado tem um casal que, já na reforma, tinha a sua casinha por ali, mas a residência oficial era em Grândola e continuam sem ter telhado naquela aldeia. Questionam o porquê de não haver ajuda para segundas habitações. Não há. E não se prevê que haja. O assunto tem sido recorrente em conversas com o município e o presidente da câmara não tem respostas. “Esperamos que a Assembleia da República se pronuncie para ajudar a reconstrução das segundas habitações”, respondeu Valdemar Alves a um deputado municipal da oposição que o questionou na assembleia municipal, em Fevereiro, sobre o dinheiro que a câmara recebeu. A resposta, além do esperar pelo Parlamento, foi um talvez. Ou um deixar “escoar tudo aquilo que possa vir do Governo e de outras entidades”, porque, depois do “dar, dar, dar” do início, deixaram de chegar tantos donativos à câmara. Nessa altura, a câmara tinha 289 mil euros numa conta. “Este dinheiro está aqui. O executivo [da câmara] ainda não decidiu. Temos de ver em termos de lei, do regulamento do Revita, o que vamos fazer. Gostava muito que este dinheiro fosse para ajudar os barracões… mas todos”, defendeu o presidente da câmara. A verdade é que o tempo foi passando e há ainda muitas respostas por dar. Mais tarde, em Maio, soube-se que um dos bombeiros de Castanheira de Pêra que sobreviveram ao acidente na N-236-1, Rui Rosinha, recebia uma pensão de 267 euros. A notícia chega àquela casa para onde convergem muitos dos que têm perguntas ainda sem respostas. O telefone toca. Dina está a tentar arranjar forma de lhe construírem uma casa. Já tem quem a faça, mas não consegue desbloquear a cedência do terreno. Pouco depois sabe da situação de um ferido grave de Pedrógão e promete falar com um empresário para ver se consegue arranjar forma de se construir uma casa adaptada à nova situação de quem fica limitado na mobilidade e precisa de deslocações constantes para tratamentos. Já falou com o seu contacto no Ministério do Trabalho e Segurança Social, que procura responder caso a caso aos problemas fora da norma que vai recebendo. Os feridos graves são aqueles com quem Dina se preocupa mais agora, porque estavam ausentes da terra quando Pedrógão Grande estava debaixo dos holofotes e por isso, acredita, não receberam tanto apoio quanto deveriam. “São os que sofreram mais. Sofreram na pele uma dor… e sofreram mais pela ausência, não estavam cá”, lamenta. Aos poucos esta comunidade vai renascendo, não sem problemas, dificuldades, queixas, cobiças ou injustiças. Há conversas de quem se queixe de ter casas construídas à pressa em comparação com os “palácios” que foram edificados pela Gulbenkian, que, quase pelo mesmo preço por metro quadrado, fez casas adaptadas aos moradores, diferentes das que ficaram queimadas. Mas naquela noite de Primavera, já com as estações do ano volvidas depois da tragédia, as maiores dúvidas estavam viradas para o futuro. O projecto Aldeias Seguras, anunciado pelo Governo, começa a dar os primeiros passos, mas ninguém sabe muito bem como vai ser por ali. “O problema é que estamos em Maio. O que fazer?”, questiona Adelaide, uma das habitantes da aldeia que dá aulas de formação para estrangeiros na AVIPG, uma das actividades que a associação desenvolveu ao longo do ano, assim como formações em agricultura biológica. “Agora vimos um incêndio e se calhar não vamos reagir como reagíamos antigamente. Antes, ardia ali na ponta do cabeço e vinham os bombeiros ou esperávamos que viessem. Agora, estamos traumatizados”, diz João Viola. Os vizinhos concordam. Querem saber se, afinal, há novidades do programa lançado pelo Governo, inspirado num que foi desenhado pela AVIPG. “Temos de ter um sítio seguro e temos de ter tempo de salvar os nossos animais”, lança um dos habitantes. A interrupção soa de chofre: “Salvar as pessoas já é bom. ” Naquela terra, salvarem-se as pessoas tinha sido muito bom. E é isso que lhes continua no pensamento – o receio de um dia se voltarem a deparar com o mesmo cenário. Durante o último ano, João saiu de casa todos os dias e via aquele manto negro. Chegava a Pedrógão Grande e tinha de tratar do verde do jardim municipal de que cuida. O saltitar entre o desalento e a esperança pelas cores dava-lhe voltas à cabeça. “Chegou uma altura em que eu não conseguia ver o verde. Aquilo que era vida estava a perturbar-me um bocado”, conta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. João, que perdeu amigos e vizinhos, mas escapou fisicamente ileso, assume que tem tido dificuldades em lidar com a situação. Cultor de várias artes, homem de vários talentos, refugia-se nas pinturas que quer fazer de todas as pessoas da aldeia, nas sessões de xamanismo ou nos tratamentos com taças tibetanas, mas os sentimentos vão por lá ficando. Foi ele quem pintou a placa ardida com a indicação do nome da aldeia e quem espalhou olhos “vigilantes” pintados um pouco por toda a parte. Mas isso não foi suficiente para exprimir a revolta que tinha dentro de si. “A dada altura a doutora Ana disse-me: ‘Você é artista, ponha a sua raiva numa pintura. ’ E eu pintei a raiva. ” A pintura em tons de laranja, verde, preto foi feita olhando-se ao espelho: “A minha feição de raiva é o que lá está. ” Era o que lá estava, na verdade, quando Viola falou em Março. “Um dia a Dina disse-me: ‘Tira-me isso daqui que me está a deprimir. ’” E a raiva do João acabou. Foi deitada fora, tapada, mudada, nas camadas de tinta verde que foi pintando por cima, o mesmo que espera ver acontecer agora àquela pequena aldeia de Nodeirinho, que perdeu 11 dos seus. Este domingo terá um memorial erguido à beira da fonte de água onde se salvaram quase 20 pessoas naquela noite. Na base de duas pedras altas que simbolizam um Deus protector e os protegidos estará uma frase do livro do Apocalipse, que andou na cabeça de João no último ano. “Eis que faço novas todas as coisas. ” Desde então, as gentes de Pedrógão têm feito todos os dias novas todas as coisas.
REFERÊNCIAS:
“É como se fosse uma cicatriz para o resto da vida”
Dois técnicos de emergência hospitalar, uma médica, uma psicóloga, um enfermeiro. Estavam ou foram chamados ao serviço pelo INEM para acorrerem a Pedrógão Grande no dia 17 de Junho. Um ano depois contam ao PÚBLICO o que viveram, o que sentiram e o que fizeram para ajudar quem precisava. (...)

“É como se fosse uma cicatriz para o resto da vida”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dois técnicos de emergência hospitalar, uma médica, uma psicóloga, um enfermeiro. Estavam ou foram chamados ao serviço pelo INEM para acorrerem a Pedrógão Grande no dia 17 de Junho. Um ano depois contam ao PÚBLICO o que viveram, o que sentiram e o que fizeram para ajudar quem precisava.
