Nem nas férias há sossego
A vontade de tudo controlar, a obsessão da lei, a perda do sentido do humor, do dever sem prazer, tornam a vida uma neura. (...)

Nem nas férias há sossego
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: A vontade de tudo controlar, a obsessão da lei, a perda do sentido do humor, do dever sem prazer, tornam a vida uma neura.
TEXTO: 1. A narrativa bíblica do mito da criação não pertence ao mundo da ciência, mas ao da poética teológica. Não se situa, por isso, em competição com nenhuma teoria da origem e do desenvolvimento do universo. Confessa que de Deus apenas pode vir o bem e a beleza. Apresenta o Criador encantado com a sua obra, ritmada pelos dias e pelas noites, cheia de tudo o que é bom. Nesse poema, o ser humano – homem e mulher – é a coroa da terra, imagem do infinito mistério do amor. Ao sétimo dia, Deus repousou para celebrar a obra admirável da vitória sobre o caos [1]. É uma astuciosa metáfora da legitimação religiosa do descanso semanal: “Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha, o teu servo e a tua serva, os teus animais, o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que há neles, mas no sétimo dia descansou” [2]. Estamos perante a sacralização de uma grande instituição civilizacional. O ser humano não existe só para trabalhar. Precisa de tempo para viver e exprimir muitas outras dimensões da sua vida. A abertura a Deus revela a transcendência de todos os seres humanos, sujeitos de direitos e deveres continuamente ameaçados. Nada, porém, está automaticamente garantido na Casa Comum, como lembrou o Papa Francisco na Laudato Si. Sem opções éticas para regular os dias e as noites, as relações interpessoais, familiares, sociais, económicas, políticas e religiosas, estamos ameaçados de voltar ao caos. O universo humano é uma associação frágil de natura e cultura. A vontade de tudo controlar, a obsessão da lei, de tudo regulamentar de uma vez para sempre, a perda do sentido do humor, do dever sem prazer, tornam a vida uma neura. Quando as instituições humanas são apresentadas como realizações da vontade de Deus caem na idolatria escravizante. O grande dia da divina liberdade é transformado numa prisão sacralizada. 2. Jesus de Nazaré, ao apresentar-se como o profeta do Reino de Deus, identificou-o com o advento do reino da libertação e da alegria. Teve, por isso, de enfrentar a escrupulosa regulamentação rabínica do Sábado, pois o seu resultado era terrível: nesse dia, os animais tinham mais sorte do que os seres humanos [3]. Jesus resolveu atacar essa perversão, mediante uma sistemática provocação. O chefe de uma sinagoga, indignado com a atitude de Jesus, virou-se para a multidão e disse: há seis dias de trabalho, vinde nesses dia e não no dia de Sábado. Os narradores do Evangelho são unânimes: era ao Sábado que Jesus fazia o que a religião oficial proibia. Nós, os cristãos, julgamos que é um assunto ultrapassado. É, apenas, uma questão judaica. Fazemos muito mal em reagir assim. A razão apresentada por Jesus, para fundamentar as suas atitudes, era radical: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Atacava, assim, o fundamentalismo religioso para todos os tempos e lugares. Deus nunca pode ser invocado para a infelicidade. Não se pode louvar a Deus sem cuidar da libertação, da cura e da alegria dos afectados pelo sofrimento. As atitudes de Jesus, em relação às prescrições do Sábado, questionam a nossa miopia: as leis e os regulamentos das Igrejas são para o ser humano ou é o ser humano para essas leis?Muitas das controvérsias, antes, durante e depois do Vaticano II, esquecem esse dado elementar. Não são as leis eclesiásticas que mandam no Evangelho de Jesus. É este que questiona, permanentemente, as leis que inventamos: fazem bem ou mal à libertação dos cristãos? São para fazer desabrochar a nossa alegria ou para nos mergulhar na tristeza?O enunciado de Jesus tem um alcance filosófico e teológico muito mais amplo, diria, universal. Todas as instituições têm de ser submetidas a esta interrogação: servem ou atraiçoam o desenvolvimento humano?3. Não pretendo, com a contenda do Sábado, desvalorizar o significado dessa instituição civilizacional. O texto de S. Marcos, seleccionado para a Missa deste domingo, manifesta, pelo contrário, que o próprio Jesus sentiu necessidade de férias para si e para os seus colaboradores: Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco. Eram tantos os que iam e vinham, que nem tinham tempo para comer. Foram, pois, de barco, para um lugar isolado, sem mais ninguém. Por desgraça, ao vê-los afastar, muitos perceberam para onde iam. De todas as cidades acorreram, a pé, àquele lugar, e chegaram primeiro do que eles. Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas [4], e lá foram as férias!Não teve mais sorte com as tentativas de férias no estrangeiro, em Tiro e Sídon. O mesmo evangelista conta que, no território de Tiro, Jesus entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse. Não conseguiu. Uma gentia, siro-fenícia de origem, lançou-se aos seus pés e pedia-lhe que expulsasse, da filha, o demónio. Para entender o desenvolvimento deste texto, importa saber que os judeus tratavam os estrangeiros como cães. Aliás, na versão de Mateus, Jesus esclarece que a sua missão se limitava às ovelhas perdidas da casa de Israel. Por isso, não era justo que se tomasse o pão dos filhos para o lançar aos cachorros. Neste caso, Marcos é mais simpático: "Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos. " A mulher não quer saber dessas histórias e diz simplesmente: "Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos. "Jesus ficou rendido: vai, o demónio saiu de tua filha. A versão de Mateus é diferente e passa-se em público. Jesus reconheceu o ridículo da sua estúpida displicência: "Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se como desejas. " Como já tinha dito a um centurião romano: em Israel, nunca vi tanta fé!Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Estas reacções, nas suas idas ao estrangeiro, manifestam que também Jesus tinha sido moldado por uma cultura preconceituosa, mas estava aberto ao espanto e à mudança. Em Tiro e Sídon, encontrou o que não podia esperar. É Domingo, não é Sábado. Não nos podemos conformar com o mundo que temos. Dizemos que somos filhos da ressurreição e não do conformismo. Temos de o provar. Como?[1] Gn 1; 2, 1-3[2] Ex 20, 8-11[3] Lc 13, 10-17; 14, 1-6; Mt 12, 9-14; Mc 2, 23ss; Jo 5, 8-18[4] Mc 6, 30-34
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos filha lei humanos cultura filho mulher prisão homem deveres cães
Não há milagres? (1)
Na nossa era secular, a linguagem universalmente credível é a da ciência e da técnica. (...)

Não há milagres? (1)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na nossa era secular, a linguagem universalmente credível é a da ciência e da técnica.
TEXTO: 1. Falou-se durante muito tempo do milagre económico alemão. Quando se deseja criticar uma gestão económica e financeira diz-se: não há milagres! Em clima de religião barata vem o velho ditado: fia-te na Virgem e não corras! São apelos sensatos para que as iniciativas humanas sejam pensadas e planeadas a tempo, executadas com rigor. Não deixar as nossas decisões ao Deus dará, pois Ele ajuda quem se sabe ajudar. Afirmar que não há milagres nem sempre significa uma atitude ateísta ou negação da providência divina. Pode ser apenas respeito pela responsabilidade humana com uma conotação teológica: não invocar o Santo nome de Deus em vão. Não é aconselhável dar demasiada importância à linguagem do quotidiano que, raramente, é fruto de grandes cogitações como, por exemplo, eu cá sou ateu graças a Deus. Usa-se o vocabulário mais disponível, marcado pelo contexto social e cultural de uma população. Há zonas do país nas quais um palavrão é, apenas, um recurso simples e rápido, para acabar com uma conversa que não leva a lado nenhum. 2. A oração, a promessa, a acção de graças e o milagre são a própria paisagem da religião, a não confundir com a beatice. Em alguns contextos, significa o próprio clima da interioridade que acompanha as transformações da vida espiritual. Em outros casos, são narrativas sociais, umas mais discretas, outras mais aparatosas e, até, exibicionistas, para dizer a fé de um grupo religioso, o sentido profundo da vida. Pede-se ao céu, a Deus e aos seus anjos e santos, que se lembrem de nós, que nos dêem a mão. A celebração da memória da fé dos antepassados é essencial. Nós fazemos parte da sua história e eles desejam fazer parte da nossa vida se a intensidade do nosso desejo pedir a sua intervenção. Religião exterior e interior – salvo nos casos de hipocrisia – podem reforçar-se uma à outra. Como a sociedade muda, é normal que também sejam alteradas as suas representações. Quer ao nível da religião popular e das suas expressões, quer no confronto com a Bíblia e com a prática de Jesus, a questão dos milagres é incontornável. Numa era sacral, quando a imagem deste mundo dependia das representações sobrenaturais, negar a possibilidade do milagre era uma ofensa ao bom senso: se não é Deus a guiar a misteriosa marcha deste mundo, quem é? Os milagres e as relíquias milagrosas tornaram-se um vício abençoado. Na nossa era secular, a linguagem universalmente credível é a da ciência e da técnica. As sucessivas revoluções industriais que elas possibilitam, para bem e para mal, são da responsabilidade humana. Pedir contas a Deus ou solicitar a sua intervenção não parece sensato. Temos, no entanto, de não confundir religião com superstição. Como observa L. Wittgenstein, a fé religiosa e a superstição são muito diferentes. Uma resulta do medo e é uma espécie de falsa ciência. A outra é uma confiança [1]. Para tentar escapar às dificuldades que a própria noção de milagre implica, foi elaborada uma ideia mais “moderna” de milagre. Diz-se que há milagre quando um fenómeno não pode ser explicado por nenhuma ciência ou técnica disponíveis. Isto acontece, sobretudo, no campo da medicina. Para ter milagres verdadeiros, reais, capazes de levar santos aos altares, para canonizar vidas santas, é preciso a ocorrência de um acontecimento inexplicável pela ciência e pela técnica. Dado o seu carácter benéfico, só pode ser fruto da intervenção de Deus. É esta noção de milagre que foi muito importante, sobretudo no século XIX, para distinguir sinais de santidade verdadeira de embustes devotos. Foi uma medida muito higiénica no campo religioso, uma forma de dizer que não vale tudo no campo devocional. Há quem fale de milagres de primeira e milagres de segunda. Os de primeira são os que resistem a todos os testes. Os de segunda são as graças que enchem a literatura piedosa, muito distribuída em certos locais, destinadas a criar ambiente para o acontecimento dos milagres de primeira, capazes de levar um santo aos altares. 3. Em tudo isto, é esquecida a condição do desenvolvimento das ciências e das técnicas. Estão sempre em evolução. O que numa época se considerou uma ocorrência para além dos poderes da natureza, com o desenvolvimento posterior das ciências e técnicas, talvez possa vir a ser explicável. É verdade, mas continuamos a considerar, no mesmo plano, a misteriosa intervenção de Deus e as acções humanas. Um pouco de teologia negativa pode ajudar. Quem lê o Novo Testamento ou participa nas celebrações eucarísticas não pode evitar a pergunta: será que Jesus fazia milagres ou são apenas histórias de uma era sacral para alimentar uma ilusão para os nossos dias? Se Jesus fez milagres, há dois mil anos, ainda deve ter a mesma bondade e o mesmo saber para as situações actuais. Como não gosta de fazer nada sozinho, é normal que associe os anjos e os santos – canonizados ou não – à sua vontade de fazer o bem, sobretudo nas situações mais aflitivas. Para pensar isto com certa clareza, não se deve esquecer a história de Pascal. "Conta-se que, certo dia, Pascal se encontrou com um amigo num castelo, no cimo de uma colina. Após algum tempo de espera, o amigo chegou com o rosto desfigurado, a roupa rota e o corpo cheio de nódoas e feridas. – O que é que te aconteceu? – perguntou Pascal. – Não imaginas o milagre que Deus acaba de me fazer! – respondeu o amigo. Quando vinha para cá, o meu cavalo resvalou perto de uma ravina. Eu caí, fui rolando e resvalando, mas detive-me exactamente na borda do precipício. Imaginas? Que milagre Deus acaba de me fazer! Ao que Pascal retorquiu: E o milagre que Deus acaba de me fazer a mim? Ao vir para cá, nem sequer caí do cavalo!" [2]. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Neste Domingo, o humor e a astúcia de S. Marcos [3], ao encaixar numa única narrativa dois milagres improváveis, obrigam-nos a pensar que a nossa maior cegueira, seja a que nível for, é a incapacidade renovada de não ver o que temos diante dos olhos. Gloriamo-nos, com razão, dos avanços da ciência, da indústria e dos seus progressos. Ao esquecer que tanto podem realizar o milagre da paz e do bem-estar, como provocar guerras em cadeia e a destruição, ficamos nas mãos dos donos deste mundo. No Domingo que vem, até o próprio Jesus se espanta com tanta miopia. [1] Cultura e Valor, Edições 70, 1980, pp. 107[2] Ver, para todo este assunto, as observações de Ariel Ávarez Valdés in Bíblica n. º 352 (Maio-Junho 2014), pp. 99-104; ver também Miracle de Xavier Léon-Dufour, Dictionaire du Nouveau Testament, Seuil, 1975[3] Mc 5, 21-43
REFERÊNCIAS:
Sem mitra nem solidéu
O verdadeiro profeta é sobretudo uma pessoa que vive a graça da lucidez humana e divina na defesa do bem comum. (...)

Sem mitra nem solidéu
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O verdadeiro profeta é sobretudo uma pessoa que vive a graça da lucidez humana e divina na defesa do bem comum.
TEXTO: 1. Por vezes, confunde-se um profeta com um adivinho. O verdadeiro profeta é sobretudo uma pessoa que vive a graça da lucidez humana e divina na defesa do bem comum. Vê o que a cegueira dos interesses instalados não quer ver nem deixa ver. A denúncia da traição da aliança mística e da aliança social – duas caras da mesma moeda - é o seu tema. Como diz Miqueias, a proposta de conversão exige a instauração do direito e da justiça[1. As pessoas aduladoras dos poderosos gostam de ser chamadas profetas, mas são, apenas, os seus lacaios. Na missa de hoje, é dada a palavra ao incómodo Amós que exerceu essa missão, aproximadamente, entre 760 e 745 a. C. . Ele reconhecia a convicção comum aos seus concidadãos, a relação especial entre Iavé e o seu povo, mas tirava daí consequências diametralmente opostas: Deus não é propriedade privada de Israel. Perante Deus, todos os povos estão em pé de igualdade. O antigo Israel tinha, apenas, maiores responsabilidades morais e uma maior exposição aos castigos pelas injustiças que provocava ou consentia[2]. No tempo da actuação profética de Amós, o reino de Israel tinha atingido o máximo da sua prosperidade, mas o luxo dos ricos insultava a miséria dos oprimidos e o esplendor do culto disfarçava a ausência de uma religião verdadeira. O seu estilo era rude e simples, imagem típica de um homem do campo. Para ele, a prática do povo eleito era pior do que a dos gentios e não se calava perante essa situação. Então, Amasias, sacerdote de Betel, disse a Amós: «Vai-te daqui, vidente. Foge para a terra de Judá. Aí ganharás o pão com as tuas profecias. Mas não continues a profetizar aqui em Betel, que é o santuário real, o templo do reino». Amós respondeu a Amasias: «Eu não era profeta, nem filho de profeta. Era pastor de gado e cultivava sicómoros. Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse: Vai profetizar ao meu povo de Israel»[3]. Como já tentei mostrar, várias vezes, nestas crónicas dominicais, o carpinteiro de Nazaré não chamou os doze apóstolos para as delícias do poder nem para aduladores e imitadores dos grandes deste mundo. Consta, no Evangelho de S. Marcos proposto para este Domingo[4], que Jesus os enviou, dois a dois, com poder sobre os espíritos impuros e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser o bastão: nem pão, nem alforge, nem dinheiro; que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. Disse-lhes também: «Quando entrardes numa casa, ficai nela até partirdes dali. Se não fordes recebidos em alguma localidade, se os habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés como testemunho contra eles». Não será esta uma proposta puramente utópica? Conheço um bispo que sempre procurou mostrar que a utopia é o próprio realismo do profeta de Nazaré. 2. Já me tenho referido ao Ano Raimon Pannikar, uma originalíssima figura da cultura e da religião da Catalunha, que realizou, na sua pessoa e na sua obra imensa, a maior tentativa de síntese entre o Oriente e o Ocidente. Ao ler o texto do Evangelho de Marcos, lembrei-me de outro catalão que fez 90 anos no mês de Fevereiro: Pedro Casaldáliga, chamado bispo descalço sobre a terra vermelha[5]. Durante 38 anos viveu e trabalhou no Brasil, primeiro como missionário claretiano e a partir de 1971, como bispo nomeado por Paulo VI. Não é uma cronologia, mesmo a de um bispo, que define uma personalidade. Pedro Casaldáliga não adoptou a teologia da libertação como uma moda. Ele escolheu-a como forma de vida e de actividade pastoral: Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar. Quando foi nomeado primeiro bispo da diocese, converteu sua casa, pequena, rural e pobre, na sua sede episcopal, sede do seu povo, sobretudo dos mais desfavorecidos, camponeses sem-terra, pobres, analfabetos e oprimidos por coronéis e políticos. Celebrava a Eucaristia para os moradores no quintal da sua casa, entre as galinhas e, à noite, deixava sua porta aberta para o caso de alguém, sem casa, precisar de uma cama que estava sempre disponível. Andava de jeans e chinelos. Tinha duas mudas de roupa. Quando tinha de ir às reuniões com o Episcopado, em Brasília, ia de autocarro, numa viagem de três dias, pois esse era o meio de transporte da sua gente. Do aeroporto à sua casa, em São Félix do Araguaia, só se chegava depois de 16 horas de estrada de terra. Mais tarde lembraria que, no início da sua acção pastoral, faltava tudo: na saúde, na educação, na administração e na justiça. Sobretudo, faltava, na população, a consciência dos próprios direitos e a possibilidade de os reclamar. Acusado de se interessar demasiado pelos problemas "materiais" dos pobres, respondia que não concebia a dicotomia entre evangelização e promoção humana. Decidiu, por isso, o caminho a seguir. O seu lugar não era apenas ao lado dos camponeses sem-terra, mas também o de construir escolas e centros de saúde. 3. Em 1988, o Vaticano convocou-o, para que explicasse a sua proximidade à teologia da libertação e visitasse o Papa João Paulo II, como já o devia ter feito. Apresentou-se, então, em camisa, sem anel e com um colar indígena no pescoço. Disse ao papa: Estou disposto a dar a minha vida por S. Pedro, mas pelo Vaticano, é outra coisa. Ao sair do encontro, declarou à imprensa: O papa escutou-me e não me deu nenhuma repreensão. Poderia tê-lo feito, como também nós o podemos fazer com ele. Acrescentou: O Espírito Santo tem duas asas e a Igreja gosta mais de cortar a da esquerda. No momento em que se escolhem designers para a indumentária e as insígnias episcopais e cardinalícias, seria bom não esquecer as vozes, antigas e novas, que se interrogaram: sucessores de Pedro e dos Apóstolos ou continuadores da era do imperador Constantino[6]?Casaldáliga não precisou desta lição sistematicamente esquecida. Quando a idade o obrigou a apresentar a renúncia ao seu ministério, Roma não lhe pediu para esperar. Casaldáliga fez só um pedido: ser um pároco ao serviço da diocese. Não teve resposta. Foi um colaborador dos dois bispos que lhe sucederam. Aos noventa anos, vive onde sempre viveu, mas já não da mesma maneira. A sofrer de Parkinson, pouco mais lhe resta para além da rotina habitual: cuidados físicos de manhã e, à tarde, leitura do correio, sem poder responder a todas as mensagens de carinho que lhe enviam, porque já tudo lhe custa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Querido S. Pedro Casaldáliga, reza por nós. 15. 07. 2018[1] Mq 6, 8[2] Francolino Gonçalves, Antigo Testamento e direitos humanos, ISTA nº 6, 1998, p. 40[3] Amós 7, 12-15[4] Mc 6, 7-13[5] Título de uma mini-série que foi dedicada ao bispo Pedro Casaldàliga. [6] Cf. Yves Congar, O. P. , Igreja serva e pobre, ed Logos, Lisboa 1964, pp 65; 131 ss
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos humanos cultura campo filho educação homem social igualdade
Com a verdade me enganas
Na Caixa Geral de Aposentações, as idiossincrasias contabilísticas escondem uma realidade devastadora. (...)

Com a verdade me enganas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na Caixa Geral de Aposentações, as idiossincrasias contabilísticas escondem uma realidade devastadora.
TEXTO: Em 1993, Herman José lançou um concurso televisivo de grande sucesso denominado “Com a Verdade M´Enganas” onde, num jogo de verdade e mentira, os concorrentes diziam a verdade para enganar os concorrentes adversários. Vem isto a propósito do Relatório do Conselho das Finanças Públicas (CFP) de setembro de 2018 que analisa a execução orçamental da segurança social e da Caixa Geral de Aposentações (CGA) no 1. º semestre de 2018. É aí referido que “o saldo orçamental da CGA atingiu um excedente de 78 milhões de euros no 1. º semestre de 2018, inferior ao alcançado no período homólogo mas que contrasta com o défice previsto para o conjunto do ano” (-42 milhões de euros previsto no OE2018). Para os menos atentos, incluindo-se aqui alguns órgãos de comunicação social que divulgaram a informação, estes dados parecem indiciar que o problema financeiro da CGA está ultrapassado e que o seu anunciado colapso resultava apenas de um pessimismo desmesurado. Para analisarmos com mais detalhe as conclusões do CFP consideremos os dados históricos da execução orçamental da CGA. Conforme se observa, o saldo orçamental apresenta valores positivos desde 2015, depois de um período de dois anos de saldos negativos. Conforme se constata, na ótica da execução orçamental, a situação da CGA parece não merecer qualquer preocupação, uma vez que o saldo acumulado desde 2013 situa-se em valores próximos dos 140 milhões de euros. Isso significa que a CGA é sustentável. Infelizmente não?Na realidade, as idiossincrasias contabilísticas associadas à sua natureza de “fundo autónomo” escondem por detrás uma realidade devastadora. Com efeito, cerca de 50% da receita resulta de transferências do Orçamento do Estado e não de receitas das contribuições dos trabalhadores!Daqui resulta que em 2018, apesar da execução orçamental se apresentar favorável, como refere o Conselho das Finanças Públicas, as transferências do Orçamento do Estado (financiadas por impostos) situar-se-ão em valores próximos dos 5. 000 milhões de euros. Este desequilíbrio financeiro extremo tem uma explicação muito simples. A CGA foi encerrada a novos subscritores a partir de 2006, o que significa que o número de trabalhadores contribuintes tenderá a diminuir enquanto o de aposentados aumentará. Com efeito, o número de subscritores (pensões) desceu (aumentou) de 588 mil (577 mil) em 2010 para 453 mil (646 mil) em 2017, passando o rácio entre subscritores e pensões de 1, 02 em 2010 para 0, 70 em 2017. Estou convicto que a forma como a situação da CGA relatada no Relatório do Conselho das Finanças Públicas foi interpretada por alguns não teve como quadro de fundo o saudoso concurso do Herman José. Contudo, importaria que estas matérias fossem analisadas tendo por base não apenas princípios de exatidão financeira (que não estão obviamente em causa, uma vez que o saldo orçamental é inequivocamente positivo), mas também princípios pedagógicos de educação financeira, garantindo-se desta forma que o leitor possa ter uma visão global e completa da realidade. A este propósito, recordaria apenas uma pequena história muito ilustrativa. Há alguns anos, uma senhora fez a seguinte pergunta a um amigo meu que passeava um cão no jardim: “O seu cão morde?”Esse meu amigo respondeu com a exatidão e verdade que lhe é conhecida: “Não, o meu cão não morde. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A senhora tentou fazer uma festa ao cão e este reagiu agressivamente. Indignada, a senhora perguntou: “Mas não me disse que o seu cão não mordia?!?”O meu amigo respondeu rápida e energicamente: “Disse sim, mas este cão não é o meu!”O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Os hidratos de carbono já passaram a ser bons outra vez?
Onde está a verdade afinal? Por norma costuma estar sempre a meio de opiniões extremadas e neste caso não foge à regra. Quem tem noções básicas de fisiologia e metabolismo e percebe o papel que os hidratos de carbono têm no nosso organismo. (...)

Os hidratos de carbono já passaram a ser bons outra vez?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.7
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Onde está a verdade afinal? Por norma costuma estar sempre a meio de opiniões extremadas e neste caso não foge à regra. Quem tem noções básicas de fisiologia e metabolismo e percebe o papel que os hidratos de carbono têm no nosso organismo.
TEXTO: A polémica nutricional que estalou nas férias de Verão foi um novo estudo que refere que afinal os hidratos de carbono já deixaram de ser maus outra vez! Também houve uma outra notícia viral sobre o óleo de coco ter sido considerado um veneno por uma professora de Harvard, algo que sendo totalmente errado e exagerado não é mais do que a confirmação do que vimos dizendo desde 2014, sobre a falta de propriedades mágicas desta gordura saturada. Voltando ao pingue-pongue dos hidratos de carbono, este último estudo observou que o “ponto óptimo” de consumo que está associado a uma menor mortalidade até anda à volta dos 50% do valor calórico da dieta, um valor que não é propriamente baixo! Dirão os mais leigos que o ano passado por esta altura, ouviram falar noutro estudo que dizia rigorosamente o contrário, que os hidratos de carbono “são piores para a saúde do que a gordura”, algo que já mereceu o devido artigo e interpretação nesta rubrica. Este novo estudo que seguiu cerca de 15. 500 adultos norte-americanos entre os 45-64 durante 25 anos observou que existia uma relação de curva em “U” entre a ingestão de hidratos de carbono e a mortalidade. Ou seja, morreram mais indivíduos que se situavam nos extremos de consumo de hidratos de carbono (o ponto “óptimo” situou-se nos 50% das calorias da dieta). As reacções a este estudo traduzem muito daquilo que são as crenças individuais que cada um tem relativamente à alimentação, servindo o mesmo como arma de arremesso entre as diferentes “facções”. A facção mais “paleo/low carb” apontou as falhas metodológicas do estudo cumprindo a célebre máxima “só há dois tipos de estudo: os que vão de encontro às minhas opiniões, e os que têm falhas metodológicas”. É engraçado o fenómeno que existe hoje em dia nas redes sociais que consiste em pessoas que nunca “deram uma para a caixa” a nível de produção científica, tecerem grandes dissertações sobre as limitações do estudo e os seus potenciais pontos fracos metodológicos. Se é certo que o facto de não se ter um vasto currículo académico não deve automaticamente inibir ninguém de dar a sua opinião, também é certo que existe algo que se chama “noção”. E é essa mesma falta de noção e de conhecimento de todos os morosos processos que fazem parte de um estudo desde a sua análise e tratamento de dados até à publicação final do artigo, que leva certamente a que existam muitas opiniões e comentários cheios de soberba por parte de pessoas inexistentes no mundo da investigação. Por outro lado, a facção mais “tradicional/conservadora/antipaleo” regozijou-se porque “já andávamos a dizer isto há muito tempo”!Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Onde está a verdade afinal? Por norma costuma estar sempre a meio de opiniões extremadas e neste caso não foge à regra. Quem tem noções básicas de fisiologia e metabolismo e percebe o papel que os hidratos de carbono têm no nosso organismo, sabe perfeitamente que este é o macronutriente cuja abordagem nutricional deverá ser mais variável. E porquê? Porque o seu papel é fundamentalmente energético e como tal é totalmente diferente falar de 50% da dieta com hidratos de carbono para o secretário obeso e sedentário ou para o profissional do exercício que dá três a quatro aulas por dia e no meio ainda consegue fazer o seu próprio treino. O principal problema que a interpretação dos resultados deste estudo pode causar é a ideia de que “a quantidade óptima de hidratos de carbono é 50% e ponto final”. E a este nível é importante referir um detalhe relevante nestes dados que passa pela maior ingestão de gordura e proteína animal e menor ingestão de fibra nos grupos com menor ingestão de hidratos de carbono, além de também terem uma maior percentagem de fumadores. Tudo isto é fundamental ter em conta para não se voltarem aos não muito saudosos tempos da dieta padrão da “bolacha Maria” e dos “50-30-20” (% de calorias de hidratos de carbono, gordura e proteína respectivamente). Quem acompanha esta rubrica leva com a conversa do papel fundamental da proteína para a nossa saúde em quase todos os artigos. Fazendo um exemplo prático, se num qualquer plano alimentar for colocada uma quantidade moderada de proteína de 2g/kg, para alguém com 80kg, estamos a falar de 160g de proteína que equivalem a 640 kcal. Se num plano de 1800kcal (assumindo que a pessoa emagrecerá com este aporte calórico) acrescentarmos 50% de hidratos de carbono (900 kcal), ficamos com 260 kcal restantes, que equivalem a 29 gramas de gordura, algo que tornará o plano pouco “comestível”. Por isso, se estes famosos 50% de hidratos de carbono forem sempre assumidos como ponto de partida para um plano alimentar, existem dois potenciais problemas: ou a pessoa corre o risco de perder massa muscular porque não há espaço para a proteína necessária, ou não consegue cumprir o plano porque sem o mínimo de gordura na confecção de alimentos a sua palatibilidade fica severamente comprometida. De igual modo, se tivermos à nossa frente um atleta na véspera de um jogo ou prova longa, 50% de hidratos é um valor bastante baixo, daí que respeitar sempre o princípio da individualidade é algo fundamental. Assim, sempre que saem estes artigos, percebe-se que a falta de literacia científica dos media os faça embarcar em alguma histeria na divulgação e extrapolação dos seus resultados. Aos profissionais de saúde já não é permitido isso. É necessário ler de facto os artigos antes de os partilhar nas redes sociais e saber colocar os resultados de cada estudo ao serviço da sua prática clínica. E já agora, deixar o seu ego e as suas crenças individuais à porta do consultório e do Facebook/Instagram também ajuda…
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave ajuda consumo estudo alimentos animal
O último orçamento das “vacas que voam”
O tempo das “vacas voadoras” que simbolizou a façanha desta improvável solução de Governo entrou em contagem decrescente. (...)

O último orçamento das “vacas que voam”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O tempo das “vacas voadoras” que simbolizou a façanha desta improvável solução de Governo entrou em contagem decrescente.
TEXTO: Não há orçamentos sem incerteza nem orçamentos sem risco e, cumprindo a tradição, o Orçamento do Estado de 2019 (OE2019) contempla ambos em doses elevadas. Dizer que é optimista ou eleitoralista a um ano e três meses do final do seu prazo de execução vale tanto como garantir que é rigoroso e prudente. Ou seja, pouco. Certo é que o OE2019 será o último de uma linhagem na qual a distribuição de rendimentos se sobrepôs à criação de riqueza, na qual um Estado magnânimo se impôs a um Estado exigente. Os quatro anos do Governo de António Costa são como que uma transição entre a dureza imposta pela troika e alguma coisa que se há-de consolidar entretanto e da qual não temos ainda o retrato definido. O tempo das “vacas voadoras”, que simbolizou a façanha desta improvável solução de Governo, entrou em contagem decrescente. Expor os limites desta opção não implica uma rejeição liminar deste orçamento. O que é importante é situá-lo num processo de transição. Não está em causa a denúncia de um radicalismo — o Estado redistribuiu quase tudo o que acumulou mas não se desviou do foco do défice. Nem o augúrio de que terá de vir aí um orçamento ultraliberal. O que se discute são os custos de uma estabilidade paga todos os anos com recursos públicos. Este ano, esse preço foi ainda mais visível. As vacas voaram mais alto. Pensões, progressões, salários, impostos, preços da luz, prémios, promoções, houve de tudo um pouco e até mais. Se é de esquerda aumentar as pensões mais baixas não é assim tão de esquerda dar livros escolares aos alunos de famílias com posses. Se é de esquerda reduzir os passes sociais não é tão de esquerda baixar as propinas até para os mais ricos. Este orçamento é o que é porque não podia ser outra coisa. Continuar a adicionar despesa a uma pilha que acumula três anos de gastos é um irritante optimismo que só o mérito de garantir o cumprimento da legislatura pode justificar. Nesse estado de espírito não cabem as perturbações do comércio mundial, o “Brexit”, a subida inevitável das taxas de juro ou dos preços do petróleo. Se há um ângulo no qual a acusação de eleitoralismo tem pertinência é na crença de que a economia vai crescer 2, 2% em 2019. O diabo anunciado por Passos Coelho e até agora desmentido por Costa e Centeno pode estar sempre mais perto do que se espera. Se a despesa fixa é uma prisão para o futuro, as debilidades do Estado são já um constrangimento do presente. O OE sugere outro olhar sobre o investimento nas infra-estruturas e outro empenho na qualidade dos serviços essenciais. E, ao nível das intenções, fala como nunca no apoio ao tecido produtivo. Portugal tem de deixar de ser um dos países que menos cresce na UE. A geração mais bem preparada, o sistema científico que melhor compara com os padrões da OCDE, a vaga de internacionalização que levou as exportações para o limiar de 45% do PIB justificam outro desempenho. Também por isso, este é o OE de um tempo que se esgota. Não é o OE que Centeno queria, é o OE que a conjuntura política tolera. Portugal respira melhor, elevou o seu rating à categoria de investimento, poupou-se às derivas populistas e abriu a janela a uma ténue confiança no futuro. Mas, mais cedo do que tarde, o país vai ter de fazer escolhas. E reformas. As vacas não foram feitas para voar.
REFERÊNCIAS:
O esfrangalhamento do PSD
A um ano de eleições, é difícil — mesmo com histórias inconcebíveis como a de Tancos — não prever a tranquilidade do PS nas próximas legislativas. (...)

O esfrangalhamento do PSD
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: A um ano de eleições, é difícil — mesmo com histórias inconcebíveis como a de Tancos — não prever a tranquilidade do PS nas próximas legislativas.
TEXTO: O PSD é o partido mais fratricida de Portugal. Os seus 44 anos de história estão pejados de cisões e confusões inéditas e incomparavelmente mais tortuosas do que algum dia aconteceu no outro grande partido do sistema, o PS. A parábola da rã e do escorpião — em que o escorpião morde a rã que o ajudou a sobreviver porque “é a sua natureza” — aplica-se a vários episódios da história do partido. Se o que se passa actualmente não tem nada que ver com as graves dissensões dos tempos de Sá Carneiro, é verdade que permanece uma imensa tentação pelo abismo. A reunião de ontem do grupo parlamentar veio mais uma vez expor o esfrangalhamento do maior partido da oposição, cuja estratégia, ao fim de nove meses de estada do novo líder na cadeira do poder, permanece um mistério para a maioria dos portugueses. Rui Rio, o guardião, decidiu cumprir a coisa à letra e guardá-la para si. A um ano de eleições, é difícil — mesmo com histórias inconcebíveis como a de Tancos — não prever a tranquilidade do PS nas próximas legislativas, muito similar àquela com que está a negociar o Orçamento com os seus parceiros de esquerda. Costa aproxima-se de conseguir fazer o pleno: apresentar um défice zero — ou eventualmente um supéravite — nas contas de 2018, que serão anunciadas lá para Abril, já em pré-campanha eleitoral, enquanto Espanha, Itália e França vão a caminho de défices muito maiores. Tudo isto conseguido com a ajuda dos partidos de esquerda que se encontravam, face a este Orçamento, numa situação de sequestro controlado: demasiadas exigências levariam à queda do Governo e o PS beneficiaria imediatamente. Uma semana depois de termos ficado a saber que a Polícia Judiciária Militar, órgão dependente do ministro da Defesa, encenou a recuperação das armas de Tancos, o primeiro-ministro pode dar-se ao luxo de esperar algum tempo para substituir o seu ministro da Defesa. O Presidente da República e comandante supremo das Forças Armadas, ainda que possa estar incomodado q. b. , está a deixar (também) correr o marfim. Reduzida que está a oposição ao CDS, Costa pode escolher o timing, com o beneplácito do Presidente.
REFERÊNCIAS:
Auto-estradas, caminhos-de-ferro, aeroportos
Nesta tríade, quem faz o papel do rapaz, do velho e do burro? (...)

Auto-estradas, caminhos-de-ferro, aeroportos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nesta tríade, quem faz o papel do rapaz, do velho e do burro?
TEXTO: 1. Tive de me deslocar a zonas de Portugal a que antes só chegaríamos por estradas sinuosas e lentas. Percorri não sei quantas auto-estradas todas interligadas – e quase sem tráfego – e assim o que era longe perto se tornou. Este é um dos traços mais visíveis da nossa adesão europeia, em forma de betão. Paradoxal é que, ao mesmo tempo, zonas recônditas do nosso país, agora abraçadas por estas vias de comunicação, estejam a ser despovoadas e subtraídas de serviços essenciais para a fixação das pessoas. Por outras palavras, o íman de atracção funciona do interior para o litoral e não ao contrário. Como não há fome que não dê em fartura, já somos um dos países com uma maior extensão de auto-estradas por habitante (ver quadro anexo), muito à frente da Alemanha, Itália, França e Reino Unido. Como um dia o então Presidente Cavaco Silva advertiu, "em Portugal ainda se confunde custo com benefício. Uma estrada é toda ela custos. O benefício é o trânsito que passará nela. Se não houver trânsito não há benefício". 2. Ao invés, o comboio foi perdendo importância relativa e a ferrovia não acompanhou a primazia viária. A avaliar pelas notícias parece que chegámos ao grau de quase indigência no plano das infra-estruturas ferroviárias e na qualidade e modernização da maquinaria e comboios. Há uns bons anos, um amigo estrangeiro falava-me de um critério “infalível” para determinar o grau de desenvolvimento de um país visitado. Essa aferição não recorria, no entanto, aos exigentes e manipuláveis itens definidos pelas agências internacionais. Tratava-se, tão só, de considerar, em conjunto, alguns sinais exteriores, daqueles que são mais depressa apreendidos pelas pessoas: a quantidade de (pequenas) obras sempre inacabadas nas ruas; o estado de limpeza e higiene dos sanitários públicos, em especial nos comboios; e o grau de qualidade e de eficiência das telecomunicações. Ou seja, uma sábia mistura de produtividade, comportamento social e tecnologia. CITAÇÃO I: “Nunca viajo sem o meu diário. É preciso ter sempre algo extraordinário para ler no comboio” (Oscar Wilde, 1854-1900)CITAÇÃO II: “Ninguém é ateu num avião em turbulência” (Erica Jong, 1942 -)OXIMORO: Ver um eclipsePALÍNDROMO (capicua de letras): Adias a data da saída (a propósito dos atrasos nos aeroportos)ERRO ORTOGRÁFICO FREQUENTE: Combóio em vez de comboioTROCADILHO: Robles rublosSe não há dúvida que no capítulo das comunicações demos um enorme salto e estamos no pelotão da frente, já quanto aos outros dois requisitos não progredimos e até, em parte, teremos regredido. OLEANDRO (Nerium OLeander Miller)Por falar em auto-estradas, o oleandro, também conhecido por aloendro, alandro, cevadilha, adelfa e outros nomes vernáculos, é uma planta arbustiva que habita em muitos dos seus separadores centrais, esbatendo o monopólio do asfalto. É visto sobretudo a sul do Tejo, designadamente sob a forma espontânea e pode atingir alguns metros de altura. As suas flores hermafroditas são vermelhas, rosadas ou brancas e as folhas longas e estreitadas. É pouco exigente quanto a solos e resistente às diferenças climáticas e, na altura da floração, apresenta-se como muito ornamental e airoso. Trata-se, todavia, de um género botânico de elevada toxicidade (pode ser mesmo letal), em particular as folhas e o látex das ramagens, por via da oleandrina e da neriantina, substâncias extraordinariamente tóxicas. Deveria haver, sobretudo nas cidades e povoações, aviso sobre esta perigosa característica. O concelho de Alandroal no Alentejo raiano deve-lhe o seu nome, pois que significa lugar onde há muitos alandros. Fazendo uma viagem no “must” Alfa Pendular, verificamos a degradação lenta das carruagens. Sujas, descuidadas, com ar condicionado desregulado (“a culpa é do Verão”, disse um governante sem corar. . . ), com casas de banho sem higiene (a que não será alheia a incivilidade de passageiros). Imagino o que será fora da linha do Norte ou em composições secundárias. . . 3. Estradas, caminhos-de-ferro e, claro está, aeroportos. O de Lisboa, cada vez mais no meio da cidade, está a rebentar por todos os lados e, qualquer dia, é preciso ir de véspera para chegar a tempo de embarcar. A ANA continua no seu ritmo desenfreado de aumento de taxas aeroportuárias, sem que ninguém com isso se escandalize. Há muitos anos se diz da iminente exaustão da Portela e da necessidade de uma nova infra-estrutura. Depois de abandonada a ideia otária da Ota, chegámos à solução do Montijo, com estudos para cá, estudos para lá, discursatas por uma coisa e o seu contrário, impactos ambientais de umas aves ou de uns passarões, nova ponte por fazer ou adiar. Conclusão: ainda tudo na mesma, com o Aeroporto de Lisboa nas últimas e a qualidade a deteriorar-se a olhos vistos. Há até quem tenha tido a ideia de o aeroporto de “Lisboa + 1” ser Beja, que fica a uma distância demasiado longa sem haver as infra-estruturas rodoviárias ou ferroviárias adequadas. Aliás, no Terminal Civil de Beja, inaugurado há sete anos (Abril de 2011), o movimento em 2015 foi de 233 passageiros (não chega a um passageiro por dia) e de 38 aeronaves (média de três por mês) e, no primeiro trimestre deste ano, houve apenas 29 passageiros! Há dias, o novo e gigante Airbus A380 aterrou em Beja, que tem pista suficiente (que Lisboa não tem) mas não tem passageiros (que Lisboa tem a mais). . . Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este investimento apostava em taxas aeroportuárias competitivas e na utilização intensiva por operadores de baixo custo. Os estudos prévios – certamente bem pagos e estimulantes para sustentar ideias mirabolantes ou megalómanas – previram um milhão de passageiros em 2015 e 1, 8 milhões em 2020!Segundo a ANA, o aeroporto de Beja deve ser entendido como um “sunk cost” (custo irrecuperável), tendo assentado em “critérios políticos e não financeiros”. O seu custo, anunciado como atingindo os 33 milhões de euros, terá chegado, segundo o Tribunal de Contas, a 79 milhões, depois de derrapagens e de erros de construção. Eis um tão expressivo quanto infeliz exemplo de mau investimento com dinheiro público, mas sem “accountability” política. Tudo sem escândalo. Afinal, nada de anormal. Não há culpas, nem responsáveis que, na sua maioria, ainda habitam os corredores do poder. Tudo numa boa. À portuguesa!Auto-estradas, caminhos-de-ferro, aeroportos. Nesta tríade, quem faz o papel do rapaz, do velho e do burro?
REFERÊNCIAS:
Descentralização "à condição"
O “diabo” nestas leis-quadro está no detalhe das leis complementares que lhes dão corpo e efectividade. Ou seja, o problema é passar da visão topológica de helicóptero (ou de drone) para a realidade prática. (...)

Descentralização "à condição"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O “diabo” nestas leis-quadro está no detalhe das leis complementares que lhes dão corpo e efectividade. Ou seja, o problema é passar da visão topológica de helicóptero (ou de drone) para a realidade prática.
TEXTO: Em todos os cardápios político-partidários é compulsivo haver iniciativas de descentralização e afins. Fruto do entendimento de um bloco central após a nova liderança do PSD, eis que surgiu, em todo o seu esplendor tautológico, a “Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais”, entretanto já promulgada pelo Presidente da República (PR). A sua leitura evidencia a proverbial competência legislativa para leis-quadro ou de leis de bases: um conjunto mais ou menos prolixo de disposições, orientações, condições, auscultações e observações, além dessa dissimulação jurídico-voluntarista de normas do tipo “deve ser” em vez de “é”. Já não sei quantas leis e derivativas foram aprovadas, com inusitada circunstância, sobre o sempre inacabado objectivo de descentralização administrativa. E já não sei quantas vezes, no plano da intenção e da discussão, se cruzaram conceitos e propósitos bem distintos, mas sobreponíveis na imprecisão conceptual. Por exemplo, falar de regionalização (mesmo que não política, mas tão-só administrativa), descentralização, municipalização, delegação de competências ou mera desconcentração funcional sugere, muitas vezes, um caldo politicamente correcto de anti-centralismo que recebe encómios de toda a sorte. O “diabo” nestas leis-quadro está no detalhe das leis complementares que lhes dão corpo e efectividade. Ou seja, o problema é passar da visão topológica de helicóptero (ou de drone) para a realidade prática. Utilizando uma (indigente) expressão do futebol, trata-se de “leis à condição”…Não há ninguém que, sensatamente, não apoie uma efectiva descentralização. No entanto, desconcentrar e descentralizar, sobretudo em concelhos e freguesias do interior, é um bom propósito, que, todavia, colide com o seu brutal despovoamento. Afinal descentralizar o quê e para quê, ao mesmo tempo que se fecham serviços locais públicos e sociais, agências do banco público, se encerram escolas, correios, esquadras, ou se menospreza o benefício de proximidade de quem lá habita face a autoridades centralizadas (vide combate aos incêndios)?O PR, embora promulgando a lei, avisou que estaria muito atento ao “diabo”. Vale a pena transcrever parte da sua nota pública: “pela própria generalidade e abstracção que evidenciam, deixam em aberto outras questões, para que importa chamar a atenção: a sustentabilidade financeira concreta da transferência para as autarquias locais de atribuições até este momento da Administração Central; o inerente risco de essa transferência poder ser lida como mero alijar de responsabilidades do Estado; a preocupação com o não agravamento das desigualdades entre autarquias locais; a exequibilidade do aprovado sem riscos de indefinição, com incidência mediata no rigor das finanças públicas; o não afastamento excessivo e irreversível do Estado de áreas específicas em que seja essencial o seu papel, sobretudo olhando à escala exigida para o sucesso de intervenções públicas”. Nesta lei-quadro, a descentralização administrativa abarca um conjunto de áreas que, na sua grande maioria, já contemplam funções a nível local: educação, acção social, saúde, cultura, património, vias de comunicação, protecção civil, etc. O policiamento de proximidade está agora incluído com este naco de prosa declarativa: “É da competência dos órgãos municipais participar, em articulação com as forças de segurança, na definição a nível estratégico do modelo de policiamento de proximidade a implementar”. A saúde animal também não é esquecida, com outro laivo eloquente de assertividade normativa: “É da competência dos órgãos municipais exercer os poderes nas áreas de protecção e saúde animal, bem como de detenção e controlo da população de animais de companhia, sem prejuízo das competências próprias da autoridade veterinária nacional”. Já o modelo de repartição de competências entre municípios e juntas de freguesia está previsto de um modo que mais parece um algoritmo com soluções à la carte. Vejamos: “o modelo de repartição de competências entre os municípios e as freguesias é fixado através de contrato interadministrativo, devendo permitir uma melhor afectação de recursos humanos e financeiros, e é configurado em termos flexíveis, de modo a viabilizar uma harmonização entre os princípios da descentralização e da subsidiariedade e as exigências de unidade e de eficácia da acção administrativa”. Neste preclaro enquadramento, imagino já a delicada engenharia orçamental e “os mecanismos e termos da transição dos recursos humanos” (artº 8º). Por fim, assinala-se o artigo que estipula que “a presente lei produz efeitos após a aprovação dos respectivos diplomas legais de âmbito sectorial, acordados com a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP)”. Como os diplomas têm de ser acordados com a ANMP, estamos diante de um novo órgão legislativo não previsto na CRP? E caso não haja acordo, a ANMP tem, na prática, o direito de veto. Será constitucional? Têm a palavra os especialistas…Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. IPSIS VERBISCITAÇÃO: “O poder local é a escola primária da democracia” (Alexis de Tocqueville, 1805-59). EUFEMISMO: “Esta excepção (Monchique) confirmou a regra do sucesso da operação que decorreu ao longo de todos estes dias” (António Costa, PM, 8/8/18). METÁFORA: “A vela de um bolo de aniversário todos nós o apagamos [será o artigo a, pois não creio que seja o bolo que se apaga] com um sopro, mas quando a chama se alarga e os incêndios ganham uma escala com esta dimensão, não basta [o verbo não é impessoal devendo concordar com o sujeito: bastam] os sopros nem alguns dias de trabalho” (PM, 8/8/18)VERBO: ignificar (uma ignição), não necessariamente dignificar (uma acção). PARADOXO METAFÓRICO: “Amor é fogo que arde sem se ver” (Luis de Camões, 1524-80)CATACRESE: língua de fogoSCIENTIA AMABILISMEDRONHEIRO (Arbutus unedo, L. )O incêndio na Serra de Monchique destruiu, entre outras espécies, muitos medronheiros. Trata-se de um arbusto, nativo da região mediterrânica, que pode atingir um porte arbóreo. De folha persistente e coriácea, é, sobretudo, conhecido pelo seu fruto, o medronho. Trata-se de uma baga esférica medindo 2 a 2, 5 cm que, uma vez na fase de maturação, apresenta belas cores amarelas, alaranjadas e vermelhas. Uma das mais curiosas e singulares características do medronheiro é a da coexistência nos seus ramos, no Outono, das flores brancas ou levemente rosadas, reunidas em cachos pendentes e dos frutos maduros do ano anterior. Efabulação ou não, diz-se que o fruto, se digerido em excesso, pode levar ao estado de embriaguez, pelo teor de álcool que pode conter. Daí o nome científico da espécie (unedo) que significa, em latim, "comer apenas um". O certo é que o medronho está na base de bebidas licorosas e, sobretudo, da aguardente de medronho, muito afamada no Algarve, bem como de geleias e até rebuçados.
REFERÊNCIAS:
Partidos PSD
Imposto por inércia e duas perguntas à volta da estética
Não seria melhor que os partidos impedissem situações de abuso de autoridade pública como a que aqui descrevo? (...)

Imposto por inércia e duas perguntas à volta da estética
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não seria melhor que os partidos impedissem situações de abuso de autoridade pública como a que aqui descrevo?
TEXTO: 1. Vários factores contribuem para o cálculo do valor patrimonial tributário (VPT) dos imóveis, para além da área e do valor base dos prédios. Refiro-me aos coeficientes de localização, afectação, qualidade, conforto e vetustez. Podendo todos estes parâmetros variar com o tempo, há um que é absolutamente objectivo, precisamente por causa do tempo. Trata-se do coeficiente de vetustez (curiosa esta expressão), que é função do número inteiro de anos decorridos desde a data de emissão da licença de utilização ou da conclusão das obras de edificação. Varia entre o factor 1 para os imóveis com menos de dois anos e 0, 4 para os que já ultrapassaram os 50 anos de vida. Repito: a vetustez é objectiva. Não pode ser modificada, seja por arbítrio da Administração Fiscal, seja por “manipulação” do sujeito passivo. Como tal, a alteração desse factor através da passagem dos anos nem sequer precisa de ser provada, pelo que deveria ser automática. Mas não é. O Estado, além dos impostos directos, dos indirectos, dos dissimulados de taxa e dos de tesouraria (por exemplo, o excesso de retenção em IRS), tem uma quinta modalidade de cobrar mais, sem que tal reflicta o espírito da lei. Chamar-lhe-ia uma espécie de “imposto por inércia”, pelo qual o Fisco deixa andar as coisas e cobra um valor por excesso em relação ao que está legalmente estabelecido. CITAÇÃO I: “O incapaz se cobre; o rico se enfeita; o presunçoso se disfarça; o elegante se veste” (Honoré de Balzac, 1799-1850)CITAÇÃO II: “O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou” (Vergílio Ferreira, 1916-1996)PLEONASMO: Alojamento local (mais um modismo tonto. Haverá algum alojamento que não seja local?)EUFEMISMO: “Já tem uma idadezinha” (a propósito da vetustez. . . )GREGUERIA: “As passas são uvas octogenárias” (Ramon de La Serna)É, aliás, deveras curiosa a conduta fiscal de “dois pesos, duas medidas”: a não consideração automática já referida da idade do imóvel, mas a consideração automática do valor de construção por metro quadrado (médio e base), que é fixado anualmente sob proposta da Comissão de Avaliação de Prédios Urbanos. Em minha opinião, é – objectivamente – uma situação de má-fé fiscal, ilegal, injustificada e abusiva. O Estado tem – e bem – evoluído na sua relação com os cidadãos por via do desenvolvimento dos sistemas electrónicos, mas neste caso ignora olimpicamente um automatismo sem qualquer dificuldade de pôr em prática. Não é o mesmo Estado que altera tantas situações em função de factores objectivos (por exemplo, da nossa idade) quando é para complicar a nossa vida ou alterar benefícios sociais, deduções fiscais, etc. ?Ceiba speciosa (Paineira)Por esta altura entre o fim do Verão e o início do Outono, floresce a Ceiba (ou Chorisia) speciosa (conhecida como paineira branca e confundida com sumaúma). Trata-se de uma árvore originária da América do Sul de um tronco esverdeado (com a idade acinzenta-se) que, na base, é mais alargado, o que lhe imprime um jeito algo barrigudo. É revestido de aguçados picos ou acúleos que evitam a ousadia de alguns animais lhe poderem causar estragos. As folhas palmadas caem na época da floração. As flores são vistosas e grandes, com cinco pétalas rosadas com pintas vermelhas. O fruto, pouco visto no Continente, porque a árvore exige um calor tropical, é uma cápsula grande e abre-se depois de amadurecer, libertando uma rama branca sedosa constituída pelos pêlos que envolvem as sementes (a paina), que tal como a samaúma (Ceiba pentandra) serve para o preenchimento de travesseiros e almofadas. Em Lisboa pode ver-se, por exemplo, junto do Centro Cultural de Belém (na fotografia). Ao invés, o Fisco define, quase a seu bel-prazer, a mudança dos outros coeficientes, sem necessidade de qualquer justificação ou demonstração. Por exemplo, acontece muitas vezes que um contribuinte pede a alteração do coeficiente de vetustez (que é aceite), mas tal pedido acaba por conduzir a uma alteração discricionária, por exemplo do coeficiente de localização, que anula ou inverte a diminuição do VPT resultante da idade do imóvel. Em linguagem popular, corre-se o risco de ir buscar lã e voltar tosquiado. . . A situação é tão absurda que a aceitação fiscal da diminuição do coeficiente de vetustez a pedido do contribuinte nem sequer retroage para o ano em que tal alteração deveria ter sido concretizada automaticamente. Pelo contrário, só tem efeito no ano seguinte ao do pedido. Acresce que, em imóveis em propriedade horizontal, o coeficiente de vetustez alterado para um proprietário que pediu a respectiva conformidade com a idade de todo o imóvel só à sua fracção se aplica. Ou seja, fracções iguais terão VPT diferentes. Eis a negação do princípio da equidade fiscal em todo o seu esplendor!Não seria melhor que os partidos que tanto gostam de ter iniciativa parlamentar para agravar impostos por tudo e por nada, impedissem situações de abuso de autoridade pública como a que aqui descrevo? A discussão do OE 2019 é uma boa oportunidade para isso. Louva-se a acção da Deco, que tudo tem feito para inverter este abuso. Lançou um simulador há cinco anos, através do qual foram feitas mais de 900 mil simulações, onde se detectaram cerca de 95 milhões de euros cobrados indevidamente. Em média, cada um pagou mais 100 euros do que deveria. Enfim, no meio de tantas minudências espumosas, os deputados ignoram estas arbitrariedades que se eternizam…Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. 2. Duas perguntas:– O primeiro-ministro foi em viagem de Estado a Angola. À chegada, teve honras militares e foi acompanhado na correspondente revista por um governante angolano. Ao contrário deste, vestia um casaco desportivo, camisa aberta, uns jeans descuidados e uns mocassins, como quem vai para a praia. Dir-me-ão que se trata de um detalhe (estético) numa viagem de (aparente) sucesso. Mas pergunto: António Costa estaria assim trajado se o país fosse, por exemplo, a Alemanha, a França ou os Estados Unidos? Eu tirei as minhas conclusões. . . – Depois de meses de tacticismo e fingimento, foi tornada pública a indigitação da nova procuradora-geral da República. A Dra. Joana Marques Vidal, pela sua notável e corajosa dedicação à causa pública, não teria, ao menos, merecido – para além de meras palavras de circunstância – ter tomado conhecimento desta decisão de outra maneira (segundo as suas palavras foi informada uma hora antes!)? Pareceu tudo muito grosseiro e injusto. Será que a política está agora isenta de ética institucional e de estética relacional?
REFERÊNCIAS: