PS no mercado secundário da política: Euforia nos mercados
Mais uma semana atípica na bolsa da política. O PS investiu tudo no mercado secundário, comprando as acções especulativas do PCP e do Bloco de Esquerda. Será um capital seguro para António Costa ou é golpe de Estado e bancarrota certa, como histerizam a PàF e os comentadores. (...)

PS no mercado secundário da política: Euforia nos mercados
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.3
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mais uma semana atípica na bolsa da política. O PS investiu tudo no mercado secundário, comprando as acções especulativas do PCP e do Bloco de Esquerda. Será um capital seguro para António Costa ou é golpe de Estado e bancarrota certa, como histerizam a PàF e os comentadores.
TEXTO: O meeting mais revolucionário da história do neoliberalismo começou há dias na estátua do touro de bronze de Wall Street, um dos sítios mais encantadores que o dinheiro pode comprar. Porque ali, debaixo do comprido par de cornos, não faltava dinheiro: os corretores da bolsa de valores, as agências de notação, os bancos de investimento sentiam-se tão ricos e de “cofres cheios” como aquele país europeu com 130 por cento do PIB de dívida pública e défice de 7, 2 por cento. De Nova Iorque até à capital desse extraordinário país, Lisboa era uma simples linha recta por cima do Atlântico. Todos os presentes engoliram, na banquinha do passeio, um hot dog e uma coke para selarem um compromisso de proximidade momentânea (a taxa de juro zero) com os seres humanos do mundo que têm mesmo de trabalhar para viver. Alguns até deixaram gorjeta ao dono da banquinha de cachorros-quentes, mister Frank Assis, descendente de portugueses que um dia foram tentar a sorte na terra das oportunidades. Depois, subiram a um arranha-céus tão alto, mas tão alto, que a sala de reuniões era mais secreta do que uma cave de ladrões. O presidente da mesa da histórica reunião foi o ex-presidente do banco Lehman Brothers. A acta Bloomberg da reunião descreve, aliás, um voto de aclamação unânime dos participantes — ao banco — pelo empreendedorismo pioneiro na crise mundial, ao ter sido “o primeiro, em Setembro de 2008, a falir abnegadamente pelo futuro cumprimento do nosso plano, finalmente!, em Outubro de 2015”. Na mesa, como vogais, estavam os representantes das empresas de subprime Fanny Mae e Freddie Mac que, ao serviço do mercado de hipotecas, conseguiram o que se pensava impossível, “arruinar a economia e contaminar o mundo inteiro com uma fantástica bolha imobiliária” e “que pagaram a sua independência com uma inesperada e brutal intervenção do Estado federal americano, que inclusive impôs limites aos salários dos gestores”. Os representantes das agência de notação financeira Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch aplaudiram de pé e logo tentaram subir qualquer coisa do lixo para a nota triplo AAA, e descer outras do AAA para lixo, mas a mesa pediu que se refreassem, “com todo o respeito que me merecem três instituições de rating que souberam, como ninguém, inflacionar e atribuir méritos e avaliações estapafúrdias a produtos tóxicos que se estava mesmo a ver no que iam dar, sem prejudicar as indemnizações milionárias aos seus responsáveis, ficando todos nós — e aqui sabemos que nós significa mesmo só nós, os mercados — a ganhar”. Leu-se então o resto da lista de presenças:— Bear Sterns, Washington Mutual Inc. , P. P. Morgan Chase & Company, Insurer American International Group Inc. , Merril Lynch & Co. , Goldman Sachs. . . — Presente!, gritaram todos, alegres como rapazes no basebol. — Proponho ainda um voto de pesar ao nosso irmão Barings, banco-herói desta luta, que pereceu em Inglaterra na maior solidão e injustiça. Paz à sua alma!— Paz à sua alma!Desataram a berrar como corretores depois de tocar o sino do Dow Jones, ali ao lado. — Silêncio! Bom, sabemos por que é que estamos aqui. Meus amigos, quem me ajuda? A luta foi dura e longa, mas valeu a pena, não é verdade?— Sim, termos estado uns tempos a roer ossadas até voltarmos ao bife do lombo. — Termos admitido a entrada de “mecanismos de freios e contrapesos”, ih, ih. — Termos visto o aparecimento da supervisão, blá-blá. — Termos fingido que a crise não chegaria à Europa e rebeubéu, pardais ao ninho. — A Europa ter fingido que estava tudo bem porque o mercado se auto-regulava, bilu-bilu-bilu. — Termos aturado a conversa de que existe um “braço monetário contra a economia real”, hello, duh, claro que existe, LOL. . . — Termos visto milhões de pobres a pagar a austeridade e outros a comprar por tuta e meia empresas privatizadas à pressa!— Terem-nos chamado gananciosos, desleixados, criminosos, incompetentes!— Incompetentes nunca!, guincharam. — Sim, incompetentes nunca, porque nós sabíamos desde o princípio o que estávamos a fazer. A vitória foi difícil mas é nossa!Neste momento fez-se silêncio, como numa escola onde entra um tipo armado. O ex-presidente do Lehman Brothers suspirou:Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. — Fizemos tudo bem. Ele primeiro disse que “não pode substituir-se aos partidos na formação do governo”. E que é fundamental uma “maioria parlamentar estável”. Queridos amigos. Está para breve a conclusão do nosso maravilhoso plano: só para vermos a cara do Presidente da República Portuguesa a dar posse a um governo do PS, Bloco de Esquerda e PCP já valeu a pena termos desencadeado a crise financeira mundial! Aquela cara será impagável. — Ah, ah, ah, ah!!!— A cara do Cavaco Silva vai valer ouro!— Eu dou-lhe um triplo AAA!Nesse momento entraram duas figuras. Pelos vistos, tinham chave em Wall Street. — Mas o que é isto, meus senhores?— Ahhh. . . Pedro Passos Coelho, Paulo Portas. . . ahhh. . . — Foi para isto que fizemos o esforço da PàF, para sermos traídos pelos mercados? Arghhhh, grunf, snif. . . — Dêem-lhes um copo, rápido. Vá lá Pedro, sorri. Isto é tão, mas tão divertido! Com o PS, estamos sempre bem, não percebes? Paulo, por favor, não saltes dessa janela, eu sei que gostas de clássicos dos anos 30, mas é muito alto.
REFERÊNCIAS:
Alexis do Mito Trágico Tsipras: Um protagonista em agonia
Herói, traidor, corajoso, cobarde, digno, vil, charmoso, patético, simpático, tontinho, inteligente, estúpido, calculista, ingénuo, visionário, louco, leão, cordeirinho, vitorioso, derrotado. A lista de atributos de Tsipras vai continuar. Morto ou vivo. (...)

Alexis do Mito Trágico Tsipras: Um protagonista em agonia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Herói, traidor, corajoso, cobarde, digno, vil, charmoso, patético, simpático, tontinho, inteligente, estúpido, calculista, ingénuo, visionário, louco, leão, cordeirinho, vitorioso, derrotado. A lista de atributos de Tsipras vai continuar. Morto ou vivo.
TEXTO: Das cinzas da União Europeia, ou melhor, da “União Europeia”, quer dizer, da “‘União Europeia’” (esta ““‘União Europeia’”” vai levar com aspas em cima até confessar que não passa de grande mentira), irá nascer o quê? Das cinzas da Europa deverá nascer um novo mito. Ou então não vai nascer. A gente sabe lá, o que é que aconteceu entre o fecho desta página de jornal e os últimos segundos em Atenas, enquanto a lemos? Está lá o divino Parténon em mármore, cá em baixo a lojeca de sandes ainda tem carne no espeto? Em Berlim, continuam a comer-se boas salsichas, senhora Merkel, senhor Schäuble? Os contribuintes alemães continuam a pagar os preguiçosos do Sul? Boa ideia a vossa de pôr a Grécia cinco anos fora do euro. Claro que ideia é contar em anos de Plutão, cada volta ao Sol dura 248, 5 anos terrestres: dá mais tempo de Grécia fora do euro do que um Reich tem mil anos. Esta semana, com a sonda New Horizons, temos fotos nítidas do planetinha gelado nos confins do sistema. Plutão também foi planeta, depois baniram-no uns tempos, mas voltou à “união solar” como planeta-anão. Pagou juros astronómicos, mas conseguiu. Qual é o problema dos gregos?Já agora, porque não pôr antes a Alemanha cinco anos de fora do seu ideal de Vingança sobre povos inteiros? Uma ideia bonita para comemorar os cem anos da I Guerra, os 70 anos do fim da II Guerra e os 15 anos do início do outro desastre, o euro. Alexis Tsipras: o homem que assinou um acordo no qual não acredita porque lhe encostaram “uma faca ao pescoço”. Que, antes, achou boa ideia pôr o povo a responder a questões vitais com um referendo. O protagonista da peça perguntou ao coro o que ele acha da vida, mas veio o deuteragonista (a segunda personagem numa tragédia), a Alemanha, que vingou o atrevimento. A Grécia teve de aceitar uma punição cruel, um acordo recessivo que não tem qualquer hipótese de funcionar económica, financeira e socialmente, como toda a gente sabe. Tsipras, o protagonista, entrou em agonia. Quer dizer “luta suprema”. O momento em que alguém se debate com a morte. Como dizia Sófocles, que inventou o teatro com duas personagens em palco: “Porque o tempo do ser vivo é breve, mas sob a terra o morto escondido vive um tempo eterno. ” Também disse, em antecipação do sonho da Europa Unida: “Nenhuma mentira envelhece no tempo”. Em resumo, os grandes mistérios da ““““‘União Europeia’”””” e das suas “maratonas negociais” serão estudados, nos milénios futuros, como hoje estudamos os mitos gregos. São contos confusos mas graves. E por falar nisso: está um bocado farto de comparações entre as histórias da Grécia Antiga e a realidade contemporânea, não está? É que já não se pode, pois não? Tsipras seria um astuto Ulisses que imaginou o cavalo de Tróia mas a coisa correu mal e não sei quê, conversas que já deram o que tinham a dar, vamos parar com estas secas, não é? Claro que sim. Bom, só mais algumas, que isto tem a sua graça. Advertência de cinema e série de televisão: qualquer semelhança entre as personagens e factos dos mitos e o senhor Tsipras e o senhor Schäuble são meras coincidências. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. : o rei da Frígia (noutras versões, da Syrizia) resolveu testar a omnisciência dos deuses e roubou os manjares divinos, como o néctar e ambrosia, que dão a imortalidade. Depois, ofereceu um festim em que lhes deu a comer o seu filho Pélope Varoufakis, com quem se incompatibilizara. Quando Schäuble, ai, quando Zeus se apercebeu disto, Tântalo foi lançado ao Tártaro, que é mau para os dentes e para as máquinas de lavar Siemens e Bosch. Doido de fome e de sede, com os bancos fechados há semanas, o rei desafiador viveu para sempre em suplício, mergulhado em água até ao pescoço (no sítio em que se espetam as facas). Quando baixava a cabeça para beber, a água escoava-se, quando estendia os braços para os frutos em cima (da política agrícola comum), estes afastavam-se com o vento. Em suma, algo aparentemente tão próximo é inalcançável. Tão perto e tão longe. Mais do que uma tragédia, uma chatice. : o titã astuto e inteligente, farto de ver um Zeus rancoroso em cadeira de rodas a tratar mal os homens, devolveu o fogo à humanidade. Isto é, o conhecimento, as artes, a vontade de viver, a possibilidade de não estar condenado a pagar dívidas e gorduras de boi aos bancos toda a vida. Criou com isto maus fígados aos alemães, que reuniram 18 deusinhos em Bruxelas e o condenaram a ficar preso a uma rocha. Todas as manhãs uma águia vem comer o fígado de Prometeu (o nome quer dizer Antevisão, mas anteviu mal), e todas noites o órgão lhe renasce a uma taxa que vai para os 15 por cento nas maturidades mais longas. Ou mais, ou mais, depende da reacção das bolsas. : o mais astuto dos mortais conseguia sempre enganar a Morte e Merkel, até que um dia foi posto a carregar uma pedra monte acima e, chegado ao cume, sem qualquer explicação dos credores e investidores, a pedra rola sempre por ali abaixo, quase arrastando Varoufakis, que felizmente tem a mota ligada. Significa todos aqueles esforços infinitos que não levam a lado nenhum, isto é, a dívida da Europa do Sul à “““““‘União Europeia’”””””.
REFERÊNCIAS:
À volta da mesa todos somos críticos
Chamam-se foodies e reúnem-se online na Zomato, a plataforma que criou uma comunidade em torno de restaurantes e comida. (...)

À volta da mesa todos somos críticos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chamam-se foodies e reúnem-se online na Zomato, a plataforma que criou uma comunidade em torno de restaurantes e comida.
TEXTO: Há pouco menos de um ano, Rita da Nova procurava no Google informações sobre a sala de refeições da Mesquita de Lisboa. Queria ver o menu e ter noção de quanto podia custar uma refeição. Ia na quinta página de resultados e isso significava já pouca esperança de encontrar informações como menu, preços, se tinham ou não. Mas na descrença da quinta página do Google encontrou numa das entradas um nome que nunca tinha visto: Zomato. Registou-se logo, tinha a empresa acabado de arrancar em Portugal, a 9 de Abril do ano passado, para cobrir a área da grande Lisboa, do centro a Torres Vedras, Oeiras ou Loures. Rita, de 23 anos, entrava numa rede social a que se adere como a qualquer outra e onde há informações sobre ementas, horários de funcionamento, contactos. Aí avaliam-se restaurantes de 1 a 5, escrevem-se críticas, mas também se partilham fotografias dos pratos, comentam-se as opiniões de outros utilizadores, seguem-se outras pessoas e somam-se seguidores. “Ainda não havia muita gente registada e a minha tendência foi fazer reviews de todos os sítios onde já tinha estado. Acaba por ser uma competição connosco próprios: em quantos sítios já estive?”, lembra Rita desses primeiros tempos de Zomato. “Há uma altura em que te fartas um bocadinho e depois se calhar voltas a estar uma noite inteira a escrever. Depois olhava para o relógio e pensava ‘espera lá, isto é um disparate, estou a perder a minha noite nisto’. ”Entretanto moderou-se, passou-lhe a febre inicial. “Eu não levo isto assim tão a sério. . . não faço ideia de quantas reviews escrevi, não faço ideia de quantas fotos tenho, nem quantos seguidores. ” Tem 132 opiniões sobre restaurantes, 563 fotografias e 650 seguidores. Estes números fazem dela uma das mais assíduas utilizadoras da Zomato Portugal e uma super foodie de nível 10 — os utilizadores têm pontos segundo o número de reviews escritas e de fotos adicionadas. “Faço-o pela experiência da escrita — escrevo muito e em várias frentes. Alio duas coisas de que gosto: ir a restaurantes e escrever”, explica. “É o meu gosto por partilhar histórias: vou, tenho uma experiência e depois conto-a. ”Nos utilizadores mais acérrimos há em comum a ideia da experiência: não é só a comida, é tudo o que está a acontecer em torno dela e que está a proporcionar um momento. É esse momento que se procura hoje em dia, quando se sai para jantar fora, explica Miguel Ribeiro, director da Zomato Portugal. E, no entanto, a génese da empresa não tem nada que ver com a ideia da vivência do restaurante. Em 2008, em Deli, na Índia, Deepinder Goyal e Pankaj Chaddah, dois jovens consultores, trabalhavam num quinto andar, numa cidade onde o hábito é o de encomendar refeições para serem entregues no escritório. Eram demasiado preguiçosos para se meterem no elevador, chegarem ao rés-do-chão e olharem para as ementas de uma cafetaria que havia naquele mesmo prédio. Depois a comida ser-lhes-ia entregue na secretária, mas ideal era mesmo que nem precisassem de sair da cadeira para fazer o pedido. Com um pequeno esforço acabariam com esta trabalheira do sobe e desce: digitalizaram os menus da cafetaria e colocaram-nos na intranet da empresa. Agora era só ligar e pedir. Todo o escritório começou a usar. Ao fim-de-semana davam umas voltas pela zona e recolhiam mais menus para juntar à tal pasta. Quando outras empresas mostraram interesse em ter acesso às ementas, os dois viram a oportunidade de negócio. Conseguiram um investimento de 1 milhão de dólares, abriram a Zomato, nessa altura apenas uma plataforma de acesso a menus de restaurantes com informações sobre serviços de entrega e take away. A história da rede social que lhe está associada vem mais tarde, em 2013, no mesmo ano em que a Zomato chegou a Portugal (mas só começou no activo em 2014), um país sem a cultura da entrega de refeições no local de trabalho, mas onde tudo o que é importante se passa à mesa, diz Miguel Ribeiro. “Portugal é um país bastante app savvy: tudo o que sejam novas tecnologias, plataformas, aplicações, nós queremos conhecer, testamos e usamos com alguma frequência. Uma aplicação deste tipo veio em bom momento: depois da crise, as pessoas estão a querer sair cada vez mais, e quando saem querem ter uma experiência como deve ser. ”Em Setembro de 2013, a Zomato recebeu um investimento de 37 milhões de dólares da Sequoia Capital para se expandir e instalou-se em Portugal. Foi a oportunidade para desenvolver uma plataforma que, para além de reunir informação, quer motivar a comunicação entre os utilizadores: surgiu o “feed de foodies, um facebook para apaixonados pela comida”, descreve Miguel Ribeiro. Passou a ser possível ver onde andam a comer os utilizadores que fazem o check in em determinado sítio, ver as fotografias do que comeram ou da vista que se tem da mesa onde se sentaram, comentar as reviews, conhecer pessoas. Esta nova forma de usar a Zomato foi estreada internacionalmente, ao mesmo tempo que se lançou a plataforma portuguesa. “Isto mudou tudo: em todo o mundo, passámos de 300 mil visualizações por dia para 1 milhão, no espaço de um mês e meio”, conta o director. Por mês, a Zomato tem 80 milhões de visitas, a nível global. Depois de chegar nesta versão mais avançada à área da grande Lisboa, a plataforma começou a alterar-se com a equipa portuguesa, inicialmente de 15 pessoas, hoje de 33: reforçou as componentes de rede social — fotografias, check in — e fez nascer funcionalidades como as colecções: listas organizadas pela equipa de conteúdos e que reúnem para rápido acesso os estabelecimentos com wi-fi, ou com sumos detox, e uns quantos com comida fora de horas. Os temas das listas mudam ao longo do ano e à medida que os utilizadores fazem sugestões — em Maio, por exemplo, criaram a colecção dos melhores sítios com caracóis. Há ainda duas listas em constante actualização e que fazem parte da rotina dos utilizadores mais frequentes: os restaurantes do momento e o que há de novo na cidade. Até que cada nova ideia para o produto português (integradas mais tarde nas plataformas de outras cidades) chegue aos ecrãs dos computadores e smartphones, é preciso um intenso debate entre Miguel Ribeiro e os directores indianos. A ideia das colecções, por exemplo, surgiu de um pequeno pormenor que o português se lembrou de alterar. “A barra de pesquisa dizia ‘pesquisa’ e eu achava que as pessoas não sabiam o que escrever ali, então mudei para ‘apetece-me’. ”Neste momento, Miguel Ribeiro estica um pouco mais a corda com o Zomato. XXX — Food Porn, uma área onde se reúnem as melhores fotografias dos utilizadores. A princípio os responsáveis indianos não ficaram muito confortáveis com a palavra porn: “Na Índia eles são diferentes. . . isto ainda não está como eu quero”, diz Miguel, que vai continuar a insistir. Mafalda Beirão, de 25 anos, já escrevia no seu blogue sobre os restaurantes onde ia antes de aparecer a Zomato e foi por isso que conheceu a equipa: convidaram-na a visitar as instalações. Copiou para a aplicação as reviews que tinha feito no blogue Um Malmequer, iniciado em 2008, e é a par da sua página pessoal que continua a usar a plataforma, embora escreva por vezes críticas mais pequenas só para a Zomato. Convidar bloggers para conhecer as instalações foi a maneira de fazer circular o nome Zomato pela Internet. Depois chamaram-se os utilizadores mais assíduos, como continuam a fazer, um ano depois. Todas as semanas há algum desconhecido que entra pelas salas amplas onde uma equipa muito jovem, com uma média de 25 anos, actualiza as informações sobre os restaurantes, faz listas, segue de perto os foodies. Todos à volta de uma grande mesa dizem olá a quem entrar, em modo descontraído. É bem possível que se chegue na altura em que se ouvem músicas dos Santamaria ou de qualquer outra portuguesa dos anos 2000. “Ao princípio podia parecer esquisito chamar alguém para nos vir conhecer ou beber um café — tínhamos de ir sempre dois, para não parecer nada de esquisito. Começámos com bloggers, tirávamos fotografias, partilhávamos e isto tornou-se tendência: outros utilizadores também queriam vir tirar uma fotografia com o staff”, conta Miguel. Os grandes utilizadores, heavy users, começaram também a ser convidados e, neste momento, a lógica que Miguel Ribeiro quer instalar é a de um escritório aberto a qualquer pessoa que queira tocar à campainha, conhecer a casa e dar sugestões. “Isto não é assim nos outros países, mas vai começar a ser”, diz sobre esta proximidade com os utilizadores que a equipa portuguesa cunhou e que faz com que qualquer foodie mais ávido saiba dizer o nome de dois ou três membros da equipa e já tenha sido convidado para meet ups, os jantares que reúnem foodies, donos de restaurantes, chefs e equipa. Esta lógica de contacto directo com o utilizador está na base do case study que a Zomato Portugal é dentro da Zomato internacional, diz o director. “Nas entrevistas da altura do lançamento, o CEO dizia que no primeiro ano íamos chegar a meio milhão de visualizações [em Lisboa] e eu dizia-lhe: ‘Estás a passar-te. Isto é Lisboa, não é Deli. ’ Afinal estávamos os dois a passar-nos. Atingimos um milhão de visualizações em Lisboa e estamos a passar dos 150 mil utilizadores. ”Agora a Zomato internacional já não vive sem a portuguesa, pelo menos no que toca à Europa: sempre que é preciso lançar a plataforma noutro país, há uns quantos membros da equipa portuguesa que se põem a caminho. “O primeiro país com um director local foi Portugal, quando fui contratado. Começámos com equipa 100% nacional e alguma ajuda da Índia. Isto resultou muito bem. Empacotámos este processo e agora levamos para os outros países. ” Esta estratégia, explica, permite perceber melhor, desde o início, os hábitos dos utilizadores à mesa: na Índia criam-se menus para toda a vida, mas em Lisboa há o prato do dia que requer uma actualização constante das informações; além disto, nenhum indiano adivinharia que no Verão é imperativa uma lista dos melhores sítios para comer caracóis. Mafalda Beirão usa a aplicação principalmente quando quer ter o blogue actualizado com os sítios mais trendy, ou quando procura algum sítio novo para jantar. Não usa muito o lado de rede social, não segue muita gente e não cultiva o hábito de ler críticas para passar o tempo. O gosto pela comida não é uma coisa antiga. “Nunca fui de gostar de comer. Tenho vindo a aprender e tem ajudado esta moda e boom de restaurantes que temos tido. Incentiva-me a querer conhecer sítios diferentes”, conta e explica que foi o facto de ver outros bloggers a escrever sobre restaurantes que a levou a fazer o mesmo. “Não gosto de ir com a obrigação de ser supercrítica e atenta a tudo porque depois vou escrever”, afirma. “Sou bastante benevolente. Custa-me sempre atribuir a pontuação. Mas gosto de ser muito específica porque quando eu procuro restaurantes não gosto de ler críticas de duas linhas: ‘Não gostei, a comida estava fria. ’ Não é o suficiente. Às vezes até sou exaustiva porque gosto de partilhar a experiência toda”, explica a super foodie de nível 9, especialista nos restaurantes do Saldanha. A partilha da experiência é aquilo de que todos os foodies estão à procura. Mas o que é a experiência? Pedro Mota, consultor de tecnologia, 25 anos, responde que tem que ver com “o facto de vivermos na sociedade do espectáculo: quando vamos a um concerto, não queremos só ouvir a música, queremos ver o espectáculo. Quando comes um prato, não são só os ingredientes, é o restaurante, a maneira como és recebido, o tipo de pessoas que estão à tua volta — estar num restaurante a comer uma coisa deliciosa e ter alguém a dizer asneiras atrás é a pior coisa que pode acontecer”. Procura não ser destruidor: “Tento deixar uma crítica construtiva. Mas às vezes é difícil e ficas mesmo zangado com o que pagas. Há sítios em que a relação qualidade/preço justifica que faças uma crítica mais agressiva. Há aqueles que te servem uma bolinha de carne pequenininha e cobram pela vaca inteira e sais de lá mesmo irritado. ”Pedro Mota abre a página da Zomato logo de manhã, assim que chega ao trabalho, tal como abre o email ou o Facebook. Dá por si a ler reviews: para descobrir lugares e adicioná-los à lista dos que quer conhecer — uma funcionalidade que a plataforma também tem —, porque quer planear o fim-de-semana, ou porque gostou do estilo que outro foodie, que na maioria das vezes não conhece de lado nenhum, usou na escrita. “Deve haver umas três pessoas que conheço na Zomato. Há uma data de pessoas que sigo e me seguem, mas que não conheço: tem-se liberdade de interacção”, explica, lembrando que esta não é uma rede social de contacto, como o Facebook, que usamos para estar perto de amigos. É uma rede de comunidade, onde as pessoas se conhecem e juntam em torno de uma mesma afinidade. “Eu sempre gostei de cozinhar, de comer e portanto para mim é natural. E é quase como ser um bom cidadão”, brinca. Algumas vezes os restaurantes respondem às críticas, geralmente com simpatia, diz Mafalda Beirão. É este feedback que os vai fazer melhorar o negócio, explica Miguel Ribeiro. Para já, o plano da Zomato é continuar a ganhar tráfego e a catalogar exaustivamente o distrito de Lisboa — têm agora 87% da zona coberta. Vendem já publicidade dentro do site a alguns restaurantes e têm um serviço de consultoria para clientes — cerca de cem. Cada um ganha um painel de controlo online na página da Zomato para que o gerente acompanhe o impacto da rede no seu negócio: o número exacto e a média de pessoas que visita a sua página na Zomato ou oportunidade de resposta a todas as opiniões dos foodies. Alexandra Gameiro, dona do restaurante Volver by Chakall, no Lumiar, foi a primeira a estabelecer parceria com a Zomato, em Junho, porque confiou no projecto. “É uma maneira de estar a par do que se passa no mercado e de afinar pormenores”, diz. “Não consigo apontar uma alteração profunda que tenha feito por causa das opiniões dos utilizadores, mas há detalhes, chamadas de atenção pontuais que para mim são importantes. Por exemplo, se mais que uma pessoa refere que há pouca iluminação, se calhar tenho de repensar isso. ”A Zomato ajudou também a que um público mais jovem conhecesse o restaurante, diz Alexandra Gameiro, e acrescenta que foi por causa da aplicação que alguns dos clientes encontram o restaurante. “Não temos a porta aberta numa rua de passagem, numa zona turística ou de escritórios. Quem vem cá tem de saber onde estou e ao que vem. ” Quando pergunta aos que vê chegar pela primeira vez como descobriram o Volver, ouve com cada vez mais frequência: Zomato. Nos restaurantes Moules também se sente que há quem venha “porque ficou curioso com as fotografias do Zomato, com o banner de publicidade que está sempre a mudar, ou por causa das críticas”, explica Filipa Seabra, que valoriza a proximidade com a plataforma. Dos três restaurantes do grupo Moules, dois já receberam encontros e foodies: “Sentamo-nos à mesa com eles e é um momento de lazer, mas também de trabalho em que as pessoas aproveitam para fazer perguntas. Vamos explicando como surgiu o conceito, as receitas, porque abrimos mais restaurantes. No fundo, é uma acção de charme. É uma maneira de estarmos disponíveis para esclarecer e mostrar o que oferecemos. São encontros altamente produtivos e rentáveis”, explica Filipa. Para criar mais feedback e para dar a conhecer o seu negócio, há restaurantes que oferecem convites que a Zomato distribui pelos seus heavy users, “aqueles que sabemos que vão dar a sua opinião clara e sincera”, explica Miguel Ribeiro. Mafalda Beirão já se sentiu muito bem tratada em situações em que levava o convite da Zomato na mão, mas também já foi despachada. “Acho que acabo por ser mais crítica. À partida já sabem que dali pode sair uma review. Mas não exagero, escrevo o que aconteceu. Mesmo quando me tratam pior ou melhor, nunca sei até que ponto aquilo não é mesmo o atendimento deles, em vez de uma consequência de eu ter convite. ”Para Rita da Nova, o tratamento fica logo “completamente diferente: sou tratada nas palminhas”. Por isso gostou que um dos restaurantes tivesse pedido que não dissesse que ia pela Zomato ao fazer a marcação. Queriam testar o serviço. O Volver recebe convidados da Zomato no seu restaurante. Esta é mais uma forma de Alexandra desmistificar ideias feitas sobre um restaurante que tem um chef famoso. “O Chakall é uma pessoa carismática e há quem goste e quem odeie. O convite é uma maneira de conhecerem outro lado do Chakall”, diz Alexandra que atingiu a pontuação de 4, 9 em 5 na Zomato e sente a pressão de a manter. Paulo Duarte Silva, de 41 anos, diz que quando é convidado tem “a preocupação de estar mais atento a outras coisas para tentar ser justo na avaliação, o que não invalida que seja igualmente crítico”. Antes da Zomato, na lista de contactos do seu telemóvel havia uns 100 números de restaurantes. O facto de a página da aplicação dar, em poucos cliques, acesso ao mapa e à marcação do telefone do restaurante foi uma das razões para ficar “instantaneamente fã”. Hoje, menos de um ano depois, “não há nada que funcione mal na aplicação, mas há áreas a melhorar, por exemplo a área do gamification [estímulos aos utilizadores para que não parem de usar a aplicação ou para que usem cada vez mais]. As pessoas que gostam mais desta componente de jogo são mais levadas por ela. Mas se as coisas não forem bem feitas, acabamos por afastar outros que não respondem tanto a estes incentivos”. Paulo fala especialmente da subida de níveis como encorajamento a que se escrevam mais críticas. Foi isso que o fez, ao início, relembrar boa parte dos sítios onde já tinha estado e escrever sobre eles. “Normalmente não sou um produtor de conteúdo nas redes sociais, como entrei tão cedo achei piada ao facto de ainda haver poucos utilizadores e reviews. Comecei a colocar a minha opinião e rapidamente percebi que estava a escalar no ranking dos utilizadores com mais reviews [este top desapareceu, entretanto]. Cheguei a estar nos 20 primeiros, que era o meu objectivo. ”“Antigamente, o gastrónomo tinha aquela imagem erudita, quase snob. As pessoas estão a aprender a escrever: vejo como os outros escrevem, consigo adaptar a minha linguagem a isso e vou evoluindo”, observa Miguel Ribeiro. “Nesta fase temos pessoas que escrevem extremamente bem, outras que estão a aprender e outras que escrevem pessimamente, mas que põem ali o coração. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Numa plataforma onde restaurantes de topo e espaços da moda convivem com cafés de bairro de balcão de alumínio, fala-se de tascos com toda a legitimidade e de como também estes sítios podem oferecer “a experiência”. Rita, Pedro, Mafalda e Paulo concordam: o que interessa é a relação entre espaço e o preço que se está a pagar. “Quando se vai a um tasco, vai-se mentalizado para um tasco”, resume Pedro. Nas suas reviews, Rita pode começar na situação que a levou ao restaurante e acabar nos pontos de cozedura: “É que é preciso ter cuidado quando aquilo que se serve é proteína fumada, já que haverá sempre um ponto de confecção ideal que não deve ser ultrapassado, sob pena de se estragar tudo”, lê-se numa das opiniões da foodie que se apresenta como “nazi no que toca ao atendimento”. “A comida até pode ser uma porcaria, o sítio até pode ser o maior tasco à face da terra, mas se as pessoas forem simpáticas, chegarem com um sorriso e estiverem felizes a atender, sou toda deles e volto as vezes que forem necessárias. ” Rita desvenda o segredo assim.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura ajuda carne comunidade social vaca
Açúcar. O grande vilão
Entrou para a lista negra dos maus alimentos mas foi o consumo excessivo que fez dele o mau da fita. (...)

Açúcar. O grande vilão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Entrou para a lista negra dos maus alimentos mas foi o consumo excessivo que fez dele o mau da fita.
TEXTO: Está há séculos na despensa, mas, de repente, passou a ser alvo de perseguição. Chamaram-lhe vilão, compararam-no a uma droga, culparam-no pelo aumento da obesidade, da diabetes, das doenças cardiovasculares, das cáries que assaltam os dentes das crianças. Colocaram-lhe um imposto, em países como a Finlândia e França, ameaçaram fazer o mesmo em Portugal. O açúcar, que transforma refeições sem interesse em iguarias, actor principal de sobremesas, passou a estar na lista negra dos alimentos. Multiplicam-se os estudos, as teorias, a literatura. Os consumidores preocupam-se, a gigante indústria alimentar segue-lhe os passos e procura alternativas para adoçar a comida e manter as vendas. Na verdade, a culpa não é dele. É dos excessos. Do consumo desenfreado e camuflado através de refrigerantes, molhos processados, pão, salsichas, comida para bebés, um sem-número de produtos já preparados que usam esta matéria-prima para dar sabor e prolongar o prazo de validade. O mundo engordou, foi longe de mais. Há, por isso, cada vez mais pessoas a tentar colocar um ponto final nesta relação de longa data. Eve O. Schaub, escritora americana, embarcou num desafio com a família (marido e duas filhas) e decidiu não consumir açúcar durante um ano. A experiência, relatada no livro Year with no sugar, terminou numa noite de Ano Novo. “Claro que ficámos à espera da meia-noite e comemos um doce quando o relógio deu as 12 badaladas, mas na verdade foi… anticlímax! Não gostámos assim tanto. De facto, percebemos ao longo do tempo que perdemos a nossa apetência por sobremesas cheias de açúcar. E quando queríamos comer um doce preferíamos algo mais subtil como um sorvete de fruta”, conta por email à Revista 2. A maior descoberta que a família de Eve fez foi ter consciência da presença maciça de açúcar na comida que consumia todos os dias. “Está em três quartos dos produtos do nosso supermercado local [em Pawlet Vermont] e consumimos quase metade do açúcar em alimentos que não são tão óbvios como os refrigerantes ou as bolachas. Funciona para realçar sabor, preserva e é barato, por isso, encontramo-lo em molhos para saladas, caldo de legumes, manteiga de amendoim, maionese. A lista continua — não há quase nada em que a indústria alimentar não ponha açúcar. E contabilizámos quase 54 tipos diferentes, desde xarope de milho a sumo de uva orgânico evaporado”, descreve. “De repente, estamos a comer a sobremesa ainda antes de chegar ao final da refeição. ”Eve inspirou-se no endocrinologista Robert Lustig para fazer a experiência e o discurso do médico americano, que se dedica há duas décadas a tratar crianças obesas, não é meigo. O açúcar é um veneno. “[No caso do tabaco] demorou muito tempo, mas as indústrias não podem envenenar pessoas em massa para sempre”, disse, numa entrevista ao britânico The Guardian. “Temos de fazer algo quanto a isso ou não haverá cuidados de saúde. De facto, não haverá sociedade”, sentencia. O mesmo discurso tem Jamie Oliver, chef reconhecido pelas suas campanhas por uma alimentação saudável nas escolas britânicas. “O açúcar é definitivamente o próximo perigo. É o próximo tabaco. E a indústria deve ser taxada tal como a do tabaco ou qualquer outra que possa destruir vidas”, disse recentemente, citado pelo Daily Mail. 40% é quanto se estima que dispare a procura mundial de açúcar até 2023 devido ao aumento do consumo na China e em África. Os números dão que pensar. O consumo diário de frutose — açúcar que se encontra naturalmente na fruta e em alguns legumes mas cujo consumo excessivo é perigoso, já que é convertido em gordura pelo fígado — duplicou nos últimos 30 anos em países como o Reino Unido, Estados Unidos ou Índia. Estima-se que a procura mundial de açúcar dispare 40% até 2023 devido ao aumento do consumo na China e em África. Por cá, segundo o INE, cada português come 30, 3 quilos por ano, o valor mais baixo desde 2008/2009 (34 quilos). Índia, União Europeia, China, Brasil e EUA são os maiores consumidores mundiais desta matéria-prima, cuja procura tem crescido mais de 2% ao ano. “Não é um alimento necessário, dá-nos energia e rigorosamente mais nada. O que sabemos é que há uma franja da população que o ingere para lá do que é aceitável. E a fonte de açúcar que mais nos preocupa são as bebidas: sumos, refrigerantes, néctares, chás gelados. Há crianças que bebem mais do que uma lata por dia”, diz Nuno Borges, nutricionista da direcção da Associação Portuguesa dos Nutricionistas. Maria Paes de Vasconcelos, também nutricionista, recorda que o açúcar faz parte da gastronomia há muitos séculos (os indianos foram os primeiros a extrair o suco da cana por volta de 500 a. C. ) e, por isso, não faz sentido bani-lo por completo. “É útil no adoçar de alguns alimentos que, pelo seu sabor ácido ou amargo, podem ajudar quem quer consumi-los”, como o iogurte e alguns citrinos, café ou legumes. Numa alimentação saudável, “faz todo o sentido incluir o açúcar em dias especiais e também nos dias normais se se usar com parcimónia: não se fica viciado por se beber café ou comer iogurte apenas com açúcar!”, continua a nutricionista. As recomendações quanto à quantidade de açúcar que devemos ingerir por dia não são claras porque “falam em açúcares simples totais, que incluem os do leite e da fruta”, descreve Maria Paes de Vasconcelos. A Organização Mundial de Saúde recomenda que o consumo não ultrapasse 10% das calorias ingeridas por dia, idealmente menos de 5%, “o que equivaleria a 25 gramas de açúcar para um adulto saudável — quatro pacotinhos de seis gramas”. “O melhor é usar o mínimo”, acrescenta. Uma coisa é certa: as calorias que provêm dos açúcares são designadas por calorias “vazias” e com pouco interesse nutricional. Não precisamos deste ingrediente, mas alguém com um peso normal e uma vida saudável pode consumi-lo de forma equilibrada. Ainda assim, as novas tendências de comida saudável têm trazido cada vez mais alternativas, supostamente naturais e menos processadas. Do xarope de ácer ou de milho, passando pela geleia de arroz. Filipa Range, que criou a Cozinha Verde, empresa de comida vegetariana, acrescenta bananas maduras, tâmaras biológicas ou açúcar de coco à lista de ingredientes que usa na confecção de bolos e sobremesas. Procura alimentos mais naturais desde que há dois anos mudou a sua dieta alimentar. “No início comia tudo desde que não fosse de origem animal. Mas à medida que ia comendo mais fruta e legumes comecei a sentir menos necessidade de comer coisas processadas e refinadas. Foram pequenos hábitos que deixei, como bolos de pastelaria, por exemplo. Passei a fazer eu as sobremesas e a sentir-me mais saudável”, conta. Em termos nutricionais, diz Nuno Borges, xaropes de arroz, milho ou agave são outras formas de consumir açúcar. “Trocá-lo por mel não tem vantagem nenhuma. São outros açúcares, não são adoçantes artificiais”, esclarece. Nesta última categoria, entram o aspartame ou o acessulfame K que, refere Maria Paes Vasconcelos, “são muito seguros” para quem quer reduzir os açúcares da alimentação. Na lista dos adoçantes artificiais entra a stevia, que a indústria de bebidas tem usado cada vez mais para substituir o açúcar. Contudo, a opinião sobre os adoçantes não é consensual. Albino Oliveira-Maia, que dirige a Unidade de Neuropsiquiatria do Centro Clínico Champalimaud, adianta que “começa a haver evidência de que essas substâncias não são inócuas”. “Mecanismos não totalmente conhecidos podem passar por efeitos na flora intestinal e mesmo os adoçantes artificiais poderão ter um efeito nocivo para a saúde”, aponta. Filipa Range não os usa. Prefere as geleias ou a fruta e sublinha que o que está em causa é a redução das quantidades, ao ponto de hoje já não lhe saber bem comer um bolo demasiado doce. “Já não tenho tanta necessidade. Sei bem o que é precisar de comer qualquer coisa com açúcar, antes não tinha atenção. Quanto mais comemos, mais vontade temos de comer”, ilustra. A jornalista brasileira Cláudia Pas Bjorgum, autora do blogue Sabor Saudade e a viver em Trondheim, na Noruega, relata a mesma experiência. “A sensação de bem-estar de viver sem açúcar foi instantânea e ainda que seja difícil deixar de comer, com o tempo o paladar se ajusta e passamos a não gostar mais do sabor doce, passa a ser enjoativo”, conta, numa entrevista à Revista 2 por email. Cláudia, que está a fazer doutoramento sobre agricultura biológica, teve hipertiroidismo, uma doença auto-imune que só conseguiu controlar depois de deixar de consumir açúcar. Continuou a comer fruta, mas em menor quantidade, e sentiu melhorias “instantâneas”. Encontrar alternativas é difícil porque “nada se compara ao açúcar”. “É muito versátil, dá vida a tudo na cozinha, molhos, carnes e doces, por isso a busca por alternativas é ingrata. Depois de alguns fracassos, desisti do processo. E hoje a única alternativa que uso é stevia em gotas para adoçar uma série de cremes, chantilly, pudins, iogurtes e gelatinas”, conta. Cláudia não recomenda o uso de xaropes naturais (ricos em frutose) e olha para a questão de uma forma prática. “Sinceramente, acho um disparate procurar alternativas. A busca por substitutos acaba alimentando o vício do doce e o que queremos é reordenar o paladar e deixar de gostar de doce. O melhor é comer uma fruta e se contentar”, diz, acrescentando que cada pessoa deve encontrar “o seu próprio caminho”. “Hoje, se quero um doce, como um doce de verdade, mato a vontade e depois policio-me. Mas a verdade é que já não consigo mais comer muito doce. Uma mordida num chocolate já me alivia por um bom tempo. ”Com ou sem excesso de peso, a “restrição ao consumo é difícil de uma forma transversal”. E é no cérebro que tudo se passa. “O açúcar é bom e temos tendência a repetir as coisas de que gostamos. Há determinados neurotransmissores e áreas cerebrais que parecem estar envolvidas no reconhecimento de algo que para nós é agradável. São designadas ‘zonas ou substâncias do prazer’. E há um destes neurotransmissores que tem sido mais estudado: a dopamina”, explica Oliveira-Maia. O consumo de álcool, heroína e cocaína aumenta a concentração de dopamina no cérebro e o mesmo se passa com o açúcar. “Os comportamentos são diferentes, mas têm aspectos em comum, no seu efeito no sistema nervoso central”, continua. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Acho um disparate procurar alternativas. A busca por substitutos acaba alimentando o vício do doce e o que queremos é reordenar o paladar e deixar de gostar de doce. O melhor é comer uma fruta e se contentar. ”O especialista lembra que já houve alturas em que a cocaína e substâncias semelhantes eram usadas legalmente em produtos comuns para estimular o consumo (como nos refrigerantes) e hoje o seu uso é ilegal. “O açúcar é um motivador bestial. É muito fácil para qualquer pai cair na tentação de o utilizar como forma de motivar o filho a fazer determinada tarefa. O sal e a gordura também podem ter esse estímulo. E o estímulo mais forte para motivar comportamentos são alimentos ricos nestas substâncias como um bolo ou batatas fritas”, exemplifica. Albino Maia acredita por isso que, mais cedo ou mais tarde, a regulamentação mais apertada vai chegar, mas não a proibição total. Na casa de Eve, comer doces passou a ser uma excepção, tal como beber um copo de vinho. As crianças, de seis e onze anos, não tiveram margem para recusar o fim das guloseimas em casa, mas podiam comer em festas de anos desde que, depois, contassem à mãe. “Quando lhes falei do projecto, começaram as duas a chorar. Esse foi o dia mais difícil de toda esta experiência. Mas passei a fazer-lhes os lanches para a escola e quando alguém lhes oferecia doces sem estarem na nossa presença dei-lhes liberdade para escolherem. Sem culpa, nem repercussões. A única condição era dizerem-me. Por vezes, e para espanto meu, elas decidiam mesmo não aceitar os doces”, conta.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
O almoço está cru!
Germinados, desidratados, leite de amêndoa, queijo de caju, pizzas, bolonhesa — comer tudo cru não significa comer apenas saladas de tomate e alface. (...)

O almoço está cru!
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.28
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Germinados, desidratados, leite de amêndoa, queijo de caju, pizzas, bolonhesa — comer tudo cru não significa comer apenas saladas de tomate e alface.
TEXTO: A luz dentro do restaurante Bem-Me-Quer, na Av. Almirante Reis, em Lisboa, não é suficiente para uma boa fotografia, por isso é preciso levar os pratos lá para fora. Mas, por uma vez, não há o risco de a comida arrefecer enquanto o fotógrafo procura o melhor ângulo. Podemos esperar calmamente. É que o almoço, preparado por Márcia Brandão de Almeida, é todo à base de alimentos crus. Dias antes, Márcia tinha, durante uma hora e meia, tentado explicar as vantagens de uma alimentação crudívora, mas no final concluíra que a melhor forma de mostrar que não se tratava de monótonas refeições de alface e tomate era preparar-nos um almoço cru (no crudivorismo, pode-se usar a temperatura mas não ultrapassando os 40 graus). Por isso, voltámos ao Bem-Me-Quer onde a proprietária, Paula Cascais, e Márcia nos esperavam com uma refeição completa. Havia, para começar, uma sopa feita com abacate, sumo de cenoura, piri-piri e alho, e decorada com sésamo, coentros, pimento vermelho e coco. Depois, uns rolinhos de folha de arroz, recheados com cenoura e pepino cortados em tiras muito finas e acompanhados por um molho grosso de amendoim. O prato principal era uma “pizza”: na base, uma primeira camada de cajus amassados com picante e manjericão, outra de tomate desidratado com agave (um adoçante de origem vegetal) e coentros, e por fim uma de “queijo de caju”, feito com caju, tâmaras e água. Na cobertura, pedaços de tomate, pimento, azeitonas e cogumelos que tinham estado numa marinada de limão e agave. Para sobremesa, Márcia tinha preparado uma mousse de abacate com cacau (o aspecto era o de uma mousse de chocolate escuro). E como bebidas para acompanhar a refeição havia duas opções: um leite de amêndoas (com pasta de amendoim e polvilhado com canela), ou um sumo verde, de couve, mas “adoçado” com maçã e cenoura. Aqui estava, portanto, a demonstração prática daquilo que ela tinha descrito: diferentes ingredientes, sabores variados, uma refeição que não deixava ninguém com fome, pratos visualmente apelativos e, objectivamente, muito saborosos. “É óbvio que a comida também pode ser cozinhada, mas tem muito mais valor crua porque mantém os nutrientes”, diz Márcia, brasileira casada com um português, formada em Economia e durante muitos anos funcionária da PT. “Quando a minha mãe morreu, achei que a vida era muito curta para a gente não fazer aquilo de que gosta. E voltei a estudar. ” Este novo percurso levou-a a abrir, na Margem Sul, uma clínica de medicinas alternativas. “Em todas as consultas, apanhava-me a dar receitas. Você tem colesterol? Coma mais beringela, quanto mais crua melhor. Os meus receituários eram meia dúzia de medicamentos e uma quantidade incrível de receitas. ”Percebeu que em Portugal as pessoas “não vêem o alimento como medicamento”. E decidiu aprofundar esse caminho. Começou a fazer workshops com receitas. “Fui das primeiras em Portugal a fazer o sumo verde”, conta. “Você faz um sumo azul, amarelo, cor-de-rosa às pintinhas e as pessoas acham óptimo. Se põem um sumo verde em frente delas acham um horror. Eu tive de arranjar maneira de não ser horrível”. Inspirou-se no brasileiro “suco da luz do sol”, com maçã, pepino e folhas verdes. “A maçã adoça, e as pessoas adoram. ”Quando começou com a clínica, em 1999, “não era nem vegetariana”. Até porque, no Brasil, foi “criada com churrasco”, do qual ainda hoje tem “uma memória emocional”. Depois, a pouco e pouco, foi alterando a alimentação, deixando a carne — “se consigo substituir a proteína da carne, para quê continuar a comer carne?”. Em casa, a ideia não teve tanto sucesso. “O meu cão alinha mais na minha conversa do que o meu marido e os meus filhos, porque adora maçã e cenoura”, diz rindo. Percebeu que não podia impor a sua vontade e por isso continuou a cozinhar carne e peixe, mas para si adoptou uma alimentação “99% crua”. Complicado? Nem por isso, assegura. A alimentação crudívora tem como base fruta, legumes, frutos secos e os grãos e sementes germinados. Para usar estes, é preciso pô-los a germinar com dois dias de antecedência, mas Márcia tem um argumento pronto para quem achar que isso é trabalhoso. “Quando você sai de casa, não deixa o frango a descongelar? Lógico. Se não vai ter de o cozinhar congelado ou pô-lo no microondas. É exactamente como funciona para mim. ” Há, no entanto, alguns truques. “O nosso microondas é a quinoa, que germina em 15 minutos. ”Mais difícil é inventar nomes para estas comidas. A solução acaba por ser chamar-lhes alguma coisa parecida com os pratos tradicionais — nos seus workshops, Márcia faz coisas como “macarronada à bolonhesa” ou “lasanha de grão-de-bico” e uma das receitas que se encontra no seu blogue Leite da Terra (leitedaterra. blogspot. pt) é a do pão essénio, um pão de trigo integral germinado desidratado ao sol, que, explica, tem “menor teor de glúten”, além de que “o amido cru não se transforma em acrilamida, substância muito danosa à saúde, presente em todos os produtos à base de trigo assado”. Veja-se, por exemplo, o caso do leite. “Emocionalmente, o leite faz parte da cultura ocidental. Tenho um projecto de alimentação saudável nas escolas e já me tentaram trucidar porque estou tirando o leite e outros alimentos que eles consideram fundamentais”, conta. “Vou ter de arranjar um substituto que tenha o mesmo aspecto. Eu faço um leite de amêndoas divino. Mas ao baptizá-lo como ‘leite’ já estou criando uma imagem na cabeça das pessoas. Tenho problemas em baptizar o meu alimento. Bebida de amêndoa? Lembra-me amarguinha. É complicado. ”Mais complicado baptizar do que fazer, portanto. A receita do leite de amêndoas para fazer em casa é uma entre diversas sugestões de leites alternativos do livro As Receitas da Mafalda (Porto Editora, 2014), de Mafalda Pinto Leite. Autora de vários livros de receitas e de um blogue de grande sucesso, o Dias com Mafalda, que se transformou também num programa de televisão, não segue uma alimentação inteiramente crua, mas integra alguns dos princípios do crudivorismo no seu quotidiano. Foi no Natural Gourmet Institute for Health & Culinary Arts, em Nova Iorque, que teve o primeiro contacto com a Raw Food, através daquele que é um dos grandes gurus do movimento, Matthew Kenney. “Achei fantástico e surpreendeu-me que pudesse ser tão delicioso”, diz, numa conversa telefónica com a Revista 2. Depois, no Maui (Havai), esteve no restaurante Manna Foods, onde fazia tartes cruas, que tinham como base frutas, nozes, cajus. “Aí nem sequer usávamos a desidratação” que é uma das técnicas base da cozinha crua. “Mas no Havai é fácil porque há uma grande quantidade de legumes e frutas frescas todo o ano. ”Em Portugal, é mais complicado. “Portugal é frio no Inverno, e não é fácil encontrar muitos ingredientes”, diz, sublinhando que, idealmente, estes “devem ser todos locais, sazonais e biológicos”. Além disso, nos restaurantes quase não existem alternativas. “Como uma salada? É que são tão fracas que não dá vontade. E até os supermercados bio têm pouca oferta. ”Portugal é frio no Inverno, e não é fácil encontrar muitos ingredientes, que idealmente devem ser locais, sazonais e biológicos”Apesar disso, com a ajuda do clima, no Verão consegue ser “100% raw”. Garante que não é fundamentalista em relação a estas coisas (embora reconheça que, como geralmente acontece com toda a gente, passou por uma “fase de fundamentalismo”), mas há algumas das quais se foi desabituando, como o leite. “Faço sempre o leite de amêndoa e os meus filhos bebem e adoram. ”Depois de uma passagem por Londres, regressou aos Estados Unidos, desta vez para Nova Iorque, onde trabalhou com Matthew Kenney, que descreve entusiasticamente — “alguém que consegue transformar legumes, fruta e nozes num prato delicioso é um génio”. Passou pelo restaurante The Plant (onde ficou desiludida com algumas coisas, nomeadamente um uso excessivo dos desidratados, que acabam por se tornar “muito intensos”) e pela secção de pastelaria de outro espaço de comida crua, o Pure Food and Wine, de Sarma Melngailis. Recentemente, voltou à Califórnia e confirmou que ali a dieta crua “é cada vez mais seguida”. “As pessoas já perceberam que os alimentos processados fazem mal à saúde e cada vez mais querem prevenir a doença. ” Só lamenta que este conhecimento não seja acompanhado pelas escolas, “onde ainda estamos na pirâmide alimentar”. “Acredito que funciona para algumas pessoas, não para todas”, diz Sarah Maraval, outra portuguesa que se dedicou à Raw Food e formou a empresa Green Chef, e que também fez a sua formação nos Estados Unidos com Matthew Kenney. Depois de anos a trabalhar na área da publicidade, percebeu que, para além do stress, estava a alimentar-se mal. Começou a preocupar-se com o que comia. “O meu foco hoje é a comida para a saúde, mas de maneira que não seja um castigo. ”Tinha sido vegetariana, mas quando olhava para os pratos vegetarianos ou vegan achava tudo “muito castanho, muito escuro”. Com Kenney, chef que aplicou a sua formação base francesa à cozinha crua, e que dá grande importância à estética dos pratos, Sarah percebeu que as coisas podiam ser mais interessantes. “Durante algum tempo fiz uma alimentação completamente crua, mas fi-lo porque estava na Califórnia, e inicialmente o meu corpo teve alguma dificuldade em ajustar-se. Mas o facto é que sempre tive problemas de estômago, dores, e enquanto fiz uma alimentação 100% crua nunca as senti. ” Recorda que passou por uma fase em que se sentia inchada, e relaciona-a com um “processo de limpeza do corpo”. Depois, “a partir da quarta semana”, começou a sentir-se muito bem. Passou a dar workshops e faz consultoria para mostrar às pessoas que esta alimentação pode ser interessante e variada. Tem estudado os produtos portugueses para criar mais receitas adaptadas à realidade em Portugal — dá o exemplo do leite de amêndoas. “É uma alternativa fácil e em Portugal temos imensas amêndoas óptimas. ” Tem de explicar muitas vezes que não é nutricionista, mas, porque percebeu que as coisas estão inevitavelmente ligadas, decidiu fazer o curso de Nutrição, e está a estudar mais profundamente a ligação entre a alimentação e o cancro. Qualquer crudívoro vai concordar que é difícil encontrar nos restaurantes portugueses comida adaptada ao seu gosto. Voltamos ao Bem-Me-Quer, onde iniciámos esta reportagem. Paula Cascais é das poucas pessoas que disponibilizam a opção de pratos crus no seu restaurante. Tudo começou quando lhe apareceram dois clientes estrangeiros que pediram comida crua. “O meu restaurante já tem pratos vegetarianos, vegan, sem glúten, mas crus? Nunca me tinham pedido. ” Improvisou e “eles saíram contentes”. Mas, diz, “a mim soube-me a pouco”. Foi quando tentou aprender mais sobre crudivorismo que se cruzou com Márcia Brandão de Almeida e o projecto Leite da Terra. “Fui fazer o workshop, que desmistificou todas as minhas ideias sobre comida fria e estranha. ” Descobriu que “os pratos cozinhados podem ter um paralelo nos crus” — como por exemplo a “lasanha de espinafres”, feita com courgette, gaspacho de tomate, nozes e avelãs, ou os “queijos” feitos com caju triturado com azeite e flor de sal — e que “manusear os alimentos crus ajuda-nos a respeitar mais o que estamos a usar”. Apesar do apoio de Márcia, que durante um período estava todas as segundas-feiras no restaurante, a maior dificuldade foi mesmo convencer os clientes. “As pessoas pediam pouco os pratos. ” Por isso, hoje já não estão habitualmente na carta, embora possam sempre ser pedidos. “Não há ainda muita gente, mas há cada vez mais informação, e uma tendência para perguntarem mais”, conclui Paula. E o que pensam os nutricionistas deste tipo de alimentação? Tanto José Camolas, do núcleo de Endocrinologia do Hospital de Santa Maria, como Pedro Carvalho, da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, dizem que “se estivermos a falar de legumes, hortaliças e frutas, temos alguns benefícios [em ingeri-los crus] porque cozinhados perdem vitaminas que são solúveis na água”. Em princípio, “cozinhar pode reduzir a densidade nutricional do alimento”, mas isto não é generalizável porque “se se tratar de alguém que sofra de uma doença intestinal, cozinhar pode facilitar o processo digestivo e de absorção”, sublinha Camolas. Há o risco de haver um consumo energético excessivo se a pessoas se centrarem apenas em determinados grupos alimentares. "Pedro Carvalho acrescenta outro factor: “A acção da temperatura e da destruição mecânica das paredes celulares dos legumes (sopa, puré de legumes, esparregado, etc…) permite igualmente tornar mais disponíveis alguns compostos como os carotenóides. Nestes, convém inclusivamente adicionar alguma gordura à preparação de modo a facilitar a absorção, porque são compostos lipossolúveis. ”Muita atenção, contudo, com a carne e o peixe crus (em princípio, os crudívoros são vegans, portanto a questão não se coloca, mas há casos em que não são), alerta o nutricionista do Hospital de Santa Maria. “A temperatura altera a matriz proteica e a carne perde a sua estrutura com mais facilidade, por isso o estômago tem de produzir menos ácido para a digestão. ” O tempo de digestão de carne crua pode estender-se até às seis ou sete horas. Ou seja, “estamos a duplicar o tempo de digestão, com a correspondente sobrecarga gástrica”. O caso do peixe é um pouco menos complicado e pode ajudar se se fizer uma espécie de cozedura a frio com ácido, usando lima, por exemplo, como acontece com o ceviche peruano. Uma dieta só baseada em fruta e legumes pode ser algo incompleta, refere Pedro Carvalho, mas se forem incluídos “produtos lácteos, frutos gordos, sementes e peixe e carne (mesmo que sejam apenas sushi e carpaccio) já temos uma variedade maior e um risco menor de desenvolver alguma carência nutricional”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas o principal alerta de José Camolas é para que não se inicie este tipo de alimentação sem ter suficiente informação sobre os equilíbrios entre alimentos e as reacções do próprio corpo. “Há o risco de haver um consumo energético excessivo se a pessoas se centrarem apenas em determinados grupos alimentares. Nos cereais, é importante saber usar as técnicas de germinação, para poderem ser digeridos. Sabemos por exemplo que o magnésio é o elemento central da clorofila, mas tem de ser na quantidade certa, em excesso não é indicado. ”A verdade é que ainda “sabemos muito pouco sobre a composição de alguns alimentos”. E a dúvida que tem é se quem decide ser crudívoro está totalmente consciente desta complexidade. “Se as pessoas se dispõem a dominar as técnicas deste tipo de cozinha, os riscos não serão muitos”, diz, mas, acrescenta, “se calhar na maioria dos indivíduos não existe esta predisposição”.
REFERÊNCIAS:
Bloco Total de Esquerda-Direita: O evangelho do consenso
Como avisou Cavaco Silva, os portugueses serão avisados por ele próprio, e não pelos jornais, da decisão sobre o futuro Governo. Mas estamos em condições de adiantar que a solução será mesmo revolucionária: todos os partidos a governar ao mesmo tempo. Acabou-se o arco, viva o círculo da governação. (...)

Bloco Total de Esquerda-Direita: O evangelho do consenso
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Como avisou Cavaco Silva, os portugueses serão avisados por ele próprio, e não pelos jornais, da decisão sobre o futuro Governo. Mas estamos em condições de adiantar que a solução será mesmo revolucionária: todos os partidos a governar ao mesmo tempo. Acabou-se o arco, viva o círculo da governação.
TEXTO: Ainda o Presidente da República estava a distribuir as batatas quentes na mesa, com aquele sorriso alegre e franco, e já Pedro Passos Coelho pedia a palavra. O ambiente era distendido. Uma luz abençoada entrava pelas janelas da sala de cear de Belém. “É com imenso gosto que saúdo os nossos irmãos do PS nesta terceira reunião. Já nas outras duas demos excelentes passos na procura mútua de uma solução de consenso que dê aos portugueses aquilo que eles mais anseiam. Escusam alguns de continuar a fazer de conta ou a simular que não estamos a avançar muito. Graças ao esforço da Coligação PàF e principalmente da boa-fé do dr. António Costa e dos seus parceiros mais à esquerda, Portugal poderá em breve quebrar um ciclo negativo que durou anos, consolidar as suas contas públicas, e oferecer ao povo o desenvolvimento e a justiça económica e social que tanto merece. ”António Costa agradeceu com uma vénia e lembrou que tudo o que o PS fez nas últimas semanas — desde o resultado inequívoco das eleições, com a vitória da coligação de direita, que só por azar não atingiu a maioria absoluta, frisou o líder do PS — “foi graças ao enorme esforço de diálogo construtivo de Pedro Passos Coelho e do seu colega Paulo Portas”. O líder do PS acrescentou que na PàF tudo fizeram para que as reuniões “fossem conclusivas e produtivas” e elogiou a brevidade das respostas a todas as dúvidas exageradas que o PS tivera acerca do programa eleitoral do Governo de direita, não por esse programa ser demasiado vago, mas com certeza porque este “é tão rico que algum do seu valioso conteúdo não foi imediatamente assimilável pelo povo de esquerda”. Dito isto, e num gesto que a todos comoveu, António Costa e Pedro Passos Coelho trocaram de óculos e ficaram ainda a ver-se melhor um ao outro. Cavaco Silva elogiou este espírito de concórdia e passou a palavra a Catarina Martins, que, lembrando o seu passado nas artes do teatro, elogiou “a bela voz de barítono do Pedro [Passos Coelho], que terá encontrado no Paulo [Portas] o desejado contraponto”, sem esquecer o esforço dos dois estadistas na implementação do tratado orçamental e na “prossecução de uma política de emprego e de justiça social que todos reconhecemos no quadro de uma União Europeia responsável e solidária”. Paulo Portas levantou então um dedinho e retribuiu o cumprimento ao Bloco de Esquerda, que descreveu como “um partido maior em deputados do que o nosso e politicamente inatacável, tal como o actual PS, disse o responsável do CDS. “Catarina [Martins], vejo em ti e nos teus colegas bloquistas os futuros pilares de um governo estável e revolucionário em que todos os cidadãos da Europa, ricos e pobres, mas principalmente os ricos, poderão confiar. Estou empolgado com a actual situação política e permitam-me que estenda esta minha alegria a Jerónimo de Sousa, aqui sentado à minha direita. ”Jerónimo de Sousa levantou-se então e, tratando António Costa por “amigo” e Passos Coelho e Portas por “queridos camaradas”, fez um apanhado das vantagens da integração europeia e do euro, num quadro de concórdia social e crescimento económico em que o PCP e os seus colegas dos Verdes e do Bloco tinham a honra de pela primeira vez participar, a bem de Portugal. “O diálogo mútuo é um exemplo para o mundo ocidental, bem-hajam. ” Paulo Portas levantou outro dedinho e pediu “sinceras desculpas” por, no passado, ter sido um partido “acerrimamente contra a União Europeia e a moeda única, não sei onde é que eu tinha a cabeça”. Mas “já me passou o delírio”, acrescentou Portas. “Agradeço ao PS, ao Bloco e à CDU deixarem-me agora participar neste novo arco da governação ou, melhor, neste círculo da governação. ”Nesse momento bateram à porta e era uma tal de Maria de Belém que vinha apresentar a sua candidatura à Presidência da República, mas ninguém a ouviu e ela foi-se embora sem cear. Logo a seguir, bateram à porta e era um tal de Rui Rio, que vinha apresentar a sua não-candidatura à Presidência da República, mas ninguém o ouviu e foi-se embora sem cear. Bateu ainda à porta um tal de Marcelo Rebelo de Sousa, que pediu para comentar a reunião, porque estava com saudades disso, mas também se foi embora sem comer. Porque o que estava à frente de tudo, dentro da linda irmandade, era o futuro do país. Cavaco Silva pediu então a todos os grupos parlamentares que partilhassem e comessem as “batatas ainda quentes” e todos riram. Antes, juntaram as mãos e juraram fidelidade à Constituição e ao Eurogrupo. Pedro Passos Coelho e António Costa deram um abraço caloroso e tiraram uma selfie que logo enviaram para os jornais ingleses e alemães, para a City de Londres, para Wall Street em Nova Iorque, para a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e para António José Seguro, lá onde quer que ele viva agora. O Presidente da República levou as mãos ao alto e agradeceu ao céu a criação do Bloco Total Esquerda-Direita que irá governar Portugal nos próximos quatro anos. Nesta distracção, entrou um homem que ninguém conhecia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. — Quem é o senhor?— Sou o deputado do PAN. Esqueceram-se de mim? Escorraçam-me do poder como a um cão? Ai o meu canário. Eu voto contra. E afinal não houve consenso e a política portuguesa voltou a ser um saco de gatos.
REFERÊNCIAS:
Personagens de ficção Árbitro Pedro Proezas da Bola: O contra-insulto da bola
Conseguiu pôr Bruno “Nádegas Opulentas” de Carvalho e Pinto “Apito” da Costa de acordo numa coisa que não era insultarem-se um ao outro. Era derrotar o Benfica, claro. Acabaram por votar a favor de um homem que é contra a sua grande reivindicação para o campeonato: o sorteio dos árbitros. Pedro Proença é uma caixinha de surpresas (...)

Personagens de ficção Árbitro Pedro Proezas da Bola: O contra-insulto da bola
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Conseguiu pôr Bruno “Nádegas Opulentas” de Carvalho e Pinto “Apito” da Costa de acordo numa coisa que não era insultarem-se um ao outro. Era derrotar o Benfica, claro. Acabaram por votar a favor de um homem que é contra a sua grande reivindicação para o campeonato: o sorteio dos árbitros. Pedro Proença é uma caixinha de surpresas
TEXTO: A Liga Portuguesa de Futebol é redonda. Para espanto internacional, agora é dirigida por um dos árbitros mais conhecidos e respeitados do mundo (seja lá o que “respeitado” quer dizer no mundo do futebol). Entre várias distinções e grandes finais, o currículo de Pedro Proença (Lisboa, 3 de Novembro de 1970) destaca-se, com letras gravadas a ouro, num dos mais prestigiados domínios do conhecimento: o calão. O slang da bola. Pedro Proença, o ex-árbitro internacional sabe tudo da arte do insulto. Tirou um curso durante muitos anos, em ritmo intenso. Escutou em directo nos estádios, nas ruas, nas rádios, nos telefonemas anónimos. Leu nos jornais, nas redes sociais, nas paredes das casas de banho. Fala todas as línguas do futebolês ordinário. Aos 44 anos, Pedro sabe como se diz “palhaço” (e as suas derivações exclamativas “ó palhaço” e “ganda palhaço”) em português, inglês, francês, castelhano, catalão, holandês, flamengo, alemão, italiano. Na flor da idade de um homem-do-apito, Proença sabe como se grita “gatuno” em japonês, coreano, iídiche, árabe, vietnamita. Sabe soletrar “vai roubar para a estrada” em centenas de dialectos do subcontinente indiano, em russo, em ucraniano, em polaco. Sabe todos os palavrões sexuais e/ou animalescos em xhosa do Sul de África, em zulu, em balanta e bantu. Se lhe perguntarem como é que se diz “estás comprado” em húngaro, essa língua que não se relaciona com nenhuma outra, só talvez o islandês, Proença não hesitará em responder. Se houver alguma dúvida de que Pedro conhece a fundo as formas subtis de dizer “vai para este sítio” e “vai para o outro”, tantos esses sítios que começam em “c” como os que inauguram em “p” e acabam em “que te pariu”, nas línguas bárbaras mas melodiosas do Norte — como sueco, norueguês e dinamarquês — é melhor que as dúvidas se dissipem, porque Proença saberá cantarolar os impropérios como qualquer chefe de claque dos fiordes gelados. O ex-árbitro Pedro Proença Oliveira Alves Garcia — nome mais português é difícil — tem um currículo e tem mundo. Director financeiro de profissão, começou cedo a exercitar a sua vocação para saco-de-pancada dos adeptos, jogadores e dirigentes do futebol: ser árbitro. Sempre bem penteado, magro, em boa forma, há muitos anos que Proença começou a treinar o sopro e o gesto decidido, a elegância ao puxar do cartão vermelho. O gel é o seu grande companheiro, em dias de sol, em noites de tempestade. Sempre no horizonte, a possibilidade de ter de correr pela vida ao arbitrar um dos clássicos, para o que é necessário saber as localizações exactas dos túneis e das saídas de emergências do Estádio da Luz, do Estádio do Dragão e do Estádio de Alvalade, quando as coisas dão para o torto. Pontos altos da carreira de um homem que, entre 2012 e 2013, esteve na categoria Elite da UEFA: arbitrou a final do Campeonato Europeu de Selecções (vitória de Espanha contra Itália por 4-1); arbitrou também a final da Champions (Liga dos Campeões da UEFA). Ponto baixo da carreira do mais respeitado dos árbitros portugueses foi uma converseta antiga entre Pinto da Costa e Pinto de Sousa, então presidente da Comissão de Arbitragem (interceptada em 2003 pela Polícia Judiciária) na véspera de uma Supertaça entre o FCP e União de Leiria:Pinto da Costa — Quem é?Pinto de Sousa — O Proença!!! Então não é?! Falei contigo. P. C. — Pois, eu sei. P. S. — Ah?!P. C. — Já sei!P. S. — É esse! Foi nomeado ontem… oficialmente!P. C. — Ai é…P. S. — Foi ontem nomeado, só! Mas… antes de nomear tinha falado contigo!P. C. — Sei! Mas eu, se me perguntarem alguma coisa, eu vou dizer que não comento, como é óbvio!P. S. — Claro!P. C. — Não vou dizer que…P. S. — Claro! Ah, ah! É evidente, é evidente! Pelo contrário! Até devias dizer que achas mal! Eh, eh, bom…E, dois dias depois, os mesmos voltaram a conversar:Pinto de Sousa — É… mas vou devagarinho, pá, calmamente… vou falar com Pedro Proença!Pinto da Costa — Vais?P. S. — Grande jogo em Guimarães, pá! Vai fazer um grande jogo!P. C. — Com recados para não expulsar ninguém!P. S. — Eh, eh, eh…Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É claro que uma pessoa honesta pode ser apanhada como um pinto entre dois pintos maiores (na altura muito activos em conversas de galos e de poleiros no futebol português). A carreira de Pedro Proença aguentou todas as más-línguas. Um homem que ao longo de anos acabou por conhecer tão bem Sepp Blatter e Michel Platini acabará por ficar imunizado contra os golpes mais baixos do “desporto-rei”. Agora a proeza é liderar e unir os clubes todos da Liga. Tem de começar pela linguagem da competência. Pedro Proença acha que Vítor Pereira (da Arbitragem) é incompetente e tem de sair (ou já não acha?). E Bruno de Carvalho acha incompetente o derrotado ex-presidente da Liga Luís Duque, e Luís Duque considera incompetente Bruno de Carvalho. E Pinto da Costa fala isto de Luís Filipe Vieira e Vieira fala aquilo ainda pior de Pinto da Costa. O trabalho do cavalheiro Pedro Proença terá de ser o contrário daquilo que sempre sofreu: o árbitro agora é que terá de gritar uns palavrões. Mas ele sabe-os.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homem japonês
Eles fazem videojogos e são muito bons nisso
A história de como alguns portugueses se fartaram de ver os meninos estrangeiros a brincar e resolveram montar uma indústria de videojogos em Portugal (e não estão nisto para perder) (...)

Eles fazem videojogos e são muito bons nisso
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.909
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A história de como alguns portugueses se fartaram de ver os meninos estrangeiros a brincar e resolveram montar uma indústria de videojogos em Portugal (e não estão nisto para perder)
TEXTO: A história de como alguns portugueses se fartaram de ver os meninos estrangeiros a brincar e resolveram montar uma indústria de videojogos em Portugal (e não estão nisto para perder)Corrria o ano de 2001 e da agenda de Filipe Pina constava uma reunião com o director do Instituto Português da Juventude (IPJ), cujo único ponto de ordem era avaliar a possibilidade de aquela entidade investir na empresa de videojogos que Pina criara. Lá fora, é prática comum um investidor, público ou privado, colocar dinheiro a fundo perdido nas pequenas empresas que estão a começar neste negócio. Em Portugal, nunca tinha acontecido. Pina demorara meses a convencer o IPJ a recebê-lo. “Finalmente surgiu uma data”, lembra: 11 de Setembro de 2001. “Aconteceu o que aconteceu e não houve reunião. ”Este acaso simboliza o que foi, durante anos, a quase inexistente indústria de videojogos em Portugal: aos 21 anos, Pina deixara um emprego bem pago na televisão para montar uma empresa de videojogos, após associar-se a estudantes universitários que conhecera nos chats do IRC (um dos primeiros protocolos que permitiam que os cibernautas de todo o mundo conversassem entre si em tempo real). Para pôr o plano em marcha, era preciso um investidor externo, de modo que, com o apoio do IPJ, Pina conseguiria finalmente concretizar o seu sonho de infância: criar, no seu país natal, um jogo decente. E a tragédia que mudou o mundo “tinha logo de acontecer nesse dia”. Não houve nova reunião no IPJ e a carreira de Pina nos videojogos podia ter acabado ali. Não acabou, mas foi no mínimo rocambolesca: os seus sócios encontraram, no Porto, investidores interessados, mas essa empresa acabou por falir; depois Pina montou outra, a Seed Studios, que, com a ajuda de um subsídio da União Europeia, criou Under Siege, um jogo cujo orçamento rondou os 1, 4 milhões de euros, o maior de sempre para um jogo português. Under Siege, foi lançado em 2011 para a PlayStation 3. Fazer um jogo para uma consola tão popular é o sonho de todo o criador de jogos, e o Under Siege ainda hoje é um caso de culto. Mas podia ter sido muito mais, podia ter sido um êxito estrondoso. Os azares, acasos e imponderáveis que o impediram dizem bem da dificuldade que havia em fazer jogos a partir de Portugal. Estava previsto que Under Siege fosse lançado em finais de Abril de 2011 — mas, na semana do lançamento, a PlayStation Network sofreu o único ataque de hackers da sua história e os clientes ficaram sem aceder aos jogos durante um mês. Quando os servidores foram novamente ligados, a Sony (dona da PlayStation) tinha ficado sem os registos dos seus 70 milhões de utilizadores. Com o tempo, a Sony recuperou a sua confiança, mas para a Seed Studios o mal já estava feito. As críticas foram óptimas mas comercialmente o jogo foi morto à nascença: como saiu durante o período em que os servidores estavam em baixo, não teve a alavanca mediática para poder ter sucesso. Para agravar, o Estado não pagou a última tranche do subsídio, no valor de 120 mil euros e, sem esse dinheiro, a Seed Studios faliu nesse mesmo ano de 2011. Pina não desistiu: aproveitou o “boom do mobile” e reergueu-se: hoje está à frente da Nerd Monkeys, uma empresa que aposta, sobretudo, em jogos para smartphones e está a crescer dia após dia, encomenda após encomenda. A palavra-chave, aqui, é esta: “mobile”. Foi o advento dos smarthpones que permitiu que os portugueses, até aí meros consumidores de jogos, se tornassem criadores. E neste momento há uma indústria de videojogos, feito por empresas portuguesas, com dinheiro português e trabalhadores portugueses, a explodir. Uma indústria, com gente experiente e com procura externa — e não apenas meia dúzia de entusiastas, como acontecia há uma década. De 2011 para cá, o salto foi brutal — de quatro empresas passou-se para mais de quatro dezenas. “Na última contagem que efectuei, encontrei 43 empresas, que empregam pelo menos 250 pessoas”, explica Ivan Barroso, o “historiador oficial” do movimento. Bacharel em Artes Plásticas e licenciado em Multimédia, Barroso, de 35 anos, é professor na ETIC, onde em 2011 começou a leccionar um curso de videojogos. Como os restantes developers (pessoas que desenvolvem videojogos) portugueses da sua geração, o seu trajecto é incomum: trabalhou em gabinetes de arquitectura, em teatro, galerias de arte, fez cinema, animação para a RTP África e, entre 2008 e 2010, esteve na Sérvia como director de arte de uma editora de livros. Trabalha em jogos há uma década, sempre como freelancer: “No total, devo ter feito cinco jogos para PC ou consolas e uns 40 para mobile”, diz. Mas não é o seu percurso ou a quantidade de jogos que o qualificam como historiador, antes os seus livros — o primeiro chama-se mesmo História dos Videojogos. Segundo Barroso, os valores movimentados pela indústria portuguesa já ultrapassam a casa do milhão de euros por ano, isto fazendo as contas por baixo, devido ao secretismo do negócio: como em outras áreas das tecnologias de informação, as empresas (tanto as portuguesas como as outras) assinam muitas vezes NDA (Non-Disclosure Agreement), um acordo que obriga as partes que o assinam a não revelar publicamente nenhum dado acerca do negócio que estão a levar a cabo. Imaginemos que um investidor estrangeiro coloca dinheiro numa empresa portuguesa mas a obriga a assinar um NDA, ou que uma empresa estrangeira contrata uma empresa portuguesa para fazer os gráficos de um jogo — é muito possível que a obrigue a assinar um NDA. Isto torna mais complicado perceber exactamente com que quantias as empresas portuguesas de videojogos estão a trabalhar neste momento. Nestes números não entra a Miniclip, uma empresa de capital estrangeiro mas sediada em Portugal, que é “a que emprega mais gente, cerca de 80 pessoas. Está sempre no top 50 internacional dos jogos mobile”, acrescenta o historiador. A Miniclip, segundo alguns dos seus ex-empregados, faz facilmente três ou quatro milhões de euros de facturação por mês. Elementos relevantes da indústria nacional de videojogos afiançam que os montantes com que as empresas portuguesas trabalham são maiores que os que Barroso avança. O que está a acontecer não é um momento de sorte na vida de fãs que querem fazer joguinhos: trata-se do culminar de um longo, e por vezes penoso, processo protagonizado por fanáticos que querem criar jogões — e que, após terem batido com a cabeça na parede muitas vezes, querem fazer dinheiro. Casos como os de Pina ou de Nuno Folhadela ou de Tiago Loureiro (que faz parte do Conselho Nórdico para os Videojogos, e por isso lhe chamam “Viking”), são ainda mais extraordinários se pensarmos que já receberam várias propostas milionárias para irem trabalhar para o estrangeiro, mas recusam-se a sair: o que os move é serem senhores do seu destino, fazerem os jogos que querem, no seu próprio país — e serem donos das suas empresas. Os membros desta geração, nascida na década de 1970 e início de 80, têm em comum a ausência de percurso académico ou de carreira tradicional. Pina, que Ivan Barroso descreve como “a cola” que une os profissionais dos videojogos em Portugal, não foi para a faculdade e começou por trabalhar em grafismo numa produtora de TV, antes de se lançar nos jogos; Loureiro, um programador de excelência reconhecido internacionalmente, já trabalhava aos 12 anos e frequentou pelo menos quatro licenciaturas sem ter terminado nenhuma; Nuno Folhadela acabou um curso de Cinema de Animação com 19 anos, trabalhou no McDonalds e vendeu jogos ao balcão de uma loja chamada Replay Games, enquanto ia aprendendo programação por conta própria, até acabar por fazer o site online da loja. Finalmente, em 2006, conseguiu trabalho numa empresa de videojogos. Hoje é o dono da Bica Studios — chamam-lhe “O empresário”, por considerarem que é o mais atento às necessidades do mercado. Se o sonho americano é arriscar e enriquecer, o sonho português seria, para a geração de 1970, tirar um curso, arranjar emprego certo, comprar casa e carro. Não para Pina, não para Loureiro, não para Folhadela: o sonho deles era fazer jogos, aqui. E convencer os outros de que isto dá para brincar mas não é uma brincadeira. Em alguma coisa hão-de ter acertado: tanto eles como as gerações mais novas fazem, a partir de Portugal, os seus jogos, para mobile e para consolas — a XBOX, a PlayStation, etc. Era nas consolas que estava o dinheiro a sério — era preciso comprar a consola e o jogo, sendo este mais caro que o actual jogo de mobile. (O mobile veio alterar isto E já há jogos em consolas gratuitos. ) É em consolas que a Tio Atum, uma empresa cujos donos nasceram na década de 1980, está a apostar agora. “Até há ano e meio, só fazíamos mobile”, conta Miguel Pedro Rafael, um dos três donos da empresa. Quando alguém entra no “escritório” da Tio Atum, Miguel faz uma rábula: aponta para um quarto, onde um vulto se esconde atrás de um computador, e diz: “Este é o escritório do nosso sound designer. ” Claro que não é um escritório — é o próprio quarto de Miguel Cintra, o sound designer. “Ele teve um desgosto amoroso e veio viver cá para casa”, explica Miguel. A rábula prossegue: “Este é o escritório do Afonso, o nosso programador” e, claro, não é escritório algum, é o quarto de Afonso. O “escritório” da empresa é a casa onde os donos da Tio Atum vivem. Quando chega à sala de estar, Miguel anuncia: “E esta é a nossa sala de reuniões. ”A rábula pode dar a ideia de tratar-se de um bando de garotos que, enquanto não têm filhos, brincam aos jogos — mas em menos de quatro anos a Tio Atum fez seis jogos para mobile que “ultrapassaram os dois milhões de downloads”. De há ano e meio para cá, estão a trabalhar no primeiro jogo para PC e consolas, chamado Greedy Guns (a demo está online). “A ida para PC está garantida — agora, quais consolas, isso ainda não sabemos. ”O trio da Tio Atum não precisou de investimento externo de modo a trabalhar em Greedy Guns: “Foi tudo feito com os rendimentos que tivemos dos jogos mobile”, diz Miguel, antes de atirar: “Arriscámos desde o início, foi assim que começámos e, se a empresa acabar, acaba a arriscar. ”Bem-vindos então ao novo sonho português. Como é que se faz dinheiro com jogos para smartphones? Bem, primeiro faz-se o jogo, depois tenta-se que uma plataforma de venda (a App Store, por exemplo) o aceite. Os seis jogos da Tio Atum estão no Google Play e na App Store. “Esses jogos são gratuitos”, explica Pedro Rafael. “Nós ganhamos da publicidade ou com compras dentro dos próprios jogos. ”As compras dentro dos jogos funcionam assim: o jogador descarrega um jogo da Tio Atum e começa a jogá-lo no seu smartphone. Mas o jogo tem um número de armas limitado ou só meia dúzia de níveis de dificuldade. Este é um exemplo das múltiplas tácticas que as empresas encontram para viciar o jogador e levá-lo a querer jogar mais: quem quiser mais armas, ou mais níveis, tem de pagar. Quanto à outra fonte de rendimento, a publicidade: “Nós colocamos um serviço de anúncios no jogo, directamente na aplicação. Por cada pessoa que vai ao anúncio a partir do nosso jogo, recebemos um valor que pode chegar a um euro por pessoa. ” Há empresas (estrangeiras) que facturam um milhão por dia; os autores de Candy Crush Saga “gastam balúrdios por dia só a anunciar o seu jogo em outros jogos”. Como dissemos, a palavra-chave é “mobile”. Os smartphones — em Portugal como no estrangeiro — mudaram tudo. Até ao advento dos smartphones, os jogos eram desenvolvidos para consolas (sendo a PlayStation e a Nintendo as mais fortes no mercado) ou para PC e Macintosh. De modo que há uns anos não era raro haver “600 a mil pessoas a trabalhar no mesmo jogo”, segundo Barroso, que nota que “esta é a maior indústria de entretenimento do mundo — vale mais que a do cinema e da música juntas. Só para se ter uma ideia, o orçamento de marketing do GTA 5 [Grand Theft Auto 5, que vendeu mais de 45 milhões de cópias] é superior ao orçamento de feitura do jogo”. E o mercado dos videojogos continuará a crescer: de 57 mil milhões de euros em 2012 para praticamente 70 mil milhões em 2017, segundo a Forbes. Antes, um videojogo lançado em grande escala era uma manada de elefantes que implicava ter: artistas (que desenham os bonecos ou os posters); programadores (fazem o esqueleto do jogo); designers (de menus, de gráficos, de 3D); arquitectos (apesar de serem assim chamados, não são licenciados em Arquitectura, antes engenheiros que tratam da habitação do espaço do jogo, isto é, a forma como o jogador, através do boneco que controla, se move através do jogo); guionistas; game designers (que decidem que quando o boneco salta também pode atirar uma faca e assim desbloquear um puzzle); sonoplastas (que fazem os sons e também podem fazer a música); e animadores (gente vinda do cinema de animação e que melhora os movimentos dos bonecos). E depois vieram os smartphones. Não é que antes não existissem jogos para telemóveis, mas eram muito precários, pouco aliciantes — e, portanto, pouco viciantes. Para fazer jogos para mobile, não são precisas 600 pessoas e um orçamento de marketing superior ao salário delas durante quatro ou cinco anos — basta uma pessoa. Como David Amador — o primeiro português a ver um jogo aprovado no Humble Bundle, uma das principais plataformas de vendas de jogos. O jogo, Quest of Dungeons, foi também aprovado pelo Steam (outra grande plataforma de venda de jogos online) em apenas seis dias. Amador é um rapaz de 31 anos que, como outros, não acabou o curso: nasceu em Vila Nova de Milfontes e começou a estudar Engenharia Informática no Instituto Politécnico de Portalegre aos 19 — chumbou um ano no secundário. “Tive sempre dificuldade na escola”, conta. Ao contrário de Pina, Folhadela ou Loureiro, nunca pegou num Spectrum — o primeiro computador de tantos rapazes nascidos na década de 1970. David começou por um PC, um Pentium 2, “aos 14 ou 15 anos — tarde, para os padrões comuns”. Na altura, os seus colegas “tinham jogos que [ele] não tinha”. Os jogos “nunca foram uma coisa que os meus pais achassem produtivo. Pelo que não me compravam muitos”. David cresceu a brincar nas consolas dos amigos: Nintendo, Megadrive, “ainda um pouco da primeira PlayStation”. A sua lista de jogos preferidos dessa época inclui Zelda, Super Mario e Prince of Persia, um jogo que marcou a geração anterior à dele. Teria uns 16 anos quando começou “a mexer umas coisas em Pascal [uma linguagem de programação caída em desuso] e num programa em Basic [uma linguagem de programação básica, usada pelos iniciados da informática a meio da década de 1980]. Até ir para a universidade, não tive educação formal de informática”. Para pagar as propinas, David procurou um part-time. Na altura, uma série de start-ups instalara-se no edifício da Câmara Municipal de Portalegre — uma delas foi a Spellcaster Studios. “Cheguei à entrevista, puseram-me um computador nas mãos e disseram-me: ‘Tens duas horas para fazer um jogo. ’ Não me disseram que tipo de jogo, em que linguagem, nada. ” Entrou. Fez um estágio e, quando a Spellcaster se mudou para Setúbal, David seguiu-os, deixando o curso para trás. Ainda por lá ficou mais dois ou três anos, a trabalhar em websites. Em 2010, estava desempregado e decidiu fazer um jogo chamado Vizati, por si próprio, num mês. Levou-o a um concurso da Microsoft e ganhou o primeiro prémio. Vizati saiu em Junho de 2010 e teve boas críticas, estando disponível para iPhone, PC, Mac e iPad — o que lhe deu motivação para continuar. “O meu currículo são os jogos”, diz. O último emprego que teve foi na Sapo, e descreve assim a contratação: “Levei o iPad para a entrevista e disse: ‘Tenho feito isto. ’ Eles acharam graça e começaram a jogar: consegui o emprego. ” Isto significa que houve uma mudança cultural: o patronato começa a ver o talento para criar jogos como uma qualificação, não uma coisa de garotos. Em 2013, resolveu fazer, sozinho, Quest of Dungeons — um jogo em que o objectivo é recuperar a luz roubada por um senhor das trevas e que tem a particularidade de os diferentes níveis nunca se repetirem. Tinha passado anos a fazer jogos (fosse para empresas, fosse nos seus tempos livres) e conseguira um certo culto na comunidade nacional de jogadores. Trabalhou em Quest of Dungeons durante um ano e foi “mostrando o progresso do jogo em fóruns, no Twitter e no Facebook”. Quando achou que o jogo estava próximo de estar acabado, fez o trailer e no mesmo dia mandou-o para o Steam. No Steam, os criadores submetem os jogos, os jogadores votam nos que mais gostam e, se um jogo conseguir entrar no top 100 de votos, a plataforma talvez o distribua. Era uma da manhã quando David enviou o jogo; quando acordou, Quest of Dungeons tinha 6% dos votos do 100. º jogo mais votado; no dia seguinte 18%; e foi a subir até chegar ao top 100. A 19 de Janeiro de 2014, seis dias depois de ter enviado o jogo, o Steam aprovou-o para a sua loja. Quest of Dungeons foi também para PC e Mac, depois iOS (o sistema operativo dos iPhones e dos iPads) e acabou na Humble Bundle. Agora, David Amador está a passar o jogo para a XBOX. Foi ele quem apresentou o jogo à Microsoft (dona da XBOX). Está a fazer tudo sozinho, com o dinheiro que ganhou até agora. Quando Amador era aluno universitário, Pina foi à sua escola falar com os estudantes. David pensou: “Estes gajos fazem o que eu quero fazer. ” Sem a palestra de Pina, Amador não teria pensado que era possível viver dos jogos. Um dos primeiros problemas com que Pina se deparou quando resolveu iniciar a indústria de videojogos em Portugal, há 15 anos, foi a dificuldade em chegar à fala com editoras que publicassem os jogos: “Todas as editoras eram estrangeiras e nós não tínhamos ainda o know-how. ” Mas a grande barreira era económica e ainda subsiste: “Os bancos em Portugal não investem em videojogos. ”Segundo Ivan Barroso, “até hoje não houve um banco que investisse num jogo em Portugal”. Segundo Miguel Pedro Rafael, da Tio Atum, “a nossa cultura financeira não ajuda — não temos milionários a dar com pau”. As nossas regras fiscais também não estão adaptadas à especificidade do negócio: na maior parte dos países ocidentais, as empresas de videojogos têm isenções fiscais nos primeiros anos, porque um jogo pode demorar um a dois anos a ser feito, e depois ainda pode ser preciso esperar outro ano até receber o dinheiro. Por cá é preciso pagar IRC e segurança social durante todo este período. É por isso que Rafael acredita que os criadores de videojogos têm de se “unir para fazer lobby”. A questão do know-how foi resolvida com o tempo: quando Pina começou a sua mais recente empresa, a Nerd Monkeys, já tinha no currículo jogos como Toy Shop Tycoon (o primeiro jogo para a Nintendo criado em Portugal, distribuído em todo o mundo, em seis línguas, que saiu em 2008), além do Under Siege. Graças aos seus próprios desaires, os pioneiros dos videojogos portugueses aprenderam a conhecer as necessidades do mercado e os seus agentes. Assim se compreende que a Nerd Monkeys já tenha lançado vários jogos para mobile e esteja a crescer, ao ponto de nos próximos meses ir contratar mais quadros, isto além de já contratar regularmente freelancers — por exemplo, a música dos jogos é feita por João Mascarenhas, líder da Stealing Orchestra, uma banda de culto. Há cada vez mais freelancers nesta área — seja a fazer grafismo, programação ou som. Ou seja: a estrutura das empresas portuguesas começa a assemelhar-se à das empresas convencionais ocidentais. Ou seja: começa a haver uma indústria portuguesa. Também a crescer está a Bica Studios, de Nuno Folhadela, empresa “altamente centrada no mobile”, que, entre outros jogos, desenvolveu um que teve êxito, Smash It!. Ao ponto de entretanto ter lançado uma sequela, Smash Time. Folhadela, um homem que fala com um entusiasmo e confiança impressionantes, tem grandes planos: “Somos a empresa mais promissora [de jogos] em Portugal. Somos nove empregados, mas daqui a seis meses vamos passar a ser 15 — planeamos contratar artistas, programadores e analistas de dados. ”Quando Folhadela chegou à Game Invest, em 2006, tinha passado anos a “entregar currículos em empresas de animação, porque não havia empresas de jogos”. Bem, havia esta — ainda por cima portuguesa — mas, para azar de Folhadela, a Game Invest faliu em 2007, de modo que o dono da Bica Studios teve de esperar quatro anos até voltar aos jogos, na Biodroid, também portuguesa. Esteve lá de 2011 a 2013. Na Game Invest — que fazia os seus próprios jogos —, fora game designer e argumentista; na Biodroid, foi também produtor. Mas como as empresas portuguesas são pequenas, acabou (como Loureiro ou Pina) a fazer um pouco de tudo. Na Biodroid, fazia a história, a mecânica e a arquitectura dos jogos. Foi aí que encontrou “gente com vontade de fazer jogos para o mundo inteiro” e resolveu formar a sua própria empresa. A gente da Bica Studios tem sonhos mas é pragmática. Querem “uma marca”, fazer “um jogo que seja bom daqui a 20 anos”, daí a opção pelo seu próprio produto em detrimento das encomendas que possam surgir. (Neste negócio é muito comum uma empresa consignar a outra uma parte da feitura do jogo. ) Mas também querem “chegar a muitas pessoas”. Fizeram uma análise de mercado e descobriram que “faltavam smashers”, jogos em que se partem, esmagam e escavacam coisas. “São jogos simples, que se aprendem rapidamente e sem um grande campeão de vendas nas lojas digitais. ” Foi assim que criaram a série Smash (cuja primeira versão saiu em Maio de 2013 e a última em Dezembro), disponível para AppStore, Windows Phone e Google Play. A ideia é ser um sucesso global e “haver mais conteúdos todos os meses. Novas personagens, novos níveis, novas mecânicas”, explica Folhadela: “Ao contrário do que acontecia nos jogos tradicionais, em que o objectivo era chegar ao fim, o jogo para mobile não pára. É a beleza destes jogos. ”Com o êxito de Smash It! fizeram um acordo com um grupo de investidores portugueses — que se tornaram donos de uma parte da empresa. A Bica usou o dinheiro para desenvolver Smash Time, a sequela de Smash It!, e “fazer dele um campeão de vendas”. Folhadela recebeu duas propostas da King, que desenvolveu o Candy Crush Saga, e mesmo assim “não quis sair”. A King é a maior criadora de jogos no Facebook e está avaliada em mais de sete mil milhões de dólares. Folhadela prefere “pensar no que [pode] fazer por Portugal”. A ideia é um dia vender a empresa por uma batelada. “O grande problema de Portugal”, explica, “é que somos muito novos a produzir entretenimento”. Isto dificulta coisas tão simples como encontrar financiamento externo ou chegar às grandes distribuidoras. O país é visto com desconfiança, mas por outro lado, sabe-se que aqui há talento e barato, o que explica a razão por que a Miniclip, cujo capital é estrangeiro, se estabeleceu cá. Um dos seus grandes êxitos foi um jogo chamado 8 Ball Pool. Por trás dele está Tiago Loureiro: “Fui contratado pela Miniclip para coordenar a passagem do jogo para mobile no mercado americano e europeu. ” Foi um êxito global em 2013. Nenhum percurso é tão estranho como o do “Viking”, um homem que fala depressa, tem sentido de humor e um marcado pragmatismo — o que é igualmente notório nos restantes criadores de videojogos nacionais. Aos 39 anos, Loureiro é dos mais velhos a trabalhar nesta indústria (embora Pina trabalhe na área há mais tempo). Teve um Spectrum, claro, mas começou a programar em Basic aos seis anos, num Texas Instruments — um computador com periféricos para disquetes e gravador de cassetes, sobretudo popular nos Estados Unidos. O gosto pelas tecnologias de informação percorre a família: “O meu pai viu aquilo e comprou-o — quem lhe vendeu o meu computador foi o meu actual padrasto. ”No 10. º ano, criou “um programa no Spectrum para resolver os problemas de Matemática”. Não tencionava estudar Informática: “No 9. º ano, a imagem que tinha dos cursos de Informática em Portugal era má. ” Pelo que se candidatou a Psicologia — mas entrou em Matemática. Ainda se inscreveu em Gestão, Psicologia e Engenharia Informática, não terminando nenhuma destas licenciaturas. Valha a verdade, nunca precisou: aos 12 anos já ganhava trocos a quebrar os galhos informáticos dos conhecidos, aos 14 criava softwares para empresas de amigos dos pais, aos 17 criou uma distribuidora de livros de role playing (em que o jogador encarna uma personagem por ele criada) e aos 18 tornou-se operador de registo de dados numa empresa. Aos 22 era chefe de equipa de um sistema interbancário de detecção de fraude em tempo real com cartões bancários. Depois foi para a SisCog, onde desenvolveu programas de suporte à decisão para sistemas ferroviários no Norte da Europa — onde criou nome. E esta é a versão super-resumida do seu currículo. Foi capa de revistas especializadas, mas só em 2006 começou a trabalhar em definitivo na área dos jogos. Hoje, “gente no mundo inteiro" vem ter com ele, diz, muito à conta de “ter publicado jogos que ainda estão no top 30 da Appstore dos EUA”, como Gravity Guy, mas também pelo seu talento enquanto programador — é o programador mais admirado pelos portugueses que trabalham na indústria dos videojogos e um dos programadores portugueses mais requisitados. E, no entanto, não se quer ir embora. De tal modo que agora tem a Raindance Studios, que anda por estes dias por feiras em Londres. “Antes era difícil, do ponto de vista técnico, entrar nesta indústria. Mas agora há tantas ferramentas de tão fácil utilização que qualquer um pode fazer jogos”, diz. Além disso, ter estado na Miniclip abriu portas lá fora: “Hoje sei exactamente quem hei-de contactar e como. ” O “como” refere-se ao modelo de negócio: a Raindance Studios conseguiu apoio de uma distribuidora, a Lace, que adiantou dinheiro para um jogo para Mac e, se tudo correr bem, para XBOX. A Raindance Studios faz o jogo, a Lace publica e depois partilham receitas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O adiantamento só dá até Outubro. Loureiro tem uma filha de cinco anos. Como se mete numa coisa destas? “Se correr mal, vamos à nossa vida”, diz, no tom mais pacato que se possa imaginar. “Não estou nada preocupado com isso. Num mês, tenho emprego. ”Certo, mas e aqueles que não têm certeza de arranjar emprego num mês? “Devem seguir o que sonham mas não se devem definir por isso. Cada projecto é só um projecto. Se correu mal, correu. Foi o projecto que correu mal, não foi a pessoa. É circunstancial: naquela altura não foi possível fazer isto. ‘Bora fazer outra coisa. ”Agora é hora de fazer jogos.
REFERÊNCIAS:
Slow movement: Trabalhar menos. Trabalhar melhor
A energia dos cidadãos, das comunidades ou dos países não pode ser empregue apenas no crescimento económico, mas na capacidade em distribuir equitativamente a riqueza, o saber, o trabalho, o lazer e o tempo. E isso é slow movement. (...)

Slow movement: Trabalhar menos. Trabalhar melhor
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.011
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A energia dos cidadãos, das comunidades ou dos países não pode ser empregue apenas no crescimento económico, mas na capacidade em distribuir equitativamente a riqueza, o saber, o trabalho, o lazer e o tempo. E isso é slow movement.
TEXTO: Desafiar a cultura da velocidade, da acumulação, do frenesim, da quantidade sobre a qualidade. Não para tentar impor o seu contrário, mas para repor equilíbrio nas diferentes áreas da vida. O movimentoambiciona proteger um bem escasso que é transversal a tudo o que fazemos — o tempo —, interrogando-se sobre como o gerimos e o que fazemos dele. Não se trata de recusar as tecnologias, as conquistas do bem-estar ou aspectos positivos da globalização, mas de os tornar aliados no objectivo da sustentabilidade. Não se trata de fazer a apologia da lentidão ou de encarar o trabalho de maneira negativa, mas sim de enaltecer o revigoramento que pode surgir quando se vive segundo um modelo em que se sabe quando é necessário abrandar ou acelerar, não deixando que o desacelerar se torne estagnação, nem que a hiperactividade se torne obsessão. O tempo tornou-se a unidade de medida de tudo, até do espaço. Já não falamos de distâncias quilométricas, mas de tempo de viagem: três horas de voo. Duas de comboio. Quatro de carro. As teorizações acerca do tempo e do ritmo são recorrentes ao longo da história. Mas na última década, em parte por reacção ao culto da rapidez, a procura do tempo justo tem sido revalorizada. Os diferentes movimentos slow surgidos nos últimos anos — slow cities, slow food, slow design, slow travel, slow thinking e tantos outros — direccionam a sua abordagem para áreas específicas, mas no fim de contas todos alertam para a necessidade de abrandamento do mundo moderno, não para regressarmos a formas pré-modernas, mas para reconfigurarmos o presente. A questão é como desacelerar num contexto contemporâneo que nos impele exactamente para o contrário. Um ambiente onde a produtividade ainda é associada a trabalhar muito e não racionalmente, onde ter sucesso ainda é sinónimo de acumular, ou onde a satisfação é tantas vezes confundida com consumir. “Há uns anos, em férias, simplesmente não conseguia desligar-me do trabalho, passava o tempo ao telemóvel”, ri-se Maria Andrade, advogada de 43 anos, que se viu obrigada a reduzir o ritmo de trabalho depois de ter apanhado um valente susto de saúde. “Às tantas fui avisada por mais de um médico de que tinha de parar”, confessa, recordando a sua relação com o trabalho: “Inventava, inclusive, desculpas para mim própria para não tirar férias, era como se não soubesse o que fazer com elas, como se fossem uma perda de tempo. Vivia apenas e só para o trabalho. ”O seu caso é extremo. Abrandar, mais do que opção, foi um imperativo. O facto de ter uma situação desafogada do ponto de vista material permitiu-lhe parar durante um ano e reflectir. Quando regressou ao escritório de advogados, renegociou o contrato de trabalho. Passou a auferir um vencimento menor, em troca de laborar menos horas e de ser ela a controlar o seu tempo. No início não foi fácil, “porque estamos inseridos no colectivo e alguns colegas não percebiam a situação de excepção que eu representava”. Hoje diz que a situação se normalizou e não está arrependida. Apesar de se saber uma privilegiada, “porque nem todas as pessoas se podem dar ao luxo de ver o seu ordenado reduzido”. Maria Andrade ganhou outras coisas. “Antes era uma mulher ansiosa com trabalho. Agora sou mais construtiva e produtiva e também com mais tempo para mim, para os que me rodeiam e para tudo aquilo que fui adiando ao longo dos anos — da natação à pintura. Não tenho qualquer dúvida de que abrandar me tornou mais eficiente, produtiva e realizada. ”A relação com o trabalho no mundo ocidental já passou pelas mais diversas mutações. Na Grécia Antiga nem sempre foi tido em grande conta. O Renascimento recuperou-o e elegeu como um dos seus heróis o mestre artesão. Mas foi com a Revolução Industrial que o trabalho passou a ser celebrado como o grande motor da transformação do mundo. No relatório de Julho deste ano da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal surgia no 12. º lugar dos chamados países industrializados onde mais horas se trabalha — apesar de a instituição advertir que as comparações entre países podem ser enviesadas. Por cada dia útil, em média, um português trabalha sete horas e vinte minutos. Na Europa são os gregos quem mais horas trabalha (oito horas diárias), enquanto os alemães, por exemplo, se ficam pelas cinco e meia. Recentemente, o laboratório de políticas públicas da Suécia fez saber que, até ao final do ano, está a proceder a um teste. Metade dos funcionários públicos da cidade de Gotemburgo trabalha seis horas por dia e a outra metade oito. A experiência pretende provar se é possível ser mais eficiente, dedicado, criativo e comprometido, trabalhando menos. Em França, onde estão implementadas as 35 horas semanais (em contraste com as 40 portuguesas), os defensores e detractores da lei apresentam argumentos diferentes. Os que a contestam dizem que a produtividade baixou. Os que a defendem afirmam que não só não baixou, como a educação, a cultura, o desporto, o lazer ou as ocupações que envolvem participação cívica passaram a ser mais valorizados, ao mesmo tempo que as grandes companhias puderam negociar com os trabalhadores formas mais flexíveis de operar. No movimento slow defende-se que menos horas de trabalho acaba por contribuir para a maior valorização dos bens não materiais. Dessa forma não se concorre tanto para o possível esgotamento do planeta, ao mesmo tempo que se contribui para o enriquecimento individual, e para a vida salutar em comunidade, ao contrário da corrida à reposição de bens, que é uma das principais razões pelas quais se trabalha mais na actualidade. Trabalhar menos é apenas um dos elementos defendidos pelo movimento slow. O outro é poder negociar, sempre que tal se revele praticável, quando e onde se trabalha. Ou seja, deter um maior controlo sobre o tempo que se trabalha. Uma prática difícil de encaixar numa cultura onde ainda se é julgado mais pelas horas que se passam a trabalhar do que pelos resultados que se alcançam. Claro que existem já muitas excepções. No Canadá, por exemplo, há inúmeros casos de autonomia temporal dos trabalhadores. É o que acontece com o Royal Bank of Canada, que concluiu que “quando têm controlo sobre o tempo de trabalho, os funcionários ficam mais calmos e são muito mais eficientes, e, por outro lado, o abrandamento é fulcral ao nível dos planeamentos estratégicos, das relações humanas e do pensamento criativo”. O escritor e filósofo suíço radicado em Inglaterra Alain de Botton é um dos que acham que hoje “as pessoas trabalham mais do que alguma vez aconteceu”, diz-nos por email. “Nas sociedades ocidentais contemporâneas temos a sensação de que vivemos na era do lazer e das viagens, mas é bem capaz de não ser assim”, afirma. “Na Idade Média, a maior parte das pessoas trabalhava até ter o que precisava para sobreviver e depois parava para desfrutar do que conseguira. Na era industrial começaram a surgir as jornadas regulares de trabalho. E hoje vivemos obcecados em ter uma vida produtiva, trabalhar muito, de forma quase incessante. É preciso não generalizar, mas todos conhecemos quem trabalhe em ambientes altamente competitivos e que, aos domingos à tarde, está com o pensamento no escritório. ”Na sua opinião, o ritmo desenfreado contribuiu para que, quando paramos, não saibamos como usufruir desses momentos. Talvez não seja um acaso que alguns especialistas da área das relações familiares proclamem que, nas férias, tendem a aumentar as separações entre casais e a agudizar-se os conflitos entre pais e filhos. Os níveis de ansiedade sobem para quem está habituado a determinadas rotinas. É difícil aceitar a preguiça. Aquela que é desejada, claro. Aquela que, sem nenhum desejo para ser realizada, permite o repouso ao corpo e à mente. Uma vida verdadeiramente produtiva só era possível com muitos momentos de improdutividade, argumenta Alain de Botton. Ou seja, os seres humanos mais produtivos são aqueles que também sabem o que fazer no ócio. O trabalho identifica. “Somos o que fazemos. ” É por isso que é tão difícil estar no desemprego. É uma questão de dinheiro e de sobrevivência, como é evidente. Mas é mais do que isso. É também a identidade de cada um que se joga. Fora do mercado de trabalho é como se não se existisse. Nas sociedades ocidentais contemporâneas temos a sensação de que vivemos na era do lazer e das viagens, mas é bem capaz de não ser assim”Hoje vivem-se tempos paradoxais. Nas últimas décadas parecia que caminhávamos para uma época do lazer. O ser humano da produção parecia cada vez mais em sintonia com o do jogo, do sentido lúdico e dos tempos livres. O aceleramento do progresso tecnológico, o imaginário dos computadores e dos robôs, parecia prometer uma maior libertação do homem em relação ao trabalho, mas nem sempre as tecnologias disruptivas conseguem garantir, em simultâneo, progresso e equidade. Tanto podem contribuir para a redução de empregos generalizada, com todas as consequências que daí advêm, como propiciar a melhoria do bem-estar, uma distribuição de rendimentos mais justa e mais tempo para dedicar ao lazer. A verdade é que a larga maioria sente que trabalha muito, não usufruindo de tanto tempo livre como desejaria. A sua vida é obrigada a girar em torno do emprego. E a crise económica que se perpetua veio agravar em muito este quadro. À medida que os postos de trabalho reduzem, o mundo parece dividir-se acentuadamente entre os que trabalham de mais, e em condições precárias, e os que simplesmente não têm trabalho. Se existisse lógica, a carga horária seria racionalizada, de forma a todos termos emprego. Reduzir-se-ia a porção de trabalho individual. Os que já o têm trabalhariam menos. E os que estão no desemprego poderiam aspirar a um posto de trabalho. O canadiano Carl Honoré, grande defensor do movimento slow e autor de In Praise of Slowness, afirma que a recessão afectou de formas diversas os ambientes de trabalho. Por um lado, colocou ainda mais pressão sobre quem trabalha, sendo-lhe exigido maior produtividade e em menos tempo. Em simultâneo, aumentaram os mecanismos de controlo, sejam eles informais ou estruturalmente burocráticos. Resultado? “Numa cultura que valoriza a velocidade e a competição, as pessoas sentem que uma forma de parecerem indispensáveis nos seus locais de trabalho é darem a impressão de que estão sempre a correr e em grande actividade”, escreveu há meses no Huffington Post. Ou seja, nos locais de trabalho há muitas pessoas que têm um comportamento performativo. Por outro lado, diz Honoré, a recessão apenas veio recordar-nos de que o estilo de vida que adoptámos nas últimas décadas é insustentável. “As pessoas estão ávidas por alternativas. Há cada vez mais quem já tenha percebido que é necessário reinventar a forma como gerimos a economia e a sociedade desde a sua base”, diz. “E o desacelerar terá um papel importante nessa mudança. ”Na obra Non-Stop Inertia, o psiquiatra inglês Ivor Southwood reflecte sobre as contradições dos últimos anos nas sociedades ocidentais, argumentando que a cultura do trabalho temporário, a fragmentação, ou a velocidade dos meios de comunicação digitais nos fazem acreditar que estamos sempre em movimento. Mas é um movimento sem nexo, sem destino. É uma acção paralisante que, muitas vezes, apenas leva à fadiga crónica ou à depressão. Os jovens não conseguem projectar o seu futuro. Sentem-se bloqueados por um eterno presente feito de precariedade. Os pais receiam perder a reforma ou a assistência social. O resultado é uma existência guiada pela imobilidade. Aquilo que ele chama “uma hipertrofia do presente”, em que a experiência múltipla e humana do tempo foi substituída pelo tempo exclusivo do capital. A modernidade instaurou o tempo único da produção, da tecnologia e da rapidez. Um regime temporal ocidentalizado hegemónico, eliminando os diversos tempos locais e individuais. Um processo de aceleração que não se detém, que se intensifica. Como diria o conhecido pensador francês Paul Virilio, já não vivemos na época da velocidade, mas do instantâneo. Um tempo único que elimina a espera, a transição, o intervalo, a reflexão. Num mundo assim talvez seja urgente formular novas noções de tempo. É isso que tem vindo a acontecer nos últimos anos. Em 1986, nasceu em Itália o movimento slow food, que pretendia contrariar os valores associados ao fast food. O slow expandiu-se depois, em vários países ocidentais, a outras áreas de acção — saúde, educação, turismo, relacionamentos, lazer, urbanismo — tendo por base a ideia que é possível vivermos num ritmo mais lento, adequado ao bem-estar e ao desenvolvimento pessoal, comunitário e ambiental. Foi com esses pressupostos que nasceu também, em 2009, a associação Movimento Slow em Portugal, dirigida hoje pela antropóloga social Raquel Tavares. O livro de Carl Honoré constituiu o ponto de partida para que uma série de pessoas, ligadas ao associativismo e ao desenvolvimento local, materializasse esse interesse numa associação e numa ONG, diz-nos Raquel Tavares. “Mais do que um submovimento, como existe noutras partes do globo, direccionado para áreas distintas, interessa-nos algo mais transversal ligado ao conceito de tempo. Para nós, é uma forma de estar que é empregue em diferentes dimensões da existência. ”Não existem receitas. O ideal é cada um encontrar o seu equilíbrio. Slow não é parar ou estagnar. É procurar equilíbrio. ”Na sua opinião, as mudanças individuais são indissociáveis das colectivas, mas não tem dúvidas de que é difícil lutar sozinho contra uma corrente predominante. “O que não significa que não se consigam dar pequenos passos, lentamente, na direcção certa. O primeiro, é a pessoa estar consciente da necessidade de operar algumas mudanças. Mas, como é evidente, demora tempo. ” Cortes abruptos também acontecem. “Quem tem um estilo de vida extenuante, do padrão executivo, que normalmente ganha bastante bem, e que decide cortar indo viver para o campo, por exemplo. São atitudes radicais, mas que não são para todos. Não existem receitas. O ideal é cada um encontrar o seu equilíbrio. Slow não é parar ou estagnar. É procurar equilíbrio. ”A recessão também ajudou à decisão. “Podíamos trabalhar ainda mais, acumular ainda mais e de forma ainda mais vertiginosa, como aconteceu com os nossos amigos, ou resistir a essa ideia. Foi o que fizemos. ”O que também mudou neles foi o seu sentido de comunidade. “O respeito pelo território, os negócios onde as populações se sentem integradas, enfim, o zelar pelos recursos existentes faz parte daquilo que somos agora. E gostamos de envolver mais pessoas nestas questões, porque só assim se pode mudar alguma coisa. Em grupo é mais fácil. ”As mudanças civilizacionais são lentas. Com avanços e recuos. Mas acontecem. A progressiva consciência ambiental é um exemplo, diz-nos Júlio. “A verdade é que a nossa relação com a ecologia mudou. E na relação trabalho/lazer poderá vir a acontecer o mesmo. ”“A nossa matriz de estilo de vida parecia ir na direcção de utilizarmos o tempo que nos sobrava”, reflecte por sua vez Raquel Tavares, “porque havia essa ideia de que com as máquinas poderíamos fazer mais rápido. Mas não interessa ter mais tempo se o ocupamos para fazer mais e mais, pensando apenas na quantidade. Esta época é marcada por um querer insaciável. Queremos mais sucesso. Queremos consumir a última novidade. Enfim, vamos estar sempre nessa corrida que não tem fim se não conseguirmos conectar-nos com outras coisas. ”Enquanto as grandes transformações não acontecem — seja através de políticas que permitam uma redistribuição mais justa dos rendimentos e recursos, ou da redução das horas de trabalho, seja pela adopção de novos comportamentos — é pelo menos possível ir ensaiando pequenas mudanças. Como dormir a sesta. É isso que advoga a Associação Portuguesa dos Amigos da Sesta, surgida em 2003, hoje com quase três centenas de sócios e com quatro conferências nacionais realizadas. O presidente é o advogado Prates Miguel, que, inicialmente, criou a associação em tom de desafio — “faço a sesta desde criança, porque sou do Alto Alentejo, e em determinada fase era alvo de chacota de colegas e juízes quando lhes dizia que julgamentos para as 14h eram contraproducentes”. Hoje continua um defensor do ritual, bem como do movimento slow. “É necessário entender este assunto em moldes biológicos a partir da necessidade de repouso, intercalado entre as duas jornadas de trabalho”, diz. Muitas das figuras mais vigorosas da história — Napoleão Bonaparte, John F. Kennedy, Thomas Edison ou Winston Churchill — não prescindiam de uma boa soneca. “Não pensem que trabalho menos por dormir durante o dia”, terá dito uma vez Churchill à imprensa, meio a brincar, meio a sério. “Isso é uma noção sem sentido da parte de quem não tem imaginação. Pelo contrário, é possível ser bem mais produtivo assim. Até porque é como se tivéssemos dois dias num só — ou pelo menos, um dia e meio. Depois da sesta sinto-me pronto para tudo. É revigorante. ”Nos últimos anos, afirma Prates Miguel, inúmeros estudos de carácter científico e obras publicadas têm levado as pessoas a olhar para a sesta de forma diferente. “Há um autor francês que diz que a sesta é tão necessária como o ar que respiramos. Faz parte do ritmo biológico. Recentemente, o alcaide de uma autarquia do Sul de Espanha decretou a prática opcional da sesta e eu compreendo isso. ”São incontáveis os estudos legitimados com o carimbo de “ciência” que concluem que trabalhar menos, ou a sesta, contribuem para melhorar a qualidade de vida. Ainda há pouco tempo, a NASA divulgou uma pesquisa em que se concluía que as sestas aumentavam o desempenho e a focagem. Da mesma forma existem hoje inúmeras empresas de prestígio que advogam práticas dos seus funcionários que contemplem o abrandamento. Em parte, tornou-se até um fenómeno de moda, em países como o Japão ou os Estados Unidos, as empresas proporcionarem sessões de ioga, de meditação ou de massagens aos seus funcionários em tempo laboral, incentivando-os a almoçarem longe da secretária ou a tirarem férias repartidas ao longo do ano. Na base destas decisões está a ideia de que somos mais criativos quando calmos, sem ansiedade e imunes a distracções. Abrandar no momento certo pode ajudar-nos a trabalhar e a viver melhor. “As melhores ideias não acontecem quando estou a enviar emails ou no escritório em reuniões, mas quando passeio o cão ou depois de nadar na piscina”, diz-nos Maria Andrade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Numa apetência por novos paradigmas há até quem advogue um indicador alternativo ao PIB (Produto Interno Bruto), que associamos ao desenvolvimento económico. A tese é que o PIB avalia a quantidade, mas não a qualidade, sustentabilidade, bem-estar, educação, saúde, boa governança, vitalidade comunitária, protecção e conservação ambiental, acesso à cultura ou a gestão equilibrada do tempo. Claro que não basta mudar os indicadores da realidade para que a realidade mude, mas pode muito bem ser um princípio. A verdade é que o lazer, na actualidade, adquire um significado para além do lúdico, da mera evasão ou da compensação face ao tempo de trabalho. A energia dos cidadãos, das comunidades ou dos países, não pode ser empregue apenas no crescimento económico, mas na capacidade em distribuir equitativamente a riqueza, o saber, o trabalho, o lazer e o tempo. Talvez esteja na hora de conceber outras formas de viver o tempo que temos para viver.
REFERÊNCIAS:
Santos, Lisboa: Quem são os Santos?
Esquecemo-nos de perguntar o que está por trás de um nome. Santos-o-Velho, Santos-o-Novo. Quem são os misteriosos santos que assim marcaram a cidade? (...)

Santos, Lisboa: Quem são os Santos?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Esquecemo-nos de perguntar o que está por trás de um nome. Santos-o-Velho, Santos-o-Novo. Quem são os misteriosos santos que assim marcaram a cidade?
TEXTO: Falamos da zona de Santos, do bairro de Santos, da (antiga) freguesia de Santos. Mas não paramos para fazer a pergunta: de que santos estamos a falar? Santo António? São Vicente? Ou serão Todos-os-Santos? Os santos em geral ou algum em particular?Comecei a pensar nisto depois de uma visita ao convento de São Pedro de Alcântara, recentemente aberto ao público. A capela chamada dos Lencastres — onde está sepultado D. Veríssimo de Lencastre, filho de D. Filipa de Vilhena, Arcebispo de Braga e Primaz de Espanha, conhecido como o Cardeal Inquisidor — é dedicada aos santos mártires Veríssimo (que deu o nome ao cardeal), Máxima e Júlia. Foi aí, enquanto olhava para o magnífico trabalho de pedra que decora toda a capela, que começou a minha história com os Santos. Então, de São Pedro de Alcântara viajei para a zona de Santos à procura de sinais de Veríssimo, Máxima e Júlia. Temos que recuar aos tempos romanos, aos anos de 303 ou 304, para encontrar estes três irmãos — que segundo alguns relatos teriam vindo de Roma até Lisboa mas segundo outros eram naturais desta cidade — e que foram supliciados e executados por ordem do prefeito Daciano. Há quem se refira a eles como “crianças”, mas nada encontrei que referisse concretamente a idade que teriam. O que se sabe é que se apresentaram por vontade própria ao executor dos éditos imperiais e declararam a sua fé cristã. Diga-se em abono do romano que este terá tentado dissuadi-los mas, não conseguindo, viu-se forçado a mandá-los prender. O que se seguiu foi terrível: os três irmãos foram torturados de todas as formas imagináveis, com unhas de ferro, lâminas em brasa e, ainda vivos, foram arrastados pelas ruas de Lisboa para acabarem degolados. Os seus corpos foram depois dados às feras para que os devorassem, mas conta a lenda que os animais não tocaram neles. O juiz que os tinha sentenciado determinou então que fossem lançados ao mar atados a pesadas pedras. Mesmo assim os corpos voltaram a dar à praia em Lisboa, precisamente na zona que hoje conhecemos como Santos. Os cristãos da cidade recuperaram os corpos e enterraram-nos no local, construindo-lhes um templo. Mais tarde, já durante o período muçulmano, este templo teria sido destruído e dele teriam restado apenas três pedras. Depois da conquista da cidade por D. Afonso Henriques, este mandou erguer no local uma nova igreja dedicada aos santos mártires. Pelo templo de Santos passaram os monges militares de Santiago e Espada e depois, após a partida dos monges, ali recolheram senhoras que ficaram conhecidas como Comendadeiras. Terão sido elas a descobrir os supostos restos mortais dos três mártires, que aí foram mais uma vez sepultados. Mesmo assim, Veríssimo, Máxima e Júlia não encontraram descanso. Por ordem de D. João II, em 1490 as Comendadeiras foram transferidas para outro convento. É então que nascem os dois nomes que hoje nos são familiares: Santos-o-Velho, o local do convento e igreja originais, e Santos-o-Novo, o novo mosteiro acima de Santa Apolónia para onde foram levadas, pelas Comendadeiras e numa procissão solene que atravessou a cidade, as ossadas que se acreditava pertencerem aos três irmãos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os santos mártires atravessaram a cidade mas é como se não tivessem querido abandonar definitivamente o lugar onde há muitos séculos os seus corpos deram à costa. Na fachada da Igreja de Santos-o-Velho existe uma pedra na qual estão esculpidas em relevo as figuras de Veríssimo, Máxima e Júlia, os três de chapéu e segurando um bordão — uma imagem em que não parecem crianças. No interior da igreja, no altar-mor, os irmãos surgem outra vez, já não com o aspecto de viajantes que têm no exterior, mas com o de santos que se tornaram depois do martírio. Mas em Santos-o-Velho, em Santos-o-Novo ou na capela dos Lencastres, o que impressiona é a capacidade de resistência de uma memória. Porque é que uma história se recusa a morrer? Como é que, dezassete séculos depois, eu posso perguntar ‘quem são os Santos?’ e ainda encontrar a resposta. Chamavam-se Veríssimo, Máxima e Júlia e quiseram morrer para afirmar a sua fé.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filho