TEXTO: Saíram de Coimbra com a missão de ajudar, mas o fogo foi inimigo. Travou-lhes o caminho, obrigou-os a esperar, a procurar alternativas. Enfrentaram o medo, a frustração, a impotência de querer e não conseguir. Pedrógão Grande, 17 de Junho de 2017: 66 mortos, 253 feridos, 863 intervenções psicológicas, cerca de 500 casas e 50 empresas destruídas. Carlos Diogo, Sara Rosado, Liliana Temudo, Nuno Marques e Paula Neto vestem azul e branco, as cores do INEM. Pedrógão faz parte deles, é mais uma aprendizagem de quem lida com a dor dos outros todos os dias. Tornou-os mais resilientes. “O ideal passou a ser o possível e o que existia foi o que foi feito”, diz Sara Rosado, psicóloga do INEM. “É isso que nos dá tranquilidade, saber que, no meio daquela destruição que não conseguíamos evitar, fizemos o possível. ”Carlos é técnico de emergência pré-hospitalar (TEPH), com funções de coordenação. Não estava a trabalhar, foi chamado a meio da tarde para um incêndio de grandes proporções na zona de Pedrógão Grande. Ia para o posto de comando montado em Escalos Fundeiros. Ligou ao colega Pedro Santos e foram os primeiros a ir para o local. Deixaram o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) de Coimbra com a indicação de uma bombeira ferida. Pelo caminho ouviram a comunicação de mais três feridos, vítimas de um acidente de carro apanhadas pelo fogo. O trajecto que em marcha de emergência leva 25 minutos precisou de 50 ou mais. “Quando chegámos ao primeiro cruzamento de Castanheira de Pêra, na Nacional 236-1, já não nos deixaram cortar. ” Seguiram pelo IC8, mas ao nó da Graça, antes de Pedrógão, já a polícia cortara a estrada. Eles podiam passar, por serem carro de emergência. “As chamas estavam muito altas, decidimos sair e voltamos em direcção a Castanheira por uma estrada paralela à 236. ”Carlos não tem a certeza, mas pensa que algumas das pessoas que morreram na estrada poderão ser as mesmas que os ajudaram a encontrar o caminho. Lembra-se da cinza fina a cair, das golpadas de calor. “Tenho a perfeita noção que escapámos por um triz”, que atrás deles tudo se fechou numa cortina de fogo. Escalos Fundeiros está cercada e Carlos e Pedro seguem para a zona industrial de Pedrógão, para onde foi o posto de comando. Não se recorda de mais horas, a não ser que chegou perto das 19h00. Pedro fica no posto de comando, Carlos começa a articular com todas as entidades que estão no terreno. Pede reforços: “Ambulâncias, médicos e montar um posto médico que de certeza ia ser preciso. ” O posto, que ficou no Centro de Saúde de Pedrógão, recebeu muitos feridos durante a noite e madrugada. Da tarde se fez noite, da noite se fez madrugada, da madrugada se fez dia. Não há uma linha do tempo. Lembra-se do menino de quatro anos, queimado, que chega transportado pelo carro conduzido pelo comandante distrital da Protecção Civil da zona Centro. “A criança vem para os meus braços, basicamente… Tínhamos lá a equipa do helicóptero que tinha sido chamada para os feridos do acidente. Não conseguiu ir para Figueiró dos Vinhos, contornou o incêndio e aterrou junto a nós. ”Estabilizaram e entubaram o menino, que foi transportado para o hospital. Está vivo. Foi a primeira vez que Carlos prestou assistência a uma criança queimada. É esta a primeira imagem que tem quando recorda Pedrógão. A voz treme. Perguntou por ele nos dias seguintes, como perguntou pelo bombeiro Rui Rosinha, de quem é amigo. Sabia que era grave. Chegam informações de “aldeias cercadas, feridos, casas que arderam com gente lá dentro”. O ambiente pesa no posto de comando perante um “sentimento de impotência de não chegarmos a essas pessoas”. Os meios estão a caminho, mas o fogo complica a chegada. Dizem que vão demorar mais um pouco “porque a estrada está cortada e vão ter de dar a volta por outro lado”. “Vamos com uma missão, só mesmo se não der é que não avançamos mais. É um sentimento de derrota. ” Quem vem de Castelo Branco e Abrantes, chega primeiro. Os outros chegarão à medida que o fogo deixar. Liliana Temudo esteve lá sem estar. No CODU sente a mesma angústia. “É um dia impossível de esquecer. Sempre que falo no assunto, o meu coração bate mais rápido… É como se fosse uma cicatriz para o resto da vida. ” Destaca a solidariedade entre colegas num turno “em que não tínhamos tempo para chorar, desistir, para pensar”. “Queríamos fazer tudo para a ajuda chegar, mas não dependia de nós. Houve falhas de comunicação, dificuldade nos acessos para chegar às vítimas… Foi uma luta desigual. ”Os colegas estavam a receber as chamadas, Liliana fazia o accionamento de meios. Os encaminhamentos para o CODU, via 112 (central da PSP), eram muitos, nem todos a falar de feridos. Do lado de lá da linha havia gritos, choro, relatos de um vento que as fazia levantar os pés do chão. Alguém que dizia que tinha a casa rodeada de fogo e não conseguia sair ou que pedia ajuda porque tinha o pé a arder e não sabia o que fazer. Do CODU explicavam que estavam a tentar enviar ajuda, ao mesmo tempo que ensinavam o que podiam fazer. Toalhas molhadas junto à porta para travar o fumo, arrefecer a queimadura com água do autoclismo, a única que sobrara. “Era o desespero de não saberem o que fazer, de se sentirem abandonadas. E havia o desespero que quem tinha a noção do todo, que as pessoas estavam ali e não havia como fazer chegar os meios”, diz Sara Rosado. “Sempre que fazíamos um accionamento para o local, lembrávamos: condições de segurança primeiro. Tivemos situações em que os meios nos diziam: ‘Estamos a ouvir pessoas a pedir ajuda, está aqui o fogo, mas vamos tentar passar’”. Mas não era possível. A psicóloga Sara Rosado deixou Coimbra, ainda era dia, na unidade móvel de intervenção psicológica de emergência em direcção a Castanheira de Pêra. O IC8 está cortado e o caminho para Pedrógão também já não é viável. Só depois do fogo passar a estrada consegue seguir para Pedrógão. Recorda-se da terra preta, do metal escorrido de uma jante derretida de um carro. Foi com a missão de “criar um espaço que servisse de abrigo, onde as pessoas sentissem segurança e pudessem satisfazer as necessidades básicas como ter informações dos familiares e em que ponto estava o fogo”, um espaço “onde pudessem ventilar as suas emoções”. Ouviu relatos de quem perdeu família ao seu lado, a casa, os animais, que não sabia o que ia encontrar na manhã seguinte, quando fosse possível regressar. E a manhã seguinte foi mais negra que a noite e o regresso às aldeias tão difícil como a saída. Foi preciso reforçar as equipas com psicólogos da Cruz Vermelha, PSP, Polícia Marítima, Exército, Segurança Social e de algumas autarquias. Era preciso trabalhar a integração da perda, ajudar a exteriorizar a dor. Sara foca-se na reconstrução, na resistência de uma comunidade que foi destruída. Recorda um movimento de superação que começou durante aqueles dias, de quem era vítima mas estava a ajudar outros que precisavam. Lembra-se de uma mulher que levou pães e três litros de leite. “Não tinha mais nada em casa, mas trouxe isto para vocês. . . ”, disse-lhes. Também Paula Neto diz que quem lá esteve desde o primeiro momento sentiu mais o espírito de solidariedade do que a crítica. A médica e o enfermeiro Nuno Marques estavam na viatura médica de emergência (VMER). Foram activados como meio de excepção, reforço suplementar accionado em ocorrências de grande escala. As gentes da terra agradeceram-lhes por estarem ali, preocupados com a noite e madrugada que também eles tinham tido. Contaram-lhes que todos os anos há fogo na zona. Mas nunca um como aquele, que varreu tudo e entrou dentro de casas. Falam de um barulho como se a terra se estivesse a abrir. Estavam em Castanheira de Pêra. A partir do momento em que lá chegaram, conseguiram assistir a todas as ocorrências para que foram chamados. Duas dezenas ou mais, fora o apoio no centro de saúde. “Era um pouco de tudo: queimados, trauma, descompensações agudas por causa do fumo, cansaço, stress”, conta Paula. Difícil foi lá chegar. Muitos ajustes no caminho, visibilidade quase nula. Subiram e desceram a serra da Lousã. “Sentimo-nos angustiados por não chegar lá. Não dependia de nós”, refere Nuno, que ia a conduzir. Havia muitos carros na serra e foram surpreendidos por um quase em contramão. Algures pelo tempo cruzaram-se com outra equipa de Coimbra. Havia vítimas a serem transportadas. Tiveram medo. “Estávamos sempre a ver onde estava a linha de fogo. Só a víamos quase em cima. À saída de uma curva, demos com o fogo e tivemos de fazer inversão de marcha. Onde é que ele está? Não tínhamos controlo da situação”, conta Nuno. As placas estavam todas queimadas, mas o que marca é o escuro e o silêncio à medida que passam pelas aldeias. “Lembro-me de só ver o branco de uma igreja e o fogo. Não se ouvia nada, nenhum cão a ladrar, um galo a cantar, um pássaro. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Viram a morte. Passaram por ela “a caminho de outra situação em que se espera fazer alguma coisa”. “Estamos formatados para socorrer as pessoas. Não ficamos agarrados ao que vamos vendo, mas ao que podemos fazer”, afirma Paula. O dia a seguir amanhece negro e tarde. Todos eles regressam a casa na madrugada de dia 19. Receberam apoio, encontraram conforto na família e nos amigos. Liliana diz que ainda está a fazer a sua caminhada. “Dois dias depois do dia 17 houve alguém que me chamou ao gabinete. Foi a grande Sara [Rosado]. Não vou esquecer os gritos, os pedidos de ajuda, o estar fechada numa sala a tentar encontrar estratégias e saber que estradas estavam a circular. Não vou esquecer o olhar da pessoa que estava ao meu lado. A angústia, o medo, a impotência. Apoiámo-nos muito no CODU. Naquela madrugada fui para casa cheirar os meus filhos, para chorar. Não fui capaz”, conta. Mas naquela sala, dois dias depois, com Sara e a outra colega, choraram as três. Estão todos a trabalhar neste domingo, dia 17, à excepção de Sara, que sai de serviço às 8h00 da manhã e de Carlos, que colocou uma folga para não trabalhar domingo. Vai passar em Pedrógão e, se tiver oportunidade, estará com o bombeiro Rui Rosinha. Durante o último ano passou várias vezes no IC8, a estrada principal de onde sai o desvio para Pedrógão Grande. Nunca mais fez esse desvio. Este domingo será a primeira vez.
REFERÊNCIAS:
“Passou por aqui uma guerra. ” Como se cuida de uma comunidade em risco de colapso psicológico
A saúde mental das pessoas afectadas pelos incêndios de há um ano foi tema de discussão ao longo de meses. Os cuidados foram ou não suficientes? E o que foi feito? No último ano, o PÚBLICO foi falando com utentes e com as psiquiatras que coordenam as equipas que fizeram mais de cinco mil consultas. Este é o retrato de uma comunidade em sofrimento prolongado a tentar erguer-se do luto e do trauma. (...)

“Passou por aqui uma guerra. ” Como se cuida de uma comunidade em risco de colapso psicológico
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: A saúde mental das pessoas afectadas pelos incêndios de há um ano foi tema de discussão ao longo de meses. Os cuidados foram ou não suficientes? E o que foi feito? No último ano, o PÚBLICO foi falando com utentes e com as psiquiatras que coordenam as equipas que fizeram mais de cinco mil consultas. Este é o retrato de uma comunidade em sofrimento prolongado a tentar erguer-se do luto e do trauma.
TEXTO: “Não lhe chamem estrada da morte. ” Era Setembro, as festas de Verão tinham sido todas suspensas naqueles três concelhos, mas houve uma que, pela tenacidade das gentes da Moita, Castanheira de Pêra, e pela devoção à Nossa Senhora do Bom Sucesso, se manteve. Era gente triste a dançar com lágrimas, ali mesmo à beira da N236-1, que ficou com um rótulo que ninguém quer ouvir. “Ainda ontem passaram aqui uns turistas a perguntar pela estrada para verem onde morreram pessoas. Não têm vergonha”, ouve-se da conversa entre duas amigas no beiral da igreja onde dizem que se salvou uma família, no trágico dia 17 de Junho de 2017. A conversa constante em torno da estrada e de todos os outros locais onde a tragédia aconteceu é uma faca de dois gumes. Na visão dos psiquiatras que têm acompanhado o evoluir da situação mental dos utentes naqueles concelhos, o facto de as vítimas falarem, contarem o que se passou ajuda-as a conviver com o sentimento de dor, a fazer a “catarse”. Contudo, ouvirem falar de constantes responsabilidades que caem em saco roto e dos rótulos postos a locais onde vivem todos os dias acentua a dor e provoca o reavivar de memórias, que têm de estar guardadas “num sótão”, na parte de trás do cérebro, um lugar onde, quem sofre, só lá vai para as arrumar, nunca apagar. Não havia experiência em Portugal de como tratar a nível psicológico e psiquiátrico uma vasta comunidade fustigada por uma catástrofe como os incêndios do ano passado. Entre-os-Rios tinha sido um trabalho duro (a queda da ponte, em 2001, causou 59 mortos); Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos elevaram os problemas e riscos para a saúde mental a uma escala nunca vista e que permanecerá por muito tempo. Os especialistas socorreram-se de experiências noutros países, aplicaram muita da literatura que estudaram e admitem falhas, que constituem o pilar das recomendações que servirão de guia para melhorar trabalhos semelhantes no futuro. “Um destes dias oferecemos um galo a um paciente. Todos os dias acordava com o galo que morreu nos incêndios”, conta a psiquiatra Ana Araújo, coordenadora da equipa de saúde mental dos três concelhos afectados em Junho. A alteração da rotina matinal descoordenou as horas de sono daquele doente e o sono é elemento fundamental para a recuperação em saúde mental. Havia quem não dormisse. “Iam para a cama, reviviam momentos com as chamas, havia pessoas que nos descreviam que ouviam os estalidos das chamas, que sentiam o calor. Se a pessoa não dorme bem, tem de ser ajudada a dormir. O sono reparador é fundamental para que tudo o resto seja recuperado”, explica Célia Franco, uma das médicas psiquiatras coordenadora de equipas nos concelhos atingidos pelos incêndios de 15 de Outubro. A intervenção no dia-a-dia da comunidade, com pequenos gestos como a recuperação de animais ou consultas ao domicílio, fazem parte do trabalho que já estava no terreno pelas equipas de Saúde Mental Comunitária, uma experiência dos hospitais universitários de Coimbra em Leiria Norte (nos três concelhos afectados em Junho) e no Pinhal Interior Norte (que abarca os concelhos de Oliveira do Hospital, Tábua e Arganil). O conhecimento prévio do terreno facilitou a intervenção neste último ano. Estas equipas seguem o conhecido “modelo de Avilés”, que herdou o nome da localidade das Astúrias onde está sedeado o hospital que criou este tipo de intervenção, baseada no tratamento de doentes a partir da sua vida em comunidade. Há anos no terreno, estas equipas tinham uma lista das pessoas que acompanhavam com vários problemas, mas os incêndios trouxeram-lhes centenas de outras pessoas, com dificuldades diferentes, sem doença mental anterior associada. Gente com dificuldade em lidar com a dor, o sofrimento, em fazer o luto. No total, foram realizadas cinco mil consultas entre psicologia e psiquiatria, um trabalho considerado “suficiente” por dois inquéritos realizados pela comissão de acompanhamento da população afectada pelos incêndios, presidida por António Leuschner. “Há quem diga que há aspectos que têm sido abordados de forma superficial, não há nada de mais falso. Vamos dimensionar as coisas. As pessoas têm de ser respeitadas no seu espaço. Há pessoas que precisam de ajuda profissional, mas não podem ser obrigadas a tê-la. O processo de luto é muito individual. A natureza individual do luto tem de ser enfatizada”, defendeu. De acordo com o relatório desta comissão, mais de um terço dos inquiridos (750 no total) evidenciava “sintomas de luto complicado”. Para a Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG), houve desde sempre uma confusão entre o “luto” e “trauma”, que fez com que esta associação apresentasse várias queixas ao modo como estava a ser prestado apoio psicológico e psiquiátrico na zona. “Se o luto começa ao fim de meses, o trauma é no próprio dia. Se não se trabalha o trauma rapidamente, ele pode ficar crónico e cada vez é pior. No luto tem de se dar tempo”, diz Nádia Piazza, a presidente da AVIPG, associação que teve a ajuda de outros profissionais em saúde mental ao longo dos meses que discordam da abordagem que foi feita pelas entidades do Serviço Nacional de Saúde. “Nós não somos especialistas em nada: somos vítimas. O que sentimos – e hoje comprova-se – é que nós somos uma comunidade de desastre, com vários níveis de trauma. Não era uma depressão, era um trauma. Foi preciso que as entidades o percebessem e foi a muito custo. Passou por cá uma guerra que durou uma semana”, descreve. A abordagem das equipas de saúde mental foi diferente. Depois do rastreio inicial, que contou com a ajuda dos psicólogos dos Fuzileiros, e que permitiu cruzar listas de pessoas em risco, da ida porta a porta, começando por quem perdeu familiares, foi sendo feita uma intervenção de psicólogos e psiquiatras (se fosse necessário), conforme os níveis de prioridade. “Em termos da comunidade, tentámos de algum modo intervir no sentido de criar mecanismos e actividades com as pessoas que pudessem ajudar a perceber a tragédia, e [ver] como se podia melhorar e evoluir nas situações de desgosto. Criar expectativas positivas, alternativas, esperança [, como o retomar da rotina com o galo]”, diz Ana Araújo. “Agora temos de lhe dar um contexto de normalidade nesta dimensão: não queremos ‘psiquiatrizar’ a sociedade”, acrescenta. O que era melhor para uns não era válido para todos, uma vez que este é um processo muito individual: houve quem estivesse em luto profundo por ter perdido familiares e amigos, quem ficasse em stress pós-traumático por ter vivido os acontecimentos, quem já tivesse doenças mentais associadas, entre outros casos. Por isso, foi decidido pelas entidades do SNS que, depois da abordagem inicial, seria reforçado o trabalho que já era feito pelas equipas de Coimbra. E estas intensificaram a sua presença nos centros de saúde, alargaram as horas de “porta aberta”, em que qualquer pessoa podia pedir para ir a uma consulta, e aumentaram as visitas domiciliárias. Tudo com um reforço destas equipas multidisciplinares, mas que em número deixou a desejar. Foram sempre grupos pequenos com um ou dois psiquiatras, e um ou dois psicólogos, enfermeiros de saúde mental e assistentes sociais. No entanto, se o apoio psicossocial de emergência qualquer um destes técnicos pode fazer, o acompanhamento no tempo é um trabalho que implica um profissional de referência. Um exemplo: a enfermeira de saúde mental de Oliveira do Hospital é técnica de referência de duas centenas de doentes, quando o máximo é de oito a dez. A recuperação em saúde mental tem particularidades que só o tempo foi revelando, ainda mais no caso das pessoas que sofreram com os incêndios, cada qual com uma resposta inicial diferente. “Aquilo que temos percebido é que as pessoas que participaram, que foram pró-activas, acabaram por lidar melhor com a situação do que os que foram mais passivos, que ficaram com mais dificuldade em processar o sofrimento”, conta a médica psiquiatra Célia Franco, coordenadora da equipa do Pinhal Interior Norte. A reacção inicial de ajudar o outro, de tentar recompor a vida foi a “cura” para muitas pessoas, mas escondeu o sofrimento de outras, que só mais tarde se manifestou. Se houve quem aceitasse logo “que estava em sofrimento”, outros só mais tarde, depois de meses a ocuparem-se com outras actividades, “acabaram por reconhecer que precisavam de ajuda”. E para isso ajudou, acredita Ana Araújo, a presença constante dos psicólogos e psiquiatras naqueles concelhos: “Estar aqui diminui o estigma de vir ao centro de saúde procurar ajuda em termos psicológicos e emocionais. ”A braços com o sofrimento e com o trauma causado pelos fogos, muitas destas pessoas enfrentaram esse outro problema, o estigma. Se esta é ainda uma realidade em geral, quando se trata de zonas menos povoadas, esta marca é agravada. “Passou um ano e houve quem não tivesse recorrido à ajuda de psicólogos e psiquiatras. Aqui, é um pouco como ser louco ou ter problemas mentais. Acho que por isso uma grande parte ainda não fez o luto, dedicaram-se à terra [como escape]”, diz João Carvalho Viola. “As pessoas deviam pôr isso de parte e falar com um psicólogo ou psiquiatra. E, se for necessário, tomar medicação também”, diz o pintor e jardineiro da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, que recorre às consultas no centro de saúde da vila. Mas nem todas as pessoas tomaram a iniciativa de procurar ajuda. “O que sentimos é que éramos nós que tínhamos de nos dirigir às entidades, passado o momento do porta a porta, de perguntar se as pessoas precisavam de apoio”, diz Nádia Piazza, que ficou preocupada com “quem precisava verdadeiramente de apoio, aquelas pessoas que estão de tal ordem fechadas em si a viver a sua dor que não procuram ajuda, elas rechaçam ajuda”. Depois da primeira reunião geral da associação, conta que se apercebeu que havia quem precisava de apoio e não o estava a ter. “Havia pessoas que iam às nossas reuniões de óculos de sol, não abriam a boca. Na segunda reunião tinham um colapso emocional. Cada vez que fazíamos uma reunião era como se fosse uma terapia de alcoólicos anónimos, alguém contava a sua história. ”Estes casos mais complicados de seguir pelos profissionais de saúde são também aqueles que mais os preocupam. No início, foi importante a facilitação das emoções, para que essa “expressão do sofrimento a posteriori não se transforme em doença”. Quem o conseguiu fazer está, nas palavras de Célia Franco, a “fazer a sua catarse”. “O que me preocupa são os que estão a um canto calados e que não falam com ninguém. A esses é que temos de estar atentos”, diz. Para encontrar melhor estes casos escondidos nos vales e montes, esta médica contou com um parceiro inusitado: o carteiro da vila de Oliveira de Hospital, que nas suas voltas do correio e na troca de palavras à ombreira das portas ia percebendo como estavam aqueles que moram nos recantos mais isolados. Ao ritmo da distribuição das cartas pelas aldeias e pequenos aglomerados, ia avisando ou, em linguagem médica, ia “sinalizando” às técnicas de saúde mental do centro de saúde os casos de risco que encontrava. Essa cumplicidade na comunidade foi um pilar importante para chegar a quem sofria em silêncio. “Uma comunidade que perde muitas pessoas é uma comunidade que está toda em sofrimento e é preciso uma grande interajuda. Há comunidades que são muito resilientes, apesar de tudo, e são capazes de se superar nesta amargura toda que se construiu”, acredita Ana Araújo. Nesse sentimento de comunidade foi muito importante toda a informação dos vizinhos e amigos. Ainda hoje, estas médicas pedem atenção aos “sinais de alarme”. Sinais que podem manifestar-se agora. A passagem do ano da tragédia pode pôr a nu mais algumas situações preocupantes e por isso estas profissionais pedem que as comunidades estejam atentas a alterações profundas de comportamentos. João Viola é um dos elementos que ajudam nesse processo de identificação de sinais de alarme em conhecidos e é, ele próprio, um “pró-activo”. Durante meses ocupou-se a ajudar os vizinhos, tentando afastar o trauma dando cor à aldeia de Nodeirinho, que saiu de Junho pintada a negro. Diz que não quis baixar os pincéis, mas durante algum tempo a vontade de pintar sucumbia ao desalento de não ver os vizinhos e amigos, de não ouvir pássaros e de não ver o verde das árvores a não ser no jardim da vila de Pedrógão de que é o obreiro. “Ficámos todos afectados psicologicamente. Uns disfarçam, outros tentam calcar essas imagens e enganar-se a si próprios. Nós [ele e a mulher, Dina Duarte] andámos até Setembro numa correria. Chegou Setembro e fui-me abaixo e comecei a ressentir-me de tudo. ”Depois da tal “correria”, houve dificuldades acrescidas em lidar com o regresso à normalidade. “Nestas situações há uma primeira fase de reacção aguda em que todos nós somos activados, para nos defendermos destas situações. Daí que as pessoas tenham a tendência de ir apagar os fogos, serem pró-activas [a ajudar os outros]”, conta Célia Franco. Mas depois, foi tudo mais difícil, “sobretudo porque as pessoas queriam criar rotinas e não conseguiam”, acrescenta Ana Araújo. Esta situação é mais grave nos adultos. As crianças passam melhor por estes traumas. No início foi feita uma avaliação nas escolas pelos psicólogos e professores, que tinham indicações para sinalizar uma criança, se houvesse sinais de alarme. “As crianças, regra geral, têm uma capacidade de resposta a situações de stress muito boa, assim os adultos com quem vivem reajam bem. Respostas eventualmente menos adequadas são um sintoma da situação familiar em que as crianças vivem”, explica a psiquiatra Célia Franco. Isso mesmo defende o pedopsiquiatra José Garrido, que numa conferência em Coimbra, em Novembro do ano passado, explicou que “a melhor maneira de ajudar a criança é ajudar o adulto que está com ela”. Há algumas crianças que estão actualmente a ser acompanhadas por psicólogos, porque viveram situações-limite naqueles dias, ou porque sofrem com a perda de familiares. Contudo, os mais pequenos são mais resilientes a catástrofes. “A maior parte das crianças recupera bem das catástrofes, desde que tenha apoio de adultos. O que é preciso é que os adultos expliquem à criança o que está a acontecer. Ainda não vi nenhuma criança em que o incêndio tenha sido a causa do trauma. Foi sempre outra coisa paralela”, defendeu o mesmo especialista durante um encontro para debater a saúde mental das vítimas das catástrofes dos incêndios. No entanto, o estudo Pinhal de Futuro ontem divulgado - uma iniciativa de rastreio e acompanhamento de saúde mental de crianças e jovens dos 6 aos 18 anos nas escolas das áreas afactadas pelos incêndios que deflagraram a 17 de Junho - revela que 7, 9% das crianças e adolescentes de Pedrógão sofre de síndrome pós-traumático. A coordenadora do estudo, Cristina Canavarro, explica que, dos 139 jovens acompanhados, o maior grupo de casos de stress pós-traumático encontra-se do segundo ao terceiro ciclo, ou seja, dos 10 aos 14 anos. Estas crianças apresentam “maior dificuldade de concentração” ou “alguma sintomatologia depressiva” e “ficam com uma espécie de filme mau, que é este dos incêndios, com o medo a ele associado”. A ajudar a retomar essas rotinas – que fazem parte do modelo de Avilés seguido por estas psiquiatras – esteve o longo Verão do ano passado. Pode parecer um contra-senso, mas as voltas da saúde mental não se coadunam com aparentes realidades. “Tivemos dias soalheiros, com temperatura agradável até Dezembro, o que penso que foi protector, porque as pessoas conseguiam ir organizando as coisas”, diz Célia Franco. “É sempre bom ter sol em termos das emoções e da saúde mental. Foi uma mais-valia no ano passado”, acrescenta a colega psiquiatra. O tempo muito quente pode, no entanto, reavivar memórias e trazer ao de cima traumas que estavam debaixo do tapete. “A sirene, qualquer fumo, as pessoas ficam em alerta máximo. Isso arrasta atrás de si as emoções que tiveram há um ano. Se a situação evoluir num contexto de normalidade, esta vulnerabilidade começa a apaziguar-se”, diz a médica de Pedrógão. A colega de profissão de Oliveira do Hospital sintetiza: “Sinto que as pessoas têm medo do fogo e muitas estão a hiper-reagir a qualquer fogueirinha ou situação que implique fogo. Estão fragilizadas. ”A fragilidade manifesta-se de muitas maneiras – nas crianças com a desatenção às aulas ou em reacções mais bruscas, nos adultos com mudanças de atitude. “Nós sentimos que estamos mais desatentos, com flashes. Aqui há dois tipos de pessoas, as que viram e as que imaginam. Não se pode ver um fumo ao longe que se recorda tudo”, diz Nádia Piazza. José Carlos Santos é um dos que viveram muito de perto os incêndios e que sobrevive com marcas na pele que não o deixam esquecer. É um dos cinco feridos graves de Pedrógão Grande, que esteve internado em Coimbra em coma e que passou os últimos meses do ano numa cama nos cuidados continuados na Santa Casa de Pedrógão Grande. Foi aí que recebeu acompanhamento psicológico mais frequente, pago pelos seguros, que o tem ajudado. “Na televisão só passava fogos. Consigo passar ao lado sem me preocupar com isso. Agora reviver… tenho de ir falando. Mas esquecer não esqueço. Vou ficar com as marcas. Falando é que vamos ultrapassando as coisas”, diz. Esta insistência no assunto foi difícil para aquelas gentes. “Este discurso prolongado de quem tem a culpa não ajuda as pessoas. É importante que se apurem responsabilidades, mas que não se fale nisso todos os dias”, diz o professor Leuschner. E, para piorar, aconteceu a vaga de incêndios de 15 de Outubro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Foi péssimo. As pessoas caíram de novo em si. O não dormir, o estar sempre alerta, o acordar de madrugada”, sintetiza Nádia Piazza. Mais do que as palavras, foram alguns actos ou falta deles que serviam de gatilho para sentimentos mais dolorosos. Além dos incêndios de Outubro, a própria situação nos concelhos do incêndio de Junho arrastou-se mais do que deveria. Em Pedrógão Grande, por exemplo, as placas de sinalética nas estradas e aldeias ficaram queimadas durante 11 meses, foram mudadas no final de Maio. E mesmo antes, muito antes, logo no rescaldo daquela noite, houve muito que contribuiu para a dificuldade em ultrapassar o trauma. “Houve carros que estiveram aqui [Nodeirinho] um mês”; foi “uma semana inteira de funerais”. João Viola: “Nenhum de nós sabia se o que estava a acontecer era real ou um pesadelo. ”
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Palavras-chave morte guerra concentração mulher ajuda negro comunidade criança doença medo estudo espécie luto vergonha
O início do fim dos tempos anormais
Estamos a viver tempos extraordinários, e é importante termos a noção disso. O BCE já deu os primeiros passos para normalização, e, mesmo depois do Verão de 2019, e devagar, as taxas de juro são subir, subindo com elas os custos das dívidas. É bom estarmos todos bem preparados para o normal. (...)

O início do fim dos tempos anormais
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estamos a viver tempos extraordinários, e é importante termos a noção disso. O BCE já deu os primeiros passos para normalização, e, mesmo depois do Verão de 2019, e devagar, as taxas de juro são subir, subindo com elas os custos das dívidas. É bom estarmos todos bem preparados para o normal.
TEXTO: Estamos a viver um período extraordinário, e a primeira coisa a ter em atenção é isso mesmo: saber que são tempos anormais. Na sequência da grande crise financeira de 2007/2008, que atingiu em cheio a União Europeia através da dívida pública e de uma arquitectura política e económica imperfeita, os bancos centrais foram chamados a intervir. No caso do Banco Central Europeu (BCE), este reagiu mais tarde do que a Reserva Federal norte-americana, numa lógica de impactos geográficos com diferentes fusos horários, e hoje não deixa de provocar um certo sorriso nervoso o facto de ter chegado a subir a taxa de juro de referência no início de 2011, como se os problemas estivessem a ser resolvidos. Certo é que, com Mario Draghi, o BCE acabou por intervir em força em plena crise do euro, usando medidas convencionais como a descida dos juros mas para níveis inimagináveis (zero) e atravessando novas fronteiras como a compra de dívida pública dos Estados-membros. Na passada quinta-feira, cerca de três anos depois do início da grande intervenção para recuperar a economia europeia, Draghi começou o processo de normalização ao anunciar que deixará de comprar mais dívida no final do ano (mas sem deixar de manter os actuais níveis que detém no seu balanço, algo que terá de ser resolvido no futuro). Isto depois de ter aplicado mais de dois biliões de euros em toda a zona euro, dos quais 33 mil milhões de euros em Portugal (equivalente a cerca de 17% do PIB), ajudando-nos assim a manter o custo da dívida a níveis suportáveis quando as agências de rating ainda nos olhavam de lado (com excepção da canadiana DBRS, algo que vale sempre a pena recordar). A partir de agora, está tudo nas mãos dos mercados, atentos a temas como a evolução da política italiana e à forma de resolver a questão da dívida grega. Temos, depois, a questão das taxas de juro de referência, também elas ligadas à dívida, já que implicam maior ou menor custo do dinheiro. E estas estão em zero há mais de dois anos, mais concretamente desde Março de 2016. Na semana passada, Draghi deu sinais claros de que não haverá alterações pelo menos até ao Verão do ano que vem (curiosamente, a sua saída do cargo vai ocorrer em Outubro). Esta terça-feira, no encontro que se realiza em Sintra, o líder do BCE explicou-se um pouco mais: “Vamos manter-nos pacientes na determinação do momento da primeira subida das taxas de juro e teremos uma abordagem gradual no ajustamento da nossa política a partir daí”, afirmou. Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, diz-se, e essa estratégia de prudência face à forma como a retoma da economia europeia se está a desenvolver é a que mais convém a Portugal. É que as dívidas ainda são mais do que muitas, entre Estado, empresas e famílias. Tem havido um esforço geral de redução do endividamento desde 2011, mas é também preciso ter em conta que parte explica-se não por menos procura mas sim por menos oferta de crédito - uma espécie de desalavancagem forçada – e outra é apenas o resultado da limpeza de balanço dos bancos de créditos que nunca seriam pagos – e não porque houve quitação da dívida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Olhando para o esforço feito, é um facto de que o Estado tem procurado diminuir o peso da dívida - com algum controlo das contas e estratégias como a antecipação dos pagamentos ao FMI -, muitas empresas estão a recorrer mais a financiamento alternativo e não apenas aos bancos – incluindo aqui o reforço ao nível interno, com menor endividamento – e os particulares também estão a fazer melhor as contas depois do susto dos anos da troika de credores e do desemprego a dois dígitos. Neste último caso, é com algum receio que assisto ao preço do imobiliário em zonas como Lisboa e Porto, para quem esteja a comprar casa com recurso aos bancos. Uma análise recente do Banco de Portugal nota que tudo aponta para “a existência de uma ligeira sobrevalorização dos preços” desde o terceiro trimestre de 2017. Desta vez não há tanto crédito a rolar para adquirir casas, porque há muito dinheiro a vir de fora - e algum de dentro - ligado a investimentos no imobiliário (sejam ou não direccionados para o turismo, através do alojamento local), mas é precisamente esse concorrência, influenciadora dos preços em alta, que enfrenta quem está a comprar a sua casa para habitar. “No período recente, o aumento continuado dos preços do imobiliário residencial foi apenas parcialmente acompanhado por aumentos do rendimento disponível das famílias”, evidencia o Banco de Portugal. Tem, também, havido menos restritividade na concessão de crédito, com tudo o que isso significa ao nível de preços mas também de análise de esforço e risco. Voltemos ao início: estamos a viver tempos extraordinários, e é importante termos a noção disso. O BCE já deu os primeiros passos para normalização, e, mesmo depois do Verão de 2019, e devagar, as taxas de juro são subir, subindo com elas os custos das dívidas. É bom estarmos todos bem preparados para o normal.
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Entidades TROIKA FMI
Inteligência artificial aprende a ver de outra perspectiva
Sistema desenvolvido pela DeepMind analisa imagens de espaços e objectos e foi capaz de aprender sozinho como seria observar as mesmas cenas de outros pontos de vista. (...)

Inteligência artificial aprende a ver de outra perspectiva
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.6
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sistema desenvolvido pela DeepMind analisa imagens de espaços e objectos e foi capaz de aprender sozinho como seria observar as mesmas cenas de outros pontos de vista.
TEXTO: Um humano que olhe para um muro sabe que do outro lado está, pelo menos, o outro lado do muro. Sabe também que a abertura no muro que vê à sua esquerda estaria à direita se por acaso ele próprio se encontrasse do lado oposto. E também tem a noção de que pode haver algo escondido do outro lado, que não é visível do ponto onde se encontra. Este tipo de capacidade de representação do espaço foi agora desenvolvido num sistema de inteligência artificial, embora de forma mais limitada, por investigadores da DeepMind, a cada vez mais falada empresa de inteligência artificial do Google. A equipa desenvolveu um sistema para que as máquinas possam “olhar” para imagens bidimensionais de um espaço tridimensional com objectos, conceber como seria esse espaço se o estivessem a “ver” de outra perspectiva e reconhecer que determinados pontos de vista podem esconder elementos – tudo num processo que prescinde de explicações introduzidas por humanos. Os detalhes da investigação são publicados nesta sexta-feira, num artigo científico na revista Science, no qual os investigadores defendem que a técnica é um passo na direcção de “máquinas que aprendem autonomamente a compreender o mundo à sua volta”. Os investigadores recorreram a redes neuronais artificiais, uma tecnologia popular de inteligência artificial que é vagamente inspirada no funcionamento do cérebro. As redes neuronais já são frequentemente usadas para identificar os elementos de uma imagem, incluindo por empresas como o Google e o Facebook. Tipicamente, usam descrições humanas para aprender o que são os elementos nas imagens (“uma vaca num prado” ou “um automóvel numa ponte”) e para conseguir detectar elementos semelhantes noutras imagens. O sistema criado pela equipa da DeepMind é composto por duas redes: uma para analisar as imagens bidimensionais e criar uma representação interna do espaço mostrado, e a outra para gerar novas imagens. As imagens que o algoritmo analisou para compreender o espaço não mostravam cenários do mundo real, mas antes cenários significativamente mais simples, que foram criados em computador: salas com algumas estruturas dispersas, como esferas, cilindros e cones. Contudo, as redes neuronais não contavam com a ajuda de uma explicação humana – ninguém dizia aos computadores que um determinado conjunto de píxeis era uma esfera vermelha e que outro conjunto era uma parede preta. Em vez disso, aprenderam sozinhas (através da análise de milhões de exemplos) a identificar elementos como as cores, o tamanho, a textura, bem como a disposição e o número de objectos. A partir daí, quando lhes eram dadas algumas imagens de um espaço tridimensional que nunca tinham visto (nalgumas das experiências, contaram apenas com uma única imagem), as redes neuronais eram capazes de gerar novas imagens que mostravam como seria observar aquele espaço de um ponto de vista diferente (que era determinado aleatoriamente). Estas novas imagens incluíam elementos como a direcção da luz e a projecção de sombras, sem que as máquinas tivessem conhecimento prévio do comportamento da luz ou das regras da perspectiva. Para além deste tipo de salas, os cientistas usaram imagens de labirintos virtuais, o que colocava um desafio mais complexo. Nestes casos, conseguiram treinar o sistema para que gerasse tanto novas imagens do labirinto numa perspectiva de primeira pessoa, como imagens do labirinto visto de cima, semelhantes a um mapa. A tecnologia foi ainda usada para controlar um braço robótico virtual, depois de analisadas imagens do braço e do objecto que este devia alcançar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em alguns casos, o algoritmo criado pela DeepMind reconhecia que não tinha informação suficiente. Por vezes, a imagem que a máquina recebia era pouco reveladora – por exemplo, como se estivesse a observar a sala de um ponto muito próximo de uma grande esfera, que escondia praticamente tudo o resto. Nestas situações, conseguia gerar várias imagens (“plausíveis”, dizem os cientistas) para mostrar como eventualmente seria ver a sala de outros pontos de vista. Em algumas experiências, a inteligência artificial colocava objectos novos nas imagens geradas. Fosse um humano a fazer o mesmo e dir-se-ia que estava a adivinhar, ou a imaginar, o que poderia existir nas zonas tapadas. Este sistema “não chega sem as suas limitações”, observa o académico Matthias Zwicker, da Universidade de Maryland, nos EUA, num comentário também publicado na Science. “As experiências estão restritas a cenas 3D simples, que consistem em alguns objectos geométricos básicos. Por isso, continua a não ser claro quão perto está a abordagem deles de compreender ambientes complexos do mundo real, o que a tornaria útil, por exemplo, para implementar um controlo prático de robôs. ”Os investigadores, por seu lado, dizem esperar conseguir aumentar a complexidade das cenas e argumentam que a investigação abre caminho “à compreensão de cenários, à imaginação, planeamento e comportamento sem qualquer supervisão”.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Fisioterapia e enfermagem de reabilitação: a última palavra
Não aspiramos excluir os enfermeiros de reabilitação como a senhora bastonária gostaria de excluir os fisioterapeutas. Eles estão convidados a fazer parte da mudança (...)

Fisioterapia e enfermagem de reabilitação: a última palavra
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não aspiramos excluir os enfermeiros de reabilitação como a senhora bastonária gostaria de excluir os fisioterapeutas. Eles estão convidados a fazer parte da mudança
TEXTO: Na especialidade, no Parlamento, a 12 de Junho, foi auscultado o parecer da bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, sobre a criação de uma Ordem dos Fisioterapeutas. A resultante é simplesmente. . . "demasiado humana". A senhora bastonária defende que uma Ordem dos Fisioterapeutas não resolverá problemas de precariedade dos profissionais, como já se verifica com os enfermeiros. Irónico, sobretudo vindo de uma bastonária de uma ordem que coloca constantemente os direitos dos últimos acima dos direitos dos pacientes. A senhora bastonária advoga que os fisioterapeutas não são autónomos, ao contrário dos enfermeiros, e em particular dos enfermeiros de reabilitação. Alguns não têm a autonomia desejada, é verdade. E são especialmente esses — nos quais a actividade relativa a um "todo" é traída pela precariedade das prescrições e dos tratamentos parcelares — que mais se parecem com os enfermeiros de reabilitação. Porque estes últimos profissionais representam, precisamente, o subentendimento do "ser humano", praticando o que uma fisioterapia (pós)moderna abandonou há décadas. A fisioterapia de qualidade só pode atingir o seu máximo potencial se existir uma ordem que consagre, delimite, o seu valor maior. Esse valor implica uma continuidade em que o paciente não se separa do "outro", em que o próprio terapeuta é paciente da crónica insolvência do utente, e em que o intrínseco corpo não se divide em parcelas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A senhora bastonária defende que os fisioterapeutas não realizam reabilitação cardíaca ou respiratória. E a maior ignorância não é factual, está na própria divisão da "reabilitação" em especificidades. Ora, o fisioterapeuta genuíno trata todos os sistemas em simultâneo, não divisa "partes" ou técnicas. Não pergunta que método o terapeuta tem mas que terapeuta o método tem. Não há "fortalecimento" ou "alongamento" ou "massagem", há um "ser" em que o corpo fala, o que se "alonga" são as cadeias miofasciais que a vida tolhe, o que se "mobiliza" são as articulações que se intimidam, o que se "fortalece" é a capacidade de fazer frente à adversidade. Existe uma "postura" que nos pede liberdade, uma vontade que demanda coragem. Haja, também, a vontade de libertar e reforçar a fisioterapia, a qual tem o seu correlato nos milhares de fisioterapeutas que se aventuram a desvelar a profissão que já existe nos outros países. Diz, algures, a senhora bastonária que os enfermeiros de reabilitação são uma especialidade única em Portugal. Sim, em Portugal há muita coisa "única". Felizmente existe "evolução" e "terapeutas" que querem mais do que "cuidar". O fisioterapeuta português exige somente o que subsiste em tantos outros países: liberdade para poder libertar e dar ao paciente a razão de cuidar para além do "cuidado". Para isso, é preciso reforçar a componente de um "terapeuta" que ama, que "facilita", que dá com que salvar. O utente de fisioterapia não é um "enfermo", é um agente de um mundo que se dissipa, é um portador da "boa nova", é um companheiro que traslada os limites da ética convencional para abraçar a pura alquimia regeneradora. O terapeuta é um "intérprete", um comunicador do equilíbrio. Não existe para o verdadeiro terapeuta um "outro" que se cuida ou trata, uma "norma" que se perfilha, existe, sim, um "divino" que pretendemos retirar da gaiola. Assustador, não é? Nem por isso. Não aspiramos excluir os enfermeiros de reabilitação como a senhora bastonária gostaria de excluir os fisioterapeutas. Eles estão convidados a fazer parte da mudança, e muitos já aceitaram o convite, há tantos enfermeiros de reabilitação a aprender com fisioterapeutas. Na realidade, é à fisioterapia que estes enfermeiros têm ido buscar todas as últimas actualizações. Mas nem isso evita que ignorem coisas como manipulação vertebral, cadeias musculares, tratamento do neurodesenvolvimento, facilitação neuromuscular proprioceptiva, etc. Mas, pasme-se, o terapeuta serve-lhes comummente de intérprete. Por mim, fá-lo-ia também, os profissionais devem apoiar-se, aprender em reciprocidade, sobretudo com o paciente, porque é este que importa genuinamente. Sejamos nós pacientes dos nossos pacientes, a única ordem plena é a deles, pedimos a nossa para defender a deles, não o ressabiamento que alguns destilam. A senhora bastonária, quando deixar de ser política, quando desistir de iludir os seus enfermeiros enfermos como ovelhas de um objectivo puramente egoísta, está igualmente convidada a aprender com todos nós. E quando estiver, de facto, a aprender com os pacientes, mesmo que não se torne uma terapeuta, talvez consiga, ao menos, tornar-se enfermeira.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos corpo
“A arte é uma revolta contra a História”
Estuário fala do desencontro entre uma família e o Estado em plena crise. É um livro sobre a literatura enquanto tentativa de redenção. (...)

“A arte é uma revolta contra a História”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estuário fala do desencontro entre uma família e o Estado em plena crise. É um livro sobre a literatura enquanto tentativa de redenção.
TEXTO: À volta de uma “grande mesa de três tábuas” feita para 24 pessoas, sentavam-se as 12 que restavam. Entre elas Manuel Galeano, o patriarca da casa. Todos reunidos à volta de uma carta que anunciava a derrocada económica da família. Edmundo, o mais novo dos cinco irmãos, ouviu e sentiu a urgência de escrever um livro, projecto sobre a “dobra de um tempo” em que viviam todas as criaturas — ele incluído. Esse livro era uma espécie de projecto de redenção pessoal e universal. Foi a sentir essa urgência que “antes de se levantar colocou a mão decepada sobre a mesa, ainda que os seus irmãos, insensíveis aos desastres longínquos, não a vissem”. Esta foi a cena a partir da qual nasceu Edmundo Galeano e Estuário, o mais recente romance de Lídia Jorge. Não é por ela que o livro começa, mas é nela que está génese de tudo. Uma família em ruína económica que volta à casa paterna e a ambição de um homem que perdeu três dedos da mão direita numa missão humanitária e, por causa dessa perda, se vê no “centro de um universo desconhecido”. Lídia Jorge conta: “A ideia para este livro veio quando estava a escrever a última parte de Os Memoráveis [D. Quixote, 2014]. Achei que estava a lidar com figuras representativas de um grande movimento histórico e pensei que queria fazer qualquer coisa no plano mais individual, dos cidadãos, das pessoas comuns, e inventei esta história. ” Escreveu a cena da mesa. “A leitura da carta levou a que todas as figuras se apresentassem. Foi a primeira vez que a mão apareceu na minha cabeça e tive a ideia de que o filho mais jovem tinha uma mão decepada e era aquele quem iria escrever. ”Edmundo é o protagonista de um romance realista que anda próximo do fantástico. A acção decorre em seis meses, mas atravessa os anos da crise económica em Portugal. Estamos, feitas algumas contas, em 2010. Mas a par do tempo real corre outro, mais etéreo e íntimo, dado, por exemplo, pelo avançar da caneta na mão feita só de indicador e de polegar de Edmundo, que com Milene, protagonista de O Vento Assobiando nas Gruas [D. Quixote, 2002], é a personagem mais próxima da escritora. “A Milene, porque tem pensamentos, mas não encontra as palavras. É uma perturbação. Todo o escritor sente isso, uma limitação na linguagem. É a matéria-prima mais plástica de todas, porque está próxima do pensamento, mas que não é suficiente. Daí o desafio, aquilo que Kundera dizia: que pensamos em leveza e depois, quando se escreve, escreve-se com peso. O peso vem de as palavras corporizadas estarem longe do que foi a leveza do pensamento. O Edmundo está numa situação diferente — sente que não encontra a expressão que quer e sonha com o absolutamente grandioso e depois. É um livro de formação, ele faz uma aprendizagem em frente dos leitores. ”Pensa na tal redenção. Quer por exemplo “escrever um livro para avisar a humanidade que tome conta do seu destino”. De forma menos ingénua também Lídia Jorge afirma que não há literatura sem redenção. “O impulso da arte é esse; a arte é uma forma de não deixar morrer e é também um grito contra o mal e contra a desordem, mesmo quando retrata a desordem e o caos. Adorno diz que à luz da redenção a História surge necessariamente deformada”, ou seja, sintetiza a escritora, “toda a arte é uma deformação da História, porque a queremos redimir, porque a queremos salvar”. Edmundo pensa de forma mais grandiosa, épica, ainda não sabe muito. Esse pensamento acciona a escrita, acredita Lídia Jorge, ainda que, depois, muita coisa se desmorone. “O sonho de escrever um livro que contenha a humanidade é o sonho do escritor no início de tudo. Quando se está a escrever, pensa-se assim, que mesmo que seja uma simples história de amor ela terá uma dimensão universal. Mas basta terminar a última página, ser publicado, e percebemos que cada livro é supletivo. A história só é decisiva e universal e grandiosa enquanto a estamos a escrever. Que mil pessoas escrevam da mesma maneira, outras irão escrever muito próximo disso. É isso que Edmundo se pergunta: porque é que havendo tantos livros ainda quero o meu?”É a interrogação de Lídia Jorge. “Temos a ideia de que há um caminho que ninguém poderá fazer por nós, e uma esperança de dizer uma palavra qualquer definitiva que outro ainda não disse; que não sabemos qual é, mas temos a esperança de encontrar no meio do tumulto das páginas uma linha que ilumine, que fique; que seja como o epitáfio do momento por onde se passa. ”Autoria: Lídia Jorge D. Quixote Ler excertoTalvez a salvação ou a redenção de que falava Edmundo seja isso tudo. “Não no sentido metafísico, mas de redenção humana”, esclarece a escritora. “Pode ter o sentido de transcendência, mas não necessariamente. É isso que faz com que a arte saia do curso da História. É uma tentativa de o mundo sair fora da História e criar outra lógica. A arte é uma revolta contra a História. Isso para mim é tão claro! A arte em princípio não tem Deus, faz o caminho às cegas. Por isso é tão próxima dos homens e tão dialogante; não tem um imperativo categórico de que tudo se explica, porque haverá uma transcendência que abençoa o sofrimento, o mal, a traição; abençoa tudo, um sítio onde toda a gente será recompensada. A arte é um caminho às cegas, procurando uma luz que não é absoluta. ”Edmundo ainda não sabe muito sobre esse caminho, mas intui que terá de haver uma beleza na literatura. Procura-a sem saber como a definir, como a achar. O que é a beleza na literatura? A escritora responde: “Não tem descrição. É uma sensação. É o que faz com que uma pessoa depois de encontrar uma frase maravilhosa tenha a sensação de que levita, de que foi transportada para um sítio. Talvez seja uma beleza kantiana, ainda que de Kant eu só tenha lido Kant para Totós, mas reconheço que a beleza é uma resposta contra o mal. Edmundo Galeano também pensa assim. De vez em quando estou lá, com ele. ”E, melhor do que ele, sabe do efeito da cópia. Ele copia o fim da Ilíada, “o livro dos livros”, lê-se no posfácio, “aquele a que todos procuramos acrescentar uma linha, sem nunca conseguirmos”; “o livro que inspira todas as ousadias”. Mas há a presença permanente de outro poema, a Ode Marítima, de Álvaro de Campos, e de muitos livros da biblioteca de Titi, onde se refugia à procura do momento em que um qualquer princípio se revele, enquanto cada elemento da família anda às voltas com as suas tragédias pessoais. Despreza neles o que acha ser uma futilidade e faz cópias. Quer apanhar o tom, um ritmo. “Veja o grande poema Le Cemetière Marin, do Paul Valéry. É um poema ideológico, ou pelo menos de ideias, e, no entanto, Valéry diz que a iniciativa para o poema foi o decassílabo, o ritmo apenas. É o domínio do mais sensível, sensorial, e acabou por se transformar num poema de ideias. Acho que se pode fazer a mão copiando”, afirma Lídia Jorge. E conta que fez qualquer coisa parecida quando era muito jovem. “Tinha uns 17 anos. Não copiava, mas imitava. ” Começou pelos autores do nouveau roman. “No nouveau roman a estética passa muito pela descrição de detalhes na busca do essencial; desistindo do essencial escreve-se sobre o que parece fútil como forma de atingir a profundidade máxima. Eu nem tinha bem esta noção. Lia Marguerite Duras e queria escrever assim. Depois fiz uma descoberta: Faulkner. Li The Old Man e foi uma viragem completa. ” O americano ensinou-a a ir directa ao essencial e que o mundo brutal de onde ele vinha, e ela também vinha, podia estar na literatura. “Um mundo rural, muito primitivo, agressivo, que incluía a vida dos animais e o desprezo de uns pelos outros, tinha assassinos. Era um mundo muito forte, em que as pessoas dependiam da natureza, das estações do ano. Percebi que aquele mundo francês, sofisticado, em que as pessoas comiam delicadamente à mesa e onde havia também a crueldade absoluta, mas dada às pinguinhas, dissimulada, não era o meu mundo. Com Faulkner percebi que podia falar a partir do meu mundo, com os materiais que tinha, os materiais selvagens. ”Em Estuário há isso, não da forma mais brutal ou directa que já lemos em Lídia Jorge. Estamos num presente em que ruralidade e urbanidade se misturam, mas o ADN rural é a marca mais visível. “Posso ter todas as experiências urbanas, mas sei que o mundo urbano é uma condensação de muitíssimos mundos rurais. Aprendi a gramática dos desentendimentos e dos entendimentos vendo o palco do campo, da aldeia. A aldeia é um palco extraordinário para se ver o bem e o mal. Na cidade as paredes não deixam ver a profundidade dos acontecimentos. Na aldeia as pessoas sabem até o que o vizinho comeu; é uma crueldade enorme. Ver isso é uma espécie de ensaio e, quando se faz esse ensaio em criança, a sabedoria analítica dos comportamentos humanos fica para sempre. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A conversa chega aqui porque Edmundo tem um sonho heróico; o sonho quase de um adolescente antes de perceber que o heroísmo é uma coisa diferente do que imagina. Com a família refém do Estado, os bens a serem confiscados, os últimos barcos do pai apreendidos, os irmãos a perderem tudo. E a morte a acelerar a perda. É este o tempo. Não é o tempo de uma decadência. É outra coisa. “Quando era muito jovem, fiquei marcada pelas teorias hegelianas do materialismo dialéctico, mas mais pela dialéctica. Não considero que se viva uma decadência, mas uma crise. A crise tem elementos de decadência, mas também de futuro e prosperidade. Os elementos destrutivos são brutais, mas ao mesmo tempo há os criativos. Estamos perdidos na avaliação. ” E sabe que os mitos se refazem ou reescrevem; está atenta. Mas sublinha que os escritores procuram sempre uma transcendência; pode estar apenas no encontrar da palavra certa, e não num encontro com Deus. Deus talvez não exista ou não existe mesmo. “Magritte dizia: ‘Nesta vida ou na outra pintarei sempre sobre o além. ’ Acho que os escritores fazem isso. É uma pretensão, mas uma pretensão maior. Devemos confessá-lo, para se perceber o limite da nossa ambição e dizer qual é a nossa proposta. A minha proposta é esta, posso não chegar lá, mas como Magritte também digo: nesta vida e na outra, pintarei sobre o além. ”Estuário contém estas reflexões a partir de um narrador próximo da voz de Edmundo e a convocar todas as outras vozes. “É um romance coral”, confirma e escritora, que fala como se o livro já não fosse do seu domínio. É a sua consciência da limitação da linguagem. Mas, no dia muito preciso desta conversa, há mais do que isso: a certeza de um erro. Para mostrar do que fala, abre o livro na epígrafe, lê palavras de Saint-John Perse: “Eleva-se em nós um canto/ que não conhece nascente/ e não terá foz em estuário. ” É dali que vem o título. “Ao traduzir o poema errei uma palavra fundamental. Onde está ‘foz’ devia estar ‘morte’. Pergunto-me como é que, tendo tido tanto cuidado ao traduzir, aquilo ficou assim? O que me terá motivado? É um erro enorme! Não tenho medo de parecer fútil, isso não me incomoda, mas tenho medo de ser fútil, de passar pelo que é essencial e tratá-lo como acidental. Foi o que fiz aqui. É com a palavra ‘morte’ que o livro se entende, ‘não terá morte em estuário’. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens humanos campo filho homem adolescente criança medo espécie humanitária