No Porto, há uma antiga Drogaria renovada em forma de bar
Hoje é um bar, outrora era uma drogaria. Mas nem tudo mudou: ficou a rusticidade e a genuinidade do antigo espaço. De Portugal para os portuenses, aqui não se vende nada com selo estrangeiro. (...)

No Porto, há uma antiga Drogaria renovada em forma de bar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2019-06-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Hoje é um bar, outrora era uma drogaria. Mas nem tudo mudou: ficou a rusticidade e a genuinidade do antigo espaço. De Portugal para os portuenses, aqui não se vende nada com selo estrangeiro.
TEXTO: Os pregos e os parafusos ficaram — desta vez não para venda, mas enraizados nas paredes. Também a ferrugem, a madeira antiga e a pedra que cobre as paredes são a primeira coisa que salta à vista de quem entra no Drogaria Bar. Porque Maria e Paulo quiseram que assim fosse. “Interpretámos o espaço para reaproveitar o que existia”, conta Maria Marcelino, 33 anos, designer de moda e agora proprietária do Drogaria. Abriram portas em Fevereiro, depois de um longo ano de obras. O espaço, onde antes se vendiam produtos químicos e ferragens, passou a ser o local ideal para “beber um copo”, descreve Maria. Ambos clientes da antiga drogaria, sempre gostaram de “novos desafios” e aproveitaram a oportunidade para “pôr em marcha um wine bar”. “Tivemos pessoas a dizer-nos que viam aqui uma frutaria biológica. Nós vimos um bar”, conta Paulo Vieira, 50 anos, também proprietário. As obras avançavam, “a história aparecia” — e foi preciso “assumi-la” e “preservá-la”. “Tapar as paredes com pladur” nunca esteve nos planos de Maria e Paulo. O “metal ferrugento” passou a ser “parte integrante do projecto”. O soalho, porque “estava muito destruído”, foi substituído por outro, mas com o mesmo “traço do século passado”. O antigo tornou-se novo — “e não há mal nenhum nisso”. “É o que dá carácter ao espaço”, lembra Maria. E Paulo concorda: “A beleza do espaço está no que é a sua arquitectura. ”Contrariamente à necessidade de investimento no turismo que hoje se vive no Porto, o projecto de Paulo e Maria nasceu “de raiz para portugueses”. “Nós queremos fidelizar o português. Obviamente que por arrasto aparecem cá muitos turistas”, aponta o proprietário. No entanto, o espaço também se faz de portugueses: no Drogaria não se vendem bebidas que não sejam feitas em Portugal. O rum é da Madeira, o gin do Alentejo. São bebidas mais convencionais, mas outras opções não faltam. Para os mais corajosos, há o Hidromel, o Licor de Medronho e Mel ou a Aguardente Velha das Caves São João. Para quem não se quiser atrever, o típico Licor Beirão faz justiça ao português. Os preços variam entre os dois e os oito euros. O vinho, vendido ao copo ou à garrafa, chega ao Drogaria de todos os cantos do país. Dos Açores, do Douro, da Bairrada, do Alentejo, do Algarve e do Porto, não faltam opções para os apreciadores de um bom verde, branco, tinto ou rosé. Directamente do Douro, pode provar um copo do branco Pouca Terra (3€), do tinto Muros da Vinha (2, 50€) ou do rosé Muxagat (4€). Já do Alentejo, um copo de Mirra ou de Virgo, a 3, 50€, não pode faltar. Se quiser viajar até aos Açores, pode experimentar o Curral Atlantis ou o Magma, que apenas se vendem à garrafa, a 23 e 32€, respectivamente. As cervejas — Topázio, Ónyx e Loba — são artesanais e custam entre 1, 80 e 2, 50€. Os refrigerantes, Brisa e Laranjada, vêm directamente da Madeira e dos Açores e a única água que se vende no Drogaria é a da Castello. Para quem quiser algo mais arrojado, os cocktails da casa (entre os 7 e os 8€) são uma boa opção. Os animais são recebidos de braços abertos no Drogaria BarO espaço é apenas interior, não havendo espaço para a colocação de uma esplanada exteriorApesar de ser um wine bar, Maria e Paulo quiseram incluir alguns petiscos, “não demasiado complexos”, para acompanhar a bebida. As tábuas – de queijos (9€), de enchidos (9€) ou mista (14€) — são as primeiras a constar da lista. Mas o prémio de maior variedade vai para as tostas. Há para todos os gostos: tosta de queijo e tomate com orégãos (4€), tosta de queijo da ilha com pickles de cebola roxa, nozes e mel (4, 50€) ou até tosta de punheta de bacalhau e pasta de azeitona (6€). Se preferir algo mais simples, as azeitonas e tremoços marinados (1, 50€) são uma alternativa. No Drogaria também encontra trabalhos de autores portugueses. O móvel logo à entrada, “uma das imagens de marca” mantida por Maria e Paulo do antigo espaço, tem em exposição várias peças artísticas. “Quem quiser expor, pode propor. Mas tem uma estética muito própria, não entra aqui qualquer trabalho”, explica Maria Marcelino. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os que visitam o Drogaria elogiam a “genuinidade” e a “rusticidade” do espaço, o facto de ser “bonito e confortável” e “sem formalidades”, mas sentem falta de uma esplanada. Ainda assim, Maria deixa o convite: “Temos simpatia, boa música e o ambiente é harmonioso e convidativo. ” O Drogaria Bar tem capacidade para 40 pessoas sentadas, sem esquecer que também os animais são bem-vindos. Rua de Santo Ildefonso, 220 - PortoTel: 914 054 410Instagram: @drogaria_barHorário: de terça a quinta, das 18h às 24h; sextas e sábados, das 18h às 2h. Texto editado por Sandra Silva Costa
REFERÊNCIAS:
Tempo Fevereiro
Saladas torradas
Já acordo a pensar no prato do pequeno-almoço. Tem um tomate para cortar à mesa, oregãos secos (dos selvagens), folhas de manjericão acabadas de arrancar, azeite de Portalegre, pão fresco e um coro infantil de queijos brancos. (...)

Saladas torradas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Já acordo a pensar no prato do pequeno-almoço. Tem um tomate para cortar à mesa, oregãos secos (dos selvagens), folhas de manjericão acabadas de arrancar, azeite de Portalegre, pão fresco e um coro infantil de queijos brancos.
TEXTO: É nesta altura, princípio de Julho, que o tomate começa a ficar bom e tão irresistível que altera completamente os nossos pequenos-almoços, que deixam de ser de Inverno e passam a ser de Verão. Já acordo a pensar no prato do pequeno-almoço. Tem um tomate para cortar à mesa, orégãos secos (dos selvagens), folhas de manjericão acabadas de arrancar, azeite de Portalegre, pão fresco e um coro infantil de queijos brancos: queijinhos frescos de ovelha, feta de mergulho, requeijão e bolas de mozarella de búfala. A Maria João descobriu que o feta fica bem com a mozarella — tempera-a e tudo, dispensando o sal. Num prato no meio da mesa fica a mozarella rasgada à mão, o feta em pequenos muros destroçados, o tomate sem pele nem sementes, temperados por pouco azeite (que pode ser grego), orégãos e manjericão. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O pão é da Assafora, carcaças estaladiças do Mucifal, pão de centeio que vem de Lisboa, da padaria Gleba. É um luxo ir mudando de pães à medida que se come. Uns torram-se, outros não. Alguns levam manteiga e a combinação da manteiga com o azeite sabe melhor por parecer proibida. As combinações são muitas, começando pelo pa amb tomáquet que se vai sujeitando às variações que vão apetecendo. São saladas de tomate e queijos brancos em torradas molhadas com azeite. Não pertencem a nenhum país — pertencem a vários. Só precisam, aqui em Portugal, do pão português feito em padarias das verdadeiras que rareiam cada vez mais e não precisam de se chamar padarias "portuguesas" por não serem.
REFERÊNCIAS:
Os edifícios de José Adrião não levam ponto final
Espaço público, também muita recuperação, projectos de baixo custo, outros para fundos imobiliários, faz-se de tudo no lisboeta atelier de José Adrião. Liberdade, flexibilidade, mas também imperfeição servem para falar de arquitectura — “porque as arquitecturas perfeitas não precisam de pessoas, bastam-se a si próprias”. (...)

Os edifícios de José Adrião não levam ponto final
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Espaço público, também muita recuperação, projectos de baixo custo, outros para fundos imobiliários, faz-se de tudo no lisboeta atelier de José Adrião. Liberdade, flexibilidade, mas também imperfeição servem para falar de arquitectura — “porque as arquitecturas perfeitas não precisam de pessoas, bastam-se a si próprias”.
TEXTO: Estamos a caminho da Trafaria, vila na margem sul do Tejo quando o rio se encontra com o Atlântico, para visitar uma recuperação feita pelo arquitecto José Adrião para um casal de clientes que simboliza o trabalho que o atelier gosta de fazer. Que se pode sintetizar por uma sucessão de palavras que Adrião rabiscou numa folha antes de receber recentemente um prémio de arquitectura e que agora recorda à laia de introdução de uma das várias obras de baixo custo do seu atelier: “Informalidade, flexibilidade, mistura, imperfeição; procurar a felicidade e não a beleza, actuar sem preconceito. ”Vamos ver a casa que o atelier fez para Abed Abdeljawad, palestiniano, e Annelien, holandesa, mais os filhos Karam e Emilie, que há três anos aterraram em Portugal vindos de Dublin à procura de um sítio para viver. Ele designer, ela funcionária de uma ONG, pesquisaram no Google Earth e no Google Maps e puseram um “X” sobre a Trafaria. Compraram um pequeno edifício quase em ruína, apareceram no atelier com esta história, disseram à equipa de arquitectos que tinham um orçamento pequeno e que era igualmente importante que o processo de construção corresse sem tensões, que fosse uma coisacool. “Só queríamos ter um lugar para dormir e começar as coisas a partir daí”, explica Abed, que nos recebe nesta casa situada na Avenida Bolhão Pato, com os dois filhos pequenos; Annelien está em viagem. O espaço cheira a férias, sublinha José Adrião, principalmente neste primeiro dia do ano de muito calor, porque a praia está perto, mas também porque é uma arquitectura desenhada para uma vida normal, descontraída. Às camadas do arquitecto — que virou a casa para o pátio traseiro, transformou o piso térreo numa só divisão e ainda conseguiu construir um sótão onde pôs os quartos e a casa-de-banho —, o casal acrescentou a sua camada, como o trabalho que fez no pátio traseiro, depois de a obra já ter acabado. As paredes de tijolo em ruína de um anexo onde estão vários objectos pendurados são o cenário ideal para o que se vê da grande sala da pequena casa, também o local onde se cozinha e se faz as refeições. Abed e Annelien cortaram muitas coisas do projecto para diminuir o orçamento da construção, mas nunca desistiram da janela com mais de quatro metros de largura e outros tantos de altura que dá para o pátio das traseiras com as paredes em tijolo maciço a desfazerem-se. “As pessoas entram aqui e dizem ‘uau!’ quando descobrem o espaço por dentro”, explica Abed. Quando lhe pedimos para definir o trabalho do atelier José Adrião Arquitectos (JAA), o designer palestiniano, 36 anos, começa por usar a palavra “abertura”: “Aqui toda a gente se sente convidada. Os meus filhos chegam à sala de manhã, pegam nas coisas que estão à vista na cozinha e tomam o pequeno-almoço sozinhos. É o arquitecto que torna a vida confortável. ”José Adrião está satisfeito com o que vê um ano depois de a casa ter sido inaugurada. “Está lindo. Já há relva e vocês fizeram um trabalho fantástico com o anexo em ruínas. É isto que estava a tentar explicar quando falo sobre a importância da imperfeição em arquitectura, sobre a importância do acaso”, afirma, dirigindo-se à jornalista. O arquitecto e o seu atelier onde trabalham mais dez pessoas — “sozinho não se faz nada” — incorporam a sua visão do mundo nos projectos, a sua maneira de estar em sociedade. “Gosto de pensar que contribuo para um ambiente democrático e para a consolidação destes mesmos princípios. Acredito que a arquitectura pode, de maneira muito simples, trabalhar a partir destes pressupostos, a liberdade, a inclusão, a igualdade. [Acredito] numa arquitectura produzida a partir de um entendimento da Carta dos Direitos Humanos, criando iguais circunstâncias de uso para todos”, afirma, voltando às palavras em que reflectiu quando recebeu, este mês, o Prémio FAD Cidade e Paisagem, o mais relevante prémio ibérico de arquitectura. “Dessa ideia de perfeição já resultaram coisas horríveis, como as arquitecturas produzidas pelos regimes autoritários. Para nós, a imperfeição torna as coisas mais humanas. Revejo-me muito mais numa arquitectura que tem um carácter informal, aberto, flexível, e que aceite algumas imperfeições. É mais fácil um utilizador relacionar-se com um espaço desse género do que com uma arquitectura que tenta ser perfeita e que é um sistema fechado. As arquitecturas perfeitas não precisam de pessoas, bastam-se a si próprias”, afirma. Desenhar uma praça numa cidade é o sonho de qualquer arquitecto. Desenhar uma praça em Lisboa debaixo de um viaduto não é para qualquer um. Mas quem conhece o trabalho de José Adrião não pode deixar de achar que há projectos que têm a cara do arquitecto mesmo antes de nascerem no chão da cidade. É o caso da requalificação da Alameda Manuel Ricardo Espírito Santo, em Benfica, que para criar este novo espaço público de Lisboa trabalhou coisas tão diferentes como a esplanada do Califa, uma instituição entre os cafés lisboetas, um inesperado maciço de exóticas tipuanas, árvores originárias da América do Sul, mas também realidades menos poéticas como um parque de estacionamento que até agora albergava 500 carros ou o espaço disponível debaixo do viaduto da 2ª Circular. A intervenção que começa na alameda estende-se até ao Centro Comercial do Fonte Nova, do outro lado do viaduto, que com as suas torres desenhadas em betão e azulejo branco se destaca pela qualidade arquitectónica acima da média. Convidado pela Câmara Municipal de Lisboa em 2015, no âmbito do programa Uma Praça em Cada Bairro, foi este o projecto premiado com o Prémio FAD Cidade e Paisagem: “Achei espectacular trabalhar debaixo de um viaduto em Benfica, porque podemos fazer mais experimentação. As outras praças são na cidade consolidada e aí não seria possível experimentar tanta coisa. ” O júri do Prémio FAD sublinhou, exactamente, que “a questão da representação democrática no espaço público é uma das mais complexas da sociedade ocidental” e louvou a nova praça desenhada fora da cidade histórica. O atelier, acrescentou, foi capaz de integrar a adversidade de uma área urbana sob um viaduto com um pesado trânsito rodoviário. Estamos mais uma vez na Praça Fonte Nova, desta vez numa segunda-feira a meio da tarde, faltam poucos dias para o Verão começar. Voltámos cá várias vezes, desde que começámos esta reportagem no Inverno, quando o frio ainda afastava as pessoas dos grandes bancos com curvas sinuosas, capazes de criar dentro da praça com 3, 5 hectares sete pequenas “ilhas”. É o que José Adrião lhes chama e comportam funções diferentes, desde um parque para cães, até à fonte evocada na toponímia da praça. “É muito importante ir várias vezes ao sítio quando estamos a desenvolver um projecto. O sítio dá muitas respostas para o trabalho do arquitecto. Temos de ir de manhã, à noite, ao fim-de-semana, porque tem ocupações completamente distintas. ”Ao contrário do Inverno, hoje ainda não se acenderam as luzes que iluminam as copas das tipuanas, que dão um tecto mágico à praça quando a noite cai. Ao contrário dos domingos, onde passam mais bicicletas na ciclovia e alguns ciclistas aproveitam para fazer uma pausa, parece haver mais carros parados no parque de estacionamento, que ainda subsiste embora reduzido, porque hoje é dia de trabalho. “O estacionamento passou a ter metade da capacidade, porque foi impossível tirá-lo todo. A preocupação das pessoas é mesmo estacionamento, estacionamento, estacionamento. . . Foi uma luta e houve muita negociação. Há imensos grupos de pressão, as vozes na cidade são muito diferentes”, comenta Adrião, acrescentando que a Praça Fonte Nova guarda vários desejos de cidade lá dentro, alguns deles contraditórios, dos skaters ao donos dos cães. “Conseguiram passar de 500 para 250 lugares e a perspectiva é que o tamanho do parque de estacionamento encolha mais com o passar do tempo, porque no futuro haverá menos carros nas cidades. Os skaters disseram-nos que não queriam skateparks mas antes skatear a cidade. E concluímos que o pavimento em betão muito liso seria o melhor para todo o tipo de usos, dos skaters às cadeiras de rodas ou aos carrinhos de bebé. ”Numa das primeiras visitas ao espaço com que ia trabalhar em Benfica, o arquitecto ficou intrigado com o facto de a Estrada de Benfica se transformar em Rua Prof. José Sebastião e Silva debaixo do Viaduto da 2ª. Circular para depois reaparecer novamente, mais à frente, como Estrada de Benfica. “Como as ruas e as estradas não desaparecem assim, começámos a perceber quão complicada e interessante era a zona. Aqui, neste sítio, havia um sistema de quintas muito rico, que ainda se vê num mapa do princípio do século — falámos com pessoas que ainda se lembram desse Benfica rural e agrícola, era a Quinta das Rosas, a Quinta dos Leões, a Quinta das Flores. ”Foi nos anos 60 que a construção do viaduto da 2ª. Circular arrasou com todo este sistema de quintas de produção agrícola em terras férteis, servidas pela Ribeira de Alcântara, entretanto encanada. A nova praça é uma plataforma, um interface unido pelo betão afagado do pavimento, que trabalha sobre a memória deste sistema e sobre os problemas a resolver, incluindo os parques canino e infantil, mas também realidades mais ligadas ao desenho do chão, como o alargamento dos passeios na zona junto ao Califa, ou a integração das tipuanas que surgiram aqui nos anos 80 e dão a sombra necessária à praça. “Claro que a nova praça não repõe o sistema, mas consegue unir as duas Estradas de Benfica separadas pelo viaduto. ” Desenharam também uma fonte, que é verdadeiramente “nova” e procura atenuar o barulho dos carros, homenagem à que desapareceu, ironicamente, com a construção do Centro Comercial Fonte Nova. “A fonte é muito lúdica, porque os miúdos podem tomar banho aqui no Verão. Nunca sabem de onde vai sair a água. Ela cria mesmo uma ilha onde as pessoas estão sentadas à volta mais ou menos hipnotizadas pelos jogos de água. ”Mas das vezes que fomos à Praça Fonte Nova ainda não foi possível ver a água a jorrar da fonte, faltando também instalar dois quiosques para completar a obra. É nas ilhas que se encontram os jardins propriamente ditos, tudo o que foi decidido pelo programa preliminar ou que, entretanto, foi pedido pela população de Benfica. Os bancos com formas inusitadas que criam as sete ilhas são a imagem de marca da Praça Fonte Nova. “Nunca tínhamos desenhado bancos para um espaço público. Há quatro módulos: o recto, o curvo, a cadeira, a espreguiçadeira. As pessoas não precisam de os usar de forma passiva, mas podem escolher a maneira como se querem sentar ou deitar. ” É preciso pormos os pés para cima para nos conseguirmos encostar nas espreguiçadeiras. “Mas será que aquilo que pensamos e desenhamos vai ser usado da forma como estamos a prever? Será que o desenho potencia os usos?” — interroga-se. Antes da Praça Fonte Nova, a intervenção de espaço público mais conhecida de José Adrião é a famosa Rua Cor-de-Rosa (2011), no Cais do Sodré. O projecto, como o nome indica, que teve como cliente uma associação de comerciantes locais, quis tornar mais definitivo a decisão inicial de pintar o pavimento de cor-de-rosa, gesto que antes do concurso de arquitectura ser lançado com o convite a seis equipas de arquitectos servira apenas aos estabelecimentos nocturnos para testar a área a intervencionar. “Decidimos repintar a rua de maneira menos efémera e tornámos a intervenção mais gráfica com os limites brancos. Tornámo-la um pouco mais permanente e chamámos-lhe Rua Cor-de-Rosa para não se confundir com a Rua da Rosa no Bairro Alto. ” O nome também se tornou sinónimo de uma movida nocturna que se queria mais inclusiva em Lisboa. Não digam ao arquitecto, porém, que o atelier tem feito mais espaço público ultimamente. “Querem sempre pôr-nos numa redoma! Ou somos os das intervenções efémeras, com os projectos para a Moda Lisboa ou com o projecto Magnólia, de iluminação de Natal, que também nos deu um prémio FAD em 2012. Depois éramos os da reabilitação com o Prémio Vilalva e agora somos os do espaço público com o novo Prémio FAD para a Praça Fonte Nova. Mas gostamos de trabalhar com todos os temas, o nosso atelier faz tudo. ”Estamos no centro de Camarate para José Adrião explicar como nos projectos de baixo custo, como aqueles que fez para a Câmara Municipal de Loures, onde procurou sistematizar o espaço público para criar bons passeios, não é obrigatório usar materiais de segunda. Antes pelo contrário, numa zona deprimida, descaracterizada pelo atravessamento do Eixo Norte-Sul e fustigada pelo barulho da passagem dos aviões, o atelier optou por usar um lancil de pedra com 20 centímetros de espessura, um remate mais nobre para um espaço público que quer ser capaz de refazer o centro histórico de Camarate à volta do Largo da Igreja de Santiago. “Não poupámos nos materiais, porque o lancil em pedra calcária é investimento para durar. ” E, tal como no projecto para o centro histórico de Loures, que considera ser da mesma família do de Camarate, também foi usado um pavimento em betão pré-fabricado desenvolvido numa parceria com a cimenteira Secil. Antes de deixarmos Camarate ainda vamos espreitar uma das muitas azinhagas da zona, porque o trabalho de campo nunca está terminado e o objectivo da segunda fase do projecto, que terá início no final do ano, é unir estes antigos caminhos rurais que ainda se mantêm e são pitorescos. A pretexto de uma buganvília que impede a passagem do carro, acabamos dentro da Casa de Repouso dos Motoristas de Portugal, que dá o nome a uma das azinhagas, para perceber quem são as pessoas que atravessam todos os dias estas vielas rústicas e hão-de justificar a sua requalificação junto da Câmara de Loures. Se o interesse por projectos de baixo custo é uma das características do trabalho de José Adrião, essa é uma atitude que também tem contaminado as muitas reabilitações que o atelier já fez, mesmo a que lhe deu o Prémio Vasco Vilalva 2012 e o Prémio FAD de Interiorismo 2012 pelo projecto para a esquina da Rua dos Fanqueiros com a Rua da Conceição, em plena Baixa lisboeta, uma recuperação de um prédio pombalino já muito adulterado e a sua adaptação a apartamentos para aluguer de curta duração, conhecido como Baixa-House (o atelier chama-lhe Fanqueiros 81). “Este projecto já tinha começado em 2007, mas nessa altura a única coisa possível era o restauro integral, permitindo poucas alterações, e havia imensos projectos à espera de serem aprovados na câmara de Lisboa. Até ser definido o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina em 2011, não era possível pôr três apartamentos por piso em vez de dois e instalar um elevador como o projecto propunha. ”O que a Baixa-House começou a fazer há sete anos, integrando os vários tempos de uma forma visível, parece mais banal hoje, mas não o era em 2011, como notou a Fundação Calouste Gulbenkian, responsável pela atribuição do Prémio Vilalva, que considerou a intervenção “um exemplo de boas práticas numa zona em que a reabilitação urbana é especialmente sensível”, salientado “a coerência entre o projecto de arquitectura e a decoração do edifício, em especial no aproveitamento ou reutilização de materiais e objectos”. “Num prédio com data de 1780, recua-se até onde?” — pergunta o arquitecto. “Voltamos ao início, quando não havia casas-de-banho ou vidros nas janelas mas só portadas? Dissemos à câmara que queríamos aceitar todas as camadas e acrescentar mais uma, infra-estruturas contemporâneas de água e electricidade, mais o elevador, e resolver as questões térmicas da cobertura. ” Quanto à nova camada, acrescentada agora, tem a certeza de que não será a última. “Temos a consciência clara que as obras estão em aberto. Não é tanto por gostar do conceito de obra aberta, que também gosto, mas porque a arquitectura é mesmo assim. Não gostamos de pôr um ponto final num edifício. ” A Baixa-House defende que as partes de tempos diferentes podem viver em simultâneo. “Não é preciso homogeneizar. Não há um tempo perfeito, nem é preciso procurá-lo. A co-existência de vários tempos num edifício é muito interessante. ”À entrada da Baixa-House, mesmo no início das escadas, aponta para a guarda e respectivo corrimão que começam com um desenho dos anos 40 antes de se ligarem à mesma estrutura mais antiga do edifício original. Não foram substituídos, nem corrigidos, e a colagem de linguagens diferentes marca o espírito da obra — aceitar a heterogeneidade do edifício e minimizar os custos. “Há muita gente a querer investir em Lisboa, mas há muitas equipas preparadas. Durante a crise ganhou-se competência e há muita gente a fazer boa reabilitação. Se fosse nos anos 80 e 90 estávamos tramados. Há dez anos a reabilitação não era considerado ‘arquitectura’. Fomos sempre habituados desde a escola a construir de raiz. Mas nós gostamos de trabalhar todos os temas e, no fundo, tudo é reabilitação. ” Hoje, acrescenta, mesmos os agentes imobiliários, para quem a reabilitação era secundária, já pensam de maneira diferente. No Largo do Stephens, junto ao Cais do Sodré, ganharam um concurso lançado por um privado, um fundo imobiliário alemão, em que os honorários pagos aos arquitectos não entraram na discussão para ganhar o projecto. Trata-se de fazer apartamentos de luxo, ou “prime”, nas palavras do arquitecto. “O processo está a ser bem conduzido. Antes, um fundo imobiliário achava uma chatice ter que contratar um arquitecto para apresentar um boneco à câmara. Agora já não é visto como um empecilho e o arquitecto é procurado para valorizar o património. Está a acontecer pela primeira vez em muitas décadas. ” Mesmo quando trabalha nestes apartamentos de luxo, o atelier não sente necessidade de usar torneiras ou interruptores topo de gama. O luxo tem a ver com luz, espaço, pé-direito alto. ”Mas nem sempre a procura de potenciar o que está no sítio, revelar o que já existe, é o elo mais forte de uma reabilitação, como podemos ver na Casa da Severa, equipamento cultural para a Câmara Municipal de Lisboa, ou na Casa dos Prazeres, a casa que José Adrião fez para si próprio. Neste dois casos, ficaram só as fachadas, porque as pré-existências também não têm que ser sagradas: “Se não há arquitectura que parta do zero, também é preciso usar as pré-existências de forma bastante descomplexada. Na Casa do Prazeres e na Casa da Severa, os interiores estavam em péssimo estado. No primeiro caso, se deitasse a fachada abaixo e fizesse um edifício de raiz a câmara obrigava a que o edifício fosse dois metros mais baixo, porque tinha que alinhar pela média dos outros edifícios da rua. ”Quem chega do Martim Moniz ao Largo da Severa, percorrendo a Rua do Capelão, percebe que a Casa da Severa (2012) conseguiu transformar um pequeno larguinho da Mouraria, desenhado ao mesmo tempo pelo atelier de Tiago Silva Dias, o objectivo de um programa da Câmara de Lisboa dedicado à reabilitação da Mouraria e do percurso até ao Castelo. Um pequeno edifício, com seis habitações distribuídas por três pisos mais sótão e onde terá vivido a fadista Severa no século XIX, foi transformado num equipamento cultural através de uma reabilitação que optou por demolir todo o interior sem condições de habitabilidade, e alterar substancialmente a fachada virada ao largo. Como o edifício tem a particularidade de estar solto em relação ao resto da típica malha urbana da Mouraria, podendo ser percorrido a toda à volta, a reabilitação reafirmou a sua presença isolada — quase como se de uma igreja se tratasse —, fazendo-se agora a entrada principal pela empena virada à praça. “A empena era praticamente cega, havendo pequeníssimas aberturas de ventilação. Resolvemos fazer uma escadaria exterior, que funciona como um prolongamento do interior, e a entrada faz-se agora pelo primeiro andar em vez de se fazer ao nível da rua. O edifício passa a ser activador da praça, transformando todo o Largo da Severa num equipamento público. É daí que vem a luz e o som. ”Lá dentro, onde há uma sala que pode atingir os 6, 5 metros de altura, além de uma cozinha, instalações sanitárias e arrumos, funciona agora a casa de fados Maria da Mouraria, explorada pelo fadista Hélder Moutinho, cuja decoração para turista parece não tirar partido do espaço. Mas o programa, lembra o arquitecto, era para um espaço diurno. Foi por ter visto a Casa da Severa que Frederico e Miguel Alexandre pediram ajuda para reabilitar um espaço mais acima, nuns escassos 20 metros quadrados do n. 54 da Rua João do Outeiro. “Foi por causa da Casa da Severa que a Mouraria se transformou, os portugueses não se aproximavam daqui”, diz Miguel Alexandre. “Isto aqui não tinha nada, era uma tragédia. ”José Adrião indica um dos bancos de pau, encostado aos azulejos brancos das paredes, para espreitarmos a vista dali. Agora, depois da porta alargada, o interior já consegue integrar a paisagem do centro histórico, que se prolonga através de uma esplanada exterior. “Aqui sentados já vemos o Convento da Graça lá em cima. Dantes não se via nada. ” A ajuda do atelier passou por gestos tão simples como este de ampliar uma porta, por encontrar também o nome adequado para o espaço e uma identidade gráfica — chama-se Jasmim da Mouraria — e por escolher uma trepadeira da mesma planta para colocar ao lado da porta pintada de azul vivo do café-bar. O atelier e os dois irmãos já têm novo projecto juntos, um restaurante mais acima na Mouraria. A casa que José Adrião fez para si próprio em Lisboa, a que chama a Casa do Prazeres, foi incluída na Colecção A Casa de Quem Faz as Casas (distribuída pelo PÚBLICO em 2016), livro com autoria de Maria Milano e Roberto Cremascoli. Situada em Alcântara na Rua Gilberto Rola, a poucos passos do atelier JAA, é uma síntese do trabalho do arquitecto e da sua maneira de viver: “A casa não é compartimentada, praticamente não tem portas, e permite diferentes utilizações dos espaços. Espaços abertos, disponíveis, onde tudo pode acontecer; espaços absolutamente versáteis”, lê-se no livro sobre a Casa do Prazeres, acrescentando-se que o atelier tem vindo a desenvolver uma reflexão sobre os mecanismos do habitar contemporâneo, de um novo habitar. “A sequência nos percursos internos de uma casa deve permitir um efeito de constante surpresa, e a compartimentação deve estar predisposta a mudanças funcionais, não havendo uma predefinição do modo como cada espaço deve ser utilizado. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Todos os espaço se misturam, deixando de fazer sentido átrios e corredores, como tem ensinado ao atelier a casa pombalina. “Não existem zonas com funções únicas: uma biblioteca pode invadir o espaço da cozinha, que por sua vez se abre sem barreiras para uma zona de trabalho, que é também um lugar de convívio”, continuam Maria Milano e Roberto Cremascoli, que chamam ao arquitecto “um arqueólogo da cidade sedimentada”, capaz de inscrever a sua camada sobre muitas outras, o tal tempo contemporâneo que é apenas mais uma camada e que, na máquina do tempo, há-de passar a ter também ela que ser reabilitada. Nesta zona da cidade que ainda funciona como uma aldeia, e onde é possível encontrar a porta da Casa dos Prazeres muitas vezes aberta, talvez porque se foi ao atelier buscar qualquer coisa esquecida, talvez porque se foi ao restaurante em frente encomendar um cozido à portuguesa para o almoço. A Rua Gilberto Rola é agora um corredor entre a casa e o atelier, a cidade transforma-se na casa de José Adrião.
REFERÊNCIAS:
Do sonho de Apichatpong Weerasethakul irrompe o pesadelo
Retrospectiva das instalações e vídeos do cineasta tailandês: a luz, o sonho e as memórias da história política da Tailândia no Núcleo de Arte - Oliva Creative Factory, em São João da Madeira. (...)

Do sonho de Apichatpong Weerasethakul irrompe o pesadelo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Retrospectiva das instalações e vídeos do cineasta tailandês: a luz, o sonho e as memórias da história política da Tailândia no Núcleo de Arte - Oliva Creative Factory, em São João da Madeira.
TEXTO: Apichatpong Weerasethakul está inquieto. Percorre, a passo rápido, uma das salas do segundo piso do Núcleo de Arte - Oliva Creative Factory, em São João da Madeira, para falar com um técnico. Não está satisfeito com o som de um dos trabalhos de Serenidade da Loucura, uma retrospectiva do seu trabalho para lá do cinema. Sim, o espectador não vai encontrar aqui os protocolos e a duração dessa arte, mas instalações, vídeos. Obras que contagiam outras obras por meio da música e da luz, processos feitos objectos, peças que nasceram de filmes, mas que não são filmes, diários escritos por uma câmara de vídeo. Pese embora o problema com o som, o cineasta tailandês não parece desconfortável no meio deste ambiente. Palma de Ouro em Cannes, em 2010, com O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores), autor de longas-metragens como Febre Tropical e Síndromas e um Século bem recebidos pela crítica, é alguém familiarizado com os trânsitos entre o cinema e os domínios mais experimentais do filme. Em meados dos anos 90 do século passado, estudou no Instituto de Arte de Chicago onde teve a oportunidade de conhecer a produção cinematográfica de Maya Deren, Andy Warhol ou Bruce Baillie (de quem seleccionou obras no contexto de um programa organizado em 2016 pela Cinemateca Portuguesa). Vale a pena especular se o seu interesse pelo sonho, por certos estados fisiológicos e mentais, que marcam o seu cinema, terá tido origem nesse período. “Talvez, não pensei muito nisso”, responde. “Mas o meu primeiro filme foi realizado em Chicago, em 1994. É um primeiro esboço da minha descoberta da luz. Usei uma pequena câmara vídeo e explorei os efeitos da luz e do tempo sobre o meu corpo”. O filme tem o título de Bullet e abre a exposição em que o visitante mais familiarizado com a obra de Apichatpong reconhecerá: rostos, paisagens, vozes e sons. Já o menos conhecedor, poderá deixar-se conduzir, ou não, por aquilo que a exposição oferece, aceitá-la como experiência. Como a melodia de guitarra do vídeo Sakda (Rousseau), vídeo que homenageia o filósofo Jean-Jacques Rosseau, ou as estranhas aparições de um cão que deambula pelas paredes da sala. Num e noutro trabalho, assomam tópicos que se associam ao universo de Weerasethakul. A relação entre o homem e natureza – a que o actor Sakda Kaewbuadee alude num monólogo inspirado no filósofo suíço – o animismo, a reencarnação. Ou o fantástico, a propósito da imagem do cão que, em termos formais, recorda a aparição de outro animal em Febre Tropical. “Sim, são duas animações, mas esta faz parte da instalação vídeo The Palace que apresentei em 2008 em resposta à colecção do Museu Nacional do Palácio de Taipé, em Taiwan. É uma colecção repleta de obras de arte e artefactos muitos antigos, a maioria trazidos da China pelo político e militar Chiang Kai-shek” [líder do governo nacionalista de Taiwan]. O cão, pintado de vermelho, que circula nas paredes, diz o cineasta, representa um ser indiferente ao valor que damos às coisas, mas sem o contexto do museu transforma-se, também, num fantasma, numa presença que desestabiliza o encontro com as outras obras. Chega mesmo a reflectir-se, a “entrar” em Windows (1999), um dos trabalhos emblemáticos de Serenidade da Loucura. Artista(s): Apichatpong Weerasethakul São João da Madeira. Oliva Creative Factory. Rua da Fundição, 240 22-06 a 02-09. Terça a domingo das 10h30 às 18h00. 2€Apichatpong não foi o primeiro cineasta, nem será o último, a abraçar as possibilidades oferecidas pela arte contemporânea. Depois das experiências no domínio do cinema experimental, deixou-se seduzir, no âmbito da cena artística tailandesa, pelos cruzamentos que aí se verificavam e dissolviam as fronteiras entre a sala de cinema e a galeria, o tempo linear do filme e a memória, mais precária, da experiência da instalação. “Essas fronteiras ainda estão lá”, sublinha, “mas vão-se tornando mais fluidas. Não procuro diferenciar os dois registos, mas, ao mesmo tempo, não quero abandonar as regras do cinema. Preciso delas, como também preciso, por vezes, de me libertar delas. A liberdade total, em termos artísticos também se pode tornar aborrecida. Não procuro um equilibro, não se trata disso, mas de um gosto por movimentos de avanço e de recuo. Ter uma sala de cinema, com uma certa lógica e as regras do tempo linear, continua a ser desafiador”. Devolva-se o desafio a Apichatpong Weerasethakul. Fará sentido descrever esta exposição como cinema? “Ah, não sei. Essa é uma pergunta para ficar no ar, sem resposta”. Volte-se a Windows. O primeiro filme realizado em vídeo pelo artista, que captura um fenómeno natural observado entre uma janela, um ecrã de televisão e uma câmara. Há semelhanças formais com algum cinema experimental americano (por exemplo, Wavelength, Michael Snow), mas o que sobressai é a projecção da luz sobre o espaço e os corpos – adivinhava-se já chegada de Fever Room, espectáculo apresentado no Teatro São Luiz há dois anos no âmbito do festival Temps d'Images, em Lisboa – e a representação visual de experiências ou estados interiores como o sonho e alucinação. O sonho continua a ser um estado e uma experiência a que o cineasta regressa de modo recorrente. Descobrimo-lo evocado na projecção circular Memoria, Boy at Sea, trabalho inédito realizado no oeste da Colômbia com a participação do ator canadiano Connor Jessup, ou em One Water, vídeo em que a actriz inglesa Tilda Swinton recorda, diante da câmara, os seus sonhos. Num e noutro trabalho, vêem-se imagens, mensagens sobrepostas, superfícies em movimento, películas translúcidas que parecem perder qualquer relação com a realidade. As paisagens físicas mesclam-se com imagens inventadas pela tecnologia, os rostos desaparecem. É como se Apichatpong procurasse reificar, representar, tornar visíveis num espaço público experiências que são absolutamente privadas. “Sim, é isso que faço, mas com uma intenção específica e a partir da minha biografia. A meu ver, há um elo biológico entre o sonho e o cinema. Precisamos de estar no escuro para experimentar a luz. Por isso, necessitamos do cinema. Acredito que há um benefício biológico que retiramos dessa experiência. A relação entre o fogo e as sombras traz-nos um certo sossego, precisamos dela. Quando era mais jovem tinha dificuldades em distinguir os filmes dos sonhos. As luzes dos relâmpagos em filmes fantásticos, a luz do sol num dia chuva, as imagens de tempestades são coisas que ficaram na minha memória e que voltam aos meus trabalhos. Quando vejo filmes, noto que o meu antigo fascínio pela irrupção inesperada da luz não desapareceu”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há alguma violência sublimada neste fascínio, como se do sonho também irrompesse o pesadelo. O título da exposição, Serenidade da Loucura, fazendo a alusão a um dualismo composto de dois estados aparentemente contraditórios, aponta nesse sentido. Nas salas, os acordes da guitarra que saem de Sakda (Rousseau) concorrem com os sons de explosões, tiros, vozes dispersas. E a memória individual e a introspecção vão-se confrontando se com a memória colectiva e a realidade pública. A história política da Tailândia, com os traumas provocado pela repressão militar, introduz-se, conduzida por obras como Ashes, Nabua Song ou Fireworks (Archives). Este último é um dos trabalhos que melhor sintetiza a prática artística de Weerasethakul. Filmado no templo Wat Sala Kaew Ku em Nong Khai, pequena cidade na fronteira entre o Laos e a Tailândia, celebra a figura de Luang Pu Bunleua Sulilat, fundador do templo e o artista que fez as esculturas que o adornam, baseadas em fantasias, contos populares e mitos políticos. Acusado de ser comunista durante a Guerra Fria, Sulilt refugiou-se em Laos onde continuou a resistir, exponho as suas esculturas vernaculares, reflectindo sobre o amor e a vida, as lendas e a reincarnação. O cineasta lembra o artista popular, salvando do esquecimento as vítimas anónimas do regime militar, mas sem impor ao visitante qualquer tipo de teoria ou verdade. Sobre uma tela de transparente, a projecção liberta as imagens nas paredes, nos volumes da sala e nas silhuetas dos espectadores. O filme manifesta-se tridimensional e intangível no espaço, constituído pelos movimentos dos actores que durante noite passeiam pelo templo entre a luz e a sombra, sob as explosões do fogo-de-artifício. É um filme que habita, com fantasmas e mortos, aquela sala e que nos deixa entrar. A memória da Tailândia não se apaga, mesmo quando o cineasta afasta a possibilidade de um regresso ao país para fazer longas-metragens. “Para fazer curtas, pequenos projectos, sim, mas não para realizar filmes que impliquem outros meios de produção, equipas maiores. Não creio que haja condições para tal. Se a ditadura acabar, talvez volte. Entretanto, sinto-me bem na Colômbia, onde estou a escrever o guião para o meu próximo filme. É muito desafiante trabalhar com as memórias dos outros, lidar com a situação história de outro país, com seu quotidiano mais mundano. Escutar as suas histórias e pô-las em contacto com minhas”. O cineasta prefere não adiantar muito mais sobre o novo filme, em vez disso prefere apontar para Haiku, uma série de vídeo diários que realizou com a sua câmara digital portátil. Neles estão imagens que inspiraram, como estudos ou apontamentos visuais, uma boa parte da sua cinematografia. Desfilam alusões a Febre Tropical e O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores. Estes diários não se reduzem a processos de um trabalho; com o auxílio do digital, materializam memórias de situações, experiências, viagens que o cineasta decidiu partilhar. Entre o pessoal e o colectivo, o fazer solitário e o mundo, Apichatpong Weerasethakul manipula a luz aproximando o cinema das experiências da mente e do corpo. Como se o cinema pudesse trazer à luz os seus sonhos, pesadelos e memórias.
REFERÊNCIAS:
Patríck Dewaere: violência doce
É uma das solidões do ciclo da Cinemateca Feios Porcos e Maus - Um Olhar Europeu. Insolente, frágil, de uma “violência doce”, como caracterizou Alain Corneau que o dirigiu no alucinante Série Noire, Patrick Dewaere suicidou-se há 36 anos. Mas não desapareceu. (...)

Patríck Dewaere: violência doce
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.35
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: É uma das solidões do ciclo da Cinemateca Feios Porcos e Maus - Um Olhar Europeu. Insolente, frágil, de uma “violência doce”, como caracterizou Alain Corneau que o dirigiu no alucinante Série Noire, Patrick Dewaere suicidou-se há 36 anos. Mas não desapareceu.
TEXTO: Contou o realizador Alain Corneau (1943-2010) que a seguir a ter mostrado pela primeira vez ao actor Patrick Dewaere (1947-1982) o resultado daquilo que tinham andado a fazer, Série Noire (1979), Dewaere lhe fez uma pergunta a seguir ao silêncio que se instalou após o visionamento: porquê tantos grandes planos dele no filme?Era inusitada, achou o realizador, essa indagação sobre (o que pareciam ser. . . ) decisões técnicas e formais. Mais tarde, explicou Corneau, percebeu a inquietação do intérprete: ao ver-se, Dewaere sentira que atravessara o espelho para o outro lado de si e o filme deixava disso um registo irreversível — podemos ser tentados a dizer hoje que Série Noire contém o anúncio de algo irreversível. Se se consultarem os registos das entrevistas que rodearam a estreia de Série Noire, sente-se nos protocolos de voyeurismo e resguardo entre quem pergunta e quem responde, entre os filtros promocionais e jornalísticos, uma palpável malaise. Série Noite, um dos títulos do ciclo Feios, Porcos e Maus — Um Olhar Europeu na Cinemateca Portuguesa, é o melhor filme de Corneau, é o melhor do actor (e o melhor de muitos dos que nele participaram), mas não é um filme que as filhas de Patrick Dewaere, Angele Herry-Leclerc (argumentista; a mãe é a actriz Miou Miou) e Lola Dewaere (actriz; a mãe é Élisabeth Malvina Chalier), gostem de ver para se aproximarem do pai que quase não conheceram. Dewaere suicidou-se aos 35 anos, tiro de espingarda na boca, numa tarde de 1982, depois de um almoço com o realizador Claude Lelouch. O actor e o realizador trabalhavam a personagem de Marcel Cerdan para o filme que Lelouch preparava sobre os amores do pugilista com Edith Piaf (condição sine qua non imposta por Lelouch: que Dewaere se metesse no ginásio e largasse a heroína). Em Série Noire ficavam então indícios: dos trabalhos e malefícios das personagens sobre um actor, de um excesso de investimento, de uma desordem que tinha licença para matar. Trinta e seis anos depois da morte do actor, vários documentários e biografias depois (entre as quais a de Christophe Carrère, de 2017, com o pouco cerimonioso título Patrick Dewaere, l’écorché, “o esfolado”), as revelções sobre a relação turbulenta com a mãe (o filho abandonou o apelido materno Maurin e adaptou o de Waëre de uma bisavó) e as feridas íntimas (a descoberta de que o pai não era o mesmo pai dos irmãos; a violação por um familiar em criança, contada do livro de Carrère e confirmada em depoimentos do amigo Gérard Depardieu) alargam as explicações, se é que isso pode ser logrado, sobre o que foi trabalhando esse suicídio. Dizem Carrère ou Depardieu que a infância foi matando Patrick Dewaere, não foi só o cinema o serial killer – “liberto” das drogas pesadas nos últimos meses de vida, estaria mais à mercê dos seus fantasmas. E no entanto. . . Veja-se o genérico de Série Noire, o no man’s land sobre o qual o actor se entrega aos seus solos. Toda a démarche do filme de Corneau é permitir a Dewaere bailados sobre o vazio. É largar Dewaere no (seu) vazio. É criar vazio à volta de Dewaere. As primeiras imagens — funcionam como um motivo que não se despegará do filme, é a sua música interior, um grito que se ouve o tempo todo — não podem deixar de ser experimentadas, sobretudo hoje, como um jogo perigoso e como um presságio. Vemos uma personagem, que é um mitómano e um neurótico (e um assassino: “J’ai vraiment envie de tout foutre en l’air”), a “representar” para preencher o seu vazio, sem qualquer reserva de solidariedade, empatia e moral. O filme permite que essa ficção seja ocupada pelo jogo de um actor com os seus limites, uma performance a brincar com o fogo. Série Noire criou com isso a sua mitologia: a alucinante sequência das três cabeçadas da personagem na chaparia do carro (Dewaere chegou ao set e disse a Corneau que não queria protecção para o que ia fazer, mas não poderia repeti-lo, tinha de ser filmado à primeira. . . ) e aquela em que a personagem suspende a respiração debaixo de água na banheira (o realizador e a equipa também ficaram sem respirar, sem saber o que Patrick queria conseguir). Série Noire, o encontro de Corneau com o território amoral e inumano do americano Jim Thompson (adapta A Hell of a Woman), deixando-se abalroar pela paranóia da Nova Hollywood (assumidamente, o Mean Streets de Scorsese), é o momento incendiário do magnífico quarteto do início da sua filmografia: Le Choix des Armes, 1981, Série Noire, 1979, La Menace, 1977, Police Python, 1976. Aí criou híbridos do film noir de Hollywood, tradição gótica, alemã/austríaca (Siodmak, Wilder, Preminger, Lang. . . ), e da tradição francesa, psicológica (tal como exercitada por Julien Duvivier ou Jacques Becker). É um filme alucinante. De uma violência comovente. Quando Corneau disse sobre o seu intérprete que era homem alheio à brutalidade, e que por isso podia estabelecer uma “relação doce com a violência”, que deixava de ser algo de animalesco para ser um rasgão, agarrou a fragilidade de Dewaere, actor de uma geração que, com o Maio de 68 e com as experiências do mítico Café de la Gare (de onde vieram também Miou Miou ou Coluche, e por onde passou, sem se comprometer, Depardieu), quis pintar com cor e insolência a França a preto e branco imobilizada pelo boom económico do pós-guerra. O sucesso de Les Valseuses (Bertrand Blier, 1974) oficializou o fenómeno: viam-se actores a “representar” como não se via no cinema francês, brutalizando o ecrã (para muitos, foi o último rasgo de revolução que por ali aconteceu). Havia o fino e insolente bigode de Dewaere. Que, mesmo quando dava romantismo à mitomania das personagens, sinalizava igualmente uma desadequação, uma neurose (disso se alimentava um filme benigno de 1976, F. . . comme Fairbanks, de Maurice Dugowson — ausente do ciclo —, que, sendo uma história de amor com Dewaere e Miou Miou, foi rodada no momento em que o casal da vida real se separava, ficando a ficção impregnada dessa ruptura que foi a catástrofe da vida do actor). A violência nunca era escamoteada. Dewaere foi sempre ressentido, triste. Nunca pediu licença para se espatifar. Depois de Série Noire, apresentou-se a Claude Sautet de cara limpa. Com Un Mauvais Fils (1980), um e outro queriam fazer coisas diferentes. O realizador de Vincent, François, Paul. . . et les autres (1974) abandonava com esse filme a (lindíssima) série de retratos de grupo da pequena burguesia em perda da França de Pompidou. Obra recolhida, de tonalidades zurlinianas (mas o francês Sautet é, à sua maneira, um italiano), história de um pai e de um filho proletários sem palavras para exprimirem os sentimentos, anuncia as solidões dos filmes finais do realizador, com aquelas personagens retiradas do retrato social e do mundo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dewaere aparecia contido, depois das explosões de Série Noire. Com a personagem de um toxicodependente a tentar conter a sua doença, travava um “diálogo” íntimo — é um filme de um desespero calado — com os movimentos de adicção e abstinência que sacudiam a sua existência. A recepção a Mauvais Fils, contudo, foi um dos episódios publicamente mais turbulentos da vida do actor: a imprensa boicotou entrevistas em solidariedade para com um jornalista do Journal de Dimanche que Dewaere esmurrara — porque, segundo o actor, não tinha respeitado o acordo de manter em off a informação que lhe passara sobre um passo importante (casamento) na sua vida privada. Alguém diz em Un Mauvais Fils: sair da droga? Sair para onde? Foi um dos últimos grandes filmes de Dewaere. A versão mais vital da sua insolência experimentara-se em La Meilleure Façon de Marcher (1976), de Claude Miller, que pode ser uma das descobertas do ciclo. Começa por fixar Dewaere e Patrick Bouchitey, que interpretam dois monitores de uma colónia de férias, a um espaço imobilizado e reconhecível: um é o “macho” (adivinhem quem. . . ), o outro é o “sensível”. Depois, com a cumplicidade dos actores, desencadeia a destruição do cliché, planeando uma guerra de subentendidos e de explicitações, jogos de poder e de tortura — a partir do momento em que uma personagem apanha a outra vestida de mulher. Com isso desprende-se de La Meilleure Façon de Marcher uma sensação de ameaça. E um júbilo de libertação. As personagens, e o filme, chegam a vias de facto num baile mascarado, há faca sem alguidar, mas a justeza de tom é ainda hoje de invejar. Foram esses os inícios da raiva e solidão de um actor que o cinema francês nunca premiou nas seis vezes que o nomeou para um César, cujo desaparecimento não conseguiu substituir e que se chamou Patrick Dewaere. Programação completa aqui
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra violência suicídio filho mulher homem social violação criança doença casamento desaparecimento
Os Praga põem Gisela João a falar com uma cobra de igual para igual
O mundo está em colapso. A resposta do Teatro Praga é a reordenação das peças para a construção de um lugar chamado Jângal – em cena no São Luiz, de 26 de Junho a 1 de Julho. Um espaço de liberdade em que actores dialogam com cobras ou ventoinhas e um fado de Gisela João pode inspirar-se em Meredith Monk. (...)

Os Praga põem Gisela João a falar com uma cobra de igual para igual
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O mundo está em colapso. A resposta do Teatro Praga é a reordenação das peças para a construção de um lugar chamado Jângal – em cena no São Luiz, de 26 de Junho a 1 de Julho. Um espaço de liberdade em que actores dialogam com cobras ou ventoinhas e um fado de Gisela João pode inspirar-se em Meredith Monk.
TEXTO: Manda o bom-senso que por muito que alguém possa falar com os electrodomésticos e decida desabafar com os objectos as agruras do dia-a-dia deve, ainda assim, procurar ajuda médica especializada caso, algum dia, os electrodomésticos lhe respondam. Com os avanços tecnológicos, na verdade, essa evidência passou a ser menos taxativa. Mas só numa sala de teatro, na qual o bom senso não tem necessariamente a entrada franqueada, se pode esperar que um sofá – ao invés de cumprir com a sua função de receber mudo os corpos de actores e actrizes – possa levantar a voz e dizer de sua justiça. No limite, o sofá pode até decidir sentar-se sobre os costados da actriz ou do actor em palco. Em Jângal, nova criação do Teatro Praga – em cena no São Luiz, Lisboa, de 26 de Junho a 1 de Julho; mais tarde terá apresentação no Teatro Rivoli, Porto –, há uma ventoinha derretida que fala com Gisela João. E diz-lhe, entre outras coisas, que estamos em maus lençóis. “We’re in trouble”, em bom inglês. Jângal é quase sempre falado em inglês (mas legendado em português) porque adopta a língua do desktop, a língua-franca da Internet. “O inglês”, dizem-nos Pedro Zegre Penim e José Maria Vieira Mendes, dois pilares do núcleo duro da companhia, “já não é a língua de Inglaterra ou dos Estados Unidos – é a língua da Internet. ” É um sintoma da desmaterialização. E jângal, palavra do léxico português que se lê como jungle e vem do hindi janggal, aponta precisamente para aí: o centro do alvo é um certo descontrolo, sim, porque “a selva é supostamente a desordem, aquilo que o ser humano ainda não tocou, não foi arado, pré-programado ou mexido”, comenta Penim; mas é sobretudo o nome para um espaço de liberdade criado pelos Praga a partir de uma reordenação das coisas. E é Gisela João, fadista pouco alinhada com a imagem cabisbaixa e sem um xaile a pesar chumbo nos ombros de quem canta, quem diz a dado momento: “Estamos a tentar reordenar a realidade que nos é dada. ” Ou seja, mais do que a selva como lugar de desordem, Jângal é, afinal, um parêntesis que se abre no mundo do Teatro Praga para propor uma reorganização, baralhando a ordem habitual dos elementos, para testar um olhar diferente sobre o mundo. “E isso pode aplicar-se ao teatro, à vida, às relações entre as pessoas, às relações com os textos, a vários domínios”, explica Penim. Companhia:Teatro Praga Actor(es):André e. Teodósio, Cláudia Jardim, Jenny Larue, Joana Barrios, João Abreu e Gisela João Lisboa. Teatro Municipal São Luiz. Rua António Maria Cardoso, 38. T. 213257650. De 26 de Junho a 1 de Julho. Terça a sábado às 21h00; Domingo às 17h30. 12€ a 15€ (c/desconto)É por isso que Jângal se vê como consequência dos dois anteriores momentos criativos do Teatro Praga: a Zululuzu e a Despertar da Primavera vai buscar esse desejo premente de construção de uma nova ordem – no primeiro através da ideia de dar visibilidade ao habitualmente invisível (e que passa pelas regras tácitas e pelos preconceitos aceites como uma inevitabilidade); no segundo inventando uma nova linguagem que estoire com a ditadura que as palavras podem conter – e de uma abolição de hierarquias. Em Despertar da Primavera, a partir do texto de Wedekind, não eram André e. Teodósio, Pedro Penim, Joana Barrios ou Cláudia Jardim, os actores nucleares da companhia, que tomavam o palco, mas sim uma nova geração de intérpretes que ocupava o seu espaço e o fazia seu. Agora, em Jângal, onde encontramos João Abreu (que transita de Despertar), Joana Barrios apresenta-se como a antagonista, explicando que se a protagonista é definida enquanto personagem que “persegue o Objectivo da História”, neste espectáculo que não é certo ter objectivo ou sequer história, ela é demasiado humana para a condição de protagonista. Na verdade, diz-nos, o seu papel pode ser o de se constituir como obstáculo para o tal “Objectivo da História”. E, portanto, é legítimo que ocupe o palco apenas para impedir que qualquer história se possa desenrolar. É justo que esteja em palco simplesmente para coçar o cotovelo ou observar demoradamente o tecto. Em seguida, há-de propor cinco experiências para que cada um possa não se identificar com o ser humano. Numa dessas experiências, terá uma discussão com uma cobra acerca da intimidade online. André e. Teodósio já antes tinha colaborado com Gisela João ao encenar os concertos da fadista nos Coliseus. O seu mundo tinha povoado o palco da cantora, reforçando a ideia de que nada em Gisela a prende às convenções mais estáticas do fado. Mas há muito que vinha sendo adiado o movimento de reciprocidade, o momento de Gisela colocar o pé num espectáculo do Teatro Praga e se ver enquadrada por um outro contexto – tão longe das formas tradicionais em torno das quais habitualmente gravita e com as quais esgrima. “Super excitada”, mas “muito assustada”, confessa-se Gisela ao Ípsilon. Acontece que a amizade que os foi juntando é acompanhada de uma coincidência de valores que faz com que a experiência, sendo nova para a cantora, não seja um salto desamparado no desconhecido. “Não tenho os meus três meninos [os músicos que a acompanham em concerto] atrás de mim, eles que me fazem a cama. Mas com os Praga sinto-me também em ambiente protegido. ”Em Jângal, Gisela João canta. Mas não canta os fados do seu reportório. Chega a ameaçar Senhor extraterrestre mas o bode expiatório com que contracena corta-lhe o pio. E sugere-lhe antes que cante “a canção das placas tectónicas ou o som de uma baleia a bufar, ou a canção do programa da máquina de lavar…” Jângal, recordemos, é o Teatro Praga a abater o antropocentrismo. E isso tanto vale para a valorização do mundo animal quanto para a dignificação da existência dos objectos. Ou até, propõe a cantora, a reflexão sobre “esta coisa da nossa relação com os objectos como actualmente vivemos, esta questão da proximidade, de hoje em dia lidarmos mais com objectos do que com pessoas”. A intimidade pode existir, afinal, mais na relação com os ecrãs tácteis e com os botões dos ratos, ocultando rostos; pode muito bem estar toda espelhada num ecrã e gravada para sempre num servidor remoto, sem marcas visíveis no corpo. Se Gisela canta, mas não os fados do seu reportório, canta o quê? Canta temas inventados por André e. Teodósio e arranjados por Violet (da Rádio Quântica), a partir das muitas ideias melódicas registadas em telemóveis ou em demos das bandas rock e new wave do actor dos Praga – das quais fugia sempre no momento de se tornarem coisa séria, numa altura em que acreditava ainda no seu futuro como flautista pela via clássica. Canta uma “música mesmo para dançar, talvez mais próxima do Bonga do que do Sébastien Tellier”, descreve Teodósio; canta “uma canção de embalar meio lynchiana”; canta um fado sem ser simplesmente turbinado por batidas electrónicas, composto a partir da Gotham lullaby de Meredith Monk, cruzando as referências de ambos. À procura do ambiente sonoro para a música de Jângal, Teodósio e Violet passaram os ouvidos tanto por Jean-Michel Jarre quanto pela banda sonora de Under the Skin (da autoria de Mica Levi, conhecida pelo projecto Micachu) ou pelo minimalismo de Steve Reich. As canções partilham a mesma essência da construção do texto e apontam para esse lugar que vamos que nos vai submergindo chamado Jângal. No qual, “sem entrar na urbanidade total nem na natureza total – porque nenhuma delas existe”, diz-nos André e. Teodósio, se tenta “reencontrar e reformular todos os materiais para que desapareçam muitas premissas tidas como garantidas e isso possa produzir um mundo novo”. “Não tem de ter novidade”, ressalva. “Não há essa ideia de novidade enquanto choque, dissensão ou corte. ”“É só uma nova ordem”, resume José Maria Vieira Mendes. Com tanto de estranheza quanto de familiaridade. Mas em que, seguindo as palavras da bióloga e filósofa Donna Haraway em relação ao storytelling, o Teatro Praga assume “a ideia de que há histórias por contar e que não estão a ser contadas porque estamos dentro de um paradigma que torna certas entidades ou narrativas invisíveis. E então é preciso ir desenterrar essas histórias para começarem a aparecer mais coisas”. Ou seja, não há em Jângal o desejo de “jogar o mesmo jogo” de dominação. Estas são narrativas que reclamam o seu espaço, mas não querem ser “dominantes” nem “abafar todas as outras”. Querem somente aparecer e ser escutadas. Se há música em Jângal, da mesma maneira que há golfinhos, ventoinhas, bananas e donuts prateados, bonecos de neve, um tapete humano, uma abelha pendente, uma serpente, uma bola espelhada ou um dragão, todas estas imagens ou estes sons surgem em cena porque se podem encontrar num qualquer desktop. A estrutura do espectáculo segue, de facto, o clicar em cada pasta e o confronto com aquilo que esta armazena ou esconde no seu interior. Jângal opera, assim, de acordo com um dispositivo de ficheiros que se sucedem sem um necessário fio narrativo, mas em que a própria ideia de organização pode ser corrompida por um arquivamento pouco lógico. “Se pensarmos nas pastas que temos no computador e que organizamos tematicamente”, argumenta Vieira Mendes, “quando as abrimos nem sempre sabemos porque pusemos aquele ficheiro naquela pasta. Há uma surpresa no jogo entre o ficheiro e a pasta, uma necessidade de organizar o nosso ambiente de trabalho que é também a necessidade permanente do nosso convívio com outras espécies ou entre humanos. Temos esta necessidade de recorrer a sistemas que organizam – seja a língua a sociedade ou a política – mas ao mesmo tempo a necessidade de sabotá-los. Porque é isso que permite trazer outras entidades para dentro do sistema e é isso que permite muitas vezes dar voz a quem não a tem. ”Daí que, tal como em Zululuzu – espectáculo com o qual Jângal parece fazer um tentador díptico, sendo quase inevitável antever aqui o fechar de um voo picado sobre esta resposta a várias formas de hierarquias sociais –, haja um claro compromisso político levado para palco. Pedro Penim reivindica essa “acção política” e sublinha o “engajamento” artístico do Teatro Praga, confessando a irritação sempre que entende que as propostas da companhia são colocadas “no paradigma do art for art’s sake”. Mais uma vez, uma ideia de pasta e de arquivamento que, ao invés de promover diálogo e discussão, arruma de forma ordeira e asséptica. E se há característica que se atribui sem dificuldade ao Teatro Praga é a enorme disponibilidade para se sujar e boicotar normas e regras de qualquer quadrante. Eles estão cá para confundir – no que isso tem de melhor, no que isso tem de mais honesta acção sobre uma realidade compartimentada para se engolir com menos atrito. Jângal começa por ser anunciado por Gisela enquanto pasta onde convivem entidades com existência reconhecida e outras que nem por isso. E fala-se de sereias e dragões como exemplos de seres aos quais não se concede o reconhecimento da sua existência, por muito que povoem alegre e abundantemente histórias de várias épocas, feitios e de enorme alcance popular. Só que estas sereias que atraem os pescadores com o seu canto e estes dragões que cospem um fogo espectacular fazem parte de uma noção de que “a ficção também cria realidade”. Sem querer reclamar que esta ficção pode transformar para sempre a realidade à nossa volta, José Maria Vieira Mendes exemplifica: “O facto de andarmos colectivamente a contar histórias de amores heterossexuais ou de heróis produz reflexos na sociedade, E há aquela coisa típica de, nos seus primeiros beijos, os adolescentes imitarem os beijos que viram no cinema – também a imitação da ficção tem efeitos. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É por isso legítimo imaginar que esta ficção, ao relacionar-se com a realidade, tenta conquistar-lhe algum espaço. Mesmo que essa conquista não dure mais do que os 75 minutos do espectáculo, mesmo que depois possa esboroar-se assim que o público transpõe a porta do São Luiz e é recebido pelo bafo quente da vida palpável. Mas há sempre algo que pode ficar inculcado, a incubar à espera do momento de deflagrar e produzir alterações, por mínimas que sejam. Por exemplo, na forma como em Jângal os actores se secundarizam em relação à cenografia, aos objectos, aos adereços e prescindem do seu lugar privilegiado. Se há refrão que se cola aos ouvidos ao assistir a Jângal é aquele que as Shampoo cantavam em 1994: “oh, oh, we’re in trouble”. É uma frase e uma ideia que se repetirá ao longo de todo o espectáculo, tentando certificar-se que não passa despercebida. É o trouble de um mundo em colapso, afecto à ecologia mas não só, deflagrador tanto de desespero quanto de esperança – sentimentos igualmente paralisantes perante o diagnóstico da situação, algures entre a crença de que a reciclagem é inútil porque não há salvação possível e a fé em avanços científicos tais num futuro em que Marte ou qualquer outra rota de escape hão-de providenciar o plano de fuga e até lá apenas podemos esperar. Aquilo que Donna Haraway defende e o Teatro Praga subscreve é que se deve ficar com os problemas – “stay with the trouble” – e não os descartar. Para começar a lidar com tudo aquilo que a palavra “trouble” guarda dentro de si. Até porque, diz Penim, “ninguém sabe muito bem do que se está a falar”. Este trouble é várias questões em simultâneo e estende-se a toda a organização social humana. Mas para lá de toda a política e todos os problemas, há algo soothing que Jângal procura também, baseando nos vídeos ASMR (autonomous sensory meridian response) que inundam a Internet. Um lado de relaxamento, acalmia e prazer retirado de imagens e de palavras sem ter de saber porquê. Quando Jenny Larue carrega uma bola espelhada gigante pelo palco, não tem de haver nenhum significado especial anexado a esse momento. Às vezes, uma imagem basta-se como discurso. Às vezes é só mesmo isso: uma bola prateada a ser carregada por alguém. E é o antídoto momentâneo suficiente para aplacar qualquer trouble anunciado.
REFERÊNCIAS:
Por detrás da Care to Beauty estão Bruno Gouveia e Jorge Ferreira
Dois amigos criaram uma loja online que vende produtos cosméticos, de bem-estar e beleza para todo o mundo. Este ano estimam duplicar para cinco milhões de euros a facturação de 2017. (...)

Por detrás da Care to Beauty estão Bruno Gouveia e Jorge Ferreira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento -0.4
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dois amigos criaram uma loja online que vende produtos cosméticos, de bem-estar e beleza para todo o mundo. Este ano estimam duplicar para cinco milhões de euros a facturação de 2017.
TEXTO: Bruno Gouveia, de 34 anos, e Jorge Ferreira, 44, eram “tão engenhocas” em pequenos, como os dois se descrevem, que “montavam e desmontavam televisões e rádios em casa”, conta Jorge. Agora não desmontam objectos, mas enviam milhares de produtos cosméticos de várias marcas para todo o mundo através da loja online Care to Beauty que criaram. O negócio “corre tão bem” que só este ano vão duplicar para cinco milhões de euros a facturação do ano passado, declaram. A empresa foi criada no Porto. À entrada, as caixas empilhadadas de produtos abrem caminho para um espaço com prateleiras com os mais variados produtos para os cuidados da pele, do cabelo e maquilhagem de marcas como Institut Esthederm, Lierac, Avène, Bioderma ou Vichy que vendem online desde 2015. Os empresários conheceram-se há oito anos, através de amigos comuns, embora tenham feito a mesma licenciatura, engenharia electrotécnica e de computadores, mas em universidades diferentes. Até lá a vida levou-os por outros caminhos. Quando era pequeno, Bruno Gouveia queria ser músico e até chegou a estudar na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Porto. “Queria ser empreendedor, construir guitarras eléctricas e trabalhar na parte técnica e electrónica da música”, conta. Mas também era “engenhocas em miúdo como o Jorge”. Quase nada lhes escapava às mãos: “Eu até consertava candeeiros”, conta Jorge Ferreira, entre risos. Jorge Ferreira fez ainda um MBA executivo no Porto Business School “que ajudou a ter mais conhecimentos” e trabalhou na área das telecomunicações; Bruno Gouveia já tinha criado uma loja online para a Hidraulicart, que vende material de piscina, rega e bombas de água, que pertence aos pais. “A empresa cresceu muito e depois criei outras na área de relógios, roupa e material de pesca”, acrescenta. Portanto, a Care to Beauty surgiu quase naturalmente, assim como a Portugal Internet que “aluga hotspots [aparelho pequeno que gera uma rede wi-fi] aos turistas”, fornecendo serviço de Internet – devido à experiência de Jorge Ferreira, que passou pela Oni, Optimus e Nos. “O Bruno tinha a ideia da empresa de cosmética e em 2015 lançámos as duas em simultâneo com um investimento de 50 mil euros entre stock, material de escritório, renda do espaço e contratar funcionários”, recorda. No início eram só os dois, tratavam de toda a logística e embalavam os produtos da Care to Beauty numa sala pequena, no centro do Porto. Agora já são 15 funcionários (incluindo os empresários) a trabalhar num espaço maior, divididos pela área de gestão, programação, equipa de apoio ao cliente, conteúdos para o site e três farmacêuticos que escolhem as marcas dos produtos e aconselham os clientes quando é preciso. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Care to Beauty vende produtos para 150 países. Quais? “Há coisas que são a alma do negócio”, justifica Jorge Ferreira rindo-se e evitando responder à pergunta, mas o internacional representa o maior peso nas vendas, acrescenta. Em Portugal, o público está nas grandes cidades – é 80% do sexo feminino, entre os 30 e os 45 anos –, a quem vendem sobretudo produtos anti-idade e protectores solares. Nos próximos anos, os empresários querem ter mais produtos de maquilhagem no catálogo online e alargar o negócio à área da perfumaria. E como é que se processa o negócio? “As encomendas chegam via online, processamo-las e o empacotamento é feito aqui, assim como a recolha das encomendas pelos transportadores. Qualquer sítio da Europa recebe-as no dia útil a seguir [a fazer a encomenda]”, enumera Jorge Ferreira. Em 2017 facturaram 2, 5 milhões de euros, bem mais do que os 700 mil euros de 2016, e este ano esperam duplicar e chegar aos cinco milhões. “As pessoas compram cada vez mais online. Este ano seremos a loja online de cosmética com o maior volume de vendas”, declara Bruno Gouveia. A dupla está agora a investir numa empresa de venda de artigos para animais. “A nossa especialidade é ser retalhistas online”, resume o empresário.
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Palavras-chave escola sexo
Tóssan: rir a sério da vida
O designer e ilustrador Tóssan chamava-se, a sério, António Fernando dos Santos. Uma personagem que ia muito para além do artista talentoso e bem-humorado. Só queria ser quem era. Conseguiu. Os seus trabalhos podem ser vistos em Setúbal, até 30 de Junho. (...)

Tóssan: rir a sério da vida
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.3
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O designer e ilustrador Tóssan chamava-se, a sério, António Fernando dos Santos. Uma personagem que ia muito para além do artista talentoso e bem-humorado. Só queria ser quem era. Conseguiu. Os seus trabalhos podem ser vistos em Setúbal, até 30 de Junho.
TEXTO: A sua vida durou 73 anos (1918-1991), mas a obra perdurará por muitos mais, mesmo que não lhe tenha sido dada ainda a visibilidade merecida. Por estes dias, Tóssan ocupa a Galeria Municipal do 11, na Festa da Ilustração de Setúbal. Uma delícia. “Eu não estava de todo preparado para a complexidade e para a riqueza das memórias que o Tóssan ainda tem hoje”, disse, durante a inauguração, Jorge Silva, comissário da exposição A Vida É Engraçada, mas Eu Levo-a a Sério. Acrescentou que o que ali apresentava era “um pequeno ensaio” do que gostaria de ter feito. E até confessou, com delicadeza e graça, que tinha vontade de que todos os visitantes desaparecessem dali, para poder desfrutar do que reunira. Logo à entrada, a atenção vai para um macaco pendurado, uma reprodução, em recorte, da imagem da capa do livro Animais, Esses Desconhecidos, de 1965. Apetece ficar. As diferentes facetas e artes de Tóssan estão espelhadas numa exposição que reúne imagens publicadas em crónicas na imprensa, retratos, anúncios, ilustrações para histórias infantis, textos, caricaturas, livros. Tudo trabalhado com minúcia e polvilhado com sátira. É difícil não sorrir ao olhar para as paredes da galeria. “Tóssan era o humorista total, o poeta do absurdo, o declamador de memória prodigiosa, o incrível conviva que reinava em jantares e festas, desfiando ininterruptamente histórias fantásticas que muitas vezes eram apenas episódios da sua vida real, o eterno apaixonado pela infância, que brindava as crianças, que não teve, com jogos desenhados e papéis recortados”, pode ler-se no catálogo da mostra. Alguns dos trabalhos remetem-nos para a infância, como testemunhou José Teófilo Duarte, designer e director do projecto É Preciso Fazer Um Desenho? “Quando estava a ajudar a montar a exposição e toquei em originais de O Velho, o Rapaz e o Burro, não pude deixar de me emocionar”, contou também na inauguração, um pouco antes de ser exibido um filme de Tóssan, com Tóssan e… uma gravata. Foi uma exibição pública inédita de um pequeno filme mudo e a preto e branco que só a família e os amigos do autor conheciam. Nele, Tóssan digladia-se com uma gravata. Esta começa por fugir a ser aprisionada no seu pescoço, escondendo-se em vários recantos e obrigando-o a percorrer a casa à sua procura. Mais tarde, o protagonista finge desinteressar-se dela, numa espécie de amuo, até que a gravata volta a insinuar-se e a aproximar-se. Um divertido jogo de sedução e rendição que acaba com um nó de gravata feliz, mas irreverente até ao fim. “Tóssan era o vulcão explosivo que contagiava tudo o que tocava. Foi assim no Teatro Lethes em Faro, no TEUC em Coimbra, na Embaixada do Brasil, no Diário de Lisboa e na editora Terra Livre. Escrevia para a gaveta, em centenas de papéis rabiscados com ideias, esboços e poemas completos, de um nonsense e humor irresistíveis, a dar um sentido à vida, que Tóssan acreditava absurda. ” Mais palavras de Jorge Silva, que acredita que “Tóssan merecia mais, precisa de mais”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Lembrou que o centenário do seu nascimento termina em Maio de 2019, informou que esta exposição viajará para Espinho em Setembro e afirmou: “Apetece-me dizer que a última palavra sobre Tóssan ainda não foi escrita, ainda não foi impressa. ”Não será esta, mas fica o contributo — sério, mas não fúnebre.
REFERÊNCIAS:
Como exercício físico, João apanha lixo todos os dias — eis o plogging
E se da próxima vez que fores caminhar, correr ou andar de bicicleta ou skate levares um saco para apanhares o lixo que te aparecer no caminho? Plogging é uma nova actividade física que também deixa o planeta em boa forma. Começou na Suécia, mas já tem adeptos em Portugal. (...)

Como exercício físico, João apanha lixo todos os dias — eis o plogging
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: E se da próxima vez que fores caminhar, correr ou andar de bicicleta ou skate levares um saco para apanhares o lixo que te aparecer no caminho? Plogging é uma nova actividade física que também deixa o planeta em boa forma. Começou na Suécia, mas já tem adeptos em Portugal.
TEXTO: João Pinto calça as luvas, sacode com força o saco para o lixo, que trazia na mochila, e alonga os braços, um de cada vez. “Começo já aqui?", pergunta-nos, à entrada do matagal em Andrães, Vila Real, para onde vai todos os dias caminhar e apanhar lixo na companhia de um cão de grande porte, Beni. "É que se apanho isto tudo vou encher os sacos que trouxe antes de andarmos 200 metros. ”Embora esta forma de actividade física tenha entrado na rotina diária de João, 36 anos, em Março de 2017, foi só depois, no início deste ano, que descobriu que havia um nome — e uma nova “tendência” global — para o que ele já fazia “naturalmente”: "Plogging", ri-se, enquanto faz um agachamento para puxar da terra um pedaço de plástico que se revela maior do que o esperado. Com algum esforço, enfia-o no primeiro saco, já a transbordar, dá um nó e segue caminho, a ritmo acelerado. “Sempre plástico”, mostra, com um encolher de ombros. “Quem quiser começar que comece pelo plástico porque já vai ter muito que apanhar, infelizmente. "Alguns passos depois, repete o processo. “É, parece que sou um plogger”, troça e acentua a última palavra com sarcasmo. “Eu achava que o que fazia era caminhar e apanhar resíduos; não sabia que existia um termo específico. ”Descobriu o termo sueco (a palavra plogging combina outras duas da língua nórdica, plocka upp e jogga, ou seja, “apanhar” e “correr”), por acaso, num vídeo divulgado no Facebook pela plataforma Playground Brasil. Apresentava-se como "um desporto sueco com cada vez mais adeptos" que poderia fomentar "comunidades activas e limpas". Pesquisou mais e percebeu “que a moda já estava a chegar a todo o lado” e que começavam a aparecer em Portugal eventos abertos ao público, organizados por associações, equipas ou empresas, que juntavam a corrida ou a caminhada em grupos com a limpeza de praias e estradas, por exemplo. O movimento "de organização popular" terá despertado em 2016 com Erik Ahlström, um sueco, atleta de corrida e ambientalista que, quando regressou a Estocolmo, depois de 20 anos a viver fora da capital, a encontrou mais poluída. Em 2017, "plogga já era uma das 38 novas palavras suecas", conta, no site onde divulga a actividade que acrescenta variedade de movimentos à caminhada ou à corrida, como agachamentos, além de cortar com o aborrecimento de seguir sempre em frente. Tiramos as medidas ao trilho de terra que se estende à nossa frente. No chão, jazem garrafas de plástico; mais um passo e deterioram-se lenços de papel ou maços de tabaco; outro e por entre folhas caídas surgem embalagens completas, de hambúrguer à bebida (com palhinha), de conhecidos restaurantes de fast-food. Todos recipientes vazios e, portanto, todos em fim de vida — normalmente bastante curta. Basta pensar que a vida útil média de um saco de plástico como o que acabamos agora de pisar não é uma vida, mas apenas 15 minutos. Em igual período de tempo, João, que tem um olho treinado, já carrega quase dois quilogramas de lixo em cada braço. Se estiver dentro da média nacional, esta quantidade de resíduos equivale à que ele mesmo deverá produzir em dois dias. Cada cidadão a residir em Portugal continental produziu, em média, 1, 32 quilogramas de resíduos por dia, em 2017, segundo os últimos dados provisórios do relatório do Estado do Ambiente, divulgado este mês pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Isto equivale a um total de 4, 75 milhões de toneladas de resíduos urbanos recolhidos, que representam um aumento de 2, 3 por cento em relação ao ano anterior. Destes, 80 por cento tiveram origem em recolha indiferenciada. Os que ele agora transporta, abandonados ali por alguém que passou primeiro, nem chegariam a entrar nestas contas. “É mais cómodo a pessoa abrir o vidro do carro e deitar fora do que aguardar dois minutos e deitar no recipiente adequado”, comenta, com um encolher de ombros. “Mas, a sério, não custa nada, não pesa nada e o ambiente agradece”, apregoa, a olhar para a câmara e a sorrir como se estivesse num anúncio publicitário, enquanto faz o caminho de volta, já mais ofegante. “Eu fazia este percurso e acho que foi uma questão de bom senso e de civismo. Se estou a passar aqui diariamente e estou a ver isto, não me custa nada trazer dois ou três sacos e ir apanhando”, diz. “A questão ambiental cada vez nos preocupa mais, mas eu acho que se cada um fizer o seu bocadinho, muitos bocadinhos dão um "bocadão" considerável. ”Terminada a caminhada (ou antes, o plogging), a primeira paragem nunca é a porta de casa, mas o ecoponto, mesmo em frente ao movimentado café da freguesia onde moram pouco mais de mil habitantes — e onde, por isso mesmo, a rotina de João não passa despercebida. "Quando as garrafas de plástico tiverem tara recuperável vai ser toda a gente a apanhar lixo", brinca. Com alguns espectadores, abre os sacos e separa o que vai ser para reciclar e o que vai para o caixote do lixo indiferenciado. “Às vezes, os materiais estão em tão mau estado que nem sei bem o que foram, nem para onde têm de ir”, hesita, antes de optar pelo recipiente amarelo. No dia seguinte, antes ou depois de terminar o turno no hipermercado onde trabalha, e no intervalo de outros passatempos (que vão desde os bonsai, cuidar de árvores japonesas ornamentais, a ensaiar com bandas de metal, onde é vocalista), volta a fazer o mesmo percurso, pela mata e pelas estradas pouco movimentadas, durante mais de uma hora. Novas pegadas, as dele mais ecológicas, as de quem lá antes deixou a garrafa da corrida nem tanto, que ocupam o lugar do que já tinha sido recolhido em dias anteriores. Luvas, por questões de segurança e higiene, sacos para lixo biodegradáveis, dois ou três, mediante a duração e localização da corrida e a preparação física de cada pessoa, sapatilhas ou calçado confortável. É ainda importante garantir que haja um ecoponto por perto, para, no final, separar os resíduos recolhidos. “Às vezes é frustrante”, diz, “eu vou andar e sei que encontro sempre lixo e irei sempre encontrar”. Não gosta de culpar a “educação” de quem o faz, não sabe se deve acusar “a mentalidade”, até porque, admite, ele mesmo já atirou lixo para o chão. Mas esta não era “a marca que queria deixar no planeta”, nem os ensinamentos que gostava de “transmitir para as gerações futuras” e, por isso, reajustou estes e outros comportamentos. Em Abril deste ano, criou uma página de Facebook dedicada à forma de actividade física que ele e outros praticam diariamente. Lembra-se de ter pedido a um amigo que lhe desenhasse um logótipo para usar como fotografia de perfil e, quando este lhe perguntou "o que era isto", respondeu simplesmente: “Isto é o futuro”. A Plogging Portugal conta com pouco mais de cem seguidores e serve como “plataforma de partilha e entreajuda”, para divulgar eventos em Portugal, que lhe chegam através de mensagens privadas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Mirandela, no distrito de Bragança, por exemplo, o Movimento pelo Desenvolvimento do Interior organiza todas as quartas-feiras, às 18h30, um destes encontros. Também já em Beja se devolveu “a beleza à cidade e ao planeta”, o mesmo no Algarve, na Vidigueira, em Aveiro ou em Espinho, corridas que agora são solidárias também pelo ambiente. E antes deste movimento arrancar, a Run Eco Team, uma iniciativa nascida no Facebook em 2016, já deixava marcas positivas nas redes sociais, sempre com a mesma descrição: “Uma corrida, um lixo” (e uma selfie). No grupo português são partilhadas todos os dias fotografias onde quem vai correr, andar ou pedalar exibe a recolha do dia, com paisagens de fundo que vão desde praias, às montanhas até às lagoas dos Açores. Para João Pinto, o plogging não deve ser encarado “como um evento”. “Isto não é propriamente um festival. É algo que devemos fazer diariamente, por nós e por todos. ” Pensa duas vezes antes de provocar: “Não é show off, pronto”. Tira as luvas. O treino, por hoje, está feito.
REFERÊNCIAS:
Há um lado divertido na matemática — e a MathGurl conhece-o como ninguém
Chama-se Inês Guimarães, mas muitos conhecem-na como MathGurl. O seu tempo é dividido entre a Faculdade de Ciências da UP e o YouTube, onde criou o primeiro canal sobre matemática no país. (...)

Há um lado divertido na matemática — e a MathGurl conhece-o como ninguém
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.181
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chama-se Inês Guimarães, mas muitos conhecem-na como MathGurl. O seu tempo é dividido entre a Faculdade de Ciências da UP e o YouTube, onde criou o primeiro canal sobre matemática no país.
TEXTO: Para Inês Guimarães, a matemática nunca foi um bicho-de-sete-cabeças. Mas foi um professor que, no 7. º ano, a levou a apaixonar-se pelos números. A pedagogia era questionável, mas resultou. Cinco anos depois, Inês criou MathGurl, o "primeiro canal do YouTube sobre matemática em Portugal". A álgebra abstracta, a teoria dos números e a geometria são as matérias favoritas e já contagiaram mais de 46 mil subscritores. Foi ao treinar para as Olimpíadas da Matemática que a agora estudante universitária trocou os problemas aborrecidos que resolvia e repetia na sala de aula por enigmas complexos e desafiantes. "As Olimpíadas fazem com que os participantes tenham realmente de puxar pela cabeça e de pensar fora da caixa, com criatividade", recorda. "Não são apenas aqueles exercícios mecânicos da escola. "Comunicar sempre foi a segunda paixão de Inês, que delirava de cada vez que o professor de português anunciava que a avaliação passava por apresentações de livros. A dada altura escolheu aliar as duas áreas e assim surgiu, em 2015, o MathGurl. "Decidi mostrar às pessoas que a matemática não tinha de ser encarada de uma forma puramente escolástica, que é uma coisa que existe fora da escola, uma área viva, dinâmica, que pode ser encarada com bom humor, com boa disposição", conta. Fazer com que as pessoas olhassem para a matemática de forma diferente pareceu-lhe um desafio demasiado grande para recusar e, de uma forma genuína e divertida, partilhou o primeiro vídeo no YouTube. Num abrir e fechar de olhos, a MathGurl era já conhecida do outro lado do Atlântico. Um professor brasileiro, rosto do canal Matemática Rio, descobriu o projecto quando este tinha pouco mais de 50 subscritores. Não tardou a divulgá-lo junto dos alunos e as subscrições multiplicaram. Ainda hoje, a maior parte dos seguidores de Inês é de nacionalidade brasileira. Se por um lado existem mais canais educativos no país, a jovem acredita que os estudantes brasileiros, por outro, estão mais habituados a estudar a partir de vídeos do que os portugueses. Mas o sucesso no YouYube não se ficou por aí. No ano lectivo passado, a Betweien — uma empresa de inovação em educação — cruzou-se com o canal MathGurl e não teve dúvidas de que Inês era a pessoa certa para o projecto que tinha em mente. Com o cantor Paulo Sousa, criou "A √ do Problema", um programa destinado a alunos do 9. º ano e ensino secundário que leva às escolas palestras e músicas compostas em conjunto sobre diferentes temas da matemática. "É super divertido", diz. Recentemente, a dupla lançou também "A Terra da Mentemática", desta vez para alunos do 1. º ciclo. Inês ficou responsável por escrever um conto infantil e Paulo Sousa apresenta-o nas escolas, com novas músicas. Não é difícil entender o porquê de a matemática ser tão assustadora para a grande maioria dos alunos, comenta. Enquanto que na biologia ou botânica os conceitos são palpáveis e se pode, por exemplo, "estudar as propriedades de uma planta", a matemática é uma área abstracta, que se passa essencialmente "dentro das nossas cabeças". "Temos de ter um certo nível de maluqueira para entrar no mundo da matemática", admite. Há quem pense que o curso de Matemática, que frequenta há dois anos na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, serve apenas para dar aulas, mas Inês insiste em contrariar essa ideia. "A matemática tem muito mais saídas profissionais do que simplesmente ser professora, isso é uma coisa do século passado. "Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Livro: Uma Vida Sem Problemas, de José Paulo VianaSérie: Isto é MatemáticaFilme: O Bom Rebelde, de Gus Van SantCanal do YouTube: NumberphileAliar a comunicação, a inovação e o mundo do espectáculo à matemática pode ser uma possibilidade no futuro, mas é cedo para pensar nisso. Para já, Inês quer terminar o curso, envolver-se em novos projectos e continuar a fazer o que mais gosta — passear, brincar com animais e tocar piano. Receber uma medalha Fields — uma distinção considerada o equivalente do Nobel para a matemática — também não era mal pensado. Isso significaria que teria provado a conjectura de Buniakovski, que pretende saber "se um certo tipo de polinómios inteiros produz infinitos valores que são números primos ou não". "Ninguém sabe, há muito tempo que ninguém sabe e era bom que alguém soubesse. Se fosse eu a descobrir, melhor", ri.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola educação infantil