Sentir a água, nadar sem ver
No Porto há uma aula de natação exclusivamente destinada a pessoas cegas ou com pouca visão. Com o recurso à voz e ao toque, um conjunto de professores ensina aos seus alunos como se devem relacionar com a água. Alguns estão a reaprender a nadar, depois de terem perdido a visão, outros enfrentam a água pela primeira vez. As suas histórias são de resiliência e optimismo. (...)

Sentir a água, nadar sem ver
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: No Porto há uma aula de natação exclusivamente destinada a pessoas cegas ou com pouca visão. Com o recurso à voz e ao toque, um conjunto de professores ensina aos seus alunos como se devem relacionar com a água. Alguns estão a reaprender a nadar, depois de terem perdido a visão, outros enfrentam a água pela primeira vez. As suas histórias são de resiliência e optimismo.
TEXTO: Dentro da piscina, Rita Fernandes agarra na mão de Marlene e prepara-se para a colocar sobre a sua própria cara. “Quando mergulhamos, fazemos bolinhas pelo nariz. Vamos pôr aqui as mãos. ” E cola a mão da mulher sobre a sua boca e o nariz, enquanto exemplifica o que acaba de dizer. Pouco depois, segura no braço de Sembo e vai falando à medida que o movimenta. “Temos aqui o cotovelo, ele é que manda. A mão direitinha, esticada, força. Vamos sentir um bocadinho a força, vai ter de me empurrar, vou puxá-lo para trás e vai ter de me empurrar. ” E ele, sem ver o que está a fazer, segue gestos e palavras e empurra. Marlene e Sembo são dois dos alunos cegos ou com baixa visão que desde o ano passado frequentam uma aula de natação que lhes é inteiramente dedicada, nas piscinas de Campanhã, no Porto. A ideia partiu de Rita Fernandes, ex-nadadora profissional e com um mestrado feito na área das sensações. A antiga atleta do FC Porto, de 46 anos, que chegou a tentar a classificação para os Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, é agora presença assídua nas piscinas municipais geridas pelo clube, às quartas-feiras, na companhia de outros professores que ensinam a nadar ou a reaprender a nadar alguns alunos enviados pela Acapo – Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal, depois do desafio lançado por Rita, em Junho. O resultado tem sido surpreendente. “Trouxe-me uma felicidade imensa. É uma troca. Para mim, é quase uma responsabilidade social. Se sei ensinar a nadar, é uma paixão poder transmitir isso a pessoas que não têm tanta possibilidade. E eles têm evoluído de forma tão grande. Desde que entraram até agora é tão diferente, tão diferente, que me faz sentir bem enquanto ser humano. Saio realizada profissionalmente”, diz a professora. Os alunos da Acapo dividem-se pela piscina maior e por uma média. Na grande, estão aqueles que já se sentem suficientemente confortáveis para enfrentar a água num espaço onde não têm pé. Na outra estão os principiantes ou pessoas como Helena, que, em todos estes meses, nunca molhou a cabeça – nem vai molhar, como avisa. Ao contrário dos outros, não está ali para aprender a nadar (diz que tem problemas cardíacos e que não pode afligir-se com nada), mas simplesmente para sentir o bem-estar que a água lhe dá. Para relaxar. Por isso, enquanto à sua volta alguns alunos vão experimentando a respiração, pondo e tirando a cabeça dentro de água, ou tentando tirar os pés do chão (sob o olhar, as palavras e as mãos dos professores Fátima, Sílvia ou Rui), agarrados a uma prancha flutuadora, ela limita-se a caminhar sempre agarrada à borda da piscina. Ou a tentar perceber como os colegas evoluem. Como Ana, que está ali ao lado, a procurar aprender a respirar dentro de água. “Ó, Ana, anda cá, faz lá”, pede Helena. E toca-lhe enquanto ela mergulha, para sentir e apreender que movimento é aquele. Ana não está satisfeita por continuar agarrada à borda da piscina. “Mas eu queria fazer o exercício que a Fátima me ensinou”, lamenta-se, enquanto mete a cabeça debaixo de água, retira os pés do chão e faz bolinhas, sempre com as mãos bem firmes na borda. “Estás a tentar fazer sozinha? Vou dar-te uma prancha. Mas a prancha tem de ficar sempre à tona de água”, avisa Fátima, aproximando-se. E Ana lá vai. Muito devagarinho. Ao início, inclina-se muito para trás, de cada vez que deixa as pernas flutuarem. Fátima explica-lhe que não pode ser assim. Faz ela própria o movimento e coloca as mãos de Ana nas suas costas, para que ela perceba a diferença. Quando tenta de novo, já corre melhor. E quando finalmente consegue esticar-se na água, só por uns segundos, deslizando apenas com o auxílio da prancha, é a felicidade pura que parece soltar-se do seu rosto e da sua voz, enquanto dá gritinhos de alegria. “Ai, que bom. Ai que sensação boa, a sério. ” Foi a primeira vez que conseguiu tirar os pés do chão e deitar-se na água sem estar presa à borda da piscina. “É uma sensação de liberdade… Sou uma pessoa muito nervosa e sinto-me aliviada, é um alívio tão bom… Não dá para descrever. Ai, tão bom, a sério. ”É esta a felicidade que Rita Fernandes diz encontrar nos seus alunos desde que estas aulas começaram e que a levam a desejar que este seja um projecto “de longa duração”. E sempre desafiante. “Nunca tinha trabalhado com cegos e tem sido muito engraçado superar alguns obstáculos, aprender a gerir tudo, ensinar-lhes tarefas. Há coisas que pensei que seriam feitas de uma maneira e acabam por ser de outra. A própria organização da aula, o feedback que obtenho deles, o seu sentido de humor são completamente diferentes do que eu estava à espera. É preciso usar muita criatividade para o ensino de natação com eles”, diz. Marlene, por exemplo, não gosta de nadar de costas. Diz que não se sente segura. A noção de espaço também é completamente diferente nestes alunos que têm dificuldade em manter-se em linha recta, acabando por chocar, amiúde, com os separadores que delimitam as pistas da piscina. “Eles não gostam, mas se não tiver os separadores, perco-os”, diz Rita. Marlene lamenta-se, mostrando os arranhões nos braços. Rita diz que chegaram, entretanto, estruturas novas, menos agressivas a um contacto indesejado e muitas vezes repetido. Nas duas piscinas, com auxiliares de flutuação ou sozinhos, mas sempre com as vozes e as mãos dos instrutores por perto, os alunos da Acapo vão alimentando a sua relação com a água. Para alguns, a natação é uma novidade absoluta, para outros, uma oportunidade para reaprender algo que lhes era familiar quando viam normalmente. Para outros ainda, é altura de aperfeiçoar algo que nunca dominaram. Só um homem parece quase não necessitar dos professores. Na sua pista, Jaime atravessa os 50 metros da piscina, para a frente e para trás, com poucas indicações de Rita. A água não costumava ter segredos para ele. Agora, está a desvendar os que se foram formando, à medida que a visão o abandonava. “Eu chegava ao mar e começava a chorar”Os médicos já avisaram Jaime que o mais provável é perder a visão por completo. Diz que até se surpreendem por isso ainda não ter acontecido. Sofre de glaucoma e o que ainda consegue ver, descreve-o assim: “Se pegar numa folha de cartolina e fizer um furo com uma agulha, o que vejo é uma coisa mínima, como se olhasse através desse furo. ”Como é habitual nestes casos, a perda de visão foi gradual, o que, diz ele, dificultou muito a sua adaptação a uma nova realidade, já que, ao princípio, nem se apercebia de que quase já não via do olho esquerdo. “Se é uma coisa repentina, a gente vê e deixa de ver. Quando é muito gradual, com uma descida da visão, o cérebro vai-se adaptando, vai-se reajustando e não se dá por ela, o que torna tudo muito mais perigoso. A noção que eu tinha era de que via como as pessoas normais e, então, continuava a fazer o mesmo de sempre”, diz. Ou seja, conduzia e trabalhava numa vidraria. Os acidentes de trabalho e de viação repetiram-se, antes de ser obrigado a parar. Jaime descobriu que sofria de glaucoma graças a um médico que praticava mergulho com ele. Depois de experimentar a caça submarina, ainda adolescente, abandonou a adrenalina de capturar espécies marinhas quando o mergulho o apaixonou. “No mergulho, as coisas são bastante distintas, uma pessoa vai adorar a beleza, ver a natureza que há no fundo do mar. Isto depende de pessoa para pessoa, mas eu, ao ver ali a natureza em liberdade, perdi a vontade de pegar numa arma e disparar”, conta. Impedido de voltar a mergulhar a alta profundidade, diz que ainda se recorda de todo o universo que encontrou no fundo do mar. “Eu agora consigo falar nisso, porque acho que já fiz a aceitação da minha limitação”, diz. Porque a adaptação não foi fácil. Apesar de ter feito as primeiras cirurgias ao olho esquerdo com apenas 19 anos, só há dez é que Jaime teve de abandonar o emprego como vidraceiro, por causa da falta de visão. A inactividade inicial que acompanhou a nova fase da sua vida foi do mais difícil que teve de enfrentar, diz. E o tempo livre levou-o também a perceber que a relação que vivia já não fazia sentido. Pediu o divórcio. Os primeiros apoios de médicos e psicólogos não o ajudaram — “só me davam medicamentos para eu me acalmar” — e foi preciso algum tempo para que tudo se ajustasse. “O primeiro e segundo ano em que deixei de ver, em que tive de deixar de conduzir, que era o que eu mais adorava, foram de uma revolta muito grande. Muito, muito grande. Uma coisa estrondosa. É preciso mesmo bater no fundo. É preciso morrer. Mesmo morrer. A palavra é essa. Mesmo morrer para depois renascer e aprender tudo de novo”, diz. Foi ele quem, misturando diversos apoios e terapias, encontrou a receita para esse renascimento. A Acapo fez o resto do trabalho, encaminhando-o para actividades, ensinando-o a organizar-se. Hoje faz vitrofusão em casa. Lida com um forno que chega aos 1200 graus e faz peças decorativas em vidro. Caminha sozinho pela cidade e voltou à água. Quando lhe perguntaram se queria frequentar as aulas de natação de Rita Fernandes, aceitou logo. Tinham passado cinco anos desde que entrara no mar ou numa piscina. “Eu chegava ao mar e começava a chorar, desabava logo. Não conseguia entrar. Aliás, há dois anos estive no Porto de Leixões no Open House e quando senti aquela maresia, quando senti o mar e que estava naquele ambiente, desatei em lágrimas, porque senti o fundo do mar, o que eu fazia antes e que agora não podia fazer. ”Desde o primeiro dia, as aulas revelaram-se “uma descoberta”, na piscina que conhecia bem porque a filha, agora adulta, participara ali em diversas competições de natação quando era adolescente. “Eu achava que nunca mais iria entrar na água. Vim com satisfação. Entrar aqui e estar bem, lembrar-me do que já passei cá e estar bem, nestas condições de limitação, para mim foi maravilhoso. ” No primeiro dia, diz, não saltou da plataforma. Mas, ao contrário dos colegas que nunca viram, ele sabia o que era uma plataforma, como tinha de se posicionar para entrar bem na água, saltando dali. Hoje, fá-lo sem hesitação. O pouco que vê permite-lhe seguir a linha escura que detecta no fundo da piscina, o que o ajuda a não divergir muito de uma linha recta. Quando nada de costas é mais complicado. “Aí tenho mais dificuldades. Das primeiras vezes estava sempre a bater nos separadores, mas não me atrapalhava. Como já os vira, sabia o que eram e que tinha apenas de me desviar. ”As aulas trouxeram-lhe a técnica que não tinha e mais um passo na vida que aprendeu a ter e que lhe trouxe uma nova consciência sobre cada dia que passa. “É preciso desfrutar do pouco tempo que temos de vida, acho que aprendi isso mesmo. Temos de aproveitar o dia de hoje, porque no passado não se pode mexer e o amanhã não sei se vai acontecer. É preciso é aproveitar o agora, intensamente, o melhor possível. ”“Eu sou a pessoa que era antes, com uma diferença”O melhor momento da vida de Vera Silva acabou por se revelar também o mais difícil e inesperado. Portadora de lúpus, procurou informar-se sobre eventuais consequências, na altura em que pensou engravidar. Tinha 20 anos, a informação era pouca e a médica que a acompanhava “desvalorizou um bocadinho” as eventuais consequências. “Ela alertou-me para a possibilidade de a doença se agravar depois do parto. ” Apenas isso, garante. Até à altura, Vera só tinha tido uma crise grave, que levou ao diagnóstico da doença, e pensou que era isso que poderia enfrentar. “A única coisa que eu senti nessa altura eram dores, dores articulares, nos músculos, febre alta. Pensei, não é isto que me vai tirar o sonho de ser mãe. ” Quando engravidou, em 2004, a realidade foi muito diferente. Às 27 semanas de gravidez, sofreu uma meningite asséptica, que diz ter resultado do lúpus. “Essa meningite deixou-me a sequela de falta de visão. ” Hoje, Vera não tem visão central, apenas periférica, na ordem dos 10% no olho esquerdo e de 5% no olho direito. Estava internada há dois dias por causa da meningite quando começou a sentir “a visão turva no olho direito, como um nevoeiro”. No dia seguinte, a mesma sensação passara para o outro olho. Fizeram-lhe exames oftalmológicos e não detectaram algo. Levaram-na para Neurologia e nada foi encontrado. Ela não sabia explicar o que sentia. “Recordo-me de dizer que aquilo que focava não via. Havia um crucifixo e eu dizia, se olhar para o crucifixo, não o vejo, mas se olhar para o lado, já o consigo ver. ” Já tinha perdido a visão central. No hospital — conta — alimentaram-lhe a esperança de que, depois do parto, poderia voltar a ver. Ela diz que compreende. Eram duas vidas em risco, não a queriam deixar demasiado aflita. Quando o menino nasceu, prematuro, porque os tratamentos aplicados à mãe estavam a afectar-lhe o crescimento, a esperança desvaneceu-se. “Tive de lidar com uma coisa maravilhosa que é a maternidade, uma coisa que eu quis, que eu desejei, e ao mesmo tempo lidar com um drama, que é a perda de visão, que nos tira muita coisa. Não estamos preparados para isso, ninguém está. É um ‘o que é que vou fazer, o que vai ser de mim?’ São muitos porquês. ”E a raiva e a não-aceitação. Vera diz que foi para casa antes do filho, porque queria preparar-se, fora do hospital, para a nova realidade que teria de enfrentar. “Eu podia ter ficado com ele, mas disse que queria sair, queria ver o mundo lá fora da forma como o via agora, antes de levar o meu filho nos braços. Depois, veio a fase da esperança, do milagre, de uma solução. Agarrei-me a essa possibilidade. ”Quando, finalmente, o filho foi para casa, Vera não teve medo. Já tratara de crianças e o apoio da família ajudou-a a lidar com o dia-a-dia. Mas descreve os três anos que se seguiram como um tempo que, “no fundo, não estava a viver, estava a sobreviver, à espera que acontecesse o tal milagre”. A vida era constantemente adiada na expectativa do dia em que voltaria a ver. “Por exemplo, gostava de ir a um sítio qualquer com o meu filho, mas pensava — e era automático, não dizia, mas pensava para mim —, vou esperar, para quando eu recuperar a visão desfrutar mais. ”Foi operada e continuou em consultas de oftalmologia e foi o médico que a acompanhou que, finalmente, um dia, a puxou para a realidade. Numa consulta a que foi de braço dado com a irmã, ele perguntou-lhe se já estava a aprender a andar com uma bengala. E quando ela disse que não, ele disse-lhe as palavras que não esqueceu: “Está à espera de quê? De ficar cega totalmente? Depois vai ser mais difícil. Quer ser sempre uma coitadinha?” Ela não queria e aquele, reconhece, foi o tratamento de choque de que estava a precisar. “No dia seguinte liguei para a Acapo. Já tinha o contacto há muito tempo, mas ainda não tinha dado esse passo. ”Ali, diz, descobriu “que podia ir mais além”. Desde que perdera a visão tinha vivido muito resguardada na família, e na associação percebeu que podia fazer tudo. “Excepto conduzir”, diz. Não sente, como Jaime, que foi preciso morrer e voltar a nascer. “Eu sou a pessoa que era antes, com uma diferença. ” Mas a adaptação não foi imediata. Por exemplo, nunca mais praticou qualquer desporto desde que perdeu a visão, em 2014. A aula de natação, à qual se juntou em Novembro, representa esse novo passo. “Eu já sabia nadar. Aprendi sozinha com os primos e primas, e mais tarde andei em ginásios, piscinas. Mas nunca fui a aulas de forma muito sistemática”, diz. Desde que é amblíope que não entrara numa piscina, mas no tempo da praia ia ao mar, sempre acompanhada por alguém. “O mar dá uma sensação de liberdade diferente, o bater nas ondas, o mergulhar nas ondas, as rochas… É uma sensação diferente. Quando é um espaço mais restrito como uma piscina, talvez seja mais fácil e de certa forma mais seguro. ”Mas não isento de algum receio e cuidados. Vera prefere descer pelas escadas em vez de mergulhar a partir da plataforma. “Ainda não tomei essa liberdade; quando via, não tinha problema com isso”, diz. E a respiração, que nunca aprendera convenientemente, foi, ao início, “um bocadinho difícil”. O resto da técnica está a melhorar, com a ajuda da Rita. “Sabe-me bem. Mas tive alguns momentos complicados, com dores e muitas cãibras nas pernas. Foram muitos anos sem praticar exercício. ”Agora, já anda à procura de outras actividades, para que o exercício físico se instale mais na sua vida. Passaram-se quase 15 anos desde que deixou de ser normovisual. Quando lhe perguntam se está apaziguada com o que lhe aconteceu, diz que “há momentos de tudo”. A revolta ainda aparece, mas menos do que os dias em que não a sente. “Quando dei o passo para a reabilitação, mentalizei-me de uma coisa: ‘Eu hoje estou assim, é assim que eu tenho de viver. Se amanhã estiver melhor, óptimo. Se não estiver melhor, que não esteja pior já é muito bom. ’ Foi a esta conclusão que cheguei para dar o passo em frente. Para seguir a vida. E posso dizer que estou de bem com a vida. Há momentos de tudo, há momentos de revolta, em que dá vontade sei lá do quê, mas no outro dia já passa. E o meu filho também é uma grande inspiração para mim. ”Durante 35 anos, Victor Costa foi bombeiro na corporação de S. Pedro da Cova, Gondomar. Em Agosto de 2015, conduzia uma criança que se magoara na escola para o Centro Hospitalar de São João, no Porto, quando sentiu que alguma coisa não estava bem. Dirigiu-se às Urgências e acabou por ser enviado para o Hospital de Santo António, para uma série de exames. No final, o médico, referindo-se ao olho direito de Victor, disse: “‘Tenho uma notícia desagradável para lhe dar. Essa vista, você esqueça. ’ Usou mesmo estes termos. ‘Essa vista é a mesma coisa que perder um braço, nunca mais o consegue meter no sítio’. ” Explicaram-lhe que o nervo óptico tinha secado. Em Abril do ano seguinte, o bombeiro estava de novo ao volante de uma ambulância em marcha de urgência, com um doente que sofrera um enfarte, sem imaginar que aquela seria a última vez que iria conduzir. “Ao chegar à Estação de São Bento, apagou-se a luz. Parei, assustei-me. Depois comecei a ver qualquer coisa e fui a conduzir assim até ao Santo António — arrependi-me de ter feito isso. Fiz o túnel de Ceuta por instinto, ia devagar, mas ainda fiquei pior. Cheguei ao hospital e nunca mais conduzi a partir daí”, conta, com o corpo apoiado na borda da piscina média em que anda a aprender a nadar. Tentou tratamentos, mas vários médicos disseram-lhe que não havia nada a fazer. Uma cirurgia não resolveria fosse o que fosse. Descreve-se como tendo “baixa visão”. “Consigo identificar obstáculos, consigo desviar-me, mas ando com a bengala, porque se estiver alguma coisa no chão, não me apercebo. Não distingo rostos, só vejo formas. ”Na piscina de Campanhã, durante uma pausa da aula, fala com um optimismo desarmante. Diz que quando perdeu grande parte da visão teve um momento em que pensou: “Como vai ser agora?” Mas que a adaptação foi muito facilitada pelo grande apoio da família, dos muitos amigos que tem e da Acapo, que não se cansa de elogiar. “Depois da ajuda que tive, nem penso nisso sequer. Faço tudo, consigo fazer tudo na mesma, ainda faço mais do que fazia quando via. Só não conduzo. Sinto-me feliz. Aprendi outra vez a ser feliz. ”Uma das coisas que faz é caminhadas com os amigos, por terrenos acidentados ou não. “Eles informam-me, ‘cuidado que o caminho tem muita pedra’, e eu vou com mais cuidado. Ou dizem, ‘Victor, podes ir à vontade’, e sinto-me mesmo feliz”, conta. Mas a grande conquista do antigo bombeiro pode ser esta descontracção que agora ostenta, dentro de água. “Eu nunca tinha entrado numa piscina”, sorri. “Ia à praia mas não arriscava, só molhava os pés. De água gosto muito controlada por mim no chuveiro. ”Victor não sabia nadar. E sempre que lhe falavam no assunto, insistia: “Nadar não é para mim. ” Uma decisão que associa ao que diz ser “um trauma de infância”, de quando morava junto ao rio Ferreira. “Quando morria alguém lá afogado, as pessoas o que faziam? Tiravam o corpo e iam pelo meio do monte levá-lo para casa, para fazer o funeral. Isto traumatizou-me bastante, porque eu via-os a passar junto à minha casa. Morria lá muita gente afogada, incluindo alguns colegas meus de infância. E toda a gente que eu ouvia dizer que morreu afogada era gente que sabia nadar. Isso causava-me alguma confusão”, conta. Foram precisas décadas, a perda de visão e o desafio da Acapo para se juntar às aulas imaginadas por Rita Fernandes para que pusesse o trauma para trás das costas. “Quando me falaram na piscina, disse logo que sim. As pessoas aqui são excepcionais, estamos à vontade com elas. ” E teve medo? “Não foi assustador porque a Rita sabia que era a primeira vez que eu entrava numa piscina e pôs-me à vontade. O primeiro contacto foi aprender a respirar debaixo de água. Explicou-me, com os toques, como devia fazer. Engoli alguma água pelo nariz, é normal, agora já controlo melhor. Já me sinto à vontade dentro de água, mas ainda não consigo nadar. Sei dar umas pezadas, mas não posso andar muito tempo com os pés no ar, senão atrapalho-me logo. ”Agarrado a uma prancha, Victor já é, contudo, capaz de atravessar toda a piscina média onde é acompanhado pelo professor Miguel. No início diz que era “muito esquisito andar com os pés no ar e ser tudo muito levezinho”. Deixar aquele universo aquático, custava-lhe um bocado. “Quando saía da água, nas primeiras vezes, sentia um peso. Agora já não. Já me habituei. É muito saudável e gosto muito. ”Antes de regressar aos exercícios da manhã, reconhece estar “a gostar muito disto”. E que, depois de tantos anos em que a água era quase um inimigo, quer acreditar que, qualquer dia, já não vai precisar de auxiliares de flutuação para se deslocar, suspenso, na água. Nadar está já ao virar da esquina. “Espero que sim”, sorri Victor. Marlene tinha 33 anos quando cegou completamente. O leque de problemas de visão com que conviveu desde sempre — usou óculos desde os dois anos — são desfiados com rapidez: “Tenho glaucoma congénito. E não tenho íris. Agora não dá para notar muito, porque tenho cataratas no olho esquerdo e no direito, e descolamento da retina. ” Nada que a tenha impedido de ir à escola, trabalhar, praticar desporto e nadar. Mas, sobretudo, de sonhar, por muito que lhe digam que o maior de todos os sonhos nunca se vai realizar. “Desde sempre sonhei ser camionista, que era a profissão do meu pai. Sei que não o posso realizar, mas tenho-o e guardo-o, porque fica para toda a vida. ”Natural de Santa Maria da Feira, diz que sempre foi “maria-rapaz”, pouco dada à escola e cativada por trabalhos que os seus problemas de visão lhe proibiam. Como ser camionista ou, ainda adolescente, pedir aos pais que a deixassem ir trabalhar para a construção civil, depois de dar uma ajuda nas obras de um anexo da casa onde vivia com os pais e uma irmã mais velha, também com problemas graves de visão. Já adulta, no entra-e-sai de trabalhos ocasionais com que foi gerindo a vida, passou-lhe pelas mãos mais um trabalho improvável. “Fui empregada de limpeza, mas eu própria admiti que não ia ser capaz de cumprir”, diz. Marlene começou a frequentar um colégio no Porto com ensino destinado a pessoas com problemas de visão n 10. º ano. Depois, tornou-se interna, deixou “as saias da mãe” e viu-se envolvida pelo trânsito e as ruas largas que desconhecia. Aprendeu a usar a bengala, apesar de na altura ainda ver alguma coisa, e fez o curso de telefonista. Quando terminou a formação e chegou a altura de fazer estágio, comunicou à directora da escola que queria arranjar uma casa fora dali. “Queria viver a minha vida lá fora. ”É isso que tem feito desde então, com mais ou menos dificuldades, admite, porque nem sempre tem emprego. O que nunca perdeu foi a vontade de ir à luta e de aprender coisas novas. Foi assim que, com “nove ou dez anos”, numa visita à ria de Aveiro, decidiu que era hora de experimentar aprender a nadar, copiando os movimentos de um cão que acompanhava o grupo em que seguia. “Aquele cachorro para mim ficou como um herói, porque me ensinou alguma coisa. ” Mas era tudo muito rudimentar, admite. Ia ao mar e ao rio, mas não arriscava ir para zonas onde não tivesse pé e, sempre que ensaiava umas braçadas, estava pronta a colocar os pés no chão, mal sentisse alguma ansiedade. A situação melhorou um pouco em 2009, quando pediu ajuda à Câmara de Gaia para frequentar aulas de natação. Aprendeu alguma coisa, mas nunca passou para “a piscina funda” e, como a aula incluía normovisuais e não era especificamente dirigida às suas necessidades, ainda estava longe de dominar a técnica quando um problema nos pulmões, no ano seguinte, a obrigou a abandonar a piscina. Regressou agora, com as aulas sonhadas por Rita Fernandes, e tem arriscado cada vez mais na piscina maior. Até já saltou para a água de uma das plataformas instaladas na zona mais funda, depois de muito (muito, muito) nervosismo e hesitação. Só se sente mais aflita quando lhe pedem para nadar de costas. “Eu perco-me dentro de água. Por vezes não mostro a ansiedade em que fico, mas vem-me vontade de chorar, fico mesmo em pânico. Quando estamos de costas, a audição fica nula e eu perco-me dentro de água. Sinto-me… Tem tanta gente ali e eu sinto-me sozinha, desesperada, nunca mais chego ao fim, acho que a piscina tem o triplo do tamanho”, conta. Mas não desiste. E a cada quarta-feira, lá está ela pronta para entrar na água e tentar cumprir todos os exercícios que lhe pedem. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Respirar dentro de água, que foi difícil de conseguir controlar, já não tem segredos para ela. Agora diz que coordenar tudo — respiração, pernas, braços e evitar bater contra as laterais, com que “embirrou” porque fica com marcas na pele sensível — é a próxima batalha a vencer. Quem a vê a percorrer metade da piscina de 50 metros diria que está no bom caminho. Marlene diz que se sente ali “superbem”, mas admite que nada supera o mar. “O meu primeiro impacto com muita água foi em 2016, no início da linha de Cascais, onde o rio Tejo se junta ao mar. A água estava parada — aqui no Norte tem muitas ondas — e aquilo para mim foi uma liberdade. Fascinou-me. Não queria sair da água. ” Nas ondas do Norte continua a “não arriscar” ir mar adentro, mas mais para sul, onde a água acalma, diz já ter o conforto para ir até onde não tem pé. “Sinto a segurança de poder voltar, desde que tenha uma voz que possa seguir. ”Praticante de vários desportos — fez parte da selecção nacional que participou no campeonato Europeu de Goalball —, diz que o à-vontade que ganhou na água lhe trouxe o que nunca deixou de procurar. “No mar, sinto-me mais livre. O mar dá-nos liberdade porque o mar é livre. Ele é que manda e desmanda nele. ” Quando o tempo aquecer e para lá voltar, já será com nova desenvoltura, depois de tantas e tantas braçadas nas águas da piscina de Campanhã.
REFERÊNCIAS:
São Tomé: sorrisos de cajamanga, praias de café
A ilha de São Tomé ensina-nos muito: sobre plantas, cacau, café, gastronomia, sobre desacelerar entre uma Rosema e um mergulho cálido em cenário paradisíaco, sobre dar de sorriso o pouco que se tem. É uma leveza que contagia. (...)

São Tomé: sorrisos de cajamanga, praias de café
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A ilha de São Tomé ensina-nos muito: sobre plantas, cacau, café, gastronomia, sobre desacelerar entre uma Rosema e um mergulho cálido em cenário paradisíaco, sobre dar de sorriso o pouco que se tem. É uma leveza que contagia.
TEXTO: Jeje bem tenta falar-nos das plantas que despontam junto ao carreiro por onde caminhamos, bem tenta contar-nos a história da roça de Monte Café, fundada em 1858. Mas alguém está a cantar algures nas sanzalas e a voz, melódica e cristalina, atravessa a antiga roça como vento. Parece cenário de filme: um calor abrasador, uma humidade que se cola ao corpo, miúdos que nos levam pela mão e aquela voz, calam-se os pássaros para ouvi-la.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave corpo
Boating Europe: ele, ela e um barco-salva vidas
Qual é a melhor forma de fugir do país (e, já agora, da vida quotidiana)? Comprar um barco salva-vidas de uma plataforma petrolífera, mudar o seu interior e zarpar. As alterações climáticas já não os assustam (tanto). (...)

Boating Europe: ele, ela e um barco-salva vidas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Qual é a melhor forma de fugir do país (e, já agora, da vida quotidiana)? Comprar um barco salva-vidas de uma plataforma petrolífera, mudar o seu interior e zarpar. As alterações climáticas já não os assustam (tanto).
TEXTO: Circum-navegação é uma viagem marítima em torno de um lugar, que pode ser uma ilha, um continente ou toda a Terra. O que a Wikipédia e outros compêndios não nos dizem é que é possível circum-navegar a Europa — ou uma boa parte dela — por rio. Quinhentos anos depois de Fernão de Magalhães (circum-navegou o globo de 1519 a 1522), esta nova aventura está meio caminho andada. Uma portuguesa, um inglês e um barco salva-vidas. Hamish Campbell, 55 anos, andava há 20 anos a escrever reportagens sobre alterações climáticas e outras questões ambientais. “É um desastre e não estamos a fazer nada para mudar”, diz em vídeoconferência com a Fugas depois de atracar o seu Fassmer CLR-C (7. 2m x 2. 89m; 3200Kg) a par de “uma barcaça enferrujada” em Galati, na Roménia. Conheceu a sua companheira de viagem num bar há três anos e meio. “A Ana estava à procura de um aventureiro e eu convidei-a a conhecer o meu barco”, sorri. Ana Reis, 44 anos, é arquitecta formada no Porto. Trabalha há uma dúzia de anos em gabinetes londrinos (com um interregno de dois anos numa ONG em Cabo Verde). O barco onde viajam foi comprado há sete anos “mais ou menos por brincadeira, mais ou menos em desespero de causa”, conta Hamish, que queria morar num barco e já não queria viver em Londres. “Pensei ‘qual é a melhor maneira de fugir de Londres?’ Podia ter comprado um barco estreito que me permitisse navegar nos canais ingleses, mas não poderia fugir do país. Em vez disso, procurei e encontrei um salva-vidas de uma plataforma petrolífera na Escócia. E comecei a alterá-lo para poder viver nele. Era um barco concebido para 61 pessoas. Vinha com 61 assentos e 61 coletes salva-vidas. ”Agora, a embarcação tem um quarto, uma casa de banho, uma cozinha, uma salamandra no meio, painéis solares e um moinho de vento para a electricidade no Inverno — e muitas, muitas ferramentas. E na cobertura um quintal, perfeito para dois vegetarianos que atracam mais ou menos a cada dois dias para comprar vegetais frescos, leite, pão e uns croissants. O salva-vidas, que parece uma máquina saída da série de ficção científica Thunderbirds, estava parado. Nunca chegou a ser usado para a sua função original. “Quando a plataforma explodisse”, ficciona o seu comandante, “o salva-vidas, com 61 pessoas e reservas de oxigénio, atravessaria o mar em chamas durante vinte minutos. Podia ficar submerso e voltar à superfície. Está desenhado para sobreviver a tudo. Pode sobreviver ao fim do mundo durante um par de horas. É um barco inafundável. ”Antes de comprar o barco, Hamish viu numa carta que a circum-navegação planeada era possível. “Queremos prová-lo”, completa Ana. Partiram de Londres (da marina de Limehouse) até à pequena cidade costeira de Gramsgate. Seguiu-se a travessia para Calais, através do Canal da Mancha (que num ferry demora normalmente 30 minutos). Demorou oito horas. “É um barco lento, seguro e fiável”, justifica Hamish, que enjoou — Ana aguentou o leme. A primeira parte do trajecto, de Londres ao mar Negro, está concluída. Calais, Paris, Montceau-les-Mines e Estrasburgo (França), Frankfurt (Alemanha), Linz e Viena (Áustria), Bratislava (Eslováquia), Budapeste (Hungria), Novi Sad e Belgrado (Sérvia), Ruse (Bulgária) e Constança (Roménia). O casal demorou três anos e meio a chegar a meio caminho — 501 eclusas (a mais profunda de 30 metros), seis túneis (um deles de seis quilómetros, percorridos numa hora), oito rios, 18 canais e nove países depois (assinalaram o ponto mais alto a 406 metros de altitude). Foram 15 mil quilómetros em 15 meses distribuídos por três anos. Demoraram muito porque hibernam. Quando o frio aperta, eles voltam a Londres (para amealhar, que é como quem diz voltar à “vida real"), e o barco fica numa doca seca à espera da tripulação (à ida aconteceu na França, na Áustria e na Roménia). “Voltamos, trabalhamos e ganhamos algum dinheiro. Tem tudo a ver com encontrar um equilíbrio. ” No regresso há sempre pequenos problemas a resolver”, dizem, sentados à frente de uma webcam no último país da União Europeia, já muito perto do mar Negro (descem o Danúbio até Sulina). Demorará “pelo menos” mais dois anos a voltar ao ponto inicial. Seguem junto à costa até Odesa e daí Europa dentro. Kiev (Ucrânia), Brest (Bielorrússia), Varsóvia (Polónia), Berlim e Hanôver (Alemanha), Holanda, Bélgica e França. “É incrível”, resume Ana. “Toda a gente acena e sorri pelo caminho. ” Quando não têm tarefas a cumprir, tentam ancorar. E viver o rio. “Procuramos um sítio longe da corrente ou um afluente, lançamos a âncora e sentamo-nos rodeados pela linda natureza, florestas e árvores, muitos pássaros. Nada de Internet [a Fugas tentara a entrevista uns dias antes, mas a natureza ganhou]. Lindo. Quando há pouca corrente e um bom dia de sol dá para dar uns mergulhos. A água é clara muitas vezes. Mas a Ana não nada porque os peixes são muito grandes e ela tem medo. Estamos no meio de nada”, suspira Hamish. À pergunta tradicional “porque é que estás a fazer isto?” ele costuma responder “porque é que vais todos os dias para o escritório?”. “Quando acordamos de manhã não sabemos onde vamos estar no fim do dia”, explica Ana. “Go with the flow. ” No sentido mais literal da expressão. Ela diz: “Encontra o teu equilíbrio”. Ele: “Vive a tua vida!”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na Sérvia, durante um brinde de rakija, Hamish estabeleceu contacto através dos binóculos com uma pessoa. Acenaram-se e acabaram por ficar um mês. “Encontramos muitas pessoas simpáticas pelo caminho”, diz Hamish, que coordena projectos online e ensina a contar histórias com o smartphone. Vai registando tudo pelo caminho para um dia montar um documentário. “Podemos procurar informação sobre os rios e os canais na Internet, mas a única informação disponível é mesmo o passa-palavra entre locais. A informação não existe. ” O dia-a-dia também depende da “generosidade dos estranhos” (como o amigo do amigo que é engenheiro e que ainda há instantes veio dizer que o motor está bom). “No mundo dos barcos temos que ser amigáveis com toda a gente. Temos que ajudar toda a gente porque precisamos de ajuda muitas vezes. Esta é uma comunidade aberta muito generosa. É um pouco como o mundo devia ser”, aponta Hamish, que costumava pedir boleia pelo mundo fora. Na primeira metade da epopeia encontraram “alguns aventureiros alemães” e “casais de ingleses reformados” ("todos votaram no Brexit, todos vivem no estrangeiro e todos bebem vinho") que também viajam de barco pelos rios. “Fui o segundo a ter um barco deste género em Londres”, recorda Hamish. “Há cerca de 20 agora. ” Sinal de mudança, talvez. Dentro de alguns alguns anos, prevê o comandante do barco salva-vidas, serão muitos mais. “Mudem-se para uma colina ou para uma montanha ou vivam num barco. Ou uma ou a outra. ” Não haverá volta a dar. Site Instagram Facebook YouTube Crowdfunding
REFERÊNCIAS:
António Sá foi para Trás-os-Montes “ganhar metade, viver o dobro”
Sabia que um dia iria viver para o campo. Mas, em vez de esperar pela reforma, decidiu antecipar-se. Há quase nove anos que vive às portas de Bragança e guia quem quer descobrir a região ao ritmo das estações. (...)

António Sá foi para Trás-os-Montes “ganhar metade, viver o dobro”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.056
DATA: 2019-06-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sabia que um dia iria viver para o campo. Mas, em vez de esperar pela reforma, decidiu antecipar-se. Há quase nove anos que vive às portas de Bragança e guia quem quer descobrir a região ao ritmo das estações.
TEXTO: Poucos dias depois de termos estado com António Sá em Lagomar, no início de Abril, nevou, conta-nos, por e-mail. Havíamos falado dessa possibilidade, num dia ensolarado em que nas traseiras da sua casa até se viam indícios de uma Primavera adiantada. Aproveitou uma das manhãs de neve e foi com a mulher, Ana Pedrosa, e a cadela, Ginny, à serra da Nogueira dar um passeio na neve. “Estava lindo…”, escreveu, “os bosques, de carvalhos, pinheiros silvestres e bétulas, mais a temperatura de apenas 3 graus, transportaram-nos momentaneamente para latitudes escandinavas. Não vimos animais, mas os rastos na neve eram muitos: corços, javalis e um texugo. . . ”. Foi por momentos assim que António Sá, com a mulher e os dois filhos pequenos, trocou Espinho por uma aldeia transmontana. Passaram oito anos e meio, os filhos já não são tão pequenos (a mais velha tem 18 anos), a certeza continua inabalável – “Já não saímos de cá”, afirma, “cada ano gostamos mais”. E não se cansa de partilhar essa sua paixão por estas vivências em Trás-os-Montes. Como a daquela manhã nevada em família: é uma das suas sugestões para os passeios que organiza – tanto em programas previamente delineados que vão mudando com as estações do ano, como nas experiências personalizadas a que chama Bétula Tours. O que propõe aos visitantes é tudo o que o levou a mudar-se para Lagomar, às portas de Bragança. Na Primavera, poder subir às alturas da serra de Montesinho e ver a paisagem pintada de amarelos, brancos e lilases por um mar de carquejas, urzes e giestas, salpicados de violetas, orquídeas e narcisos. No Verão, “sem hesitações”, percorrer os rios da região – “Gosto de variar. Uns dias, o rio Baceiro, que é mais próximo da minha casa, outros o Sabor ou o Tuela, já no concelho de Vinhais”. No Outono, passear por carvalhais e soutos, na serra da Nogueira e na zona central do Parque Natural de Montesinho, vestidos de amarelos e dourados, laranjas e vermelhos. “É a estação dos bosques. ”Este compasso do ano com as quatro estações bem vincadas foi um dos motivos para António virar costas ao litoral e mudar-se para aqui, entre floresta autóctone e vida selvagem. Literalmente: a casa aninha-se numa encosta suave, que termina em lameiro, diante de montes coroados de carvalhais e sardoais; não raras vezes observou corços e javalis ali no quintal. Soube que era aqui que queria ficar precisamente num Outono, quando, ao fazer uma curva da estrada, se deparou com o vale pintado de amarelo e laranjas. “Parecia o Canadá. ” No bolso levava um dos seus inseparáveis blocos de notas (vermelhos, flexíveis, os mesmos onde anota listas de fotografias e impressões de viagem – é fotógrafo profissional, muitos anos dedicados às viagens) com os 10 requisitos do terreno ideal. Preencheu nove deles, confessa, sorrindo, enquanto olhamos o cenário que entra escritório adentro pela parede envidraçada. Às portas de Bragança (a 15 minutos de carro e com transportes públicos regulares), dentro de uma aldeia e já dentro do Parque Natural de Montesinho (dois dos requisitos), António Sá e a família não mudaram de vida, diz Ana Pedrosa, a mulher e cúmplice dos caminhos do mundo. “Mudámos de vista. ” Porque, de resto, continuam a trabalhar em casa, como já o faziam em Espinho desde que, António primeiro (em 1995, aos 26 anos), e Ana depois (em 1998), trocaram os empregos “fixos” pela ânsia de descobrir e dar a descobrir o mundo. António já era um naturalista amador e um apaixonado pela fotografia (aos 11 anos recebeu a primeira máquina), com a qual foi autodidacta, e em pleno boom das revistas (e secções em várias publicações) de viagens decidiu arriscar e tornar-se repórter freelancer. Correu tão bem que Ana se lhe juntou: do Bornéu à Islândia, da Namíbia ao Alaska, passando pela Mongólia e a inesquecível China (“provavelmente a única viagem em que não foi a natureza, mas sim a etnografia, que nos chamou”), viajaram um pouco por todo o mundo – “não contamos os países”, afirma António, “não é o que nos interessa”. “Se gostamos de um lugar voltamos, nem que sejam dez vezes” –, (d)escrevendo-o e fotografando-o. E tudo havia começado, precisamente, em Trás-os-Montes, local das suas primeiras férias juntos. A partir de então, começaram a escapar regularmente para a região; não tardaria a surgir o projecto de “um dia” virem para o campo – “como tantos pensam, para a reforma”. Até António se antecipar: “E se fosse agora?”. Havia, entretanto, começado a dar workshops de fotografia (em Lisboa e Porto) e a fazer passeios fotográficos, tantos deles em Trás-os-Montes. As viagens continuavam, ainda que balizadas pelas férias escolares dos filhos que também haviam chegado – “viajamos sempre com eles” –, e na região até podiam optar por saídas do Porto ou de Madrid. Passados quase nove anos em Lagomar, António prepara-se para juntar o alojamento à sua oferta de passeios e workshops de fotografia. “Queremos que as pessoas conheçam o território”, justifica, “e não tem de ser connosco”. “A ideia é que funcione quase como um abrigo-de-montanha, para quem gosta de andar no campo. ” Faltam os acabamentos finais aos bungalows, quatro, que se erguem no mesmo terreno onde construiu a sua casa (esta e eles obedecendo a vários preceitos que asseguram a maior sustentabilidade possível: isolamento térmico, painéis solares, depósitos de água, por exemplo). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E onde, então, apenas um dos seus requisitos não se cumpriu: ter um curso de água a cruzá-lo. As fotografias de família em rios da região mostram que não faz falta e que o que ouvira anos antes num encontro fortuito com alguém que trocara o Porto pela serra do Alvão valeu a pena. “Ganhar metade, viver o dobro”. Tempo. Tempo para estar, apreciar melhor as coisas, ponderar, falar. . . Em Espinho, o contexto assediava constantemente, tudo condicionava. Agora, as 24 horas do dia têm mais vivências, muito mais intensas. O essencial é atender aos gostos específicos, condição física e disponibilidade de tempo dos participantes e escolher os locais em função da estação do ano e das condições meteorológicas do(s) dia(s) em causa. Famílias com crianças e é Verão? Vamos para os rios, temos águas transparentes, sem riscos. Caminhadas e estamos no pico do Inverno? Vamos para a neve dos montes de Sanabria. Fazer com que os clientes tenham excelentes experiências de campo e incrementem o seu conhecimento do meio natural. E, por essa via, se tornem cidadãos mais conscientes, agentes activos na conservação da natureza e na defesa do meio ambiente.
REFERÊNCIAS:
Ruas de Espinho vão servir peixe e marisco, sem espinhas
Um almoço de rua com 600 lugares e pratos de peixe e de marisco a partir de 6€. É em Espinho – e é Sem Espinhas. (...)

Ruas de Espinho vão servir peixe e marisco, sem espinhas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um almoço de rua com 600 lugares e pratos de peixe e de marisco a partir de 6€. É em Espinho – e é Sem Espinhas.
TEXTO: No dia 21 de Julho, a autarquia de Espinho organiza um almoço de rua com mais de 600 lugares, distribuídos numa mesa que se estende desde a marginal, junto à praia, até às ruas 2, 39 e 41. A iniciativa surge integrada no Sem Espinhas, um projecto que procura celebrar a gastronomia do mar, através da valorização dos produtos, das tradições, das gentes e das ligações históricas entre o concelho e o sector, e posicionar a cidade como destino gastronómico de peixe e de marisco. Das 12h às 17h, há pratos de peixe e marisco para provar num dos 13 restaurantes aderentes, com preços que variam entre os 6€ e os 20€. Entre as ementas, serve-se sopa de peixe, cataplana de tamboril, sardinha, robalo, dourada e lulas grelhadas na brasa, feijoada de marisco, caldeirada de peixe, espetada de marisco e parrilhada de peixe, entre outras iguarias que fazem parte do receituário gastronómico de Espinho. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na quarta edição, o evento expande-se a mais sete restaurantes do que no ano passado e alastra-se a três novas ruas da cidade. Conta com animação musical e dança, assegurados pelas associações locais. E estão previstos espaços lounge, “que convidam ao convívio e à degustação de petiscos e de bebidas refrescantes”, revela a autarquia em comunicado. Esta é a terceira iniciativa do ano sob alçada do projecto Sem Espinhas. Em Março, decorreu, pela primeira vez, a Rota dos Restaurantes – que deverá repetir-se em Outubro – e um Fórum para discutir o sector (em Junho). Está ainda prevista a produção de quatro minidocumentários, com testemunhos das histórias do mar de Espinho. Espinho 21 de Julho Das 12h às 17h Facebook: @semespinhasespinho www. semespinhas. espinho. pt Restaurantes participantes: Casa O Pescador, Casa da Mãe Joana, Casa Papagaio, Casa Américo, Quim da Granja, Zagalo, Onda Mar, Espinho 10, Os Melinhos, Tasca Maria, Marreta, Baía Sol e Casa Locas.
REFERÊNCIAS:
Tempo Junho Outubro Julho Março
Agosto começa com esculturas de luz e videomapping em Sintra
O AURA está de volta ao centro histórico de Sintra com dez obras de arte luminosas. De 1 a 4 de Agosto. (...)

Agosto começa com esculturas de luz e videomapping em Sintra
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O AURA está de volta ao centro histórico de Sintra com dez obras de arte luminosas. De 1 a 4 de Agosto.
TEXTO: Videomapping, instalações audiovisuais interactivas, esculturas de luz e obras biomiméticas. Um enorme globo terrestre e um oceano habitado por animais de plástico. O AURA Sintra está de volta ao centro histórico da vila de 1 a 4 de Agosto. No total, são dez as obras que se apresentam nesta quinta edição, num percurso luminoso que começa na Volta do Duche e termina junto à Quinta da Regaleira. O festival dá início a um ciclo de programação artística que termina em 2021, dedicado à “conexão entre a arte da luz e o meio ambiente” e à forma como “humanos e não humanos se relacionam numa multiplicidade de interdependências”. Em destaque, estão obras como GAIA, do artista britânico Luke Jerram, conhecido pelos trabalhos em grande escala no espaço público e cujas obras integram a colecção do Metropolitam Museum of Art, em Nova Iorque, e a Wellcome Collection, em Londres. Com sete metros de diâmetro, GAIA apresenta uma imagem de satélite em 3D da NASA da superfície terrestre. Já Torsten Muhlbach planta um arco-íris no Jardim dos Castanheiros, Alfred Kurz vai pôr um coração a bater na chaminé do Museu Ferreira de Castro, enquanto os artistas Oskar&Gaspar, Grandspa'sLab, Matthieu Tercieux e Kosuta ocupam fachadas e muros da vila classificada como Património Mundial pela UNESCO. Em videomapping e projecções interactivas, os visitantes poderão fazer desabrochar flores sobre um muro, participar numa mostra de “apocalipses, colisões planetárias e catástrofes naturais de grande escala” ou vislumbrar um oceano distópico, onde habitam “milhares de resíduos plásticos” que, por vezes, “animam-se e aglomeram-se em forma dos seres marinhos” que um dia ali viveram. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O percurso termina com Nasci Nasci, do colectivo português Error-43, no Patamar dos Deuses, junto à Quinta da Regaleira. A escultura biomimética em grande escala explora “o que aconteceria se colocássemos um novo organismo tecnológico dentro da natureza e de que forma poderia um sistema beneficiar o outro”. Ou como a natureza pode servir de inspiração “para encontrar no devir soluções de esperança”. Além das dez obras que compõem o percurso do festival, a quinta edição traz como novidade a criação de um lounge, uma estrutura em cúpula com dez metros de diâmetro onde vai ser apresentada uma programação de vídeo e áudio e projecções a 180 graus. No sábado, das 16h às 19h, há ainda três talks com alguns dos artistas presentes no festival. O festival ilumina as ruas de Sintra de 1 a 4 de Agosto, das 21h às 24h. O acesso é gratuito.
REFERÊNCIAS:
Entidades UNESCO NASA
Rir de barriga cheia com Miguel Esteves Cardoso e Ricardo Araújo Pereira
Juntámos ao almoço dois escritores que aliam o humor a um apetite voraz. Miguel Esteves Cardoso, cronista gastronómico, e Ricardo Araújo Pereira, amante da cozinha na óptica do utilizador, explicam por que é que comer tem muita graça. (...)

Rir de barriga cheia com Miguel Esteves Cardoso e Ricardo Araújo Pereira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.324
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Juntámos ao almoço dois escritores que aliam o humor a um apetite voraz. Miguel Esteves Cardoso, cronista gastronómico, e Ricardo Araújo Pereira, amante da cozinha na óptica do utilizador, explicam por que é que comer tem muita graça.
TEXTO: É a apenas a terceira vez que Ricardo Araújo Pereira (R. A. P. ) está com Miguel Esteves Cardoso (M. E. C. ), e a admiração é muita e é mútua. Os primeiros dez minutos são passados a trocar elogios. Mal se senta, R. A. P. dá um exemplo de um ensinamento do mestre. “Uma vez perguntei ao Miguel: ‘Como é que sabes que os melhores tremoços são ali, os melhores pastéis de nata são acolá, os melhores. . . ?’ A resposta dele foi imediata, nunca mais me esqueço: ‘Eh pá, tens de comer muita merda. ’”A mesa larga a rir, mas M. E. C. faz uma pausa, aguardando o silêncio para uma confissão. Continua a estar de acordo com o princípio, mas já não o pratica. “A dada altura, uma pessoa começa a pensar que só tem mais uns quantos anos de vida, e deixa de comer merda. Já não como merda. ”A prova está ali à nossa frente. O cardápio e o local do almoço foram escolhidos com cuidado e antecedência. Dias antes, quando estávamos a combinar o encontro, M. E. C. pedira-me uma lista dos possíveis restaurantes onde decorreria a conversa. “Mostra lá a tua valiosa lista”, escreveu-me, por email. Dediquei-me à tarefa como se fossem alegações finais da tese de doutoramento e enviei uma dezena de hipóteses. M. E. C. não se comoveu. “Só posso se vocês fizerem o favor de vir almoçar ao Neptuno, na Praia das Maçãs”, ripostou. E assim foi. E ainda bem. Sobre a toalha estão camarões da costa com sal de Castro Marim, uma garrafa de Chablis 2017 (“um vinho a sério”) e outra de Perrier com um líquido de cor dourada. “Lá dentro tem azeite de Portalegre, que nós trazemos de casa”, explica MEC, sentado na esplanada, mesmo em cima do areal da Praia das Maçãs. Além do azeite, praticamente todos os ingredientes do almoço foram trazidos pelo escritor, como sempre acontece ali. O Neptuno é uma segunda casa de M. E. C. e de Maria João, sua mulher, e os donos do restaurante permitem-lhes levar de tudo o que há de bom para comer no mundo, incluindo um molho picante importado do México em bidões. O cuidado que o cronista do suplemento Fugas, do PÚBLICO, põe na preparação das suas refeições, a dedicação na investigação do melhor que se pode levar à boca, não significa que leve a comida a sério, enquanto tema ontológico. Nisso, contrasta com a cultura reinante em Portugal, onde a maioria dos críticos de restaurantes opta por uma abordagem mais técnica ou histórico-cultural. José Quitério, que escreveu no Expresso — e é o crítico português mais respeitado dos últimos 40 anos —, começava quase sempre as suas crónicas com uma referência à topografia da zona do restaurante. Já reformado, em entrevista sobre o ofício à jornalista Alexandra Prado Coelho, neste jornal, haveria de justificar: “A crítica gastronómica pode ser vista como uma coisa de hedonistas de segunda classe que querem é comer e beber, glutões e beberolas. É preciso demonstrar que não é, que isto tem um conteúdo cultural. Quem se preocupa com estas coisas não é nenhum selvagem que só pensa em comer e beber. ”Ricardo Araújo Pereira preocupa-se com estas coisas mas não tem pudor em assumir-se como um “selvagem”. Admite que não é um conhecedor, antes aparece numa longa tradição de “tipos com uma inclinação humorística que partilham o gosto por enfardar”. Cita Sir John Falstaff, personagem de William Shakespeare, um glutão boémio, amante de capões, que desafiava as autoridades dietéticas e religiosas comendo e bebendo como um animal. E também François Rabelais, que um século antes fizera nascer Pantagruel e Gargântua, criaturas grotescas e cómicas, caracterizadas igualmente por um apetite excessivo. Mas há mais autores e mais recentes e em língua portuguesa: o brasileiro Luís Fernando Veríssimo, por exemplo, vem à baila; em Portugal, Luís de Sttau Monteiro, que assinou uma coluna no suplemento A Mosca, do Diário de Lisboa, entre 1969 e 1971, é outro exemplo de um escritor para quem a comida era assunto literário e pândega. Sttau Monteiro, como aliás Miguel Esteves Cardoso, foi moldado pela cultura anglo-saxónica e isso pode explicar o seu registo mais descontraído, na senda de outros escribas gastronómicos contemporâneos. Talvez porque sem o peso do catolicismo, e menos sensíveis ao problema da fome dos povos do Sul, alguns dos mais influentes críticos de restaurantes norte-americanos e ingleses continuam a recorrer ao humor. São os casos de Pete Wells, do New York Times, de Jonathan Gold, do Los Angeles Times (que morreu há quatro meses), ou de Jay Rainer, do The Guardian — três nomes grandes que falam de cozinha de uma forma que muitos portugueses considerariam leviana. M. E. C. põe as coisas nestes termos: “As pessoas em Portugal levam a comida muito a sério. E depois são muito agressivas umas com as outras. Não dá para o humor porque a discussão normalmente é violenta. Os portugueses dizem assim: ‘Eh pá, tu não sabes o que é um cozido! Um cabrito, tu sabes lá o que é um cabrito! Essa porcaria que estás a comer não é um cabrito! Não percebes nada do assunto!’”, concretiza. Na sua cabeça está uma agressão recente. “Um amigo meu mandou-me calar porque estava a comer uma caldeirada. ‘Cala-te, foda-se, estou a comer uma caldeirada! Estás a rir-te, isto não é para rir. ’”Os empregados de mesa vão pousando pratos e pratinhos. Beterraba laminada, batatas cozidas, couve, grão. Tudo biológico, tudo acompanhamento para uma dourada magnífica, mais de dois quilos de bicho. “Eles receberam o peixe fresco hoje, da lota de Peniche. Estava gorda, via-se pelo cachaço”, diz M. E. C. , que a prefere cozida. Mais tarde há-de chegar ainda um chicharro enorme, este grelhado. R. A. P. está impressionado e é o mais faminto. Assume-se como alguém que escreve pontualmente sobre comida “mais na óptica do utilizador ou mesmo do javardo”. Mas consegue apreciar o sabor, distingue o bom do bonito. “Há tempos fui a um supermercado e trouxe umas cenouras que eram uma coisa linda. Nem parecia que tinham crescido debaixo da terra. Chego a casa, trinco uma e a sensação que tenho é que se eu trincasse a embalagem onde a cenoura vinha a experiência não teria sido muito diferente. Não sabiam a nada. ”Apesar de estar magro, o humorista diz ter um gordo dentro dele. M. E. C. desconfia. “Tu sempre foste magro. ” R. A. P. rebate. “Não, não. Houve ali um momento em 2009 em que me deixei ir. Já pesei mais de cem quilos. ”Essa degradação física aconteceu durante as gravações de Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios, um talk-show diário sobre as eleições legislativas desse ano. “O tempo estava bom e tal e nós mandávamos vir o almoço de um restaurante da zona. Fosse qual fosse a ementa, para mim era sempre bacalhau primeiro, qual amuse-bouche, e a seguir o prato do dia que houvesse. ”Os efeitos foram notórios, mas não imediatamente reconhecidos pelo próprio. Depois da maratona televisiva, R. A. P. teve umas merecidas férias. E foi só então que se confrontou com a sua imagem, cortesia de um paparazzo. “O hotel tinha um fotógrafo e ele fotografou-me à socapa naquelas cadeiras da piscina. Quando vi a minha própria pança naquela fotografia. . . parecia o Douro vinhateiro, com os socalcos. Nessa altura, pensei: ‘Tenho de fazer alguma coisa. ’”E fez. Hoje, Araújo Pereira está seco, parece um espeto na sua camisa branca aprumada. Antes de vir para o almoço, tinha estado a praticar kickboxing, modalidade que pede alimento. Pressente-se que talvez preferisse ao peixinho cozido algo mais substancial, como uma cabidela, o prato favorito, comida que lhe recorda a infância no Norte do país. M. E. C. quer saber mais sobre essa fase, as suas férias quando criança, é um perguntador e um ouvidor — e Araújo Pereira tem revelações para fazer. A avó de R. A. P. é de São Martinho de Coura, perto de Paredes de Coura, no Minho, e ele passou muito tempo a ir buscar água à nascente e a ver bater maçarocas na eira. Isso explica que a comida de que mais gosta possa ser designada por uma palavra apenas, como é tradição no Minho. “Hoje em dia, a minha mulher leva-me a restaurantes em que o prato é descrito em dez linhas e eu sinto que não tenho habilitações literárias para comer aquilo”, diz, contrapondo: “Na terra da minha avó é: rojões, cozido, cabidela. Basta uma palavra. ”O tema da nomenclatura dos pratos não é de agora, todavia. Fora já assunto para Sttau Monteiro. Numa das suas crónicas da rubrica “A Melga no Prato”, o escritor e jornalista analisou uma omelete “com duas rodelas de pickles de beterraba (o pickles é uma invenção inglesa, a beterraba de origem portuguesa. . . ), algumas azeitonas negras (portuguesíssimas) e uma folha de alface saloia”, servida no restaurante do hotel Ritz. “Pois que nome julgam os leitores que a casa deu a este prato?”, questionava, indignando-se. “Nada mais, nada menos do que omelette à americana. ” No final, a conclusão óbvia: “É claro que, se tivesse posto o nome omelette arménia, ovos à moda da Síria ou fritada de ovos caucasiana, ninguém teria dado pela diferença porque no fundo as omeletes sem recheio só podem pertencer a uma de duas espécies: as bem-feitas e as malfeitas. ”Grandes escritores foram também gastrónomos espirituosos. “Uma sobremesa sem queijo é como uma mulher bonita sem um olho. ” Jean Anthelme Brillat-Savarin“A pescada frita tinha uma camada de gordura brilhante e espessa. A posta reluzia como um espelho e, olhando-a de frente, uma pessoa podia até contar os pontos negros do nariz. ” Mark Twain“O carácter de uma raça pode ser deduzido simplesmente de seu método de assar a carne. ” Eça de Queirós“A longo prazo podemos vir a descobrir que a comida enlatada é uma arma mais mortífera do que a metralhadora. ” George Orwell“Também no mundo da comida há muitos restaurantes que já não são apenas restaurantes. São um conceito. Invariavelmente ficam na moda, invariavelmente o serviço é demorado, invariavelmente a comida é uma porcaria, invariavelmente acabam por fechar. ” Lourenço Viegas“É uma moda inexplicável esta que consiste em contaminar a preciosa Água das Pedras com mistelas de framboesas, limão e ginseng. Constitui um desperdício — lá está — monumental. É como encher a Torre de Belém com vasos de sardinheira. ” Miguel Esteves Cardoso“Numa mesa de portugueses, come-se, recordam-se refeições passadas e projectam-se refeições futuras. E obtém-se tanto prazer da comida como da conversa sobre comida. ” Ricardo Araújo PereiraDesignações curtas não significam pouca comida. Já se viu que R. A. P. está mais do lado dos heróis cómicos do que dos super-heróis trágicos, que nunca aparecem a comer na ficção, seja literária, seja cinematográfica. “A gente não vê uma história a dizer: ‘Depois o Batman foi almoçar. ’ Isso nunca existe, nunca. ” A razão — desconfia — é da ordem da escatologia: tem que ver com “o final do processo digestivo” ou, se se preferir, “com cocó”. As personagens cómicas sempre gostaram de fazer piadas com cocó. “Os super-heróis trágicos não desejam revelar que passam por esse processo, enquanto os heróis cómicos apreciam a celebração da caca”, explica R. A. P. Exemplo: “Num dos livros do Pantagruel, a mãe dele engole pipas inteiras, com a casca e tudo, e o Rabelais, projectando o que vai acontecer, diz: ‘Ah, la belle matière fécale. ’”Neste momento, o casal na mesa ao lado larga uma gargalhada. Ricardo Araújo Pereira vira-se para aquela mesa e pede desculpa pelo despropósito do tema. “Já vi que estamos a interferir com o vosso almoço. ”A dourada aparece servida nos pratos, livre de espinhas, em lombos suculentos. O Neptuno é um restaurante clássico, com um serviço clássico. Não inventa. É um restaurante de praia que sabe tratar o peixe. Não tem marketing, não precisa de contar histórias, tendência da restauração moderna que Miguel Esteves Cardoso renega. “Agora chegam à mesa e dizem: ‘Sabe qual é a história deste prato?’ Como se todos os pratos tivessem de ter uma história”, lamenta, fazendo notar: “Muitas vezes, essas histórias são escritas por agências de comunicação. O chef diz: ‘Eu não tenho paciência para escrever a história. ’ E a agência escreve-a. Eu oiço aquilo e só penso: ‘Eh pá, cala-te, deixa-me comer. ’”O problema não é só o artifício comercial, mas a qualidade da própria história. M. E. C. recorda uma delas. “O chef contava que estava em Londres e teve esta ideia: ‘Quando chegar a Lisboa, vou fazer um fish and chips. ’ Ora, isto é uma história?! Não. Isto é uma imitação!”R. A. P. concorda e mostra apreço pelo típico empregado de mesa. “Há muitos, muitos anos que eles são filósofos da linguagem. O ‘queria já não quer’, por exemplo, é um grande clássico. ”Todos concordam que o talento de servir está em perceber o cliente, o seu estado de espírito. Não se impor mas estar disponível. Os bons empregados tanto podem entregar pratos, sem mais, como dar corda. M. E. C. exemplifica com a “formalidade elástica” dos empregados do Gambrinus, o restaurante de luxo das Portas de Santo Antão, em Lisboa. “Se lhes disseres que a tua mulher te deixou, eles ficam contigo. E isto é preciso proteger. ”Esta ideia de que há coisas na cozinha que é preciso preservar, que é preciso preservar o Gambrinus, foi também referida de forma eloquente por José Quitério. Numa crónica no Expresso, o crítico circunspecto escreveu um parágrafo sobre o assunto cheio de ironia. “Há coisas que é preciso saber não mudar. Aliás, se por hipótese absurda algum pintalegrete pós-moderno tivesse a ousadia de exibir no Gambrinus cozinha molecular, ou tecno-emocional, ou de extracto similar, a gargalhada viria lá de dentro e ribombaria por toda a rua. ”Hoje, na restauração moderna tudo está diferente. Mas não se pode dizer que não haja tentativas de comédia. Os empregados são menos protocolares. Brinca-se com o nome dos pratos. Procura-se o espanto. Servem-se azeitonas que são manteigas, manteigas que são azeitonas. Os pratos tradicionais apresentam-se como arte plástica. “Às vezes, há coisas. . . No outro dia, fui a um desses restaurantes de alta cozinha a que a minha mulher me leva e puseram-me na mesa uma ampola”, conta o humorista, aduzindo que o empregado apresentou o prato como “a nossa caldeirada”. “Era uma coisa de vidro, com um quadradinho de peixe. A gente pôs aquilo na boca, sorveu o líquido turvo que estava lá dentro e comeu o quadradinho. Fiquei de facto com a sensação de ter dado uma garfada numa caldeirada. Mas nessa altura questionei: ‘Onde está o resto do tacho?’”M. E. C. dá uma gargalhada. “Perguntaste mesmo onde está o resto do tacho?” R. A. P. confessa. “Não perguntei, porque estava a fingir que era uma pessoa civilizada. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sendo um amante da restauração tradicional, M. E. C. abre um parêntesis para louvar a cozinha de José Avillez. “Deram-me uma vez a comer um bocadinho minúsculo de leitão e era como se tivesse comido um leitão inteiro. Já o cozido era uma couve e passou-se o mesmo. Aquilo é magia”, elogia. R. A. P. também já foi ao Belcanto, o restaurante mais conceituado do chef. “Ele põe uma espécie de tosta com três pintinhas de molho e diz: ‘Frango assado!’” M. E. C. anui: “E sabe mesmo àquilo. Uma pessoa tem de se render. ”É tudo muito bonito, mas nem sempre causa a sensação de satisfação que um autor cómico pretende, o tal rejubilo de barriga cheia dos heróis boémios e bonacheirões. A graça, o humor, quando falamos de cozinha, pode ser uma coisa muito material, muito fisiológica. Já a terminar o almoço, Miguel Esteves Cardoso contempla, saciado, o mar revolto em frente. Ricardo Araújo Pereira põe a mão no estômago, medindo o volume, e remata. “Parte do encanto disto é uma pessoa, no fim, dizer: ‘Eishhhhhh. ’”
REFERÊNCIAS:
O ginásio também pode ser uma clínica
O acompanhamento é personalizado, não são admitidos grupos de treino com mais de dez pessoas. Aqui não entra só o personal trainer, mas também o médico, o fisiologista do exercício, o fisioterapeuta e outros profissionais de saúde. (...)

O ginásio também pode ser uma clínica
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O acompanhamento é personalizado, não são admitidos grupos de treino com mais de dez pessoas. Aqui não entra só o personal trainer, mas também o médico, o fisiologista do exercício, o fisioterapeuta e outros profissionais de saúde.
TEXTO: Foi no ginásio que Ana Prates, 36 anos, se lesionou numa aula de grupo. Depois disso, decidiu optar por um treino diferente. Não é a única. Actualmente, existem diversos ginásios que são mais do que espaços onde se pratica exercício físico, ou seja, funcionam quase como clínicas. Além do professor ou do personal trainer (PT), existem ainda médicos, fisiologistas do exercício, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde que, em conjunto, descobrem qual a melhor prática de exercício para cada cliente – seja ou não doente. Por exemplo, no espaço BeeLife, em Lisboa, todos os clientes têm uma consulta com um médico fisiatra antes de iniciarem o treino. Este avalia a condição física e o que é necessário melhorar. Depois, juntamente com um fisiologista do exercício, constroem um plano, que é administrado por este último. O mesmo acontece na Clínica das Conchas, na mesma cidade. Para Afonso Pescado, fisiatra no BeeLife, esta sinergia é essencial. Explica que o médico consegue perceber uma patologia, mas não qual o melhor exercício ou movimento para a tratar. É aí que entra o fisiologista do exercício. “Aqui optimizamos recursos. O objectivo é pegar naquela hora que a pessoa tem para o exercício e fazer com que desfrute ao máximo, atingindo da melhor forma os objectivos a que se propõe”, explica. Os serviços disponibilizados e as valências dos profissionais das chamadas “clínicas de exercício” podem mudar de espaço para espaço, mas o objectivo é sempre o mesmo: adaptar o exercício a cada indivíduo, algo que, de acordo com os profissionais, só se consegue se as aulas forem individuais ou para grupos reduzidos. No BeeLife, as turmas têm no máximo dez pessoas; no centro clínico do Axis Wellness, em Viana do Castelo e em Ponte de Lima, são oito; e na 360 Clínica do Exercício, em Lisboa, o número não excede os três alunos por aula. Para os profissionais destes espaços a razão é óbvia: “Num ginásio tradicional [que dá aulas a dezenas de pessoas ao mesmo tempo] não se consegue o grau de especificidade que o nosso ginásio consegue oferecer”, informa Eduardo André, fisiologista do exercício na 360 Clínica do Exercício. “Faço exercício mas sinto apoio. Têm sempre cuidado com as minhas limitações e, se for necessário, adaptam os exercícios”, testemunha Ana Prates, que há dois meses frequenta o BeeLife. Álvaro Santos, personal trainer e dono de um espaço com o seu nome, em Lisboa, também faz referência a alunos que trazem lesões de ginásios. “Tenho tantos… [Nestas situações] temos de preparar as pessoas, [através do exercício correcto], para o seu dia-a-dia. A ideia é fazer com que vivam mais tempo, mas com saúde e qualidade de vida”, defende. Desde Maio deste ano que a Direcção-Geral de Saúde (DGS) passou a implementar as consultas de actividade física. Romeu Mendes, director-adjunto do Programa Nacional para a Promoção da Actividade Física (PNPAF), explica ao PÚBLICO que a ideia do Serviço Nacional de Saúde (SNS) “é dar uma solução concreta de exercício físico para o doente”. O responsável refere ainda a necessidade de aproximar os profissionais de saúde aos do exercício físico, uma vez que “existe uma falha de comunicação [entre ambos] no [SNS] – mas há sistemas privados que funcionam muito bem”. No entanto, com tanta diversidade de espaços e profissionais, como garantir ao consumidor que está, de facto, no sítio correcto? De acordo com Romeu Mendes é essencial que quem prescreva exercício seja “um médico com pós-graduação em medicina desportiva” ou então um fisiologista do exercício, “com uma licenciatura em ciências do desporto e uma pós-graduação em exercício físico e saúde”. Para o restante acompanhamento, “o ideal é haver uma equipa multidisciplinar – quem fica sempre a ganhar é o cidadão”, garante. Como nem toda a gente tem disponibilidade para pagar um ginásio com este tipo de oferta – os preços começam nos 49 euros e são feitos orçamentos à medida de cada cliente –, Romeu Mendes informa que existem já 12 projectos-piloto a funcionar no país, em centros de saúde. Nestes, a prescrição é feita pelo médico em conjunto com o fisiologista e tendo em conta as possibilidades económicas de cada um. “Tenho preferência por enviar os doentes para sítios onde conheço o currículo dos profissionais. No entanto, tenho de pensar que só porque as pessoas não podem pagar um ginásio, isso não deve ser impedimento para que lhes prescreva exercício. Tem é de ser adaptado”, defende. O director-adjunto do PNPAF acrescenta que, em certas situações, a pessoa pode treinar sozinha, desde que sejam dadas indicações muito claras; e dá o exemplo da marcha para quem tem diabetes de tipo 2. “Não prescrevo esse exercício sem antes explicar que é preciso levar uma garrafa de água, ir sempre acompanhado, não andar nas horas de maior calor… A ideia é detalhar o que se deve fazer, quais os principais erros e ao que se deve ter atenção”, aconselha. E resulta? Romeu Mendes refere casos de vários doentes com diabetes de tipo 2 que deixaram de tomar medicação graças a fazerem o exercício prescrito e acompanhado. “Mas, como é claro, terão de continuar a praticar exercício e uma alimentação saudável para não voltar à medicação”, salvaguarda. Também Marco Santos, fisiologista no Axis Wellness, dá o exemplo de um cliente com hipertensão que deixou de tomar medicação graças à actividade física – “mas sabe que terá de continuar os nossos exercícios”, aconselhou, na altura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A partir de Dezembro de 2017, a DGS começou a aplicar guias de aconselhamento em centros de saúde. Este projecto-piloto pretendia que o médico de família fizesse um aconselhamento breve de exercício físico através de guias digitais, que poderiam ser entregues aos doentes. Entre Setembro e Dezembro de 2018, 5443 utentes receberam este tipo de aconselhamento, num total de 63. 817 utentes avaliados, refere a Lusa. A partir de Maio, o que começou a ser aplicado foi a consulta de actividade física. Texto editado por Bárbara Wong
REFERÊNCIAS:
Tempo Maio Dezembro Setembro
Das casas viradas ao contrário ao lobby com banheiras: o humor está no design
Andamos a fazer casas com humor ou o humor vem depois com os habitantes das casas? Fomos ver o que arquitectos, designers e decoradores andam a fazer em Portugal. (...)

Das casas viradas ao contrário ao lobby com banheiras: o humor está no design
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Andamos a fazer casas com humor ou o humor vem depois com os habitantes das casas? Fomos ver o que arquitectos, designers e decoradores andam a fazer em Portugal.
TEXTO: Por mais estranho que pareça, até uma sanita por estrear esquecida no meio de uma sala em obras num antigo palacete, no Porto, pode arrancar gargalhadas quando o motivo da conversa é o humor. Por causa daquele objecto, a designer de interiores Nini Andrade Silva começa a desfiar o novelo da história do projecto WC Boutique Hotel, em Lisboa, onde estão banheiras na recepção e a farda dos funcionários é um robe e uma toalha na cabeça. O humor está um pouco por toda a parte, que o diga o arquitecto Manuel Graça Dias, que projectou um edifício em forma de golfinho, em Chaves, que também arrancou gargalhadas durante o processo de construção; ou que recuperou o velho teatro Luís de Camões, na Ajuda, em Lisboa, onde tem desenhos de ilusão óptica em grande escala. Ou que o diga Sheila Moura Azevedo, que projectou apartamentos, no Porto, que têm frases típicas como “laurear a pevide”, “picar o ponto”, “apanhar uma rosca” ou “correr as capelinhas”. O que é tudo isto senão sentido do humor na arquitectura, no design de interiores e na decoração?Quando Nini Andrade Silva partiu para o projecto do WC Boutique Hotel, em Lisboa, disse logo à equipa: “Enlouqueçam! Porque enlouquecer é não querer raciocinar dentro da caixa, é pensar em algo diferente. É no meio dos disparates que nascem as grandes ideias”, conta, enquanto solta uma gargalhada. Foi também num momento de boa disposição que a Culto a encontrou debruçada sobre dezenas de amostras de tecidos de luxo com as mais variadas cores e feitios espalhadas em cima de uma mesa. “Parecia mesmo uma barraca de feira pela diversão e pelo gozo que é tocar e sentir os tecidos. Só que estes são de luxo”, reforça por entre risos. Ficou quase tudo escolhido, até o mobiliário deste futuro cinco estrelas Vila Foz Hotel & Spa, num centenário palácio da Avenida Montevideu, na zona mais chique da Foz do Porto, e que deverá abrir as portas no próximo ano. Este projecto não deverá ter tanto humor como o WC Boutique Hotel, em Lisboa, ou o Hotel Teatro, no Porto. Dos momentos divertidos no processo criativo, a equipa da designer de interiores também não se livra. Estão lá. Trata-se de fazer coisas sérias com boa disposição. “Gosto de ser conhecida pelo sentido de humor nos trabalhos. Sem isso não vale a pena. Mas rir não é gozar”, salvaguarda. A madeirense, que até já foi distinguida com o grau de oficial da Grande Ordem do Infante D. Henrique, cresceu numa casa cheia de gargalhadas, com muito humor, teatro e cantorias. Em pequena, quando fazia disparates, a mãe dizia-lhe: “Pareces uma garota do Calhau. ” O nome pelo qual eram conhecidas as crianças desfavorecidas, das praias do Funchal. E os calhaus foram ficando de tal modo entranhados que é neles que se inspira para dar forma às peças de mobiliário e pinturas que cria. “Há sempre um calhau na minha vida”, diz em tom de brincadeira Nini, que também apoia a Associação Garota do Calhau para ajudar crianças desfavorecidas do arquipélago. “Sempre que vou para um projecto, lembro-me das histórias do meu tempo de miúda e dos teatros que fazia”, recorda. A madeirense é reconhecida mundialmente por contar histórias em cenários de luxo, com um estilo em que tudo é pensado ao mínimo pormenor. E o humor é um requisito para trabalhar nos seus ateliers de Lisboa e do Funchal, onde também abriu o Design Centre Nini Andrade Silva, no edifício do Molhe — Fortaleza da Nossa Senhora da Conceição, que foi a casa de Gonçalves Zarco, o navegador português que chegou à Madeira. Recentemente recebeu o Prémio da Inovação Hoteleira de Portugal pelo projecto do Hotel Palácio do Governador, em Lisboa. Em 2017 foi nomeada pelos International Hotel and Property Awards para o WC Boutique Hotel e no ano anterior venceu o Óscar do Turismo para o Hotel Palácio do Governador, o World Travel Awards na Categoria Europe’s Leading Design Hotel para o The Vine Hotel, na Madeira. Já no andar de cima do palacete portuense, sentada na soleira da varanda de uma das salas, a designer de interiores vai dizendo que “as emoções são para ser sentidas à flor da pele ou, diríamos antes, [no caso do WC Boutique Hotel] à tona da água!”. Nini inspirou-se numa situação que viveu quando, há muitos anos, estava num dos elevadores das Torres Gémeas, em Nova Iorque. Ela, de vestido de noite, alguns homens de smoking, e um deles destacava-se por estar de robe. “Então pensei: ‘Isto é tão engraçado que um dia vou fazer uma coisa que não tenha nada que ver. ’” E assim foi. “Costumo dizer que, quando vou a um hotel, vou logo ver a casa de banho”, conta. Quando os proprietários do hotel lhe pediram um projecto diferente, a designer respondeu: “Fazer um WC. Deveria ser espectacular!”, lembra entre risos. “E a cliente perguntou-me: ‘WC?! Mas o que quer dizer com isso?’ Eu respondi-lhe que as pessoas, em vez de dormirem nos quartos, dormiriam numa instalação sanitária. A cliente olhou para mim e disse: ‘Confio em si!’”A partir dali, Nini teve carta-branca. Resultado? “Começámos a enlouquecer completamente. . . ”, ri-se. “Só o nome WC já dava vontade de rir. Um dia, um taxista comentou que era um nome horrível e perguntou-me: ‘Ó minha senhora, quem é que faz uma coisa dessas?’ E respondi: ‘Eu!’” A designer convidou-o a entrar e o homem ficou espantado como tantas pessoas que “entram e pensam que é um spa e depois, quando se apercebem de que é um hotel, ficam entusiasmadíssimas, bem-humoradas”, revela. A designer levou tão a sério a decoração que, no dia da inauguração do hotel, foi de pijama e de rolos na cabeça. “Foi tão engraçado andar assim no meio das pessoas de fato. Dava-me imensa vontade de rir”, lembra divertida. Perdida de riso fica também quando entra no Hotel Teatro, na Baixa do Porto, antigo Teatro Baquet, e vê a fotografia de uma plateia na parede, com a sua cara e de outras pessoas relacionadas com a obra “em cabelos, corpos e roupas de outras pessoas. Era para ser posta no chão, mas a meio da noite acordei e pensei: ‘Então vão andar por cima das nossas caras?’” E foi parar à parede. Por ali há um charriot com roupas de peças de teatro, cedidas por Filipe La Féria. “É engraçadíssimo ver os hóspedes a vestirem as roupas e a rirem-se”, afirma. Divertido sim, mas é caso sério porque o projecto venceu, em 2011, o melhor design de interiores de Portugal e da Europa nos European & Africa Property Awards. E a brincar a brincar, com algum humor, Nini vai somando prémios, como aconteceu com o Hotel The Vine, na ilha da Madeira, inspirado no tema do vinho e nos elementos naturais do espaço em que se insere. “Foi um dos hotéis com que ganhámos mais prémios”, recorda, lembrando que “é muito engraçado porque as banheiras têm o formato dos antigos carros de bois e os lavatórios de um carro de cesto da Madeira, os que descem do monte para a cidade do Funchal”, diz por entre risos. Os pavimentos das áreas sociais e dos duches têm calhaus das praias da ilha. Com um brilho nos olhos, Nini lembra o processo do Hotel Movich Buró 26, na Colômbia, e como se vestiu a preceito de colombiana, de saia e chapéu “volteado” para a apresentação do projecto no país. “Queria mostrar o que tinham de bom, a cultura colombiana. E estava com uma vontade tremenda de rir”, conta, recordando as caras sérias de quem a ouvia. Então, pôs música e dançou. Se aquilo corresse para o torto, não havia volta a dar. Correu bem e ficou com o projecto da cadeia de hotéis colombiana. Os chapéus lá estão numa das paredes, assim como muitos outros motivos da região, como o artesanato e os tapetes em materiais locais. Não há regras no humorPara a designer de interiores Gracinha Viterbo, “a vida sem humor não faz sentido e é sempre bom saber viver com ele à nossa volta, inclusive na decoração”. Afinal, diz, “um bom profissional tem de saber incutir emoções nos seus espaços e o humor é, sem dúvida, uma dessas emoções”. Foi em 1979 que a mãe, Graça Viterbo, abriu um atelier no Estoril. Em pequena, Gracinha sonhava seguir-lhe os passos e, para isso, foi estudar para Londres. Depois de uns anos fora, voltou a Portugal, e hoje assume a direcção do Viterbo Interior Design. Nos últimos anos, a designer de interiores tem sido reconhecida e premiada. Já ganhou o International Property Award para a melhor casa de luxo europeia; já foi distinguida com o Andrew Martin Interior Design Award, os conhecidos Óscares da decoração. No seu trabalho, o humor entra e “sem regras”. “Pode ser uma palavra, uma frase num néon num lugar improvável, almofadas com frases irónicas ou palavras provocadoras, gravuras ou arte desafiante e rebelde”, descreve. Como a imitação de uma tartaruga gigante na parede e de um cão enorme no chão, ou uma cadeira com o formato de uma mão. Ou uma almofada em forma de boca e uma estatueta de um macaco que é um candeeiro. “Um detalhe aqui e outro ali que desafie o humor nos espaços mesmo mais sérios”, sublinha a designer de interiores. Podem ser uns pormenores mais discretos do que outros, “mas que fazem parar e reagir, sorrir até, e sentir”, continua. O mais engraçado é, afinal, “a surpresa de encontrar o improvável na normalidade”. Como acontece em muitos dos seus projectos em vários pontos do mundo, como em Angola, Singapura ou Tailândia, em todos Gracinha Viterbo conta uma história. Também a conta na sua recente loja Cabinet of Curiosoties, no Estoril, que tem dez salas, galeria, antiquário e um espaço com objectos diferentes, “peças curiosas e improváveis, muitas delas rebeldes, únicas e com muito humor”. Mas também se pode tropeçar no humor na execução da decoração. “As instalações de projecto são sempre os momentos mais fortes e memoráveis para a minha equipa”, refere, lembrando uma cliente “muito divertida” para quem decorou uma penthouse em Banguecoque e que pôs toda a equipa a dançar. Ou as viagens em que leva artesãos e criativos ao estrangeiro. São tantas as “situações engraçadas” que Gracinha Viterbo confessa que davam um livro. “Mas tornar real o que, durante meses, é um sonho é muito especial na profissão”, resume. Mais a norte, no Porto, a designer Sheila Moura Azevedo, do ShiStudio, em Matosinhos, encheu sete apartamentos para alojamento local, na Rua de Trás, com frases típicas como “laurear a pevide”, que significa ir arejar, “picar o ponto”, que é visitar a namorada a casa dela, ou “andar no laréu”, que é passear. Outros apartamentos estão baptizados com “apanhar uma rosca”, que é o mesmo que uma bebedeira, ou ainda estar na “amena cavaqueira”, que é ter uma agradável e animada conversa com alguém. Todas elas entram logo no ouvido de tão divertidas que são. “A história por trás deste projecto é já de si engraçada”, conta a designer de interiores. Esta é uma daquelas artérias portuenses muito antigas e apertadas. Os hóspedes corriam o risco de ir à janela e dar de caras com roupas nos estendais a uma curta distância, e de ouvir as divertidas frases típicas sem as perceberem. O melhor era contornar a situação. E Sheila Moura Azevedo começou, então, a questionar-se: e se usasse as expressões nos apartamentos, para não causar estranheza? Podiam ser um cartão-de-visita para o turista que acaba por, de uma forma bem-humorada, viver dentro de portas uma experiência única do Porto e das suas gentes. “Se o espaço fosse requintado ou demasiado neutro, a surpresa dos hóspedes à chegada poderia ser nefasta para as pontuações nas plataformas de aluguer”, pensou. Solução? “Trazer o Porto verdadeiro, popular, das vendedeiras, dos frequentadores das tascas, dos misteres tradicionais, para dentro dos sete apartamentos”, recorda Sheila. Baptizou cada um dos apartamentos com uma expressão popular e decorou-os com objectos, frases nas paredes que tivessem tudo que ver com elas, como cestas, chapéus, pratos de barro, capelinhas, ou um estendal na recepção e as cabeceiras feitas de liteiras ou de vime natural. Sheila desenhou ainda cadeirões, cabeceiras, mesas de apoio. Com muita criatividade e humor, os mesmos trunfos que usou no projecto dos Genuine Oporto Apartments, outros quatro apartamentos para alojamento local, no Porto, também com divertidas frases inscritas nas paredes. Como “Ó freguês, oh p’ra estas pencas tão gordinhas e boas!”, “Ai que rica sardinha”, “Ó meu rico São João” e “das tripas coração”. Até porque, para Sheila, “o humor é fundamental em tudo na vida, e na decoração não seria diferente”. Qualquer ambiente, por mais elegante ou mais descontraído que seja, pode, então, ser pautado por elementos com algum humor mais subtil ou, como neste caso, mais evidente. Existe humor no design e na decoração em Portugal? Sim, respondem as designers de interiores. “É frequente vermos espaços com elementos humorísticos. Especialmente em hotelaria, restauração e comércio”, diz Sheila Moura Azevedo. Gracinha Viterbo acrescenta: “Somos um país com uma imensa herança artística e criativa. Cada vez mais se está a ganhar confiança em sair da caixa e ser original. ” Crê mesmo que Portugal está, “cada vez mais, na crista da onda do design internacional”. A este propósito, Guta Moura Guedes, da Experimenta Design, recorda à Culto quando a Experimenta Design criou a marca de design português Designwise. “Parte do briefing que entregámos aos designers apelava ao humor, algo que também guiava a escolha que fazíamos de peças já existentes no portfólio dos designers. ” E assim foi. Com as Juicy Boobs, dos Dasein, que eram um espremedor duplo, os lençóis Couple, de Isabel Machado e Filipe Pinto, que tinham imprimido uma fita métrica, para medir o espaço de cada um na cama. Guta Moura Guedes lembra ainda a colecção que a Experimenta Design criou para a Corticeira Amorim, Materia, que tem peças com sentido de humor. “Como o Pino, do designer Daniel Caramelo, que é um pequeno objecto de forma antropomórfica com um coração, onde se podem espetar alguns pioneses em locais estratégicos ou simbólicos, ao verdadeiro estilo vudu”. Ou o Furo, do designer Fernando Brízio, que é uma taça de cortiça assente em duas dezenas de lápis de cor. “Tem as extremidades afiadas viradas para fora, que podem servir para desenhar ou para riscar o móvel onde pousam”, descreve, entusiasmada. É importante haver humor no design? Para Guta Moura Guedes, “não é importante nem obrigatório, é puramente opcional. É um estilo, uma forma de encarar o design como outra qualquer”. Só que as peças bem-humoradas, divertidas, continua, “desanuviam-nos, alegram-nos, trazem-nos mais possibilidades e dinamismo do que outras mais ‘silenciosas’”. Para a curadora, “o humor desestabiliza, movimenta, e quando está presente no design pode ter uma enorme eficácia, pois aproxima-se das pessoas de um modo muito rápido e fica perto, no seu dia-a-dia”. Basta o nome da peça ou o texto que a acompanha. “Outras vezes é a combinação dos materiais, a inovação no modo construtivo”, realça. Porque, afinal, o humor é muito subjectivo e, como tal, sublinha, “nunca há garantia de que ele seja visto da mesma forma por todos”. Também há as cores mais bem-humoradas, as mais claras e brilhantes. “Mas não esquecer o preto e a importância milenar do humor negro. . . ”, conclui. Mas o humor está só na decoração de interiores? Então e no edifício propriamente dito quando construído, a sua arquitectura pode ter humor? Foi o que o arquitecto Francisco Rocha investigou para a sua tese de mestrado do curso de Arquitectura na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Quis saber se realmente havia humor na arquitectura, porque “normalmente [esta] não está associada a este estado de espírito”, elucida Francisco Rocha ao telefone a partir da Suíça, onde trabalha desde que terminou o curso. “São quase cinco séculos de história de arquitectura que apresentam traços de humor”, refere. Entre os muitos arquitectos que estudou, estão Álvaro Siza Vieira, por exemplo, que “recorre a elementos puramente arquitectónicos para pautar as suas obras de ‘travessuras’ delicadas. Portas, janelas, pilares, escadas são usados como veículo de emoções, por vezes inesperadas”. Ou Eduardo Souto de Moura, que, diz, “se deixa envolver por inspirações não exclusivas da arquitectura. E projectou uma casa invertida”. Depois de estudar 25 obras de arquitectura, o jovem concluiu que há humor na arquitectura. “Podem ser coisas discretas que as pessoas não vêem logo”, sublinha Francisco Rocha, que descobriu que o humor também pode ser mais uma ferramenta que o arquitecto tem na abordagem ao projecto, além, por exemplo, do programa, das necessidades do cliente, vistas, exposição e declive do terreno, entre outras. “Defendo que o sentido de humor, que é das coisas mais subjectivas que existem, pode contribuir para um projecto”, sublinha. Pode ter as suas funções de habitar com toda a segurança, mas pode perfeitamente ter algum sentido de humor mais ou menos visível a olho nu, porque ocorre durante o processo criativo ou de construção. Por vezes, pode também ser uma forma de resolver um problema ou obstáculo que surge durante o processo. Como aconteceu, por exemplo, ao seu orientador de tese, o arquitecto Manuel Graça Dias, que se riu bastante com o projecto do edifício Golfinho, de habitação e comércio, em Chaves. Decidiu-se pela forma de golfinho para contornar a questão do terreno onde iria ser edificado, numa curva junto a uma rotunda. “Criei, então, um edifício curvo, mas depois, num dos lados, passava um ribeiro, e fiz uma curva para dentro para fugir ao ribeiro. Depois parecia mesmo a cabeça de um golfinho”, graceja Graça Dias. “Na outra curva parecia o rabo deste animal. Isto foi uma maneira bem-disposta de resolver o problema. O cliente ficou tão entusiasmado”, recorda, por entre risos. As pessoas começaram a chamar-lhe o “edifício do golfinho”, e assim ficou. A dada altura da obra, continua, “ouvia-se dizer ‘já fizemos o rabo e a cabeça e já só faltam as duas postas do meio!’, e riam-se”. O que é isto senão sentido de humor? “Brinca-se na arquitectura, não no sentido de brincar com a vida das pessoas que vão para lá viver, mas pode-se, sim, dentro do processo criativo, ter boa disposição e até surgir alguma graça”, afirma. O importante, clarifica, “é não fazer da arquitectura um drama de uma seriedade absoluta”. Mas depende da maneira de ser de cada arquitecto, claro. Pode ser uma atitude durante o processo criativo, como, por exemplo, aconteceu no velho Teatro Luís de Camões, na Ajuda, em Lisboa, e que foi feito em co-autoria com o seu colega de gabinete, Egas José Vieira — os dois são autores do Pavilhão de Portugal na Expo de Sevilha. “Divertimo-nos imenso a fazer este projecto”, recorda. O objectivo era modernizar o edifício para conforto do público e de quem trabalha no teatro; e, ao mesmo tempo, preservar o clima naif de teatro do século XIX. “É um teatro pequeno e tentámos aumentar o espaço de recepção do público”, recorda. Para isso, foi posto um desenho clássico com cubos para criar uma ilusão óptica, “o que introduz uma nota de surpresa”. “Chegaram a perguntar-nos: ‘Então o sítio é pequeno e vocês fazem um desenho grande?’, e isso tem um certo humor”, continua. Uma característica que também se evidencia quando mantiveram as escadas antigas, que eram difíceis de subir, e por cima dessas colocaram umas mais cómodas. “Foi uma brincadeira que fizemos com a questão do património, a de manter a traça original do edificado, e depois fica o paradoxo entre o antigo e o moderno”, elucida. Os arquitectos também se decidiram pela pintura às riscas, de amarelo e preto, como se fossem fitas de aviso, em todas as passagens em que é preciso baixar a cabeça para passar. E são muitas. Posto isto, Graça Dias defende que “o humor é contrariarmos um pouco o senso comum, não deixar que as verdades absolutas sejam encaradas como tal”. Pode-se fazer uma obra com a máxima seriedade e depois no atelier haver momentos de bom humor, com uma frase que é dita ou uma situação que acontece. “Até sair do atelier, um projecto demora muito tempo e podemos ser surpreendidos com momentos de boa disposição em que um problema pode ser resolvido de uma forma divertida”, continua. “A arquitectura implica tantas considerações que, muitas vezes, é difícil concretizar. Há muita burocracia e por vezes obstáculos que é preciso relativizar que só mesmo com sentido de humor”, defende o arquitecto Alvarinho Siza Vieira, que com dez anos já desenhava com precisão. O filho do conceituado arquitecto Siza Vieira diz que “há momentos em que temos de ter uma atitude de sublimação e de graça”. Foi o que fez na Casa Fez, onde vive e cujo nome foi buscar à toponímia da rua onde se situa. E que se chama assim porque o arquitecto tudo fez, desde o projecto à gestão da obra. “O que, por si só, é irónico”, graceja. Siza Vieira desenhou os puxadores, as portas e os corrimãos do edifício. “Só poderia rir e responder com algum sentido de humor à complexidade de todos os obstáculos” que foram surgindo, durante o processo da construção da casa. E fê-lo “com simbologia, recorrendo à figura do arlequim através de uma abstracção geométrica”, elucida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “O arlequim é uma espécie de auto-retrato. ” Assim como o corpo humano tem cabeça, tronco e membros, também o edifício está organizado em casa, atelier e centro de arte. A casa é onde vive. Esta encaixa-se com o espaço do atelier e, por fim, a terceira área é a do Centro de Arte, que já tem uma associação por trás. “Há espólios da família, meus, da minha mãe e do meu pai”, explica. São documentos e obras de arte que podem ser apresentados ao público em exposições temporárias, mas também são organizadas visitas de estudo para estudantes, críticos e fotógrafos. Esta forma de o arquitecto reagir com humor vai, então, ao encontro da tese de Francisco Rocha de quem sim, há humor na arquitectura. E que é possível levar a boa disposição mesmo quando se trata de coisa séria.
REFERÊNCIAS:
Sabem aquela em que o Seinfeld e o Obama entram num Corvette de 1963 para irem beber café?
Na série Comedians in Cars Getting Coffee, Jerry Seinfeld e convidados dividem o protagonismo com carros da colecção do comediante ou escolhidos por ele. Os nossos holofotes recaem sobre algumas das peças de culto mais extraordinárias da série. (...)

Sabem aquela em que o Seinfeld e o Obama entram num Corvette de 1963 para irem beber café?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na série Comedians in Cars Getting Coffee, Jerry Seinfeld e convidados dividem o protagonismo com carros da colecção do comediante ou escolhidos por ele. Os nossos holofotes recaem sobre algumas das peças de culto mais extraordinárias da série.
TEXTO: Jerry Seinfeld poderia ter sido apenas mais um entre os milhares de humoristas que fazem stand-up nos clubes nova-iorquinos. No entanto, em 1989, a sitcom que adoptou o seu nome mudou o rumo da sua carreira, tornando-o uma das caras mais conhecidas do humor norte-americano — melhor: do acutilante humor tipicamente nova-iorquino. Seinfeld, onde assumia uma personagem que era uma versão de si próprio e que contava com as inesquecíveis prestações de Julia Louis-Dreyfus (a neurótica Elaine), Jason Alexander (o inseguro George) e Michael Richards (o extravagante Kramer), teve nove temporadas, ao longo das quais somou dezenas de prémios. Terminou em 1998 com o estatuto de série de culto, aclamada pela crítica e pelo público, mas o seu maior feito foi ter transformado Seinfeld numa espécie de marca e de o tornar uma cara familiar um pouco por todo o mundo. O que poucos fora do circuito televisivo saberiam na época sobre Jerry Seinfeld é que ele era também um apaixonado por automóveis, ao ponto de ter hoje uma das mais valiosas colecções dos Estados Unidos. Catorze anos depois do fim da sua série homónima, o humorista decidiu voltar à TV, unindo as suas duas paixões e juntando à receita uma pitada de um ingrediente recém-descoberto — “Nunca tinha bebido café durante toda a minha vida adulta até há uns anos”, confessaria já este ano à também humorista e apresentadora de televisão Ellen DeGeneres, uma das convidadas de Comedians in Cars Getting Coffee e que retribuiu a gentileza levando Seinfeld ao seu programa, visto diariamente por uma média de 3, 9 milhões de pessoas nos EUA. “Experimentei e pensei ‘eis uma bebida fantástica e que te põe tão conversador’, e daí pensei ‘porque não faço um programa com humoristas a beber café e a ficarem conversadores?’. ”Ideia tonta, diriam uns. Sim, talvez. Mas, atenção, estamos a falar de Seinfeld (2-em-1, entre o homem e a personagem). Portanto, qualquer ideia tonta é uma ideia com potencial, como saberá qualquer fã do actor e da série. Assim sendo, obviamente, esta ideia do comediante, enquanto bebia um dos primeiros cafés da sua vida, tinha tudo para ser um sucesso. Trouxe para o cenário automóveis, alguns de culto, e transformou o Comedians in Cars Getting Coffee num êxito com direito até a polémicas — arrancou na plataforma Crackle em 2012, uma concorrente da Netflix, amealhou prémios e, inesperadamente, migrou para a plataforma-mor do streaming de séries, a própria Netflix, no ano passado, mesmo a tempo da estreia da 10. ª temporada (cereja no topo do bolo: com um dos produtores iniciais a processar Jerry Seinfeld). São já dez anos de humor feito de duplas inesperadas e de automóveis de encher o olho, escolhidos pelo próprio Seinfeld de entre a sua colecção, ou emprestados por especial favor (já que se trata de peças históricas) sempre a pensar na personalidade do seu convidado. A estreia, a 19 de Julho de 2012, não poderia ter outro convidado: Larry David, o génio da comédia contemporânea que, em conjunto com Seinfeld, deu à luz o formato de sucesso dos anos 1990. O automóvel eleito encaixa na perfeição naquilo que Larry David procura num meio de transporte: “Gosto de carros que pareçam brinquedos”, confessa, enquanto se deixa conduzir pelas ruas de Los Angeles num Volkswagen Carocha “Split Window” de 1952, em azul-celeste brilhante. Com um motor de quatro cilindros e uma potência de 25cv, o Carocha pode muito bem entrar hoje na categoria dos brinquedos. Porém, o seu projecto não foi propriamente uma brincadeira: o veículo, concebido para ser acessível após a Segunda Guerra Mundial, apresentou-se logo com uma motorização tão competente quanto económica e com uma construção irrepreensível. As poupanças chegavam de formas engenhosas, como aquela que lhe dá o nome “Split Window” — o óculo traseiro apresenta-se dividido por, como Jerry explica, ter sido feito a partir de duas peças para que o fabricante conseguisse poupar dinheiro. O carro perfeito, confessa Seinfeld, para pessoas que, “como eu, vêem a verdadeira humildade no que não está lá”. Um detalhe de fazer girar cabeças: os piscas mecânicos inseridos nos pilares B, junto às portas, que denunciam que de humilde o carro tem pouco. Afinal, trata-se da versão mais equipada do modelo, a Export, com um valor estimado em torno dos 30 mil dólares (cerca de 26. 350 euros). Se Larry David inspirou Seinfeld a escolher um carro-brinquedo, Alec Baldwin levou-o a procurar um desportivo para “tipos que não querem ser incomodados”, talvez levado pela postura muitas vezes imperscrutável do actor que tem arrancado gargalhadas pelo mundo fora com as suas participações no Saturday Night Live, em que veste a pele do Presidente Donald Trump. O Mercedes-Benz 280 SL vermelho de 1970, especialmente cedido por um concessionário nova-iorquino de clássicos, é alimentado por um motor de seis cilindros em linha, com injecção multiponto, de 2, 8 litros, que, logo nos primeiros segundos do episódio, revela o seu génio pela sonoridade do arranque, tão suave quanto agressivo. A debitar 170cv às 5750 rpm, este roadster, de capota de lona preta, admite uma velocidade máxima de 200km/h. O 280 SL é a derradeira evolução do modelo apresentado em Genebra, em Março de 1963, e descrito pelo director técnico da empresa alemã, Fritz Nallinger, como “um carro desportivo muito seguro e rápido” capaz de proporcionar “um elevado grau de conforto em viagem”. Em 1967, a Mercedes-Benz conseguiu, por fim, o que tanto almejava, ao introduzir um motor maior e com mais potência, ajustando o binário máximo para os 244Nm. A informação sobre a colecção de automóveis de Jerry Seinfeld não é pública nem fácil de encontrar, mas, e ainda que no fim de cada programa haja agradecimentos a empresas específicas sobre o empréstimo dos veículos, há suspeitas de que a grande maioria seja propriedade da chancela Seinfeld. Uma coisa, porém, é certa: os Porsches lideram a valiosa lista e o humorista tem a maior colecção do emblema nos EUA. Por isso, não admira que surjam em quase todas as temporadas: entre oito modelos apresentados, escolhemos quatro carros “especiais” ou “perfeitos”. O primeiro foi um exemplar resgatado à propriedade da polícia holandesa — um Porsche 356 SC Cabriolet de 1966, ainda com o pirilampo azul bem visível e que instala a dúvida. “Por que razão é que a polícia holandesa de 1960 sentia que precisava de Porsches descapotáveis para fazer o seu trabalho?. . . ”, desabafa Jerry, ainda antes de receber o seu convidado: Barry Marder, comediante de stand-up e, sob o pseudónimo de Ted L. Nancy, autor da colecção de livros Cartas de Um Louco (em Portugal com edição Gradiva), cuja primeira edição contou com o prefácio assinado por Jerry Seinfeld. O 356 foi construído para ser leve, ágil, apresentando motor e tracção traseiros. Com apenas duas portas, poderia ser “servido” com coupé de tejadilho rígido ou com capota de lona. Em 1966, a Porsche já descontinuara a produção, substituindo este pelo icónico 911, mas uma encomenda especial da polícia holandesa — dez 356 cabriolets — levou a marca a criar uma série especial. Foi precisamente com o especialíssimo 911 Carrera RS que Seinfeld recebeu Seth Meyers, na época um dos argumentistas de Saturday Night Live e que hoje tem um programa em nome próprio: Late Night with Seth Meyers, ocupando o lugar de Jimmy Fallon, que, por sua vez, se senta agora na cadeira que pertenceu durante anos a Jay Leno em The Tonight Show. “Há qualquer coisa neste carro que o torna perfeito”, desabafa Jerry, que não esconde o carinho extra pelo automóvel que estreou a produção em massa de um carro de corridas. “É o carro de um tipo morto; comprei-o a um tipo que morreu e não vai voltar a ser vendido enquanto eu não morrer; este carro não muda de mãos sem que alguém morra. ”Se este era um Porsche especialíssimo, o que se seguiu não lhe ficava atrás: na terceira temporada, Seinfeld convidou o conceituado apresentador televisivo Jay Leno para dar uma volta no seu 356/2 de 1949, originalmente produzido pela austríaca Porsche Konstruktionen GmbH e construído à mão numa serraria em Gmünd. A maioria das peças tinha origem Volkswagen, mas a carroçaria ganhou uma aerodinâmica pouco comum para a época, tanto pela forma como pelos detalhes, como os puxadores que surgiam recolhidos no interior das portas. O emblema regressaria na quinta temporada, logo no episódio de estreia, com um 718 RSK Spyder de 1959, para receber o humorista e actor Kevin Hart, conhecido entre nós pela sua participação em filmes como Polícia em Apuros (2014) e Central de Inteligência (2016). O RSK Spyder não é, como o comediante explica, automóvel para o dia-a-dia. É um carro de corridas e uma espécie de experiência da Porsche que pretendia provar que os pequenos motores (1, 5 litros com 150cv) em pequenos carros (apenas 562 quilos) também podiam ser rápidos nas pistas. Para Seinfeld, o propósito pode ser muito mais básico: “Se se quer dar uma volta de carro apenas pelo prazer da condução, acho que este é o melhor carro que existe para o efeito. ”Enquanto os Porsches apresentados por Jerry Seinfeld se destacam pela potência, há outros carros que se tornam vibrantes pela falta dela. É o caso do incontornável 2CV, de 1950, com motor boxer de dois cilindros, refrigerado a ar, com uns incríveis nove cavalos de potência, que compensa com uns parcos 500 quilos que se tornam fáceis de empurrar, como o comediante exemplifica no episódio em que recebe Gad Elmaleh, o comediante e actor francês de origem marroquina que dobrou a voz de Seinfeld no filme A História de Uma Abelha (2007). Desenhado para conseguir transportar em segurança cestas de ovos pelas irregulares estradas francesas em meados do século passado, o 2CV, diz Jerry Seinfeld, agrada “por ser tão francês”. Gad Elmaleh confirma que esta terá sido uma boa escolha: “Há tantos filmes antigos franceses com este carro; em todos os filmes franceses, as freiras conduzem isto. ”Talvez não pegue à primeira — e até a porta traseira se abra sozinha em andamento —, mas o 2CV, apresentado ao mundo no Salão de Paris de 1948, tornou-se extremamente popular na Europa pela sua racionalidade, tendo atingido um número de exemplares produzidos impressionante: mais de 3, 8 milhões de unidades, entre 1948 e 1990, altura em que a sua produção já estava restringida à fábrica de Mangualde. A Citroën regressou já este ano, com um SM de 1973. O coupé de elevada performance, nascido de uma parceria com a Maserati e premiado nos EUA (onde o 2CV não conquistou grande consideração), serviu de cenário para o encontro com Dave Chappelle, actor de stand-up, que também tem o seu próprio espaço na rede Netflix. Em oposição às linhas fluidas francesas, Jerry Seinfeld levou ao seu programa vários exemplares germânicos de traços mais contidos. Caso do BMW 2002tii (o 2000 reflecte a cilindrada do carro; o dígito 2, o número de portas), modelo que conseguiu abrir as portas do mercado norte-americano à marca bávara, tão importante para a sua sobrevivência. Apresentado como um dos seus carros favoritos do início dos anos de 1970, o BMW 2002 é descrito como um automóvel “divertido, desportivo, lógico”, tal como a sua convidada: a comediante Kathleen Madigan, que traz consigo o amigo Chuck Martin. Outra estrela da companhia foi o BMW 507 de 1957, um dos modelos mais icónicos de Munique, que actualmente atinge números surpreendentes em leilões que podem atingir os dois milhões de euros. Na realidade, o automóvel, que foi dos objectos mais bem conseguidos, com uma qualidade surpreendente até ao mais ínfimo detalhe, revelou-se um fracasso: foram produzidas apenas 252 unidades, uma vez que a empresa alemã depressa percebeu que não havia forma de ter lucro com este excepcional veículo. A excepcionalidade encaixava na perfeição com o seu convidado: o oscarizado actor alemão Christoph Waltz, de Sacanas sem Lei (2009) ou Django Libertado (2012). Já da Suécia, o Volvo 1800S de 1967, com motor de quatro cilindros e 115cv, foi apresentado como um automóvel para “durar para sempre”, assim como o humor da convidada: Tina Fey, estrela do Saturday Night Live e da sitcom Rockefeller 30. Num programa americano, com personalidades americanas, não poderiam faltar carros associados à cultura americana, e alguns destes habitam o imaginário também dos europeus. Caso do espectacular DeLorean DMC-12, que levou os actores Christopher Lloyd e Michael J. Fox em viagens no tempo, e Seinfeld a convidar o actor Patton Oswalt, com quem contracenou na sitcom Seinfeld, para um café. O automóvel, ainda que inicialmente construído em Belfast (Irlanda), só foi possível com o financiamento de capitais americanos. O sucesso comercial não foi animador — e o facto de deixar a dupla apeada pode explicar o fracasso —, mas o veículo mantém até hoje um carisma muito particular. “Ideal para alguém se fazer notar. ”Outra máquina que faz sonhar o Velho Continente é o Mustang, cuja comercialização deste lado do Atlântico arrancou já neste milénio. Contudo, os Mustang destacados por Seinfeld estão longe dos automóveis que hoje se passeiam, inclusive, por estradas nacionais. Por exemplo, com o actor e produtor Bill Burr, criador da sitcom animada F Is for Family na Netflix, Jerry tirou da garagem um Boss 302 de 1970: uma sinfonia de potência apoiada num bloco V8 a debitar 290cv. O modelo acelerava dos 0 aos 100km/h em 6, 9 segundos, o que, para 1970, eram valores de respeito. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O Corvette Sting Ray de 1963 não é um carro americano qualquer: é, segundo Seinfeld, o carro “mais fixe” que a indústria americana já produziu. Em azul-prateado com um interior azul e “uma espécie de forro escuro e arroxeado”, vive de um motor V8 de 5, 4 litros a debitar 250cv (com variantes que podiam ir até aos 360 cv). Jerry Seinfeld escolheu-o para um episódio com um convidado especial, que, não sendo comediante, “já disse um número suficiente de frases hilariantes para estar habilitado a participar neste programa”: Barack Obama, que na altura (Dezembro de 2015) ocupava a Casa Branca. Mas ir beber café com o então Presidente neste carro estava fora de questão, e entra em cena o automóvel presidencial: “A Besta”, um Cadillac assente numa estrutura de um tanque militar, com alguns equipamentos especiais, como bancos aquecidos e contacto directo com submarinos nucleares. Depois de uma conversa tão animada quanto séria, regada por um café de saco feito pelos próprios, ainda voltam a tentar sair do perímetro da Casa Branca com o Presidente ao volante do Corvette Sting Ray — mas nada feito. É que no programa, como actualmente nos automóveis, o divertimento é essencial, mas a segurança está em primeiro lugar.
REFERÊNCIAS: