O nosso sistema está manipulado para “promover corporativismos”, diz especialista em fogos florestais
António Salgueiro é um dos maiores especialistas nacionais em fogos florestais. Liderou o Grupo de Análise e Uso do Fogo, responsável por uma estratégia de combate assente em conhecimentos muito técnicos, entretanto praticamente extinto. Pedrógão Grande prova o falhanço do sistema, denuncia. (...)

O nosso sistema está manipulado para “promover corporativismos”, diz especialista em fogos florestais
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: António Salgueiro é um dos maiores especialistas nacionais em fogos florestais. Liderou o Grupo de Análise e Uso do Fogo, responsável por uma estratégia de combate assente em conhecimentos muito técnicos, entretanto praticamente extinto. Pedrógão Grande prova o falhanço do sistema, denuncia.
TEXTO: Em Pedrógão Grande houve uma enorme descoordenação da protecção civil. António Salgueiro não tem dúvidas que a prioridade deveria ter ido para a protecção das pessoas porque o incêndio já tinha assumido proporções impossíveis de debelar. O que ali aconteceu é, na sua opinião, sintomático de um sistema de defesa contra incêndios que assenta num sistema de protecção civil corporativista, avesso a mudanças, que nem os políticos se atrevem a contestar. Pede que se apurem responsabilidades com inquéritos sérios. Teme que tudo se volte a repetir caso não se tente uma mudança no combate alargado. Mas para isso é preciso que o conhecimento e o mérito sejam os critérios que norteiam a subida na hierarquia nas estruturas da protecção civil, em vez da pressão dos interesses. Em que prevalece o do mais forte, não o do melhor. Apelando à sua experiência, tanto da floresta portuguesa, mas também dos métodos de prevenção e combate aos fogos, o que é que lhe parece que aconteceu no sábado à tarde especialmente no concelho de Pedrógão Grande?Ainda é difícil ter certezas sobre o que se passou pois não temos toda a informação importante - e esperemos que esta seja tornada clara e pública porque todos o merecemos, tanto os cidadãos, como aqueles que trabalham no sector ou os que vivem nas áreas florestais e delas dependem - mas parece que, de facto, terá havido uma descoordenação muito grande a nível, sobretudo, de protecção civil. Parece ter havido essencialmente um incidente de protecção civil. É sabido que há momentos em que os fogos florestais são incombatíveis e, por mais esforços que façamos, não os conseguimos debelar. Quando situações destas escapam à primeira intervenção, muitas vezes temos que assumir que, de facto, não é o momento de fazer extinção, é o momento de a planear para fazer o combate mais tarde, até mesmo por uma questão de segurança dos próprios combatentes. Nesses momentos, a atenção tem que ser virada ainda mais que o normal para a protecção das pessoas e para a coordenação da protecção de pessoas. Não sabemos efectivamente se houve trovoadas ou não. Há coisas muito estranhas nestas informações, ou na falta delas. Quando há aproximação de frentes destas, de trovoadas, aquilo que sabemos é que as condições são muito instáveis e normalmente a teoria e alguma experiência aconselham-nos a nem sequer fazer combate. A primeira intervenção tem de ser feita da melhor forma possível mas, não conseguindo resolver nesse momento, a situação vai exponencialmente aumentando de perigo para os combatentes e para as pessoas que estão próximas e, portanto, muitas vezes o conselho é que nem sequer se faça. Os processos são conhecidos e não há aqui nada de misterioso: Hoje [quarta-feira] de manhã já ouvi algumas intervenções em que se fala de mistérios e há aqui muitos mistérios, há mistérios no site do Instituto da Atmosfera e do Mar em que aparecem e desaparecem coisas: Há quem fale em mistério no local. Isto não tem mistérios: tem de facto situações extremamente complicadas, extremamente difíceis, mas consegue-se determinar com alguma antecedência aquilo que pode vir a acontecer. Tem havido muitas responsabilidades atribuídas às condições atmosféricas que proporcionaram a dimensão da tragédia. Quanto a essas causas naturais, que leitura faz?Elas não são piores que aquelas que temos tido em determinados momentos dos verões, que são relativamente curtos mas que se vão repetindo ao longo dos anos. Temos condições para propagação extrema de fogo: estávamos de facto com índices de seca, combinados com muitos combustíveis no terreno. Por todas as situações dos índices meteorológicos de risco de incêndios, estávamos numa situação extrema de comportamento do fogo. Mas isso não é novo, temos tido isso e é nessas circunstâncias que 1% dos fogos que nos escapam queimam 80 a 90% da área ardida. Portanto, não tem nada de particular. O que pode ter de particular — e estamos menos habituados a lidar com isso - é com as entradas de trovoadas. Tivemos esta situação em 2003. Tivemos centenas de ocorrências espalhadas quase por dois terços do país provocadas por uma trovoada e, portanto, isso é normal e voltamos a tê-lo, talvez, embora não se tenha a certeza. Como dizia há pouco, nas entradas de trovoada, a previdência diz que é melhor esperar um bocadinho para ver, que é melhor esperar que ela passe para depois poder combater. Relativamente ao comportamento do fogo e estado da vegetação e dos combustíveis mortos seria aquilo a que já estamos habituados durante o período crítico, mesmo nos momentos piores. Diz-se que já foi encontrada a árvore zero, onde terá começado a ignição. Parece-lhe razoável que assim seja?Nós temos de facto alguns agentes da autoridade bastante bem treinados para a determinação dos pontos de início de um foco de incêndio. É difícil, apesar de tudo, depois da ocorrência do incidente determinar se o raio que caiu naquela área foi naquele dia ou se foi há uns meses. Pode ter sido de facto. Quando temos incêndios provocados por inconsciência, por mau uso de fogo e outros de origem criminosa, normalmente começam na proximidade de vias de acesso - vias pedonais, estradas de terra, estradas municipais. No caso dos raios, pode começar em qualquer sítio, portanto, distante de qualquer acesso. Mas a política de fogo é idêntica quer este tenha começado por um raio ou por uma ignição humana. Começou por dizer que houve aqui um falhanço da protecção civil. O que é que poderia ter sido feito perante aquele cenário?Nós não podemos aceitar, como cidadãos, e como próximos das vítimas, ouvir dizer, durante dois dias, que tudo correu bem, que a primeira intervenção correu bem, que o combate alargado correu bem quando estamos há cinco dias com o mesmo incêndio e tivemos 64 mortos. Não correu bem, correu muito mal. Já no ano passado ouvimos dizer que arder floresta era um problema secundário, que o importante era não morrerem pessoas. Portanto, se arde floresta e se morrem pessoas, há muita coisa a correr mal. É mais fácil falar à distância e seria muito mais complicado estar no local — mas o que deveria ter sido feito nesta situação era ter dado toda a atenção à coordenação da protecção civil. Ter uma previsão mínima do comportamento do fogo, para onde é que ele iria, para evitar que as pessoas ali estivessem. Por outro lado, tentar informar ao máximo a população sobre procedimentos a tomar, apesar da falha de comunicações . Mas antes da catástrofe, o que é que poderia ter sido feito, sabendo que seria um fim-de-semana complicado com avisos vermelhos?Os incêndios florestais combatem-se por antecipação e não por reacção e o que temos visto é, frequentemente, atitudes reactivas. Agora vamos evacuar aldeias por tudo e por nada, vamos fechar estradas por tudo e por nada. Isto é cíclico em Portugal: sempre que se comete um erro — um erro entre aspas porque só um inquérito é que o poderá dizer — a seguir exageramos nos procedimentos que estão relacionados com esse erro. O que se poderia ter feito à partida era primeiro ter meios disponíveis e meios facilmente accionáveis nas regiões onde sabíamos que tínhamos o risco maior. Nós sabemos quando temos propensão para incêndios florestais extremos, de comportamento extremo. Tínhamos essa circunstância, portanto devíamos preparar os meios nas zonas em que temos maior risco estrutural de incêndio para mais rapidamente actuar a primeira intervenção porque é aí que muito se joga nestas circunstâncias. Mas a carta de risco estrutural já não é feita uma série de anos. Nós sabemos quais são as áreas de maior risco?Somos um país muito pequenino, quem trabalha com a floresta e quem trabalha com protecção civil relacionada com os incêndios florestais tem obrigação de saber quando o risco estrutural existe. Mesmo na ausência de informação tão actualizada, temos a obrigação de saber onde está o risco. Nós sabemos que este território que está a arder agora ardeu também em 2003. E como pouco foi feito tivemos, durante 14 anos, uma acumulação de combustíveis que estava disponível para arder em quantidades enormes. Quem está nesta área sabe isso, porque este risco não muda todos os dias. Por outro lado, é preciso tentar de facto dar informações às populações que as ajudem a precaverem-se. E nós damos, frequentemente, indicações no sentido contrário. Nós andamos frequentemente à procura da casa que ardeu, da catástrofe. Mas a maior parte das nossas casas em bom estado, habitáveis e com o mínimo de condições, não arde. É claro que, no limite, podemos dizer que todo o material é combustível e é uma questão da intensidade das chamas e do tempo de residência dessa chama na estrutura, mas de uma forma geral elas estão bastante bem protegidas: Nós temos casas em tijolo, em cimento, em pedra, com boas janelas, com estruturas muitas vezes para além das janelas que ajudam a proteger. E muitas vezes a melhor forma de as pessoas se protegerem é estarem dentro de casa, é fecharem a casa toda impedindo que qualquer fagulha entre por uma janela, não ter literalmente nada aberto. As pessoas devem meter-se dentro de casa, preparar água, preparar toalhas molhadas para o caso de o calor começar a ser excessivo a nível dos vidros. Essa é das melhores formas que temos de nos proteger. O que acontece é que com esta insistência na casa ardida muitas pessoas têm medo de estar dentro das próprias casas e acabam por vir cá para fora. Mas ninguém explica isso às populações?Não temos incêndios apenas há um ano, nem há dez, nem há 20. Temos um clima propício à propagação do fogo e, portanto, temos que preparar as pessoas com anos de antecedência para que saibam minimamente de auto-protecção. Há casos de estudo que deveriam ser difundidos: houve um incêndio florestal na Grécia em 2007 que matou 73 pessoas e aldeia de onde elas fugiram para se meterem na morte estava praticamente intacta. Há que educar as pessoas e não mostrar uma casa ardida. Na maioria dos casos — não neste caso que deve ser um dos maiores senão o maior incêndio da Europa de sempre — as casas que aparecem nas notícias eram antigas casas abandonadas, eram casebres de guarda de animais ou de utensílios agrícolas. Raramente vimos uma casa na verdadeira acepção do termo, com condições de habitabilidade, que tivesse ardido. Há quem fale na construção de abrigos. Faz sentido?As nossas casas já são abrigo suficiente desde que não tenhamos situações de mato a entrar pelas portas dentro ou de árvores a rodeá-las completamente. Mesmo nessas circunstâncias, muitas das nossas casas são um meio seguro. O primeiro-ministro fez perguntas a três entidades: o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, à Autoridade Nacional de Protecção Civil e GNR para saber afinal que fenómeno meteorológico aconteceu naquela zona e até que ponto é que pode explicar a tragédia, o que é que aconteceu com as comunicações, em especial a rede SIRESP e que influência é que isso teve no desfecho final e, por fim, porque é que não foi encerrada a nacional 236. São as perguntas certas?Começo pela terceira pergunta para qual também não tenho resposta e que é aquilo que me tem posto mais incrédulo nestes dias. Não estando no local e podendo estar a errar, como é que nós fechamos o IC8, que é a estrada com maior largura, com a maior possibilidade de defesa naquela região, e direccionamos as pessoas para uma estrada situada em plena montanha com seis metros de largura? Espero que o inquérito comece por aí e que seja um inquérito sério. Nós temos que aprender com aquilo que corre bem, mas sobretudo com aquilo que corre mal. A nossa tradição, e acontece muito no âmbito da protecção civil, é não levarmos os inquéritos até ao fim, não os fazemos de forma séria. E porquê? Porque toda a gente acha que quando se fala de um inquérito, estamos à procura de cortar cabeças. Nós temos que procurar ver como é que as instituições funcionam. Ver, e, de facto, estão a funcionar para aquilo que foram criadas; se de facto estão a funcionar para o qual os cidadãos estão a contribuir. Só estudando aquilo que se passou e sobretudo aquilo que corre mal é que nós podemos aprender para o futuro. E quanto ao SIRESP, a rede de comunicações de emergência?É inacreditável! Gastámos cerca de 400 milhões de euros num sistema de comunicação de protecção civil e passados cerca de dez anos continuamos com um sistema que falha, quando os sistemas de comunicação de protecção civil têm recursos alternativos para que nunca falhem ou para que a probabilidade de falhar seja muito baixa. É incompreensível que, com o que investiu o país no sistema de comunicação de protecção civil, aconteçam episódios destes. Liderou durante quatro anos as equipas do Grupo de Análise e Uso do Fogo, que hoje são praticamente inexistentes. Teriam feito diferença?Tenho alguma dificuldade em assumir que alguma coisa conseguisse fazer uma diferença tão grande sendo ela relativamente pequena. Mas temos um sistema de protecção civil que podemos dizer que é extremamente corporativista e sem oposição. E quando digo oposição não é política, é oposição transversal. Este é um sistema que é socialmente muito bem aceite. Exige muito trabalho contestá-lo e propor uma alternativa e qualquer político que se meta a pô-lo em causa vai correr riscos muito sérios. Não é que eu ache que possamos ter mudanças radicais. Não podemos fechar hoje o sistema de protecção civil que temos para ter um outro diferente daqui a seis meses. Isso seria um suicídio. Mas temos que, de facto, ver se este sistema tem sido eficaz. Temos que avaliar para aprender. Temos que ver como é que fazemos prevenção, se essa prevenção é utilizada no combate, como é que é utilizada. Temos que saber para melhorar. Nós não temos falta de meios. Somos dos países, relativamente à sua superfície e área florestal, mais bem equipados em termos de meios terrestres de combate a incêndios florestais. Temos muitos meios, temos muitas pessoas. O que falta é inteligência no sistema estratégico, isto é, ter pessoas que saibam bastante de fogo e que se preocupem em particular com os incêndios florestais e não com a protecção civil. Cada vez que esquecemos o incêndio florestal, nós temos mais situações de problemas de protecção civil. Somos um país com grande interface urbano-florestal, portanto, quando temos situações destas, é claro que a protecção de pessoas e bens é uma prioridade. Mas tem que haver equipas dedicadas a combater, a definir a estratégia, a participar no combate para a extinção do incêndio florestal para pararmos com os problemas de protecção civil. E isso não está a ser feito em Portugal?Não. Na altura do GAUF [Grupo de Análise e Uso do Fogo] achámos que essa experiência poderia tentar introduzir um novo conceito, que é este da inteligência, da racionalidade, da estratégia. E esperávamos que ele tivesse um efeito tipo mancha de óleo. Não tenho a veleidade de pretender que um grupo de 20 pessoas iria fazer a diferença nesta situação [em Pedrógão Grande]. Mas atendendo às condições meteorológicas que se avizinhavam, o que teria de ter sido dito é "meus senhores, neste momento, vamos pensar o que se vai fazer quando o fogo for combatível porque, nesta fase, o melhor é salvaguardar a segurança de todas as pessoas, em particular dos combatentes". Portanto, não iríamos conseguir apagar o incêndio. Poderíamos talvez contribuir para que fosse extinto numa outra fase, num período mais curto, mas é difícil dizer. Defende uma estrutura única de prevenção e combate?Quem define a estratégia de governação do país é que terá que decidir isso, com apoio técnico. De qualquer forma, sem ligação entre prevenção e combate não peçam aos privados para investir em prevenção. Se eu fizer prevenção e se tiver a noção ou a experiência de que a prevenção que eu fiz não é utilizada pelas forças de combate para extinguir o incêndio, eu deixo de a fazer. A prevenção é normalmente não produtiva. Mas temos outras alternativas de prevenção que temos utilizado muito pouco, como atribuir mais valor à prevenção produtiva e não produtiva, às pessoas que utilizam os espaços florestais, tentar ter melhores acções de gestão de produtos florestais, tendo essas pessoas a responsabilidade de também fazer alguma gestão de combustíveis e vigilância. Os resineiros estão presentes durante todo o período crítico na floresta e são os melhores vigilantes que nós temos. E custam-nos zero, pois estão a trabalhar. São os que melhor conhecem esses espaços. Temos que ter uma interligação entre as pessoas que trabalham nos espaços florestais, que fazem prevenção e, obrigatoriamente, aqueles que fazem o combate, e utilizar este conhecimento, utilizar os investimentos que foram feitos na prevenção estrutural, senão não vale a pena fazer prevenção. Todos os nossos princípios da prevenção estão desenhados para apoio ao combate, não estão desenhados para apagar incêndios de forma passiva. Diz que são conhecidos os locais em Portugal que oferecem mais risco. Quais são as zonas que diria que é urgente manter debaixo de olho?Toda esta zona do pinhal. Se olharmos para a cartografia de incêndios de Portugal sabemos quais são as zonas para manter debaixo de olho. Porquê? Porque as zonas que não ardem há mais de dez anos e que não têm gestão florestal têm grandes cargas de combustível. Nós temos a particularidade de termos um clima mediterrânico com influência atlântica, o que para o comportamento do fogo é terrível porque temos muita precipitação durante todo o período de Inverno/Primavera/Outono, o que leva a um desenvolvimento de vegetação excepcional, e depois temos um Verão extremamente seco como qualquer país da bacia mediterrânica. É claro que há espécies mais resilientes que outras, que propiciam povoamentos com menor combustibilidade mas, na generalidade, podemos dizer que todas as nossas espécies ardem quando temos episódios meteorológicos destes, que são recorrentes. Faz parte do nosso clima. Mais importante que as espécies é saber se temos gestão florestal. Onde há, uma das prioridades dos investidores é diminuir o risco de incêndio, fazer investimentos para isso. Quando não há e tudo está ao abandono, o combustível vai-se acumulando normalmente e chega a cargas de 40, 50, 60 toneladas de matéria seca por hectare com muita facilidade. Que zonas são essas?A zona Centro em particular, onde estamos a ter agora este problema. E isto estende-se até à fronteira. As zonas que arderam nos anos de 2003, 2005 e que depois disso não voltaram a arder, são todas as zonas onde temos que ter muita atenção porque podemos ter incêndios destes, muito difíceis de extinguir depois de falhada a primeira intervenção. O ano de 2003 foi o ano da grande catástrofe de incêndios neste país, 2005 também, 2010, depois e a cada ano de catástrofes sucedem-se livros brancos, comissões de inquérito, relatórios, estudos, grupos de trabalho, etc. Que lições é que podemos tirar de Pedrógão Grande e dos outros concelhos que estão em sobressalto por estes dias. Em relação ao sistema que está montado, enraizou-se a ideia da época de incêndios dividida em fases e temos um dispositivo de combate que não tem sofrido grandes alterações. É preciso actualizar tudo isto?Estamos ultrapassados. Ficámos logo ultrapassados em 2006, quando fizemos um plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios e o tivemos que o cortar à tesourada, se calhar naquilo que ele tinha de mais importante, para que ele pudesse ser aprovado a nível ministerial e da Assembleia da República. A maior parte dos problemas foram identificados nesse período, depois do que aconteceu em 2003 e 2005, e foram trabalhados. Perspectivava-se não uma evolução mas uma transformação da nossa protecção civil. Sem essa transformação vamos ter este problema repetido vezes e vezes sem conta. Temos incêndios florestais todos os anos, excepto quando o São Pedro nos ajuda e manda uma chuva de 20 ou 30 milímetros, uma vez por mês durante o Verão. Os incêndios repetem-se e nós não evoluímos no combate alargado. Evoluímos bastante depois de 2005 na primeira intervenção, mas no combate alargado não evoluímos por falta de estratégia, de conhecimento. As protecções civis têm que funcionar com mérito, formação e mérito, e é isso que tem que dar hierarquia de especialização. Não é com corporativismos, não é com divisão de cargos entre instituições com força. Os acontecimentos de 2003/2005 permitiram ter essa visão, e a partir de 2005 trabalhou-se nesse Plano Nacional de Defesa contra Incêndios. Propunha-se uma transformação gradual da protecção civil e essa parte do plano ficou escondida, nunca foi publicada. Teve de ser amputada para vir para um formato de evolução que acabou por acontecer nalgumas áreas, mas muito pouco. A minha opinião, que é também a de muitas das pessoas que têm estado envolvidas durante alguns anos nestes assuntos, é que nós vamos ter que ter duas forças operacionais distintas nos incêndios: uma para servir exclusivamente a protecção de pessoas e bens e outra que se dedique exclusivamente à protecção do espaço florestal. O que os GAUF faziam era isso, não tinham formação, não tinham conhecimento nem capacidade para defender pessoas e bens, aquilo que faziam era tentar contribuir para que o incêndio florestal se apagasse o mais rapidamente possível, nas melhores condições possíveis, que houvesse menos pessoas e bens em perigo. Temos que aprender com o passado, mas temos que encará-lo de forma séria. Esperemos que aquilo que aconteceu este ano sirva para mudar alguma coisa, embora confesse que não tenho muita esperança porque já vi muitas coisas e muitas vezes andamos mais para trás do que para a frente. Não podem ter morrido 64 pessoas nestas circunstâncias, não podem ter morrido os operacionais bombeiros que morreram em 2013 também, em circunstâncias algumas delas incríveis de estratégia de combate e de indicações para as pessoas que estão a fazer o combate, e tudo passar incólume, não acontecer nada, não haver uma grande transformação. Na perspectiva que nos impuseram em 2006 para o plano de evolução da protecção civil, nós não vamos conseguir resolver o problema e vamos ter mais situações destas. Aliás, já poderíamos ter tido mais situações destas, felizmente elas não aconteceram. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No início desta conversa disse que essa mudança era politicamente difícil. Porquê?Politicamente difícil e mesmo socialmente difícil de explicar. O nosso sistema está institucionalizado desde há muitos anos, manipulado nalguns casos por algumas pessoas que aparecem constantemente no fio dos anos, para promover determinados corporativismos. Lutar contra isso é logo socialmente e politicamente extremamente difícil. E há ainda outra dificuldade: é também tecnicamente difícil. Quem, em termos políticos, quiser pegar nisto, e quando falo de políticos falo de governantes, tem que ter uma estratégia muito bem delineada para que estas mudanças, esta transformação, seja progressiva e seja eficaz. Não é fácil alguém impor-se a este sistema.
REFERÊNCIAS:
Entidades GNR
Está a começar a revolução do pão em Portugal
Há quem semeie trigos antigos como o barbela, há quem aposte na recuperação de moinhos tradicionais, há cada vez mais gente a aprender o ofício de padeiro e interessada nas formas artesanais de fazer pão, com leveduras naturais e fermentações longas. Alguma coisa está a mudar no pão em Portugal. (...)

Está a começar a revolução do pão em Portugal
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há quem semeie trigos antigos como o barbela, há quem aposte na recuperação de moinhos tradicionais, há cada vez mais gente a aprender o ofício de padeiro e interessada nas formas artesanais de fazer pão, com leveduras naturais e fermentações longas. Alguma coisa está a mudar no pão em Portugal.
TEXTO: João Vieira chega a casa de Adolfo Henriques, na Maçussa, perto do Cartaxo, trazendo na mão duas espigas de trigo. “Repare”, diz, exibindo uma delas, “este é um trigo moderno, modificado, veja a espiga, a diferença que é o resultado da manipulação”. É uma espiga compacta, de bagos cerrados. De seguida, João Vieira exibe outra de bagos mais abertos. “Este é um trigo antigo, o trigo barbela, que tem menos bagos numa mesma espiga, mas traz mais nutrientes e é muito rico em óleos naturais. ”“Há 15 anos que trabalho nisto de forma solitária”, desabafa o agricultor do Cadaval. Mas agora começa a ver sinais daquilo que espera ser uma revolução na forma de os portugueses olharem para os cereais que usam para fazer pão. Estamos na Maçussa precisamente porque Adolfo Henriques, produtor de vinho e queijo de cabra, entre outras coisas, ouviu falar do trigo barbela e decidiu começar a fazer pão com ele. Mas não foi só Adolfo. O trigo barbela de João Vieira já está à venda naquela que é, neste momento, a padaria mais falada de Lisboa: a Gleba, onde Diogo Amorim, de 21 anos, está a tentar recuperar cereais antigos cuja moagem é feita na própria padaria. Para todos eles, isto é uma aprendizagem. “Nunca tinha feito pão com trigo barbela e a primeira vez que comecei a amassar a farinha começou a largar óleo, a agarrar-se às mãos e a ficar escura”, conta Adolfo. “Lembro-me de, quando era miúdo, haver os pães escuros que eram feitos com estas farinhas. E quando o mostrei a uma senhora minha conhecida ela chorou e disse-me: ‘Fui criada com este pão há 60 anos’. ”Mas tanto o pão como o trigo com que era feito tinham desaparecido, abalroados pelos trigos modernos, muito mais produtivos. “Ainda estamos a perceber a produtividade que este trigo dá aqui nos meus terrenos, onde semeei três hectares. Não temos histórico. Mas aqui o amigo João sabe que são baixas produções”, explica Adolfo. João conhece bem o seu trigo. Era uma das mais de 30 variedades que o pai e o avô semeavam nesta região onde dava belas searas, altas, e que continua a ser semeado, em parcelas mais pequenas, por alguns agricultores em Trás-os-Montes. “É um trigo excepcional para o nosso país, onde não abundam terras férteis para o trigo nem a chuva. Tem a vantagem de resistir bem às alterações climáticas e à seca e produz bem seja no Norte, no Sul ou no Centro. E tem um sistema radicular em profundidade, o que significa que vai buscar os nutrientes à terra em profundidade, enquanto os trigos modificados têm um sistema radicular de superfície. ”A certa altura da sua vida, João percebeu que o trigo que conhecia da sua infância, trazido para Portugal pelos árabes no século VIII (e a que alguns também chamam “o morto-vivo” por se pensar que estava extinto), estava condenado a desaparecer. A partir de 1994, conta, foi definido um preço mundial para os cereais, acertado por baixo, e o valor do trigo sofreu uma queda abrupta. “É uma loucura um preço mundial. Claro que não podemos produzir em Portugal pelo mesmo preço que se pratica em França, na Ucrânia ou na Argentina. ” Mas, garante, podemos ainda recuperar variedades como o barbela e aproveitar terrenos pouco valorizados para o semear. “Sou do norte da serra do Montejunto, onde temos terrenos diferentes dos da Maçussa, são arenosos e estão hoje plantados com eucaliptos, mas são terrenos onde este trigo se adapta muito bem. ”Olha, encantado para a espiga de barbela. “Conservei este trigo e dediquei 15 anos a multiplicar esta semente. Foi uma tomada de consciência. ” Faz um sorriso irónico. “A indústria não quer saber deste trigo, diz que dá uma farinha fraca. Uma farinha é fraca porque não tem glúten [o trigo barbela tem glúten mas segundo João Vieira tem menor quantidade do que os trigos modernos]. É altamente nutritiva mas não dá o rendimento que eles querem. ”Deixemos, para já a Maçussa, onde Adolfo nos dá a provar o pão que resulta das experiências que anda a fazer há seis meses, e passemos para outro cenário: a escola da Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal. Se está a acontecer uma revolução no pão em Portugal, ela passa também, sem dúvida, por este homem de barbas e cabelos longos, apanhados num rabo-de-cavalo, que dá aulas de panificação a um grupo de actuais e futuros padeiros: Mário Rolando. Hoje, Mário Rolando trouxe um convidado, o panificador e moleiro da região de Setúbal Luís Rocha, que veio falar de moagem tradicional. Encontramo-nos algum tempo antes num café para ouvir a história de como moinhos e moleiros foram morrendo lentamente. “O meu pai viveu sempre na pobreza da agricultura, sempre debaixo de muito trabalho. Foi agricultor, canteiro, moleiro e mais tarde padeiro. ” No início, era sobretudo canteiro, nos anos 1950, quando cidades como Lisboa e Setúbal estavam a crescer e precisavam de pedra. E na pedreira faziam-se também as mós para os moinhos. O avô de Luís morreu jovem e o pai, que “tinha 14 anitos mas era o único homem da família”, começou a cultivar as terras e a moer o trigo no moinho, onde recebia cereais de outras pessoas, que pagavam ao moleiro em género. Um dia construíram uma escola junto ao moinho de vento que o pai comprara e este deixou de ter vento – foi preciso pôr-lhe um motor. Mas, ainda antes de lhes tirarem o vento, veio a década de 80, fatal para o negócio. “Começa a escassear o cereal, depois do 25 de Abril as pessoas entenderam que não era preciso cultivá-lo e houve só meia dúzia de resistentes, como o meu pai. Durante os governos de Cavaco Silva, mandaram encerrar os celeiros, os resistentes deixam de ter onde vender o cereal e começa a haver muito trigo importado. ”Os pequenos agricultores, que já não podiam ir ao vizinho que tinha um moinho e pagar-lhe o trabalho em espécie, ficaram dependentes dos grandes moageiros. “Tinham uma trabalheira dos diabos até conseguirem uma seara mais ou menos e tinham de deixar tudo para os animais porque queriam vender a 20 cêntimos o quilo e o moageiro só oferecia dez. E assim foi acabando a agricultura manual. ”Hoje, afirma Luís Rocha, que mantém o seu moinho “por gosto”, “o panorama dos moinhos de vento está obsoleto, a moagem só é feita em grandes quantidades”. “Há um resistente ou outro, como é o meu caso, quando tenho vento de norte ou de oeste, vou lá e faço a farinha. ” A boa notícia é que entre os tais resistentes começam também a aparecer jovens como Fátima Nunes, que recuperou o Moinho do Boneco, na Moita dos Ferreiros, próximo da Lourinhã. Quem nos fala dela é João Vieira, que tínhamos deixado há pouco na Maçussa. Voltemos lá por um minuto para o ouvir. “É uma jovem moleira, a Fátima. Um dia fui lá e disse-lhe: ‘Usa este trigo, para não o perdermos, e faz com que outros o semeiem também. ’ E ela disse-me: ‘Afinal, tínhamos ouro e deitámo-lo fora. ’ Ela pica a mó e sabe toda a história de como a moagem chegou até nós através dos persas e de como os portugueses usaram os seus conhecimentos de navegação na construção das velas dos moinhos. ”De volta à conversa com Luís Rocha, que está a explicar o que faz a diferença entre um moinho de aço e as mós de pedra. “A qualidade não tem nada a ver. Nos moinhos de aço o cereal aquece muito e na mó a farinha sai a uma temperatura quase natural, uns 12, 13 graus, enquanto na moagem industrial pode atingir os 30 graus, o que faz com que perca logo ali o sabor. ”No seu moinho faz uma farinha 110, “mais grossa, mais amarelinha”, que preserva mais o cereal. Mas, lamenta, “as pessoas querem a farinha cor de neve, não querem as vitaminas nem o sabor nem as fibras”. E conclui: “Quando tenho farinha de moinho e faço pão, aquele cheirinho do pão a cozer é imbatível. ”“Os rótulos são cada vez mais difíceis de perceber. E o pão das multinacionais anuncia-se como ‘rústico’, ‘dos nossos avós’, ‘da aldeia’, ‘da Idade Média’, mas se lermos no rótulo mais do que quatro ingredientes, alguma coisa não está certaNa aula de Mário Rolando, Luís Rocha vai falar do funcionamento dos moinhos, das diferentes mós, da forma certa de as picar. E a ouvi-lo atentamente estão vários alunos, entre os quais, José Miguel Leitão, padeiro de Cabeço de Montachique, onde a família tem uma padaria desde 1912. “Sou a quarta geração”, diz, orgulhoso. Sabe fazer pão, claro, mas está neste curso porque se apercebeu de que alguma coisa não estava bem na forma como nas últimas décadas se anda a fazer pão em Portugal. “Nos últimos 60 anos, com o aparecimento da levedura industrial, houve uma alteração grande no modo de fabrico do pão nas padarias tradicionais”, explica. “O padeiro ganhou qualidade de vida. Antes, o processo levava pelo menos 12 horas desde que se começava a amassar, a tender, etc. Hoje é tudo mais rápido. ” Mas isso teve custos. O problema, acredita, é que “começou a haver uma promiscuidade entre a indústria de panificação e os padeiros mais pequenos”. Perante a ofensiva da indústria, com preços muito baixos, os padeiros tradicionais só tinham duas alternativas para sobreviver: baixar a qualidade da matéria-prima ou aumentar a produção. “Assistimos aos artesãos a entrar no mercado da grande indústria e vice-versa”, ou seja, nas grandes superfícies começou a ver-se cada vez mais pães “artesanais”. Em 2007, o mercado da padaria entrou em crise. “A Associação dos Padeiros disse que tínhamos de aumentar os preços 20 a 30% e as grandes superfícies tinham um anúncio a dizer: ‘Nós não vamos aumentar o preço do pão’. ” José Miguel começou a ver que o caminho tinha de ser outro. Nunca uma pequena padaria como a sua poderia concorrer com a indústria que “esmaga completamente os preços”. E percebeu uma coisa: “Nós, os pequenos, temos de entrar pelos nichos de mercado e oferecer muito melhor qualidade. Para nós, é muito mais fácil do que para a indústria montar um processo de produção de 24 horas para o pão. ”Decidiu, por isso, vir aprender com Mário Rolando a fazer um bom pão artesanal e já identificou um fornecedor para a farinha de moleiro, que “dá muito mais sabor e um aroma completamente diferente”. “Percebi que estava a perder algum mercado por não ter um pão mais tradicional. ” Confessa, contudo, o receio de que muitos dos clientes ainda não distingam entre um pão industrial e um artesanal, não valorizem as fermentações longas ou a diferença de sabor e se deixem guiar apenas pelo preço. “Na nossa padaria, andamos a fazer experiências e vamos lançar em breve este tipo de pão. ” A forma como é feito, as leveduras selvagens, a fermentação, dá-lhe uma leve acidez característica. “Essa acidez retém a água e não deixa que os bolores se desenvolvam, por isso é, naturalmente, um pão que dura uma semana sem problemas. ”Inevitavelmente, o preço será um pouco mais elevado, “um acréscimo de 20 a 30%”, mas garante que as pessoas que já provaram o pão gostaram muito e começaram a perguntar quando vão poder comprá-lo. “Acho que este é o caminho certo para os padeiros nacionais – mesmo pelo bom nome da panificação nacional. ”É também esse o objectivo de Mário Rolando, que viu o sector da panificação ir por um caminho com o qual não concorda e que quer dar aos seus alunos os instrumentos necessários para uma via alternativa. “Muitos deixaram-se ir na onda das multinacionais, mão-de-obra cada vez mais barata, produtos já preparados a que é só juntar água, facilitadores do trabalho, que deixa de ser um trabalho qualificado. Arranja-se três pessoas a quem se paga o ordenado mínimo e põe-se-lhes nas mãos um mix de pão alemão, um de broa de Avintes e outro de broa de milho e, se souberem ler, lêem a receita que está no saco e qualquer um deles faz aquilo. ”Décadas de um ensino de panificação baseado nestas técnicas resultou, diz, num cenário em que “todos os padeiros e pasteleiros para massas lêvedas de pastelaria que se formaram nos últimos anos fazem pão e bolos lêvedos da maneira mais fácil, com melhorantes, aditivos e mixes”. Mário aprendeu também tudo isto, mas o que fez foi “voltar atrás”, às formas antigas de fazer pão, com massa-mãe, fermentações longas e farinhas o menos tratadas possível. E, de repente, começou a perceber que há uma série de gente, desde padeiros como José Miguel Leitão a pessoas que deixaram empregos em áreas completamente diferentes, de economistas a arquitectos, designers ou engenheiros informáticos, que se inscrevem no seu curso para aprender a fazer pão. “Muita gente está a fugir para esta área que acolhe todos e não tem regras nenhumas. ”Está muito satisfeito com os resultados. “Tenho aberto a disponibilidade emocional e de conhecimento das pessoas que querem aprender padaria e pastelaria e tenho tido sucesso porque vários delas, mais cedo ou mais tarde, estão a preparar-se para abrir padarias em Lisboa ou no Porto. ” Orgulha-se de passar a mensagem de que “a comida pode dar-nos mais ou menos anos de vida” e por isso é preciso ter com ela um cuidado que muitas vezes nos esquecemos de ter. É verdade que há cada vez mais informação disponível para os consumidores, mas nem sempre isso tem os resultados desejáveis. “Os rótulos são cada vez mais difíceis de perceber. E o pão das multinacionais anuncia-se como ‘rústico’, ‘dos nossos avós’, ‘da aldeia’, ‘da Idade Média’, mas se lermos o rótulo e virmos que estão lá mais do que quatro ingredientes, temos de perceber que alguma coisa não está certa. E ou queremos ou não queremos”, conclui Mário. Luís Rocha, o moleiro/padeiro, preocupa-se com a dependência que Portugal tem do estrangeiro no que diz respeito aos cereais. “Se por algum motivo nos fecharem a porta, morremos todos à fome. ” Na Maçussa, João Vieira diz a mesma coisa: “Se há uma ruptura no fluxo de abastecimento, só temos pão para dez dias. Quem decide decidiu que se importava porque era mais barato e com esta decisão perdemos as nossas sementes. A minha opinião é que, se é verdade que nunca seremos auto-suficientes, devemos mesmo assim produzir o máximo que pudermos. ”Sabe que o trigo barbela percorrerá sempre um caminho paralelo ao dos trigos importados e aditivados, mas está convencido de que, com as preocupações com a saúde – e sobretudo com o aumento da intolerância ao glúten –, haverá cada vez mais gente interessada neste nicho. “Entendo isto como uma forma de resistência porque estamos numa situação muito delicada em termos de abastecimento. ” E continua: “As sementes também significam liberdade. Se não tiver o meu trigo, tenho de comprar a semente que não está adaptada ao nosso território e pela qual me pedem os olhos da cara. E hoje estamos a falar de oligopólios de sementes, uma situação muito complicada. ”Na sua padaria de Alcântara, Diogo Amorim já está a vender o pão com o trigo barbela. Na Maçussa, Adolfo continua as experiências com a farinha e em breve verá no seu terreno uma seara lindíssima e terá já colhido barbela suficiente para fazer pão em quantidades muito maiores. Quem passar pelo moinho do Outeiro, na Azóia, poderá um dia encontrar lá Luís Rocha a fazer farinha ou apenas a pensar: “Abro as velas e fico lá deslumbrado. ”Ou quem for ao Moinho do Boneco poderá ouvir Fátima contar histórias dos moinhos de Portugal e defender a importância de os preservar. Em breve, o pão de Mário Rolando estará nas padarias que Vítor Sobral (Tasca da Esquina) planeia abrir. E, na padaria de José Miguel Leitão, em Cabeço de Montachique, está quase a vender-se o pão feito como antigamente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há sinais de que alguma coisa começa a mudar no mundo do pão em Portugal. “Estamos a dar os primeiros passos”, diz João Vieira. “Em Trás-os-Montes, estão só à espera de um sinal. Se eu disser semeiem porque há hipóteses de ter um preço remunerador, eles vão semear e pode-se satisfazer a eventual procura que venha a haver. Eu vou resistindo e vai aparecendo quem agarre. Eu não desisto, de qualquer maneira. ” “Estamos a ser pioneiros”, acrescenta Adolfo Henriques. “Esta que aqui estamos a contar é a história do ressurgimento do barbela”. Artigo actualizado a 23 de Maio: foi acrescentada uma frase que esclarece sobre a presença de glúten no trigo barbela
REFERÊNCIAS:
Portugal perde um milhão de turistas por ano por causa de aeroporto de Lisboa
Presidente da Confederação do Turismo de Portugal, Francisco Calheiros, diz que todos os dias estão a ser recusados novos voos por falta de capacidade da infraestrutura aeroportuária (...)

Portugal perde um milhão de turistas por ano por causa de aeroporto de Lisboa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.3
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Presidente da Confederação do Turismo de Portugal, Francisco Calheiros, diz que todos os dias estão a ser recusados novos voos por falta de capacidade da infraestrutura aeroportuária
TEXTO: Se tudo avançar como o previsto, a base aérea do Montijo passará a funcionar como pista complementar ao aeroporto da Portela em 2022. “Ainda faltam quatro anos”, como nota o presidente da Confederação do Turismo de Portugal (CTP), Francisco Calheiros, e, entretanto, a principal porta de entrada do turismo no país (responsável por 90% das chegadas a território nacional) já está “entupida”. Em entrevista na rubrica Conversa Capital, do Jornal de Negócios e Antena 1, Francisco Calheiros estima que Portugal esteja a perder à volta de um milhão de turistas por ano por causa da falta de capacidade da Portela, e o facto de estarem a ser recusados a chegada de voos todos os dias por falta de “slots” (vagas para movimentação de aviões). “Sabendo o que cada turista gasta e a transversalidade do turismo, imagine o impacto que [este constrangimento] tem”, afirma. O presidente da CTP diz que o aeroporto é uma “pedra no sapato” no país e afirma que Portugal não tem mais tempo a perder com indecisões. Calheiros mostra mesmo a sua intranquilidade face às decisões que ainda falta tomar: “Se amanhã se vier a descobrir que determinadas aves podem ficar prejudicadas pelo barulho dos aviões ainda vamos fazer mais um estudo de um ano. Isto não é possível”, afirma. Os argumentos do presidente da Confederação de Turismo de Portugal para justificar a urgência nas decisões vão todos para o crescimento “inesperado” que o turismo tem protagonizado nos últimos cinco a seis anos. “De 2002 para 2009 passou-se de 34 para 36 milhões de dormidas. De 2009 para 2017 passou de 36 para 59 milhões. Isto é incomportável, são mais 20 milhões”, contabiliza. Apesar de reconhecer que o país não conseguirá manter taxas de crescimento a dois dígitos durante dez anos, e recordando que já começou a haver arrefecimento nessas taxas, a verdade é que Calheiros ainda acha que Portugal vai continuar a crescer nos próximos tempos e repara que a sazonalidade está cada vez mais esbatida. O turismo em Portugal só tem um problema e ele está identificado, "os ingleses e o Brexit", mas há outros mercados emissores que estão a compensar as quebras. Calheiros deixou ainda um outro aviso: só o dia em que vir caterpillars a trabalhar no Montijo é que vai acreditar nas obras, mas isso não significa que vai desde logo ficar satisfeito. "No dia em que tivermos o Montijo em obras, vai ouvir a CTP falar num novo aeroporto, logo. Não nos esqueçamos: o Montijo não é o novo aeroporto, é a expansão da Portela".
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Palavras-chave estudo aves
Especialistas apoiam investigação na edição de genes mas impõem limites
Um grupo internacional de 11 organizações da área da investigação e aconselhamento genético emitiram uma declaração sobre a edição de genes em linhas germinais humanas. (...)

Especialistas apoiam investigação na edição de genes mas impõem limites
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-08-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um grupo internacional de 11 organizações da área da investigação e aconselhamento genético emitiram uma declaração sobre a edição de genes em linhas germinais humanas.
TEXTO: Os especialistas em genética não vêem razões para proibir a investigação da edição genética em linhas humanas germinais (ovócitos e espermatozóides), num ambiente in vitro, mas consideram “inapropriado” avançar com projectos que culminem numa gravidez. A tomada de posição foi publicada esta quinta-feira na revista The American Journal of Human Genetis e é subscrita por 11 organizações que representam especialistas na área da genética em várias regiões do mundo e também a nível internacional. A declaração é da autoria conjunta da Sociedade Americana de Genética Humana (ASHG), da Associação de Enfermeiros e Conselheiros Genéticas, da Associação Canadiana de Conselheiros Genéticos, da Sociedade Internacional de Epidemiologia Genética e da Sociedade Nacional de Conselheiros Genéticos dos EUA. Também foi aprovado pela Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, a Sociedade Ásia-Pacífico de Genética Humana, a Sociedade Britânica de Medicina Genética, a Sociedade de Genética Humana da Australásia (região que inclui Austrália, a Nova Zelândia, a Nova Guiné e algumas ilhas da parte oriental da Indonésia), a Sociedade Profissional de Conselheiros Genéticos na Ásia e a Sociedade da África Austral para a Genética Humana. "O nosso grupo de trabalho sobre a edição do genoma incluiu especialistas em vários campos da genética humana, bem como de países com diferentes sistemas de saúde e infra-estruturas de investigação", refere Kelly E. Ormond, professora de genética na Universidade de Stanford (EUA) e principal autora da declaração, num comunicado sobre o artigo. "Tendo em conta esta diversidade de perspectivas, sentimo-nos encorajados com o acordo que alcançámos e esperamos que represente a solidez e aceitação das nossas recomendações. ”A CRISPR/Cas9 começou a ser testada recentemente como uma técnica de edição de genomas. Este sistema que permite mexer no ADN num jogo de “corta e cola” genes pode vir a significar avanços sem precedentes no tratamento de doenças mas também levanta uma série de preocupações éticas. O receio de acabarmos por “fabricar” seres humanos feitos à medida é apenas uma das inquietações de muitos cientistas e outros especialistas. A CRISPR chegou com a promessa de ser uma forma muito precisa, fácil e rápida de alterar genes. Há uma proteína que age como uma tesoura e corta o ADN, e há uma molécula de ARN que guia a tesoura para qualquer ponto do genoma que quisermos. Nos últimos anos a técnica tem sido mais testada em células estaminais e em animais (ratos, ratinhos e macacos). Mas também já foi experimentada em embriões humanos. Aliás, esta quinta-feira a revista Nature publica um artigo sobre um trabalho liderado por cientistas nos EUA que permitiu corrigir, em embriões humanos, uma mutação num gene que está associada a uma doença hereditária cardíaca. Apesar do sucesso da experiência, os embriões usados foram sido destruídos após alguns dias de desenvolvimento. Não é (para já) conhecido qualquer projecto que tenha sido autorizado a fazer uma transferência de embriões geneticamente editados para o útero de uma mulher para uma eventual gravidez. "Embora a edição do genoma da linha germinal possa, teoricamente, ser usada para evitar que uma criança nasça com uma doença genética, o seu eventual uso também levanta muitas questões científicas, éticas e políticas. Essas questões não podem ser respondidas apenas por cientistas, mas também têm de ser debatidas pela sociedade ", refere Derek Scholes, director de política científica na ASHG. Assim, o documento assinada por 11 associações que representa várias áreas da genética estabelece que “neste momento, não é apropriado realizar experiências de edição de genes da linha germinal que culminem na gravidez humana”. Por outro lado, acrescentam, também “não há motivos para proibir a investigação de edição do genoma germinal in vitro (fora de um organismo vivo), com supervisão e consentimento apropriados, ou para proibir o financiamento público destes projectos”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Além destas duas orientações principais, os especialistas recomendam a todos os cientistas que, antes de qualquer aplicação clínica futura desta técnica, assegurem que existe “uma lógica médica convincente para usar essa abordagem, provas que apoiem o uso clínico, uma justificação ética e um processo transparente e público para solicitar e incorporar a participação dos interessados”. Em Fevereiro deste ano, foi divulgado também o relatório da Academia Nacional das Ciências e da Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos que consideraram que os avanços científicos trazidos pela edição de genes em células humanas reprodutivas são “uma possibilidade realista que merece ser considerada a sério”. Estes especialistas defenderam que os ensaios clínicos para edição da linha humana germinal podem ser permitidos – “mas apenas em quadros [clínicos] graves sob supervisão rigorosa”. Esta foi uma posição mais branda se compararmos com a declaração feita em Dezembro de 2015 por cientistas e especialistas em ética, reunidos numa conferência internacional na cidade de Washington, na sede da Academia Nacional das Ciências norte-americana, quando consideraram que seria “irresponsável” usar a tecnologia de edição de genes em embriões humanos para fins terapêuticos, como a correcção de doenças genéticas, enquanto as questões de segurança e de eficácia não estivessem resolvidas.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Calvão Presunção e Água Benta da Silva: Um ministro enviado por Deus
Um caprichoso criador resolveu inundar de mistérios a política nacional. Com uma fúria demoníaca para a qual não havia seguro. Ninguém pôs de lado um pé-de--meia para cobrir tanto disparate. As frases diluvianas do beato apocalíptico que tomou conta da Administração Interna trazem água no bico? (...)

Calvão Presunção e Água Benta da Silva: Um ministro enviado por Deus
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um caprichoso criador resolveu inundar de mistérios a política nacional. Com uma fúria demoníaca para a qual não havia seguro. Ninguém pôs de lado um pé-de--meia para cobrir tanto disparate. As frases diluvianas do beato apocalíptico que tomou conta da Administração Interna trazem água no bico?
TEXTO: Deus nem sempre é amigo, mas o amigo Relvas pode facilitar as coisas. Foi nos dias a seguir às eleições, quando se percebeu que a esquerda portuguesa não se rendera e estava disposta a mostrar ao mundo, mais uma vez, que a sua ideia de unidade é todos a discutirem. Mas os guardiões do templo PàF, os sumo-sacerdotes da “não há alternativa”, moveram-se e um deles encontrou a saída genial para a perda de maioria absoluta. Em S. Bento, Pedro Passos Coelho abriu a porta do gabinete a Miguel Relvas, que entrou de pastinha. — Ora cá estamos nós…— Miguel, não te posso fazer ministro outra vez. — Nem ia invocar uma coisa dessas em vão. Sabes que o espírito de entreajuda e solidariedade é o bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade — comum idade? É natural, pois, que um amigo possa e tenha gosto em dar conselhos ou informações a outro amigo. — Não estou a perceber, Miguel. Ou será que estou?. . . — Encara isto que vou fazer como uma liberalidade, um presente. — Tenho a impressão, ou melhor, parece-me, no sentido de “dar um parecer”, que me vais vender uma ideia maluca. — Bravo, por isso é que tu tens um curso e eu é o que se sabe… Precisas de uma grande figura idónea no teu governo. Alguém na Administração Interna que, enfim, construa um dique comunicacional entre ti e esses socialistas, bloquistas e comunistas sequiosos de poder que te querem afogar com a sua maioria de deputados. — Por que é estás a falar dessa maneira?— Sei lá. Só Deus sabe, aliás. Deu-me para isto, com as chuvas. Talvez venha a fazer sentido, em breve. — Olha lá, não estás mesmo a vender-me esse cromo do Calvão da Silva, o que assinou o atestado de idoneidade do Ricardo Salgado?— Foi só uma prenda de 14 milhões de um construtor civil, uma liberalidade de amigo. Esse Calvão da Silva tem um percurso impressionante. Do Mosteiro de Singeverga para o topo da Academia de Direito de Coimbra! — Que Deus nos proteja. — Uma infância de caldos pobres com chouriço em Trás-os-Montes e passarinhos do campo. Olha como o descreveram na página do Colégio de Lamego quando ele lá voltou para falar aos novos alunos: “Durante o encontro nunca puxou dos seus distintíssimos galões académicos, nem do sucesso da sua vida política em part-time. Aguentou o mesmo nível das grandes figuras dos ex-alunos que por aqui têm passado, fasquia já tão elevada, impossível de ser ultrapassada, porque os que por aqui passaram atingiram o brilho da Lua. ”— Vai gozar com outro. — Isto é que é empreendedorismo e ascensão social. Dá-lhe uma oportunidade. Ele está ali fora a rezar o terço, de joelhos. Merece esta bem-aventurança. — Bom, chama-o lá. Mas falo com ele a sós. Miguel Relvas saiu e entrou um homem magro de fato e gravata, hirto como um bastão cardinalício com cabelo de risco ao lado. — Caro Calvão da Silva…— Professor Doutor Calvão da Silva, se não se importa, senhor primeiro-ministro. — Muito bem. Então acha que pode ser ministro da Administração Interna?— Os sinais acumulam-se. — Mas eu ainda não disse nada!— Não é o senhor primeiro-ministro, é o Senhor Deus do Céu. “E era Noé da idade de seiscentos anos, quando o dilúvio das águas veio sobre a Terra. ” E os animais entraram de dois em dois para junto de Noé na arca, macho e fêmea, como Deus ordenara a Noé. Percebeu?— O que é que isso tem a ver?— Eles tinham seguro. Já o mesmo não se pode dizer dos egípcios, anos depois. Deus nem sempre é amigo, caros egípcios, entreguem-se a Deus! A Câmara Municipal do Cairo, responsável pelo turismo, não abriu as comportas do Mar Vermelho, mas não foi esse o problema, Deus gosta de dar uns períodos de provação. — O senhor fala mesmo assim ou está a brincar?— Mais tarde houve a bomba de Hiroxima, tinha eu sete ou oito anos e andava aos pássaros, mas logo percebi: se Deus me quiser, vou para ministro. Ou a ganhar a vida com pareceres. Ou as duas coisas. Quero a GNR a bater-me a pala! Quero procissões com tochas no Terreiro do Paço! Quero magustos e quermesses!— Miguel Relvas!!!— Diz Pedro…— Não gosto que me escutem atrás da porta. — Estava só encostado!Então Passos Coelho convidou Calvão da Silva para ministro e este saiu em júbilo e subiu à Basílica da Estrela, onde jurou castigar e escarmentar todos os ímpios que não respeitassem o esforço divino da PàF, durasse o governo um dia ou dez seguidos. Passos Coelho sentara-se no sofá, extenuado mas sorridente. — O homem é perfeito. — Vão chover polémicas sobre ele e tu ficas mais resguardadinho, graças a Deus. Como foi no meu tempo. Mas com um professor doutor de Coimbra em vez das minhas equivalências na Lusófona! A vingança come-se fria. — Miguel Relvas, és o meu seguro. Quanto é que te devo pela apólice?— Pagas depois, pagas depois.
REFERÊNCIAS:
Vamos tomar café a Évora no meu avião
Ter um avião privado e ir com ele para o emprego não fica tão caro como se pensa. É possível viajar pela maior parte do território, e há pistas por todo o lado. Dizem que não é perigoso. Viagem ao mundo dos loucos das máquinas voadoras. (...)

Vamos tomar café a Évora no meu avião
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ter um avião privado e ir com ele para o emprego não fica tão caro como se pensa. É possível viajar pela maior parte do território, e há pistas por todo o lado. Dizem que não é perigoso. Viagem ao mundo dos loucos das máquinas voadoras.
TEXTO: Ter um avião privado e ir com ele para o emprego não fica tão caro como se pensa. Podemos ir de Lisboa ao Algarve com 20 euros de combustível, depois de investirmos 3 mil num ultraleve. É possível viajar pela maior parte do território e há pistas por todo o lado. Dizem que não é perigoso. Os aviões foram feitos para voar e os pilotos têm de saber cair. Viagem ao mundo dos loucos das máquinas voadoras. Aérodromo de Tires, domingo, 10 da manhã. Luís Laureano Santos, 71 anos, e Artur Caracol, 80 anos, chegam, cada um no seu carro. O avião, um Cessna Skyhawk 172 azul e branco, monomotor de asa alta, quatro lugares, motor de 220 cavalos, velocidade máxima de cerca de 300 km/h, matrícula CS-AYZ, é puxado do hangar à mão. O plano de voo está feito, de Cascais a Évora, seguindo pela costa até ao estuário do Sado, depois em linha recta rumo a leste. Luís faz a inspecção exterior. Flaps, aileron, hélice, todos os parafusos estão no sítio, leme de profundidade, leme de direcção… O Cessna tem 40 anos, mas isso nunca foi problema para um avião. Terminada a volta, faz-se a purga, confirmando que não há condensação no combustível. No cockpit, Luís fixa ao manche o seu iPad Mini, onde tem o plano de voo e todas as coordenadas, através do software Air Navigator. Artur fixa o seu tablet especial de aviação, com cronómetro analógico acoplado. Em seguida pega no vetusto papel envolvido em plástico da checklist de inspecção de voo, que contrasta comicamente com a sofisticação electrónica dos seus gadgets pessoais. Auscultadores na cabeça, Artur pede autorização de descolagem à torre de controlo. “Válvula de combustível ligada”, diz ele para Luís. “Sim. ”“Equipamento eléctrico desligado. ”“Tá. ”“Fusíveis. ”“Tá. ”“Bomba eléctrica de combustível desligada. ”“Tá. ”“Travões bloqueados. ”“Sim. ”“Flaps. ”“Check. ”Percorrida toda a checklist, é altura de accionar o motor e avançar para a pista. “Ignição. ”O motor de arranque engasga-se um pouco, como num carro velho, mas lá pega, com um grande estremeção. Tudo vibra e abana, como uma tenda no meio da tempestade, segue-se o resto da inspecção de voo, o contacto com a torre. “Autorização para descolar, Alfa Tango Yankee Zulu, em direcção à Cova do Vapor. Posição de espera na pista 3. 5. Código 3212. Vento Norte 360. ”Luís vai aos comandos. No seu iPad surgem três círculos sobre o Googlemaps, representando as zonas definidas que vamos cruzar. O avião descola, sobrevoa as praias de Cascais a baixa altitude, atravessa o Tejo, sobre o Bugio, acompanha a linha da Costa de Caparica. Velocidade, 200 km por hora, a mil pés de altitude (cerca de 300 metros). A partir da lagoa de Albufeira, subimos aos 1500 pés. É obrigatória a baixa altitude, devido ao aeroporto de Lisboa e respectivo tráfego comercial, o que nos coloca numa posição vulnerável à turbulência. A causa é o calor do solo, que provoca a elevação de massas de ar, explica Luís. “Quanto mais baixo, mais vento. ”A sensação é de fragilidade total. Dançamos no espaço. Por vezes parece que a aeronave não segue em frente, mas para os lados, cedendo a um empurrão. Outras vezes é como se levássemos um pontapé, que nos atira brusca e violentamente para cima ou para baixo. Em certos momentos, sentimo-nos numa cápsula pendurada por um fio, balançando perigosamente, mas presa a algum invisível cabide do céu. De repente caímos, como quem tropeça num degrau. Nos headphones, ouvimos, em inglês, as comunicações da torre de Lisboa, que incluem todos os voos comerciais, misturados com trocas de mensagens entre a torre de controlo e tripulantes de aviões ligeiros. A amálgama sonora faz-nos mergulhar numa cisterna tépida, é uma espécie de senha para um universo multidimensional, sem gravidade, livre. A torre, agora, depois de Setúbal, já do controlo aéreo militar, avisa-nos de um avião que vem em sentido contrário, a 2000 pés. Lá em baixo, a península de Tróia, o estuário do Sado, verde, absolutamente selvagem. A serra da Arrábida, em formas e tons que é impossível ver do solo. Com o aumento da altitude, entramos numa zona calma. Luís larga as mãos do manche e dos comandos. Artur sorri, dir-se-ia que de pura felicidade. Não há dúvida de que isto provoca uma certa embriaguez. Tudo é relativo, confuso, maravilhoso. Surpresa, agora que apontámos a leste: o território tem áreas imensas sem vestígios de civilização. E muitos lagos. Água a refulgir entre promontórios verdes por todo o Alto Alentejo. No meio do nada, surgem palácios secretos. Em zonas recônditas, abrem-se pedreiras infectas, como feridas. As estradas são traçadas em perfeitas linhas rectas. Ali, um cemitério faz lembrar um canteiro. Por todo o lado há pistas de aviação, particulares, por vezes mínimas, onde, se quiséssemos, poderíamos aterrar. Mas avançamos até Évora, que surge, extensão de casario branco, no horizonte. Atenção que há actividade de pára-quedismo no ar, avisa a torre do aeródromo de Évora. Aterramos sem incidentes. Saímos e vamos tomar um café. Luís e Artur fazem isto todas as manhãs de domingo, há 40 anos. Por vezes, vão a Santarém ou a Portimão. Mas não usam só o avião, que é deles, comprado a meias, para estas escapadelas de lazer. Luís, que é advogado, desloca-se no Cessna para ir a julgamentos, em Faro, ou Bragança. É muito mais rápido, e até mais barato do que ir de carro, explica. Artur, gestor de empresas, voa muitas vezes para reuniões, em vários pontos do país. Vão muitas vezes sozinhos. Metem-se no seu avião e partem, para onde é preciso. O país está cheio de pistas de aviação, enumeradas em listas próprias e identificadas no próprio GPS. É quase possível estacionar à porta de casa ou do escritório. Um avião ligeiro (o caso do Cessna de Luís e Artur), ou ultraligeiro, pode voar praticamente por todo o país. O mapa do espaço aéreo mostra as zonas restritas, afectas a áreas militares específicas, e as formas de as contornar, através de “túneis” aéreos, ou usando o espaço aéreo não controlado, abaixo dos mil pés de altitude. Todo o território está coberto por comunicações e controlo, quer seja dos aeroportos e aeródromos, quer pelas torres de controlo militar, de cuja ajuda qualquer aeronavegante pode beneficiar. Ao contrário da dos controladores aéreos oficiais (que só existem em Lisboa, Porto, Faro e Cascais), as informações e instruções fornecidas por estes, tal como as que existem em muitos aeródromos municipais, como o de Évora, são apenas indicativas, não obrigatórias. Trata-se de serviço de AFIS (Aerodrome Flight Information Service), a que os pilotos podem recorrer, embora não sejam obrigados. Luís e Artur lembram-se de quando toda a informação era dada apenas com gestos ou luzes, e toda a navegação era feita à vista, apenas com a ajuda de uma bússola. Quando se entrava numa nuvem, era o pânico. O GPS veio revolucionar a navegação aérea. Luís lembra-se do velho Tiger em que voava, há algumas décadas, onde o velocímetro funcionava com uma chapa que se torcia com a velocidade do vento. Não era possível, nessa altura, distinguir entre a velocidade em relação ao ar circundante, e a velocidade em relação ao solo, que são completamente diferentes. Portanto também não era possível saber a que distância nos encontrávamos do destino. Os sistemas de comunicações também são uma inovação recente para a maior parte das aeronaves. Dantes, um avião ligeiro estava sempre sozinho no céu, e era obrigado a voar segundo as regras VFR (Visual Flight Rules). Hoje, predomina a IFR (Instrument Flight Rules). Luís tem o brevet desde os 17 anos, quando, para fugir às outras actividades da Mocidade Portuguesa, se inscreveu no núcleo de aviação. Também fez o curso de jornalismo. Ficou tudo de graça. Hoje, já tem cerca de 900 horas de voo, devidamente registadas na sua caderneta, que actualiza a cada aterragem. Artur gosta de aviões desde miúdo, quando, perto da base militar de Sintra, onde vivia, se lembra de ficar deitado no chão a observar as manobras dos caças. Mas só aos 39 anos conseguiu tirar o brevet. É um verdadeiro apaixonado, compra todos os gadgets de última geração (tem uma vasta colecção de sistemas de GPS), aprende novas técnicas, adora fazer acrobacias e “manobras de recuperação”. “Gosto da turbulência”, diz ele. “Gosto de fazer aterragens com ventos instáveis, coisas que a maioria dos pilotos evita. Eu tenho prazer com essas sensações. Não tenho medo. Sempre que posso, treino manobras complicadas. ”Luís prefere os voos calmos, embora não perca o sangue-frio nas piores situações de emergência. Como quando teve um curto-circuito a bordo, que fez deflagrar um incêndio, e parar o motor, e foi preciso desligar, um a um, todos os fusíveis, até identificar onde estava o problema, repará-lo e voltar a ligar os circuitos. Tudo isto sem descurar a pilotagem, e sempre atento ao solo, seleccionando os espaços abertos onde faria a aterragem de emergência, se necessário. Pode ser um campo de cultivo, um estádio, ou até uma auto-estrada. Uma vez, num dos seus voos de domingo, Luís e Artur esqueceram-se de verificar o combustível. Mal descolaram, perceberam que os depósitos estavam vazios. A primeira hipótese que lhes ocorreu foi a Praia Grande, perto de Sintra, para a aterragem de emergência. Mas como o motor não parou logo, seguiram até ao cabo da Roca, em cujo planalto acharam que conseguiriam “pôr o avião no chão”. E assim sucessivamente até regressarem ao aeródromo. Afinal a reserva do depósito foi suficiente. “Gosto muito de voar. Lá em cima, estamos isolados do mundo”, é como se sente Luís Laureano. “É bom para lavar a cabeça. Desligamo-nos dos problemas, não temos de aturar as pessoas cá em baixo. É uma espécie de tempo fora do tempo. ” Já Artur fala da sensação de liberdade, de poder e de isolamento completo. Não consegue passar muitos dias sem voar. As vidas profissionais de ambos não têm nada que ver com aviação, mas estão envolvidos em várias actividades relacionadas, como as associações (Luís foi presidente da AOPA — Associação de Operadores e Pilotos de Aeronaves) e as iniciativas dos clubes, como os encontros nacionais e internacionais, e as voltas aéreas, que incluem concursos, demonstrações e jantaradas. Todas as quartas-feiras, aliás, Luís e Artur almoçam juntos, num restaurante na zona do Saldanha, para falarem de aviões. Ao contrário do que se possa pensar, o hobby da aviação não é caro, dizem eles. Um avião como este custa, novo, cerca de 400 mil euros, com um nível razoável de equipamento extra. Usado, no entanto, pode comprar-se por 50 mil euros. E raramente um piloto compra um avião sozinho. Organiza-se numa sociedade com um ou vários amigos e dividem os custos. O combustível não fica caro, se compararmos com os automóveis. Custa 1, 75 euros por litro, sendo que a aeronave consome cerca de 35 litros por hora e viaja a velocidades de cruzeiro de mais de 200km por hora. Ou seja, uma viagem até Faro, considerando que a distância em linha recta é mais curta, e que não há portagens no ar, custa cerca de 60 euros e demora pouco mais de uma hora. A taxa de aterragem num aeródromo é de 10 a 20 euros, embora seja gratuito no aeródromo onde o avião está estacionado, serviço que custa uns 150 euros por mês. O curso de pilotagem, com exame e obtenção de brevet incluídos, custa 7500 euros, através do Aeroclube de Portugal. E o aluguer de um avião ligeiro, para quem opta por não comprar, fica, no aeródromo de Cascais, por 150 euros por hora. Além disso, é preciso ainda contar com as revisões periódicas, que são obrigatórias, para que o avião possa voar. No caso da aviação ultraligeira, tudo isto pode ser reduzido para mais de metade. Estamos no campo de aviação de Benavente, a capital portuguesa dos ultraleves. Paulo Cunha, 57 anos, é um dos proprietários do campo e da escola de aviação, Aerolazer, empresa que também representa e vende em Portugal várias marcas de aviões ultraleves. É também presidente da APAU (Associação Portuguesa de Aviação Ultraleve). De profissão, é médico, dá assistência técnica a sete clínicas espalhadas pelo país e percorre-as de avião. Pelas suas contas, gasta, para ir de Benavente à sua clínica de Portimão, cerca de 20 euros, já que o seu Dynamic gasta uma média de 12 litros por hora. E faz a viagem em pouco mais de meia hora, enquanto de carro gastaria mais de 60 euros, incluindo portagem, e demoraria umas quatro horas. Como é um dos locais onde se desloca com mais frequência, tem um carro velho estacionado no aeródromo de Portimão, para as deslocações locais, e vai sempre de avião. “Voar faz parte da minha essência”, explica. “Se ando um mês sem voar, não ando bem. Isto é a minha saúde mental. Nunca precisei de tomar um Xanax. ”Um ultraleve é um avião como outro qualquer, apenas mais leve. Segundo as regras adoptadas em Portugal (que, no caso dos ultraligeiros, diferem muito em cada país), não pode pesar mais de 450 quilogramas. Outras restrições incluem não poder voar durante a noite e não estar habilitado a usar as regras de voo por instrumentos (IFR). Apenas VFR, o que significa mais liberdade e sensibilidade. Um ultraleve só precisa de um piloto, embora tenha quase sempre dois lugares. E pode voar em todas as zonas controladas do espaço aéreo, desde que possua comunicações e sistema de Transponder, que permite ser localizado pelos radares. Mas, no essencial, um ultraleve obedece aos princípios de um avião, e é também isso que o define: manobra-se segundo três eixos, como explica Rui Augusto, técnico de manutenção de aeronaves e de motores Rotax (a quem chamam o “ginecologista”, por trabalhar “onde os outros se divertem”): o leme de direcção, ou vertical; o leme de profundidade e os aillerons. Um Quicksilver como este estacionado junto ao bar do aeródromo, e que se pode guardar numa garagem, possui todas estas características. É, para todos os efeitos, um avião, embora pareça um asa delta com motor. É composto por uma estrutura simples, uma hélice ligada ao motor, que fica à vista, asas de tela e dois lugares sentados, ao ar livre. Mas lá está o manche, em forma de joystick, com que se faz a geringonça subir ou descer, virar para a direita ou esquerda, e os pedais, que permitem inclinar as asas, para uma viragem aerodinâmica. Assemelha-se a um insecto gigante e proporciona sensações únicas. É como progredir no ar sem qualquer veículo, elevados por impulsos do próprio corpo. É a sensação pura de voar, o mais perto que podemos estar de Ícaro. Sente-se o vento no rosto e o mundo a toda à volta, líquido, irisado e volúvel, como no interior de uma bola de sabão. Os elementos estão à solta, mas deixam-se tocar, próximos e dóceis. As movimentações térmicas, as massas de ar, que se vão tornando densas, depois da descolagem, e acabam, como descrevia Saint-Exupéry, por ficar superfícies sólidas, onde nos podemos agarrar. Um Quicksilver não é muito diferente das maquinetas dos irmãos Wright ou Santos Dumont, embora pareça muito mais simples. A tecnologia aeronáutica evoluiu desde então no caminho da sofisticação, mas também da singeleza, da essência da ideia. E é dessa que o Quicksilver é um expoente avançado, inteligentemente fiel às visões iniciais, do Ornitóptero de Leonardo Da Vinci à Passarola de Frei Batolomeu de Gusmão. “Não vou com isto até Bragança”, diz Paulo Cunha. Não é um avião para longas viagens, mas para pequenos passeios locais. É fácil descolar e aterrar, e podemos fazê-lo dezenas de vezes numa tarde, por pura distracção, como quem pega numa bicicleta. Pilotos profissionais de grandes companhias aéreas vêm até aqui no seu dia de folga, para dar umas voltas de Quicksilver. Pedro Simões, empresário de 39 anos, tem dois aviões: um portentoso WT9 Dynamic e um Quicksilver. O primeiro, diz, vendia-o, se surgisse uma boa oferta. Mas por nada deste mundo se desfaz da caranguejola voadora. Um ultraleve sofisticado como o Dynamic de Pedro Simões pode custar, com uns dez anos de idade, 70 mil euros. Mas há modelos muito mais baratos. Como um que está à venda num dos hangares da Aerolazer por 15 mil euros. Se um grupo de cinco recém-licenciados da escola decidir comprá-lo, pagará 3 mil euros cada um, e ficarão proprietários de um avião, que poderão usar em qualquer altura. O curso de piloto de ultraleve não é equivalente ao da aviação ligeira, embora, no futuro próximo, se preveja a introdução de um sistema de créditos que permitirá, com uma extensão de aulas e um novo exame, fazer o upgrade de uma licença para a outra. Dentro da aviação ultraligeira, há ainda dois tipos de licenças, correspondentes a dois cursos diferentes. O que permite apenas pilotar aeronaves do tipo 1, mais simples, e o que é próprio para os aviões tipos 2 e 3. O primeiro curso tem um custo total, exame incluído, de 3200 euros, o segundo de 4500. Os licenciados que queiram alugar aviões pagarão 80 euros à hora, combustível incluído. Mas grande parte dos novos pilotos tenta comprar o próprio avião, não apenas porque acaba por sair mais em conta para quem tencione de facto voar muitas horas, mas também porque é impagável a sensação de possuir um avião. Ser dono de um italiano Blackshape, de linhas futuristas, de uma aeronave simples, barata e retro como o francês Skyranger (custa cerca de 40 mil euros, novo), um clássico Pioneer 300 (também francês), um eslovaco sofisticado como o Aerospool WT9 Dynamic, ou mesmo ter um básico Quicksilver, “é um privilégio”, como diz Pedro Simões, um dos mais antigos frequentadores do aeródromo de Benavente. “Sinto-me um privilegiado”, diz ele, sentado no cockpit do seu WT9 Dynamic. É um cubículo onde mal cabe piloto e passageiro, sentados lado a lado. O painel de comandos e instrumentos é próximo e complexo, o manche em forma de joystick, o tecto totalmente transparente. Além do altímetro, velocímetro, indicador de horizonte artificial, de “climb”, de combustível, e os vários instrumentos básicos, a aeronave está ainda equipada com todos os gadgets possíveis, relacionados com comunicações, orientação, navegação, etc. Além dos 70 mil euros que o avião custou, Pedro gastou mais 100 mil em equipamento extra. “Gosto de ter tudo no meu avião. Isto é um sonho que eu tenho desde sempre e que realizei quando pude. Faz parte da minha vida. ” Desde que entramos no avião, enquanto o motor aquece, na descolagem, no voo a 250 km/h sobre os campos ribatejanos, nas manobras de revirar o estômago como o brusco pranchamento da asa de 60 graus a 1500 pés, Pedro não pára de falar. Conta como usa frequentemente a aeronave para se deslocar a reuniões de trabalho, em Beja ou noutras cidades, como vai a todo o lado fechar negócios da sua empresa de sistemas de rega, como os clientes ficam pasmados e seduzidos quando, depois de lhes oferecer uma boleia, se vêem de repente a subir aos céus, sentados na cabina do Dynamic. Fala sem parar, vê-se que está radiante e liberto, senhor de si, magnânimo e filosófico, aos comandos do seu Dynamic. Pilotar parece tão fácil. E é. Vertiginosamente fácil e seguro, ou Pedro não teria deixado os comandos nas mãos de um repórter que nunca se tinha sentado num cockpit. O mais surpreendente é que não é preciso fazer nada. O avião voa sozinho. Vai como se estivesse vivo e não precisasse de instruções. No entanto, os comandos são assustadoramente sensíveis. Um toque leve no manche provoca logo uma guinada. Com um empurrão no manípulo, o avião afocinha abruptamente, e é difícil reprimir o desejo de fazê-lo saltar para cima, com a fúria de um puma dos céus. “Este é um avião de viagem”, vai dizendo Pedro, enquanto, por um longo período, seguimos a direito, sobre campos, rios e aldeias. Mas a verdade é que seria difícil, depois, recordar que trajecto ou direcção seguimos. No chão, sabemos sempre por onde vamos. Há sempre uma estrada, referências e destinos. No ar, avançar não significa ir a lado algum. Todos os pilotos concordam que os aviões transmitem uma grande sensação de segurança. Mas também que essa sensação é, em grande medida, falsa, e é isso que provoca os acidentes. Tem havido muitos, nos últimos anos, envolvendo aeronaves ligeiras e ultraligeiras, e provocando frequentemente a morte aos tripulantes. Os casos, alguns deles ocorridos com amigos dos pilotos com quem falámos, são amplamente debatidos nos convívios de Benavente ou de Tires. Devem-se quase sempre a excesso de confiança dos pilotos, explicam. Os aviões são veículos muito seguros. Mesmo se estão muito velhos, têm todas as condições para voar, desde que com as revisões feitas. Num avião, cada peça tem um prazo de validade e é substituível. E não se pode voar sem ter a manutenção em dia. Por isso, ao contrário do que acontece, por exemplo, com um automóvel, não faz sentido dizer que um avião está velho. Pedro Simões, que viaja várias vezes por semana de ultraleve, diz que deixou de andar de moto por ser demasiado perigoso. “Se forem cumpridas todas as regras, nada acontece”, diz Paulo Cunha. “Há sempre uma maneira de pôr o avião no chão. ”Pedro resolve exemplificar. Desliga o motor do seu Dynamic. O hélice fica a trabalhar apenas ao ralenti, sem propulsão. Não se passa nada. O avião não cai. Continua a voar, embora comece, lentamente, a perder altitude. Há tempo suficiente para procurar uma pista de emergência. “Ali aquele campo de golfe”, diz Pedro. Dirige para lá o avião, e começamos a descer. “Podemos partir uma roda, mas não vamos morrer, de certeza”, continua ele, muito calmo. O campo de golfe está à nossa frente, mas pouco antes de tocarmos o relvado, o motor volta a trabalhar, e subimos, suavemente. “Podíamos ter aterrado ali. Há sempre um sítio. Podia ser na estrada. ”Artur Caracol conta uma história passada no tempo da sua instrução. Ficara apreensivo e com dúvidas, depois de um instrutor e um aluno da mesma escola terem tido um acidente mortal. Mas o seu instrutor decidiu levá-lo para uma experiência. Durante a aula, levou o avião muito alto, e depois apontou-o ao chão, desligando o motor e deixando-o em perda. Começaram a cair a pique, mas ele não fez nada. Até que a certa altura o aparelho se endireitou, sozinho, e recomeçou a planar. “Estás a ver?”, disse o instrutor. “Os aviões foram feitos para voar. ”Quando há acidentes, diz Luís Laureano Santos, “é o piloto que faz cair o avião, e não o avião que faz cair o piloto”. Ou seja, tudo se passa como se os aviões se recusassem a cair, e só um número muito restrito de pilotos, particularmente habilidosos, os conseguissem fazer despenhar. Para se salvarem, bastava não terem feito nada. Mas os pilotos têm dificuldade em estar quietos. Muitos gostam de testar os seus limites, de facilitar os procedimentos e de se exibirem. “Podemos fazer estas manobras [o pranchamento da asa] a alta altitude, porque se acontecer alguma coisa, temos espaço para corrigir a manobra”, diz Pedro. “Mas a alta altitude ninguém nos vê. ”Há quem não resista a exibir-se voando baixinho. Segundo Álvaro Neves, director do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves, (GPIAA), há uma idade crítica. Pilotos entre os 45 e os 55 anos, com uma média de 250 a 300 horas de voo, tendem a experimentar uma sensação de confiança excessiva. Começam a facilitar, a ultrapassar os limites, e correm riscos. “Acham que são os maiores pilotos do mundo. Fazem manobras acrobáticas, que são proibidas. Mas um piloto nunca é suficientemente experiente. ” Nos acidentes dos últimos anos, as causas têm sido, em 98%, devidas a factor humano. Além disso, na classe dos ultraleves, há muito quem descure as normas de segurança. “É um tipo de aviação muito livre, e é bom e normal que assim seja. Mas nem todos associam essa liberdade a responsabilidade. Há pessoas com uma atitude agressiva na pilotagem. ” Segundo Álvaro Neves, que também é piloto, muitos proprietários de aviões guardam-nos nas suas quintas, em garagens sem assistência técnica profissional, descolam e aterram em pistas não certificadas, que têm dentro das suas propriedades ou nas de amigos. “Das 550 aeronaves ultraleves que existem registadas em Portugal, cerca de 50% estão nessas condições, e não cumprem as regras de manutenção e segurança. ”Nesse aspecto, a base de Benavente, diz o director do GPIAA, é uma “unidade de referência”. E a Associação Portuguesa de Aviação Ultraleve (APAU), presidida por Paulo Cunha, está a trabalhar com o GPIAA na tentativa de trazer para a legalidade todos os proprietários de ultraleves. E depois há ainda o problema de quem não nasceu para isto. “É preciso sentir o avião. Os nossos pés são as suas rodas, os nossos braços são as asas”, explica Luís Laureano. “Há pessoas que são pilotos à nascença. Depois só têm de aprender. ”Para Artur Caracol, o importante é ter a capacidade de manter a calma em todas as situações, não entrar em pânico. “É preciso saber cair. ”Pedro Simões, quando foi fazer o curso, já sabia pilotar, porque passara centenas de horas agarrado ao simulador de voo, no computador. Mas teve de fazer as regulamentares 140 horas teóricas e mais 40 de voo. Durante o curso, não antes, há um momento em que o futuro piloto percebe se foi ou não feito para aquilo: quando é largado pela primeira vez. É uma ocasião mágica e ritual, que surge sempre de surpresa. O instrutor é que decide quando chegou a altura e só o comunica ao aluno no próprio dia. Tanto pode ocorrer às 30 horas de voo, como às dez. Aterram, o instrutor sai do avião e diz para o aluno: Vai! E ele, sem estar à espera, tem de descolar e voar sozinho. “É um momento incrível”, recorda Artur. “É o voo mais importante da nossa vida”, diz Paulo. “É o momento da verdade”, admite Pedro. Depois, se correr bem, as aulas continuam normalmente até ao fim, com o instrutor ao lado. Laureano foi largado com apenas sete horas de voo. Artur com oito. O instrutor, o tal que meteu o avião a pique sem o conseguir despenhar, travou na pista, saltou fora num ápice e gritou: “Agora vai e parte esta merda toda. ” Quarenta anos depois, Artur ainda não conseguiu. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
António Costa: O conciliador
Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa viajou a Havana e encontrou-se com Raúl Castro. Quarto artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)." (...)

António Costa: O conciliador
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há quatro anos, António Costa e Catarina Martins não eram líderes partidários. Passos Coelho prometia não cortar salários. Paulo Portas foi a votos sozinho. Jerónimo de Sousa viajou a Havana e encontrou-se com Raúl Castro. Quarto artigo da série "Quatro anos que mudaram a vida deles (e a nossa)."
TEXTO: No subsolo da Baixa pombalina, próximo do Arco da Rua Augusta, há um espólio arqueológico que conta a história de Lisboa dos últimos 2500 anos. Junto a uma intervenção naquele núcleo histórico, visível acima do solo, na Rua do Ouro, um homem pegou num saco e foi-se embora sem demoras. O gesto causou suspeitas a um transeunte que por ali passava, à hora de almoço. Inquiriu um trabalhador da obra sobre o alegado furto, mas a resposta foi vaga. Chamou um agente da polícia municipal e pediu-lhe que fosse atrás do suspeito. Horas depois, o telefone toca. Era o comandante da Polícia Municipal. O homem tinha sido detido, sim, mas era funcionário da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e estava a recolher objectos para levar para o Museu da Cidade. Deste lado da linha, o então presidente da CML pôs as mãos na cabeça. O delator tinha sido o próprio António Costa. Mais tarde, recebeu uma carta do funcionário a dizer que tinha um grande orgulho no cuidado que o presidente mostrava ter sobre os vestígios arqueológicos da cidade. “Fiquei envergonhadíssimo”, conta o líder do PS à Revista 2. Nem sempre esta inclinação de António Costa para inspector camarário resultou em embaraço para o próprio. Muitas vezes, pelo contrário, deu origem a chamadas de atenção para os seus colaboradores. À noite, depois do jantar, era comum que começassem a chegar sms aos telemóveis do chefe de gabinete do presidente, de directores municipais e de assessores. As mensagens alertavam para buracos na estrada, candeeiros com luzes apagadas, semáforos por arranjar, espaços verdes por tratar. Algumas chegavam até com fotografia do local. Já se adivinhava: o presidente da câmara fazia um dos seus percursos pela cidade, a pé ou de bicicleta, um dos prazeres que deixou de ter ao trocar a governação da autarquia pela liderança do PS. “Adoro andar a pé. Das coisas que mais me custam são as horas infindáveis a viajar de carro de um lado para o outro. ” Deixou Lisboa e mudou-se para Sintra quando se tornou candidato à liderança do PS. No tempo em que esteve à frente da CML — que quase consumiu os últimos quatro anos do agora candidato a primeiro-ministro —, António Costa deu outros exemplos de um autarca que “gosta de pôr a mão na massa”, como diz um seu colaborador. Foi o caso das polémicas alterações de trânsito introduzidas na rotunda do Marquês de Pombal, em Setembro de 2012, com um pretexto ambiental. Na primeira manhã em que a rotunda se dividiu em dois círculos, Costa pôde assistir, no centro de controlo de tráfego da CML, ao caos de circulação automóvel naquela zona. À hora de ponta, foi aconselhando os técnicos sobre os tempos de funcionamento dos semáforos na zona. Percebeu que boa parte do problema estava na deficiente sinalização e passou o dia a trabalhar para que novos sinais fossem afixados antes da manhã do dia seguinte. Esse trabalho de proximidade teve, porventura, o seu expoente máximo quando, em Abril de 2011, António Costa mudou temporariamente o seu gabinete para o então degradado Largo do Intendente. Era só por um ano, ficou três. O projecto, que aliou a requalificação urbana à regeneração social, deu uma vida nova ao bairro de má fama. Instalado no prédio da antiga Fábrica Viúva Lamego, era comum António Costa sair do gabinete e perguntar aos moradores se os horários mais curtos impostos aos bares estavam a ser cumpridos. A partir do Largo do Intendente, o então presidente da câmara pôde acompanhar de perto a requalificação do bairro da Mouraria. Este trabalho cruza-se com o fado, uma paixão que cresceu nos últimos anos, desde que se tornou impulsionador da candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Em Novembro de 2011, fez parte da comitiva portuguesa que se deslocou a Bali, na Indonésia, para receber a distinção da UNESCO. No palco, em jeito de homenagem, encostou o seu iPhone ao microfone da sala e deixou que a voz de Amália se ouvisse em Estranha forma de vida. Nos últimos anos, tornou-se amigo de fadistas, foi conquistado pela Rádio Amália e hoje em dia raramente perde um concerto de fado, mesmo quando percorre o país nas digressões políticas. Enquanto presidente da câmara, não falhou as festas populares das noites de Santo António, mas teve de pôr à prova a sua capacidade de negociar quando uma greve na recolha de lixo ameaçou estragar o arraial de 2014. Depois de falhadas as conversações entre o vice-presidente e os sindicatos dos trabalhadores municipais, foi o próprio que tomou a iniciativa de se sentar à mesa das negociações. Cedeu nas reivindicações laborais e travou a greve marcada para vários dias. Apoiantes mas também adversários elogiam-lhe a capacidade para fazer compromissos. “É um negociador habilíssimo, resolveu dossiers que estavam na câmara bloqueados há anos”, afirma Helena Roseta, eleita vereadora pelo movimento Cidadãos por Lisboa, e que aceitou um entendimento com Costa em 2009. Tornou-se presidente da Assembleia Municipal em 2013 e está em terceiro lugar nas listas do PS por Lisboa para as legislativas. Foi uma das pessoas de quem mais se aproximou nos últimos anos. Exemplo simbólico de um acordo conseguido com um campo político adversário foi o memorando de entendimento fechado com o então ministro Adjunto Miguel Relvas, sobre os terrenos do Aeroporto de Lisboa. O contencioso durava há 23 anos e acabou em 2012 depois de longas conversações com o ministro. Pelo lado do Governo era preciso também que este problema se resolvesse para poder avançar com a privatização da ANA. Entre outros pontos do acordo, o Governo assumiu o pagamento de 286 milhões de dívida bancária de médio e longo prazo da CML em troca da totalidade do perímetro dos terrenos aeroportuários, o que permitiu a Costa anunciar uma redução da dívida do município em 43%. Mais um ponto que, mais tarde, haveria de servir como trunfo ao candidato a primeiro-ministro no combate a Passos Coelho, líder do Governo que se orgulha de ter posto as contas do país em ordem. No frente-a-frente televisivo entre os dois candidatos, essa operação veio à conversa: Costa lembrou a redução da dívida da CML, Passos recordou que isso foi conseguido com dinheiro do Governo. Outro dos diferendos municipais que se arrastava nos tribunais era o do caso Bragaparques. Em Janeiro de 2014, António Costa fechou um acordo com a empresa de Braga que permitiu à CML reaver os terrenos da Feira Popular e do Parque Mayer, pagando desde logo 101, 7 milhões de euros, salvo encargos futuros e com a condição de alguns dos diferendos serem remetidos para o Tribunal Arbitral. O entendimento teve o voto a favor do PSD. Foi também com uma estratégica aliança com os sociais-democratas de Lisboa que Costa conseguiu concretizar uma das reformas de que mais se orgulha: a descentralização de competências da CML e a redução do número de freguesias. A reorganização levou-lhe anos a preparar, mas foi estabelecida com base em trabalho de proximidade com os autarcas das próprias freguesias. Essa preocupação em construir pontes e de não impor um desenho feito a régua e esquadro valeu-lhe uma contestação mais suave por parte dos autarcas e de trabalhadores. “Esta reforma não foi uma reforma filha da troika”, disse numa reunião camarária, em Dezembro de 2013, em claro contraste com a contestada reorganização de freguesias em todo o país executada por Miguel Relvas, em resultado do memorando de entendimento. O próprio António Costa reconhece que os acordos mais importantes que conseguiu em Lisboa foram estabelecidos quando já dispunha de maioria absoluta. “Os compromissos são sempre necessários por uma razão: é que as maiorias não duram para sempre”, observa. E esse é um “erro” que aponta ao (primeiro) governo de Sócrates, por “não ter usado a maioria absoluta como forma de obter compromissos mais alargados”. Um discurso que manteve com coerência antes e depois da detenção do ex-primeiro-ministro. A caminhada para a liderança do PS tinha começado meses antes, depois de uma pública hesitação em Janeiro de 2013. Até esse episódio e mesmo depois dele, António Costa foi constantemente questionado pelos jornalistas sobre a sua disponibilidade para liderar o PS. O então autarca foi repetindo a recusa, com os mesmos argumentos, mas sem nunca fechar completamente a porta. “Neste momento não estou a concorrer para cargo nenhum, mas também não fujo de cargo nenhum”, disse em Março de 2012, numa entrevista ao PÚBLICO a propósito do lançamento do seu livro Caminho Aberto, uma compilação de textos sobre o seu pensamento político dos últimos 20 anos. A crítica à forma como o então secretário-geral do PS, António José Seguro, geria o partido, sobretudo por causa da herança socrática, não foi discreta. Foi mesmo bastante visível quando disse que o PS, que na altura cumpria um ano de oposição, “fingiu que o passado não existe” e apostou numa “política impossível” que não era nem a de “autoflagelar-se” nem a de uma “avaliação crítica”. A farpa foi lançada no programa Quadratura do Círculo, na SIC, onde foi comentador político até ser candidato a primeiro-ministro. Nessa cadeira, condenou o PS de Seguro por se ter abstido na proposta de Orçamento do Estado para 2012, que impunha uma forte dose de austeridade, e considerou que o Governo PSD/CDS “se distanciou” do memorando da troika. Apesar de ter defendido, a 22 de Novembro de 2014 — um dia depois da detenção do ex-primeiro-ministro — que o PS “não adopta as más práticas estalinistas de eliminação da fotografia deste ou daquele” —, as políticas de Sócrates passaram a ser quase um tabu nos seus discursos de campanha. Com antagonismos acumulados na história do PS desde os tempos em que ambos militavam na Juventude Socialista, Costa foi mortal para Seguro logo que este assumiu a candidatura à liderança do PS, em Junho de 2011. “Não o conheço bem. Sei quem ele é e já nos cruzámos, mas não é uma pessoa com quem tenha convivido”, reagiu na Quadratura do Círculo. Pormenor: os dois socialistas foram membros de ambos os governos liderados por António Guterres (1995-1999/1999-2002). A rivalidade entre os dois veio ao de cima no incidente que aconteceu no congresso de consagração de Seguro como secretário-geral, em Setembro de 2011. O então líder recém-eleito aproximou-se dos estúdios das televisões instalados no congresso e interrompeu uma entrevista de António Costa, em directo na TVI. De imediato, Costa cedeu o seu lugar, mas não perdoou. Seguro representava “uma nova etapa de intimidade entre a liderança política [do PS] e a comunicação”, disse aos jornalistas, momentos depois da troca de lugares. E deixou o contraste com Sócrates que foi “menos íntimo [da comunicação social] e mais concentrado nas pessoas e nos cidadãos”. Frase que, hoje em dia, seria quase impossível de repetir. Como comentador político ou como presidente da CML, Costa foi expondo o seu pensamento político, sobretudo a sua crítica à “ideologia liberal” do Governo liderado por Passos Coelho. Nas cerimónias de comemoração do 5 de Outubro, os discursos do autarca não se confinavam ao município. Eram para o país. Em 2012, por exemplo, a intervenção serviu para criticar o “estatuto do bom aluno” assumida pelo Governo perante a Europa. “Menoriza-nos e infantiliza-nos. ”Poucos meses depois, em Janeiro de 2013, assume a vontade de liderar não só a governação de Lisboa, mas também a do PS. Horas antes de uma comissão política nacional, convocada para decidir o calendário do congresso e de eleição para secretário-geral, chamou os vereadores e informou-os da sua intenção. Dias antes, o ex-ministro socrático Pedro Silva Pereira defendia, na Rádio Renascença, que o congresso devia ser antecipado para antes das eleições autárquicas, marcadas para Setembro desse ano. A lebre estava lançada. Costa chegou ao Largo do Rato, acompanhado por Francisco Assis, que se tinha candidatado contra Seguro em 2011 e que viria a abandonar o congresso da consagração do actual líder por não lhe darem tempo para intervir. Na comissão-maratona, apoiantes de um e de outro trocaram duras acusações. Sem o apoio da esmagadora maioria dos presidentes das federações, Costa recuou na sua intenção e comprometeu-se a trabalhar com Seguro na união do partido. As tréguas foram seladas com um abraço entre os dois, perante os dirigentes socialistas, após seis horas de reunião. Dias mais tarde, foi aprovado o Documento de Coimbra, que aproximou as alas desavindas do partido. E dois meses depois Costa aceitaria ser o número dois da comissão nacional liderada por Seguro e eleita por larga maioria em congresso. A marcha-atrás de Costa desiludiu fortemente os seus apoiantes, mas até hoje justifica a sua decisão com a indesejada instabilidade que voltaria a existir no partido. Oito meses depois desta noite longa do PS, reconquistou a CML com o melhor resultado de sempre de um partido em Lisboa. Uma nova tentativa para liderar o PS só aconteceria após as eleições europeias de 25 de Maio de 2014. Poucas semanas antes, no arranque da campanha eleitoral, andou ao lado de Seguro, do cabeça de lista Francisco Assis e do presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, nas ruas de Lisboa. O momento de aparente unidade ficou cristalizado numa selfie. A imagem viria a tornar-se anacrónica quando um mês depois o embate entre os dois se tornou público. Na noite eleitoral das europeias, Costa não passou pelo Hotel Altis para cumprimentar Seguro pelo resultado e seguiu directamente para a SIC para participar numa edição especial da Quadratura do Círculo. À medida que as horas passavam, percebeu que o PS tinha ficado nos 31%. “Não havia nenhuma sondagem que o indicasse. Foi para mim um choque”, diz à Revista 2, usando uma palavra próxima da que António Guterres escolheu para comentar a derrota do então líder socialista Jorge Sampaio contra Cavaco Silva em 1991. Quando as percentagens se consolidavam, escreveu um sms a Seguro com o que se preparava para dizer no comentário televisivo. “Foi das poucas vezes que eu fui para a Quadratura do Círculo com a frase escrita depois de ter informado o que é que ia dizer. Tive esse cuidado. Mandei para ele e disse-lhe que gostava de falar com ele pessoalmente”, revela. Nessa noite, mostrou preocupação pelo facto de a “derrota histórica da direita [27, 7%] não ter correspondido a uma vitória histórica do PS”. A eleição “soube a pouco”, rematou. Esse encontro com Seguro não aconteceu nos dois dias seguintes, até Costa anunciar a sua disponibilidade para disputar a liderança. Assegura que o processo de decisão de avançar aconteceu entre a noite de domingo e a terça-feira do anúncio. “Só falei com a minha família, não falei com mais ninguém. Falei com os meus filhos e falei com o meu irmão [Ricardo Costa, director do Expresso] para medir as consequências na vida dele. Há decisões que só o próprio pode tomar”, conta. Para esse ânimo súbito, terá contribuído também o apoio popular. “Passei a campanha toda das autárquicas a ouvir as pessoas na rua a dizerem-me ‘eu vou votar em si mas verdadeiramente o que eu quero é que vá para primeiro-ministro ou para Presidente da República’. Alternava. ”A escolha de avançar três anos depois de Seguro fazer o seu “caminho das pedras” deixou-lhe colada uma imagem de calculista que, dizem os mais próximos, “transpareceu em estudos de opinião”. O processo da luta interna viria a tornar-se tempestuoso e porventura mais demorado do que o esperado. O país assistiu, em directo na televisão, ao duelo entre os dois Antónios, camaradas do mesmo partido que se tratavam por tu. O embate foi feio. Trocaram acusações a roçar o insulto e, por várias vezes, Costa perdeu as estribeiras. Tanto os seus colaboradores como os seus adversários dizem que é muito frequente ter fúrias, mas também que é capaz de as ultrapassar em pouco tempo. Essa capacidade é potenciada se perceber os ganhos de atingir determinado objectivo. “É um dos políticos mais pragmáticos que eu conheço”, diz João Gonçalves Pereira, vereador do CDS-PP, que desafiou António Costa a criar o comissariado municipal do combate ao desperdício municipal. Apesar de ser uma proposta de um partido da oposição, foi aceite de imediato. E aprovada por unanimidade. Numa disputa que não foi pacífica, Costa ganhou o lugar de candidato a primeiro-ministro com uns esmagadores 67, 7% contra 31, 5% de Seguro. Nessa noite eleitoral, foi ao auditório do Fórum Lisboa com um discurso muito conciliador. “Estas primárias só têm um vencedor: o PS. ” E empolgou a plateia com o combate contra o seu adversário seguinte, inspirado em Sérgio Godinho: “Este é o primeiro dia de uma maioria de Governo e o primeiro dos últimos dias do actual Governo. ” Já o próximo executivo, se for socialista, pode ter outras latitudes. O primeiro acto como candidato a primeiro-ministro foi discursar no primeiro congresso do Livre, liderado pelo ex-bloquista Rui Tavares, e falar num “ponto de equilíbrio” para alternativa de governação à esquerda. “O que temos de fazer não é guerrear entre nós”, disse, deixando claro que “há várias formas de governar que não passam necessariamente e só pela coligação”. Estava dado o sinal para possíveis entendimentos à sua esquerda. Com a crítica ao executivo de Passos Coelho muito acentuada na ideia de que “foi para além da troika”, a actuação do Presidente da República Cavaco Silva foi o outro pólo das atenções. Logo em Junho de 2011, o ainda autarca antevia o “carinho” de Cavaco ao Governo PSD/CDS. Críticas não faltaram nos últimos quatro anos, mas uma das mais violentas aconteceu em Julho deste ano, depois de Cavaco pedir que o próximo Governo seja “estável e duradouro”. A resposta foi dura ao repescar uma frase do próprio Cavaco, na altura primeiro-ministro, dita há 21 anos sobre o então Presidente Mário Soares. “O prof. Cavaco Silva está no fim da sua carreira política já bastante longa. Devemos aliviá-lo dos problemas e ajudá-lo a terminar o mandato com dignidade e não lhe criar problemas acrescidos”, disse. A escolha de um candidato a sucessor de Cavaco tem-lhe dado dores de cabeça. Pôs a cassete sobre Presidenciais — “o PS tomará a sua decisão no momento oportuno” — mas já foi confrontado com o anúncio da disponibilidade para o cargo da ex-presidente do partido Maria de Belém. Mesmo assim insistiu em elogiar o antigo reitor e já candidato Sampaio da Nóvoa. A poucas horas de o partido se reunir e poder transformar o congresso num palco incontrolável de guerra contra o poder judicial, Costa usou um dos seus meios preferidos para comunicar: o sms. Enviou uma mensagem escrita a todos os militantes socialistas com um forte apelo de contenção e traçando uma linha de demarcação — que manteve intransigente até hoje — entre o caso judicial e a esfera política. Mesmo sabendo que não está a agradar a muitos. “Acho que tenho feito o correcto e que é, mesmo com muitas incompreensões, estabelecer uma rígida separação entre aquilo que é a acção do PS e aquilo que é esse processo. ”Até recentemente as suas palavras resumiam-se a assumir que é um “caso doloroso do ponto de vista pessoal” e a reconhecer que a detenção tem “um peso muito grande” no partido. Em contraste com a romaria a Évora de muitos socialistas, visita Sócrates na prisão uma única vez, a 31 de Dezembro de 2014. À saída, pouco mais de uma hora de encontro, faz uma declaração que soube a pouco aos socráticos: “A personalidade dele é conhecida de todos. Vai certamente lutar pelo que acredita ser a sua verdade. ” A 4 de Setembro, a um mês das legislativas, Sócrates foi transferido para prisão domiciliária. E passa a poder dar entrevistas presencialmente. Reconquista a atenção mediática e põe à prova o candidato a primeiro-ministro a quem as sondagens não dão larga vantagem. Ainda antes da alteração da medida de coacção do ex-primeiro-ministro, Costa falava ao PÚBLICO do caso como “teste muito importante” para a democracia. “É o caso que tivemos até hoje onde mais radicalmente se confronta o princípio da afirmação do Estado de direito relativamente ao poder político. E acho que aqui estamos a ser testados no princípio da presunção da inocência. ”O factor Sócrates faz de Costa “uma marca com elevada contingência”, sustenta o marketeer Carlos Coelho, um contraste com a “marca líder que é a que está no Governo e que normalmente é que tem as contingências” por causa das políticas que desenvolveu. “É um factor de enfraquecimento invulgar a que o político António Costa tem de fazer face”, observa. O outro ponto fraco apontado é também um ponto forte: ser um conciliador. Se por um lado a sua “grande característica é a capacidade de conectar os mais variados interesses, faixas etárias e preocupações sociais”, por outro “é impossível manter essa flexibilidade sem perder a sua personalidade”. Nesta última fase da campanha, pode mesmo “ter de quebrar algumas compatibilidades” para lidar com o caso Sócrates. Transpondo a política para o marketing, Carlos Coelho considera que “a marca pessoal de Costa vale mais do que a do partido”. Esta posição é partilhada por outro marketeer, Pedro Bidarra. “A marca PS está de rastos”, diz, tendo em conta não só o caso Sócrates, mas também o anúncio da candidatura às presidenciais de Maria de Belém e as implicações de ter chamado a troika. O publicitário aponta um contraste entre o autarca e o líder partidário. “Lá na câmara parecia-me alto e mandão e agora sinto-o abafado pelo PS”. Para Pedro Bidarra, o partido devia “puxar pelos galões” do autarca na campanha: “Se o PS tivesse tronco e membros, Fernando Medina [presidente da CML] devia estar a fazer inaugurações todos os dias e dizer que era obra do Costa. ”No combate político que tem travado contra o Governo PSD/CDS, o seu discurso sofreu outro percalço: a Grécia. No início de Janeiro deste ano, o líder do PS cavalgou a onda de entusiasmo que os partidos à esquerda partilharam com o que a vitória do Syriza podia significar para a Europa. “Este é mais um sinal da mudança da orientação política que está em curso na Europa, o esgotamento das políticas de austeridade e a necessidade de termos uma outra política que permita que a moeda única seja efectivamente uma moeda comum”, afirmou na noite em que Alex Tsipras foi eleito primeiro-ministro. Não felicitou o Syriza pela vitória, é verdade, mas omitiu no seu discurso a pesada derrota do partido grego homólogo do PS, o PASOK. Perante os ziguezagues do Syriza nas negociações com os credores, o entusiasmo com os ventos de mudança na Europa esfumou-se. O ânimo que restava findou quando Tsipras aceitou um pacote de austeridade brutal. Costa tinha acentuado as críticas ao erro da Europa em “humilhar a Grécia”, passou a censurar mais a estratégia de “confrontação” assumida pelo Governo grego, chegando a dizer que Yanis Varoufakis, então ministro das Finanças, foi negociar para Bruxelas qual “cavaleiro andante”. Hoje em dia, diz não se surpreender com o que aconteceu com a Grécia: “Antes de tomar posições públicas sobre questões europeias, estabeleci contactos com a nossa família na Europa e tirei as minhas conclusões. ” Quando o Syriza se curvava perante Bruxelas, anunciou uma aliança com o PSOE — o novo impulso para a convergência de Portugal e Espanha. Uma estratégia de “construir alianças” a que se junta a defesa da “leitura inteligente” do Tratado orçamental” e a de colocar em segundo plano a renegociação da dívida. Quatro anos de uma legislatura — três na câmara e um como líder do PS em exclusivo — geraram algumas mudanças na vida pessoal de Costa e bastantes cabelos brancos. Quando entrou na corrida para a liderança do PS, deixou de participar no programa da SIC, o que fez baixar o seu rendimento mensal em 7700 euros. Essa quebra levou-o a sair do apartamento em Lisboa e voltar a morar na casa de família, em Fontanelas, Sintra. O prédio em que arrendou o duplex, na Avenida da Liberdade, entre Julho de 2012 e o final de 2014, não passou despercebido quando o PÚBLICO noticiou que foi alvo de um parecer desfavorável da câmara sobre as obras de ampliação. Regressou à casa onde a mulher (com quem é casado há 28 anos) não deixou de viver, mas não tem tido tempo para se perder num dos seus gostos pessoais que é cozinhar. Nas poucas horas que tem para ler ficção, continua a gostar de José Eduardo Agualusa. Mas o tempo da leitura foi consumido em livros sobre a crise económica e monetária em que a Europa mergulhou. Um deles foi marcante por ter das “análises mais interessantes” sobre a crise. Tem o sugestivo título La gauche n’a plus droit à l’erreur (A esquerda não tem direito a falhar) e é uma visão apocalíptica sobre a Europa de dois socialistas franceses, o ex-primeiro-ministro Michel Rocard e o economista Pierre Larrouturou. As novas funções no PS deixaram-lhe pouco tempo para a família. Ainda assim não perdeu a festa de aniversário dos 25 anos do seu filho mais velho, em Julho deste ano, numa discoteca em Vilamoura. Uma das raras ocasiões em que se deixou fotografar com a família para a revista Caras. Seis meses entre primárias, directas, congresso e em acumulação com a presidência da câmara esgotaram muito da vida pessoal. Mas voltou a um dos seus hobbies: os puzzles. Desta vez, um de 1800 peças. “É pequenino, já fiz um de 24 mil. ”Essa “paciência evangélica” — como assumiu ter num dos debates televisivos com Seguro — não se revelou nas redes sociais. Usa um tablet, tem um iPhone 6, “que é uma grande ajuda”, mas não gosta de Facebook. “É um espaço para o insulto gratuito. É um caso curioso em que a democratização não tem contribuído para o apuramento da qualidade. ”É capaz de ver notícias no tablet, mas prefere ler os jornais em papel. É aí que lê as notícias de que nem sempre gosta. Filho da jornalista Maria Antónia Palla e irmão do director do Expresso, parece viver uma relação de amor/ódio com a comunicação social. Não esconde que é crítico do jornalismo que se faz hoje em dia. “Para ser totalmente franco, é pior do que há dez anos. Porventura porque o noticiário de meia em meia hora, o noticiário no online, é uma pressão que diminui o tempo de trabalho do jornalista e porque há degradação no mercado de trabalho. ”As irritações com jornalistas — como aconteceu na passada semana na entrevista da RTP com Vítor Gonçalves — somam-se nos últimos tempos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Maio deste ano, enviou um sms ao director adjunto do Expresso João Vieira Pereira — que o tornou público — em que lhe dava um raspanete a propósito de uma análise escrita em torno do programa do PS. A resposta não seria a mesma se o artigo não tivesse sido escrito por um subdirector de um jornal “que se arroga ser o mais influente do país”. Admite que há tensão entre a política e o jornalismo, mas assegura que aprendeu a respeitar muito. “Não creio que tenha uma relação diferente do que outros políticos têm [com jornalistas]. Porventura manifestam-se menos ou serão menos exigentes. ” A exigência, como lhe chama, não é apenas reflexo de um impulso, mas decorre da convicção de considerar que “alguns jornalistas acham que têm o exclusivo da crítica e que não estão sujeitos também a uma avaliação crítica”. Filhos do escritor e militante do PCP Orlando Costa, os dois irmãos, o político e o jornalista, traçaram publicamente as suas balizas. Ricardo fê-lo numa carta dirigida ao “irmão político”, António anunciou que deixou de ler as crónicas do director para ele não ter, “ainda que subconscientemente, qualquer tipo de autocensura”. Depois de muitos anos a viver em lados diferentes da barricada, vem ao de cima o lado pragmático do político: “Temos de viver assim. Olhe, se fôssemos jogadores de futebol, como ele é do Sporting e eu sou do Benfica, se calhar tínhamos de jogar um contra o outro. Assim, temos apenas de conviver dentro do mesmo campo. ”
REFERÊNCIAS:
Vamos brincar com a comida
O artista Douglas Fitch e o chef Leonel Pereira estão a fazer um filme de animação onde a comida é a protagonista. O trabalho insere-se no projecto Mar e Montanha, que quer promover os produtos algarvios numa colaboração entre cozinheiros e artistas plásticos. (...)

Vamos brincar com a comida
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O artista Douglas Fitch e o chef Leonel Pereira estão a fazer um filme de animação onde a comida é a protagonista. O trabalho insere-se no projecto Mar e Montanha, que quer promover os produtos algarvios numa colaboração entre cozinheiros e artistas plásticos.
TEXTO: Estamos no interior de um filme de animação. O conteúdo de uma arca frigorífica foi despejado em cima de uma mesa e agora, peça a peça, é colocado de forma a compor um quadro hiper-realista. Um peixe, um leitão, uma galinha do campo. Acção. O filme vai começar. Tirada a fotografia, cada ingrediente ganha vida, sai da mesa, cumpre uma função que deixou de ser a de alimento para se transformar em arte. Onde está a fronteira entre uma coisa e outra? A pergunta surge na sequência de um encontro mais ou menos improvável entre Douglas Fitch, americano, 55 anos, designer, coreógrafo, cenógrafo, realizador de animação, pintor, escultor, e Leonel Pereira, português, 44 anos, chef do restaurante São Gabriel, no Algarve, um cozinheiro que diz que a pintura é uma inspiração para o modo como apresenta os seus pratos. Não se conheciam até aceitarem o convite para entrar no projecto Mar e Montanha, uma ideia de André de Quiroga e Nuno Figueiredo, comissários da Trienal de Arte de Alentejo, que convidarem 20 artistas plásticos e 20 cozinheiros para se unirem em duplas e interpretarem 20 produtos gastronómicos do Algarve (o programa pode ser consultado em www. maremontanha-algarve. com). Antes de escolherem que produto, Douglas Fitch e Leonel Pereira despejaram a arca do restaurante e Fitch decidiu animá-la numa ideia que dá continuidade ao longo trabalho que tem desenvolvido com comida. 20 cozinheiros e 20 artistas plásticos unidos no projecto Mar e Montanha para interpretarem 20 produtos gastronómicos do AlgarveNesta história é preciso agora dar um salto. Do São Gabriel, num dia de Março em Almancil, passamos para Nova Iorque, em finais de Maio. São nove horas da manhã em Sunset Park, uma área que ainda não se tornou proibitiva para os artistas que se mudaram, em fuga dos preços de Manhattan, e assistem agora a idêntica inflação no novo grande bairro das artes e da moda em que Brooklyn se tornou. O estúdio de Douglas Fitch — ou Doug Fitch — fica numa rua de oficinas, armazéns, num antigo edifício industrial que foi dividido em apartamentos para artistas. Fitch ocupa dois, um para trabalhar e outro onde vive e no qual se destaca uma enorme mesa de refeições e uma bancada que não deixa dúvida: naquela casa sabe-se de cozinhados e a comida ocupa muito espaço na cabeça de quem nela mora. As pinturas nas paredes, os utensílios que se misturam com móveis que parecem retirados das muitas produções que Fitch tem feito com as filarmónicas de Nova Iorque, Londres, Los Angeles, em trabalhos com os maestros Alan Gilbert, James Ross, Leonard Slatkin. Objectos estranhos inspirados em criaturas míticas e um armário que parece uma melancia. No estúdio, no mesmo corredor, há pedaços de cenários, figurinos, uma bicicleta de cidade, uma parede cheia de livros, muitas folhas de papel espalhadas com desenhos. É como se houvesse um percurso natural entre o estúdio, onde as ideias ganham forma, e a casa, onde essas ideias já são memórias e se preservam. Algumas, ao lado do frigorífico. Do conjunto, fica a noção de festa, um banquete, de onde se destacam quadros pendurados que são parte do trabalho de cerca de 20 anos que Doug Fitch criou com a artista plástica japonesa Mimi Oka. O tema era, justamente, comida. Doug e Mimi chamaram a esse projecto, uma reinterpretação de receitas, ingredientes, representações de alimentos ou de rituais ligados à alimentação. Um dos mais emblemáticos de toda a série é a paródia à pintura de Bruegel, , um óleo de 1567 sobre uma terra mítica onde não é preciso trabalhar para conseguir comida, um sítio de abundância e excesso de alimento em contraste com o espírito vazio. No quadro de Doug e Mimi — que imita o estilo de Bruegel —, vemos os dois artistas caricaturados, de barriga cheia, a dormir debaixo de uma árvore, uma mesa farta, alimentos pelo chão, enquanto ao fundo uma criança sobe uma montanha feita de massa de pão. “É o filho de Mimi”, aponta Douglas. Foi por aí que tudo começou para Fitch, pelo pão. Quando era criança, em Fargo, North Dakota, a avó materna era uma visita regular. “Ela cozinhava muito mal, mas fazia pão”, conta Fitch no tom de quem conta uma história para uma plateia de crianças, sentado numa poltrona rota que veio de um palco. “Sempre que vinha, ela fazia pão”, continua, “e ninguém que eu conhecesse fazia pão. Estávamos nos anos 60 e naquela altura na América as padarias industriais mataram as caseiras; ninguém estava interessado em fazer pão. A ideia era que dava muito trabalho e ninguém queria saber disso. Ela ensinou-me a amassar o pão. Dá tão pouco trabalho comparado com o divertimento, e depois é tão gratificante. Em poucos minutos, misturam-se os ingredientes e há um bocadinho de exercício físico que sabe bem. No fim aparece aquela coisa fantástica que cheira tão bem e sabe tão bem. Porque não o fazemos mais vezes? Imagine-se que uma cultura inteira fugiu disso!” O espanto de Douglas foi o de quem conheceu um material mágico. “A massa do pão transformava-se. E nas mãos da minha avó e depois nas minhas dava pão. Eu achava aquilo um milagre. Faz sentido que durante séculos as pessoas achassem que era mesmo um milagre”, diz, referindo-se ao milagre bíblico da multiplicação dos pães e ao efeito da levedura. “Ninguém entendia aquilo, parecia vindo dos céus, até que Louis Pasteur, no século XIX, descobriu as partículas de levedura. ” É então que Fitch começa a explorar a fronteira entre gastronomia, ou comida, e arte. “O conceito de milagre funciona muito bem na arte. Adoro essa ideia de milagre e de poder descansar nela. ”Começou a fazer pão em criança, continuou a fazer pão e, na faculdade, terminado o terceiro ano em Harvard, decidiu que ia parar. “Acho que não estava muito satisfeito com a minha formação ou educação — gosto mais desta última palavra —, achava-me fechado, que o essencial me estava a escapar e decidi tirar um ano e fazer algo na Europa. ”Enfiou-se na biblioteca da universidade à procura de hipóteses. A ideia de que podia escolher entre tantas possibilidades era fascinante. Foi por ordem alfabética, eliminando letras, mas parou logo no C. “Decidi ir para uma escola de cozinha em Paris. Pareceu-me um projecto óptimo. Porque gostava de fazer pão e gostava de fazer alguma comida e gostava de comer. Achei ainda que era uma boa maneira de ter um plano de refeições porque não queria gastar muito dinheiro em comida. Além disso, se aprendesse a cozinhar correctamente, seria sempre bem-vindo a qualquer casa, para fazer uns sautés e assim. ” Era o plano. Passou um ano em La Varenne, Paris, e aprendeu mais do que sautés. O conceito de milagre funciona muito bem na arte. Adoro essa ideia de milagre e de poder descansar nela. ”Voltou a Nova Iorque, terminou a faculdade e uns 12 anos depois encontrou Mimi Oka, uma antiga colega que lhe perguntou o que tinha feito ele no ano em que desapareceu. Contou ainda que em Harvard tinham escrito uma peça de teatro para ele, mas ninguém o encontrou. Esse encontro com Mimi Oka foi em Los Angeles, e foi por acaso. Mais um acaso fê-los esbarrar um no outro em Tóquio e decidirem então trabalhar juntos depois de descobrirem que ambos tinham lido The Futurist Cookbook, descrito como uma das “melhores piadas artísticas do século” e escrito pelo fundador do movimento Futurista, Fillipo Tommaso Marinneti. “O que muitas pessoas não sabem é que Marinetti tinha um restaurante, um sítio experimental, criado a partir da ideia de que a comida é medium artístico muito nobre. No futuro iríamos buscar os nossos nutrientes a ondas rádio, o que libertaria a comida ou a ideia de refeição para uma experiência puramente estética. É o que está a acontecer com as nossos amigos no Algarve. É exactamente o que está a acontecer na cozinha do Leonel. Só não estamos — e acho que isso nunca irá acontecer — a ser alimentados por ondas rádio”, declara Douglas Fitch. Publicado em 1932, o livro de Marinetti, além de ser uma espécie de manifesto humorístico, reúne receitas, contos e experiências que inspiraram Douglas Fitch e Mimi Oka a definir o projecto conjunto que os trouxe a Portugal em Agosto de 2006. “Foi a primeira vez no país”, comenta Fitch, tentando soletrar Milfontes. Fizeram um enchido e chamaram-lhe Festa. “Era a salsicha da memória, uma espécie de colector de memórias. Pedimos às pessoas para nos levaram qualquer coisa que tivesse que ver com a sua memória, uma carta de amor de alguém de quem se separaram, um televisor velho, cabelo que ficou do último corte… podia ser quase tudo e apareceu muita coisa. Pusemos tudo num enorme alguidar, misturámos e enchemos uma ‘tripa’, que estava agarrada a outra ‘tripa’, etc. Depois oferecemos pedaços. De memória. Era um souvenir, os souvenirs são estranhos”, conta sobre essa experiência, mais uma que mostra que Douglas Fitch não tem qualquer problema em brincar com a comida e que com ele foi a brincar com comida — com a massa do pão — que a arte começou. As pessoas referem-se aoscomo sendo artistas, mas já não fazem isso quando são artistas a mexer com comida. A Mimi e eu quisemos alargar esta fronteira”, esclarece para justificar a incursão. “É fácil dizer que a arte é comida, comida para alma, e é também fácil entender isso. É uma óptima metáfora. Mas se a arte é comida, porque não fazer da comida arte? Isso já não é fácil. Não se pode pintar com. Se fazemos arte do que comemos isso é uma expressão, mas é também uma verdade muito clara. Quando perguntamos o que comemos, esquecemos que comer é consumir, e comemos com os olhos, com o olfacto, com os ouvidos, com o palato, com todos os nossos sentidos, e estamos a consumir a experiência e a processá-la. A comida é uma grande metáfora para o modo como processamos qualquer coisa. Comemos uma pintura com os olhos. É muito interessante. Somos o que vemos, o que ouvimos e somos também o que comemos. Se começarmos a estar atentos a isso, a comida torna-se ummuito útil e interessante para se trabalhar. ”Há 20 anos, quando começaram, a comida não estava na moda como está agora e, em inglês, ainda muito poucos tinham lido The Futurist Cookbook (estava traduzido do italiano há muito pouco tempo). Muitos menos ainda tinham experimentado a cozinha molecular. “As pessoas diziam-me que o que nós estávamos a fazer era decadente. ‘Estão a brincar com comida’”, acusavam. Porque é que pensavam que brincar com a comida era decadente? Estamos a comê-la e é delicioso! Mas vamos outra vez às palavras, o que é decadente? A palavra tem que ver com decair ou cair. A comida não é decadente, mas é interessante que toda a comida natural, por exemplo, a fruta, é melhor no momento mesmo antes de cair da árvore ou do arbusto, e a carne depois do animal morto, é pendurada e começa a decompor-se e é quando a comemos. Toda a comida é melhor quando começa o processo de decair. É outra grande metáfora para a sociedade, as sociedades quando atingem o pico começam a decair e os artistas são sempre um espelho do que estamos a fazer em sociedade. Os artistas têm esse papel de barómetro dos tempos ao longo da história e enquanto barómetros não estamos conscientes disso, apenas apanhamos a boleia e mostramo-lo como um guia”, conclui, num discurso que também podia ser quase um manifesto artístico. Pintura, escultura, fotografia, desenho, vídeo fazem parte dos trabalhos com Mimi Oka. Alguns estão nas paredes da cozinha de Douglas Fitch. Fizeram algo inédito na carreira de um e do outro e no fim publicaram um livro, Orphic Fodder: Experiments in Dinning, or’ an Autobiography of as Artistic Collaboration (Eppure Editions), uma edição bilingue, em inglês e francês publicada em 2013. O trabalho que agora Douglas Fitch veio fazer com Leonel Pereira pode ser visto como um prolongamento pessoal dessa experiência artística. “Revejo-me na irreverência do Douglas Fitch”, refere o chef do São Gabriel, curioso quanto ao resultado final de uma animação que está em processo de pós-produção. Há poucos dias, Leonel Pereira apresentou o prato que vai fazer parte do menu de Verão do seu restaurante inspirado num produto algarvio e que também será integrado num livro com pratos dos outros 20 chefs, além do trabalho que todos desenvolveram com artistas plásticos para o projecto Mar e Montanha, Arte e Gastronomia no Algarve, que os dois comissários da Trienal do Alentejo estão a desenvolver com o Turismo de Portugal. Leonel Pereira fez um robalo. “Este ano os robalos estão a aparecer no Algarve com uma qualidade extrema”, refere, para justificar a escolha. No seu caso, tinha de confeccionar um produto do mar. “É um robalo com topinambur (um meio tubérculo, meio legume), servido com um ravioli de azeitona preta recheado com azeitona verde. Tem aipo rama e uma batata inteira, que depois é partida com a mão, rasgada, e tem um cremoso de topinambur”, revela o chef. A produtora de Douglas Fitch, Giants are Small, irá contar a história da mesa de Leonel Pereira. Vai chamar-se Still Life in Motion. “É um filme animado e vai acontecer numa casa comestível”…, adianta, ligando esta ideia a outra que tinha e se mostrou para já difícil de concretizar: produzir mesmo uma casa onde tudo é comestível. Desenhou para a Nest Magazine, uma revista dedicada ao design, com enfoque no design de interiores, que terminou em 2004, depois de 26 edições, mas que fez culto. “Nessa casa, as pessoas mais ricas ficavam no topo, junto ao tecto, e comiam umas coisinhas e quando comiam o candeeiro caía e estilhaçava-se na mesa… A casa era também uma peça de teatro que contava a história da nossa sociedade e de como ela colapsa. Acho interessante a ideia de começar a fazer pequenos mundos. É o que faço no teatro. O propósito da fantasia é apresentarmos um caminho, o acesso ao oposto da fantasia. Muitas vezes precisamos dela para entrar na realidade. Se tivermos um universo paralelo, entendemo-la melhor e começamos a ter um mundo melhor, sem isso fica tudo muito limitado. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pode parecer, mas Douglas Fitch não se perdeu nesta história. “O Still Life in Motion é uma ideia teatral”, continua. “A comida está inanimada, mas quando comemos ela anima-nos. Há objectos na nossa vida que nos dão alegria e ponho-me a pensar no que lhes acontece quando vou para a cama; acho que andam a dançar por aí. Os objectos têm vida própria”, ri. Volta a ficar sério. “Trabalho muito com marionetas e as marionetas são conhecidas como objectos inanimados que ganham vida quando estão nas mãos de humanos. Gosto dessa noção dos objectos inanimados ganharem vida e por isso escolhi o nome Still Life in Motion. A ideia do memento mori sempre me fascinou, dá-nos a noção de que a vida se vai tão depressa. A arte trabalha muito isso. Se imaginarmos quanto tempo demora a fazer uma pintura a óleo perfeita. . . Pintar uma flor ou um porco. Quando a pintura estiver terminada o porco estará comido, a flor morta. As pinturas estão a preservar, a eternizar aquele momento no tempo de uma forma muito lenta. Como é que se pára o tempo? Como é que o desaceleramos? O Still Life in Motion é essa tentativa e é uma piada. Gosto do humor. No São Gabriel, estivemos a filmar cada um daqueles ingredientes. Tudo ali é comida de verdade e a sua função é chegar à cozinha. Mas enquanto still life (manter-se viva) a sua função passa a ser de arte. Então, quando um ingrediente sai para a cozinha, é substituído por um outro ingrediente inanimado, a versão artificial dele mesmo. Será um filme de três minutos, mas quero depois trabalhar essa imagem em vários meios. Gostava que essa ideia se estendesse”, conclui Douglas Fitch sobre um trabalho que foi pensado para poder continuar. A primeira etapa está quase pronta e será apresentada no Algarve em data ainda a fixar. Leonel Pereira irá recebê-la com um prato de robalo da ria Formosa servido a Douglas Fitch.
REFERÊNCIAS:
Proteger as crianças ou torná-las independentes?
A criminalização da independência infantil é uma mudança cultural tão significativa como os telemóveis. E é uma loucura. (...)

Proteger as crianças ou torná-las independentes?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A criminalização da independência infantil é uma mudança cultural tão significativa como os telemóveis. E é uma loucura.
TEXTO: O seu crime? Os Meitivs deixaram os filhos de dez e seis anos voltar sozinhos, a pé, de um parque na Baixa da cidade para casa. Agora estão a ser investigados por negligência. O caso representa um daqueles fossos culturais que se abatem sobre os pais de hoje. Num lado, há os pais que quando eram pequenos andavam pelo bairro de um lado para o outro com a chave de casa pendurada ao pescoço e que querem que os seus filhos vivam da mesma maneira. Do outro, os pais hipervigilantes que não conseguem sequer imaginar os filhos a irem a pé para a escola, ou que façam qualquer outra coisa, sem supervisão parental. A criminalização da independência infantil é uma mudança cultural tão significativa como os telemóveis. E é uma loucura. “Não sabe quão perigoso o mundo é?”, perguntou um dos quatro polícias que apareceram em casa dos Meitiv a 20 de Dezembro, depois de terem recebido um telefonema a avisar que duas crianças caminhavam sozinhas pela Baixa de Silver Spring. A polícia apareceu e apanhou-os numa rua movimentada, a meio da sua caminhada de 1, 5 quilómetros do parque até casa. Um quilómetro e meio? Sim, também me fez parar. O meu grande momento de rédea solta foi quando deixei os meus dois filhos rapazes, de dez e sete anos, andarem metade disso até à mercearia da esquina em Capitol Hill. Levaram o cão e o telemóvel. E admito que passei todo o tempo em sobressalto. Por isso, a ideia de os dois caminharem pela cidade parece tão corajosa e improvável como aqueles tipos que saltam de uma montanha para a outra com fato de morcego. Eu não conseguiria. Mas os Meitivs têm estado a trabalhar nesta coisa da independência há muito mais tempo do que eu. São pessoas com mentes científicas. Ele é médico no Instituto Nacional de Saúde; ela é consultora de Ciência Climática do Banco Mundial. Olham para as decisões parentais com base na ciência. “Qualquer decisão parental envolve gestão de riscos”, disse-me Danielle Meitiv, enquanto Rafi, o seu filho de dez anos, praticava trompete por trás. “A verdade é que os sequestros de crianças por estranhos são tão raros como sequestros por aliens. Bom, talvez não tanto. Mas são muito mais raros do que os acidentes de carro. Pôr um filho dentro do carro é a coisa mais perigosa que podemos fazer todos os dias. ”É verdade. Cerca de 300 crianças por dia sofrem acidentes rodoviários [nos Estados Unidos]. Em média, morrem três crianças por dia numa viagem de carro. Argumentaríamos que isso é negligência infantil, porque os pais deveriam conhecer os riscos que existem na estrada?Provavelmente não. Mas tendo em conta as estatísticas, Meitiv não achou que seria um risco terrível deixar os filhos brincarem sozinhos na rua. “Estamos dispostos a correr o risco porque sabemos quais são as probabilidades”, diz ela. Depois, os filhos começaram a andar pelo quarteirão, no pacato bairro de Silver Spring, perto do campus da Universidade Montgomery. “Oh, já nem me lembro da primeira vez. Simplesmente não era nada de especial”, disse-me Meitiv quando comecei a contar histórias de pais nervosos. Já há uns dois anos que eles brincam sozinhos no parque infantil do outro lado da rua e no quintal de casa. Por isso, a caminhada de 1, 5 quilómetros não era um grande esticão. Quando se pega em cada peça da história — um cidadão preocupado que vê dois miúdos sozinhos na rua na azáfama de Silver Spring e chama a polícia; a polícia receber o aviso e levá-lo a sério (imaginem as histórias que estaríamos a escrever agora se os miúdos tivessem estado aflitos e os polícias não lhes tivessem ligado); e leis que exigem uma investigação à Comissão da Protecção de Menores sempre que há um relato de negligência — cada uma das acções fazem algum sentido. Os responsáveis de Montgomery afirmam que não podem comentar este caso em particular, mas adiantaram que existe uma lei contra deixar crianças sozinhas em casa sem supervisão de alguém que tenha pelo menos 13 anos. A lei, argumentam os Meitivs, não refere nada em relação às crianças estarem sozinhas no exterior. Também é curioso que as escolas do condado garantam transporte, segundo o website, a crianças do 1. º ciclo que vivam “a mais de 1, 5 quilómetros” da escola, ou que estejam sujeitas a alguma circunstância extraordinária. Então, significa isto que as escolas estão tranquilas que crianças da primária andem 1, 5 quilómetros para chegar às aulas?Desde o incidente, a Comissão de Protecção de Menores voltou para levar os pais a assinar um “plano de segurança”, no qual prometem não deixar os filhos sem supervisão. Entrevistaram os miúdos na escola e pediram para inspeccionar a casa da família, procurando outros sinais de negligência. 60% foi quanto desceu o número de homicídios de crianças entre os 14 e os 17 anos. E desde 1993, que essa percentagem desceu 36% para crianças com menos de 14 anosTem existido um padrão nacional de atemorizar os pais que não andam de vigia em cima dos filhos. No Verão, ouvimos falar de uma mãe da Florida que foi presa por deixar a filha de sete anos ir ao parque local e de outra mãe detida porque a sua criança de nove estava a brincar no parque do bairro, na Carolina do Sul. Não só estamos a fazer exigências irrazoáveis aos pais para que estejam com os seus filhos 24 horas por dia, como estamos a bloquear o desenvolvimento de seres humanos independentes. O mundo de hoje é diferente, diríamos? Ah, sim, é. Desde 1993, o número de crianças com menos de 14 anos que foram assassinadas desceu 36%. Entre as crianças entre os 14 e 17 anos, os homicídios desceram 60%. Pouco mais de 1% das crianças desaparecidas são sequestradas por estranhos ou sequer conhecidos pouco próximos, segundo o Centro Nacional para as Crianças Desaparecidas e Exploradas. Só parece mais assustador porque temos muito mais informação. São-nos oferecidas diariamente histórias de crianças desaparecidas em todo o país. Antigamente, parecia muito mais seguro porque as histórias trágicas ficavam pelos jornais e emissoras locais. As estatísticas baixaram por sermos muito mais cautelosos? Talvez sim. Mas provavelmente não, dado o elevado número de ataques contra crianças que no passado ficavam por reportar devido ao estigma social que comportavam. Os Meitivs deverão voltar a encontrar-se novamente com funcionários da comissão, a quem esperam fazer entender que as suas decisões têm que ver com uma filosofia de educação e não com negligência. “Todo este medo está mal situado. O maior medo que a nossa sociedade deveria ter é o de estarmos a educar crianças que não saberão ser independentes”, comenta Danielle Metiv. “Acham que a criança independente vai aparecer como o génio saído da garrafa? É preciso tempo. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ela está certa. Não, nem todos os pais deixarão os filhos caminhar um quilómetro sozinhos numa rua cheia de trânsito. É um bocadinho extremo. Mas deixá-los dar pequenos passos é uma experiência humana que tem de acompanhar o nosso regresso ao bom senso. The Washington Post
REFERÊNCIAS:
E se um desconhecido lhe disser “vou suicidar-me”, o que lhe responde?
Um escritor frustrado a viver no Japão envia para vários jornalistas e escritores que não conhecia um email a anunciar que tenciona pôr fim à vida. Perante a mensagem, há várias atitudes possíveis. Uns reagiram, outros passaram para a mensagem seguinte. (...)

E se um desconhecido lhe disser “vou suicidar-me”, o que lhe responde?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um escritor frustrado a viver no Japão envia para vários jornalistas e escritores que não conhecia um email a anunciar que tenciona pôr fim à vida. Perante a mensagem, há várias atitudes possíveis. Uns reagiram, outros passaram para a mensagem seguinte.
TEXTO: A 10 de Dezembro de 2013, um expatriado americano no Japão enviou para um grupo de redactores, muitos deles do Washington Post, uma carta de suicídio. Com o título “Salvar um Legado”, o professor de Inglês e escritor desconhecido de 66 anos, chamado Dennis Williams, redigiu um email arrepiante. “Este é o meu último dia neste mundo. Estou a contactá-lo por causa de um artigo seu no Washington Post que me deixou impressionado. . . Estou a pôr fim à minha vida não por desespero, mas porque já disse tudo o que tinha para dizer e considero que o meu trabalho está terminado. Uma vez que ninguém actualmente (nem no passado) está interessado, não tenho qualquer plataforma através da qual me expressar sobre o meu trabalho. Por isso, acredito que tenho muito para dar, não apenas da alma como do coração, mas simplesmente não há ninguém para o receber. ”Era já final da manhã em Minato-ku, no Japão, quando Williams enviou o email. A mensagem chegou ao mesmo tempo a caixas de correio no Japão, China, Los Angeles, Washington D. C. e New Jersey. Dado as 14 horas de diferença para a costa Leste dos EUA, a maioria dos que a receberam ali só a abriram na manhã seguinte. Eu estava acordada até tarde e a ler emails na cama no meu portátil. Abri-o um pouco antes da meia-noite. “Oh, meu Deus!”, exclamei, sentando-me direita. A comoção repentina chamou a atenção do meu marido. Quando lhe expliquei o que estava a ler, ele nem sequer se mexeu, fazendo em vez disso um barulho entre o desinteresse sonolento e o aborrecimento. É uma piada, ignora-o, disse ele. O meu marido é jornalista de criminologia, e entre os dois tivemos as duas reacções possíveis a um email deste género: horror e cepticismo. Comecei à procura de sinais no email que indicassem tratar-se de uma farsa. Mas isto não era coisa de um miúdo imaturo ou um monólogo furioso de um homem incapacitado. Não havia referências a extraterrestres nem a controlo de mentes por parte do Governo. Estava bem escrito, ora desolador, ora loucamente autoconsciente. O autor disse que se chamava Katry Rain, mas explicou que esse era um pseudónimo. Nasceu como Dennis Williams. No momento em que carregou no “enviar”, vivia a dez quilómetros de Minato-ku, a sua última paragem no caminho que o levou de Detroit, onde nasceu a 5 de Julho de 1947, à Califórnia, Austrália, Nova Zelândia e Japão. As pessoas que pensam em suicidar-se geralmente não pedem ajuda a estranhos escrevendo-lhes a anunciar a sua decisão. Isto era obra de alguém rebuscado, narcisista e megalómanoUma pesquisa na Internet revela que o homem conhecido por Danny, ou Den para os primos de Detroit, acabou por adoptar um pseudónimo porque estava mais de acordo com o seu amor à natureza. Profundamente cristão até à adolescência, mais tarde lançou-se numa espiritualidade que misturava budismo, judaísmo, tauismo e sufismo. Fisicamente, Williams descreve-se assim num post do seu blogue: “Sem aptidões atléticas naturais, nunca tinha lançado uma bola até aos nove anos, e fui agraciado com aquilo que alguns chamam ‘corpo de nadador’ durante toda a minha vida — 1, 82 metros e 77 quilos. ”Depois de ter estudado na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e feito um PhD na Universidade de Oregon, começou a dar aulas de Inglês no Japão, um país que acabou por abraçar tanto que escreveu um livro, Love Letter to Japan. Depois, planeou morrer ali. O facto de este livro e os outros seis que escreveu terem sido autopublicados digitalmente e pouco lidos está no âmago desta história e do seu desejo de morrer. Williams passou anos a escrever esses livros ao mesmo tempo que mantinha um blogue e uma página no Facebook. Fiquei a saber de tudo isto a partir do meu portátil, procurando, cada vez mais freneticamente, as pistas sobre que tipo de pessoa envia emails a estranhos a comunicar que se vai suicidar. Numa conversa, semanas depois, com Christine Moutier, directora clínica da American Foundation for Suicide Prevention, confirmou-se que isto não é nada habitual. As pessoas que pensam em suicidar-se geralmente não pedem ajuda a estranhos escrevendo-lhes a anunciar a sua decisão. Isto era obra de alguém rebuscado, narcisista e megalómano. Mas na noite em que o email chegou as minhas perguntas eram urgentes: ele estava a falar a sério? E o que esperava que eu fizesse? Sem eu saber, estas mesmas perguntas estavam a ser feitas pelos outros escritores que olhavam incrédulos para os seus computadores. A minha pesquisa levou-me aos posts solitários de Williams, que aparentemente nunca tinham sido visualizados. Longas peças sobre o coração humano, a literatura, a cultura americana comparada com a cultura japonesa, o papel da tecnologia na vida moderna — tudo sem ter recebido qualquer comentário. Quando voltou a publicar essas peças no Facebook, seguiam-se ocasionalmente meia dúzia de likes. Era um William Loman [personagem de Arthur Miller, um homem solitário que tenta suicidar-se várias vezes] com WiFi, a exigir que lhe prestassem atenção. Ninguém prestava. E foi isto, dizia ele, que o levou até àquele email e ao seu suicídio iminente. “Em todos os meus anos de escrita, só um livro meu foi publicado, uma peça produzida e talvez meia dúzia ou mais de artigos de opinião publicados em jornais”, escreveu Williams. “O meu principal trabalho — três livros filosóficos e cinco romances que saíram daí — passaram despercebidos. E no entanto, porque eu acho que eles são particularmente importantes para nós neste momento fulcral da história da humanidade, escrevo aqui sobre eles para que com a vossa gentileza e a minha boa sorte possam sobreviver um pouco, possivelmente passados para outros leitores e serem considerados valiosos e úteis para uma geração no futuro. ”Ele já tinha desistido de tentar. Naquela noite, pela primeira vez na minha vida adulta, eu não tinha a mais pálida ideia sobre o que fazer em relação àquela situação. Nenhum instinto. Nenhum caminho que eu sabia ser duro ou arriscado, mas que seria o certo. Poderia ser apenas um grito para chamar a atenção de alguém com um sentido de humor perverso. Chamar a polícia não era uma opção porque ele estava no Japão, eu em Maryland e não falo japonês. Mandar-lhe um email poderia ser colocar-me, a mim e à minha família, numa situação potencialmente arriscada, embora retrospectivamente eu não tenha bem a certeza da razão pela qual achei isso. Williams referiu um artigo sobre ele no Washington Post na década de 1970. Tal como tudo o resto no email, eu queria que fosse mentira. Não era. Uma busca rápida no arquivo e 3, 95 dólares depois lá estava ele no ecrã. A fotografia a preto e branco que acompanhava o artigo, publicado na secção Estilo e escrito pelo jornalista Michael Kernan a 24 de Maio de 1972, mostrava o mesmo Williams que agora sorria no seu blogue. Tinha vinte e poucos anos, um sorriso largo, as mãos confiantemente pousadas nas ancas, à frente dos portões da Casa Branca. Tinha vindo entregar uma mensagem ao Presidente Richard Nixon, com um livro autografado. Isto chamou a atenção de Kernan, mas como ele morreu em 2005 não ficou claro porquê. Kernan descrevia Williams como um jovem bronzeado e magro, que escalou o monte Whitney, andou à boleia em dois continentes e atravessou o Sara num camião argelino com ovelhas. Aqui estava o arquétipo do jovem idealista. Um professor de liceu de Hollywood de 24 anos que tinha passado 106 dias a caminhar do cais de Santa Mónica [na Califórnia] à Casa Branca [na outra costa dos EUA]. As palavras de Williams para Kernan eram sinceras e amáveis, apesar de ter lamentado que não tenha havido mais jornalistas a aparecer a esperá-lo. “Acho que o Nixon não percebe porque é que ainda há revolta no país”, disse Williams ao jornalista. “Acho que a filosofia por detrás do Governo e instituições americanas está errada e eu queria explicar porque é que precisamos de mudar. ”“Isto é algo que eu tenho de exprimir”, adiantava. “Pode ser que ninguém se interesse, mas tenho fé nas pessoas. ”Quatro décadas mais tarde, a sinceridade deu lugar à resignação. Williams conclui o seu email com esta frase: “Não lhe estou a pedir nada, apenas espero que ao lançar este apelo as ideias possam de alguma forma sobreviver. Acredito nas ideias e em que elas podem realmente mudar o destino da humanidade. ”Pelo menos, algo da fé de há quatro décadas sobrevivera. Depois de ficar sentada na cama a traçar o seu percurso, fiquei irritada. O egoísmo de alguém que larga esta confusão psíquica no colo de uma total desconhecida era demais. E por quê? Porque a sua escrita e as suas ideias não tinham recebido a atenção que ele achava que merecia. Aquela escrita não era particularmente notável. Volumes inconsistentes sobre filosofia e natureza, e a sua visão do mundo, articulados mas desinteressantes. Ele queria dar que pensar mas ficou a um passo de provocar um revirar de olhos. Depois de ficar sentada na cama a traçar o seu percurso, fiquei irritada. O egoísmo de alguém que larga esta confusão psíquica no colo de uma total desconhecida era demais“Quem faz uma coisa destas?”, perguntava a mim própria. Fechei o meu computador. Fui dormir. Cerca de dez horas depois, a meia dúzia de redactores que enfrentava o mesmo dilema abordava-o de maneiras diferentes. Em Tóquio, um jornalista do Post enviou um email a uma mulher a que Williams se tinha referido na sua mensagem. E também notificou a polícia local e a embaixada dos EUA. Na China, um repórter do Post fez o mesmo, reenviando o email de Williams para a mulher e pedindo desculpa por estar a incomodá-la. “Não sei porque é que ele me contactou”, escreveu, fazendo eco de uma coisa que se tornava um tema entre a relutante fraternidade de repórteres que tentavam descobrir como responder ao email. Na sua casa na zona de Washington, o jornalista do Post Paul Farhi tinha a televisão ligada ao mesmo tempo que lia os seus emails naquela manhã. Abriu a mensagem de Williams. O tema não lhe era estranho, uma vez que pessoas muito próximas dele se tinham suicidado. De todas as respostas — medrosas, a desculpar-se, descrentes, tímidas — a de Farhi era a mais directa. O jornalista veterano não teve medo de se relacionar com Williams. Não viu nenhum risco resultante de nada a não ser a falta de um gesto, por isso respondeu-lhe imediatamente. “Não o conheço a si nem à sua vida ou trabalho, mas peço-lhe fortemente que reconsidere o desejo de acabar com a sua vida”, escreveu Farhi. “Pode já não ter nada para dar a este mundo, mas este mundo ainda tem coisas para lhe dar a si. Pode não estar a sofrer, mas certamente provocará sofrimento com a sua partida. Digo isto como alguém cuja vida foi profundamente afectada por aqueles que partiram precocemente. Ligue imediatamente para um amigo, um familiar, um padre, um médico ou ‘para qualquer outra alma caridosa’”, implorou-lhe Farhi antes de se despedir, desejando-lhe “paz e força para continuar a tentar”. O que impressionou Farhi foi o tom racional e calmo de Williams. Ele escreveu como se tivesse “pesado os riscos e os benefícios”, afirma. Estava controlado, mas claramente desesperado. “A outra parte da minha reacção é óbvia: ‘Mas por que raio me estás a contar isto? Quem sou eu para ti?’”Farhi nunca teve resposta e passaram-se meses até sabermos o que aconteceu a Williams. Em New Jersey, a romancista Dara Horn abriu o email e ficou irritada. “Parecia um ataque emocional”, diz. Ocorreu-me que “ataque emocional” era o que estava mais próximo da minha própria mistura entre raiva e ansiedade quando recebi a mensagem. “Achei que isto era muito injusto”, continua Horn. “‘Leia este livro ou eu mato-me. ’ Pode ser que essa não fosse a sua intenção, mas foi isso que eu senti. . . De repente, sou responsável se esta pessoa morrer. ”O grito de chamada de atenção de Williams fez lembrar Horn da leitura de um livro que ela tinha feito uma vez com o romancista Michael Chabon, que escreveu vários best-sellers. Alguém perguntou a Chabon, autor de Wonder Boys (sobre um escritor que tenta acabar o seu difícil romance), o que é que ele gostaria que fosse escrito na sua lápide. “Lembro-me de pensar que aquela pergunta era tão parva”, conta Horn. “Não por ser mórbida. Mas a assunção por trás dela. Como escritores, aquilo que escrevemos é que é o nosso legado. ”Mas Horn, que está na casa dos 30 anos, reconhece que tem tido sorte por ter leitores interessados no seu legado. Aos 66 anos, Williams não tinha. Entre os receptores dos emails, eu e Horn somos uma espécie de excepção, por não sermos jornalistas do Post. Mas, no email que me enviou, Williams referiu um artigo de opinião que escrevi para o jornal em 2013 sobre a resposta do país ao massacre de Navy Yard. Quando perguntei a Horn qual era a sua teoria sobre como Williams tinha chegado ao seu contacto, ela não soube responder imediatamente. Mas depois lembrou-se de um artigo que escreveu no Post e que foi publicado no mesmo dia que o meu sobre o impulso da nossa sociedade de catalogar cada momento das nossas vidas na Internet. Questionava o objectivo disto tudo com o título: “Quando guardamos todas as memórias, esquecemos as que são especiais. ”Horn perguntava-se se não estaríamos próximos dos faraós egípcios que se preparavam em peso para a vida depois da morte para provar o seu valor. “Porque é que despejar informação nos parece tão atraente e necessário?”, escreveu Horn. “Talvez seja o medo da mortalidade. ”A 29 de Março de 2013, Williams publicou um post no blogue intitulado “Pensamentos sobre o meu legado enquanto escritor”, que deixa pistas sobre o seu próprio despejar de informação e um vislumbre da sua tendência para oscilar entre a consciência de si próprio e o seu narcisismo. Dizia detestar a autopromoção e depois virava-se para as redes sociais tornando-se o seu próprio publicitário. Jurava não ser arrogante, mas escrevia: “Como é que vejo o meu trabalho no esquema geral das coisas? Suponho que de duas maneiras: o que deixei para trás e o efeito que terei nos outros. ”Quando recebeu o email de Williams, Horn decidiu contactar a embaixada americana no Japão depois de pensar como “convencê-lo do contrário”. Ligar para a embaixada fê-la sentir-se pequena, diz. Mas foi um passo simples que nem sequer me ocorreu. Na verdade, só quando escrevi sobre esta história é que finalmente lhes liguei. Um responsável do consulado americano disse-me que é frequente americanos morrerem no estrangeiro. Os suicídios acontecem. Há depois um processo. Depois de momentos de desordem e caos pessoal, seguem-se horas e dias de ordem. Não podia confirmar se Williams tinha morrido ou se tinha havido algum suicídio. Quando acordei, na manhã seguinte, voltei a fazer-me a mesma pergunta: “Quem faz uma coisa destas?” Mas desta vez cheguei a uma resposta. Alguém que precisa de ajuda. Censurei-me por ter ido dormir sem ter feito nada. Se Williams tivesse estado à porta de minha casa ameaçando matar-se, eu teria chamado a polícia. Se um membro da minha família ou amigo pedisse ajuda a estranhos, eu gostaria que alguém o ajudasse. A ameaça de suicídio, só por ter chegado num ecrã, não me conferia a hipótese de não intervir. Mandei uma mensagem privada através do Facebook a uma mulher que partilhava o apelido de Williams e que interagiu com ele em alguns dos seus posts no Facebook. Nos comentários parecia amável, respondendo animadamente a actualizações, incluindo fotos dele sozinho em locais cénicos no Japão. Expliquei a situação, desculpei-me pelo conteúdo da minha mensagem e fechei o computador. Durante a noite tinha nevado, a ponto de fechar Washington. Eu e a minha filha de quatro anos fomos para a rua brincar, fazer anjos na neve naquela manhã cinzenta e nevosa. Quando estava deitada, olhei para cima e pensei em Williams. Fechei os olhos na esperança de que não acontecesse o pior. Passaram-se dias até ficar a saber que aconteceu o pior. Foi pela sobrinha de Williams, com quem comuniquei por Facebook. Numa mensagem enviada oito dias depois, agradeceu-me por lhe ter contado do email que ele enviara. O tio, disse ela, tinha-se realmente suicidado, saltando de um prédio horas depois de o enviar. Meses mais tarde, dei esta notícia ao editor literário do Post, Ron Charles, tal como dera a todos os outros receptores do email que contactei para escrever este artigo. Charles tinha aberto a mensagem de manhã quando rondava pela casa de roupão. No meio do monte habitual de emails, a mensagem de Williams chamava a atenção de forma arrepiante. Charles identificou um tipo de desespero, ainda que numa forma particularmente extrema, que vê com regularidade na sua qualidade de “porteiro” daqueles que pretendem tornar-se o próximo fenómeno editorial. Quando meses mais tarde nos encontrámos para conversar sobre o email, confessou que o desespero é uma das razões pelas quais já nem atende o telefone. “Cada vez há mais pessoas desesperadas por atenção a escrever e nós simplesmente já não temos essa atenção para dar”, afirmou. “Independentemente de quão ricos ou educados nos tornamos, só temos 24 horas. E, com toda a gente a promover-se em todas as redes sociais possíveis, todos tão desesperados por sermos lidos com atenção, eu incluído, com todos nós a viver e morrer por um clique na nossa história, este é um exemplo extremo e terrível do que toda a gente sente: ‘Porque é que não estão a olhar para mim?’”É de uma estranheza sem precedentes que na nossa cultura actual praticamente qualquer pessoa consiga publicar um livro. Antes, autopublicar significava reunir fundos para pagar uma vaidade. Cópias baratas chegavam numa caixa e ficavam sem ser compradas durante anos na sala de estar do autor. Agora, a Internet torna a autopublicação quase imediata, com apenas alguns cliques. Há casos excepcionais em que a fama se segue a esses cliques, sendo o mais notável o da E. L. James e As Cinquenta Sombras de Grey, que vendeu mais de 100 milhões de exemplares em todo o mundo. Mas para a maioria dos autores, simplesmente, não há resposta. O próprio Williams, num post, recordou ter ficado ligeiramente destroçado há alguns anos depois de uma pequena editora ter publicado um dos seus livros, The Water Book, e de este não ter recebido qualquer atenção. Talvez os colegas do trabalho e amigos tenham vacilado por causa do preço, disse ele. Numa altura em que os livros se vendiam a 10 dólares, o seu custava 29, 95. Acabou por vender ou dar 60 cópias antes de deixar um caixote com os livros nos degraus de uma livraria durante a noite. “As pessoas que conseguem fazer dinheiro com a venda de livros que auto-editam acabam por criar nas outras expectativas irrealistas”, afirma Charles. “E isso também é incentivado por nós, os media, porque escrevemos histórias sobre os poucos autores famosos que publicaram eles próprios os seus livros e se tornaram best-sellers. ”Como a maior parte dos que receberam o email de Williams, Charles interrogou-se se aquela seria uma piada de mau gosto. “Mas, mesmo que fosse falso, era um penoso grito de ajuda”, comenta. Sem saber que já era tarde demais, reencaminhou-o para a mulher citada na mensagem. No outro extremo, a mulher, Keiko Sato, sabia que era tudo menos um embuste. Sato era ex-mulher de Williams. Durante décadas ouvi-o falar de suicídio, intercalado com o desejo de que a sua escrita fosse conhecida. “Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ele o faria”, diz Sato, falando-me por telefone numa tarde a partir da sua casa em São Francisco. Esta professora de Japonês conheceu Williams na década de 1970 quando ele era seu aluno e estavam os dois nos seus 30 anos. Casaram-se e ficaram juntos durante várias décadas antes de, devagar e amistosamente, se afastarem e Williams lhe pedir o divórcio. Recorda o ex-marido como um filósofo, um pensador, um escritor não apenas de palavras mas também de música. Um professor de Inglês popular, com alunos que o adoravam. A família dela no Japão continuou amigável, apesar de poder correr com ele por se ter divorciado. Tinha-lhe sido diagnosticado um cancro na próstata um ano antes de morrer, mas não fez qualquer tenção de se tratar. Cerca de oito meses antes de se suicidar, anunciou no seu blogue que tinha cancro e fez referência a uma conversa com um amigo 25 anos antes. No seu livro digital Love Letter to Japan, diz que essa conversa ocorreu com um primo. “Eu disse-lhe: ‘Quando achar que o meu trabalho está terminado, será uma boa altura para morrer. ’ E agora acho que o meu trabalho está terminado, por isso está na altura de morrer. ”Apesar de Sato ter lido os seus romances — um foi iniciado assim que o anterior estava terminado, recorda — nem sempre os admirava. Num deles, escrito depois do divórcio, havia detalhes terríveis e íntimos sobre a sua vida. “É uma questão de privacidade”, comenta. Testemunhou as décadas de frustração por a sua escrita não ser reconhecida. Recorda-se de já em 1983 ele ter dito que se não tivesse sucesso era bem capaz de se suicidar. Entre 1988 e 1992, quando o casal vivia em Seattle, houve um período particularmente agudo de depressão. Mas nas últimas mensagens que ele lhe enviou, em finais de 2013, Sato ficou surpreendida com a mudança. “Acho que no final ele não estava deprimido”, afirma. “Queria terminar o seu trabalho. Sentia que tinha conseguido o que realmente desejava fazer na vida, ainda que a sua escrita não fosse reconhecida. ”Um amigo de Williams no Facebook deu ecos disso mesmo num comentário na sua página no dia em que ele morreu. “Ontem, ele escreveu um post de que aquele seria o seu último dia na Terra”, escreveu o amigo, referindo-se a Williams pelo seu pseudónimo. “Para muitas pessoas, isto pode ter sido uma crise emocional, mas qualquer pessoa que conhecesse Katry perceberia que isto tinha sido uma coisa pensada durante muito tempo. ” Elogiou-o como um professor excelente e altamente respeitado, bem considerado pelos colegas, um homem com qualidades e uma grande calma, com capacidade de se relacionar com os outros e, o que para Williams seria o mais importante, um escritor. Apesar de Sato e Williams terem mantido contacto por email três ou quatro vezes por ano, há dez anos que ela não o via. Quando recebeu o email suicida, ligou para o hotel onde ele vivia no Japão para que um empregado fosse ver se ele estava bem. Não mencionou a palavra “suicídio”, referiu apenas que estava preocupada com ele. Williams estava bem, afirmou Sato. No dia seguinte, começou a receber uma quantidade anormal de emails de estranhos enviados de vários sítios do mundo — os jornalistas que tinham recebido aquele que era realmente o seu último mail. Na caixa correio electrónico estava uma mensagem do consulado americano dando conta de que Williams tinha morrido, conta. Saltou do telhado do seu hotel. Sato contactou o irmão dele, Albert, na Califórnia. A família não foi buscar as cinzas porque ele tinha deixado uma nota a indicar que queria ficar no Japão. (Albert Williams não quis prestar declarações para este artigo. ) O irmão enviou-lhe alguns dos objectos do ex-marido, que achou que ela gostaria de ter. Será que Sato carrega alguma culpa por este último capítulo da vida de Williams?“Eu não podia impedi-lo de morrer”, diz. “Ele é o tipo de pessoa muito independente e quando decide uma coisa é quase impossível demovê-lo. ”Encontro algum conforto nisto, vindo da mulher que o conhecia melhor do que ninguém. O que ligava Ron Charles, Dara Horn, Paul Farhi e eu era a crença de que poderíamos ter feito alguma coisa. Sato dizia-nos que não teria feito diferença. Dada a diferença horária e a distância, e o seu passo audacioso de enviar emails a jornalistas que não tencionavam sinceramente intervir, parece plausível que a mensagem não fosse um pedido de ajuda, que ele não tivesse qualquer esperança de desencadear uma missão de salvamento internacional. É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita. Ao longo da sua vida enquanto escritor, “ele tentou quase de tudo”, conta-me Sato. “Então, esta talvez fosse a sua última esperança. Que alguém reconhecesse que aquela pessoa era um escritor e que valia a pena perceber o que ele tinha para dizer. ”Mas Moutier, da American Foundation for Suicide Prevention, não dá tanto conforto. “O mito é as pessoas acharem que se alguém está mesmo inclinado a matar-se nada a deterá”, afirma. “Mas isto é incorrecto sob vários aspectos. Não diríamos isso sobre outro tipo de doença com consequências fatais. E, em segundo lugar, contraria a prova de que quando as pessoas conseguem ultrapassar este apelo intenso [de morrer], muitas vezes sentem vontades diferentes depois. ”Moutier refere a nossa tendência moderna de partilharmos demais e, ironicamente, nos isolarmos na tecnologia. Falámos sobre o facto de o último apelo de Williams ter sido feito a estranhos. Confessei que fiquei relutante de responder ao email, por medo de correr algum risco ou parecer tonta. É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita“Como americanos, temos muito pudor em intervir porque temos medo de nos estarmos a intrometer ou ofender”, diz. “A nossa cultura não ajuda porque nos diz que somos todos ilhas, responsáveis por nós próprios. É um fenómeno esquisito, acho, por causa dos nossos ambientes electrónicos. A condição humana faz de nós criaturas sociais e pedir ajuda assim foi a sua forma de se ligar. ”Não passa despercebido que ao escrever sobre o suicídio de Williams lhe estou a dar aquilo que ele desesperadamente queria. Esta história vai tornar-se agora parte da sua narrativa digital. Provavelmente será lida por muito mais pessoas do que qualquer coisa que ele tenha escrito ao longo dos seus 66 anos. Será dissecada, receberá likes e será partilhada ou deitada para o lixo. Seja como for, esta peça conseguirá uma coisa que Williams queria quando carregou no botão “enviar” do email na manhã em que se suicidou: resposta. Reconhecimento. “Tudo o que escrevi na minha vida escrevi para si”, escreveu ele no último ano de vida numa entrada do blogue intitulada “The end of the road” [O fim da estrada]. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Se acabar por ser como um presente de Natal que não desejamos, peço desculpa. Tentei dar-lhe aquilo que pensava que precisava, não o que queria. ”
REFERÊNCIAS:
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