ONU volta a dizer que Portugal deve ter políticas específicas para afrodescendentes
Relatório de 2012 já sublinhava a necessidade de Portugal avançar com medidas para estes grupos. Cortes financeiros no Alto Comissariado para as Migrações e manuais escolares também preocupam peritos. (...)

ONU volta a dizer que Portugal deve ter políticas específicas para afrodescendentes
MINORIA(S): Ciganos Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20190710235039/https://www.publico.pt/n1754235
SUMÁRIO: Relatório de 2012 já sublinhava a necessidade de Portugal avançar com medidas para estes grupos. Cortes financeiros no Alto Comissariado para as Migrações e manuais escolares também preocupam peritos.
TEXTO: Tal como 22 associações de afrodescendentes reivindicaram numa carta enviada ao Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD, em inglês), este organismo recomendou nesta sexta-feira a criação de medidas específicas para estes grupos. Esta era uma recomendação que já tinha feito em 2012. Na avaliação que acaba de ser publicada, o CERD afirma que continua a estar preocupado com o racismo de que os afrodescendentes são alvo em Portugal e com o facto de não existirem programas “especialmente direccionados às suas preocupações”. Sublinha que é preocupante que os afrodescendentes sejam ainda “invisíveis nos sectores mais importantes da sociedade”. Outra das sugestões deixadas é que o Estado se envolva num “diálogo aberto e construtivo” com os afrodescendentes, com o objectivo de abordar as suas queixas de “discriminação racial”. Chama por isso a atenção para a ausência da presença de Organizações Não Governamentais (ONG) neste processo de avaliação de Portugal (os peritos da ONU não receberam relatórios dessas organizações, como recomendado). O CERD volta a insistir que Portugal deve desagregar dados estatísticos sobre minorias étnicas e raciais para se ter uma análise “da forma como os direitos económicos, sociais e culturais estão a ser vividos" por estes grupos — a Constituição portuguesa proíbe esta recolha, mas "para casos excepcionais" o primeiro-ministro poderia autorizá-la. As Nações Unidas reconhecem ainda que o Estado tomou medidas para recolher informação desagregada nos seus diversos Observatórios, como o das Comunidades Ciganas, Migrações e Tráfico de Seres Humanos: “Porém alguns dos dados recolhidos não cobrem os seus grupos na totalidade. ”Há mais recomendações a Portugal: que controle de forma eficaz as queixas sobre discriminação racial e investigue e puna o discurso de ódio, incluindo o de políticos. Além disso, é necessário conduzir uma efectiva investigação de cada uma das denúncias de uso excessivo da força por parte das polícias, garantir a punição de quem a pratica e indemnizações para as vítimas. O comité quer, aliás, para o próximo relatório de Portugal, obter informação detalhada sobre estes casos, como o número de queixas às forças de segurança e o seu desfecho. A ONU está igualmente preocupada com o número limitado de queixas relativas ao artigo 240 do Código Penal (que criminaliza o racismo). A ausência de denúncias “não significa ausência de discriminação racial”. Portugal deve assim investigar quais as causas: se são as próprias vítimas que não têm informação sobre os seus direitos; se sentem medo de represálias; se têm acesso limitado à polícia; se não confiam nela e no sistema judicial ou se, por outro lado, há falta de atenção das autoridades para casos de discriminação. Dizem ainda os 18 peritos independentes que avaliaram Portugal que é preciso acelerar a Lei contra a Discriminação Racial. E mudar alguns aspectos do funcionamento da Comissão para a Igualdade e Discriminação Racial. Esta deve ser reforçada a nível de recursos financeiros e humanos. O processo de apresentação de queixa tem de ser mais simples e é preciso rever o modo como é feita a prova: o suposto agressor é que deve provar que não cometeu aquilo de que é acusado. No capítulo sobre as comunidades ciganas, o CERD afirma que “continuam a ser alvo de discriminação em muitas áreas da vida, como acesso a habitação e educação” — e para isso devem ser intensificadas medidas específicas. “O Comité também está preocupado com a ausência de consulta a pessoas de etnia cigana em todos os estágios de implementação e avaliação da Estratégia Nacional para a Integração de Comunidade Cigana. ” E diz que o financiamento desta estratégia deve ser reforçado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Refere ainda que os cortes orçamentais de que foi alvo o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), a extensão das funções deste organismo e as novas tarefas que lhe competem podem sacrificar a sua missão de promover a igualdade e inclusão de migrantes. Outro dos aspectos que preocupam o CERD são os livros escolares que ainda tenham imagens discriminatórias e estereotipadas da ciganos e afrodescendentes e outros grupos minoritários — por isso, recomenda que o Estado avalie os currículos e os manuais de modo a que estes retratem melhor o passado colonial e a herança cultural dos diversos grupos, bem como o seu contributo para a sociedade e culturas portuguesas. Portugal ratificou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial em 1982. Periodicamente, os países submetem relatórios para a apreciação dos peritos independentes que fazem parte do comité da ONU. O relatório português que foi entregue em Genebra foi redigido pela Comissão Nacional para os Direitos Humanos, sob supervisão do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e baseia-se em informação dada pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e vários ministérios.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Como se avalia um país? “As discussões são confidenciais”
No lapso de um mês e meio, dois relatórios internacionais que avaliavam Portugal geraram discussão. Para onde olha quem nos avalia? E com quem fala? Falámos com um dos autores. (...)

Como se avalia um país? “As discussões são confidenciais”
MINORIA(S): Ciganos Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: No lapso de um mês e meio, dois relatórios internacionais que avaliavam Portugal geraram discussão. Para onde olha quem nos avalia? E com quem fala? Falámos com um dos autores.
TEXTO: Entre visitas ao país, pesquisa de notícias de jornais e relatórios oficiais, conversas com representantes do Governo, reuniões com organizações não-governamentais, muito se passa antes que se conheça os resultados das avaliações que são feitas regularmente pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI, na sigla inglesa), do Conselho da Europa. No total, demora cerca de um ano, estima Wolfram Bechtel, advogado e membro da comissão que avaliou recentemente a situação em Portugal. Este ano, o relatório sobre o país, publicado a 2 de Outubro, tinha 49 páginas e 107 constatações e recomendações. E suscitou polémica. A vários níveis. Desde logo, a ECRI aborda a questão do ensino da História em Portugal. Frisa que ele “deveria englobar o papel que Portugal desempenhou no desenvolvimento e, mais tarde, na abolição da escravatura, assim como a discriminação e a violência cometidas contra os povos indígenas nas ex-colónias”. Mais: devia abordar “a história e o contributo dos afrodescendentes, assim como dos ciganos, para a sociedade portuguesa”. E as autoridades nacionais “deveriam melhorar os manuais escolares seguindo estas linhas de orientação”. A ECRI não revela quem são as organizações da sociedade civil por si ouvidas no país em avaliação — “garantimos-lhes que as nossas discussões são confidenciais”, diz Wolfram Bechtel ao PÚBLICO. E leram os manuais? Falaram com professores? O presidente da Associação de Professores de História (APH) diz que não foram contactados por ninguém da ECRI. “Deviam tentar fazer a análise dos manuais mais vendidos”, defende o professor. Se tivessem feito essa consulta, continua Miguel Monteiro de Barros, veriam que “alguns manuais não são muito correctos a esse nível, mas a sua quota de mercado há-de ser 2 ou 3%”. É “quase irrelevante”. E se tivessem sido contactados, o que diria a APH? “Acho que há uma parte da questão que se coloca de forma errada, porque muitos professores não usam o manual como instrumento principal. ” Quanto aos programas “são mais ou menos neutros, deixando algumas destas questões um pouco em aberto”. Nesse sentido, a “APH esteve a trabalhar com o Ministério da Educação para elaboração das aprendizagens essenciais, a partir dos programas”. Miguel Monteiro de Barros sublinha a “preocupação, desde Outubro de 2016, em introduzir estas questões da forma mais correcta possível”. Os relatórios elaborados pelos organismos internacionais, como a OCDE ou o Conselho da Europa, são feitos por pessoas “muito competentes”, defende Fernando d’Oliveira Neves, antigo embaixador de Portugal e representante do Governo a nível internacional em diversos cargos. Não significa, porém, que “não deixe de haver algum tipo de preconceito” até porque “tudo o que é feito por seres humanos reflecte o que eles são”. No geral, pode ter-se “considerável confiança” nestes conteúdos, acredita. Sobre o caso concreto dos relatórios que analisam as competências do país ao nível da educação, Domingos Fernandes, professor no Instituto da Educação e ex-secretário de Estado da Administração Educativa, defende que lhes estão associados metodologias que “têm credibilidade”. Um exemplo disso é o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla inglesa). Contudo, “não há metodologias à prova de bala”, alerta. “Há sempre outra forma de fazer as coisas. Estas questões são complexas e precisam de um olhar cauteloso e crítico. ” Os estudos têm vantagens e desvantagens. Por um lado, diz, dão-nos um “ponto de situação sobre o curso que estamos a dar ao sistema educativo”. Mas há limites: “Não faço relação de causa-efeito entre os estudos internacionais e políticas internas. ” Quanto aos potenciais malefícios, avisa que pode haver tendência para “tratar os resultados como um campeonato de futebol” e tomar medidas só para ficar bem na fotografia. “Não podemos entrar por aí. ”Marta Araújo, investigadora no Núcleo de Estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e autora de vários trabalhos que avaliam a forma como a História é relatada nos nossos manuais, não pensa da mesma forma. “Como é que se pode ensinar a escravatura e nunca se mencionar como um pensamento racial esteve associado à escravatura”, questiona. A ECRI diz que não viu os manuais. “Não temos a capacidade nem o tempo para olhar para os livros”, faz saber Wolfram Bechtel. “As autoridades portuguesas talvez sejam as melhores para fazer essa avaliação e olhar para os livros de História e identificar pontos onde as melhorias podem ser feitas”, sugere. “Nós chegamos às nossas recomendações ao ouvir o que dizem a sociedade civil, os investigadores, as outras organizações internacionais e as autoridades. ”De resto, o que a ECRI propõe não é novo — tanto esta entidade como a ONU já suscitaram a questão do ensino da História em Portugal noutros relatórios. O PÚBLICO questionou o Ministério da Educação para saber se ia tomar medidas em relação às recomendações internacionais, mas não obteve resposta. Contudo, nesta quarta-feira, numa audição na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, convocada pelo Bloco de Esquerda para o ouvir o ministro da Administração Interna sobre o relatório do Conselho da Europa, Eduardo Cabrita foi categórico: “Não há necessidade de mudar os manuais. ”Além do ensino da História, a ECRI também apontou o dedo à Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) por, afirma, tolerar o racismo e não fazer um seguimento adequado das denúncias. Apesar das acusações de violência racista cometida por agentes de polícia, “nenhuma autoridade reuniu sistematicamente estas acusações e procedeu a um inquérito eficaz para determinar se são ou não verdadeiras”, lê-se no relatório. “Isto levou ao medo e falta de confiança na polícia, particularmente entre as pessoas de origem africana. ”Esta tomada de posição levou as autoridades portuguesas a pedirem a publicação de um “Ponto de vista do Governo”, num apêndice ao documento. Aí, a PSP e a IGAI refutam a maioria das conclusões que lhes dizem respeito, em particular a acusação de que toleram o racismo. A IGAI insurge-se contra a mencionada necessidade de um organismo que investigue alegados casos de racismo e violência da polícia, e apresenta-se como esse “órgão independente”. A Direcção Nacional da PSP fez saber que muitas das respostas que enviou à ECRI quando o país estava a ser avaliado foram mesmo ignoradas. Wolfram Bechtel relativiza: “Os comentários [negativos] são só de duas organizações governamentais. A ECRI falou com muitas mais. ” Além disso, “cobrir o assunto do racismo e intolerância nestas páginas exige foco”. E se é facto que é uma “selecção difícil de satisfazer toda a gente”, também é responsabilidade da comissão escolher “os assuntos em que se quer focar”. Quem também se queixou foi Duarte Marques. Supostas declarações racistas do deputado do PSD eram citadas numa primeira versão do relatório, tornando-o exemplo deste tipo de discurso entre políticos. O documento já foi corrigido pela ECRI já depois da primeira versão ter sido divulgada. O trabalho apresentado pela ECRI não é o primeiro relatório internacional a ser polémico nos últimos tempos. Há cerca de um mês o mais recente Education at a Glance (que é feito anualmente pela OCDE desde 2000) caiu que nem uma bomba. Os sindicatos apontaram erros nos número disponibilizados sobre salários dos professores e prometeram invadir as caixas de e-mail da organização com reclamações. “Com a polémica que existiu nem era preciso ir ao anexo técnico”, comenta ao PÚBLICO Nuno Rodrigues, director de Serviços de Estatísticas da Educação na Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência e responsável por fornecer à OCDE os dados relativos a Portugal. Bastaria ler o título do gráfico, continua, porque os valores apresentados para os salários dos professores correspondem à paridade do poder de compra (PPS) e, por isso, não são o rendimento real. A OCDE (e outros organismos) utiliza este método para poder comparar países. João Dias da Silva, da Federação Nacional da Educação (FNE), admite que as questões inicialmente levantadas pelos sindicatos se prendiam com a interpretação errada dos dados, que não tiveram em conta que os números eram apresentados em PPS. Além disso, o facto de as pessoas não se reverem individualmente nos números, que são uma representação do universo dos professores, também levantou problemas. Mas persistem dúvidas sobre outros dados, nomeadamente o tempo de trabalho, os salários e a carreira docente que aparecem no relatório e que o responsável da FNE faz saber que já foram colocadas à OCDE. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dias depois de se saber o conteúdo desta avaliação, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues dizia ao PÚBLICO que o documento “não é uma bomba”. “Em Portugal, o Education at a Glance é alimentado com o inquérito UOE (produzido para a UNESCO, OCDE e Eurostat)” e outras fontes como o INE e o Instituto de Gestão Financeira, explica Nuno Rodrigues. “Depois, dependendo do ano em que está a ser realizado há estudos internacionais que podem ser utilizados”, como os do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (também da OCDE). “A nossa preocupação é a independência. A equipa não comenta os dados. Há outras pessoas que têm de o fazer. Nós temos de dar aos utilizadores, sejam eles quais forem, a informação”, declara Rodrigues.
REFERÊNCIAS:
Partidos PSD
Tiros e casas queimadas lançam o pânico nas comunidades de Santo Aleixo
Desde Setembro que se sucedem actos de vandalismo contra a família cigana que mora nesta pequena freguesia do concelho de Moura. (...)

Tiros e casas queimadas lançam o pânico nas comunidades de Santo Aleixo
MINORIA(S): Ciganos Pontuação: 14 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Desde Setembro que se sucedem actos de vandalismo contra a família cigana que mora nesta pequena freguesia do concelho de Moura.
TEXTO: Em Santo Aleixo da Restauração, freguesia do concelho de Moura, vive uma única família cigana, um agregado com cerca de meia centena de pessoas. E, ao contrário do que acontece no Bairro das Pedreiras em Beja, é uma comunidade sedentária que reside há 15 anos na freguesia, integrada na comunidade autóctone, em casas adquiridas pelos vários membros da família de José Manuel Caixinha, irmãos, filhos e sobrinhos, sem que haja registo de conflitualidade. . . até meados do passado mês de Setembro. Um sobrinho de Manuel Caixinha conta como se deu início ao conflito que lançou em sobressalto as comunidades cigana e autóctone. “Um membro da nossa família teve uma discussão com um espanhol do Rosal de la Frontera [povoação espanhola vizinha de Barrancos, a cerca de 20 quilómetros de Santo Aleixo da Restauração]. ” Foi o “álcool” que provocou o incidente que viria a ter consequências que deixaram as duas comunidades em sobressalto, acrescenta Manuel Caixinha, que também é pastor na Igreja Evangélica de Filadélfia. O pequeno templo que mandaram construir há oito anos, e onde realizavam o culto, foi incendiado na madrugada de 20 Setembro. A estrutura exterior, feita em chapa metálica, resistiu às chamas, mas no seu interior “ardeu tudo”, salienta o sobrinho de Manuel Caixinha, convicto de que a sua comunidade “está a ser vítima de racismo e de vandalismo”. Duas semanas depois, “puxaram fogo” à casa de um membro da comunidade cigana e a um carro que estava para abate, acrescenta o pastor evangélico. Seguem-se a um ritmo semanal os incêndios em duas casas habitadas e mais três carros. “Ainda hoje não sabemos quem pegou fogo e quais as razões”, garante o sobrinho de Manuel Caixinha. O PÚBLICO quis saber como é o relacionamento com as outras pessoas da freguesia. “Uns falam-nos bem, a outra parte não quer nada connosco”, diz o pastor evangélico. “Ainda se nós fizéssemos mal a alguém”, lamenta-se, realçando como os incidentes assustaram as crianças. O presidente da Associação dos Mediadores Ciganos, Prudêncio Canhoto, está a acompanhar a situação e confirmou ao PÚBLICO que as pessoas “sentem-se inseguras com receio do que lhes possa acontecer”. Sérgio Escoval Baião, natural de Santo Aleixo da Restauração e reformado, confirma a existência de conflitos e que a GNR “até à noite tem vindo à freguesia por causa dos tiros”. Está convicto que os culpados não estão entre a população. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “As razões são dos dois lados”, sentencia o major Carlos Bengala, oficial de Relações do Comando Territorial de Beja da GNR, deixando claro que a situação está a ser acompanhada e que foram reforçados os patrulhamentos. Os inquéritos às causas dos incidentes ainda não estão concluídos e a Polícia Judiciária continua a investigar, assinala Carlos Bengala, afirmando não haver indicação que “tenha ardido um carro que estivesse em condições de funcionar”. E numa das casas “o incêndio terá sido provocado uma ligação ilegal de energia”, observa. O porta-voz da GNR de Beja diz que numa comunidade tão pequena e maioritariamente idosa, “é incompreensível a existência de 14 ocorrências só no mês de Outubro”, o que prova que a conflitualidade em Santo Aleixo “atingiu uma proporção que não é normal” . O presidente da Câmara de Moura, Santiago Macias, diz que autarquia tem vindo “a reclamar mais meios de segurança para o concelho”, como o reforço da presença da GNR nas áreas rurais.
REFERÊNCIAS:
Entidades GNR
Há um vírus na cimeira em que Obama procura deixar um legado em África
O surto do ébola que está a alastrar na África Ocidental concentra as atenções no arranque da ambiciosa cimeira EUA-África que o Presidente organiza em Washington. (...)

Há um vírus na cimeira em que Obama procura deixar um legado em África
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-08-05 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20140805170208/http://www.publico.pt/1665390
SUMÁRIO: O surto do ébola que está a alastrar na África Ocidental concentra as atenções no arranque da ambiciosa cimeira EUA-África que o Presidente organiza em Washington.
TEXTO: A agenda da primeira cimeira de líderes africanos promovida pelo Presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, numa tentativa de contrabalançar a crescente influência económica e política da China no continente, acabou por sofrer uma alteração de última hora, resultado das contingências regionais. Com mais de 800 mortes provocadas pelo vírus do ébola na costa Oeste de África, é o risco de expansão da epidemia que está a concentrar as atenções antes do arranque dos trabalhos. A chegada a Washington dos participantes no encontro foi uma primeira demonstração da preocupação norte-americana com a eventual propagação do vírus, que se tem revelado fatal para cerca de 90% dos infectados. No aeroporto, por precaução, os delegados da cimeira foram recebidos numa zona especial e sujeitos a testes médicos. Os chefes de Estado da Guiné Conacri, Serra Leoa e da Libéria— os países por onde avança a epidemia — não viajaram para a América, ficando em casa para responder à situação de emergência de saúde pública com que se debatem. No entanto, apesar dos receios provocados pelo último surto de ébola, os assuntos económicos e de desenvolvimento continuarão a ser a prioridade dos trabalhos na cimeira de Washington — uma reunião de três dias, com mais de 50 chefes de Estado e líderes governamentais, empresariais e religiosos africanos, que manterão contactos com vários responsáveis do Governo e do sector privado dos Estados Unidos. Vários analistas norte-americanos descrevem a iniciativa da Casa Branca como uma tentativa — porventura tardia — da Administração Obama para construir um “legado” africano, um continente que por força da urgência de várias crises internacionais parece ter sido relegado para o segundo plano da política externa norte-americana. Depois de uma curta visita ao Gana em 2009, Obama fez um périplo africano em 2013 para recuperar o entusiasmo da região com a sua presidência. Esse é, também, o objectivo do evento de Washington, intitulado “Investir na Próxima Geração”. O encontro é, ao mesmo tempo, um “reset” das relações diplomáticas e uma nova concentração de esforços económicos em África, com enfoque particular no comércio e investimento em sectores sensíveis como o da energia. Mas os temas da segurança, governação, democracia e direitos humanos também foram incluídos na ordem de trabalhos. A China à frenteNa última década, enquanto os Estados Unidos investiram uma média anual de 85 mil milhões de dólares em África, a relação económica da China com o continente disparou e ascende agora a mais de 200 mil milhões de dólares por ano. Como escrevia o senador democrata Chris Coons na CNN, “os chineses viram aquilo que as empresas americanas não viram: que seis das dez economias mundiais com maior crescimento estão na África subsariana”. Depois de se tornar o maior parceiro comercial dos países africanos, Pequim passou a beneficiar da “boa-vontade” dos Governos — “Sempre que a China quer alguma coisa, sejam direitos de exploração mineira ou exclusividade portuária, oferece presentes como por exemplo a construção de infra-estruturas”, observa Coons. E não foi só a China que se apercebeu do potencial e da oportunidade que os países africanos representam para a expansão dos seus interesses económicos: também a Rússia, o Brasil e a Índia têm vindo a dedicar uma atenção especial aos negócios com o continente. Mas como distinguiu Ben Rhodes, conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, os Estados Unidos “estão menos focados em extrair os recursos africanos, e mais interessados em aprofundar o investimento e as relações comerciais com os países de África”, notou, citado pela Associated Press. Assinalando a importância da iniciativa, o Presidente Barack Obama lembrou que “a África é um dos continentes onde a América é mais popular e onde existe uma grande afinidade com o nosso modo de vida”. Num encontro com 500 estudantes e activistas africanos em Washington, Obama disse que a economia africana está em franco crescimento, “há mercados dinâmicos e prósperos, e empresários e pessoas extremamente talentosas. “Este é um acontecimento verdadeiramente histórico: nunca nenhum Presidente reuniu tantos chefes de Estado e governantes africanos”, frisou, notando que quase todos os países foram convidados (as excepções foram o Zimbabwe, Sudão e República Centro Africana, por questões de desrespeito dos direitos humanos). A cimeira de Washington servirá para formalizar uma série de iniciativas para aumentar o investimento. Os Estados Unidos vão anunciar a disponibilização de uma linha de mil milhões de dólares destinada ao financiamento de diferentes projectos na região, bem como o reforço das verbas dos programas de cooperação nas áreas da agricultura e alimentação, e da iniciativa “Power Africa” lançada no ano passado por Obama para levar o abastecimento eléctrico a 20 milhões de residências. A Casa Branca espera ainda que a presença dos líderes africanos motive o Congresso a renovar o “African Growth Opportunity Act”, um programa comercial que concede facilidades alfandegárias para a entrada de produtos africanos no mercado norte-americano, e que expira em 2015.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
“No Brasil, a polícia acredita que o povo preto é o povo suspeito. E que ele deve ser executado”
Cineasta, activista e educadora, Rosa Miranda integra uma nova geração de realizadoras negras brasileiras que fazem do cinema independente uma arma de intervenção política e de afirmação identitária. O presente (e futuro) do Brasil está a passar por aqui. O P2 conversou com a cineasta na recta final da sua primeira tour em Portugal. (...)

“No Brasil, a polícia acredita que o povo preto é o povo suspeito. E que ele deve ser executado”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento -0.16
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cineasta, activista e educadora, Rosa Miranda integra uma nova geração de realizadoras negras brasileiras que fazem do cinema independente uma arma de intervenção política e de afirmação identitária. O presente (e futuro) do Brasil está a passar por aqui. O P2 conversou com a cineasta na recta final da sua primeira tour em Portugal.
TEXTO: Rosa Miranda filma o Brasil que as elites do país tendem a querer apagar. O Brasil LGBTQI, o Brasil da juventude negra activista, o Brasil das tensões raciais e das opressões de género. Um Brasil que existe e resiste apesar das forças reaccionárias, que nos últimos anos têm sido em parte personificadas pelo governo do Presidente Michel Temer (“presidente golpista”, sublinha Rosa); nos últimos meses por Jair Bolsonaro, candidato de extrema-direita à presidência nas eleições de 7 Outubro. Fundadora e directora do Kbça D’Nêga Produções, colectivo militante e produtora audiovisual independente nascida em 2014 no Rio de Janeiro, Rosa Miranda é a primeira mulher negra formada na licenciatura em Cinema & Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF). A cineasta, educadora e curadora do Cineclube Atlântico Negro passou por Portugal entre Julho e Agosto numa tour de 19 dias, com paragens no Avanca Film Festival, Porto e Lisboa, para apresentar o seu último documentário, Privilégios (2018), participar em debates, orientar uma masterclass e dar a conhecer os filmes das realizadoras negras brasileiras Leila Xavier, Marise Urbano, Milena Manfredini e Ethel Oliveira. Encontrámo-nos com ela dois dias depois da sessão esgotada na Casa do Brasil, em Lisboa. Conta-nos como conheceu a vereadora Marielle Franco, meses antes de ter sido assassinada no Rio de Janeiro. As palavras de Rosa têm muita força, muita urgência. Muita vida e muita visão. Faz questão de sublinhar a importância do sistema de quotas raciais introduzido pelo governo de Lula da Silva, medida que permitiu aumentar o acesso às universidades de estudantes negros, pardos e indígenas de classes baixas. Num país onde há “um genocídio do povo preto”, diz Rosa, a educação é sinónimo de “ascensão social” e empoderamento. Também por isso está a fazer um mestrado em cinema. Quer ser a primeira professora negra do Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF. Em breve começa a preparar o seu novo filme, uma curta-metragem de ficção inspirada na mãe e na avó e com uma equipa só de mulheres. Porque a representatividade e a mudança passam por quem está “por trás da câmara, não apenas à frente dela”. Tudo conta. “É preciso ter mulheres negras na direcção dos filmes, mas também é preciso ter um olhar sobre a nossa oralidade e sobre a fotografia do negro – a luz do cinema está pensada para o corpo branco, as próprias câmaras são calibradas pelo corpo branco”, nota Rosa Miranda. “No Privilégios inverti essa lógica: usei uma luz feita especialmente para os corpos negros serem valorizados. ”Como começou a estudar cinema?Fiz um curso numa favela, no Morro da Babilônia, chamado Viajando na Telinha, de 2005 a 2006. Aí comecei a entender como era o cinema, mas ainda o cinema hegemónico, norte-americano e europeu, mais voltado para o mainstream. O curso era de graça, todos os dias das 18h às 22h. Eu saía do trabalho às 18h, chegava lá entre as 19h e as 20h. Comecei a ficar muito cansada e afastei-me do cinema até 2008, quando faço o vestibular [prova de acesso ao ensino superior] para o Estácio, uma universidade privada no Rio de Janeiro. Consegui uma bolsa para o primeiro ano. No segundo ficou complicado, tinha de pagar. Mas continuei a estudar e a trabalhar. Entretanto descobri a licenciatura em Cinema & Audiovisual na Universidade Federal Fluminense [UFF], que é pública. Na época ainda não havia quotas raciais e consegui entrar. Sou a primeira mulher negra formada nessa licenciatura. A licenciatura era muito focada na epistemologia branca? Livros, filmes, professores…Sim, tudo. Mesmo hoje, o instituto de que esse curso faz parte [Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF] não tem professores negros. E no que toca aos alunos, mesmo com as quotas raciais ainda é um campus muito branco. Existe uma enorme quantidade de fraude nas quotas. Pessoas que dizem ser negras mas não são. Como é que pessoas brancas passam por negras?É através de uma autodeclaração, por escrito. A pessoa faz uma marcação. Depois, dentro das secretarias, não se confere, não se pergunta ‘você é preto, mesmo?’. Agora, na UFF, foi constituída uma comissão para averiguar estes casos de pedido de quota racial. Fizeram-se entrevistas presenciais e gravadas com as pessoas que se declararam negras e essas pessoas faziam coisas absurdas para passarem por negras. Por exemplo?Bronzeamento artificial antes da entrevista. As entrevistas eram previamente marcadas. As pessoas iam bronzeadas, faziam blackface, entrançavam o cabelo, faziam rastas. Na hora em que tinham de afirmar ‘eu sou negro’ para a câmara, não saía. Essas fraudes acontecem também noutras universidades, em todo o Brasil?Em todo o Brasil. Fico enraivecida. Isto é um crime e tem de ser encarado como um crime. As pessoas têm de entender que [o sistema de quotas raciais] é uma reparação histórica em relação a um povo a quem sempre foi negado o direito de chegar às universidades, incluindo com políticas públicas. Chegou a ser proibido o negro entrar na universidade e ainda hoje entrar lá é um tabu. Isso vem de um discurso racista enraizado e legitimado politicamente de que as pessoas negras e indígenas têm um lugar secundário na sociedade?Tem tudo a ver com a construção de nação do Brasil a partir da negação do negro. A total exclusão de uma população que é maioritária no país. Quando essa maioria não consegue ter acesso a dinheiro, a única possibilidade de ter ascensão social é através da educação. Quais são hoje as expectativas de um jovem negro favelado no Rio Janeiro? Ou vai para jogador de futebol ou vai para o tráfico. E as meninas? Vão para o tráfico também, ou tentam uma carreira como modelo, ou vão para a prostituição. Precisam de dinheiro, a fome não espera. Estas pessoas têm a pior educação, as piores escolas; não têm acesso a teatros, a museus. As quotas são uma das formas de essas pessoas ascenderem socialmente. Não se pode, portanto, falar em meritocracia. Pegando nas palavras da escritora brasileira Conceição Evaristo numa entrevista à BBC Brasil: “O discurso da meritocracia e os exemplos de pessoas negras que se acabam constituindo uma excepção são perigosos. Porque cria-se esse imaginário de que se a pessoa estudar, trabalhar, se esforçar, ela consegue. Isso é mentira. ”É mentira porque a corrida é desigual logo à partida. E nem todo o preto tem um amigo com dinheiro para investir na ideia dele. Nem todo o preto tem uma pessoa que vai dizer “tu vais conseguir”. Pelo contrário, as pessoas passam o tempo todo a dizer que não vais conseguir. É preciso uma força sobre-humana para acreditarmos em nós mesmos. Como é que conseguiu?Com muito post-it. Tenho vários post-its a dizer “você é capaz”, “você é linda”, “você é maravilhosa”. Na minha casa, no espelho, na cozinha. E assim sigo o meu dia. Cada “não” que ouço vai ser um “sim”. Eu sei da minha capacidade e quero que as pessoas negras saibam da capacidade delas. Trouxe várias mulheres negras a Portugal através dos seus filmes porque elas são capazes, e muitas outras também o são. Foi também por isso que criou o Kbça D’Nêga?O Kbça é um colectivo que surgiu a partir de um site que eu ia fazer com portefólio meu. Chamei alguns amigos para fazer uma sessão de fotos numa tarde de domingo. Aí surgiu a ideia de fazer um filme. Avançámos. Mais tarde, em 2016, descobri através da comunicação social que um amigo meu, Diego Vieira Machado, tinha sido assassinado dentro do campus da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Fiz então o filme Da Minha Pele [2016], em homenagem ao Diego. O filme estourou, foi para vários festivais de cinema no Brasil. E foi também nesse momento que o Kbça estourou. Nesse processo, um amigo meu, que também integra o Kbça, descobre que tem sida. 21 anos, negro, tinha acabado de conseguir entrar na universidade. Eu queria registá-lo, eternizá-lo. Então fizemos o Bixa Preta [2016]. Seguiram-se outros filmes, sempre numa produção colectiva feita no amor. Não recebemos dinheiro. Tendo em conta a falta de recursos financeiros e as barreiras raciais, de género e de classe, quais são as estratégias desta nova geração de realizadoras negras brasileiras para fazer o seu cinema e para o divulgar?As estratégias são as produções colectivas. E associações como a APAN [Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro], que mobiliza e divulga eventos sobre cinema negro, bem como os cineclubes. Mas ainda há resistência por parte das curadorias em apostar em filmes negros. No Kbça a distribuição é feita através de inscrições em festivais, mas é complicado. É um trabalho de formiguinha. Fazer estes filmes é uma questão de sobrevivência?Sim. É necessário. Não é mais permitido que estes assuntos não sejam debatidos. E quando chegamos a um determinado patamar, outras pessoas negras pensam: “Se ela conseguiu, eu também sou capaz”. A representatividade. É extremamente importante. Se não temos uma referência fica ainda mais difícil conseguir. Hoje sei que temos, pelo menos, mais de 30 realizadoras negras no Brasil, mas quando eu comecei não tinha referências. Elas existem, mas não lhes é dada visibilidade. E quando nós reivindicamos um lugar, é vitimização, ou é porque somos combativas – outro estereótipo da mulher negra. A mulher negra tem de ser guerreira, tem de aguentar qualquer coisa. Se aguenta qualquer coisa, aguenta até partos sem anestesia. Esse tipo de violência reprodutiva contra mulheres negras ainda é recorrente no Brasil?É. As mulheres negras têm prescrição para receber menos anestesia porque supostamente são mais fortes. É este tipo de mitos eugenistas que sustentam o genocídio do povo negro no Brasil. A maioria das mulheres que morrem durante o aborto são mulheres pretas – as mulheres ricas e brancas vão fazer numa clínica particular, em segurança. As mulheres vítimas de maus-tratos durante o parto são sobretudo mulheres negras. Só na minha família conto, pelo menos, cinco casos de mulheres que morreram durante o parto. Sei de alguns casos que estão a acontecer agora, em São Paulo, de mulheres que chegam ao hospital para ter o filho e depois laqueiam-lhes as trompas. Quem são essas mulheres? São mulheres analfabetas, de populações muito pobres. Mandam assinar um documento sem elas saberem ler, no meio da dor do parto. Esse genocídio de que fala estende-se também ao sector da política, como vimos com o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco, em Março. A Marielle… [suspiro profundo]. Lutamos tanto para ter alguém a representar-nos politicamente e essa pessoa é arrasada. Eu conheci a Marielle em Novembro, quando estava a fazer assistência de câmara do filme As Filhas de Lavadeiras. Depois, em Março, vejo que ela levou quatro tiros na cabeça. E até hoje os culpados ainda não foram presos. Toda a gente sabe que foi um crime político. O Brasil é o país onde mais se mata pessoas LGBT. É o país onde mais se mata pretos – a cada uma hora são assassinados três jovens negros. Quando soube do assassinato da Marielle fiquei uma semana sem sair de casa, com medo. Não consegui ir às manifestações. Às vezes parece que não adianta ter um post-it a dizer que você é maravilhosa quando a pessoa que representava tudo isso é assassinada. E quando no dia seguinte à morte dela é executada uma criança de um ano. E quando dois dias depois é assassinada mais uma jovem negra, de 20 e poucos anos, numa favela onde há helicópteros a atirar balas lá de cima. Ainda em Junho, Marcos Vinícius, um menino de 14 anos, foi baleado na Maré [favela no Rio de Janeiro] quando ia para a escola, durante uma operação da polícia com o apoio do Exército. O que é que essa criança fez de mal? Não é bala perdida, é bala certa. No Brasil, a polícia ainda acredita que o povo preto é o povo suspeito. E que ele deve ser executado. A maioria da população brasileira encarcerada é negra. O feminicídio de mulheres negras aumentou, enquanto o das mulheres brancas diminuiu. Como é que a gente consegue respirar? É um desespero. Sente que ser activista negra no Brasil é estar sempre à beira da morte?Mas também com esperança de que algo vai mudar. Eu não quero ser mártir. Ninguém quer. Só queremos que essa mudança aconteça o mais rápido possível. Eu tento fazer as pessoas reflectirem através da minha arte. Não sei se vou conseguir, mas estou a tentar. E quando vejo uma Casa do Brasil [em Lisboa] lotada, sei que estou no caminho certo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nota algum progresso na consciencialização da população branca brasileira em relação à violência sobre as populações negras e indígenas?Podem ter consciência, mas poucas pessoas brancas falam sobre isso. Têm dado algumas aberturas, mas, quando mexe com o privilégio delas, é difícil. É a questão da branquitude crítica, que critica esse sistema mas não revê o seu. E ainda há empresas que vendem esse país como um país branco, quando não é. Relativamente às eleições que se aproximam: como explica, num país maioritariamente negro, que um político de extrema-direita e com um discurso racista como Jair Bolsonaro lidere as intenções de voto na primeira volta?No Brasil existe uma junção entre a religião evangélica e a política. A bancada evangélica está a dominar, e muitos deles são grandes empresários também, o que prejudica ainda mais o acesso a informação independente nos media. Vemos um crescimento absurdo dessas igrejas. Muita da população que frequenta esses espaços é negra e não percebe o quão racista é essa religião. E há também a questão da milícia, que ameaça subliminarmente ou coage os moradores de favelas para votar em determinados candidatos. “Vou dar-te 50 reais para votares em mim”. Ou “se votares em mim dou emprego ao teu filho”. As pessoas são tão pobres que aceitam, por uma questão de sobrevivência. Henrique Vieira é um pastor evangélico de esquerda, militante do PSOL, que se assume como feminista, anti-racista, activista pelos direitos LGBT e pela legalização do aborto. Segundo ele, se a esquerda não cultivar o diálogo com os evangélicos, não conseguirá ter um projecto popular. Concorda?Estive numa conferência com Henrique Vieira e acho-o muito coerente. A sua figura é importante neste momento em que há tantos extremos. Porém, acredito que religião e política não se devem misturar, já que o Estado brasileiro é laico. [Como] o Henrique pode haver outros, mas não se posicionam [politicamente]. Como dizia Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem carácter, dos sem ética. . . O que me preocupa é o silêncio dos bons. ”
REFERÊNCIAS:
Daniel Bausch sobre o ébola: “O surto não está sob controlo neste momento”
Este surto é o maior de sempre, mas o risco de alastrar para os países ocidentais é muito reduzido, afirma este especialista de medicina tropical. (...)

Daniel Bausch sobre o ébola: “O surto não está sob controlo neste momento”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.285
DATA: 2014-08-03 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20140803170208/http://www.publico.pt/1665108
SUMÁRIO: Este surto é o maior de sempre, mas o risco de alastrar para os países ocidentais é muito reduzido, afirma este especialista de medicina tropical.
TEXTO: Daniel Bausch, da Universidade de Tulane (EUA), passou quase todo o mês de Abril em Gueckedou, na Guiné-Conacri – o epicentro do corrente surto de vírus de ébola –, na qualidade de enviado da Organização Mundial da Saúde para a zona afectada pela doença. Também tratou doentes infectados pelo vírus num hospital da capital e esteve na Serra Leoa. Falou com o PÚBLICO desde o Peru, onde dirige actualmente um laboratório de virologia e de infecções emergentes da Marinha norte-americana. Este surto do vírus de ébola é diferente dos anteriores?É. Apresenta desafios específicos, como o facto de abranger vários países diferentes, que falam línguas diferentes – com a barreira linguística que isso implica. Portanto, para além do elevado número de casos, a distribuição dos casos é diferente. Estamos numa batalha com muitas frentes – na Guiné-Conacri, na Serra Leoa, na Libéria. E precisamos de distribuir os nossos recursos por uma zona muito mais extensa do que no passado, o que dificulta a tarefa. Este surto começou no ano passado. Por que é que os media demoraram a falar dele?Tanto quanto sei, começou de facto em Dezembro 2013 em Gueckedou, numa região remota do sudeste da Guiné-Conacri. Trata-se de uma região de floresta hoje muito desflorestada, perto da fronteira com a Serra Leoa e a Libéria. O primeiro caso terá sido uma menina de dois anos de idade, mas não podemos ter a certeza. Lembro-me que em 1995 [aquando de um grande surto de ébola no ex-Zaire], a cobertura mediática foi enorme. Acho que o interesse nestes surtos diminuiu ao longo do tempo – até certo ponto, perderam o seu carácter de novidade. De onde veio o vírus desta vez? Dos morcegos?Não é possível saber exactamente, mas é um facto que, quando os contactos entre os seres humanos e os animais selvagens aumentam, os riscos de haver um surto aumentam. O vírus poderá ter sido transmitido directa ou indirectamente por morcegos [que o vírus infecta, mas que não desenvolvem a doença], por exemplo através de fruta contaminada por animais infectados. Tem havido esforços para se desenvolver uma vacina contra o vírus de ébola. Estão a avançar?Houve alguns ensaios muito promissores de vacina nos macacos – e até um ensaio em seres humanos, que concluiu que a vacina é segura. Mas esta não é uma doença com a qual os laboratórios farmacêuticos possam ganhar muito dinheiro: é esporádica, atinge poucas pessoas e atinge as populações mais pobres do mundo. Para mais, os surtos acabam por ser controlados. Ou seja, não há realmente mercado para uma vacina. Vários profissionais de saúde têm morrido recentemente. Nas fotos que vemos, o equipamento que usam não parece muito protector…Não se trata apenas de uma questão de máscaras e batas. O problema é sobretudo a falta de recursos humanos. Quanto menos pessoal há nos serviços hospitalares, maior o risco de infecção para os que lá estão. Esteve recentemente em Gueckedou. O surto está sob controlo?Estive na região durante grande parte dos últimos três meses. Estive em Gueckedou em Abril e acabei de regressar na passada semana da Serra Leoa. E posso dizer que o surto não está sob controlo neste momento. Para o controlar, precisamos de aumentar a escala da nossa resposta, tanto em termos de recursos humanos como financeiros, porque estes países são dos mais pobres do mundo. Essa realidade tem vindo a ser reconhecida nas últimas semanas e espero que vejamos um aumento da resposta internacional contra o surto nas próximas semanas. Mas mesmo assim, vai demorar quatro a cinco meses até o surto acabar. Qual é o risco de a doença alastrar para os países ocidentais?É muito pouco provável que venha a haver grandes surtos nos países ocidentais. Poderá haver um ou dois casos importados de África, mas é muito pouco provável que isso dê origem a uma transmissão secundária [dessas pessoas para outras que não estiveram em África]. Claro que temos de ser vigilantes – mas nunca haverá centenas de doentes em Portugal, no resto da Europa ou nos EUA. Os países de grande risco são o Nigéria e outros países africanos, mas nos países ocidentais, para as pessoas em geral, tirando os profissionais de saúde, o risco de contrair ébola situa-se incrivelmente perto de zero. Se chegasse amanhã a Lisboa uma pessoa infectada, você não conseguiria apanhar a doença mesmo que tentasse. Não é possível apanhar-se ébola, por exemplo, viajando no mesmo avião que uma pessoa infectada? O vírus apenas se transmite por contacto directo – e o doente só passa a estar contagioso quando já está muito doente, com vómitos e diarreia, porque é nessa fase que dissemina o vírus através dos seus fluidos corporais. As pessoas infectadas não são contagiosas nem durante o período de incubação, nem no início dos sintomas, quando desenvolvem febre.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
"Rosita" e o império como objecto de desejo
Na fronteira ténue entre o espectáculo e a antropologia, a cultura popular e a cultura científica, os zoos humanos serviram diferentes discursos coloniais. Expuseram também práticas de um racismo e de um sexismo que hoje subsistem sob outros formatosOs "jardins zoológicos humanos" foram um fenómeno muito popular, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Consistiam em grupos de "selvagens" ou "nativos", como eram designados, expostos em jardins zoológicos, jardins de aclimatação, exposições universais e coloniais ou circos itinerantes. O contexto colonial europeu deste período foi especialmente... (etc.)

"Rosita" e o império como objecto de desejo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-27 | Jornal Público
TEXTO: Na fronteira ténue entre o espectáculo e a antropologia, a cultura popular e a cultura científica, os zoos humanos serviram diferentes discursos coloniais. Expuseram também práticas de um racismo e de um sexismo que hoje subsistem sob outros formatosOs "jardins zoológicos humanos" foram um fenómeno muito popular, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Consistiam em grupos de "selvagens" ou "nativos", como eram designados, expostos em jardins zoológicos, jardins de aclimatação, exposições universais e coloniais ou circos itinerantes. O contexto colonial europeu deste período foi especialmente propício a estes eventos e foram poucas as vozes contemporâneas que os condenaram. "Vieram à exposição mais de um milhão de portugueses. Muitos - possivelmente a maioria - vieram em ar de festa, com o mesmo espírito alegre e descuidado com que vão ao arraial e ao teatro, aos touros e ao futebol. Diziam alguns: vamos ver os pretos!" Um ano depois da primeira (e última) Exposição Colonial Portuguesa, que teve lugar no Porto em 1934, fazia-se o balanço, positivo, do evento. Um álbum comemorativo publicado em 1935 descrevia a exposição e o sucesso alcançado entre os públicos de "todas as classes". Tinham sido atraídos pelas novidades - sobretudo a encenação de uma aldeia de "indígenas guineenses" -, mas tinham acabado "comovidos" e "orgulhosos" dos feitos coloniais portugueses que ali se tornaram visíveis através das mais variadas tecnologias expositivas e visuais. O jardim do Palácio de Cristal, da mais industrial das cidades portuguesas, fora temporariamente ocupado por reproduções de monumentos de Goa e de Macau, exemplares da fauna africana, cinema com exibição de filmes sobre as colónias, desfiles militares com soldados moçambicanos, a banda militar de soldados angolanos, uma livraria destinada à venda e propaganda de livros coloniais, a mostra industrial com 600 expositores - incluindo produtos portugueses de interesse para o mercado colonial, produtos coloniais passíveis de interesse metropolitano, e muitas outras exposições, a mostrar artesanato africano ou os resultados mais recentes da colonização portuguesa, na área da educação, transportes ou medicina. Entre esta multiplicidade de exibições - em que ainda acrescia o divertimento de uma feira popular e um comboio para que o público não se cansasse da viagem entre Angola e Moçambique -, as "representações etnográficas" acabaram por ser as mais populares. Em 1933, o ministro das colónias, Armindo Monteiro, escrevera uma carta a todos os governadores das colónias portuguesas a pedir-lhes que enviassem para o Porto os "seus nativos" para serem alojados "em aldeia ou habitações típicas". Trezentos e vinte e quatro mulheres, homens e também crianças, provenientes de Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique, Índia, Macau e Timor, estiveram expostos no Porto. Entre eles, o grupo de balantas da Guiné-Bissau foi o mais fotografado pela câmara oficial de Domingos Alvão. Os seus retratos foram dos mais reproduzidos nos populares postais fotográficos que se compravam como souvenirs, bem como os que mais atenção mereceram da parte da imprensa, que multiplicou os públicos da exposição com a sua cobertura exaustiva do evento. A Exposição Colonial Portuguesa de 1934 foi emblemática de uma nova fase do colonialismo português - mais centrado em África, interessado na emigração de portugueses para territórios africanos, e empenhado em afirma-se numa Europa também ela colonizadora. O modelo adoptado pela iniciativa portuense, tanto pela inspiração estética como ideológica, fora em parte o da Exposition Coloniale de Paris em 1931. Numa ilha no meio de um lago, onde uma fonte luminosa vinha dar um toque de modernidade, qual metáfora do empreendimento português em África, instalaram-se umas dezenas de guineenses, que viviam o seu quotidiano numa aldeia de palhotas, sob o olhar dos visitantes portugueses. O público da exposição podia assim ocupar, mesmo que temporariamente, o olhar e o lugar do colonizador. Um colonizador que, na segurança oferecida por um parque no centro do Porto, podia já beneficiar dos resultados das "campanhas de pacificação" em África. Mesmo a da Guiné-Bissau, uma das mais tardias. Assim designadas pelos portugueses porque visavam eliminar a resistência africana à ocupação portuguesa, estas campanhas militares não faziam, naturalmente, parte do discurso expositivo. O que se anunciava em 1934 era uma outra fase da colonização portuguesa - a ocupação dos territórios africanos por colonos portugueses. O evento, de carácter didáctico e propagandístico, procurava relembrar ao povo português que "Portugal não era um país pequeno". A dimensão, excessiva, do espaço imperial, precisava de quem o ocupasse e trabalhasse. Para que Portugal pudesse voltar a ser aquilo que já tinha sido. O tal passado que a exposição evocava de muitas formas, para aqueles que sabiam ler e para a maioria que só sabia ver. É que a ideologia das exposições deve ser analisada lado a lado com outros espaços de uma cultura visual bem circunscrita: da fotografia aos postais, dos jornais ilustrados ao cinema, dos museus de antropologia aos livros de propaganda colonial. O desejo de um impérioE como voltar a transformar o império num objecto de desejo? Como incentivar os "fortes portugueses que navegam", cantados por Camões, a voltar a partir? A exposição era ela própria uma ode às possibilidades coloniais do futuro, um balanço daquilo que se fizera recentemente, e um anúncio de um Portugal do além-mar que seria central à ideologia política e colonial do Estado Novo. As exposições de "nativos", e sobretudo de "nativas", tornaram-se o símbolo mais concreto dessa erotização de um império onde a virilidade lusa devia voltar a semear riqueza. As metáforas de género já desde há muito faziam parte da linguagem colonialista portuguesa, tal como da francesa ou britânica. Os espaços coloniais surgiam feminizados, selvagens e feitos da natureza desordenada que a masculinidade imperial europeia iria controlar. A conquista territorial era descrita com o vocabulário da conquista sexual, onde o colonizador branco masculino exercia duplamente o seu domínio sobre a mulher colonizada - domínio étnico e domínio de género iam, por isso, a par. Esta linguagem, banalizada na prolixidade da escrita produzida nos contextos imperiais europeus do século XIX, manifestara-se graças às possibilidades reprodutivas da fotografia. Inventada quase em meados de oitocentos, a tecnologia fotográfica desenvolveu-se em paralelo com a consolidação dos impérios coloniais e tornou-se um dos seus mais importantes instrumentos de propaganda colonial, juntamente com as exposições. O "objecto" mais descrito, fotografado e reproduzido na Exposição Colonial de 1934 foi uma mulher, negra e nua. A Rosa, Rosinha, ou Rosita, nome com certeza mais fácil do que o seu verdadeiro nome islâmico, era uma mulher balanta, da Guiné recentemente "portuguesa" (ver artigo de Isabel Morais no livro Gendering the Fair). Fotografada por Alvão em várias poses encenadas já pelos códigos visuais de um erotismo feminino, por vezes com os braços levantados para melhor revelar o peito, a Rosinha personificou aquilo que o império deveria ser - o lugar das mulheres disponíveis sexualmente para os homens portugueses que a exposição queria incentivar a partir. Como eram negras podiam estar nuas e podiam ser observadas num espaço familiar e domingueiro de lazer aceitável. Não transgrediam a moral vigente porque não eram brancas como as mães, mulheres e irmãs dos homens que as observavam - dos visitantes do evento aos que organizaram a exposição ou promoveram os discursos de miscigenação além-mar. Sempre implícita na ideia de miscigenação - tão implícita que nem tinha de ser afirmada - estava uma relação entre os homens colonizadores brancos e as mulheres colonizadas africanas. Nunca, naturalmente, a possibilidade - o tabu - de uma relação sexual entre uma mulher branca e um homem negro. Mais tarde, a miscigenação conheceu no "luso-tropicalismo" do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre a mais legítima das suas teorizações. Mas já era apresentada como uma característica do colonialismo português desde que Afonso de Albuquerque promovera, na Goa do século XVI, os casamentos com mulheres hindus convertidas ao cristianismo. A ideia de miscigenaçãoComo poderão ser consideradas excepcionais todas estas políticas coloniais? Todos os impérios coloniais europeus de oitocentos legitimaram as suas empresas com a afirmação do seu "excepcionalismo" e da sua menor violência em relação às práticas coloniais dos outros. Se os portugueses alegavam a sua capacidade de mistura com os nativos (leia-se "as nativas") face a uns britânicos que faziam da separação racial uma das suas bandeiras, os últimos denunciavam a violência religiosa dos portugueses, em contraste com sua própria tolerância em relação ao hinduísmo. Ou, mais tarde, já no principio do século XX, os britânicos denunciavam as práticas de trabalho forçado nas roças de São Tomé, numa altura em que a "escravatura" supostamente já não existia. Os "outros" colonizadores eram sempre piores e por isso não mereciam as colónias que tinham. Tentar ler as políticas de mistura - e, relembramos, de mistura de homens brancos com mulheres dos territórios colonizados -, que pontuaram a colonização portuguesa, em diferentes contextos e por razões distintas, como um sinal do "não-racismo dos portugueses" é reproduzir acriticamente os próprios discursos colonizadores. E é, sobretudo, também não ter em conta a profunda desigualdade entre os géneros que, à partida, estava implícita nestas relações. Na base destas políticas de colonização e interacção com os locais estava a distinção entre, em primeiro lugar, a sexualidade masculina, livre de escolher o seu objecto de desejo, cá ou lá (embora mais lá do que cá), e onde estava implícita uma superioridade; em segundo lugar, a sexualidade feminina da mulher branca, regulada pelas prescrições legais, culturais e sociais de uma sociedade patriarcal. Em terceiro lugar, estava a sexualidade da mulher negra, uma mulher que surgia como passiva e sem poder, apresentada como disponível para o homem branco que, ao ocupar o lugar do homem negro, estava também, metafórica e literalmente, a dominá-lo. Mas o sexo não chega. E o colono português também teria de andar bem alimentado e bem vestido. Num outro pavilhão da exposição colonial, um enorme diorama com figuras de tamanho natural mostrava as mulheres negras a aprender a cozinhar e a coser sob o olhar paciente das freiras missionárias portuguesas. Expunham os progressos da evangelização portuguesa em África através do encontro de dois tipos de mulheres. Um encontro também de valores religiosos e domésticos, aqueles que as mulheres, brancas ou negras, podiam viver no império. Apesar de também ter opositores, até entre antropólogos prestigiados, a miscigenação tornou-se uma ideologia central do regime, e a Rosinha estava ali para a ilustrar: o nome português, provavelmente da conversão ao cristianismo, para a tornar mais próxima e até casadoira; o diminutivo de "inha" ou "ita" para a familiarizar; e a sua sexualização, usada e abusada no contexto expositivo, para que o império também pudesse ser imaginado como uma conquista sexual. Os homens guineenses que vieram com a Rosinha foram entrevistados. Mas as mulheres, não. Não se julgou necessário ouvir a sua voz. Vê-las era mais importante do que as ouvir. Aqui, como em muitos outros casos, "raça" e "género" não são conceitos dissociáveis. Inseparável da cor da pele era o seu género feminino, e era nessa combinação que se reificava uma dupla hierarquia - a do branco sobre o negro, a do colonizador, neste caso, português, sobre a colonizada, neste caso proveniente da Guiné-Bissau e, finalmente, a de um homem sobre uma mulher, onde o domínio patriarcal e sexual era assumido. O espaço da exposição encenava, de um modo lúdico e legítimo, o projecto colonial. Entre partir e tornar-se colono havia um oceano pelo meio. No jardim portuense, apenas um lago os separava de África. E de uma África que nada tinha de ameaçador. A colonização do corpoAs notícias de jornal e as fotografias, popularizadas em postais fotográficos, multiplicaram os discursos escritos e visuais da exposição, fazendo-a chegar também àqueles portugueses que não tinham ido ao Porto. Um livro publicado em Luanda em 1934, celebrava a província de Angola e a sua presença na 1. ª Exposição Colonial. Na página dedicada ao Banco de Angola, duas fotografias do "magnífico e luxuoso stand próprio, lindamente decorado", partilhavam a página com duas fotografias de mulheres seminuas: Uma "beleza negra da Huíla", de boca semiaberta e braços levantados como os da Rosinha, a erguer o peito desnudo, não disfarçava a sua óbvia conotação erótica; a "preta Mucancala" inscrevia-se num outro tipo de imagem, também muito popular desde a segunda metade do século XIX - a da fotografia "etnográfica", realizada ao ar livre no lugar de origem (ou, muitas vezes, nas encenações recriadas nas exposições europeias, coloniais ou universais). O texto a legendar a imagem descrevia o oposto do Portugal moderno e inovador que se queria transplantar para os trópicos: aquela "curiosa tribu" angolana era "uma das mais baixas espécies da escala da humanidade". A mulher negra desnuda - quer na sua versão "sexualizada" quer na sua versão "primitiva" - contrastava com a prosperidade e modernidade do Banco de Angola e ao mesmo tempo reificava as distinções de género tão explícitas na documentação colonial, a masculinização do colonizador, neste caso daquele que geria a riqueza da exploração colonial, e a feminização da colónia, neste caso, numa "preta" e numa "negra", sem nome e sem roupa. No contexto das discriminações raciais da Europa da década de 1930, como já no século XIX, o corpo da mulher negra podia ser exposto, legitimamente, de muitas formas, num claro contraste com o corpo nu da mulher branca, remetido para as fotografias transgressivas de uma pornografia para consumo privado masculino. O corpo nu da mulher negra estava disponível visualmente, porque imperava uma ideologia legitimada por um racismo científico que o inferiorizava, e que lhe retirava voz e poder. Os lugares desta exposição legítima do corpo eram inúmeros: nas exposições universais e coloniais, nos postais fotográficos que jogavam com a ambiguidade entre a legitimidade científica da antropologia e o erotismo; ou em imagens de jornal a ilustrar os costumes de povos "estranhos e distantes". Uma consciência crítica desenvolvida sobretudo desde os anos 1960 veio questionar a violência com que os corpos das mulheres negras foram transformados em objectos e desumanizados, ao longo da história. De Saartjie Baartman - a chamada Vénus de Hotentote que em princípios do século XIX circulava tanto nos meios científicos como nos de entretenimento, entre Londres e Paris - até às muitas mulheres e homens que, ao longo da segunda metade do século XIX, foram apresentados como "selvagens" ou "nativos" e expostos no jardim de aclimatação de Paris, nas exposições europeias ou no circo itinerante do norte-americano Barnum. Este mesmo fenómeno, central para se compreender a ideologia colonial deste período, foi desprezado pela academia durante muitos anos. Porém, desde há cerca de vinte anos que os "zoos humanos" têm sido estudados na perspectiva da história do colonialismo, racismo e cultura visual. Que continuidades e cisões subsistem, hoje, na cultura visual contemporânea que caracteriza o nosso contexto nacional? Uma muito maior consciência anti-racista - incentivada tanto pelos debates do pós-colonialismo como por políticas de direitos humanos mais democráticas - tornaria impensáveis muitos dos textos e imagens do colonialismo português dos séculos XIX e XX. No entanto, ainda subsistem entre nós muitas formas contemporâneas de racismo associado ao género. O que é que a sexualização das mulheres africanas ou brasileiras, no contexto português - no humor machista, em conversas masculinas não escritas, na formulação de estereótipos primários -, diz sobre os preconceitos enraizados de tantos portugueses? Outras perguntas são inevitáveis e também têm sido objecto de estudo nas últimas décadas. Como é que o corpo da mulher, independentemente da cor da pele - sexualizado sob um ponto de vista masculino, anónimo, e passivo -, continua a ser tão utilizado acriticamente na visualidade contemporânea? Se é certo que tais corpos já não servem para propagandear projectos coloniais, nem promessas de uma vida melhor nos grandes territórios de um país pequeno, continuam a ser usados para vender automóveis, cerveja e tudo o resto. Sobretudo, vendem a ilusão de que o desejo do olhar de um público - que se assume como sendo masculino - pode desresponsabilizar eticamente aqueles que detêm o poder sobre os discursos do visível. Investigadora do ICS-UL
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Hinduísmo
"Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem"
Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations. (...)

"Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations.
TEXTO: No seu livro, de 2015, um dos grandes objectivos é compreender o nascimento das Relações Internacionais e da Ciência Política nos Estados Unidos da América. Contra a ortodoxia historiográfica de ambas as disciplinas, mostra como mundividências imperiais foram cruciais na formação de ambas as disciplinas e ao seu posterior desenvolvimento. Quais as principais causas e consequências desta história pouco conhecida?Eu mostro como a história do império é apagada, mas também como os académicos das relações internacionais começaram, de modo activo e talvez inconscientemente, a construir uma história mais útil da sua disciplina durante a Guerra Fria. O que é verdade em relação a muitas disciplinas, na verdade, não apenas no caso das Relações Internacionais. A história diplomática, a história do “desenvolvimento” e a Sociologia são outros exemplos. Se, como os então líderes emergentes da disciplina insistiram, as Relações Internacionais só se tornaram uma disciplina “científica” nos anos 1940 e 50, através da promoção do “realismo” (uma vez que Realpolitik era então uma palavra má) e da construção dos Estados Unidos como um “poder do statu quo”, então não haveria nada mais a dizer sobre essas décadas pré-científicas anteriores. Como seria de esperar, os professores marcharam, mais ou menos, com o Departamento de Estado, a Casa Branca e outras agências do Governo, procurando refutar os argumentos do rival soviético e dos chamados “países não alinhados” sobre a natureza e a extensão do poder que os Estados Unidos exerciam globalmente. Também demonstra que ocorreu um processo de “invisibilização do racismo”, apesar de as “relações internacionais significarem relações raciais”. Porque acha que isto aconteceu? Quais foram, e são, as consequências deste facto?A realidade persistente da opressão dos afro-americanos na sua demanda por direitos iguais era o outro problema que fazia coxear o Governo americano na sua rivalidade com a União Soviética em relação aos corações e às mentes dos europeus, dos africanos e dos asiáticos. O racismo em casa complicava a diplomacia dessas décadas. O contexto da Guerra Fria ajuda a explicar os esforços das administrações em dessegregar os Estados do Sul no pós-guerra, como os trabalhos de vários historiadores têm demonstrado (Mary Dudziak, Penny von Eschen e Paul Gordon Lauren foram os mais proeminentes). Também aqui, uma história mais útil do passado começou a ser criada: do racismo como um atavismo e uma excepção ao que Gunner Myrdal identificou como o “credo americano” — roubando a ideia sem o dizer a Alain Locke, da Universidade Howard, já agora. Mais tarde, a escritora Toni Morrison escreveu sobre a tendência poderosa, na cultura do pós-guerra, de “silêncio e evasão” sobre o passado e o presente do racismo. Eu peguei na ideia e traduzia-a usando um termo em voga na teoria das relações internacionais nos anos 1990: descrevi-a como a “norma contra a detecção”. Outro aspecto importante que sublinha tem que ver com o facto de a contribuição de académicos afro-americanos nessas disciplinas ser também desvalorizada ou omitida. Qual a razão? A realidade é hoje diferente?Não há exemplo mais poderoso do silêncio e evasão do que a persistente ignorância sobre os académicos negros e as suas inovações intelectuais numa academia profundamente segregada. Só começa a mudar quando académicos negros são admitidos nas torres de marfim (brancas) nos EUA. O mesmo é verdade em relação às mulheres nas relações internacionais, e há agora trabalho a ser feito por Patricia Owens e outras pessoas no Reino Unido no sentido de identificar académicas influentes neste campo, mas que hoje estão completamente esquecidas. Em alguns meios, a ideia de que os EUA eram essencialmente um poder anti-imperial e anticolonial persiste. É uma consideração sustentada na sua condição de antiga colónia e no facto de, mais tarde, ter sido uma das grandes potências que patrocinaram a descolonização. A história entre estes dois momentos perde-se, ou é desvalorizada. Pode falar-nos um pouco mais dessa história e de como condicionou o desenvolvimento de várias ciências sociais?O saudoso e grande economista do MIT Morris Adelman — que é uma personagem central no livro que estou a escrever agora sobre os vários mitos que preocupam a esquerda anti-imperialista e a direita imperialista nos EUA — disse uma vez que “o senso comum sabe muitas coisas que não são verdade”. As crenças que referem sobre os EUA, aparentemente indisputáveis, mas na verdade artificiais, encaixam-se nesta definição. Deixei de me surpreender com os vários mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem determinadas certezas, sem reflectirem seriamente sobre a natureza das “provas” e sobre os problemas que resultam de se pensar a partir dessas “provas”. Por isso, pergunto no White Order: como é que aqueles que acreditam que os EUA nunca foram imperialistas explicam que uma geração pioneira de pensadores conservadores, liberais e progressistas tenha dito o oposto? Porque estão eles errados?Após as invasões americanas do Afeganistão e do Iraque, deu-se uma renovação do interesse nas histórias do colonialismo, da administração colonial e da repressão colonial. Como é que as ciências sociais se relacionaram com estas dinâmicas? E com os seus trágicos falhanços, posteriormente?É verdade que o início dessas guerras no Médio Oriente, que agora percebemos serem intermináveis, deram um novo fôlego ao estudo do colonialismo, e a ideia de que os EUA eram um império emergiu de uma forma que não víamos desde os finais dos anos 1960 e inícios de 70. Victor Bulmer-Thomas e Tony Hopkins lançaram este ano novos e detalhados estudos, Empire in Retreat e American Empire, respectivamente, que “nasceram” das invasões no Afeganistão e no Iraque. O coronel na reserva Andrew Bacevich, que também se reformou recentemente na Universidade de Boston, onde leccionava História e Relações Internacionais, escreveu sete livros sobre o militarismo e a política externa norte-americana desde 2003, e, talvez devido ao seu historial e conservadorismo profissional, granjeou maior visibilidade nos media do que a maior parte dos outros críticos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Eu diria que o padrão mais significativo nas ciências sociais se prende com a militarização da academia desde 2001. A Antropologia, a Psicologia, a Ciência Política tiveram papéis auxiliares a desempenhar na contra-subversão, no regime de tortura e por aí fora. As antigas “escolas de estratégia” (Harvard’s Kennedy School e Belfer Center, a School for Advanced International and Strategic Studies da John Hopkins, a Woodrow Wilson School de Princeton e as suas cópias) prosperam, enquanto o Departamento de Defesa e o arquipélago de intelligence (CIA, DIA, NSA, etc. ) são hoje fontes muito mais importantes de financiamento para os meus colegas do que as fundações privadas. Ao contrário do que sucedia na década de 1960, não há praticamente oposição a esta transformação altamente problemática. No seu livro, e entre os vários escritos dos autores que estudou, deparamo-nos com um medo generalizado da “mistura racial”, da “decadência civilizacional” e com um alarmismo relacionado com as políticas populacionais. Infelizmente, podemos encontrar ansiedades semelhantes hoje em dia. O que é novo e o que é velho nos discursos presentes do medo?Concordo completamente sobre os ecos que se fazem sentir do passado, e creio que não dei o devido valor ao peso que o medo assumiu (e continua a assumir) nesses projectos. Estou agora a tentar, de facto, acompanhar o que as ciências sociais têm a dizer sobre o medo. Ele é fundamental, como deixam claro, para os argumentos a favor da restrição da imigração e similares, mas também remete para crenças irracionais sobre escassez de recursos e sobre as ameaças como o Irão ou o Iraque colocavam ao “acesso” a estes. Posso estar errado, mas tenho dificuldades em ver diferenças sérias entre os argumentos produzidos por actores políticos e intelectuais da, sei lá, década de 1920, e os do presente. Qual a importância de expandirmos as nossas investigações sobre processos que tornam o racismo invisível ou marginal, no sentido de lidarmos com os desafios políticos contemporâneos? Ainda é possível detectar uma Realpolitik racial hoje em dia?Da mesma forma, entendo que uma Realpolitik “racial”, ou melhor, “racista”, com a sua imaginada fractura de absoluta e inerradicável diferença, está viva, e bem viva, hoje em dia. Retorno ao tema que estou a estudar presentemente. Na década de 1920, as “matérias-primas” que se dizia estarem em escassez e que, como tal, despertavam a ameaça de um futuro conflito, tal como hoje, estavam nas colónias, semicolónias e dependências de África, da Ásia e América Latina. Apologistas da ordem imperial começaram a insistir que as matérias-primas encontradas nos trópicos e semitrópicos eram, por direito, “a herança da humanidade”. Como o ex-governador da Nigéria Frederick Lugard enquadrou o problema no seu Dual Mandate in British Tropical Africa (1922), as raças que habitavam estes lugares não tinham qualquer “direito de negar as riquezas aos que delas precisavam”. Era uma questão de vida ou morte. Durante a Guerra Fria, os gurus de uma “geopolítica” reabilitada (ou, pelo menos, eles assim o esperavam), George Kennan a despontar entre eles, opunham-se à independência das colónias, sustentando que essa independência bloquearia inevitavelmente o acesso do Ocidente a essas matérias-primas de que tanto necessitava. Também eles se dirigiam para a ideia de “herança da humanidade” e desdenhavam da que postulava direitos soberanos. Estas crenças persistiram incólumes desde o trauma nacional erradamente recordado como o “boicote da OPEP”, quando as acções dos países produtores, como um precoce crítico desta duplicidade de princípios o colocou, foram regularmente condenadas como “crime”, “máfia”, “pirataria” e “chantagem de preços”, e que persistiram até às intervenções de 1991 e 2003 no Iraque e bem depois disso.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
“Não se pode defender apenas algumas igualdades”, pedem as feministas negras
Ainda “estamos na fase da infância” do feminismo negro em Portugal, mas há um novo contributo de peso. O Inmune, o Instituto da Mulher Negra, nasce da vontade de várias mulheres de tomar a palavra na produção de conhecimento, sem deixar de fora a acção comunitária. (...)

“Não se pode defender apenas algumas igualdades”, pedem as feministas negras
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 Homossexuais Pontuação: 11 Mulheres Pontuação: 14 | Sentimento -0.12
DATA: 2018-12-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ainda “estamos na fase da infância” do feminismo negro em Portugal, mas há um novo contributo de peso. O Inmune, o Instituto da Mulher Negra, nasce da vontade de várias mulheres de tomar a palavra na produção de conhecimento, sem deixar de fora a acção comunitária.
TEXTO: “Somos uma entidade feminista interseccional e somos uma entidade anti-racista. Isto é o que nos une e o que nos caracteriza”, descreve Joacine Katar Moreira, presidente — ou “presidenta”, como pede para ser tratada — do recém-criado Inmune, o Instituto da Mulher Negra em Portugal. “O facto de sermos o instituto da mulher negra não significa que todas as nossas preocupações tenham que ver especificamente com questões do racismo e do sexismo. Não se pode defender apenas algumas igualdades”, defende a investigadora do ISCTE, sublinhando a importância de olhar para outras formas de discriminação — que atingem as mulheres negras e não só —, como o preconceito contra pessoas LGBT, pessoas com deficiência e as desigualdades económicas estruturais. “Temos que ser educados para ouvir. ”Actualmente, o núcleo duro do Inmune é composto por 27 fundadoras, às quais se juntam outras associadas. Estão distribuídas por oito departamentos — da ciência ao queer, da cultura à infância —, tantos como as áreas em que cada uma sente que pode contribuir para melhor conhecer e apoiar outras mulheres negras em Portugal. São académicas, artistas, designers ou técnicas de serviço social; há portuguesas e de outras origens, muitas residentes em Lisboa mas também de outras regiões e até emigradas. A designação de “instituto” não é meramente estética. Além da intervenção comunitária, há na sua missão uma componente de reflexão, uma aposta na produção de conhecimento sobre as vivências das mulheres negras na sua diversidade. Educação, acesso à saúde, ao emprego, habitação, universidades, justiça — são várias as áreas em que têm encontrado discriminação e invisibilização, ou seja, o não reconhecimento e aceitação da sua presença. São muitas vezes olhadas com surpresa quando mostram outras faces além destas duas dimensões da sua identidade — mulheres e negras. “Retiram ao sujeito negro o lugar de multiplicidade”, lamenta a designer Neusa Trovoada, do departamento de comunicação da Inmune. “É como se só pudéssemos ser uma coisa, e quando somos diversas coisas, as pessoas espantam-se. ”Neusa Trovoada, 45 anos, é natural de Angola e vive em Portugal desde os sete anos, com uma passagem por Inglaterra. Numa voz doce que não denuncia a idade, fala sobre a solidão que pautou o seu percurso, em espaços como a universidade ou o mercado de trabalho qualificado, e sorri ao recordar os momentos de encontro que lhe mostravam que não era a única. Contudo, olha para raparigas mais novas na família e vê que pouco mudou nas suas vivências. É isto que a motiva a abraçar a militância — para provocar o abanão necessário para que as coisas mudem. Joacine Katar Moreira reconhece que ainda “estamos na fase da infância” do feminismo negro em Portugal, sublinhando a importância do florescimento de novos colectivos que possam trazer perspectivas diferentes. “As mulheres negras são diversas, quantas mais associações, melhor. ” Vários contributos chegam através do activismo e do conhecimento que é produzido em outros países, como o Brasil — uma das inspirações do Inmune é o Geledés, o Instituto da Mulher Negra brasileiro —, mas “é necessário que haja um enquadramento, uma readaptação”. E mais estudos sobre as características deste cruzamento entre racismo, sexismo e outras discriminações na vida das mulheres negras em Portugal. Outro contributo que o Inmune pretende dar é repensar a forma como olhamos para o mundo. Uma das ideias para o próximo ano é criar um manual de comunicação inclusiva, para reflectir sobre a linguagem “masculina e colonizada”, das palavras aos conceitos — porque não são apenas as palavras que importam, mas as ideias que nos levam a escolhê-las. Joacine Moreira recorda o momento em que decidiu reivindicar a palavra “presidenta”, a exemplo de Pilar Del Rio, que sugeria que este feminino não existia porque não era um cargo ocupado por mulheres. É preciso também olhar de outra forma, afirma a investigadora, para a História. Nos tempos da escola, estranhava a narrativa de que as pessoas negras tinham sido docilmente escravizadas. E, de facto, não o foram, mas “há uma omissão da resistência”. Um apagamento que vai desde as revoltas dos povos africanos até ao presente, ao não reconhecimento das resistências quotidianas de muitas mulheres. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É precisamente com o objectivo de repensar alguns conceitos que surgem as “Conversas às escuras”, reuniões regulares que não se querem “um encontro de egos, mas um encontro de almas”. A primeira conversa aconteceu no sábado e juntou a “presidenta” da Inmune e a investigadora Inocência Mata, da Universidade de Lisboa. Joacine Moreira explica que “normalmente o obscuro, o oculto, o sombrio, estão associados ao mistério, mas igualmente a algo negativo, algo que, mesmo existindo, não pode ser reconhecido”. “Qual é o problema em ser uma ovelha negra?”, brinca a investigadora. É preciso, portanto, retirar a carga negativa a estas expressões — uma reconceptualização que não é de agora, bebendo, por exemplo, do movimento francês que se apropriou do conceito de negritude. Por vezes, diz, também é preciso “transformar as palavras em expressões revolucionárias”. Não tem medo de que a ideia seja considerada radical? Joacine Katar Moreira ri-se calorosamente, acolhendo a palavra. “A evolução nunca se fez com os conformados e os conservadores. Se não houvesse pessoas radicais, não haveria liberdade. ”Notícia actualizada às 13h15
REFERÊNCIAS:
O caos chegou a Baltimore, onde a indignação se juntou à pobreza
Grupos de jovens queimam e pilham lojas, numa reacção violenta à morte de mais um negro num incidente com a polícia. (...)

O caos chegou a Baltimore, onde a indignação se juntou à pobreza
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150501195620/http://www.publico.pt/1693916
SUMÁRIO: Grupos de jovens queimam e pilham lojas, numa reacção violenta à morte de mais um negro num incidente com a polícia.
TEXTO: A cidade norte-americana de Baltimore acordou esta terça-feira em estado de sítio, com as ruas patrulhadas por milhares de polícias e membros da Guarda Nacional, e debaixo de um recolher obrigatório que vai limitar os movimentos dos seus mais de 600. 000 habitantes durante uma semana. A declaração do estado de emergência foi a resposta do governador do Maryland e da mayor de Baltimore a uma noite de extrema violência a apenas 60 quilómetros da capital, Washington D. C. , numa onda de protestos marcada pela morte de mais um jovem negro após um incidente com a polícia, mas que explodiu em actos de vandalismo e pilhagens com mais causas do que as que cabem em mensagens emotivas disparadas nas redes sociais, e também em notícias dos jornais e das televisões. O pano de fundo foi a morte de Freddie Gray, um jovem negro de 25 anos detido pela polícia no dia 12 de Abril no bairro de Sandtown, um dos mais problemáticos da zona Oeste de Baltimore, onde a pobreza quase faz esquecer que ali viveram estrelas do jazz como Billie Holiday e Cab Calloway. Nesse dia, precisamente às 8h39 da manhã, Gray trocou um olhar com um agente da polícia de Baltimore durante um momento e tomou a decisão de fugir na direcção contrária, à medida que se aproximavam outros três agentes, montados em bicicletas. O que se passou depois está ainda a ser investigado, e a versão dos polícias envolvidos não é contrariada pelas poucas imagens captadas no local, por câmaras de telemóveis e por uma câmara de vigilância – Gray foi detido sem oferecer resistência, arrastado para uma carrinha da polícia aos gritos e a pedir ajuda, enquanto uma testemunha chamava a atenção dos agentes para o estado de uma das pernas do jovem. Apesar de nenhum vídeo revelar o que aconteceu momentos antes de Gray ter sido arrastado para a carrinha, uma testemunha identificada como Tobias Sellers disse ao jornal The Baltimore Sun que os seis agentes envolvidos "tiraram os bastões e bateram-lhe". Pouco se sabe sobre o que aconteceu na viagem de meia hora entre aquela esquina no bairro de Sandtown e a esquadra da polícia, a não ser que a carrinha fez duas paragens até chegar ao destino, e que os agentes dizem ter amarrado os pés de Freddy Gray devido ao seu estado "irado". A primeira vez que o jovem foi observado por um médico foi já na esquadra, meia hora depois do encontro inicial com os agentes. Pouco depois estava a ser levado para o hospital, onde chegou com "graves lesões" no cordão da medula espinal e na laringe, que especialistas citados pelo The Baltimore Sun dizem ser compatíveis com os efeitos de um acidente de automóvel, provocadas por uma "força significativa". Gray viria a morrer por causa dessas lesões no dia 19 de Abril, e os agentes envolvidos foram suspensos até ao fim das investigações. Desde o dia 12, mas principalmente desde que se soube da morte do jovem, as ruas de Baltimore foram palco de vários protestos, com momentos de tensão que deixavam adivinhar um cenário semelhante ao que aconteceu na cidade de Ferguson, no Mississippi, em Agosto do ano passado. As mortes do adolescente Michael Brown e do jovem Freddy Gray ocorreram em situações distintas, e ambas foram também muito diferentes das que levaram à morte de Walter Scott, um homem de 50 anos, também negro, e também morto por um polícia branco, há menos de um mês, no estado da Carolina do Sul – Brown foi baleado por um agente que actuou dentro da lei, de acordo com um grande júri e com um relatório do Departamento de Justiça (que, no entanto, identificou um padrão de atitudes e comportamentos racistas no corpo de polícia de Ferguson); Gray pode ter sido vítima de violência policial extrema, mas a investigação está em curso; e Scott foi baleado oito vezes pelas costas, "abatido como um animal", nas palavras do seu irmão, Anthony Scott. Seja como for, a sensação de que a polícia norte-americana (ou a prova de que essa sensação é bem real, no caso do relatório sobre Ferguson) visa essencialmente cidadãos negros, recorrendo ao uso da força – muitas vezes até à morte – com chocante leviandade, tem provocado protestos um pouco por todo o país. Na segunda-feira, foi a vez de Baltimore. Os media norte-americanos dizem que na manhã de segunda-feira, antes do funeral de Gray, começou a circular nas redes sociais uma convocatória para uma "purga", numa referência a um filme de 2013 cujo argumento gira à volta de uma América totalitária, num futuro próximo, em que os cidadãos têm 12 horas por ano, entre as sete da noite e as sete da manhã, para poderem matar quem quiserem sem sofrer consequências.
REFERÊNCIAS:
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