O almanaque que prevê o tempo há 85 anos
Falar do Borda d’Água é falar da tradição e do mundo rural, mas também das hortas de varanda nas cidades e dos jovens agricultores que hoje o compram. (...)

O almanaque que prevê o tempo há 85 anos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Falar do Borda d’Água é falar da tradição e do mundo rural, mas também das hortas de varanda nas cidades e dos jovens agricultores que hoje o compram.
TEXTO: Publicado desde 1929, o almanaque ainda é impresso numa tipografia tradicional na Rua da Alegria, em Lisboa. Chegou a vender 350 mil exemplares num ano, agora ainda vende 280 mil. Falar do Borda d’Água é falar da tradição e do mundo rural, mas também das hortas de varanda nas cidades e dos jovens agricultores que hoje o compram. Oitenta e cinco anos depois, a estrutura dos conteúdos é a mesma e uma versão digital está fora de causa. É entre o movimento das pessoas que sobem e descem a Rua Garrett, em Lisboa, que o senhor Pires, como é conhecido, vende o Borda d’Água. De vez em quando, sobe até ao Bairro Alto, à livraria da Editorial Minerva, responsável pela publicação do almanaque, e compra no máximo 15 exemplares, “para não andar muito carregado”. Cada um custa-lhe um euro e é vendido por dois. “A reforma é pouca. Vender uns quatro ou cinco dá pelo menos para uma refeição. ”Alberto Pires tem 77 anos, é reformado e começou a vender o almanaque em 1996 por sugestão de um amigo. Passou a ser a rotina de todos os dias de manhã, excepto ao domingo. “É preciso ter uma grande força de vontade e persistência”, diz. De vez em quando, troca a Rua Garrett pela estação do Rossio. “Às vezes, estou no Chiado três, quatro dias, não vendo nada e então tenho de descer. ” Melhor do que ninguém, conhece quem compra o almanaque e sabe que a agricultura é o que mais interessa aos leitores, embora as tabelas das marés também tenham interesse para os pescadores. “Os compradores são diversos. Lá em baixo, na estação do Rossio, é gente mais ligada à agricultura. Aqui no Chiado é um ambiente mais seleccionado. Pela aparência, são pessoas abastadas. Há também gente nova, tanto do sexo feminino, como masculino. Mas as pessoas andam sem dinheiro, passam com uma indiferença formidável, não olham para as montras nem nada. ”O senhor Pires é um dos dois únicos vendedores de rua na zona de Lisboa que Narcisa Fernandes, sócia-gerente da Editorial Minerva, conhece. O outro vendedor, conta, é um senhor “com a idade do Borda d’Água” que por vezes vende dentro do comboio na linha de Cascais. Muitas outras pessoas vendem o almanaque nas ruas, pelo país fora, até nos semáforos, mas praticamente todas representam o que se transformou no maior problema da editora nos últimos anos: a falsificação do Borda d’Água. “Em média, são uns 70 mil que eu estou a perder por ano, sobretudo de há quatro anos para cá, por causa da venda dos falsos. ” Não fossem os almanaques falsos vendidos, Narcisa Fernandes acredita que voltaria ao seu topo de vendas: 350 mil exemplares em 2006. “Durante uns anos seguidos, por volta de 1970 e 1980, vendíamos uns 150 mil ou 200 mil. Quando começou a subir, fiquei satisfeita. ”O Borda d’Água continua a ter algumas marcas da sua identidade. É impresso numa tipografia tradicional que conserva as mesmas máquinas e o mesmo espaço (na Rua da Alegria) desde o início da década de 1930 — o primeiro espaço da editora no Bairro Alto mantém-se mas a funcionar como livraria. Há também 85 anos que na primeira página aparece o “senhor da meteorologia”, um boneco vestido de fraque, com uma cartola na cabeça, um jornal e um guarda-chuva debaixo do braço. Aparece também a ferradura vermelha, com o “M” de Minerva, por cima da cartola e que serve para dar sorte para o ano. As páginas ainda vêm coladas em cima e de lado: a impressão é feita em folhas grandes, que são depois dobradas nas máquinas antigas. Essa foi, aliás, uma das formas de distinguir os almanaques originais dos falsificados que, por serem fotocopiados, vinham já com as folhas abertas. “Durante um tempo, os falsos eram vendidos com a ferradura preta e por aí dava para perceber. Depois passaram a fazê-los também com a ferradura vermelha”, explica a responsável da editora. Dentro das 24 páginas que o compõem, estão as “indicações das fases da lua, do calendário, das festas religiosas, dos feriados nacionais, as indicações para a agricultura, a entrada da lua nos signos do zodíaco, a astrologia, os eclipses, as feiras e mercados, as tabelas das enchentes e vazantes das marés, o início das estações e tantas outras contribuições de utilidade diária”. É com esta descrição dos conteúdos que arranca o almanaque de 2014. Publicado anualmente, há uma página dedicada a cada um dos 12 meses do ano onde é feita uma série de sugestões relativas à agricultura, à jardinagem e à criação de animais. Para Janeiro de 2014, por exemplo, o almanaque aconselha a semear alface romana, couve-repolho e rabanete. Nos jardins, aconselha a semear begónias, girassóis ou lírios e a colher violetas, amores-perfeitos ou camélias. Os conteúdos de cada almanaque começam a ser preparados em Janeiro ou Fevereiro do ano anterior. Célia Cadete, directora do Borda d’Água há cinco anos, que também é professora de Filosofia e Psicologia no ensino secundário, é a única responsável pela produção dos conteúdos. Começa por recolher os dados sobre a meteorologia e as luas junto do Observatório Astronómico de Lisboa. Depois conjuga essa informação com sugestões que ouve e recolhe dos leitores. Ao longo do ano, vai compilando a informação que recebe através de emails, telefonemas ou cartas. Chegam-lhe pequenos papéis dos leitores com dicas ligadas à agricultura, com provérbios ou com informação sobre uma feira que não apareceu no almanaque do ano anterior. Célia Cadete conta ter um dia recebido um telefonema para saber se um diospireiro devia ser podado. “Quando não sei na altura, pergunto a algumas pessoas, tanto a alguém de Agronomia como a mais idosos que estejam ligados à agricultura. Depois, volto a contactar a pessoa e transmito o que me disseram. ” E as sugestões são úteis para quem procura a melhor altura para as suas plantações ou se lança em novas experiências. “Recebo dicas como ‘não se deve semear feijão nas duas primeiras semanas de Julho porque ganha ferrugem [doença causada por um fungo]’. ”A maior parte das cartas são escritas à mão e vêm de aldeias de todo o país. “Penso que o Borda d’Água é interessante nesse sentido. Tentamos receber informação e passá-la no ano seguinte às pessoas. É uma forma de o tornar dinâmico”, acrescenta. Célia Cadete diz também incluir outras histórias que ouvia os avós contarem. “Por exemplo, quando o lodo vem acima nos lagos, é sinal de que o tempo vai mudar para chuva ou trovoada. Ou quando há formigas a aparecer em casa é sinal de que vai chover. Os meus avós iam contando essas pequenas histórias que dão para identificar algumas coisas. ”Consultar as luasIlídio Carreira procura sobretudo as referências às luas. Há 19 anos que trabalha nas sementeiras da família e assegura, juntamente com o irmão, a produção anual de 600 toneladas de nabo e 200 toneladas de beterraba. Semeiam 40 hectares de terreno por ano e vendem para todo o país. “Começámos em Ribeiradas [no concelho de Sobral de Monte Agraço], onde tínhamos um barracão. ” Ilídio conta que tudo “foi crescendo naturalmente” e o dinheiro que ganharam permitiu-lhes mudar para os terrenos onde estão hoje, perto da mesma localidade. Dificilmente se vê o limite das terras que agora lhes pertencem, compradas pouco a pouco aos filhos dos vizinhos que foram morrendo. “A malta da minha idade não liga muito a isto”, explica. Há um ponto em particular de que se orgulha. “Um dos nossos sucessos foi fazer tudo com o nosso dinheiro. Nunca pedimos à banca. ”Ilídio tem 38 anos e quatro filhos. Habituado ao campo, não hesita em lembrar o quão duro o trabalho pode ser. Os nabais a perder de vista são interrompidos pelas enormes torres eólicas instaladas nos terrenos devido ao muito vento que por ali passa. Ilídio diz que é pela liberdade que gosta tanto daquilo que faz. Mas nunca ganharam tão pouco como agora. “É por causa das margens: há mais concorrência e anda tudo espremido. Quem paga é o produtor. ” Ter de reagir à concorrência obriga a que sejam encontrados alguns truques para que as colheitas sejam feitas nas alturas certas, com mais qualidade e sobretudo nas épocas em que outros produtores não conseguem garantir tanto produto. É por isso que, para Ilídio Carreira, as fases da lua, sobretudo o quarto minguante, são tão importantes. “Antes, todos os velhotes ligavam ao minguante. Por exemplo, se a cebola for semeada no crescente apodrece”, diz. Há cerca de quatro anos, começou a comprar o Borda d’Água, onde assinala com círculos os dias em que deve semear. “É um dos meus empregados, o senhor Guilherme, que o compra todos os anos na Feira de São Martinho, no Sobral de Monte Agraço. ”Para além das luas, Ilídio pouco mais consulta. “O almanaque também fala na diária do tempo, mas isso não bate assim tão certo. ” Para alguns dias do ano, tendo em conta as mudanças da lua, o Borda d’Água aponta as suas previsões do estado do tempo: desde “vento e trovoadas” ou “nuvens e chuva”, a tempo “fresco”, “variado”, “húmido” ou “brusco”. Para a próxima quarta-feira, dia 8 de Janeiro, por exemplo, o almanaque prevê “tempo revolto”. Quanto à veracidade dessas previsões do tempo, Célia Cadete é clara. “Nós nunca erramos, as nossas previsões são sempre magníficas, por isso é que são previsões”, ironiza. “Mas habitualmente dão certo. Uma pessoa perguntava-me ontem: ‘Mas como é que tem a certeza que dá certo?’ E eu disse-lhe: ‘Dá certo, mas às vezes depende do sítio onde está’. ”Narcisa Fernandes responde de forma semelhante. “Um dia ligaram-me porque o Borda d’Água dizia que ia chover e não estava a chover. Perguntei onde é que a senhora estava e disse-me que estava em Coimbra. Respondi-lhe: ‘Sabe, o Borda d’Água é feito para o continente e para as ilhas, e pode muito bem estar a chover nos Açores’. ” A sócia-gerente da Editorial Minerva conta ainda que em 2013 teve um engano no almanaque. “Repetimos um mesmo mês. Nem sabe os telefonemas e as devoluções que tive. As pessoas ligavam chateadas porque tinham ido fazer as suas plantações, tinham gasto dinheiro e agora quem é que o pagava? Já tinham saído uns 100 mil exemplares assim. ” É essa a primeira tiragem do Borda d’Água no mês de Julho: 100 mil exemplares, que ficam prontos em 15 dias e que são todos vendidos até ao fim do mês. Mantendo a tradição, os almanaques são empilhados em pequenos montes, com uma folha por cima e uma por baixo, atados com uma fita de plástico e enviados para os vários clientes pelo país fora que depois o vendem em tabacarias, papelarias, supermercados, feiras e, até mesmo, garante Narcisa Fernandes, farmácias. Logo a seguir à primeira tiragem, há outra de 100 mil exemplares. Todos os anos, a editora encomenda 600 resmas de papel reciclado, com 500 folhas cada. Criado em 1929 por Manuel Rodrigues, que fundou a Editorial Minerva dois anos antes, o Borda d’Água começou por ser apenas uma folha. Chamavam-lhe “a folhinha”, e assim foi conhecido durante algum tempo. Nessa altura, os livros da editora consistiam também em “folhinhas”, distribuídas porta a porta. “Entregavam a folha de um romance para ver se a pessoa gostava”, conta a responsável pela editora. Se gostasse, entregava-se outra, que então já teria um custo. O fundador do almanaque foi também o primeiro director e responsável pelos conteúdos. Mais tarde, em 1948, entrou Artur Campos, a pessoa que mais marcou a história do Borda d’Água, segundo a editora. “Vivia no Bairro Alto, num quarto andar, em frente à livraria da editora. Só tinha a quarta classe. Ia para a janela e fazia uma multiplicação, a partir da lua e das estrelas, e assim previa o tempo, mas nunca contou exactamente como fazia. ” Foi director durante 40 anos, até 1988. E foi também durante esse período que ocorreu o momento mais significativo para a editora e para o destino do Borda d’Água. É preciso dar um passo atrás para o perceber. Narcisa Fernandes começou a trabalhar na Minerva com 13 anos, através da mãe, também funcionária da editora. A sua função era carimbar à mão a ferradura vermelha, na capa do almanaque, que tinha sempre de acertar em cima da cartola do boneco. Nove horas por dia, seis dias por semana, durante seis anos. Cresceu na editora, foi este o único trabalho que teve. Logo após o 25 de Abril, os patrões desistiram da editora e os funcionários chegaram-se à frente. “Foi quando entrámos em acordo e criámos uma cooperativa para pagar as dívidas que existiam. Foi uma luta. Não tínhamos o objectivo de sermos ricos. Só queríamos que a editora vivesse. São as nossas vidas que estão aqui dentro. ”O valor do papelA estrutura dos conteúdos foi sempre a mesma ao longo do tempo. “Mesmo durante o Estado Novo, o almanaque nunca fugiu à regra. Antes do 25 de Abril, não havia o juízo do ano na última página, havia apenas uma canção. Em 1975 é que começou a haver esse texto, onde fazemos a previsão do ano seguinte, porque já se podia falar no que nos apetecesse. Mas, de resto, não havia problema, o Borda d’Água não tinha nada de mal. Só falávamos no tempo, nas hortas, nas luas. ”Depois de Artur Campos, houve mais dois directores, até que, em 2008, Narcisa Fernandes quis pôr, pela primeira vez, uma mulher à frente do almanaque e escolheu a actual directora. Mais recentemente, questionaram-se sobre a evolução para uma edição digital ou para a disponibilização dos conteúdos online, mas Narcisa Fernandes é clara. “Já tentámos, mas não. Sinceramente, isto é uma coisa tão pequenina que não faz sentido”, aponta, acrescentando que isso provocaria uma queda nas vendas. Quanto aos dois euros que hoje custa o Borda d’Água, a editora diz que equivale “a uma bica e um bolo”. Há quem sublinhe a utilidade que o Borda d’Água, em papel, pode ter. Cristina Santos Silva quis fazer algumas experiências de plantações pequenas nos terrenos que tem à volta de casa, numa aldeia junto do rio, perto da Lousã, onde passa os fins-de-semana e as férias com os filhos e o marido. Aos 43 anos, começou por plantar flores, como begónias, dálias e amores-perfeitos. “Fui fazendo essas experiências, mas morria tudo. Há uns quatro ou cinco anos, a minha sogra perguntou-me: ‘Por que é que não compra o Borda d’Água’?”Um tempo depois quis plantar “alguma coisa” com os filhos e disseram-lhe que o mais fácil era cenouras. “Vi no almanaque quando devíamos plantar e, de facto, quando fomos ver, havia umas cenourinhas que apanhámos e cozemos. Sei que está tudo na Internet, mas lá não temos Internet, portanto em papel dá-me imenso jeito. ”Cristina é funcionária pública, formada em Sociologia e a trabalhar em Lisboa, mas confessa imaginar-se a dedicar-se à agricultura. “Para mim, o meio urbano já se esgotou um bocadinho. Sinto-me num compasso de espera. Neste momento, a saída era para o mundo rural. Acho que o futuro vai ser por aí. ” Para além das cenouras, decidiu plantar ervas aromáticas na varanda da casa em Lisboa. “Comprei um kit de ervas aromáticas e perguntei-me: ‘E agora quando é que planto isto?’ Consultei o Borda d’Água, plantei e já cresceram. Tenho orégãos, cidreira, salsa e manjericão. ”Seja em centros urbanos ou zonas rurais, mais de oito décadas depois de o almanaque ter saído pela primeira vez, continuam a existir leitores, sejam eles mais novos ou mais velhos. Célia Cadete acredita que a tradição de comprar o Borda d’Água se vai mantendo de geração para geração. E os pedidos de encomendas continuam a acontecer. Como quando receberam uma encomenda de 10 mil exemplares, após o deputado comunista Bruno Dias ter levado o Borda d’Água para uma comissão parlamentar de Economia, em Junho de 2013, com o ministro então responsável pela pasta, Álvaro Santos Pereira. O deputado considerou o almanaque como um “elemento central da estratégia do Governo”, numa referência às declarações do ministro das Finanças, Vítor Gaspar, que considerara “as condições meteorológicas” como uma causa do baixo investimento no primeiro trimestre do ano. “Tive de fazer 10 mil exemplares de 2013, mesmo que na altura já tivéssemos o de 2014. Depois perguntei à pessoa que os encomendou e confirmou-me que os tinha vendido todos”, conta Narcisa Fernandes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O mesmo Borda d’Água que há 60 anos custava dois escudos hoje sustenta uma grande parte da Editorial Minerva, refere a editora. “É um balão que nos ajuda a sobreviver. ” O senhor Pires não tem dúvidas, no entanto, de que já vendeu mais do que hoje em dia. Dezembro e Janeiro continua a ser a melhor época, mas há dias difíceis. “Agora está muito mau, as pessoas não têm dinheiro. Às vezes, até falo sozinho, não são coisas disparatadas, sei o que estou a dizer, mas é só para me distrair. ” Quanto ao futuro do almanaque, receia que a crise venha a ter um impacto maior nas vendas. Para 2014 o Borda d’Água aponta: “Inverno áspero mas pouco frio, a Primavera será húmida, o Verão quente e o Outono temperado. ” Os que nascerem neste ano “serão de estatura mediana com olhos pequenos e atractivos, testa larga e alta, mãos esbeltas e dedos compridos”. E deixa um conselho: “Os escritores que aproveitem e desenvolvam as suas inspirações; os músicos que componham; os pintores que encham as telas de cores e de emoções; os actores que interpretem os textos intemporais e os escultores que procurem dominar a pedra ou o metal com a sua criatividade. ” O objectivo, como lembra Célia Cadete, é o mesmo: “Manter e não deixar esquecer a tradição. ”PUB
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave campo mulher ajuda doença sexo
Microplásticos detectados nas fezes de indivíduos de oito países
Investigadores apresentaram os resultados de um estudo exploratório inédito que, pela primeira vez, quantifica e caracteriza microplásticos encontrados em fezes humanas. Foram identificados até nove tipos de diferentes plásticos e a média foi de 20 partículas em cada dez gramas de fezes. (...)

Microplásticos detectados nas fezes de indivíduos de oito países
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Investigadores apresentaram os resultados de um estudo exploratório inédito que, pela primeira vez, quantifica e caracteriza microplásticos encontrados em fezes humanas. Foram identificados até nove tipos de diferentes plásticos e a média foi de 20 partículas em cada dez gramas de fezes.
TEXTO: Uma equipa de investigadores monitorizou um restrito grupo de pessoas de várias partes do mundo e encontrou microplásticos em todas as análises de fezes realizadas. Trata-se de um estudo exploratório que envolveu apenas oito participantes de oito países (Finlândia, Itália, Japão, Holanda, Polónia, Rússia, Reino Unido e Áustria), mas, apesar da reduzida amostra, os cientistas defendem que não se pode ignorar o facto de todos os testes realizados terem sido positivos e confirmada a presença de até nove tipos de microplásticos. O estudo foi apresentado no maior congresso europeu de gastroenterologia, que decorre até esta quarta-feira em Viena, na Áustria. “Os seres humanos são expostos aos plásticos de várias maneiras. Mas, pessoalmente, não esperava que todas as amostras testadas dessem um resultado positivo”, refere Philipp Schwabl, investigador da Unidade de Gastroenterologia e Hematologia na Universidade Médica de Viena e autor do estudo exploratório. O trabalho envolveu a análise às fezes de um pequeno grupo de oito pessoas mas, ainda assim, os resultados deixam espaço para grandes preocupações. O projecto, realizado com especialistas da Agência Ambiental da Áustria, concluiu que a quantidade média de microplásticos (pequenas partículas com menos de cinco milímetros) encontrada nos participantes era de 20 partículas por dez gramas de fezes. Os oito indivíduos mantiveram um diário alimentar na semana que antecedeu a recolha de amostras e este registo mostra que todos foram expostos a plásticos consumindo alimentos embrulhados em plástico ou beberam líquidos de garrafas plásticas. Nenhum dos participantes era vegetariano e seis consumiram peixe do mar. “Os critérios de exclusão foram casos de doença gastrintestinal, tratamento odontológico recente, dietas médicas, abuso de álcool e ingestão de drogas que afectam a frequência, consistência ou reabsorção das fezes”, refere ainda o artigo. A análise dos dados consistiu na triagem de 11 tipos de plásticos. “A triagem analítica identificou plásticos de poliestireno e poliuretano em duas de cinco amostras, enquanto nas restantes amostras ainda não foram obtidos resultados definitivos devido ao alto conteúdo residual de celulose e gordura mascarando a presença de microplástico. ” Conclusão: “O aumento da poluição plástica pode causar contaminação plástica dos alimentos, que podem afectar o trato gastrointestinal. Pela primeira vez foi detectada a presença de micropartículas de poliestireno e poliuretano em amostras de fezes humanas”. Sobre as origens do plástico que estamos a ingerir há, pelo menos, fortes suspeitas. “Os plásticos são consumidos por animais marinhos e entram na cadeia alimentar onde, em última instância, são consumidos pelos seres humanos. Além disso, é altamente provável que, durante várias etapas do processamento de alimentos, ou como resultado da embalagem, os alimentos estejam contaminados com plásticos”, refere Philipp Schwabl. Neste estudo, adianta, todos as amostras doss participantes tinham partículas de polipropileno e polietileno tereftalato, que são os principais componentes de garrafas de plástico. Mas, frisa, qualquer conclusão definitiva baseada apenas nestes dados será precipitada. “Este é o primeiro estudo deste tipo e confirma o que suspeitamos há muito tempo, que os plásticos acabam por chegar aos intestinos humanos. O mais preocupante é o que isso pode significar para nós, e especialmente para os pacientes com doenças gastrointestinais”, refere Philipp Schwabl num comunicado de imprensa. Sobre os eventuais danos na saúde há já pistas importantes de estudos realizados com outros animais. “As maiores concentrações de plástico em estudos com animais foram encontradas no intestino, as menores partículas de microplástico são capazes de entrar na corrente sanguínea, no sistema linfático e até chegar ao fígado. Aqui temos as primeiras provas de microplásticos em humanos, mas precisamos de mais investigação para entender o que isso significa para a saúde humana”, diz, adiantando que, também em estudos com animais, “foi demonstrado que os microplásticos podem causar danos intestinais, alteração das vilosidades intestinais, distúrbios na absorção de ferro e stresse hepático”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os plásticos estão por todo o lado. A olho nu temos as imagens chocantes de oceanos sufocados com este lixo a boiar na superfície das águas e a asfixiar animais e, a nível microscópico, também já foi possível encontrar microplásticos “escondidos” na nossa cadeia alimentar em produtos como o típico sal marinho que usamos para temperar ou no popular atum, camarão ou lagosta. Na apresentação feita no congresso europeu em Viena, Philipp Schwabl começou por exibir os gráficos com a produção mundial de plástico a crescer ano após ano. Em 1950 a produção mundial era de 1, 7 milhões de toneladas e em 2012 alcançava-se 288 milhões de toneladas, recordou. A este propósito a revista Science publicou recentemente uma análise global da produção de plásticos no mundo, desde o início do seu fabrico em massa nos anos 50, que concluía que já terão sido produzidos 8300 milhões de toneladas de plástico no planeta. Num esclarecimento posterior à sessão pública, Philipp Schwabl explica que o interesse por este tema surgiu quando, confrontado com esta realidade assustadora, procurou estudos sobre a presença de microplásticos nos humanos e não conseguiu encontrar “nenhum estudo que comprovasse essa hipótese”. Agora, é preciso saber mais. Fazer um estudo alargado a mais participantes de outros países com diferentes dietas e estilos de vida, incluindo outras fontes de contaminação como os cosméticos, para podermos encontrar as esperadas correlações entre os microplásticos e um prejuízo da saúde humana. E também responder a outras questões que ficam em aberto. Para que sejam detectadas 20 partículas de microplásticos em cada dez gramas de fezes, que quantidade estaremos de facto a ingerir? Quanto fica dentro do nosso organismo? E onde?
REFERÊNCIAS:
E se a tua lista de compras fosse livre de plástico?
A luta contra o plástico está na moda. Mas, em Portugal, é possível vencê-la? O P3 falou com quem o faz há anos, com quem começou agora e foi à procura das lojas que o tornam possível. (...)

E se a tua lista de compras fosse livre de plástico?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: A luta contra o plástico está na moda. Mas, em Portugal, é possível vencê-la? O P3 falou com quem o faz há anos, com quem começou agora e foi à procura das lojas que o tornam possível.
TEXTO: Pesar e comprar fruta e legumes sem sacos de plástico, comprar líquidos em embalagens de vidro, reutilizar esses frascos para comprar mercearia seca a granel e apostar nos produtos de higiene sólidos. Em Portugal, já é possível reduzir drasticamente o plástico na despensa lá de casa sem grande dificuldade. As lojas a granel continuam a nascer como cogumelos, os mercados e as feiras de frescos estão na moda e várias marcas portuguesas de higiene e cosmética oferecem uma panóplia de alternativas ecológicas online. Hoje, comprar sem plástico é mais uma questão de tempo e vontade do que de dinheiro. Neste mês, o Parlamento Europeu aprovou uma proposta que prevê a proibição da venda de alguns produtos de plástico de utilização única na União Europeia a partir de 2021. Mas, em Portugal, já há quem lhe feche as portas de casa há algum tempo. Corria o ano de 2016 quando Ana Milhazes começou a olhar para o lixo que produzia com mais atenção. “Era demasiado” — e isso começou a inquietá-la. Então, pesquisou soluções e deparou-se com o Zero Waste Home, o blogue da americana Bea Johnson, que pouco depois se transformou num best seller. Identificou-se com a apologia de um estilo de vida mais minimalista e começou “a seguir à risca” as dicas de Johnson. Mas não o quis fazer sozinha. Por isso, a portuense de 33 anos criou o grupo no Facebook Lixo Zero Portugal e começou a partilhar (e a receber) dicas de quem tinha o mesmo objectivo. Não tardou a mudar radicalmente os hábitos. Procurou as lojas tradicionais no Porto que vendiam a granel e passou a encomendar, como ainda hoje faz, um cabaz semanal de frutas e legumes a um casal de amigos agricultores (e produtores biológicos certificados), no Jardim Húmus. Foi também lá que começou a entregar o lixo que fazia — restos de comida, cascas e caroços —, aproveitado na horta para compostagem. Depois de criar o grupo no Facebook Lixo Zero Portugal, Ana Milhazes começou a apontar, numa folha de cálculo, os endereços das lojas a granel e o tipo de produtos que vendiam, para facilitar a vida a quem quisesse largar o plástico. Uma programadora que fazia parte do grupo pegou nessa informação e compilou-a no A Granel, um site que distribui todas as lojas a granel pelo mapa de Portugal e que está em permanente actualização — qualquer um pode acrescentar novas lojas. Rafaela Santos iniciou-se na luta contra o plástico mais recentemente, influenciada pelas notícias que lia. Segundo o Relatório do Estado do Ambiente, publicado pelo Portal do Estado do Ambiente, em 2017 cada português produziu 483 quilos de lixo, o que dá, em média, 1, 32 quilos de lixo por dia. “Esta questão é muito desvalorizada aqui, porque vivemos numa zona do mundo privilegiada e não vemos as consequências [do consumo de plástico]. O nosso mar está limpo, as nossas ruas estão limpas. Por isso, não queremos saber se no meio do Pacífico existem ilhas cobertas de lixo de plástico a poluir, a matar espécies”, argumenta. Meio ano depois de ter começado, a jovem de 21 anos que vive em Barcelos já conseguiu reduzir para mais de metade a quantidade de plástico que atira para o balde do lixo. “E sem mudar drasticamente os meus hábitos”, contou ao P3. Resumidamente, substituiu os supermercados pelas feiras e mercados locais e leva os sacos de pano e frascos de vidro para todo o lado. O que não arranja lá, compra online. Mas mesmo para quem faz compras nos supermercados convencionais, prescindir dos sacos e embalagens de plástico não tem de ser um bicho-de-sete-cabeças. Nos casos em que é possível pesar os alimentos na caixa, levar de casa um saco de pano ou rede para recolher as frutas e os legumes é uma opção viável. Quanto aos produtos de origem animal, também há solução, revela Ana Milhazes: “É possível levarmos as nossas caixas de vidro para o talho ou para a peixaria e pedir para trazer a carne ou o peixe nas nossas embalagens. O mesmo acontece com o queijo e fiambre. Pesam os produtos e depois colam a etiqueta com o preço na nossa caixa. ” A ambientalista portuense é vegetariana, mas conta que, no grupo do Facebook que criou, já há quem use esta técnica no dia-a-dia, apesar da pontual contrariedade dos funcionários. De referir que alguns supermercados, como o Jumbo e o Lidl, já vendem produtos avulso, mas continuam a impôr o uso de um saco de plástico para a pesagem. E é aí que as mais de 100 lojas a granel espalhadas pelo país se destacam. A Maria Granel foi a primeira zero waste store a nascer em Portugal. Abriu há dois anos, em Alvalade, Lisboa, e tal como o nome e o “título” indicam, tem como prioridade vender mercearia biológica a granel, tentando gerar o menor desperdício possível na cadeia comercial — quer seja no transporte dos produtos pelos fornecedores, quer seja na apresentação dos mesmos ao público. Por essa razão, incentivam os clientes a trazerem de casa os sacos de pano e frascos de vidro para se abastecerem com as sementes, cereais, frutos secos e leguminosas que estão armazenados em dispensadores individuais. Neste ano, nasceu uma nova loja em Campo de Ourique, com um piso totalmente dedicado à casa, com acessórios, detergentes e produtos de beleza a granel. Na área dedicada à casa de banho, encontram-se champôs, sabonetes e dentífricos sólidos (todos da marca portuguesa Organii Bio), mas também giletes, escovas de dentes e cotonetes em bambu, pensos higiénicos reutilizáveis e copos menstruais. Na área da cozinha, estão alguns dos produtos mais vendidos da loja, como o substituto da película de aderente — o Bee’s warp, feito em tecido de algodão biológico com cera de abelha que pode durar até um ano — e o saco de congelação reutilizável, feito de 100% silicone. Tudo isto pode também ser encontrado na loja online da marca, que já conta com 120 produtos. “Para a expedição, reutilizamos as caixas dos fornecedores e até a fita adesiva que usamos é de papel e sem solventes. Tudo é expedido sem plástico e em caixas que estão a ter uma segunda vida”, explica Eunice Maia, sócia-fundadora da Maria Granel. Sempre que precisam de comprar produtos embalados, Ana e Rafaela optam pelo cartão ou, se possível, pelo vidro — a melhor opção, visto que depois podem reutilizar os frascos para comprar granel ou até para armazenar comida no frigorífico. No entanto, a ambientalista portuense tem uma pequena lista de produtos com plástico de que ainda não se conseguiu livrar. Coisas simples como: a embalagem das lentes de contacto e a embalagem do líquido para as lentes; a ração do cão; e — por muito insólito que pareça — o arroz. No final de 2017, o Governo actualizou o decreto-lei que regula a comercialização da espécie de arroz mais comum — Oryza sativa L — e passou a proibir a venda a granel: “O arroz e a trinca de arroz destinados ao retalho são obrigatoriamente pré-embalados. ” Neste ano, a ASAE apreendeu 1200 euros de arroz, numa operação que visou a venda de alimentos a granel. Na altura, Carmen Lima, da Quercus, disse à Lusa que, quando se pretende reduzir o consumo de embalagens, principalmente de plástico, “a penalização da comercialização de produtos a granel levanta dúvidas”. Começar a beber água da torneira e optar pelas garrafas reutilizáveis pode ser um bom ponto de partida para reduzir o uso de plástico. E para quem tem dificuldades a habituar-se ao sabor da água da torneira, as barras de carvão activo, que se colocam directamente na água, podem ajudar. São baratas, duram até meio ano, e têm a função de reduzir o cloro, mineralizar a água e equilibrar o seu pH, tornando-a mais agradável. Depois, podem ainda ser reutilizadas para remover odores indesejáveis. Eunice, da Maria Granel, reforça a incoerência: “É uma situação caricata, porque o mesmo Governo que está a lutar contra o plástico e os descartáveis, em linha com a directiva europeia, impõe a pré-embalagem do arroz. ” E adianta que Portugal está “muito atrás” de países como Inglaterra e os Estados Unidos, onde até já é possível “vender azeite, vinagre, licor a granel”: “Não podemos continuar a reger-nos por uma legislação que se aplicava às antigas mercearias e à forma de exposição mais tradicional, distante da revolução que o granel está a sofrer em todo o mundo. ”A venda de farinhas de grãos ou cereais a granel também está interdita, por uma lei com 15 anos. A do café tem restrições bastante apertadas que, no entanto, a mercearia portuense Maçaroca conseguiu contornar. Para tal, compraram uma máquina para torrar e outra para moer os grãos. O tipo de café é escolhido pelo cliente e a moagem é feita na hora. E porque nem todos têm uma máquina de café tradicional em casa, a loja está, neste momento, a tentar arranjar cápsulas reutilizáveis, que podem ser enchidas com o café da Maçaroca. Mas a principal atracção da loja, que nasceu há menos de um ano em Ramalde, no Porto, é outra: tem uma máquina que faz manteiga de amendoim, de amêndoa ou de uma mistura de frutos secos na hora (1, 60 euros por cada 100 gramas) e sem qualquer aditivo. É só trazer um frasco de casa, carregar no botão e encher. De fora, a Maçaroca não aparenta a dimensão que tem. Habitualmente com várias bicicletas estacionadas à porta, a mercearia de produtos biológicos certificada vende 4000 artigos diferentes e 600 são a granel. À entrada, vemos logo uma montra recheada de fruta e legumes frescos. Lá atrás, depois de corredores recheados de produtos alimentares, de higiene e até de maquilhagem, esconde-se uma cafetaria vegan. O granel — de mercearia seca e detergentes — fica no piso de baixo. Com a abertura do espaço, os três fundadores queriam que as pessoas pudessem comprar tudo o que precisam para a despensa e restante casa sem terem de correr várias lojas diferentes, explica José Peixoto, sócio-gerente. A grande aposta foi na zona dos frescos, que “era feita muito a medo” nas lojas de produtos biológicos que José conhecia. Tal como a Maria Granel, tentam aproximar-se do desperdício zero — por exemplo, a loja oferece os frascos de vidro — já higienizados — dos produtos que utiliza na cafetaria para os clientes os reutilizarem na compra a granel. E, apesar de existirem vários embalados expostos na loja, José explicou ao P3 que está a ser feito um esforço para converter o que for possível em granel. Tanto Ana como Rafaela conseguiram eliminar praticamente todo o plástico das casas de banho, quer através de compras online, quer através de compras em lojas físicas. A Saponina, em Lisboa, oferece as duas opções. A marca vegan, biológica e zero waste foi a primeira em Portugal a ter uma linha de higiene completa em versão sólida (ou seja, sem qualquer embalagem), que incluía champô, dentífrico, desodorizante e sabonete (17, 40 euros). Hoje, também vende amaciador. A criadora é Liliana Dinis, que trabalha na área da cosmetologia há cerca de 20 anos e que tem marcas como a Clarins, a Shiseido ou a Carita no currículo. Começou a desenvolver produtos vegan e com ingredientes biológicos para tratar a pele atópica da filha, recusando as soluções químicas e corticóides que os dermatologistas lhe recomendavam e, no ano passado, em Agosto, fez disso profissão. O Instagram e o Facebook funcionam como montra do trabalho da Saponina e é através destas redes sociais, ou via e-mail, que os clientes fazem os pedidos ou pedem mais informações sobre os produtos — todos eles nascidos das mãos de Liliana. A maioria não necessita de embalagem. Mas aqueles que precisam (como bálsamos para bebé ou óleos corporais) estão guardados em pequenos frascos de vidro fechados por cortiça portuguesa. O desperdício zero é uma das prioridades, conta a fundadora da marca: “Todos os meus produtos têm apenas uma faixa de papel com a informação acerca dos ingredientes. Quando são enviados para fora, vão em pequenos pacotes de papel kraft e dentro de caixas de cartão que outras empresas iriam deitar fora. Quem me visita já traz os sacos de pano, os frascos de vidro e dispensa as embalagens. ” Apesar de trabalhar “com margens de lucro pequeninas”, Liliana diz que tem alcançado a meta do projecto — “produzir produtos com um preço justo e tornar o biológico e o zero waste acessíveis a qualquer pessoa”. Recentemente, a Renova também teve em conta a mesma preocupação e decidiu lançar uma linha de papel higiénico reciclado com um invólucro de papel, ao invés da habitual embalagem de plástico. Isto depois de Ana Milhazes e outros membros do grupo Lixo Zero terem enchido a caixa de correio da marca com pedidos. Ainda assim, adianta a jovem portuense, “não é uma alternativa viável economicamente”: o artigo já está disponível tanto na Maçaroca (quatro rolos a 1, 99 euros) como na Maria Granel. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ana admite que, por vezes, as alternativas ao plástico são mais caras. Mas nem por isso passou a gastar mais dinheiro nestes dois anos de experiência: “De uma forma geral, aquilo que notei com as mudanças que fiz é que poupo muito mais dinheiro porque reduzi muito o consumo. Uma pessoa começa a ver que não precisa de comprar mil e um produtos diferentes, porque a maior parte dos produtos têm mais do que uma função, como é o caso do óleo de côco, que uso para cozinhar e para hidratar a minha pele. ” A longo prazo, adiante a ambientalista, “também há uma redução nas despesas da saúde”, visto que, ao deixar o plástico, “somos quase obrigados a abandonar os processados” e a ter uma alimentação mais saudável. O discurso de Rafaela é consonante: diz que começou a comprar menos e melhor. Acrescenta ainda que não acha que estar longe de uma grande cidade seja um obstáculo. Pelo contrário: “Há mais mercados locais e feiras em que os plástico não engoliu os alimentos, como nas grandes superfícies, e também não sou bombardeada com uma variedade infinita de produtos muitas vezes, desnecessários. ” Largar o plástico “não é assim tão difícil”, comenta. Mas é preciso ter vontade para dar o primeiro passo.
REFERÊNCIAS:
Morreu Júlio Pomar, “uma figura mítica da arte portuguesa”
Desde muito cedo, com um grande empenho social e político, Júlio Pomar tornou-se uma figura fundamental da arte portuguesa. Morreu aos 92 anos. (...)

Morreu Júlio Pomar, “uma figura mítica da arte portuguesa”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Desde muito cedo, com um grande empenho social e político, Júlio Pomar tornou-se uma figura fundamental da arte portuguesa. Morreu aos 92 anos.
TEXTO: Contava 92 anos e até há bem pouco tempo era possível vê-lo de visita ao Atelier-Museu Júlio Pomar, perto da Calçada do Combro, que fica mesmo em frente da casa onde vivia. Aqui, desde 2013, abriu as portas a inúmeros diálogos entre a sua obra e artistas e curadores de diferentes gerações, em programações de grande qualidade que contribuíram para a divulgação do seu trabalho junto de autores mais jovens. Júlio Pomar morreu esta terça-feira no Hospital da Luz, em Lisboa, confirmou ao PÚBLICO Sara Antónia Matos, directora do atelier-museu. O velório realiza-se esta quarta-feira, a partir das 18h e até às 23h, no Teatro Thalia (Estrada das Laranjeiras em Lisboa). Quinta-feira, 24 de Maio, pelas 16h terão início as exéquias fúnebres, reservadas à família. “O Júlio Pomar foi um artista com uma enorme importância nas artes portuguesas do século XX, desde o início do seu percurso. Foi de uma enorme precocidade, pois o primeiro texto que escreveu, sobre a modernidade em Portugal, fê-lo quando tinha 16 anos. Foi o início de um percurso como pintor de um realismo empenhado socialmente, que foi o neo-realismo português”, disse ao PÚBLICO Delfim Sardo, responsável pela programação de artes plásticas da Culturgest. “Foi um pintor de enorme recursos técnicos e plásticos, sobretudo depois de se interessar por Velázquez e Francis Bacon, no início da década de 50. ”Além de destacar “o seu virtuosismo”, Delfim Sardo, que sublinha o privilégio de o ter conhecido, recorda “uma pessoa apaixonante, muito inteligente, culta e um sedutor”. “Uma figura mítica da arte portuguesa da segunda metade do século XX”, foi assim que João Ribas, director do Museu de Serralves, descreveu o artista. “Durante sete décadas teve um contributo fundamental no panorama artístico português, com a sua reinvenção não só técnica mas de estilo. Sempre fundamentado numa postura que reafirma a arte como uma forma de pensamento, de reflexão sobre a sociedade, e até como forma de protesto social e resistência. ” Com um domínio de vários géneros, entre os quais o retrato — Pomar pintou Mário Soares enquanto Presidente da República —, o artista trabalhou os grandes ícones da cultura portuguesa, como Fernando Pessoa. Os 92 anos do artista que pintou de todas as maneiras from Público on Vimeo. “É um dos mais importantes artistas do século XX português”, garante Raquel Henriques da Silva, historiadora de arte e directora do Museu do Neo-Realismo. “Ficava sempre zangado quando lhe punham a etiqueta de pintor neo-realista, porque não gostava que o fechassem numa gaveta e porque a sua pintura, na realidade, foi para muitas outras direcções. ”Se é verdade que chamou a si a tarefa de criar o neo-realismo na pintura, transpondo para as artes visuais um movimento que era essencialmente literário, também é verdade que essa ligação, que também não pode dissociar-se da sua escrita nem da sua “militância política empenhadíssima”, durou menos de dez anos, explica esta professora universitária. “Essa etiqueta corresponde ao Júlio Pomar dos 20 anos, ao Júlio que se transforma num teorizador do neo-realismo na pintura, ao Júlio que é preso como outros militantes do MUD Juvenil [Movimento de Unidade Democrática, de oposição à ditadura], perdida a esperança de que o regime acabasse. O Júlio que vai para Paris corta com o neo-realismo, embora continuasse a acreditar numa arte envolvida e partilhada. ”Para a historiadora de arte, há que salientar na obra de Pomar “o trabalho de desenho absolutamente extraordinário”, a série que faz nos anos 1960 e inícios dos 70 a partir de O Banho Turco, de Ingres, os objectos “muito criativos” da década de 70, e o ciclo dos 1980/90, em que recupera “uma certa retratística dos heróis” com Pessoa ou Camões, ciclo já referido pelo director do Museu de Serralves. A sua ligação aos jovens artistas não será alheia, sem dúvida, ao comprometimento político que marcou os primeiros anos da sua carreira e que é hoje também uma norma para boa parte dos criadores mais novos. Júlio Pomar entrou muito cedo, em 1934, para a António Arroio, onde foi colega de artistas como Marcelino Vespeira, Cesariny e Cruzeiro Seixas. Aqui preparou a sua admissão às Belas-Artes de Lisboa, em 1942, que viria a frequentar apenas durante dois anos. Alvo de discriminação, como todos os alunos oriundos da António Arroio, mudou-se para as Belas-Artes do Porto em 1944, onde conhece Fernando Lanhas, de quem foi amigo, e com quem participa nas Exposições Independentes que se realizavam naquela cidade nortenha. Um ano mais tarde realiza a primeira obra neo-realista, O Gadanheiro, que, com o Almoço do Trolha, é uma das mais conhecidas deste movimento em Portugal, que reuniu também os pintores Vespeira, Querubim Lapa, Alice Jorge e outros, numa procura da forma herdada do realismo oitocentista que exprimisse o viver e o quotidiano das classes mais desfavorecidas, teorizada em Portugal por pensadores como Mário Dionísio ou Ernesto de Sousa. Ao mesmo tempo, Pomar integrava o Partido Comunista e o MUD Juvenil (que lhe valeria uns meses na prisão), e a partir de 1956 foi um dos organizadores e um dos participantes nas Exposições Gerais de Artes Plásticas, que se opunham às mostras oficiais organizadas pelo regime de Salazar. Estes tempos são de intensa actividade – é também por esta altura que Júlio Pomar começa a escrever textos teóricos e de reflexão pessoal sobre a arte, reunidos e publicados nos anos mais recentes. Com frequência, é esta a época que se associa imediatamente ao nome do pintor. Mas a sua obra, que tocou inúmeras áreas, da pintura ao desenho, da gravura à cerâmica, da assemblage ao azulejo (são dele as decorações da estação do Alto dos Moinhos do Metropolitano de Lisboa) vai muito além desta primeira fase neo-realista. Sobrevive nestes tempos de juventude graças a trabalhos vários de decoração e ilustração, vendendo raramente alguma pintura. Ao mesmo tempo, viaja regularmente, uma actividade que só abrandou nos últimos anos de vida. Madrid e Paris são as primeiras cidades visitadas, seguindo-se a Itália e Marrocos. Da primeira traz a recordação dos negros goyescos que encontraremos na sua pintura na década de 60. Em Paris, para onde se muda em 1963, estuda plasticamente a obra de Ingres e Matisse, por exemplo, e encontraremos uma revisitação dos papéis colados deste último nas colagens eróticas da década de 60/70. Pomar pinta muito, obsessivamente quase, tendo já substituído nesta época o rígido contorno neo-realista (e abandonado a sua ligação ao Partido Comunista), de inspiração sul-americana, por um traço livre e expressivo que se alia à exploração da riqueza cromática do mundo. Como Picasso, podemos dizer de Pomar que toda a arte do passado que o interessasse passava pelo seu pincel – ou pela ponta seca da gravura, ou pelo lápis de desenhar – num vaivém constante entre a obra que se fazia e os mestres de outros tempos. Tudo lhe servia para criar, quer fossem os temas populares – e recordamos há bem pouco tempo uma exposição sobre a sua cerâmica que teve lugar em Lisboa, no Atelier-Museu Júlio Pomar, comissariada por Catarina Rosendo, onde se viam reinterpretações surpreendentes dos motivos etnográficos portugueses –, quer os índios xingu (de uma série de 1988), a figura de Frida Khalo (outra série de 1999), ou mesmo o retrato oficial do Presidente da República Mário Soares, passando por retratos de pintores e escritores, ou tigres, macacos, touros, tartarugas e outros, não raro adoptando feições e traços humanos, talvez em homenagem às ilustrações que realizava quando novo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Fez inúmeras exposições individuais e colectivas, em Portugal e no estrangeiro, entre as quais se destaca uma antológica de objectos no Museu de Serralves – A Minha Cadeia da Relação, 2008 – e uma Autobiografia em 2004, no Museu Berardo, em Sintra. Recebeu diversos prémios, entre os quais o Prémio de Gravura da I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian (1957), o Grande Prémio de Pintura da II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian (1961), o Prémio AICA-SEC (1995) e o Grande Prémio Amadeo de Souza Cardoso (2003). É doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa (2013). A melhor homenagem que se pode fazer a Júlio Pomar agora, defende a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, é tê-lo exposto nos museus portugueses, começando pelo do Chiado, que devia dedicar-lhe uma retrospectiva “imediatamente”. “Temos de nos perguntar: onde é que amanhã podemos ver a obra de Pomar para além do Atelier-Museu? A Gulbenkian tem boas obras, mas não as expõe. E não é a única. ”Júlio Pomar era pai do pintor Vítor Pomar e do crítico de arte Alexandre Pomar, que, em 2004, publicou o catalogue raisonné da sua obra.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Morreu Pik Botha, cara da defesa do regime do apartheid
Chefe da diplomacia da África do Sul, Botha foi defensor do regime mas participou na transição. Tinha 86 anos. (...)

Morreu Pik Botha, cara da defesa do regime do apartheid
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chefe da diplomacia da África do Sul, Botha foi defensor do regime mas participou na transição. Tinha 86 anos.
TEXTO: Pik Botha morreu esta sexta-feira aos 86 anos, noticiou a cadeia de notícias eNCA citando o seu filho. Foi uma figura chave e a cara da defesa do regime do apartheid na África do Sul enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, cargo que ocupou durante 17 anos, até ao final do regime de segregação racial em 1994. Embora tenha defendido o sistema de separação de brancos e negros durante a sua carreira política, era visto como uma figura liberal e até reformista. Na transição, foi ministro no primeiro governo pós-apartheid liderado por Nelson Mandela, que elogiou por ser uma figura dedicada à conciliação. Em 1986, Pik Botha previu que o país poderia, um dia, ter um Presidente negro – uma hipótese na altura tão pouco considerada que levou a uma crítica do então Presidente, P. W. Botha (apesar de partilharem o apelido, os dois não tinham relação de parentesco). “Desde que consigamos concordar num modo adequado de proteger os direitos da minoria (…) então irá um dia possivelmente ser inevitável que no futuro se possa ter um Presidente negro deste país”, disse então. Botha tinha a tarefa de defender um regime cada vez mais criticado no palco internacional e um governo cada vez mais isolado e sujeito a sanções internacionais e boicotes, enquanto no plano interno impunha estado de emergência e tentava desestabilizar países vizinhos. Em pano de fundo estava ainda a Guerra Fria, com o mundo dividido entre alinhados com os EUA e com a União Soviética: vários países na região, como Angola ou Moçambique, estavam do lado de Moscovo, e a África do Sul tentava apresentar-se como um bastião de resistência à expansão comunista. Nas suas conquistas, Botha conta com a negociação de um acordo de paz que acabou o envolvimento da África do Sul em Angola, onde tropas cubanas defendiam o regime marxista. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este desenvolvimento abriu caminho a outro acontecimento significativo, a independência da Namíbia em 1990 – o país tinha também um governo que impunha apartheid e estava há décadas sob controlo de Pretória. Em 1994, a previsão de Botha confirmou-se e Nelson Mandela tornou-se o primeiro Presidente negro da África do Sul. Botha foi então, durante dois anos, ministro dos Minerais e Energia num governo de unidade nacional liderado por Mandela. Depois de deixar o governo, resumiu o país pós-apartheid: “A África do Sul é bastante avançada graças aos esforços de tanto negros como brancos; precisam uns dos outros. Eu costumava dizer que somos como uma zebra: se atingires a parte branca, ou a negra, do animal com uma bala, ele irá morrer. ”
REFERÊNCIAS:
De sussurro em sussurro até ao sacrifício final
Em Guerra delira com o fantasma sacrificial que se vem mostrando em Lindon nas colaborações com o cineasta Stéphane Brizé. Percurso por quatro filmes em que a intimidade familiar deu lugar à solidão do ícone. (...)

De sussurro em sussurro até ao sacrifício final
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Guerra delira com o fantasma sacrificial que se vem mostrando em Lindon nas colaborações com o cineasta Stéphane Brizé. Percurso por quatro filmes em que a intimidade familiar deu lugar à solidão do ícone.
TEXTO: Há algo de delirante na quarta colaboração deste “casal” de cinema, Stéphane Brizé, realizador, Vincent Lindon, actor: Em Guerra pode ser várias coisas, todas certamente à volta do social e do político, mas podemos também vê-lo como o momento em que uma obra se lança a fantasmar, e a sequência final é exaltada, a partir da persona, que o intérprete ganhou, de homem que representa todos os homens. O filme leva a extremos — de verosimilhança, por isso há perdas para o espectador em termos de empatia e de crença perante esta forma de brutalidade — a faceta missionária em que investe um actor que prefere as pessoas aos actores, que assume a profissão como forma de chegar aos outros e como ajuste de contas com o meio burguês em que nasceu e ao qual devolve os retratos, experiências e vidas dos “outros”: os proletários que encarna. O dirigente sindical que interpreta em Em Guerra, Laurent, líder das lutas numa fábrica que decidiu fechar, talvez já não seja uma personagem. É uma entidade que absorve e redistribui os desejos e as frustrações do grupo. É o homem-espelho. Há um desapossamento de qualquer intimidade e individualidade, está já para além delas. As cenas familiares não pertencem à convicção do filme. O horizonte de Laurent em Em Guerra só podia ser a aniquilação. É essa a brutalidade de que falamos. E é aqui que dizemos que o filme parece delirar com o fantasma sacrificial que se vem evidenciando em Lindon nas colaborações da dupla que forma com Brizé (duplos um do outro, o proletário realizador e o burguês actor: Mademoiselle Chambon, 2009, Quelques Heures de Printemps, 2012, A Lei do Mercado, 2015). E delira entusiasmando-se com o fogo-de-artifício. O que faz com que, sendo projecto nascido da convicção de que era necessário um filme para dar conta daquilo a que o espectáculo televisivo não acede, de que era preciso o cinema para ser resgatada a humanidade dos vultos ululantes das “reportagens” dos telejornais, Em Guerra acabe por não constituir alternativa. Faz o seu próprio espectáculo: incendeia-se. Fica a sensação, com travo de calculismo, de uma gestão de trunfos, o maior dos quais é o momentum Lindon, a forma como se intensificaram a missão e o ícone, como se amplificou a notoriedade mediática e a capacidade de abrangência — se Brizé podia afirmar no início “Lindon c’est moi”, para dizer o quanto os unia, entretanto Lindon passou a ser “todos nós”. Mas não deixa de ser irresistível e até previsível este passo em falso, embora em guerra, que foi da dissidência social, da objecção de consciência moral e ética, ao suicídio. É esse o movimento de A Lei do Mercado para Em Guerra — irresistível e previsível, como tal atingido também pela redundância. A Lei do Mercado foi um momento extraordinário para os trabalhos de Brizé e Lindon, intérprete que se viu consagrado com o prémio de interpretação em Cannes e o César do Melhor Actor. Sendo aí ainda tudo sussurrado, o mundo interior da personagem, um desempregado a querer regressar ao mercado de trabalho, era ameaçado de exposição, o privado violentado pela esfera pública, os silêncios importunados. O actor Lindon colocava-se mesmo “em perda” perante o saber e o domínio da linguagem dos “não-actores”, os verdadeiros desempregados com que Brizé o misturou no filme — aí , saindo da “bolha” do cinema, ganhava foros de concretização apoteótica a empatia de Vincent pelas “pessoas simples”. As primeiras sequências davam a ver a ruptura: expunham-se, ameaçavam-se os interiores que tinham sido trabalhados como memória e histórias em Mademoiselle Chambon e Quelques Heures de Printemps — filme em que Lindon, camionista, diz às tantas “on doit pas tout se dire”, reserva que se lhe conhece e que é brutalizada em A Lei do Mercado (as sequências de dança deste filme continuam a parecer a tentativa de controlo e violentação de uma individualidade. . . ). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Naqueles dois títulos iniciais da relação Brizé/Lindon, o actor, já vedeta em construção (Welcome, de Philippe Lioret, decisivo nessa deriva, é de 2009), deu versões sussurradas de si mesmo. (Já que assume o seu gosto por Jean Gabin. . . é como as versões sussurradas de Gabin em Gueule d’Amour, 1937, e Remorques, 1941, de Jean Grémillon. . . ) Revendo-os hoje, mantém-se a forma delicada como Brizé se expande pelos gestos e pela intimidade, mas evidencia-se sobretudo um mundo de interiores e familiar (um cinema de interiores) a chegar ao fim, ameaçado do exterior pelo social e pelo político. O património das personagens acabava, a morte em frente ou ao lado: num filme um pai escolhe o seu caixão, no outro uma mãe escolhe o suicídio. Mademoiselle Chambon é “a história” do encontro impossível entre uma professora e um carpinteiro — as dificuldades com o domínio da linguagem, sequência inicial, serve de apresentação da “personagem” Lindon tal como a passaríamos a conhecer. Lindon e Sandrine Kiberlain tinham sido anos antes um casal “na vida real”. Foi escolha arrojada de Brizé, e um desafio aceite pelos dois actores, dar-lhes os gestos de ternura e desejo de um casal de mundos diferentes que não se chega a formar. Era uma forma de, com eles, ser eternizado o fim. Quelques Heures de Printemps faz-se memento mori: Lindon, saído da prisão e a tentar (já aí) reingressar no trabalho, regressa a casa da mãe (espantosa Hélène Vincent, contraponto áspero à música de Nick Cave e Warren Ellis). Esta, com um tumor cerebral, decide avançar com os protocolos de suicídio assistido. “Há um momento em que é preciso admitir que é o fim”. Mesa de refeições, compotas, um cão e os duelos pelo espaço, as memórias de violência familiar. . . depois disso, depois da expansão, depois do “je t’aime mon garçon”, Vincent Lindon ficou sozinho, isolado, nos filmes de Brizé. E agora é mesmo um ícone, sem espaço para a intimidade.
REFERÊNCIAS:
João Salaviza e Renée Nader Messora premiados na secção Un Certain Regard
Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos recebeu o prémio especial do júri desta secção paralela do Festival de Cannes. (...)

João Salaviza e Renée Nader Messora premiados na secção Un Certain Regard
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.214
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos recebeu o prémio especial do júri desta secção paralela do Festival de Cannes.
TEXTO: Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, o filme que João Salaviza e Renée Nader Messora foram fazer ao estado de Tocantins, no Brasil, recebeu o Prémio Especial do Júri Un Certain Regard, secção paralela à selecção oficial do Festival de Cannes. Ficção rodada junto dos krahô — povo indígena do Brasil que Renée conhecia há dez anos e ao qual expôs João na ressaca da produção de Montanha, a anterior longa do realizador português, de que ela foi assistente —, começou como um filme de fuga a uma “parafernália”, o cinema com as suas equipas grandes, os seus compromissos de produção, e acabou na historia do jovem índio Ihjãc, personagem perseguida e atordoada pela "realidade" e pelos "fantasmas", que é o reencontro com o cinema como fabricação do mundo. João e Renée reencontram uma potência a céu aberto, a aldeia da Pedra Branca, com as suas pessoas, os elementos, os animais. O júri Un Certain Regard, que era presidido por Benicio del Toro, atribuiu o seu prémio principal a Border, de Ali Abbasi, dinamarquês de origem iraniana que se mostrou pela primeira vez em Cannes com um sedutor híbrido de realismo e de folclore nórdico. Abbasi encontra um lugar envolvente para estar com as personagens – por exemplo, Tina, que fareja como um cão, e por isso ajuda a polícia a desmantelar uma rede de pedofilia, e que devido a uma anomalia cromossómica tem o corpo coberto com pêlos e o rosto deformado. Não as afasta do mundo (não afastando o filme do realismo, apesar de povoado por criaturas de lendas escandinavas), mas também não as submete às regras dominantes. Outro filme português, Diamantino, de Gabriel Abrantes-Daniel Schmidt, recebera na quarta-feira o Grande Prémio da 57. ª Semana da Crítica, atribuído pelo júri presidido pelo cineasta norueguês Joachim Trier e que integrou também os actores Chloe Sevigny e Nahuel Pérez Biscayart. O filme conta a história de um futebolista, uma super-estrela mundial deste desporto, cuja carreira cai em desgraça, mas que talvez possa salvar Portugal do esquecimento.
REFERÊNCIAS:
Obesidade e diabetes do tipo 2 tratadas com sucesso (por agora em ratos)
Resultados de terapia genética estão publicados numa revista científica. (...)

Obesidade e diabetes do tipo 2 tratadas com sucesso (por agora em ratos)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.75
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181231204744/https://www.publico.pt/n1837417
SUMÁRIO: Resultados de terapia genética estão publicados numa revista científica.
TEXTO: Uma equipa de investigadores da Universidade Autónoma de Barcelona encontrou um tratamento eficaz para a obesidade e a diabetes do tipo 2 em ratos através de uma terapia genética. O estudo foi apresentado pela equipa de investigação numa conferência de imprensa realizada no campus da Universidade Autónoma de Barcelona em Bellaterra, onde o grupo de investigadores, liderado por Fátima Bosch, esteve presente. Os resultados foram publicados na revista EMBO Molecular Medicine. Com a introdução, numa única injecção, de um vector viral adeno-associado portador do gene do factor de crescimento de fibroblastos 21 (FGF21), que permite a manipulação genética do fígado, tecido adiposo ou músculo-esquelético, o animal produz continuamente a proteína FGF21. Trata-se de uma hormona produzida naturalmente por vários órgãos e que actua em muitos tecidos para regular o funcionamento correcto no nível de energia, induzindo assim a sua produção por terapia genética, e levando a que o animal reduza o seu peso assim como a resistência à insulina. No que diz respeito à obesidade, a terapia aplicada através do projecto de investigação foi testada com sucesso em dois modelos da doença, induzidos tanto geneticamente como por dieta. Os investigadores perceberam que a administração da terapia genética em indivíduos saudáveis causa igualmente um envelhecimento mais saudável e protege-os do excesso de peso e resistência à insulina relacionados com a idade. Após o tratamento com AAV-FGF21, e durante o ano e meio em que os animais foram seguidos, os ratos perderam peso e reduziram a acumulação de gordura e a inflamação no tecido adiposo. A deposição de gordura (esteatose), a inflamação e fibrose no fígado também foram neutralizadas, enquanto a sensibilidade à insulina e a saúde geral aumentaram à medida que envelheceram, sem terem sido observados efeitos colaterais. A partir de todo o processo, os resultados foram reproduzidos pela manipulação genética de vários tecidos para produzir a proteína FGF21, seja o fígado, o tecido adiposo ou o músculo. “Isso dá uma flexibilidade muito grande à terapia, já que permite seleccionar o tecido mais apropriado e, caso haja alguma complicação que previna a manipulação de qualquer um dos tecidos, pode ser aplicada a qualquer um dos outros”, disse a investigadora que coordenou o estudo. Fátima Bosch acrescentou que quando um desses tecidos produz a proteína FGF21 e a coloca na corrente sanguínea, ela é distribuída por todo o corpo. Destacou ainda a relevância dos resultados perante o aumento dos casos de diabetes do tipo 2 e da obesidade em todo o mundo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Segundo os investigadores, a obesidade aumenta o risco de mortalidade e representa um factor de risco para doenças cardiovasculares, doenças imunitárias, hipertensão arterial, artrite, doenças neurodegenerativas e alguns tipos de cancro. “Esta é a primeira vez que a obesidade e a resistência à insulina a longo prazo foram neutralizadas pela administração de uma única sessão de terapia genética no modelo animal, que se assemelha mais à obesidade e diabetes do tipo 2 em humanos”, explicou a primeira signatária do artigo científico, a investigadora Verónica Jiménez, também da Universidade Autónoma de Barcelona. Os resultados do estudo mostram também como a administração de terapia genética tem um efeito protector contra o risco de formação de um tumor quando o fígado é submetido a uma dieta altamente calórica por um longo período de tempo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos doença estudo corpo animal
Greves não param. Há 47 pré-avisos até final do ano
Inspectores do SEF e seguranças dos aeroportos vão fazer greve no período das férias de Natal. Sector da saúde é o mais afectado no mês de Dezembro. (...)

Greves não param. Há 47 pré-avisos até final do ano
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Inspectores do SEF e seguranças dos aeroportos vão fazer greve no período das férias de Natal. Sector da saúde é o mais afectado no mês de Dezembro.
TEXTO: As greves não tiram férias. Até ao final do ano, há 47 pré-avisos de greves em 11 áreas da administração pública, desde a justiça aos hospitais, passando pela inspecção das pescas. E há duas paralisações que podem vir a afectar as suas férias de Natal e Ano Novo. Um dos sindicatos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o Sindicato dos Inspectores de Investigação, Fiscalização e Fronteiras, e duas empresas privadas de segurança vão fazer greve no fim do mês, comprometendo as acções de fiscalização nos aeroportos nacionais. Fonte oficial da ANA não quer, para já, comentar as greves anunciadas para os aeroportos por ser ainda cedo. Nos últimos meses, já foram desconvocadas greves semelhantes a poucos dias da sua realização. E só quando são definidos os serviços mínimos é que é possível fazer uma previsão de constrangimentos. Os dados da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público, que reúne todos os pré-avisos de greve da função pública, revelam que até fim de Dezembro não haverá um único dia sem paralisações previstas. Continuarão, assim, as greves sectoriais dos registos e notariado, dos educadores de infância e ensino básico e secundário (à componente não lectiva), dos trabalhadores dos hospitais E. P. E. , enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, guardas prisionais (15 de Dezembro a 6 de Janeiro), funcionários judiciais, bombeiros de 23 autarquias (desde Lisboa, Porto a Funchal ou Faro) e trabalhadores da Câmara de Oeiras. Alguns sindicatos fazem avisos de greve para vários dias, outros fazem avisos dia a dia, daí o número total de 47 pré-avisos. Se compararmos com igual período do ano passado, verifica-se que o número aumentou bastante: houve apenas 15 greves. E conclui-se também que a grande diferença reside na agitação provocada pelos enfermeiros e professores. Os enfermeiros (em greve desde dia 22 de Novembro e até 31 de Dezembro) reclamam a criação da categoria de enfermeiro-especialista e o descongelamento das progressões. Os técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, por seu lado, exigem a conclusão do processo negocial de regulamentação das carreiras. Esta greve afecta praticamente todos os serviços de saúde, com incidência nos blocos operatórios, altas e internamentos hospitalares, diagnósticos, planos terapêuticos em curso e distribuição de medicamentos. Os bombeiros (em greve de dia 19 a 2 de Janeiro) estão contra a proposta de criação de um comando unificado com a Protecção Civil - agora em consulta pública (ver texto ao lado). Os funcionários judiciais, que vão ter uma greve nacional em Janeiro e mantêm a sectorial durante todo o mês de Dezembro, querem renegociar o estatuto profissional, promoções e pagamento do trabalho suplementar. Já os professores reclamam a contagem dos nove anos de tempo de serviço que foram congelados. Na verdade, os pré-avisos de greves dispararam com a subida do PS ao poder (embora tivessem diminuído as greves gerais). Pode parecer um contra-senso que haja mais greves agora em que o BE e o PCP apoiam o Governo em funções do que no passado quando o Governo era do PSD e CDS, mas o próprio ministro do Trabalho, José António Vieira da Silva, tem uma explicação: “Após um período longo de restrições”, as pessoas têm “agora expectativas de melhorias nas suas condições de trabalho”. Na sexta-feira, à margem do Congresso do Partido Socialista Europeu, Vieira da Silva tinha desdramatizado a existência de greves, lembrando que “a experiência histórica mostra que as fases finais das legislaturas são períodos em que diferentes actores procuram valorizar as suas posições”. As eleições legislativas estão previstas para 6 de Outubro. Já o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, recebido na semana passada em Belém pelo Presidente da República, admitiu que 2019 seja um ano ainda mais agitado. “Depende da resposta que o Governo der e que for dada nas empresas, porque o mundo não se esgota com o Orçamento, e a verdade é que continuam por responder grandes questões de diversos sectores de trabalhadores”, disse. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para Janeiro, já está prevista, por exemplo, uma greve de dois dias dos inspectores da Polícia Judiciária (PJ), que vai acontecer em conjunto com os sindicatos que representam os restantes funcionários da PJ. E os professores prometem não baixar os braços na defesa da contagem da totalidade dos anos de serviço que foram congelados. As palavras do secretário-geral da Fenprof na semana passada, depois de uma reunião no Ministério da Educação, ainda estão frescas: “Querem guerra, guerra terão”. No sector privado, o número de greves previsto até final de Dezembro é menor. Segundo a Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho, apenas quatro sectores registarão paralisações parciais: os trabalhadores dos portos; os trabalhadores dos serviços de vigilância de alguns hospitais (Setúbal, Barreiro e S. Francisco Xavier); trabalhadores do sector da hotelaria e restauração e da Securitas e Prosegur que “prestam serviços de controlo de passageiros e bagagens nos aeroportos nacionais”. A mais mediática destas tem sido a greve dos estivadores no Porto de Setúbal, que, segundo o Ministério do Mar, provocou a diminuição de 70% do tráfego habitual.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PSD PCP BE
Miracolo, miracolo!, é Mario Monicelli
Efervescente, triste, eufórica, terminal - eis a "comédia à italiana" versão Mario Monicelli. Nove filmes, muitos deles gloriosos, na Cinemateca. Começa sexta-feira. (...)

Miracolo, miracolo!, é Mario Monicelli
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Efervescente, triste, eufórica, terminal - eis a "comédia à italiana" versão Mario Monicelli. Nove filmes, muitos deles gloriosos, na Cinemateca. Começa sexta-feira.
TEXTO: Dos seus 69 filmes, este nem era o que mais amou, embora mais tarde a ele tivesse regressado para fazer justiça. Mas é a grande emoção do ciclo de nove títulos com que a Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, assinala, a partir de dia 12, o centenário de Mario Monicelli (1915-2010). Chama-se O Ladrão Apaixonado/Risate di Gioia (1960). Haverá outros planos, outras sequências, que podem exemplificar a “comédia à italiana” – género que dominaria os ecrãs mundiais entre os anos 50 e 70 – no tom Monicelli. Mas há uma tocante síntese do cinema do grande Mario na abertura de Risate di Gioia (quinta-feira, dia 18, 19h): uma explosão de balões num baile de final de ano, Roma em 1960, coisa efervescente, triste, eufórica, terminal – é champanhe. Monicelli deu sinais de irritação, um dia, numa entrevista, quando lhe falaram dos diálogos divertidos. O filme não era divertido, obstou, estava cheio de falhados, de gente que não encontra o seu lugar – nem na cidade, essa Roma que por aqueles anos estava a ser mitificada como La Dolce Vita. Era isto, concluía, a “comédia à italiana”: nada a ver com diálogos ou com piadas, mas com um fôlego capaz de respirar ferocidade (riso, também) e de ser abalroado pela tristeza e pela morte. Isso podia cobrir qualquer “género”, ensopar um filme de guerra (La Grande Guerra/A Grande Guerra, 1959) ou um film noir (Gangsters Falhados/I Solitti Ignoti, 1958). Era isso, finalmente, o “à italiana”. Entre os dias 12 e 24 de Junho, entre Gangsters Falhados e Um Herói do Nosso Tempo/ Un eroe dei nostri tempi (1955) – os filmes que abrem e fecham o ciclo –, vamos encontrar gente a caminhar da merda à glória sem sair da merda, como os miseráveis cavaleiros medievais comandados pela impostura de Vittorio Gassman em O Capitão Brancaleone/ L’Armata Brancaleone, de 1966 (dia 22, 21h30). Vamos encontrar gente colocada na periferia, a vida escravizada perante um frigorífico e outros acenos do boom económico italiano. Roma e os seus fogos-de-artifício de réveillon expulsam Magnani e Totò. Ele vive de expedientes, tem uma sabedoria clássica que o desenrasca (mal). Ela é figurante na Cinecittà. Acabam por se juntar numa noite em que apenas servem para fazer número num cortejo pela cidade. Roma começava a ser “Hollywood no Tibre”, invadida por turistas, estrelas e carros americanos. Magnani e Totò, resistentes, pedem licença para participar da festa. Pode ver-se Risate di Gioia como um La Dolce Vita dos pobres, comentário ao fim de um tempo, retrato nostálgico, para acabar com a nostalgia, de uma cidade. Monicelli contava que com a rodagem aconteceu pela última vez a possibilidade de filmar Roma pela noite e madrugada fora sem incómodos; a cidade podia ainda ser experimentada vazia. Com o que veio depois, La Dolce Vita, deixou de ser possível. O filme de Fellini estreou em Fevereiro de 1960, Monicelli começou a filmar o seu em Maio desse ano. Não é de espantar a picardia do underdog de uma segunda linha do cinema italiano perante os pavões de uma primeira linha, Fellini, Antonioni, Visconti e etc, que faziam sombra – há outro exemplo desta luta de classes, a irresistível referência à noia e à incomunicabilidade antonionianas em A Ultrapassagem, de Dino Risi (1962). A Roma de Risate di Gioia é um espectáculo a céu aberto com o fim. Quando o filme vai buscar a personagem de Magnani, porque alguém se lembra dela para integrar o grupo de convivas do último dia do ano, ela está nos estúdios da Cinecittà a gritar “Miracolo, Miracolo” num peplum. É uma súbita “passagem" para a antiguidade que investe Risate di Gioia de uma potência épica, apesar do maravilhoso tom que tira hipóteses a qualquer gigantismo: uma arena sobre as movimentações e a História do cinema popular italiano. Há um momento de arrepiar, quando as personagens vão dar a uma mansão de milionários alemães: os “penetras” são identificados pela luz que irrompe de uma porta que se abre e os paralisa, como se os encostasse à parede – encostando à parede aquela que fora a protagonista de Roma, Cidade Aberta (Roberto Rossellini, 1945), o filme sobre a cidade tomada pelos nazis. Eis então Roma, em 1960, cidade novamente ocupada. Magnani há-de gritar de novo “miracolo, miracolo”, mas ninguém acredita, nem ela, em milagres. Uma das razões que fizeram Monicelli apreciar só mais tarde o filme foi a memória da difícil Magnani: as imposições em relação à forma como permitia ser enquadrada, a implicação com Totò, presença que considerava desprestigiante. Não é nada que se sinta em Risate di Gioia. Pelo contrário, um dos momentos mais tocantes é o de uma milagrosa sintonia entre os dois – quando improvisam uma canção, por exemplo, permitindo-se e ao filme uma viagem feliz e dolorosa ao passado de ambos como artistas de revista. É uma viagem dentro do ciclo: Vida de Cão/Vita da Cani, de 1950 (segunda-feira, dia 15, 19h), é um nada edulcorante retrato de um grupo a fugir da miséria (mais uma vez), troupe a correr, ofegante, de um espectáculo ao outro, Milão-Roma-Milão, sem sair do mesmo sítio (mais uma vez). É um dos oito filmes que Monicelli dirigiu com Steno, com quem formara logo no pós-guerra uma dupla de argumentistas. Um dos títulos emblemáticos dessa colaboração vai ser exibido, Polícia e Ladrão/ Guardie e ladri, de 1951 (terça-feira, dia 16, 21h30). Viagem, então, ao “antes” de Monicelli: na sua autobiografia, L’Arte della commedia, dá conta desses tempos em que, primeiro com os argumentos com Steno, depois nos filmes co-realizados e que serviram de veículo a Totò, documentava o quotidiano nascido do pós-guerra, “a mimetização do fascismo, a falsa democracia”, o clientelismo e a corrupção. . . aquilo que mais tarde tornaria Alberto Sordi vulnerável e abjecto, arrivista e rastejante, em Um Herói dos Nossos Tempos/Un Eroe dei Nostri Tempi, de 1955 (dia 24, 19h). No pós-guerra, Monicelli e Steno corriam, então, de espectáculo de revista em espectáculo de revista para respirarem o que estava no ar. Assim se demarcavam do neo-realismo, que “continha uma seriedade que não era a do povo italiano” – Monicelli diz que a Itália não se reconhecia nos filmes do neo-realismo, “não eram assim os camponeses e os operários”, a Itália tinha mais a ver com os seus “canalhas”. Polícia e Ladrão foi um “caso”: esteve um ano suspenso pela censura antes de estrear, era demasiado ver um polícia (Aldo Fabrizi) perceber que pouco o separava do ladrão (Totò). A “tese” de Monicelli é que o humor foi uma conquista de maturidade para o espectador italiano, que no pós-guerra era “muito ingénuo”, estava refém dos dramalhões religiosos de Raffaello Matarazzo, Catene (1950), Tormento (1951) ou I figli di nessuno (1951), que constituíam a narrativa oficial democrata-cristã – como ele diz, naqueles anos a democracia cristã ganhava com a ajuda de senhoras que choravam e com milagres, com a ajuda de paróquias e de padres. E Monicelli conta, em L’Arte della commedia, como o humor podia ser, afinal, a temperatura de um medo, o medo da passagem do tempo, ou um filtro para conseguir enfrentá-lo. Para tactear a morte, em suma. Gostava de ir aos funerais para, com os amigos, dizer coisas divertidas sobre o defunto – está na cena final de Amici Miei (1975). Esse encontro do humor com a morte, Monicelli lutou para o impor a Gangsters Falhados, retrato de desajeitados ladrões que preparam um golpe maior do que as suas capacidades: a meio do filme, umas das personagens é atropelada por um eléctrico, momento brutal que oficializou a morte na comédia à italiana (o filme vai ser editado em DVD pela Festa do Cinema Italiano, em versão restaurada). Monicelli lutou também para impor Gassman, actor de teatro com créditos firmados que ninguém imaginava em comédia. Orgulhava-se de ser responsável pela panache kamikaze deste actor, tal como se orgulhava de outra “anomalia”, ter resgatado Monica Vitti à incomunicabilidade de Antonioni para a comédia La Ragazza con la pistola (1968) e, dois anos depois, para o seu episódio, Il frigorifero, de Le coppie. Há um momento em Gangsters Falhados em que os ladrões se inspiram no cinema americano para o golpe. É como um autoretrato de Monicelli e dos seus argumentistas, Suso Cecchi D’Amico, Age & Scarpelli, que começaram por pensar numa paródia a Rififi (Jules Dassin, 1955) que se chamaria Rufufú. Perante a hipótese de algo maior do que eles, a do “filme de Hollywood”, desatam num prodígio de pantomima, malabarismos e acrobacias, um jogo de identificações e de distanciações várias, como se a barraca da commedia del’arte tivesse sido montada para o film noir. Foi um sucesso, mas mesmo assim não foi caução suficiente para sossegar os incrédulos perante a associação de Monicelli, Age & Scarpelli, argumentistas de filmezinhos da comédia à italiana, ao gigantismo de um projecto de Dino de Laurentiis, A Grande Guerra (quarta-feira, dia 17, 21h30). Como colocar os valores do soldado italiano na mão destes três, e com comediantes da estirpe canalha de Sordi e Gassman, que interpretam homens que fazem tudo para não fazer a guerra?, polemizou-se nos jornais. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É verdade, reconheceu o cineasta: escrever um argumento a pensar naqueles dois actores correria o risco de sabotar a ideia inicial de um filme sobre a massa anónima, os soldados, os operários – e sobre a lama, o frio, os cigarros, a ração, os botões. . . Mas, à medida que A Grande Guerra vai serenando as suas hipotéticas contradições (é filme de guerra ou comédia, é filme sobre dois indivíduos ou sobre uma personagem colectiva?), vai deixando também ouvir o seu cântico – as legendas introduzem em surdina o lamento, o individual funde-se com a aventura colectiva, como nos píncaros do lirismo melodramático de Frank Borzage ou King Vidor (A Hora Suprema, A Multidão, essa é a filiação). Um monumento, A Grande Guerra recebeu o Leão de Ouro de Veneza, ex-aequo com O General della Rovere, de Rossellini – para quem estava tudo preparado, foi reviravolta de última hora. É o Non ou a Vã Glória de Guerrear de Monicelli. Milagre, milagre!
REFERÊNCIAS: