Como é envelhecer bem? A arte e os truques de Maria Cavaco Silva, Maria João e Nayma Mingas
Nenhuma tem uma fórmula do tipo "comer uma taça de mirtilos por dia". É sobretudo uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser feliz, querer ser, não ter medo de rir nem de chorar. Três mulheres de três gerações falam sobre envelhecer, pintar o cabelo, o amor e a morte (...)

Como é envelhecer bem? A arte e os truques de Maria Cavaco Silva, Maria João e Nayma Mingas
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nenhuma tem uma fórmula do tipo "comer uma taça de mirtilos por dia". É sobretudo uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser feliz, querer ser, não ter medo de rir nem de chorar. Três mulheres de três gerações falam sobre envelhecer, pintar o cabelo, o amor e a morte
TEXTO: Esta é uma conversa em que se pergunta a idade às senhoras e por isso aqui vai: a manequim Nayma Mingas tem 44 anos, a cantora de jazz Maria João tem 62 e a antiga primeira-dama Maria Cavaco Silva tem 80. O tema é o envelhecimento e a escolha é simples: são três mulheres que, por causa da sua vida pública, estão a envelhecer à frente de todos nós. No fim, depois de falarem sobre viver bem e morrer bem; pintar o cabelo e ir para um “asilo”; máscaras do Congo e eutanásia; fazer trail e ler Séneca; imortalidade e respeito pela Terra; rir e chorar; ter fé e ser ateu; mais os medos e as alegrias que aparecem com os anos e a solidão da viuvez, alguém disse: “Seria impossível ter esta conversa com três homens. ”Igual não seria, isso é certo. Maria Cavaco Silva conta que tem “uma relação amistosa” com a idade e que durante anos se achou parecida com a actriz Audrey Hepburn. Quando o marido, Aníbal Cavaco Silva, foi eleito Presidente, em 2006, sentiu que era olhada como a “imagem-padrão da mulher portuguesa” e preocupou-se um pouco com isso. Mas foi com a avó materna que aprendeu a envelhecer. Maria João diz que nunca pensa no envelhecimento (“juro!”) e que “querer ser” o que é agora é o que a ajuda a não pensar na idade. “Como quero, sou”. Já que tem de morrer, pelo menos que não seja no Verão. Não gosta de falar sobre isso, mas já fez um pedido improvável a um grande amigo. “As pessoas têm de ter o direito de escolha. ”Nayma Mingas tem os pais vivos e por isso ainda é “a filha de”. No caso, de Ruy Mingas, músico (autor do hino nacional angolano), ex-ministro do Desporto de Angola e embaixador em Portugal, e Julieta Mingas, antiga professora de Biologia Celular na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. É ela, mas não só, quem leva a conversa para África, onde os velhos morrem em casa e “cota” é uma palavra bonita. Diz que quando o seu cabelo começar a ficar branco, não o vai pintar. Os truques destas mulheres não são servidos em forma de receitas do tipo “x” comprimidos de vitamina B12 ou uma taça de mirtilos por dia. É mais uma questão de atitude: não sofrer por antecipação, trabalhar para ser o mais feliz possível, não ter medo de rir nem de chorar. P: Começo pela Nayma, a mais nova das três. Tem 44 anos e está rodeada por mulheres com metade da sua idade. Sente-se velha?Nayma Mingas (N. M. ): Não, de todo. O peso do envelhecimento tem muito a ver com o ambiente em que estamos. No meu caso, embora as pessoas com quem trabalho sejam muito mais novas do que eu, sei que faço parte da geração que quebrou esse tabu, da geração das mulheres que conseguiu provar que pode continuar a trabalhar como manequim independentemente da idade que tem. P: Como é que se quebrou esse tabu?N. M. : Tem a ver com a surpresa das pessoas quando digo a minha idade. As pessoas acham que eu tenho 30 anos. Ainda hoje o Paulo Macedo [ex-director criativo da Vogue Portugal] me disse: “Miúda, tu não envelheces!” Continuam todos a tratar-me por “miúda”. Perguntam-me se estou conservada em formol… fazem muitas piadas à volta da minha aparência. Mas uma das coisas mais importantes para a longevidade da minha carreira, independentemente da minha aparência, tem a ver com as campanhas internacionais feitas contra a discriminação, a favor da diversidade e a aceitação dos vários tipos de beleza. Isso é muito importante. A própria publicidade mudou. Há 20 anos, lembro-me de ver jovens com 25 anos a venderem cremes anti-rugas e não fazia sentido. Até era desrespeitoso em relação ao cliente. Maria João (M. J. ): Continua. Continua a haver anúncios desses…N. M. : Já não tanto. Até há o resgatar de manequins mais velhas para fazerem essas publicidades. M. J. : É verdade. N. M. : O público já é mais inteligente, já não vai atrás da miragem da beleza perfeita. As pessoas querem ser aceites tal qual elas são. Maria Cavaco Silva (M. C. S. ): Eu já vejo manequins da minha idade, senhoras fantásticas, com a sua idade marcada. . . Acho isso uma grande conquista. P: Hoje há sobretudo o culto do corpo estilizado e asséptico? Esse é o novo preconceito?N. M. : Sim. Vivemos no mundo das redes sociais, muito digital, onde podemos acordar com má cara, mas há uma aplicação que nos tira as olheiras, que nos suaviza a pele e até podemos mudar o cabelo, podemos estar completamente despenteadas e pôr um cabelo perfeito…M. C. S. : …Disto eu não sei nada…N. M. : … E isto cria uma forma de estar na sociedade que é errada. As pessoas estão a habituar-se à perfeição, à vida editável, e isso é mau porque no dia-a-dia as pessoas escondem-se, escondem-se atrás de maquiagens e de muitas formas de estar naturais que devem ser aceites naturalmente. P: Já não há a pressão da juventude eterna?N. M. : Ainda continua a haver, porque as pessoas cada vez mais a procuram. P: Na música há essa pressão?M. J. : Não. Não sinto isso, não senti até agora. Não senti, aliás, nenhum tipo de discriminação neste tempo todo. Sinto-me uma privilegiada. Tive muita sorte, estive sempre rodeada de pessoas incríveis, músicos absolutamente inspirados e que me ajudaram a ser a cantora que eu sou, a música que eu sou. Até agora não sinto, mas não sei se quando ficar mais velha se vou sentir. P: Diz que o seu instrumento “é” o seu corpo e “está dentro” de si. Não tem medo que o corpo envelheça mais depressa do que a cabeça?M. J. : Que os nossos corpos envelhecem mais depressa do que nós, do que nós pensamos e do que nós somos enquanto pensamento e pessoas, isso eu reparo. E reparo nas minhas amigas e nas pessoas à minha volta. Infelizmente é assim. Mas até agora tenho tido essa sorte. P: Como é que trata do seu corpo-instrumento, que truques usa para enfrentar a parte física do envelhecimento?M. J. : Sempre fiz desporto. Desde miúda que faço natação, agora comecei a correr, comecei a sonhar com triatlo, corro trail. Fiz aikido durante 40 anos (agora só parei porque me lesionei)… O desporto é uma coisa maravilhosa para nos mantermos bem. É essa a minha opinião e a minha experiência. Fiz isso com o meu filho: insisti desde sempre que ele fizesse desporto. P: Ele é atleta. . . M. J. : Sim, faz natação de competição e passou ao lado da droga, álcool, fumo. Sou muito fã de desporto e continuo a fazer, custe o que custar. Às vezes levanto-me e penso: “O que é que vou fazer? Vou correr, tenho que ir correr!” Tem de ser, todos os dias, e isso ajuda-nos e dá-nos muitas ferramentas em termos de disciplina, de sacrifício, de esforço, e mantém-nos bem, saudáveis e fortes. E mantém o sangue a correr. P: As cordas vocais envelhecem?M. J. : Até agora, não senti e continuo com esta “vozinha”!… Eventualmente, elas tenderão a envelhecer connosco, estão dentro do corpo…P: O que é que acontece às cordas, já estudou?M. J. : Não, não estudei, nem quero pensar nisso! Até agora, está bem, portanto não quero pensar nisso. Falar de envelhecimento, e debruçar-me muito sobre esse assunto, vai acabar por acabrunhar-me, vou ficar mais perdida. Continuo a fazer tudo o que sempre fiz e sinto-me bem e por isso prefiro não falar nisso, acho uma perda de tempo. P: Acaba de fazer 80 anos. Se pensar nas coisas importantes que aprendeu, o que é que não sabia quando tinha a idade da Nayma Mingas?M. C. S. : Quando tinha a idade da Nayma, estava dar uma grande reviravolta à minha vida. Quase sem sentir e quase sem saber, caiu-me em cima, de pára-quedas. Sei muito mais coisas hoje, mas provavelmente muitas das coisas que sabia quando tinha a idade da Nayma, já esqueci. Há um equilíbrio entre o que se vai limpando, porque é necessário, e o que vamos aprendendo. Continuo a sentir-me como professora, apesar de já estar reformada, mas isso é válido para todas as pessoas: todos os dias aprendemos qualquer coisa e o dia em que não aprendemos há qualquer coisa que falhou. Não creio que seja de ignorar que é importante aprender, mas também será importante desaprender. E é esse equilíbrio entre o aprender e o desaprender que vai continuando e, como a Maria João dizia, talvez haja determinadas coisas que, quando elas aparecerem, logo as enfrentamos. A Maria João disse: “Eu não vou estar já preocupada com isso. ” Lembro-me de uma coisa que o D. Manuel Clemente [cardeal patriarca de Lisboa] me contou há muitos anos, que havia uma senhora que lhe dizia, na parte final da vida, era ele apenas padre: “Ai, padre Manuel, tantas coisas com que eu me preocupei ao longo da minha vida e que não vieram nunca a acontecer!…”. Nunca me esqueci disto, porque isto é muito importante. P: Não sofrer por antecipação…M. C. S. : Não vale a pena estar a sofrer por antecipação. Acabei de fazer 80 anos, mas os meus amigos ainda dizem: “Continuas a ter uma voz de menina. ” [Envelhecer] não quer dizer que a Maria João não vá continuar a ter a sua voz e aquilo que tem feito ao longo dos anos. Ainda há bem pouco tempo a Celeste Rodrigues…P :… que tem 90 e tal anos…M. C. S. : Sim. Eu levei-a a Belém, para uma noite de poesia, e ela foi acompanhada pelo bisneto. O bisneto tocava e ela cantava. E ela dizia: “Tenho de sair de casa, tenho que cantar todos os dias, senão não sou eu, não me sinto bem. ”P: A sua opinião, a sua forma de pensar, mudou com a idade?M. C. S. : Sim, em relação a muitas coisas. Vi aquele filme, achei o filme extraordinário na altura. Agora vou ver outra vez: “Ai não, afinal não é assim tão extraordinário. . . ” Não quer dizer que seja uma questão de exigência… é uma questão…M. J. : … de ponto de vista…M. C. S. : … Não. É estar diferente, encarar as coisas de uma maneira diferente. No meu caso, mais madura. Mas a Maria João dizia — e é verdade — que a cabeça envelhece mais devagarinho. E é uma sorte quando isso acontece, porque depois há todas as doenças com o envelhecimento, as senis, os Alzheimers. Mas quando o envelhecimento é normal e natural, a cabeça vai mais devagar do que o corpo. Às vezes olho para um escadote e digo: “Vou subir. ” E depois digo: “Não, vamos lá tentar…”M. J. : … é melhor não!…M. C. S. : E digo: “Vamos lá tentar… É melhor não. ” E depois começo e concluo: afinal não é tão fácil como parecia. E o meu marido dá-me gritos: “Tu não penses sequer em subir o escadote!” É um risco que se corre com uma certa idade: a pessoa está em casa sozinha, tenho tido muitos exemplos disso, acha que vai, sobe, as coisas correm mal e uma fractura no colo do fémur muitas vezes é mesmo fatal. Portanto, temos de manter o equilíbrio entre a cabeça e o corpo. P: Diz-se que com a idade ficamos mais conservadores e mais de direita — e que isso acontece até às pessoas de esquerda. Como tem sido no seu caso?M. C. S. : Não, não acho. Eu era muito rebelde, mas as minhas colegas aqui [na entrevista] já me disseram: “É tal e qual como eu a conheço. ” Continuo bastante rebelde. P: É rebelde em quê?M. C. S. : Rebelde até nas reacções imediatas, coisas simples do dia-a-dia. Elas estão a dizer que sim [com a cabeça] porque foi nessa linha que elas disseram…M. J. : Foi sempre assim que a conheci, sempre, sempre…M. C. S. : Portanto, não mudei e os meus amigos dizem: “Tu estás sempre na mesma”, nesse aspecto de reagir de imediato, nariz arrebitado, linguinha afiada. . . P: Não é uma mulher ponderada, hoje que tem 80 anos?M. C. S. : Ai, não! Vê, como eu rio?! É que… “Di” jeito nenhum! As duas disseram-me isso. [Nos bastidores], a Nayma disse-me: “Ah, isto é de professoras, porque a minha mãe também é assim. ” Não tem de ser: há professoras muito calmas, muito cordatas, mas eu nunca fui. Não é agora que vou mudar. Mas não sei o que está para me acontecer. P: Quando era pequenina, a Nayma imaginava que ser velha era o quê?N. M. : Para mim, alguém com 40 anos já era muito velha. Tenho uma irmã que é oito anos mais velha do que eu e lembro-me de, a certa altura, olhar para ela, já era uma mulher e eu era ainda uma criança, e de ter jurado a mim mesma que nunca seria igual a ela. Tal era a minha ignorância sobre o crescimento e o desenvolvimento do corpo de uma mulher. Mas para mim ser-se velha nunca foi um termo depreciativo. O mais velho em África é sempre muito respeitado, tanto é que a forma como a palavra “cota” — palavras que vêm de Angola e que foram adoptadas em Portugal — são vistas em Portugal de uma forma… Em Portugal “cota” é ofensivo, para nós é respeito. Hoje já sou tratada por “mãe-grande”, “cota”, por miúdos que têm 18, 20 anos, que conhecem a minha carreira, e por respeito, já me tratam desta forma. Para nós, a pessoa mais velha é a pessoa com mais conhecimento, é a que nos educa, a que nos põe no caminho correcto. Em África, é assim. . . M. J. : É muito verdade, em Moçambique também é assim. M. C. S. : A Europa está um bocado virada. N. M. : A primeira vez que estive num asilo fiquei… não digo em estado de choque… mas em estado de choro. P: Foi em Portugal?N. M. : Sim. Nunca tinha visto os idosos serem tratados assim. P: O que é que viu?N. M. : Vi pessoas abandonadas, o que para nós não existe. Os nossos “cotas” morrem em casa, nós fazemos questão de os ter connosco. P: Em Luanda ainda é assim?N. M. : Sim. Ainda agora estive em Luanda e tive uma situação muito engraçada. Toda a gente ouve falar do trânsito, que é caótico. E eu estava a chegar a casa com a minha irmã, estávamos a entrar na rua da casa dos meus pais, de repente vimos uma senhora a atravessar a rua e eu reparei que estava com muletas. Disse “pára” e saí do carro para a auxiliar. O carro de trás começou a buzinar. No momento em que eles perceberam que eu estava a auxiliar uma senhora mais velha, pararam e começaram logo a pedir desculpa. “Ai, desculpa, desculpa. . . ” É assim que nós reagimos em relação às pessoas mais velhas. P: Não há lares de terceira idade em Luanda?N. M. : Neste momento, não posso dizer que não existam, porque temos muitos refugiados em Luanda, mas quando vim para Portugal, nunca tinha visto um asilo, não sabia o que isso era. M. C. S. : A Nayma chama “asilo” e nós chamamos “lar de terceira idade”. Aqui está a diferença do “cota” em África e do “cota” na Europa e em Portugal. O asilo é uma coisa muito mais negativa. Esta história da língua, para mim que sou professora, é muitíssimo interessante. P: Essa é a principal diferença entre envelhecer em Luanda e em Lisboa: os velhos não estarem sozinhos nos anos finais da vida?N. M. : Talvez. Não quero fazer uma acusação e dizer que todos os idosos são abandonados em Portugal. Talvez se deva ao facto de em Angola termos uma população muito jovem, e por isso cuidamos tão bem dos nossos idosos. A população em Luanda acima dos 65 anos é de 2%. P: É verdade que a pele negra envelhece melhor do que a pele clara?N. M. : Parece que sim. Parece que a melanina tem um peso muito grande na elasticidade da pele. A minha mãe é bióloga, poderia explicar melhor. Estou em crer que sim. Quando me deparo com colegas minhas da minha idade, a pele delas tem uma aparência completamente diferente da minha. Penso que já está provado: quanto mais melanina se tem, mais elástica é a nossa pele e menos tendência tem para envelhecer. P: A Maria João está no meio: se lhe pedisse uma palavra para definir que mulher era aos 20, aos 40 e agora aos 60 anos, qual seria?M. J. : Acho que diria a mesma. Eu sempre achei uma festa fazer anos. Fiz 20, hey! Fiz 30, oh! oh! Fiz 40, ah! Fiz 50, fiz 60, eh! eh! Sempre foi uma felicidade, nunca foi um peso para mim. Sinto-me sempre surpresa quando falamos disto e é a primeira vez que participo numa entrevista em que se fala sobre a idade. Porque eu, realmente — juro! — não penso nisso. Não é que não queira pensar porque tenho medo. Não costumo pensar. Como tudo funciona ainda bem… Olho para trás e vejo que a João dos 20 anos era a mesma coisa dos 30. OK, nos 30 tive o meu filho, portanto, talvez tenha ficado com mais essa responsabilidade, de tomar conta, ajudar a crescer e criar uma outra pessoa, e depois com 50… Julgo que sou a mesma pessoa. Mas se calhar há uma diferença entre aquilo que julgamos e aquilo que somos de facto — e aquilo que queremos. Eu gostaria de manter-me a mesma pessoa, de achar que continuo a ser a mesma João, com os mesmos defeitos e as mesmas qualidades. P: Hoje quer as mesmas coisas que queria há 30 anos?M. J. : Quero ser feliz, quero ser saudável, quero que me deixem fazer as coisas que eu quero, quero ser livre, quero não ter problemas, quero poder amar, não ter problemas para que possa fazer tudo, inclusive amar, porque quando temos problemas, financeiros, por exemplo, não conseguimos nem amar. É isso que eu ambiciono, mas julgo que sempre ambicionei. Quero um dia de sol, quero poder correr, quero que o meu filho esteja saudável, os bichos que eu tenho, os meus amigos…P: Quando vai em digressão — com os concertos, as noites e o peso físico que isso implica — faz coisas diferentes do que fazia há uns anos?M. J. : Não, eu continuo a fazer directas. Uma pessoa chega toda rota ao destino final, mas sempre cheguei toda rota aos destinos finais, porque directas não se fazem, nem agora nem em altura nenhuma. Mas continuo a fazer, tem de ser…P: Não canta a seguir a uma directa…M. J. : Então não!? Tem de ser! Se hoje tenho um concerto em São Paulo e a seguir um em Buenos Aires e se eu não fizer directa já não posso fazer… Não posso fazer o quê?! Claro que vou! Sou viciada em música, eu amo música, e por isso faço estas coisas. P: Quando é que fez a sua última directa em palco?M. J. : Em palco… cantar logo a seguir? Bom, eu arranjo sempre um bocadinho à tarde para desinchar! Para desinchar e para dormir um pouco. Não, não pode ser chegar e fazer o concerto. Isso nem se consegue, porque a voz não sai. Há uma diferença entre aquilo que nós queremos ser e aquilo que somos de facto. Mas o querer ser ajuda. E eu quero ser esta mesma pessoa. Quero as mesmas coisas. Eu quero e, como quero — e isto tem muita força. . . M. C. S. : Querer é poder…M. J. : Como quero, sou. P: No seu caso, faço a pergunta ao contrário: quando tinha 20 anos, como é que imaginou a mulher que seria se chegasse aos 80?M. C. S. : Nunca imaginei. Tenho uma relação bastante amistosa com o passar dos anos…M. J. : . . . “Relação amistosa. ” Não me vou esquecer. M. C. S. : Tenho boas razões para isso. Tenho uma mãe que morreu com 24 anos, com a praga da tuberculose — aliás, a minha avó materna perdeu os dois filhos que tinha. A minha mãe eu não conheci, mas o meu tio, que conheci, morreu dez anos depois com a mesma doença. A vida para mim é um dom, um dom que eu tenho de apreciar, dar muitas graças a Deus, permanentemente. Com 20 anos, eu estava debaixo daquela marca, porque fui criada de uma maneira um bocado calamitosa. Não fui criada com a minha avó. Fui criada com uma mulher da idade da minha mãe, irmã do meu pai, minha tia, em Lisboa, enquanto a minha avó permaneceu no Algarve. A minha avó — e percebe-se: quando eu tinha dez anos, morre-lhe o outro filho — eu espirrava e ela levava-me a Fátima. Costumo dizer: as avós levam os netos ao médico, a minha levava-me a Fátima. Isso fez de mim uma criança um bocadinho frágil, uma criança muito magrinha, assim como a Nayma — agora já sou mais anafadinha —, [uma criança com] um problema que só a Audrey Hepburn, com quem durante uns tempos me achei parecida, é que me salvou, porque a minha avó dizia, quando ela apareceu, muito magrinha. . . P: Uma revelação, Audrey Hepburn…?M. C. S. : Do meu marido eu digo que é parecido com o Cary Grant e ele diz: “A minha mulher era parecida com a Audrey Hepburn. ” Portanto, com 20 anos, tinha essa espada em cima da cabeça. Depois passou-me. Quando cheguei aos 30, já tinha dois bebés e isso saiu-me completamente da cabeça. E depois aos 40 continuei a fazer anos. Continua a ser um presente, portanto eu celebro. Tenho todas as razões para celebrar a vida. Há pouco perguntava à Nayma como é que se envelhece: eu lembro-me que quando a minha avó foi ao meu casamento, não tinha 70 anos ainda, as fotografias mostram uma velhinha, uma velhinha carcomida. P: É a alimentação, o tipo de vida?M. C. S. : Não sei. A minha avó, apesar de ser essa velhinha antes dos 70, viveu até aos 90 e, com esses desgostos grandes, todos os dias a vi dar uma gargalhada e a chorar ao lembrar-se dos filhos que tinha perdido. P: Todos os dias chorava e ria?M. C. S. : Todos os dias chorava e ria. São as faces fundamentais da vida. Uma mulher que chega aos 90 anos, sozinha (o meu avô também já tinha morrido) e que consegue todos os dias dar uma gargalhada, mas uma gargalhada franca, com alguma coisa que alguém dizia, e todos os dias tinha a memória daquilo que tinha perdido. O que tinha perdido nunca a impediu de dar uma gargalhada à vida. Foi ela que me ensinou a envelhecer. P: O seu marido foi primeiro-ministro a primeira vez em 1985 — estamos a falar de 33 anos à frente das câmaras de televisão e sob escrutínio público…M. C. S. : … Pior para ele. P: Isso impôs-lhe uma disciplina particular?M. C. S. : Não. Não me impus nenhuma disciplina. Aliás, falava-se muito nas “gaffes da Maria Cavaco Silva” porque eu continuava a ser a tal criatura…M. J. : … Isso fazia parte do seu charme. M. C. S. : Não pensar, dizer. Não me impus nenhuma disciplina porque isso não tinha a ver com a minha maneira de ser. P: Disciplina no sentido de ter de cuidar de si. . . M. C. S. : Não, não cuidava muito de mim. Tentava apresentar-me arrumadinha, gosto de ser uma velhota arrumadinha. Não me “produzia”, porque não é a minha profissão, a minha é ser professora. Talvez tenha tido mais cuidado quando o meu marido foi Presidente. Enquanto o meu marido era primeiro-ministro, eu trabalhava muito. Mas quando o meu marido foi eleito Presidente, achei que podia ser considerada uma certa imagem da mulher portuguesa e aí já tinha cuidado. Também já era mais velha. P: O que é essa “certa imagem da mulher portuguesa”?M. C. S. : Eu não sabia qual era a imagem da mulher portuguesa. Não há propriamente uma imagem da mulher portuguesa, da mulher inglesa… Eu achava é que as outras pessoas, quando eu viajava — e viajávamos muito — quando olhassem para mim, iam dizer: “Esta é uma imagem-padrão da mulher portuguesa”; “a mulher portuguesa é assim”. Achava eu que eles podiam pensar isso e portanto eu tinha de dar. . . eu dava, no fundo, a imagem daquilo que eu era. . . P: Concordam? Maria Cavaco Silva é a imagem-padrão da mulher portuguesa?M. J. : Acho que sim. N. M. : Também acho que sim. M. J. : E durante muito tempo representou-nos e eu senti sempre orgulho quando olhava para si. M. C. S. : Ai, esta é bonita!. . . M. J. : Sentia-me bem representada. Como mulher portuguesa — enfim, sou meio-meio — sentia-me bem representada por si. P: Para Nayma, o que é “a mulher portuguesa”?N. M. : É uma mulher altiva, por norma fala…M. J. : … pelos cotovelos!N. M. : E é uma mulher muito forte. Nesse aspecto, a mulher portuguesa e a mulher angolana são muito parecidas. São mulheres muito batalhadoras, bastante trabalhadoras, e acima de tudo altivas. O português, de um modo geral, tem esta coisa de falar assim um pouco… de cima. E eu gosto muito desta característica. M. C. S. : A propósito de a Nayma dizer que a mulher portuguesa é altiva, lembro-me de que, na Bulgária, não havia primeira-dama, porque ela não queria, era muito nova, com filhos… e o gabinete [do Presidente] tinha só mulheres, talvez para compensar. Uma delas veio ter comigo — ainda hoje mantemos contacto por e-mail — para dizer: “Sabe o que dizem aqui de si? She walks like a queen. ” Não é que seja mais importante ser rainha… É claro que eu caminhava melhor do que a rainha de Inglaterra caminha actualmente, mas ela continua a caminhar!P: A Maria João está quase a ter descontos nos comboios, nos teatros…M. J. : … Ai, que horror!. . . P: … nos cinemas, nos museus…M. J. : … Ai, que horror!. . . M. C. S. : Recuse os descontos!P: Justamente, é essa a pergunta: vai pedir “bilhete de terceira idade” ou vai fazer de conta?M. J. : Acha?! Nunca!M. C. S. : Tenho uma amiga que fez isso durante muitos anos! Recusou bilhetes mais baratos para não dizer que tinha mais de 65 anos. N. M. : Mas porquê…?!M. J. : Porque estas pequenas coisas acabam por nos influenciar. Uma vez, quando o Mário Laginha partiu um pé, eu andava a empurrá-lo nos carrinhos dos aeroportos, ele sentava-se e eu empurrava. Depois ele precisava de ir à casa de banho e eu dizia: ‘Mário, vai à casa de banho dos deficientes. ’ E ele dizia: ‘Não vou nada. ’ Eu dizia isto para o picar, mas eu compreendo, uma pessoa não quer. . . Nunca hei-de ter esses descontos. Quero lá saber!M. C. S. : Afinal essa minha amiga não está sozinha…N. M. : Eu vou usar os descontos. M. J. : O que é que é isso?!N. M. : Vou, vou. Fiquei tristíssima quando perdi todos os meus privilégios de ter menos de 25 anos. Portanto, quando chegar aos 65, vou aproveitar todos. M. J. : Isso vai influenciar-te…N. M. : Não influencia nada. M. J. : Vais ver. Vais para a fila e ao teu lado estão as pessoas… “nha, nha, nha”…P: A Maria João não sente pressa, não sente que o tempo está a passar e que tem que fazer coisas?M. J. : Ai, não! Não sinto nada disso. Sinto os dias normalmente. Acho que isto acaba por nos influenciar. Se formos para uma fila dos 60, ao nosso lado só estão essas pessoas. Prefiro não. P: Não há filas separadas, é só dizer “tenho mais de 65” e mostrar o B. I. …M. J. : Era só o que faltava, não, não, não! Não, porque eu não me sinto assim e espero que não me façam sentir assim. Tudo o que está relacionado com mais idade e ter mais idade, nunca partiu de mim. Nunca pensei: “Ah, estou mais velha, portanto, oh…!” Já aconteceu, mas vem de fora, alguém que menciona. Apanha-me sempre de surpresa. P: Se calhar a expressão “terceira idade” já não se adequa e está na altura de inventar a “quarta idade”…M. C. S. : Ou quinta e sexta…! O professor Adriano Moreira é da terceira idade?M. J. : A única diferença que sinto dos 20 para agora é que, antes, eu era filha de alguém e depois passei a ser mãe de alguém. Depois de os meus pais faleceram, fiquei “a mãe”, a mãe de alguém. Isso eu senti. Isso foi duro. Deixei de poder dizer: “Oh mãe, eu…” Isso desapareceu. P: Há pouco utilizou a expressão “velhota”. Velhota, velha, idosa, pessoa da terceira idade… Qual é a melhor palavra?M. C. S. : Cada pessoa usa a sua. Eu acho graça à palavra velhota. Terceira idade já não faz grande sentido, como estávamos a dizer. Pessoas como o Adriano Moreira, o Eduardo Lourenço…M. J. : … “Cotinha”… gosto de “cotinha”…M. C. S. : … pessoas com mais de 90 mas que não atiraram a toalha ao chão. Quando digo isso, é por graça. Mas [os anos] estão todos cá. É a tal história do escadote: posso querer subir o escadote, mas se subir pode correr mal e vai doer aqui, vai doer ali, e posso “despencar-me”, como dizem os brasileiros, do escadote abaixo. P: Nas três fases diferentes em que estão, que truques usam para enfrentar o envelhecimento? É a taça de mirtilos diária, é a vitamina B12, é fazer sudoku, desporto, rir e chorar?…M. J. : Comer bem e compreendermos o nosso corpo. Isso é muito importante. Como cantora, preciso de compreender o meu corpo. Como é que ele funciona, o que é que me faz estar cansada, o que posso fazer para melhorar, para colocar a voz bem, o que posso fazer pelo meu corpo. Essa compreensão que eu ganhei, muito por ser cantora e por praticar desporto desde sempre, é muito importante. Se nos compreendermos bem, sabemos ajudar o corpo e a cabeça a caminhar todos os dias. P: Isso exige alguma autocontemplação…M. J. : Não. P: Como é que se faz?M. J. : É viver. Ouvir, ouvir o meu corpo, ver como ele funciona. Dói, não dói, o que falta. P: Estuda os alimentos?M. J. : Agora, sim, tenho cuidados, sou vegetariana. Não é por estar mais velha, é porque tomei consciência da forma como os humanos tratam os animais, que é inadmissível, e causa-me uma dor, uma revolta que é insuportável para mim. A maneira que eu tenho de protestar é não comer carne, não comer peixe, comer coisas saudáveis. Tenho um filho e tenho cães e, portanto, tenho que ir ao talho, porque eles comem carne. Mas se é frango, compro frango do campo, se é ovos, compro biológicos, se é queijo, é biológico. Tento que a minha passagem nesta vida esteja sempre ligada a boas coisas e não à tortura e ao sofrimento. P: Há um estudo que dá como explicação para a extrema longevidade dos japoneses — que têm o recorde mundial de centenários, mais de 65 mil — o facto de terem começado a comer carne. . . M. J. : Eles, se calhar, tratam melhor os seus animais; se calhar, não fazem as barbaridades que nós fazemos. . . P: Os seus truques, Nayma?N. M. : Vou dar uma resposta um bocado cliché, mas acho que tem mesmo a ver com a felicidade. Não troco a mulher que sou hoje pela mulher que era quando tinha 20 anos. Aprendi a estar comigo, a entender-me melhor, aprendi a dizer “não”. Antes, dizia “sim” com muito facilidade, mesmo quando pretendia dizer “não”. E isso deu-me uma serenidade e uma forma de estar, comigo e com os outros, que faz com que me sinta muito mais feliz. Esse é o primeiro passo. Depois, tal como a Maria João, pelo pai que tenho, fui obrigada a praticar desporto. O bem-estar físico é essencial, uma boa alimentação é essencial. Mas a nossa longevidade passa muito por sermos um pouco rebeldes, por termos a capacidade de dizer “não” e gostarmos muito, primeiro, de nós, tratarmo-nos bem. Só assim conseguimos estar bem na sociedade. Eventualmente, ganhar alguns cabelos brancos, que acho bonitos, ganhar algumas rugas. P: Os cabelos brancos serão bonitos, mas noto que todas pintam o cabelo…N. M. : Eu não pinto o cabelo. Já tenho alguns cabelos brancos, mas o meu cabelo é muito escuro. P: Não vai pintar daqui a uns anos?N. M. : Não. Quando a minha mãe pintou o cabelo [para tapar os brancos], eu e os meus irmãos tivemos uma atitude… não agressiva… mas ficámos revoltados, porque achámos que ela tinha de envelhecer naturalmente, com os seus lindos cabelos brancos, que mantém até hoje. Acho que é a melhor forma, aceitarmos o que vem com a idade. Não tenho nada contra os sinais do envelhecimento. P: E a Maria João?M. J. : Acho que fico muito feia com cabelos brancos. Tenho muito pouquinhos, como a minha mãe, mas não gosto de me ver, acho que fico baça, ficamos sem brilho. P: Identifica-se?. . . M. C. S. : Não, não foi tanto isso. A Nayma não vai cumprir, quase de certeza. M. J. : Não vai quê?P: Cumprir…M. J. : Também acho que não. M. C. S. : Vai ficar escrito e gravado e daqui a uns anos vemos!… Começaram a aparecer muitos cabelos brancos quando eu era bastante nova. Tinha uns 30. Quando fiz os 40, disse: “Acabou. ” Comecei por fazer riscas…. Agora, é capaz de ser mais difícil, porque me habituei a não ser baça. M. J. : Castanho é mais bonito do que cinzento. O cinzento é uma cor mortiça. M. C. S. : Há pessoas que ficam muito bem todas brancas. A Barbara Bush, que morreu agora, começou muito cedo, porque teve um problema na vida que fez com que ela, um pouco como a Maria Antonieta — um desastre dos pais e uma filha que morreu com uma leucemia muito bebé e [tudo] isso foi muito próximo — assumisse. Eu achava que ficava bem, não a imaginava de outra maneira. Não era por ter o cabelo branco que parecia mais velha. Mas há uma coisa que eu queria dizer, porque elas não têm experiência: o que nos envelhece, francamente, é a falta de saúde. Agora tive essa experiência: fiz a festa para celebrar os meus 80 anos e, das minhas amigas, quase ninguém pôde estar. Umas tinham morrido, outras estavam doentes ou em lares — os “asilos” — por causa de problemas de saúde graves. O que nos envelhece a sério é quando temos um problema de saúde grave. A saúde é um bem a que eu tenho de agradecer todos os dias. As pessoas dizem: “Mas todos os dias?” Agradeço todos os dias. Quando olho para o espelho de manhã, agradeço. P: Reza todos os dias?M. C. S. : Sim, sim, rezo todos os dias. P: Agradece especificamente o facto de ter saúde?M. C. S. : Agradeço a Deus tudo, mas sabendo que essa é uma das graças. Ter saúde, e o meu marido também, estarmos os dois bem, estarmos os dois um com o outro, porque quando desaparece um… é complicado. P: Fala sobre a viuvez com o seu marido?M. C. S. : Não, não falamos sobre a viuvez, mas falamos muito sobre a doença. E dizemos… O meu marido tem uma coisa que é dizer: ‘Hum. ’ E eu digo: ‘Um, não: dois. ’ E rimos. E dizemos sempre: “Dois é muito melhor do que um. ”P: Isso é uma forma de não falar da morte. . . M. C. S. : Não. É uma forma de agradecer o facto de estarmos os dois ainda. Também não somos assim tão velhos, [mas] sabemos de muitos dos nossos amigos em que já está só um. . . P: Estatisticamente, são sobretudo as mulheres que ficam viúvas. M. C. S. : Porque são mais valentes, lá está, como nós dizemos. M. J. : Sim, somos mais valentes. P: É difícil falar da morte?M. C. S. : É, é difícil falar da morte. Para a minha avó, e para a sua geração, não era. A minha avó nasceu no fim do século XIX e morreu em 1984 — a morte era uma grande naturalidade. As pessoas morriam em casa, na aldeia, fazia-se o velório em casa, era uma grande naturalidade. A nossa contemporaneidade chuta a morte para debaixo do tapete. Mas temos que nos habituar a saber que é para todos. Mas como a Maria João dizia, enquanto estamos bem, temos de aproveitar. Porque sabemos que tudo vai acabar. Para mim, não acaba tudo, porque tenho fé, há um outro lado. Mas não, não é uma coisa que as pessoas… à Maria João é melhor nem lhe perguntar!P: A sua avó não terá lido o Séneca…M. C. S. : Não leu o Séneca!…P: É talvez o filósofo que mais escreveu sobre a morte e que falava, justamente, sobre a naturalidade da morte. . . M. C. S. : A minha avó não considerou natural perder uma filha com 24 anos e um filho com 26. Isso não era natural. Os filhos morrerem à frente dos pais não é natural. E ela, coitada, foi confrontada com isso e passou décadas da sua vida sem filhos. Quando eu nasci, a minha avó tinha 44 anos. P: Outra coisa que o Séneca diz aos amigos é: “Estuda a morte”, “ensaia a morte”. Faz sentido esta ideia de estudar a morte para a recebermos de forma natural — a ideia de saber “viver bem” e saber “morrer bem”?M. C. S. : Depende do que nos acontecer em termos do tipo de doença. . . Eu não gostava nada de morrer num acidente de carro. Era uma morte brusca de mais. Outro dia estava num sítio onde havia vários médicos e um disse: “Eu já decidi: quero morrer com Alzheimer, com um cancro, não. ” E porquê? “Porque com Alzheimer chateio os outros, com o cancro chateio-me a mim próprio. ” Este médico tem esta teoria. Eu não sei. Ninguém sabe. M. J. : Eu espero… já dei por mim a falar com o meu melhor amigo e a dizer: “Um dia que eu fique mesmo toda doente e se vires que eu não tenho safa, tu acaba comigo, ouviste? Porque o João, que é o meu filho, não vai ser capaz. Por isso, tu acaba comigo, que eu não quero isto para nada, por favor. ” Às vezes, nos meus momentos mais lamechas, penso: “Ah, aquelas pessoas que protestaram tanto a meu respeito vão sentir a minha falta e vão estar todas no meu funeral!” Que disparate…M. C. S. : Uma vez estive num debate onde estava o João Lobo Antunes, a Bárbara estava a apresentar aquele livro…P: Na FLAD, sobre imortalidade, da bioeticista Maria do Céu Patrão Neves…M. C. S. : E o João, que morreu novo e que teve um papel muito importante sobre o envelhecimento activo, disse: “Nós não sabemos o que vai acontecer. ” Acho sempre difícil dizer, como a Maria João diz: “Ai acaba comigo”. Sei lá!. . . M. J. : Mas eu estou a torcer [para que haja vida para além da morte]! Seria uma surpresa maravilhosa. Não sabemos. Pelo sim, pelo não, vou tirar o maior partido possível, agora que estou aqui. Não sei se há. Se aparecer, se acontecer outra vida, se continuarmos de alguma forma, será uma bela surpresa. Estou disponível para isso, mas não tenho a certeza. M. C. S. : Certezas não há. Há pessoas que dizem: “Ter fé é uma grande sorte”, mas não. A fé é a interrogação permanente. Estou a ler agora o [padre-poeta José] Tolentino [Mendonça], o retiro que ele preparou para o Papa Francisco [O Elogio da Sede, Quetzal, 2018]. E ele diz isso várias vezes: a crença é uma interrogação permanente, é um grande salto no vazio. Ajuda? Não ajuda? A um amigo que era franciscano, e estava gravemente doente, eu perguntava-lhe isso e ele dizia: “Dá-me impressão que não, que não ajuda, que complica muito, porque nós pomos, talvez, mais questões permanentes do que os ateus. ” Eu acredito e tenho muita fé nessa surpresa. M. J. : Em África é diferente. A vida e a morte estão muito próximas e os mortos coabitam connosco e estão presentes e influenciam-nos e nós sentimos a sua presença. N. M. : Posso falar só por mim? Eu lido muito mal com a morte. Além de gostar muito de estar viva, gosto muito de ter as pessoas que amo à minha volta. Lido muito mal quando perco alguma destas pessoas. Os meus pais, como já passaram dos 70, às vezes gostam de mandar aquelas bocas: “Nós não vamos durar para sempre. ” Nem esse tipo de frases gosto de ouvir. Agora falando de Angola, nós lidamos com os mortos de forma muito respeitadora, são feitas muitas celebrações relacionadas com a evocação do poder de quem já foi, porque acreditamos que eles estão sempre connosco. Recentemente, ofereceram-me uma máscara [de etnia] cuba, do Norte do reino do Congo, lindíssima, que me foi oferecida porque sou coleccionadora de máscaras. Quando fui estudá-la, descobri que é uma máscara de celebração de nascimento e de morte. Até a nossa própria arte liga o nascimento à morte. M. J. : Para nós, europeus — estou sempre a dizer “nós, europeus”, “nós, africanos”, é sempre uma mais-valia, isto de ser moçambicana e portuguesa — mas este peso na Europa, quando morre alguém, será que vem da religião católica? A culpa com que nós ficamos… Um peso, uma coisa horrível. Preferia encarar com uma maior leveza, como os africanos. M. C. S. : Não acho que seja da religião católica. M. J. : É uma pergunta que eu faço. . . M. C. S. : Uma das coisas más de envelhecer é que perdemos muitos amigos e muitos familiares. Acabamos por estar sozinhos. P: Sente essa solidão?M. C. S. : Talvez não sinta tanto porque somos dois, mas isso é difícil. Noto que a própria Igreja Católica e os padres jovens puxam-nos para cima, os funerais têm música, estamos mudando isso. P: Há pouco falou do livro sobre a bioética, que é muito interessante e assustador: sobre como a ciência se prepara para nos dar a imortalidade. Os olhos biónicos, os exo-esqueletos, as impressoras 3D que imprimem órgãos…M. J. : Pensem nesse sonho: uma pessoa está doente e tem um cancro e substitui o órgão, isso é uma boa notícia!M. C. S. : E a cabeça, e o miolo, e o que está cá dentro?M. J. : A nossa alma… é isso?. . . M. C. S. : Não só a nossa alma, mas o cérebro. M. J. : Onde é que fica a nossa individualidade? Aquilo que somos, eu, a D. Maria, a Nayma… se começarmos a substituir tudo?P: Imaginam-se a ter 500 anos?M. J. : Não, mas imagino-me a ter um problema num órgão e substituí-lo. Vou morrer se não o substituir. M. C. S. : Isso já se faz. M. J. : Mas não será para toda a gente. Mais uma vez, a saúde e a imortalidade será para as pessoas que têm posses. M. C. S. : As imortalidades que estão a construir não me interessam. A criogenia, essas partes, esses sobresselentes todos… Se isso fosse possível, já não era uma pessoa. Daqui a 500 anos, era um robô. M. J. : Mas se tiver, de hoje para amanhã – Deus queira que não –, um problema num pulmão, não substitui?M. C. S. : Sim. M. J. : É saber até onde é que vamos substituir as coisas. . . Até à capacidade do nosso bolso!M. C. S. : Já tenho amigos a viver com um coração novo. O seu colega da música, o Salvador Sobral, foi uma alegria. Para um jovem, é uma coisa fantástica. Para uma pessoa de 90 e tal anos, já não sei se será, não sei. M. J. : Será que, quando formos mais velhos, não nos vamos agarrar ferozmente a isto? E todos os dias levantamo-nos e dizemos: “Está um belo dia de sol!”? Eu, quando morrer, espero bem não morrer no Verão. Sentir-me-ia tão triste. Morrer no Outono, ainda vá. Agora no Verão…M. C. S. : A minha mãe morreu na Primavera. N. M. : Não acho nada interessante a ideia de imortalidade. Se o ser humano se torna imortal, o planeta não evolui, vamos ficar com um planeta repleto de pessoas com as mesmas ideias. O interessante da humanidade é a evolução, a diversidade. Podemos, como o Salvador, trabalhar a ciência para salvar os jovens…M. J. : E os outros menos jovens?N. M. : Calma, deixa-me terminar. Eu sempre disse que queria morrer cedo. Acho que o interessante é deixarmos uma história escrita, deixarmos algo. P: É isso que o Séneca diz: “A vida é como as histórias: o importante é como é feita, não se é comprida. Não importa em que momento a acabamos. Pára-a quando quiseres. Mas dá-lhe um bom fim. ”N. M. : Concordo. M. J. : Se pudermos decidir, porque a maior parte das mortes são péssimos fins: doentes, em dor, em sofrimento. A maior parte das mortes que eu vejo são assim. Isso não é nada desejável. Poder aceder à sua morte, poder planear e morrer em beleza, morrer saudável. Eu digo sempre: “Eu vou morrer, mas vou morrer saudável. ” A minha amiga, que fuma, fuma, fuma, diz: “Eu hei-de morrer toda podre. ”P: É a favor da eutanásia?M. J. : Acho que sim. As pessoas têm de ter o direito de escolha. E de decidir. Mais uma vez: nós sabemos de nós. Eu amo a vida, penso que nunca me irá acontecer, a não ser que esteja profundamente doente e em pleno sofrimento. E se eu estiver em pleno sofrimento e se não tiver um caminho para ir, se não tiver… no purpose… nenhum propósito, e se eu escolher, espero que me respeitem. Agora estarem em cima de mim, a proibirem-me, “não, não, não pode porque, porque, porque. . . ” Deixem-me escolher. Mas este é um tema muito profundo. P: E no seu caso?M. C. S. : Sou contra esta visão da eutanásia à escolha, porque muitas pessoas acham que vai ser óptimo, mas o resultado não tem sido tão bom, aquela rampa deslizante tem sido tremenda. Já temos muitos meios, e teremos mais com certeza, para dar uma morte tranquila. Mas também acho que não é neste tipo de conversa que vamos pôr em jogo todas essas…M. J. : …É muito profundo, não há certezas absolutas, não é? É um assunto demasiado delicado, demasiado forte…P: A socióloga Maria Filomena Mónica diz que durante muito tempo se opôs à eutanásia e que o que a fez mudar de opinião foi ver a morte de dois amigos e da sua mãe. M. J. : Há essa pequena coisa. Imaginem-se lá: completamente em pleno sofrimento, não vamos sair dali, temos um cancro terminal, não há um caminho e é só sofrimento a nossa vida, e se eu escolher, se eu escolher em plena lucidez, eu quero terminar isto…M. C. S. : … Se está assim tão mal, a lucidez já não deve estar muito boa. M. J. : E se eu estiver lúcida? Se eu escolher isso, espero que não me venham dizer: “Não vais porque eu acho. . . ”P: Se o corpo está em sofrimento e já nem há lucidez, somos o quê?M. C. S. : Somos uma criação divina que encontrará o seu caminho. A falta de lucidez não nos deixa tomar decisões. Há a decisão, de que os meus filhos estão informados, que é dizer: “Nada de encarniçamentos terapêuticos. ” Mas ainda há muita coisa a fazer para a calma da morte. Tive vários casos a que assisti e percebi que isso foi bom, em que foi possível dar uma morte tranquila. P: Para acabar, se tivessem que escolher um único conselho sobre envelhecer bem, qual seria?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. N. M. : Para mim, é a felicidade. Começa de dentro para fora. M. J. : Para mim, também. Sermos o mais felizes que conseguirmos. Compreendermo-nos, respeitarmos os outros, respeitarmos a Terra em que vivemos, as outras formas de vida. É a felicidade, realmente. M. C. S. : Talvez recordasse o exemplo da minha avó: conseguir todos os dias ter uma gargalhada e lágrimas, que também fazem parte da felicidade.
REFERÊNCIAS:
África do Sul: Há verdade, falta reconciliação
Brancos com medo de negros. Negros com raiva de brancos. Raparigas que trocam sexo por dois euros e não têm coragem de exigir preservativo. Quase seis milhões de seropositivos, sobretudo jovens, sobretudo pobres. Milhões ainda em bairros de lata. Depois do apartheid, a África do Sul viu a verdade. Foi um milagre humano não ter explodido. Mas a reconciliação é urgente. Há homens e mulheres a trabalhar nisso. Desmond Tutu acredita que o país vai dar a volta e o Mundial será um orgulho. (...)

África do Sul: Há verdade, falta reconciliação
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 5 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-06-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Brancos com medo de negros. Negros com raiva de brancos. Raparigas que trocam sexo por dois euros e não têm coragem de exigir preservativo. Quase seis milhões de seropositivos, sobretudo jovens, sobretudo pobres. Milhões ainda em bairros de lata. Depois do apartheid, a África do Sul viu a verdade. Foi um milagre humano não ter explodido. Mas a reconciliação é urgente. Há homens e mulheres a trabalhar nisso. Desmond Tutu acredita que o país vai dar a volta e o Mundial será um orgulho.
TEXTO: 1. Na estrada com LaviniaUm arcebispo faz testes de HIV? Na África do Sul faz. Mais, dentro de uma clínica ambulante com o seu próprio nome. Aqui está ela, estacionada nos arredores da Cidade do Cabo, contrariando as nuvens de Maio. Quando os vizinhos vêem sair um arco-íris sobre rodas, já sabem: é o Tutu Tester. Dentro desta carrinha há testes de HIV, rastreio de doenças e objectos como pénis de madeira para ensinar a pôr preservativos. Aos 79 anos, o arcebispo anglicano Desmond Tutu, Prémio Nobel da Paz, encara tudo isto como parte do seu longo trabalho pela África do Sul. "Se derrotámos o apartheid, podemos derrotar o HIV", tem dito ele. A luta contra a sida é a grande causa pós-apartheid. Mas nos primeiros dez anos a seguir às eleições livres, o Governo não acreditou na pandemia. Muita gente morreu e continuou a morrer porque o Presidente Thabo Mbeki duvidava de que o HIV causasse sida e impediu a distribuição de retrovirais. Isto aconteceu até 2003. Ontem. Hoje, nenhum país do mundo reúne tanta gente infectada, 5, 7 milhões, sobretudo jovens, sobretudo pobres. A cada dia há duas mil novas infecções. Cerca de 350 mil sul-africanos já perderam a vida. Um deles era filho de Nelson Mandela. Não se espantem se virem fotos de Mandela com uma T-shirt a dizer "HIV Positivo". É uma guerra a sério, esta, e toda a gente faz falta em campanha. Estamos a falar de um país em que milhões continuam a viver nas townships (os bairros, grandes como cidades, onde o apartheid concentrou negros e mestiços). E as townships prolongam-se em bairros de lata, com graves problemas de saúde pública. É para uma dessas townships que a carrinha Tutu arranca agora. A Fundação Desmond Tutu HIV, que faz investigação, rastreio e prevenção, lançou esta clínica móvel há dois anos. Em Outubro passado, o próprio arcebispo se sentou lá dentro a fazer o teste. E como ele, antes e depois, mais 15 mil pessoas. Se os mais pobres não vêm à clínica, a clínica vai até eles. Hoje, a novidade é que também vão os Freshly Ground, banda pop sul-africana. O mundo vai vê-los em breve ao lado de Shakira, a abrir e a fechar o Mundial. E esta manhã, darão a cara pelo Tutu Tester, a partir das dez. Ainda são nove, mas a equipa clínica já vai a sair da fundação. Estamos nas instalações de um antigo orfanato, a meia hora da Cidade do Cabo, e daqui até à township são mais 45 minutos. Lavinia Browne - a mulher que durante 22 anos foi a assistente pessoal de Desmond Tutu - ofereceu-se para levar a Pública no seu carro, só de falarmos ao telefone. Cá está ela, cabelo curto todo branco. Uma daquelas avós inglesas de calças e impermeável, capazes de dar a volta ao mundo sempre com a mesma voz clara e doce. E ela deu mesmo. - Então vamos lá - sorri. Aos 65 anos guia um daqueles carritos de cidade que os estudantes compram em terceira mão. - A township que vão ver crescer de forma desordenada, com cada vez mais pessoas a chegar - explica, parada num cruzamento entre bairros de lata. O visitante que vem de Joanesburgo e aterra na Cidade do Cabo a achar que deixou a pobreza para trás encontra mais barracas aqui. Não é que esta província, Cabo Ocidental, seja mais pobre. É que não estava preparada para receber tantos pobres. - Aqui as townships são piores porque tradicionalmente os negros não viviam tão a sul - diz Lavinia. - Tínhamos muitos mestiços, mas não muitos negros. Enquanto em Joanesburgo sempre houve negros, e foram construídas estruturas. É por isso que o problema da habitação aqui é pior. E somos vizinhos do Cabo Oriental, onde vivem os xhosa, que vêm para cá à procura de melhor vida. Os xhosa (pronuncia-se "kóza") são a etnia de Nelson Mandela, ele mesmo um nativo do Cabo Oriental. O que divide as duas províncias, com Atlântico de um lado e Índico do outro, é o Cabo da Boa Esperança. E na verdade, o caminho que estamos a fazer é o caminho para chegar lá, a essa ponta de África que as naus do Gama dobraram. Hoje, os emigrantes que aqui chegam por terra vêm não só da costa oriental, como de toda a África subsariana. E nesta sobrepovoação precária, a tuberculose é um rastilho. - As defesas dos seropositivos quebram e é aí que a tuberculose ataca - resume Lavinia. - A maior parte das pessoas que morre de sida morre de tuberculose. Esta zona do Cabo Ocidentalé a pior do mundo em infecção de tuberculose, o que tem a ver com o facto de as pessoas viverem tão juntas, nas barracas. 2. Sinfonia de lataNa township vamos ver isso. Mas há pior. Deixemos então Lavinia no carro por um momento. Recuemos dois dias. A Pública acaba de chegar à Cidade do Cabo. Ao fundo, a bela Table Mountain, esse grande animal castanho contra um céu transparente. Sim, ainda parece Verão, embora seja já o Outono nesta parte do mundo. E mal baixamos o olhar, um mar de barracas, lata, zinco, madeira, plástico. Os nomes na estrada anunciam os subúrbios de Philipi, Nyanga, Samora Machel, Delft. Nomes com algumas das mais violentas taxas mundiais de homicídio, violação, roubo, droga. E atravessando tudo isto chegamos a Blikkiesdorp. Em afrikaans, a palavra quer dizer algo como Cidade Caixa de Lata. Não é o nome oficial, mas é rigoroso, porque Blikkiesdorp são mil caixas de lata todas perfeitamente alinhadas num descampado de areia que parece o fim do mundo, com o sol a bater. Não há árvores, não há verde. Tudo é cor de cinza e pó. O metal ferve, e cada casa tem um número toscamente pintado, como uma cela. Ferve no Verão e daqui a dias choverá. O Cabo não é Joanesburgo, chove mesmo. Chuva na lata, mil caixas. A placa à entrada anuncia o nome oficial. Lê-se duas vezes e mal se acredita: Symphony Way. A Câmara do Cabo criou-a como "área de realojamento temporário" há dois anos. E nos últimos meses tem concentrado aqui centenas de pessoas que viviam em semibarracas na estrada, e não queriam sair de lá. Foi por isso que essas pessoas criaram a Campanha Antidespejo, com a ajuda de activistas que têm acesso à Net. E uma das líderes locais é esta negra que agora recebe a Pública à porta da caixa de lata M49, Jane Roberts. - Estamos aqui há cinco meses e meio - conta ela, convidando a entrar. Cá dentro há um pequeno fogão encardido, um bidão com água, uma cortina de pano, atrás da qual está uma rapariga com um bebé. - Fomos forçados a vir para aqui, não tivemos opção. Isto é por causa do Mundial. Estávamos há dois anos na estrada e de repente deslocam-nos para aqui? Porquê? A prima, Padronisa Morris, entra na conversa:- Queriam-nos fora da vista. E Jane:- As pessoas vinham de avião e viam-nos na estrada, com as nossas barracas de plástico e madeira. E não era mau viverem assim?- Aqui é pior! - exclama Jane. - É um campo de concentração. Lá na estrada, a comunidade era próxima. Aqui, às oito da noite não podemos andar à volta, revistam-nos, espancam-nos. Quem?- A polícia. Quando nos estava a dar instruções ao telefone sobre como chegar, Jane dissera para irmos até à esquadra de Delft e aí pedir que nos indicassem Blikkiesdorp. A polícia indicou, sem fazer perguntas. A relação não parecia má. - Mas é má - diz Jane. - Insultam-nos. Não podemos fazer uma fogueira, fazem-nos apagá-la. - Eu preferia estar na estrada - insiste Padronisa. Jane acena. - Na estrada éramos felizes. - Cobríamo-nos com plásticos na chuva, mas aqui a chuva entra e o chão fica todo molhado - diz Padronisa, mostrando a folga na porta. Onde está a casa-de-banho?- Lá fora - responde Jane. - É uma casa-de-banho para quatro famílias, 20 pessoas. Saem as duas para mostrar: um lavatório, e, dentro de um compartimento de zinco, a sanita. Onde está o duche?- Duche! Não há duche! - ri-se Jane. - Este é o nosso duche. E agarra num alguidar de plástico. Estamos nas traseiras da barraca dela, onde fazem esquina mais três barracas. Chão de pedras, areia, lama. Um penico. Lixo ao canto. Jane, 54 anos, três filhos, nasceu na Cidade do Cabo, mas aqui há gente que veio de longe. - Refugiados da Somália, do Congo, da Nigéria, talvez 50 famílias. Nem de propósito aproxima-se uma belíssima adolescente negra-negra, túnica e lenço muçulmano. Encosta-se à placa de zinco e fica a escutar. Não há mesmo nada para fazer aqui. - Vê? Ela é somali - diz Padronisa. Encostam-se as duas à barraca do lado, que faz sombra. - Não sinto nada em relação ao Mundial - diz Jane. - Não é para nós, para os pobres. Os pobres vão ficar mais pobres. O desemprego é um dos problemas maiores da África do Sul. E aqui, em Blikkiesdorp, diz Jane, anda nos 70 por cento. Ela trabalhou numa fábrica de roupas e depois num sindicato. - Agora trabalho para a comunidade de graça. Mas como vivem?- Partilhamos o que temos. De dentro da barraca vizinha sai Kareema, cabelo atado e túnica. Também é muçulmana. - Vivemos todos misturados, muçulmanos e cristãos - diz. Há mesquita?- Sim, uma. E igreja?- As igrejas são na casa das pessoas - diz Jane. - A maioria é religiosa. Uma rapariga passa com um recém-nascido. Aos 37 anos, Kareema acaba de ser avó. Onde nasceu o bebé? - No hospital. Há algum posto de saúde aqui?- Não, vem uma clínica móvel para as crianças. - A tuberculose é um grande problema - acrescenta Jane. - Mais de metade das pessoas tem tuberculose, e as crianças também. Quando estávamos na estrada, as crianças estavam bem. Apanharam tuberculose aqui. - Vamos fazer uma marcha até à Cidade do Cabo! - anuncia um homem de calções e boné a dizer Win with us. Chama-se Jerome e também é militante da Campanha Antidespejo. Mas a esta hora da tarde caminha num vapor de álcool. E quando pára, fica a oscilar. - Vamos tentar que nos ouçam!Padronisa confirma. - No primeiro dia do Mundial, vamos fazer uma marcha legal. - E senão será ilegal! - brada Jerome. - Sabemos que nos vão tentar prender, mas não nos importamos - acrescenta Jane. - Estou há 19 anos à espera de casa! - anuncia Jerome, a oscilar, com os seus calções, e o boné. - Sinto que estou na prisão e a polícia está sempre a controlar - diz Kareema. - Não podemos fazer uma festa, uma fogueira. Na estrada, cada família tinha feito a sua casa-de-banho, o seu espaço. Aqui não podemos nem construir um quarto. Não precisamos de um estádio que custou milhões. Para que servirá? Deviam construir casas, e nós não devíamos viver como animais. À saída, homens sentados em caixas a olhar para nada, e novamente a placa com aquele nome, Symphony Way. 3. Desfazer o duche De volta ao carro de Lavinia, dois dias depois. Cá vamos, às curvas, entre árvores, a caminho da township, para os testes de HIV a bordo do Tutu Tester. - Temos quatro clínicas fixas, e outra móvel quase pronta. Um pequena equipa, pois: 10 médicos, 25 enfermeiros, ao todo 165 empregados para uma tarefa gigante. - Durante Mbeki foi muito difícil - lembra Lavinia. - Milhares de pessoas morreram, um desastre total. Crianças deixadas sem pais. E há townships onde um quarto da população ou mais está infectada. Ainda é muito difícil por causa de Mbeki. As pessoas cresceram a acreditar nas coisas que ele dizia. Aquele que as pessoas viam como o Presidente-intelectual levou a sua dúvida metódica ao ponto de escrever a Clinton a anunciar uma abordagem africana da sida. Achava que os retrovirais eram mais uma maquinação colonialista do Ocidente. Os extremos unem-se, e o cepticismo de Mbeki uniu-se a crenças africanas segundo as quais a sida era uma maldição dos brancos e se podia curar dormindo com uma virgem. Neste ponto, não ajudou o actual Presidente Jacob Zuma dizer que tomara um duche depois de ter tido sexo (consentido ou à força, não está provado) com uma seropositiva. - Ter três mulheres também não ajuda - acrescenta Lavinia. - E todos achámos que seria melhor ele não ter anunciado o resultado do teste de HIV. Mas o HIV negativo de Zuma foi manchete há dias. E muitos pensarão: se o Presidente se safou com um duche, eu também posso. Quando Barack Obama, ainda senador, visitou a África do Sul e a então ministra da Saúde questionou a ciência ocidental quanto à sida, Obama disse simplesmente: "Não é uma questão de ciência ocidental versus ciência africana. É só ciência. "Num país com tantos desequilíbrios sociais, e em que o vírus chegou tarde, o próprio Nelson Mandela se penitenciou por não ter actuado mais cedo. Ele tinha ideia da ameaça. O ex-correspondente do Financial Times Alec Russell recorda-se de um discurso de Mandela em 1994, ainda antes de ser Presidente, em que ele tentou dizer à juventude do ANC que a sida podia "destruir" o país. E avisou: "Temos um problema na nossa sociedade porque não falamos de sexo. Quando uma criança pequena pergunta: "Mãe, de onde venho?", o que vem a seguir é uma bofetada. " Começou um sururu na sala, recorda Russell, mas ainda assim Mandela prosseguiu, falando de sexo seguro e preservativos. No fim vieram ter com ele: "Como pode falar assim? Quer que as nossas raparigas vão dormir com os rapazes?"Russell foi testemunha disto, mas o ANC perdeu o registo do discurso e durante anos Mandela manteve-se calado. "Muito mais tarde admitiu que as pessoas o tinham avisado de que o ANC perderia votos se ele pressionasse as pessoas a mudar o seu estilo de vida e a usar preservativos", escreve Russell no livro After Mandela (Hutchinson, 2009). "É uma lembrança de que até um político tido pelos seus muitos admiradores como um santo vivo tem de fazer escolhas políticas. Mas o seu fracasso a lidar com a sida quando era Presidente não deve obscurecer o facto de que ele disse o que pensava perante a hostilidade profunda dos seus apoiantes, antes de a sua presidência começar. " E já na fase da presidência Mbeki, a situação chegou a tal ponto que Mandela o contrariou em público. Depois, empenhou-se activamente, e em 2005 anunciou que o seu filho Makgatho morrera de sida. Nas fotografias em que aparece com a tal T-shirt HIV, está ao lado de Zackie Achmat, um seropositivo que se recusou a tomar retrovirais até que toda a população pudesse ter acesso a eles, e combateu as multinacionais em favor de genéricos. Hoje, meio milhão de sul-africanos toma retrovirais. É o maior programa do mundo. A township aparece numa curva da montanha, do lado esquerdo. Barracas a descer pela encosta. Lavinia estaciona cá em baixo. O Tutu Tester está mais adiante, bem visível da estrada e da township, com as suas cores de arco-íris, a acabar de montar os materiais. Além da carrinha, há duas tendas para aconselhamento. As pessoas que fazem o teste de HIV recebem o resultado na hora. Aos negativos, dão-se conselhos de prevenção. Os positivos fazem rastreio de tuberculose e são reencaminhados para tratamento. - Para além disso, rastreamos as crianças em relação à prevalência de tuberculose - diz Lavinia, apertando o seu impermeável. O céu está cai-não-cai, com frio e vento. Não é o melhor dos dias para uma acorrência em massa. Mas também não é essa a ideia. - Não fazemos muita publicidade. Se vierem 150 pessoas ao mesmo tempo, não conseguimos trabalhar. Conseguimos fazer 60 testes num dia, porque não é só o teste, é o aconselhamento, que pode ser exaustivo. 4. Sexo por dois euros- Desmond Tutu. . . Conheço o nome, mas não sei quem é - diz o rapaz, a meio caminho entre as primeiras barracas e a carrinha Tutu. Chama-se Somdaka, tem 27 anos, é negro, polícia, solteiro. Não se lembra exactamente quem é Tutu, mas sabe exactamente o que é HIV. Desdobra a sigla num ápice. - É um problema, há muita gente infectada. Um dos vários problemas da township. - Aqui muitas crianças não vão à escola. Há dagga [haxixe] e tik [metanfetamina que se fuma misturada com haxixe]. Há roubos. Somdaka não vai fazer o teste de HIV, e portanto segue para a sua vida, cruzando-se agora com um par de jovem negros que vem a descer pela township. Ele chama-se Isaac e tem 23 anos, ela chama-se Nomsa e tem 20. Vieram ambos do Zimbabwe nos últimos dois anos. Vêm ambos fazer o teste. Ela é namorada do irmão dele. São bonitos e lacónicos. - Não uso preservativo - diz Isaac. - A maioria não usa preservativo. Porquê?- Compra-se sexo por 20 ou 30 rands [dois ou três euros], e as pessoas estão com pressa, não vão usar preservativo. É difícil arranjar?- Não é difícil. Dão-nos. Distribuições maciças, mesmo. Nomsa tenta explicar:- Se o homem te paga, pode dizer que não quer preservativo. Se não, é difícil para ele, vai perder dinheiro. A maioria das raparigas faz isso por 20 rands. Sorri, dentro do seu capuz subido contra o vento. - Eu tenho o meu marido, ele não vem fazer o teste porque está a trabalhar. Isaac já fez o teste duas vezes e continuou sem usar preservativo. Nomsa vai fazer pela primeira vez. - Alguns nem sabem como usar o preservativo - diz ele. Que pensam do duche do Presidente? - As pessoas acreditam - diz Isaac. Nomsa acena. E nos sangomas, os curandeiros tradicionais, acreditam?- O sangoma pode fazer coisas, mas não te pode curar da sida - responde Nomsa. Entretanto Isaac foi descendo para a carrinha. - As raparigas começam a ter sexo com 14 anos - conta ela, agora sozinha. Mas como é isso dos 20 rands? É uma prática comum?- Um rapaz vem ter contigo e quer sexo. E tu pedes-lhe que dê algo para ajudar. Nomsa não está a falar de prostituição, está a falar do meio que conhece na township. Como fazem as mulheres para não engravidar, se não usam preservativo?- Tomam injecções. Eu não tomo nada, quero ter cinco filhos, e tenho sexo com o meu marido. Mas não sei o que ele fez antes, e por isso quero fazer o teste. Conheci-o em 2007, quando ainda estava na escola. No Zimbabwe, pagam-te tão pouco que não consegues viver. Desde o colapso económico do país, nas mãos de Robert Mugabe, um êxodo de gente atravessou a fronteira, para tentar a vida na África do Sul. Nomsa veio como asilada e o marido trabalha como jardineiro. No Cabo há muito trabalho para jardineiros porque grande parte da classe média mora em casas com jardins. Por exemplo, o rapaz que agora se segue trabalha para uma companhia de jardinagem como condutor, e também é de fora, neste caso do Malawi. Chama-se Stanley, tem 25 anos, fala como um entusiasta. - Vim em 2008 como asilado. Trabalho cinco dias por semana e ganho 2400 rands por mês [240 euros]. Vive num quarto com a namorada, também do Malawi. -É a primeira vez na vida que venho fazer o teste. Vivo na escuridão e preciso de saber! Só faço sexo com ela, mas não usamos preservativo, ela usa a pílula. Estou preocupado porque tive outras mulheres antes e eu também não sou o primeiro homem dela. Estão juntos desde 2006. - Nos últimos dois anos fui fiel. Ouve-se alguém a chamar na estrada. Stanley vira-se. - Ah, já está ali o meu patrão! Tenho de o ir avisar que ainda não fiz o teste. E corre para uma camioneta com um emblema de jardinagem. O patrão ainda vai ter de esperar. Junto ao Tutu Tester já há fila. 5. As cores unidasE os Freshly Ground, os tais que vão acompanhar ao vivo Shakira em Waka Waka - Time for Africa, canção oficial com que abre e fecha o Mundial?- Ah, já chegaram - diz Lavinia, apresentando a jovem manager da banda. - Mas estão ali dentro daqueles dois carros enquanto não é o momento de fazerem o teste. Porque está um vento de cortar. A manager abre a porta de um dos carros, apresenta a repórter, que se senta no lugar livre atrás. A porta fecha-se e somos cinco pessoas num carro parado, com os vidros a ficarem embaciados. À esquerda, no banco de trás, Solani, a alegre vocalista de 28 anos, uma negra de Port Elizabeth, e ao lado dela o guitarrista Júlio, de 35 anos, moçambicano de Maputo, desde 2003 na África do Sul. À frente, o teclista Seredeal, 33 anos, um mestiço de Port Elizabet, e ao lado dele o baixista Josh, 40 anos, um branco da Cidade do Cabo. Faltam três que estão no carro do lado, mas só aqui já estão as cores que compõem grande parte da população da África do Sul: negros, mestiços e brancos. Esta banda podia chamar-se cores unidas, e ainda inclui um imigrante. - Quem começou a banda já não está cá - explica o louro Josh, um falador desafiante. - Esta é a formação que tem estado junta nos últimos sete anos. Quando as políticas anti-retrovirais ainda estavam em curso. - Há quem fale em 300 mil mortos por causa de Mbeki, mas eu não posso dizer porque não sei - atalha Josh. - O que sei é que o Governo agora está a fazer o maior projecto de saúde pública do mundo. Até ao próximo ano 15 milhões de pessoas vão fazer o teste, um em cada três sul-africanos. Prevê-se que dois milhões sejam positivos. Haverá mais trabalhadores na área da saúde que polícias! A suspeita entre brancos e negros era suposto ter acabado no apartheid. Mas há quem veja a sida como uma conspiração dos brancos. Faz parte de uma série de teorias. Por exemplo, a recessão ter acontecido quando Obama se tornou Presidente. As pessoas interrogam-se. Há quatro anos que os Freshly Ground se envolveram nas campanhas contra a sida. - Todos já fizemos testes antes - diz Solani, a mais jovem. -É uma forma de mostrar responsabilidade, na esperança de que outros assumam responsabilidade - diz Josh. - Também é uma forma de dizer que se uma pessoa faz o teste e é seropositiva não é uma sentença de morte, porque com o tratamento certo de retrovirais pode sobreviver - acrescenta Solani. - Todos sonhamos com uma geração livre da sida. E se todos dermos o passo de fazer o teste, é um passo nessa direcção. Aqui estão eles, unidos. Um carro que é um microcosmos do que a África do Sul sonhou ser. E ainda sonha?- Os brancos perderam o seu poder - diz Josh. - Os agricultores estão a ser mortos, as casas estão a ser assaltadas. Há pessoas que são mortas nas suas casas. E quando Julius Malema [polémico líder da Juventude do ANC, por vezes acusado de racismo negro] fala, os brancos ainda se sentem mais ameaçados. A percepção geral nos brancos é que há medo. Fala um branco do Cabo que pouco tem a ver com os bóeres do Norte, muito menos com a extrema-direita que era liderada pelo defunto Terre"Blanche. - Tudo isto tem a ver com encontrar o nosso lugar no mundo. Há a sensação de que os negros têm poder político mas que a economia e a ciência continuam na mão dos brancos. É por isso que o que Malema diz ecoa nas pessoas. Eu não acho que ele seja um idiota, como muitos dizem. Ele diz coisas astutas. Diz coisas que as pessoas realmente pensam e as pessoas ficam contentes por alguém as dizer. Então a suspeita entre brancos e negros continua no centro de tudo?Josh torce-se no banco da frente para olhar bem para trás. - A suspeita começou quando os portugueses chegaram. Os brancos sempre pensaram que os negros os iam matar na cama à noite. Qual é a história da família dele?- O meu pai descende de escoceses que vieram para o Cabo em 1850. E a minha mãe é radiografista e veio trabalhar no primeiro transplante de coração do mundo. Que aconteceu na Cidade do Cabo, em Dezembro de 1967. Tudo isto é a África do Sul. A manager vem abrir a porta. Chegou a hora. Meio engripada, Solani sorri tiritante, enquanto lhe medem a altura no Tutu Tester. As meninas da township aparecem com telemóveis, a tirar fotos. 6. E a reconciliação?Uma das tendas inclina-se ao vento, com o pénis de madeira estoicamente vertical em cima da mesa. As pessoas esperam à porta da carrinha com autocolantes na mão, depois de se terem inscrito. Os rapazes da banda fazem tudo como se não custasse nada, e não custa. E afinal não choveu. Lavinia vai voltar à Cidade do Cabo, dando-nos boleia. Falamos de reconciliação. Depois do apartheid, era a grande tarefa, disse Mandela. Verdade e Reconcliação. O arcebispo Desmond Tutu pôs às costas o impossível: a Comissão da Verdade e Reconciliação, ele que baptizara a África do Sul como Nação Arco-Íris. E de 1996 a 1998 os membros da comissão percorreram a África do Sul a ouvir relatos do horror. Gente amarrada em grelhas até denunciar gente. Mortos, torturados, desaparecidos. Carrascos diante de vítimas. Perdão em troca de verdade. Houve verdade. Cada um pôde ver-se ao espelho, no que sabia e no que não quis saber. Muito disso está no Museu do Apartheid, perto de Joanesburgo. É preciso ir lá ver. Aquilo é a chave do futuro. A maioria dos brancos avançou para o novo país, mas muitos nunca pediram desculpa, e só uma pequena parte dos negros enriqueceu. "O que me espanta é como as pessoas podem viver nestas condições", disse Desmond Tutu em entrevista a Alec Russell, em 2008. "Acordam de manhã e vão para os subúrbios brancos, ricos, saudáveis, e trabalham em casas que têm todas as conveniências modernas. E à noite voltam para a sordidez e a privação. E uma pessoa pergunta-se como mantêm a paciência que têm mostrado. " É um milagre, um contínuo milagre dos homens, a África do Sul não ter explodido. Houve verdade, mas falta reconciliação. Então a propósito de tudo isto Lavinia, a mulher que durante 22 anos trabalhou com Tutu, não pode fazer nada para nos meter dentro da agenda do arcebispo, mas acha que devíamos falar com o genro dela, um ex-reverendo da Igreja Reformada Holandesa, a principal entre os afrikaners. O trabalho dele é a reconciliação. E quando lhe telefona, e ele diz que está na Universidade da Cidade do Cabo, por onde justamente agora vamos passar, está visto que a conversa tem de acontecer. Então Deon Snyman surge ao cimo da rampa, Lavinia despede-se e ele leva-nos para o primeiro edifício disponível, por acaso um centro de estudos judaicos. 7. Este é o momentoTeólogo, Deon está agora, aos 44 anos, a fazer um mestrado em Justiça. Lembra Mia Couto sem olhos azuis e com cabelo à escovinha. Um Mia Couto austero. A Fundação da Restituição, na qual trabalha, defende que não pode haver uma igreja pobre e negra e uma igreja branca e rica. O lema é restituir, e isso passa por reconhecer o que não se deu, e passa por dar. - Queremos mobilizar as pessoas brancas para perceberem que foram beneficiadas, e que muita da riqueza que reuniram foi de forma injusta. Eu cresci numa cidade perto de Ventersdorp [zona da fazenda de Terre"Blanche] e estudei na Universidade de Pretória nos anos 80. Venho de uma família tradicional afrikaner. Acabei Teologia quando o ANC deixou de ser banido e Mandela foi libertado. E tive de responder a isto: "Quero ser padre de uma congregação branca? Este país vai mudar tanto. . . " Então tornei-me padre nas zonas rurais do KwaZulu Natal. E pela primeira vez na vida tive de construir relações com pessoas de cor e cultura diferentes. Isso mudou a minha vida. Depois de construir relações, gostamos uns dos outros. Na África do Sul, as pessoas não se gostam porque não se conhecem. O que aprendeu Deon no KwaZulu Natal?- Descobri como o apartheid afectou a vida deles. A sida estava a tornar-se num grande problema. Tive de enterrar muitos jovens. Muitos tinham sida por causa do apartheid, porque os pais não estavam em casa [no apartheid, os homens eram deslocados para as zonas de trabalho, deixando para trás as famílias], porque não tinham sonhos para o futuro, e então não tinham cuidado com o que faziam. As infra-estruturas nas zonas rurais são más, e a possibilidade de estas pessoas se erguerem é escassa. Por isso, têm comportamentos de risco. Não há cinema, não há lazer, nada. Há sexo. E não se importam com o futuro por o presente ser tão mau. Foi isto que levou Deon à restituição. - Se queremos ter uma reconciliação na África do Sul, temos de nos dirigir às injustiças do passado: "Os brancos beneficiaram, isso foi injusto, o que vão fazer quanto a isso?" Muitos brancos não entendem isto. Vêem os negros a beneficiar nesta nova África do Sul. Mas têm de perceber que o apartheid foi um crime contra a humanidade. O que é que nós, brancos, podemos fazer para inspirar os negros, para os fazer perceber que lamentamos realmente o que se passou? Não é preciso ter sido perpetrador. Por sermos brancos, todos fomos perpetradores. Os brancos têm de perceber que a vida deles é muito fácil na África do Sul, que a qualidade de vida que têm é muito alta, em comparação com a Europa. Olham para Malema, para a corrupção, para o crime, e sentem-se desencorajados. Mas olharam o suficiente para o mal do apartheid e para o que fizeram?Que devem então fazer, na prática?- Reparações. As vítimas têm de dizer o que precisam. Um exemplo: um negro de meia-idade começa a limpar jardins. Depois compra um carro velho, progride. Precisa de uma pick-up mas o banco não lhe dá empréstimo porque ele nem tem casa a sério. Então os brancos podem ir com ele ao banco, podem pagar o juro. Não é caridade. Ele vai pagar o empréstimo. Mas ajuda. A caridade não implica responsabilidade, mas a restituição sim. Deon vê a restituição como meio para a reconciliação. - Dar de volta pode realmente abrir as portas para um novo processo. A reconciliação na verdade ainda não começou, o que é normal. Agora é que é o tempo. Olhando para Malema, os brancos devem perguntar por que é que este homem está tão zangado, porque ele fala por muita gente que está zangada e não diz, e isso é perigoso. Há negros sul-africanos tão zangados que nos últimos anos houve agressões anti-imigrantes africanos. - Começaram a dizer que os estrangeiros eram o nosso problema. Não dizem que os brancos são o nosso problema, mas esse risco existe. Os brancos têm de ser espertos e sensatos. Falta boa liderança na comunidade branca. É muito difícil, às vezes sinto-me desencorajado, mas não posso fugir da oportunidade, quando os negros me convidaram para as suas vidas, e vi tantos dos meus amigos morrerem de sida. Há cinco anos que trabalha nisto, e acha que o momento actual é particularmente decisivo. - Desmond Tutu disse que chegaria um tempo em que os negros ficariam impacientes e começariam a perguntar em que beneficiavam nesta nova África do Sul. E julgo que é isso que está a acontecer. Há muito boa vontade na comunidade negra. Sei do que falo. Se eles sentirem que os brancos realmente lamentam, compreenderão. Talvez as pessoas precisem de um choque. Talvez Malema seja necessário. É um oportunista, mas talvez seja uma oportunidade. Os negros pobres também devem perguntar a Malema aquilo que o jornalista da BBC [insultado por Malema] perguntou: se está tão preocupado com os pobres, por que vive em Sandton [subúrbio mais rico de Joanesburgo]? Foi aí que Malema mostrou a sua vulnerabilidade. Vai ser interessante ver como o ANC lidará com ele. E os brancos têm de fazer com que Malema não se torne Mugabe. Parece uma tarefa gigantesca, quando cada pessoa antes de mais está precupada com a sua casa, a sua família, os seus. Mas em África há uma tradição, o ubuntu. Nelson Mandela definiu ubuntu como "o sentimento profundo de que só nos tornamos humanos através da humanidade dos outros". E talvez seja a necessidade de colectivo que levou Desmond Tutu a dizer isto sobre o Mundial, em entrevista recente ao diário britânico The Guardian: "Acredito que as pessoas vivem de algo mais do que apenas pão. Poderemos dizer que conseguimos fazer o Mundial. É a primeira vez que este torneio se realiza no continente africano, e por isso é importante para quem somos, para a nossa auto-estima como continente e como sul-africanos. As infra-estruturas que têm sido desenvolvidas vão beneficiar-nos bem depois de o Mundial ter começado e acabado. "Fala um sobrevivente de tuberculose, que não teve dúvidas em fazer o teste de HIV, depois de ter ajudado a derrubar o apartheid. (Terceira reportagem de várias até ao início do Mundial)
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Morreu Sharon Jones, a guarda prisional que se tornou uma fera da soul e rainha do funk
Cantora de 60 anos era a “voz poderosa” da banda The Dap-Kings. Vinte anos de carreira bastaram para que fosse considerada uma referência da soul e do funk. (...)

Morreu Sharon Jones, a guarda prisional que se tornou uma fera da soul e rainha do funk
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 9 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cantora de 60 anos era a “voz poderosa” da banda The Dap-Kings. Vinte anos de carreira bastaram para que fosse considerada uma referência da soul e do funk.
TEXTO: Quis estar em palco praticamente até ao fim. Mesmo quando uma neuropatia lhe afectava os pés e as pernas, restringindo-lhe os movimentos. O cancro que tinha no pâncreas não a impedira de cantar quando apareceu, não iria fazê-lo agora que estava de regresso. Sharon Jones, cantora soul, senhora de uma voz poderosa e vocalista da banda funk/soul The Dap-Kings morreu na sexta-feira rodeada de amigos e familiares, confirmou a sua agente, Judy Miller Silverman. Tinha 60 anos. No obituário que lhe dedicou o diário norte-americano The New York Times, Steve Kenny e Joe Coscarelli recuperam uma entrevista que a intérprete deu em Julho, quando a doença começava já a ganhar terreno. Nele lembram que nasceu no Sul, na Geórgia, onde a comunidade negra sofria diária e severamente com a discriminação, que cresceu em Brooklyn e que só se tornou famosa quando já estava na casa dos 40. Até então, os executivos da indústria discográfica consideravam-na “demasiado baixa, demasiado gorda, demasiado negra e demasiado velha” para apostarem nela. “Subir ao palco é a minha terapia” disse no Verão ao New York Times. “Temos de olhar para a vida como ela é. Ninguém sabe quanto tempo me resta, mas agora tenho força e quero continuar. ”A luta de Jones contra o cancro que lhe foi diagnosticado em 2013 está documentada no filme Miss Sharons Jones!, da realizadora americana Barbara Kopple. É Kopple quem diz à BBC que a intérprete chegava a deixar ao rubro alas do hospital quando fazia os seus tratamentos de quimioterapia – “quando as pessoas estão à sua volta ou há público, ela fica com energia e esquece-se da dor”. É também neste documentário que Sharon Jones lembra que, na Geórgia, quando a mãe precisou de uma cesariana e foi levada para o hospital, a equipa médica não a operou nas salas convencionais, mas numa arrecadação. Chegada a Nova Iorque, a segregação era menos violenta, mas continuava lá, a marcar o seu dia-a-dia, assim como as drogas e a violência. Cantar era coisa que fazia apenas no coro da igreja e em casamentos. Jones, que publicou o seu último álbum no ano passado, juntou-se aos Dap-Kings em 1996 e, em meados dos anos 2000, atingiram o êxito com 100 Days, 100 Nights (Daptone Records, 2007), o seu terceiro álbum de estúdio, gravado com recursos analógicos de forma a criar o som “old school” do funk e do afrobeat originais dos anos 1960. Foi a partir deste álbum, que tem na faixa tema – uma canção sobre o amor que nos diz que são precisos 100 dias e 100 noites para abrir o coração de um homem – um dos seus maiores sucessos, que houve quem passasse a referir-se à vocalista como “rainha do funk”. Há já anos que a mulher que fora funcionária dos serviços prisionais (na famosa prisão de Rikers Island, em Nova Iorque) e segurança em bancos até ter ser descoberta pelo produtor e líder dos Dap-Kings, Gabriel Roth (também conhecido como Bosco Mann), se transformara numa cantora profissional. Em 2007 tornou-se uma estrela. Cinco anos antes, o primeiro disco que Jones e os Dap-Kings gravaram com a Daptone Records, Dap Dippin’ Whith Sharon Jones & The Dap-Kings, deixara já a crítica rendida, escreve o jornalista Nacho Ruiz no jornal El Mundo. Os especialistas reconheciam-lhe “um timbre vocal poderoso, com um carisma e uma profundidade inauditos”. Em 2005 saiu Naturally e, antes do álbum de 2010, I Learned the Hard Way, veio o tal 100 Days, 100 Nights, cuja popularidade beneficiou certamente do facto dos Dap-Kings, formação cujo percurso se mistura com o da discográfica Daptone Records, terem entretanto participado em metade das faixas do álbum Back in Black, de Amy Winehouse, lançado em 2006. Por vezes comparada com James Brown (1933-2006), que costumava imitar em adolescente e que era vizinho da família na cidade de Augusta, na Geórgia, onde a mãe da cantora começou por criar sozinha seis filhos depois de se separar, Sharon Jones sempre deixou claras as suas influências entre as divas clássicas da soul, como Aretha Franklin, mas soube imprimir “paixão” às canções, fazendo da interpretação muito mais do que um exercício de estilo, escreve ainda Nacho Ruiz. “[Jones] tornou-se uma das vozes fundamentais da soul dos nossos dias, revitalizando o género e resgatando a sua versão mais pura e contundente. ”O produtor britânico Mark Ronson, citado pela BBC, junta-se aos que a elogiam: “Sharon Jones tinha uma das mais magníficas e desesperadas vozes dos últimos tempos. ”A essa voz, que por vezes rugia e outras sussurrava, juntavam-se, em palco, “movimentos electrizantes”, numa “assombrosa entrega física”, mesmo quando a doença a debilitava, garante o crítico do diário El País, Fernando Navarro. Jones chegou a dizer numa entrevista, em género de balanço de uma vida que sabia estar a chegar ao fim em que teve oportunidade de cantar ao lado de Lou Reed ou David Byrne, que a música e o seu público lhe tinham permitido fazer tudo aquilo que mais desejara – tirar a mãe do bairro social e comprar-lhe uma casa a que ela pudesse chamar sua. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quando regressou dos primeiros tratamentos para gravar o seu álbum de 2014, Give The People What They Want, nomeado para os Grammys, tinha a cabeça rapada e o olhar orgulhoso de sempre, escreve ainda o espanhol El País. “A música é a minha felicidade, a minha alegria”, afirmou então a este diário. “Quando me concentro nela, o meu espírito e o meu corpo entram em comunhão. ” Ficar em casa, seguindo o conselho dos médicos, seria morrer em vida. "A voz é um dom de Deus. Agradeço-Lhe ter-me dado este dom. E sei que Ele vai guiar-me até eu não poder mais", dizia ao PÚBLICO em 2014 esta mulher que passara, quatro anos antes, como um furacão pelo palco do Super Bock Super Rock, no Meco, e que voltara logo no ano seguinte para o Cool Jazz Fest, em Cascais. "E eu vou continuar a lutar e a cantar até não poder mais. Darei sempre tudo o que tenho. ” Nós agradecemos. Notícia actualizada às 15h25
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave violência mulher rainha prisão homem comunidade adolescente social doença género corpo negra cantora discriminação
A geração de “portugueses imigrantes” a viver em Portugal
Nasceram depois de 1981, quando a lei deixou de atribuir nacionalidade automática. Fizeram a escola com bilhete de identidade azul, mas a maioria nem sequer foi ao país que oficialmente lhes dá a nacionalidade.É a geração de afrodescendentes que nasceu em Portugal mas se sente “portuguesa imigrante" (...)

A geração de “portugueses imigrantes” a viver em Portugal
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 16 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nasceram depois de 1981, quando a lei deixou de atribuir nacionalidade automática. Fizeram a escola com bilhete de identidade azul, mas a maioria nem sequer foi ao país que oficialmente lhes dá a nacionalidade.É a geração de afrodescendentes que nasceu em Portugal mas se sente “portuguesa imigrante"
TEXTO: A cozinha de Maria de Fátima Lopes cheira a rissóis. Há um assado no forno, e bolo de chocolate ainda quente em cima da mesa. A neta ajuda-a, põe recheio dentro das meias-luas de massa, vê se o óleo já está quente. Neste prédio no Pendão, em Queluz (linha de Sintra), mora mais gente da família de Maria de Fátima Lopes. É um bairro típico da periferia de Lisboa. Prédios a perder de vista, poucos espaços verdes. As filhas Maria e Carolina estão entre a sala e a cozinha, falam em crioulo. Maria de Fátima, 65 anos, veio de Cabo Verde em 1977. Passou vários anos sem documentos, mesmo quando já tinha filhos. Tem autorização de residência há 20 e poucos. As filhas acham que seria uma grande vantagem a mãe ter a nacionalidade portuguesa. Evitava andar a recolher a papelada, ir para filas, ir regularmente ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Mas teria de pagar mais de 200 euros, sem contar com o que gastaria a fazer um exame de português porque um dos requisitos do pedido de nacionalidade é a ligação ao território nacional com provas como o conhecimento da língua portuguesa. Está desempregada e ainda não tem direito a reforma. Gastar dinheiro nos processos não é, de todo, uma prioridade. Dos seis filhos, cinco nasceram em Portugal. Duas ainda não pediram nacionalidade portuguesa. Quando eram pequenos, Maria de Fátima não tinha condições para pagar os processos de todos - sendo assim, não tratou de nenhum. Até 1981, quem nascia em Portugal tinha “direito à nacionalidade”, como aconteceu com o filho mais velho. Com a lei de Outubro desse ano, os filhos de estrangeiros nascidos em Portugal passaram a ter a nacionalidade dos pais; a naturalização é possível seguindo determinados requisitos que foram mudando ao longo dos anos consoante as alterações a esta lei, que ainda hoje vigora. Francisca, uma das filhas, é das que nasceram depois, em 1982, por isso tem nacionalidade cabo-verdiana. A vida prática traz-lhe mais complicações desde os tempos de escola. Ainda agora é mais difícil para ela, oficialmente uma imigrante, ter cartões de crédito, cartões de fidelidade de empresas como supermercados, conseguir empréstimos - e isto são apenas alguns exemplos. Mãe aos 14 anos, foi deixando a questão da nacionalidade para trás - agora está desempregada, e não tem os 200 euros para o processo. A família de Maria de Fátima Lopes é um retrato dos efeitos de uma lei que deixou milhares de jovens nascidos em Portugal com a nacionalidade dos pais, cidadãos que pertencem a um país onde nunca foram, mas que aparece no registo oficial como sendo a sua nacionalidade. Deixou milhares a sentirem-se como imigrantes portugueses a viver em Portugal, afectou descendentes de imigrantes que chegaram, em diversas fases, a partir das décadas de 1960 e 1970 - a maioria das ex-colónias, sobretudo de Cabo Verde, a segunda maior comunidade imigrante em Portugal que hoje contabiliza mais de 38 mil cidadãos (dados SEF de 2015). Esta é a geração de afrodescendentes pós 1981. Por desconhecimento, por estarem ilegais, por não terem condições financeiras para tratar do processo, por demasiada burocracia, por não precisarem, por se revoltarem com a situação, por outras tantas razões muitos pais não trataram da nacionalidade dos filhos, e os filhos cresceram e deixaram o processo em suspenso. Hoje, se quiserem ser portugueses têm que provar que sabem a língua com um certificado de aproveitamento a português durante dois anos consecutivos, mostrar um registo criminal do país de origem dos pais que prove a inexistência de crime com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos e pagar entre cerca de 175 euros e 250 euros. Alguns arranjaram estratégias para contornar a questão. Carolina, quando lhe perguntavam a nacionalidade, dizia: “portuguesa”. Mesmo que depois no BI estivesse escrito: “cabo-verdiana”. Uma petição lançada pelo Grupo de Teatro do Oprimido que tem em cena um espectáculo sobre este tema pede a mudança da lei: “Não somos imigrantes! Não viemos de lado nenhum!” Hoje, dia 13 de Novembro, saem à rua com a ONG Solidariedade Imigrante, em Lisboa, para reivindicar nacionalidade a quem nasça em Portugal. Fará sentido um regime de excepção para estes casos?Segundo a lei, são portugueses os filhos de portugueses, nascidos em Portugal ou no estrangeiro; pode naturalizar-se quem tenha autorização de residência em Portugal há seis anos, quem nasceu em Portugal filho de imigrante com residência legal há cinco anos, quem esteja casado com português (ou em união de facto) há mais de três anos . No papel a lei parece simples. Na prática, quem a aplica pode virar a vida de uma pessoa do avesso. E uma coisa é o que o legislador pensou, outra é o que o notário na sua aplicação interpreta. Sempre fez tudo como portuguesa, mas de repente, Ana Mendes, 30 anos, a viver nos Açores, deparou-se com um filme de terror. O pai vive em França, pediu o registo dos filhos à embaixada portuguesa. Eis que lhe disseram: Ana Mendes não tinha a nacionalidade portuguesa. E começou a saga. “Impossível”, respondeu o pai. Ana Mendes sempre conseguiu viajar para fora de Portugal sem problemas. Tem casa e carro comprados como portuguesa. Faz descontos para a Segurança Social como portuguesa. Paga impostos como portuguesa. - Caiu-me tudo. Pensei logo: e agora o meu trabalho? E os meus filhos, como vai ser? Se me mandarem para Cabo Verde, com que não tenho qualquer relação, como será? Sempre fui portuguesa e de repente é como se ficasse sem nada. É como nascer de novo. Ana Mendes foi averiguar a situação numa conservatória. Pediram-lhe o Bilhete de Identidade, disseram-lhe que a atribuição da nacionalidade tinha sido um erro pois os pais eram cabo-verdianos e, à data em que nasceu, não poderia ter tido a nacionalidade automaticamente como foi feito. São portugueses os filhos de portugueses, nascidos em Portugal ou no estrangeiro; pode naturalizar-se quem tenha autorização de residência em Portugal há seis anos, quem nasceu em Portugal filho de imigrante com residência legal há cinco anos, quem esteja casado com português (ou em união de facto) há mais de três anos-Nada do que tenho é válido, disseram-me. Okay. Como é que a embaixada em França - onde nunca tinha ido - é que vai detectar que eu não tenho a nacionalidade?!Ficou preocupada: será que pode ser acusada de burla por documentação falsa?A partir daí começou o processo de tratar da papelada como se nunca tivesse tido “portuguesa” no BI. À data de nascimento, os pais viviam em Portugal, com autorização de residência, há mais de cinco anos, por isso conseguiu pedir naturalização por esta via - pagou 175 euros. Há meses que está a tentar resolver a situação. Quando expôs o seu caso, no notariado ninguém lhe soube explicar o que se passava. Se for parada pela polícia, não tem documentos. Nem sequer autorização de residência. Resta-lhe um documento a dizer que requereu a nacionalidade. Tem medo de perder o emprego, numa loja. Trinta anos depois é que a questionam. A mãe sente-se culpada pois foi ela quem tratou da sua documentação. Está tudo em suspenso enquanto não receber o cartão de cidadão. - A nossa vida, a minha, a do meu marido e dos meus filhos, parou. Um dos locais onde há ajuda e até um balcão próprio de notariado para tratar da nacionalidade é o Centro Nacional de Apoio ao Imigrante (CNAI), estrutura que faz parte do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e é uma espécie de Loja do Cidadão para imigrantes. Num prédio na zona de Arroios, em Lisboa, gente jovem e mais velha entra e sai. No andar do topo, esperando o notário, há uma fila para tratar da documentação. Descendo as escadas, Fernanda Delgado, 46 anos, é acompanhada pelos dois filhos adolescentes, Patrick com 17, e Jessica com 12, ambos com nacionalidade cabo-verdiana e em vias de adquirir a portuguesa. Durante 20 anos, esteve na clandestinidade. Só aos 29 anos é que foi tratar da residência. Hoje tem a documentação em dia, e através dela os filhos podem pedir a nacionalidade. Mas, reformada antecipadamente por razões de saúde, com uma renda de 350 euros num bairro da periferia de Lisboa, teria que pagar cerca de 200 euros por filho para iniciar o pedido de nacionalidade - só agora teve possibilidade de juntar dinheiro, depois de recuperar de um Acidente Vascular Cerebral. “Já estou em Portugal desde 1976, não tenho nada a ver com África. Sinto-me portuguesa”, diz. Os filhos “questionam muito porque não têm a nacionalidade portuguesa: não nasceram em Cabo Verde, não conhecem o país”, diz, e olha para Jessica e para Patrick. Jessica confessa que será um alívio quando tiver finalmente o cartão de cidadão na mão. “Não vou ter que escrever mais ‘nacionalidade cabo-verdiana’”. Para a mãe, só o facto de não ter de ir ao SEF significa um grande alívio. “Não tive a sorte de ter os meus pais a puxarem. O que eles fizeram comigo, eu não faço com os meus filhos. O meu filho joga futebol, é um bom jogador, e tem que ser português para ter um empurrão. ” Vira-se para Patrick: “Sendo estrangeiro, não podes jogar nos grandes clubes, não é filho?”Ibrantino “Tchino” Freitas, 32 anos, nasceu e cresceu na Cova da Moura, concelho da Amadora, e sabe bem o que é ser estrangeiro e não poder jogar à bola. O bairro costuma aparecer nas notícias sensacionalistas quando há rusgas e tiroteios. O quotidiano, porém, é na generalidade mais tranquilo. A Associação Moinho da Juventude intervém em várias fases do dia-a-dia da população, dos bebés aos séniores. Tchino senta-se na sala da creche gerida pela Associação, edifício numa das entradas do bairro onde um pequeno parque serve de entretenimento às crianças que se ouvem brincar lá fora. Por ser cabo-verdiano, Tchino, que hoje trabalha no serviço de atendimento do SEF, viu serem-lhe barradas oportunidades no futsal. Só há cinco anos é que tem português no BI. - Não sei explicar ao certo porquê, mas houve um desleixo e desconhecimento dos meus pais. Nasci cá, deveria ter nacionalidade ou título de residência. Tinha a cédula pessoal. Só pelos 10/12 anos é que teve um título de residência, que ia renovando - e o SEF não era como agora, conta, na altura, se “saísse de casa depois das 4h, já não era atendido”. Ficava horas à espera. Perdia dias. Na Associação, onde jogava futsal, havia a famosa “situação dos estrangeiros”. - Só se podem inscrever dois estrangeiros por equipa, e só um é que podia jogar por jogo. Cada vez que não saía do banco, ficava “mesmo chateado”. - Todos querem entrar. Fazes os jogos de preparação, sentes-te útil na equipa. Fazíamos três treinos, chegava a quinta-feira e quem ia para o jogo era o colega. Apetece virar o mundo. Muitas vezes sentiu que, se tivesse “o bilhete de identidade português”, estaria de certeza no lugar de um dos que estava em campo, a pontapear a bola, a brilhar. Era uma injustiça, pensava. Uma injustiça. - Depois vês casos de futebolistas que facilmente tiveram a nacionalidade, cria-te uma revolta. Por exemplo, não consigo vibrar com a selecção - não têm culpa, mas vês alguns que chegam a Portugal e passados dois/três anos têm a nacionalidade e tu que nasceste cá. Não podes estudar, não podes jogar à bola, então o que podes fazer? É preciso ser forte para aguentar e não ir por outros caminhos. A partir do momento em que teve a nacionalidade, tudo se tornou mais fácil: a simples renovação do cartão de cidadão, abrir uma conta bancária, a abordagem da polícia. - Tens o cartão de cidadão, metes uma máscara. Quando és miúdo sente-se mais, porque vês as injustiças e não consegues fazer nada, ficas com medo. Filipa Cardoso fala português sem qualquer sotaque, e mesmo assim disseram-lhe, quando quis pedir a nacionalidade portuguesa: tem que provar que sabe português, mostrando aproveitamento na disciplina durante dois anos seguidos. Ela, filha de cabo-verdianos, ficou estupefacta. “Mas não está a perceber, eu nasci cá. Estudei cá. A minha língua materna é o crioulo e o português”, respondeu. Isto foi em 2004. Desistiu. Entretanto, ia arranjando trabalho. Mas como estrangeira, com um documento de autorização de residência, continuou a sentir-se discriminada, tratada como cidadã de segunda. Há uns anos havia o tal bilhete de identidade azul, bem visível pois o próprio documento era maior do que é hoje o cartão de cidadão. Bastava mostrá-lo, e as pessoas olhavam de lado para si, sentia. Já nisso havia a distinção. Uma das coisas que a desencorajam de voltar a tentar pedir a nacionalidade é a imensa burocracia. E sobretudo o facto de lhe cobrarem dinheiro:- Sou nacional deste país, diz no seu apartamento num andar alto de um prédio na zona da Amadora. A retratar casos como este, e outros, o GTO (Grupo de Teatro do Oprimido) tem em carteira um espectáculo sobre pedidos de nacionalidade que é mostrado em várias cidades, inclusivamente no estrangeiro. Jovens actores incarnam casos reais. Num ensaio, cantam, a ironizar: “Sou nacional, sou português, sou de Portugal”. “Filho de imigrante, imigrante é”, afirmam. “Sou português para os impostos, mas não para os plenos direitos”, dizem. No final, a encenadora e dirigente associativa Anabela Rodrigues, vice-presidente do GTO, costuma pedir opinião ao público sobre o que viu. Depois apresenta uma petição, dirigida à Assembleia da República, onde querem mudar a lei para que qualquer cidadão que nasça em Portugal, filho de imigrantes, seja português, como aconteceu com esta jurista que desde 1997 ajuda pessoas a obter a nacionalidade e trabalha com esses processos na ONG Solidariedade Imigrante. O GTO tem um projecto que se chama “a arte descomprimida dos papéis’”, conta a rir, porque lembra: a partir do momento em que a funcionária, na maternidade, pergunta aos pais a sua nacionalidade, começa o périplo. Quem nasce filho de estrangeiros, será considerado imigrante. E se obtiver a nacionalidade através da naturalização nunca poderá candidatar-se à presidência da República. Filha de cabo-verdianos, nasceu em 1976 quando vigorava a lei baseada na atribuição da nacionalidade através do direito de solo. Acha injusto que outros, em iguais circunstâncias, tenham que passar por provas que ela não teve. E depois há a questão das burocracias nos países originários. Jakilson Pereira, que está à frente do balcão do cidadão de Cabo Verde no Moinho da Juventude, atende tanto estudantes que acabaram de chegar a Portugal, como pessoas que vivem cá há anos, gente que vem de todo o lado. Em Cabo Verde é relativamente fácil a emissão de documentos, diz, mas para países que passaram por guerras, e outros que não têm relações diplomáticas próximas com Portugal, um simples papel pode ser muito difícil de obter. Porque é que um certificado de habilitações não chega como prova de conhecimento da língua?, questiona. “Quem é que consegue fazer um curso em Portugal sem saber português?!”Foi justamente o pedido desse prova que irritou Ricardo Conceição, 36 anos, angolano que nunca falou outra língua senão o português, vive há 19 anos em Portugal. Agora que vai ser pai, e a mulher é holandesa, a vantagem de ter a nacionalidade aumenta e por isso tentou obtê-la. Como estrangeiro, sente que não tem acesso a determinados serviços e a determinados empregos – a sua vida seria muito mais facilitada se fosse português, acredita. Continua a ter que dar “mais três ou quatro passos do que quem tem nacionalidade portuguesa” E critica: “Vejo que o meu povo, as pessoas de raça negra, ainda continuam a ter muitas barreiras para progredir. ”Sábado de manhã, e o átrio da Faculdade de Letras em Lisboa enche-se de gente. Atravessa-se os corredores e há uma linha de gente sentada, sobretudo mulheres. Basília Moreno, 66 anos, fala com as amigas do lado, umas oito vizinhas que vivem num bairro de Chelas, zona oriental lisboeta. São todas cabo-verdianas, e todas têm filhos, alguns com a nacionalidade portuguesa, outros não. Riem-se. Estão bem-dispostas, e na expectativa sobre o que dirá uma das amigas que está a fazer o exame oral de Português como língua estrangeira. Trouxeram lanche na mala, sabe-se lá quanto tempo terão que esperar. Quando uma responde, às vezes a outra comenta. Empregada de limpeza, Basília Moreno ia de cinco em cinco anos ao SEF renovar a autorização de residência. Hoje este exame oral é dirigido ao chamado grupo especial: está dispensado da prova escrita quem não sabe ler nem escrever e tem mais de 60 anos (até essa idade, as pessoas nessas condições têm de ir fazer um curso de alfabetização) ou quem tem razões médicas. Foi esse um dos motivos que desencorajou Basília Moreno de pedir a nacionalidade, apesar dos 43 anos a viver em Portugal. Isso e o dinheiro, para o exame, 70 euros. Fala fluentemente português. Não há motivo para chumbar. Fica-se a pensar porque é que tem de passar por esta prova, pagar o exame, deslocar-se a uma faculdade em Lisboa, ficar nervosa. Mas ela própria acha que fala “português mal feito”. E que faz sentido pedirem-lhe o teste. - Está a perceber bem o que estou a dizer?, pergunta. Perfeitamente. Quantos portugueses não articulam as frases tão correctamente quanto Basília Moreno?Algumas das mulheres contam que lhes disseram que não podiam pedir a nacionalidade por serem analfabetas. Joana, 64 anos, há 42 em Portugal, fartou-se de pensar em tornar-se portuguesa, mas não tinha os requisitos ou o dinheiro. Uma das coisas que muda quando tiver a nacionalidade é viajar com maior facilidade, visitar os netos em Inglaterra, em França, Holanda, Luxemburgo. A Maria Sábado Cabral, 61 anos, há 42 em Portugal, quando se inscreveu aconselharam-na a não falar crioulo mas apenas português antes do exame. A política de língua serve para quê? Serve para contabilizar o número de falantes e dizer que é a quinta língua mais falada do mundo - mas não para quem está há anos em Portugal, é dos PALOP, e tem que comprovar que sabe?”- Vocês têm que falar português, não falem a vossa língua, senão quando fazem pergunta não sabem responder, disseram-lhe. Outra das mulheres confessa o que muda na sua vida com a nacionalidade:- Muda tudo Dra. Há firmas que não aceitam pessoas sem documento português. Já viu? É muito importante para nós. Sofia Paiva, linguista, professora, faz este tipo de exames orais há três anos. O objectivo do examinador é aferir um nível básico, o nível A2, considerado o essencial para as pessoas usarem no seu dia-a-dia. Chumbar alguém é raríssimo. Questiona o facto de quem vem de um dos PALOP ter que fazer o teste, por exemplo. É certo que nos PALOP também se falam outras línguas, que em países como a Guiné-Bissau e Moçambique apenas uma pequena percentagem da população fala português, mas quem está em Portugal há anos, e quem imigra, é quase sempre bilingue. “A política de língua serve para quê?”, interroga-se Sofia Paiva. “Serve para umas coisas e não para outras? Serve para contabilizar o número de falantes e dizer que é a quinta língua mais falada do mundo - mas não para quem está há anos em Portugal, é dos PALOP, e tem que comprovar que sabe?”Quer dizer que todos os PALOP deveriam ser dispensados destes testes de português? No fundo, testa-se o quê?Angolano, também com nacionalidade portuguesa, o cientista político Sérgio Dundão compara o sistema de pedido de nacionalidade portuguesa aos procedimentos do período colonial. “O requisito da língua leva-me ao passado do estatuto do assimilado. O impeditivo da língua não deveria constar da lei. É caricato falar de uma CPLP e depois haver uma lei que tem o requisito da língua; é um paradoxo porque se sou considerado cidadão dos PALOP, quando vem a questão da cidadania, dizem: ‘calma, agora tens que provar que sabes falar português’. Há jovens filhos de portugueses que vivem por exemplo na Venezuela, que não falam português, e facilmente têm a nacionalidade. ”A excepcionalidade, em si, para os países dos PALOP e Brasil também pode ser polémica - porque pode levar a discriminações entre cidadãos, defende Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo. “A haver excepção teria que ser para todos os PALOP, mas perante o fenómeno da migração global isso parece-me descabido e discriminatório”, defende. Porque essa excepcionalidade colocaria questões de desigualdade: “Quereria dizer que um cidadão estrangeiro não PALOP que vive em Portugal há 10 anos teria que fazer o teste, e um cidadão PALOP, só por ser PALOP, poderia ser dispensado”. Independentemente destas questões, Mamadou Ba discorda do princípio geral de exigir uma prova formal de conhecimento de língua portuguesa. Esse conhecimento poderia ser aferido através de uma entrevista, ou de documentos como um contrato de trabalho “porque quem todos os dias trabalha comunica em português”. Há outras fórmulas para aferir a ligação ao território nacional. “Há melhor curso que o curso da vida?”Fala por experiência própria. Com origem guineense mas nascido no Senegal, Mamadou Ba vive em Portugal desde 1997 e não desistiu de pedir a nacionalidade portuguesa mesmo quando lha negaram. É um dos dirigentes do SOS Racismo, tradutor de francês-português e assessor do Bloco de Esquerda. Os dois filhos adolescentes têm nacionalidade portuguesa. Quando decidiu pedir a sua nacionalidade em 2010 recebeu uma recusa com base em dois motivos que adjectiva de “ridículos”: não tinha tempo suficiente de residência “por ter deixado caducar uma vez o visto”; e tinha desconhecimento da língua portuguesa. “Dizem que as provas que forneci não eram suficientes. Não serviu o meu currículo onde vinha que tinha trabalhado na Câmara Municipal de Lisboa como coordenador do gabinete do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal. Juntei a tradução dos meus diplomas, a licenciatura em Literatura e Língua Portuguesa pela Universidade de Dakar e o certificado de licenciatura como tradutor da Universidade de Lisboa. Não sei falar português?!”Muitas voltas deram, e até chegou a dirigir um recurso à então ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz: “Ela própria, que tinha sido presidente da Assembleia Municipal e me conhecia, ficou chocada”. Mas uma questão de princípio de igualdade deveria ter prevalecido, defende. “Nenhum estado pode fazer perder os direitos adquiridos. Quem nunca se esqueceu do prazo de caducidade do seu BI? Deixa de ser português por isso? Essa coisa de retirar direitos adquiridos aos imigrantes é uma punição que não deve existir na lei. ”Helder Amaral veio com o pai português de Angola em 1975, com “uma certidão de nascimento que dizia: República Portuguesa”. Só há dois anos é que o deputado do CDS-PP pediu também a nacionalidade angolana. Helder Amaral concorda com a reivindicação do GTO de dar nacionalidade a estas gerações de afrodescendentes. Portugal convida estrangeiros para ficar criando mecanismos de facilitação, como os “vistos Gold”, quando há um número considerável de pessoas que nasceram cá e deveriam ter a nacionalidade, justifica. Compreende perfeitamente que muitos pais e jovens tenham deixado para segundo plano o processo de pedido de nacionalidade, “são pessoas com circunstâncias de vida complicadas”. Lembra-se bem quando trabalhava de dia e estudava à noite. “Se tivesse que ir a uma repartição pública que fecha às 16h30 e pára na senha 37, com um vínculo laboral precário que, se não aparecer, sou despedido, se calhar também não o faria”. O deputado acredita que a alteração à lei deveria passar pela mudança da exigência do certificado de português. “Choca-me que se tenha que fazer prova disso. ” Aos milhões de falantes da língua portuguesa publicitados por organizações como a CPLP, e usados politicamente, é desnecessariamente “pedido um certificado de conhecimento”, afirma. Quem pede a nacionalidade tem vários motivos para o fazer. Muitas vezes são apenas questões práticas, mas tantas outras têm a ver com relações afectivas, cumplicidades, identificações. Há hesitações, e muitas por causa dos obstáculos que se atravessam - quem desenha as leis sabe-o, cria requisitos dissuasores. “Quando se quer a nacionalidade, o sentimento de exclusão, de que somos diferentes, de racismo e de xenofobia incomoda - as pessoas falam pouco disso, mas fere, naquilo que é essencial, sentirmos que somos diferentes dos outros, uma diferença que nos é imposta”, desabafa Helder Amaral. Ou seja, a questão da associação entre nacionalidade portuguesa e uma cor de pele branca, ou entre uma cor da pele negra e nacionalidade de um país africano, é perigosa. Se assim fosse, Helder Amaral “ficava onde?”, interroga-se. Percebe que os processos de pedidos de nacionalidade que entram num enredo burocrático causem alguma revolta. “Fui tratado muitas vezes como estrangeiro”, diz o único deputado negro em Portugal. Isso foi difícil, e “ainda continua a ser”. Ele critica a esquerda, que não tem nenhum deputado negro. E acha mesmo que “se fosse deputado do Bloco de Esquerda era uma estrela nacional”. Uma pessoa do PS disse-lhe um dia: “Não te deixes acantonar nessa questão da cor e da raça, é melhor disfarçar”. Um conselho que “foi dado com maior das boas vontades” mas Helder Amaral pensou: “Mais uma vez tenho que fazer de branco. E isso é um problema. ”Em 2008/2009, quando foi cabeça de lista, avisou o partido de que não queria que usassem Photoshop nos cartazes. A verdade é que mesmo assim a cor da sua pele num dos cartazes foi branqueada. “As pessoas diziam: ‘estás mais branco no cartaz’. É subtil mas dei conta. Dói menos? Tenho mais informação, defendo-me melhor. Mas dói a mesma coisa. ”Ser português significa o quê? Será que se os imigrantes tivessem direitos iguais aos nacionais alguns quereriam a nacionalidade portuguesa na mesma? O que se deve então exigir a quem quer ser português?“Nem sequer preciso de dizer que me sinto português. É aqui que faço a minha vida. As minhas emoções, as minhas raivas, as minhas escolhas para o presente e para o futuro são aqui. Emociono-me, choro, tenho um clube de futebol”, diz Mamadou Ba. Apesar de considerar que há um avanço nesta lei - o facto de ter homogeneizado o prazo legal para todos os cidadãos - bastaria um determinado período de residência, o conhecimento da língua de modo informal, o registo criminal e o assento de nascimento. Há vantagem substancial em ter a nacionalidade portuguesa no capítulo político: podem-se exercer direitos políticos, defende, até porque não existe abertura dos partidos para exercício de cidadania política dos imigrantes, excepto em casos de reciprocidade. Tendo-se naturalizado, Mamadou Ba pode candidatar-se a primeiro-ministro mas não a presidente a República. Devíamos privilegiar a cidadania em detrimento da nacionalidade, isso é uma das ideias que “sempre defendeu”: qualquer cidadão tem de ter os mesmos direitos políticos, sociais e económicos. “Esse é um dos limites da nossa ordem jurídica-constitucional que transforma os imigrantes em cidadãos de segunda por causa da sua pertença nacional”. Há outros caminhos, que passam pela criação de novas figuras. Deputado pelo PSD, membro da Comissão Parlamentar dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, autor de vários livros sobre as leis da nacionalidade em Portugal e na CPLP, Feliciano Barreiras Duarte defende a cidadania lusófona, à imagem da cidadania europeia, onde se uniformizem as regras para a circulação de pessoas. Para isso seria necessário uma harmonização das leis da nacionalidade e da imigração dos países da CPLP. “Não gostamos que haja barreiras na circulação de bens e capitais mas depois no que diz respeito às pessoas somos mais fechados”, critica. “Não estamos a ser coerentes. Se avançássemos para esse estatuto estávamos a dar oportunidade de maior mobilidade de pessoas, criação de riqueza, desenvolvimento económico. Devíamos ser inovadores e dar esse passo decisivo. “O deputado do PSD, que em nome do seu partido negociou com o Governo as alterações à lei em 2006, sente-se frequentemente isolado no seu partido - e esta posição está até mais próxima da do primeiro-ministro PS António Costa, que recentemente defendeu a “liberdade de fixação de residência” no espaço da CPLP para cidadãos naturais de respectivos Estados-membros. A nossa lei conseguiu compatibilizar o direito de solo e o direito de sangue e houve “alterações positivas” - é uma das mais abertas, diz o deputado. A fazer mudanças, seria para “aprofundar a cidadania diversificada” e não para “dificultar a atribuição da nacionalidade”. Considera que só excepcionalmente deveria ser pedido aos cidadãos dos PALOP e do Brasil uma prova de conhecimento de língua portuguesa. O deputado da direita lembra que a nacionalidade tem que ser elástica, pode ser um instrumento de desenvolvimento económico. “O sentido de pertença deixou de ser o clássico. Não temos apenas uma nacionalidade nem sequer apenas a do sítio onde nascemos. Portugal pode trabalhar para ter uma nacionalidade que seja atractiva e até competitiva no mercado empresarial - hoje os países disputam cérebros. O mecanismo não pode ser o saudosista. O mundo ficará melhor se tivermos mais cidadãos com nacionalidade portuguesa”, defende. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quando começou em finais dos anos 1990 a tratar destas questões da nacionalidade, Anabela Rodrigues tinha como motivação as diferenças dentro da sua família, primos que de repente tinham que ir para a fila dos estrangeiros no aeroporto. A lei está feita com a mentalidade de quem acha que as pessoas se vão “aproveitar do estado nação”, não está pensada para quem tem de recorrer a ela no dia-a-dia e resolver questões práticas que mexem com a vida das pessoas, queixa-se a jurista. “Pensamos: a nacionalidade é uma coisa muito importante. Mas são dois pesos e duas medidas: um ‘visto Gold’ só precisa de vir a Portugal sete dias por ano, e ao final dos seis anos de residência pode fazer a prova de língua portuguesa e ter a nacionalidade. Que injustiça é esta?”Também por motivos como este, Mamadou Ba defende a mudança para o direito de solo, “que resolve os problemas todos desta chamada segunda e terceira geração de imigração”. Justamente porque hoje a lei é mista, houve muita gente com problemas em adquirir a nacionalidade. Como alternativa, então, a solução seria criar um mecanismo excepcional, através de um decreto regulamentar, elegendo como critério para a nacionalidade a prova de nascimento em Portugal a custo zero - uma espécie de direito de solo provisório. Isso seria “muito importante”, defende. “Porque iria colmatar uma injustiça que a lei criou que foi deixar de fora milhares de jovens. Criava-se a possibilidade de permitir alguma ascensão social via pertença nacional”, conclui. Última alteração da lei estende a "nacionalidade portuguesa originária" aos netos de portugueses nascidos no estrangeiro. Este ano foram recusados 3116 pedidos de nacionalidade.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PSD
Porque é que a América inventou o nigger?
I Am Not Your Negro quer ser o filme que James Baldwin nunca fez, a história da América a partir de três assassínios marcados pela luta racial. Recupera o Baldwin político e desafia a América a olhar-se no que tem de mais incómodo. A começar pela palavra proibida: Nigger. (...)

Porque é que a América inventou o nigger?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: I Am Not Your Negro quer ser o filme que James Baldwin nunca fez, a história da América a partir de três assassínios marcados pela luta racial. Recupera o Baldwin político e desafia a América a olhar-se no que tem de mais incómodo. A começar pela palavra proibida: Nigger.
TEXTO: Em 1979, James Baldwin, romancista, ensaísta, dramaturgo, activista dos direitos civis, escreveu uma carta ao seu agente literário propondo-se contar a sua história da América a partir das vidas de três amigos seus assassinados num período de cinco anos. Os amigos eram Medgar Evans, activista afro-americano morto por um supremacista branco no Mississipi em 1963; Malcolm X, muçulmano, afro-americano, fundador da Organização Para a Unidade Americana e defensor do nacionalismo negro na América, morto em 1965 no Nebraska; Martin Luther King Jr. , pastor protestante, activista político, morto em 1968 em Memphis. O livro chamar-se-ia Remember This House e nunca foi escrito. Quando morreu, em 1987, o escritor deixou trinta páginas com notas soltas. O realizador haitiano Raoul Peck pegou nelas e concluiu o projecto de Baldwin, um livro que deu um filme: o documentário I Am Not Your Negro que acaba de se estrear em Nova Iorque e recupera James Baldwin para o presente. I Am Not Your Negro começa por uma tentativa de dar corpo e voz ao homem a quem Toni Morrison, Nobel da Literatura em 1993, agradeceu ter-lhe dado a linguagem. “Deste-me a linguagem onde morar, um presente tão perfeito que parece invenção minha”, disse no funeral de Baldwin, à época considerado um dos grandes intelectuais americanos da segunda metade do século XX, mas que foi quase esquecido durante os últimos trinta anos. A sua história e a da sua obra são a de um conflito com o país onde nasceu. É a partir daí que Peck explora a ideia de casa, uma que a dado momento se tornou insuportável. O interdito continua. Para dizer o título do filme e do livro é preciso dizer a palavra que carrega raiva, culpa, preconceito: NegroJames Baldwin abandonou-a em 1948, aos 24 anos, refugiando-se num exílio em Paris. Recusava-se a conviver com o preconceito numa América intolerante à diferença. Negro, homossexual, queria ser escritor e que a sua escrita fosse feita fora desse universo claustrofóbico e repressivo. “Deixei este país por uma única razão, uma só razão - não me importava para onde ia. Poderia ter ido para Hong Kong, poderia ter ido para Tombuctú. Acabei em Paris, nas ruas de Paris, com quarenta dólares no bolso, com a teoria de que nada pior poderia acontecer comigo lá do que já tinha acontecido comigo aqui (. . . ) Os anos em que vivi em Paris fizeram uma coisa por mim: libertaram-me desse terror social, que não era paranóia da minha cabeça, mas um verdadeiro perigo social visível no rosto de cada polícia, de cada chefe, de toda a gente”. Contou isto em 1968, numa entrevista no programa The Dick Cavett Show. Peck foi buscar esse excerto para dar a voz, mas também revelar o sorriso aberto, o porte, as mãos, o olhar vivo e tudo o que isso diz da figura de James Baldwin. É dessa matéria que é feita a sedução de I Am Not Your Negro e também aquela onde reside toda a sua força e que pode ser sintetizada numa frase-diagnóstico: “A questão não é o que acontece com o Negro aqui ou com o homem negro aqui (. . . ), a verdadeira questão é o que vai acontecer com este país. ”Era deste mote que Raoul Peck precisava para transpor o pensamento de Baldwin para o presente: olhar o momento actual a partir de Baldwin. O documentário começou com uma ideia vaga, há dez anos, quando Peck foi a casa de Gloria Karefa-Smart, irmã mais nova de James Baldwin, para lhe pedir permissão para consultar os arquivos pessoais do autor de obras como Another Country (1962) The Fire Next Time (1963) ou Tell Me How Long The Trains Been Gone (1968). Leitor de Baldwin desde os 15 anos, admirador não apenas da sua literatura, mas de modo como foi capaz de expor uma realidade que o realizador também conhecia do seu Haiti natal – o racismo e “a violência intelectual” -, Peck queria trabalhar a partir do legado de Baldwin sem saber bem como. A solução veio das mãos da própria Glória quando, passados quatro anos de conversas, ela lhe passou para as mãos o maço com trinta páginas e o título Notes Toward Remember This House. Seria aquela a história. Peck “só” tinha de a escrever a partir das notas que o escritor deixara e a que juntou entrevistas, ensaios, cartas. “O meu trabalho foi o de encontrar aquele livro nunca escrito. I am Not Your Negro é o resultado mais improvável dessa procura”, afirma o realizador na introdução do livro que deu origem a um filme narrado por Samuel L. Jackson, o actor que dá voz à que seria a voz de Baldwin tal como Peck a concebeu. Estamos sempre na primeira pessoa numa obra que mesmo antes de se estrear foi selecionada para a edição deste ano dos Oscares na categoria de melhor documentário - o filme foi comprado para exibição comercial em Portugal pela Midas, que também editará o livro. É um filme sobre um discurso e a sua alegada intemporalidade que surge num momento em que a América está a recuperar o nome de Baldwin. Não apenas os seus romances, mas as peças de teatro e os ensaios onde está exposto o seu pensamento no contexto do movimento dos direitos civis que marcou a América na década de 60 e que parece ajustar-se ao presente no que têm de argumentação no combate à exclusão, na denúncia de todos o tipo de segregação: racial, sexual, de classe. É o momento pós-Ferguson, pós- Baltimore, pós-Staten Island, pós-Charlote onde americanos negros morreram vítimas do preconceito, o da consequente contestação protagonizada pelo movimento Black Lives Matter. Foi também o momento do segundo mandato do primeiro presidente negro, e o do ressurgir do racismo numa escala que não se via desde os anos 50 e 60 quando morreram nada mais do que Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, Jr. Não foi por acaso que Barack Obama citou James Baldwin na inauguração do último Museu Smithsonian, em Washington, dedicado à história e cultura afro-americana. Foi a 23 de Setembro passado: "Enquanto a história de como sofremos, de como ficamos encantados, e de como podemos triunfar não for nova, ela deverá ser sempre escutada. ” Ou seja, o pensamento de Baldwin continuava a fazer sentido no último trimestre de 2016. Peck sabe que faz ainda mais sentido neste arrancar de 2017. Quando o documentário foi concluído, Donald Trump ainda não fora eleito sucessor de Obama na presidência dos Estados Unidos, mas as palavras escolhidas para o trailer de apresentação do filme parecem feitas para desafiar a nova administração americana. “Eu não posso ser pessimista, porque estou vivo. Ser pessimista significa que se concordou que a vida humana é um assunto académico, por isso sou forçado a ser otimista. Sou forçado a acreditar que podemos sobreviver no que quer que de nós deva sobreviver. Mas o Negro neste país. . . o futuro do Negro neste país é precisamente tão brilhante ou tão escuro quanto o futuro do país. Depende inteiramente do povo norte-americano e dos nossos representantes. Cabe inteiramente ao povo americano se vai ou não enfrentar e tratar e abraçar esse estranho que tem maltratado durante tanto tempo. ” Baldwin disse isto em 1963, num programa da televisão pública chamado The Negro And The American Promise, o mesmo de onde Raoul Peck retirou o título do documentário, com uma pequena alteração que atenua o peso das palavras. “O que os brancos têm de fazer é tentar descobrir no seu íntimo porque é necessário ter um ‘nigger’ (. . . ), porque eu não sou um nigger, sou um homem. Mas se acha que eu sou um negro, isso significa que precisa dele. A pergunta que tem que fazer, que a população branca deste país tem que se perguntar (. . . ) é se eu não sou o nigger e o inventou, então tem que descobrir porquê. O futuro do país depende disso, quer seja ou não capaz de fazer essa pergunta. ” A frase de Baldwin é I’m not your nigger. Ele diz a n word, a da injúria, do estigma, aquela que uma nação inteira não pode dizer, a não ser que seja a nação negra a usá-la como quem usa uma caricatura de si mesmo. Ao optar pela palavra Negro, em inglês, Peck não despe a injúria, apenas a torna um pouco mais suportável e incómoda. Quando andava pelas ruas de Nova Iorque, criança, adolescente, jovem adulto, Baldwin sentira essa injúria, tentou esquecê-la em Paris, mas uma imagem reavivou-a. Era uma fotografia de jornal. Nela via-se Dorothy Counts, 15 anos, a primeira rapariga admitida no liceu de Harring Harding, em Charlotte, Carolina do Norte. Dorothy está sentada sozinha na primeira fila de um anfiteatro e atrás dela há muitos rostos a escarnecer. “Havia um orgulho, tensão e uma angústia indescritíveis no rosto daquela menina enquanto entrava nas salas de aula (. . . ) Aquilo deixou-me furioso, encheu-me de ódio e de piedade. E deixou-me envergonhado. Alguém de nós deveria ter estado lá com ela! (. . . ) Foi naquela tarde luminosa que eu soube que estava a deixar a França. Não poderia, simplesmente, ficar mais tempo sentado em Paris a discutir os problemas argelinos e dos negros americanos. Toda a gente estava a pagar as suas dívidas, era hora de eu ir para casa e pagar a minha. ”O documentário começa por aqui, pela decisão de Baldwin regressar aos EUA, em 1957. O mesmo preconceito que o expulsara fazia-o regressar. Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, Jr. eram os homens que tinham ficado quando ele optou por sair. Voltar, e mais tarde partir deles para escrever a sua versão da história da América, era um modo de pagar a tal dívida, de tentar enfrentar o interdito. O documentário é feito de passagens entre passado e presente. Baldwin surge enquanto profeta pelo pessimismo com que vislumbrara o futuro de um paísNatural de Nova Iorque, do Harlem, onde nasceu em 1924, James Baldwin conta que viveu os seus primeiros anos pouco consciente da diferença. Era um americano admirador de George Washington e de John Wayne que aprendeu a admirar os livros e a apreciar o cinema com uma professora branca. Aos sete anos, viu Joan Crawford e apaixonou-se, viu Bette Davis e aprendeu a fumar como ela. Escreveu sobre tudo isso e muito mais em The Devil Finds Work (colectânea de ensaio e memória sobre a sua experiência enquanto espectador de cinema e um tempo de formação, publicada em 1976). O cinema seria determinante e Peck quis explorar essa faceta para mostrar que Baldwin não rejeitara o mundo dos brancos. Foi com os livros e o cinema de autores brancos que aprendeu a olhar e a olhar-se. Baldwin diria muitas vezes que nunca sentiu ódio pelos brancos, que nunca fora racista ao contrário de muitos negros, mas aprendeu cedo a perceber que os amigos brancos o abandonavam à porta da escola. A amizade entre brancos e negros não saía da porta do recreio. “Quando uma criança põe os olhos no mundo tem de usar o que vê. Não há mais nada para usar. ” Quando em Imitation Of Life, filme de 1934, a mãe de uma aluna vai à escola entregar o casaco à filha e a professora lhe diz que se deve ter enganado na sala pergunta porque não há ali nenhuma aluna de cor, a filha não lhe perdoa. E não perdoa porque sabe que naquele momento foi excluída. O ódio racial começava aí, ao descobrir-se, por exemplo, americano numa América que não o reconhecia como plenamente seu. “O Negro nunca foi tão dócil como os americanos brancos queriam acreditar. Isso era um mito. Nas folgas não estávamos sempre a cantar e a dançar. Estávamos a tentar manter-nos vivos; estávamos a tentar sobreviver num sistema brutal. O ‘nigger’ nunca foi feliz neste país. ” E tudo isso fazia parte de uma narrativa maior que, outro exemplo, o cinema ajudara a sedimentar. Peck faz uso disso, partindo dos ensaios de James Baldwin, utiliza os filmes como âncora. No que revelam e no que escondem vê-se a História que um país conta a si mesmo. Por exemplo, o diálogo entre Toni Curtis e Sidney Poitier que antecede uma tentativa de fuga, em The Defiant Ones (1951), e as palavras: “Não sou capaz! Não sou capaz!” É a história de uma relação de amizade improvável entre um negro e um branco supostamente racista, em que o negro sacrifica a sua liberdade em nome do amigo. Como se lê isto no documentário de Peck que escreveu o que Baldwin supostamente teria escrito? Sai assim na voz de Samuel L. Jackson: “É impossível aceitar a premissa da história, uma premissa baseada no profundo mal-entendido americano da natureza do ódio entre negros e brancos. A raiz do ódio do negro é a raiva, ele não odeia tanto os homens brancos como simplesmente os quer fora de seu caminho, e, mais do que isso, fora do caminho de seus filhos (. . . ) Quando Sidney salta do comboio, os brancos liberais ficaram muito aliviados e alegres. Mas quando os negros o viram pular, gritaram: volta para o comboio, seu imbecil. O homem negro a fim de tranquilizar os brancos fazê-los crer que não são odiados. ”O cinema apelava à mesma pureza mítica, aquela que a América, ou uma certa América, queria ver legitimada, e que Baldwin volta a denunciar com outro filme, A Great Feeling (1949), “um dos mais grotescos apelos à inocência”. Como contraponto, ouvem-se canções de Bob Dylan ou Ray Charles e assiste-se às imagens da vida e da morte daqueles três homens: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, Jr. Há lágrimas e raiva e a vontade de não ver, coisa que Peck sublinha numa revisitação histórica que é outro olhar sobre a história. As imagens estão lá, mas sem deixar esquecer que são as palavras o que importa. Tudo à luz do presente que para já voltou a pôr os livros de Baldwin nos escaparates e nas montras das livrarias de Nova Iorque como de leitura obrigatória na América actual onde se voltam a ouvir palavras como medo, opressão, e a raça voltou aos discursos e a perseguição à diferença uma realidade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É como se, ao intercalar imagens do passado com acontecimentos recentes, ecoasse uma pergunta: de onde vem o ódio?O interdito continua e Raoul Peck puxou-o para capa. Para dizer o título do filme e do livro é preciso dizer a palavra que carrega raiva, culpa, preconceito: Negro. Há quem a diga bem alto, dose idêntica de provocação e de libertação, como o homem que pede moedas à porta da livraria Strand, em Nova Iorque: "I am Not Your Negro". Ele é negro, como são de um negro os olhos na capa do livro que acaba de ver nas mãos de uma mulher branca. "Não mo quer oferecer?", pergunta, e repete: "I am Not Your Negro", agora numa gargalhada rouca que se some no ruído da rua. O tom dele não é o tom triste, ainda que pouco resignado, de Richard Widmarck no filme No Way Out (1950): "Dizem que não é bonito dizer nigger. Nigger! Nigger! Nigger! Pobres crianças negras, amem as crianças negras. Quem me amou? Quem me amou?" Peck recupera esta fala para sublinhar o discurso de Baldwin e o modo como ele se foi socorrendo do cinema para exemplificar a legitimação do preconceito, no caso, o peso de uma palavra que carrega aquilo a que se convencionou chamar "the Negro problem". I am Not Your Negro é sobre isso. A dificuldade de uma parte da América saber como vive a outra parte, de conhecer a sua intimidade de modo a olhar-se como um todo. "Essa falha da vida privada teve sempre o efeito mais devastador na conduta pública da América e nas relações negros-brancos. Se os americanos não vivessem tão aterrorizados com seus eus privados, nunca se teriam tornado tão dependentes do que chamam The Negro problem", escreveu Baldwin nas suas notas dispersas que ganham aqui um corpo moldado à luz do presente. No livro isso não se vê. Há o texto, fotografias do escritor, imagens de filmes que servem para ilustrar o seu pensamento, fotografias de época, o contexto para o texto. Mas o documentário é feito de passagens entre o passado e o presente de modo a sublinhar uma ideia de profecia, ou seja, Baldwin a surgir enquanto profeta pela análise do seu tempo transposta para a cronologia actual, e pelo pessimismo com que vislumbrara o futuro de um país com o qual sempre teve uma relação ambígua, a mesma que se tem numa casa onde impera o conflito. Quando diz que o modo de vida americano falhou, quando diz que o sonho americano, quando existiu, foi à custa do sofrimento dos negros, quando refere que olhar à volta nos EUA de então era suficiente para fazer chorar profetas e anjos. “A verdade”, escreveu, “é que este país não sabe o que fazer com a sua população negra, sonha com qualquer coisa como ‘a solução final’. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
O leite já não é uma vaca sagrada
Foi durante muito tempo (e para muitos ainda é) considerado um superalimento. Mas, desde há uns anos, a unanimidade perdeu-se. (...)

O leite já não é uma vaca sagrada
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 Animais Pontuação: 9 | Sentimento -0.13
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi durante muito tempo (e para muitos ainda é) considerado um superalimento. Mas, desde há uns anos, a unanimidade perdeu-se.
TEXTO: Muito do que comemos tem vários “mas” na sua composição e para vários especialistas o leite não é excepção. Quando se pergunta à nutricionista Carmo Cabral se recomenda o consumo de leite, a resposta é mais que pronta: “Sim, recomendo: o leite materno. ” E termina aí. O de vaca nem pensar, “não somos bezerros”. Quando se pergunta ao nutricionista Pedro Graça se recomenda o consumo de leite, a resposta é mais que pronta também: “Sim, tem muitas vantagens. ”Em 2003, Anne Karpf começava assim um artigo devastador no jornal The Guardian: “Terá sido o próprio relações públicas de Deus o director da campanha a favor do leite? De que outra forma se explica ter conseguido manter a sua imagem imaculada, apesar de toneladas de provas em contrário?” As dúvidas, argumenta, vêm de longe: Karpf cita a resposta do Comité de Nutrição da Academia Americana de Pediatria quando, em 1974, foi questionada sobre se se deveria desaconselhar o consumo de leite pelas crianças: “Talvez” (e mesmo assim, entre 1993 e 2014, os americanos foram inundados com a campanha “Got Milk?”, onde personalidades conhecidas eram fotografadas com bigodes lácteos a recomendar que se bebesse leite). Actualmente, muitos nutricionistas não usam sequer o condicional. “O leite de vaca não faz sentido”, afirma peremptoriamente Carmo Cabral. “É espécie-específico. ” Ou seja, os humanos devem beber leite humano, enquanto são bebés, e é tudo. “A proteína do leite de vaca é muito diferente da do leite humano, praticamente o oposto. ”Quais são, então, os argumentos contra o leite? A começar pela intolerância à lactose (o açúcar dos lacticínios fica por digerir no intestino delgado, podendo provocar diarreia, cólicas e gases), a lista de acusações — demonstradas ou não — é longa: elevado teor de gordura saturada aumenta o risco de doenças cardíacas; o consumo de grandes quantidades de lactose aumenta as probabilidades de cancro no ovário; grandes quantidades de cálcio são um factor de risco para o cancro da próstata e também para a osteoporose (uma diminuição da massa óssea, que leva ao aumento do risco de fractura). Frequentemente, as investigações que apontam para resultados deste género fazem-no com base no consumo de três ou mais copos de leite por dia. Os ataques não se ficam por aqui. “O leite é muito mais do que [a soma de] proteínas, hidratos de carbono, gordura saturada, cálcio e outros minerais, e vitaminas”, afirma Carmo Cabral. “Tem uma série de compostos bioquímicos, hormonais e outros, que vão ter uma acção no corpo. ” A nutricionista adianta que o consumo de leite “está associado a diabetes de tipo 1 e à obesidade: o leite estimula o crescimento, ao aumentar os níveis de insulina” — a “insulina e outros processos bioquímicos”, dirá a seguir, é também uma das razões por que poderá estar associado a doenças oncológicas. “Habitualmente consumimos leite numa altura de crescimento exponencial, e essa modulação hormonal era importante para esse tipo de crescimento”, até aos dois, três anos. Depois disso, não só é dispensável como não é recomendável. “Só se for para substituir alimentos piores, como refrigerantes, snacks, bolos. ”80 litros de leite foi quanto bebeu cada português em 2013, menos 4, 5% de consumo em relação ao ano anteriorPedro Graça, coordenador do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável, reconhece que “há uma discussão grande e muita polémica” à volta do leite. Mas “quem tem dificuldades de acesso a alimentos de qualidade não deveria prescindir do leite, que é um complexo vitamínico em forma de alimento”. As “muitas vantagens” começam pelo cálcio — “fundamental no crescimento ósseo e para os dentes”. Os ossos ganham densidade até aos 30 anos e a partir daí perdem-na. “Ficam mais ‘ocos’. Jovens que não consomem lacticínios acabam por ter ossos mais frágeis. ” A osteoporose afecta em Portugal mais de meio milhão de pessoas, sobretudo mulheres, segundo a Direcção-Geral de Saúde. Para os críticos do leite, este é um dos grandes embustes. A osteoporose pode ser combatida com exercício físico regular, vitamina D (através da exposição ao sol, por exemplo) vitamina K (vegetais verdes) e cálcio em quantidade suficiente. E é aqui que reside a questão. A quantidade certa e saudável de cálcio que devemos ingerir não foi ainda cabalmente determinada, segundo refere um artigo da Harvard School of Public Health, publicado no ano passado. Vários estudos salientam a importância do cálcio para fortalecer os ossos, mas há discrepâncias sobre a quantidade que deve ser ingerida por adultos (no mesmo artigo afirmava-se porém que um consumo moderado — um ou dois copos de leite por dia — parecia diminuir as probabilidades de tensão alta e sobretudo de cancro no cólon). Já um estudo de investigadores suecos liderados por Karl Michaelsson e publicado pelo British Medical Journal, em Setembro passado, concluía que maiores quantidades de leite levavam a mais fracturas em mulheres. Pior, havia até maior índice de mortalidade, num dos grupos estudados. Isto porque o leite é a principal fonte de galactose, que provoca stress oxidativo (ligado ao envelhecimento), inflamação crónica, neurodegeneração e menor resposta imunitária. Os autores do estudo — que comparava mulheres que bebiam três ou mais copos de leite por dia com as que bebiam um ou menos — concluem dizendo que “os resultados podem levar a questionar a validade das recomendações para o consumo de grandes quantidades de leite para a prevenção de fracturas ósseas”. Mas devem, contudo, “ser interpretados com cautela” e precisam de ser replicados, alertavam. O artigo inundou os media e animou os opositores aos lácteos, que muitas vezes se esqueciam de referir as reservas dos investigadores. Quando se trata de prevenir a osteoporose, Carmo Cabral aponta para outras “fontes fiáveis”: couve, brócolos, agrião, rúcula, nabiças, por exemplo, “têm bastante cálcio disponível, tanto como o leite”. Além disso, o cálcio não pode ser considerado isoladamente: “É a vitamina K [que não está presente no leite mas nos vegetais verdes, aponta] que o leva ao osso e não só para os tecidos moles. ”Em percentagens da dose diária recomendada, adianta o nutricionista, um copo de 250 ml garante 38% do cálcio; 16% de proteínas; 11% de potássio (que ajuda a manter a pressão arterial); 10% da vitamina A (importante para a pele); 13% da vitamina B12, que ajuda as células a transportar o oxigénio; 24% da vitamina B2, que tem riboflavina, que ajuda a converter os alimentos em energia; 20% de fósforo, importante também para os ossos. “Para cada estudo contra o leite, aparece um a favor”, afirma Pedro Graça. “Para a relação entre o consumo do leite e a doença cardiovascular, por exemplo, a evidência científica é quase nula. Mas há alguma discussão sobre a relação com doenças oncológicas: o consumo moderado parece ser protector, mas quando em excesso haverá um efeito negativo. Isso pode acontecer com muitos alimentos. ”José Camolas, nutricionista do serviço de endocrinologia do Hospital de Santa Maria, refere que “o leite faz parte dos cânones da alimentação equilibrada”. Mas tem de estar presente? A resposta não é “tem”, é “pode”. “Em nutrição, não temos a política de dizer que tem de ser assim ou assado. ”Em todo o caso, “faz sentido que um dos grupos alimentares seja dedicado aos lácteos”, defende. “São uma fonte barata e disponível de proteína de boa qualidade e uma das fontes mais biodisponíveis de cálcio. Alguma investigação demonstra que tem um efeito protector da saúde (nomeadamente no controlo de peso e glicémico). ”250 ml de leite, um copo, contém: 38% do cálcio; 16% de proteínas; 11% de potássio;10% da vitamina A; 13% da vitamina B12; 24% da vitamina B2; 20% de fósforoEm relação aos “senãos”, refere também que “a investigação tem sempre nuances, tem sempre uma verdade e o seu contrário. Há ecos de uma investigação norte-americana que apontava para maior incidência neoplásica. Mas é diferente dizer ‘isto aconteceu ao mesmo tempo que isto’ ou dizer ‘isto provoca cancro’”. Essa relação directa de causa-efeito é mais difícil de estabelecer, até pelas imensas variáveis que entram em jogo quando se fala de alimentação. Lacticínios a mais fazem mal, tal como qualquer outro alimento em excesso, adianta. O que parece uma evidência é que, à medida que o tempo vai passando, tendemos a tornar-nos mais intolerantes à lactose, um hidrato de carbono composto por dois açúcares, glicose e galactose — que para serem separados e digeridos precisam de uma enzima chamada “lactase”. “É uma enzima indutível, ou seja, é produzida em função da necessidade”, afirma Camolas. “Os adultos que bebem leite continuam a produzir lactase. . . Mas, com o envelhecimento, os processos metabólicos transformam-se e há mais intolerância à lactose, [tal como] às gorduras, as digestões são mais prolongadas. Todo o aparelho gastro-intestinal fica menos funcional. ”Segundo a Sociedade Portuguesa de Gastroenterologia, cerca de um terço da população portuguesa sofre de intolerância à lactose (o que não é igual a alergia ao leite, que é uma reacção que envolve o sistema imunitário). A percentagem é bastante maior noutros grupos demográficos. Em 1965, um estudo da Johns Hopkins University concluía que quase três quartos da população negra americana não digeria a lactose, contra 15% da população branca. A intolerância à lactose é um traço da maioria da população mundial, sobretudo africana e asiática. Em Julho de 2013, o artigo da Nature “Arqueologia: a revolução do leite” explicava como, há 11 mil anos, quando a agricultura começou a substituir a caça, as populações do Médio Oriente aprenderam a reduzir a lactose — que não conseguiam digerir por falta de lactase — fermentando o leite para fazer queijo e iogurte. Dois mil e quinhentos anos depois, uma mutação genética ocorreu na Europa, mais precisamente na zona da Hungria, dando à população a capacidade de produzir lactase durante toda a vida. “Essa adaptação abria uma nova fonte nutricional que conseguia sustentar as comunidades quando não havia colheitas. ” Uma grande parte da população europeia descenderá desses primeiros agricultores que insistiam em continuar a produzir lactase na idade adulta. E é isso que explica que muitos caucasianos sejam a excepção a este número: 65% da população mundial não produz lactase depois dos sete, oito anos. A capacidade de o fazer perde-se à medida que se cresce. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pedro Graça afirma que em Portugal há “entre 1/3 e 77% da população com algum tipo de intolerância, que pode quase não se notar, e por vezes até podemos viver com ela”. Graça Cabral contesta e afirma que, mesmo não se manifestando, os efeitos serão nocivos a longo prazo. A razão por se achar que há agora mais pessoas intolerantes à lactose é o facto de “termos uma população cada vez mais envelhecida”, adianta Pedro Graça. “Aqueles que não são intolerantes aproveitem ao máximo as vantagens que o leite traz. ”
REFERÊNCIAS:
Vestígios de Lisboa
Depois de ter orientado no Porto o workshop “A escuta da Cidade”, o jornalista e investigador brasileiro Marcelo Carnevale, com pensamento sobre a ocupação do espaço público, viajou até Lisboa. Aquilo que encontrou está longe das imagens que construiu durante uma vida. Impressões da cidade, em português do Brasil. (...)

Vestígios de Lisboa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois de ter orientado no Porto o workshop “A escuta da Cidade”, o jornalista e investigador brasileiro Marcelo Carnevale, com pensamento sobre a ocupação do espaço público, viajou até Lisboa. Aquilo que encontrou está longe das imagens que construiu durante uma vida. Impressões da cidade, em português do Brasil.
TEXTO: No vagão do trem que circula pelo subterrâneo lisboeta, duas mulheres negras revelam os matizes da cidade. Em um silêncio cansado, imprimem a primeira imagem de boas-vindas ali, no metrô que parte da Estação Oriente para conduzir-me ao Rossio. São oriundas de alguma ex-colônia, como eu e, sem se darem conta, oferecem-me a sensação de familiaridade, pelos tons de pele chocolate e caramelo, tão presentes no Brasil. Nesse instante, são a luz quente de Lisboa. Eu, a andar no sentido contrário ao do trem, como se retrocedesse no tempo, ganho esse enquadramento nas minhas lentes: seus rostos tão marcantes à minha frente. Elas fazem-me relembrar a infância no Rio de Janeiro, os vendedores ambulantes na areia da praia, os moradores em situação de rua, quase todos de pele negra sob o sol escaldante, em contraste com o branco das pedras portuguesas. Meu destino é a Estação do Rossio e o trem avança: Cabo Ruivo, Olivais, Chelas, Bela Vista/Chelas, Olaias, Alameda, Arroios, Anjos, Intendente, Martim Moniz e, finalmente, Rossio. Carrego Lisboa nos bolsos como um poema escrito há muito tempo, como o verdadeiro tesouro achado na infância carioca: a cidade imaginária que eu conseguia decalcar dos detalhes arquitetônicos do Rio de Janeiro, um exercício de ver uma cidade dentro da outra cidade. Porque as crianças conseguem ver riquezas nas pedras portuguesas. Brincam de escolher uma das figuras que se repetem no padrão estampado nas calçadas e caminham sem pisar em qualquer outra diferente, para não “perder o jogo”. Sempre soube, sempre desejei esta cidade. As lembranças fogem quando meu telemóvel passa a receber mensagens de outro brasileiro. Alugou-me um quarto próximo ao Elevador de Santa Justa. É didático na hospitalidade e tenta cercar-se de todas as certezas de que suas pistas levarão ao endereço o quanto antes. Nem desconfia de que estou perdido nos anos 80, mergulhado na memória de um centro carioca decadente e emudecido na sua importância como ex-sede do império português, como ex-capital do Brasil. Esforço-me para sair do torpor, igual ao das mulheres negras diante de mim. A segunda imagem lisboeta vem pelo mesmo WhatsApp: é uma cruz verde tipo néon. Sinaliza que meu endereço fica ao lado da farmácia. Não sei por quê, o luminoso rouba-me o encanto. Nesses últimos anos, uma cena do documentário Mariza and the story of fado, produzido pela BBC, em 2007, marcou-me profundamente: o compositor Pedro Campos apresenta à cantora sua nova composição, Montras. A cena em que eles tomam vinho em taças grandes, a conversar e a cantar, é bonita pela simplicidade, mas, sobretudo por adiantar-me algo de Lisboa nos versos da letra: “. . . voam gaivotas no horizonte, só o teu amor é tão real”. “Montras” é uma palavra desconhecida para nós, brasileiros. Só soube dela pela música e é dela que me lembro (mesmo sem ainda saber seu significado), quando, ao alcançar a rua na saída da Estação Rossio, me deparo com a realidade. O que enxergo, com o olhar de visitante, é uma cidade exposta a um turismo massivo, como se cada detalhe da Baixa pudesse transformar-se num souvenir sem lembranças. Sem querer, o significado de “montras” (vitrine) revela-se nessa experiência: a imagem de uma cidade-vitrine, que se vende a si mesma como um artigo chinês de fabricação duvidosa. Por alguns instantes, detesto Lisboa. Sinto vergonha ao descobrir-me na condição de turista, tão distante da cidade imaginária desenhada na minha infância. Meu sonho voa rapidamente do bolso da camisa como um papel de bala pelas pedras portuguesas do Rossio. Resta apelar ao google maps e enquadrar-me como mais um dos turistas-rinoceronte: cabeça baixa, guiado pelos smartphones e pelas “montras”. Meu senhorio está a postos. Com orgulho, detalha a façanha de ter quatro imóveis alugados em nome dele para sublocar aos turistas. Aponta para o espaço e diz excitado: só este quarto, na alta temporada, paga boa parte dos custos de todos os imóveis. Falastrão, despeja uma série de problemas com seus inquilinos: italianos, franceses, espanhóis. Gente que aluga e deseja antecipar a saída ou que reclama do barulho da Baixa. Ele sente orgulho desses problemas, como um executivo de grandes negócios. Olho para aquela cama de rentabilidade máxima, num apartamento de estilo pombalino com uma sacada. Livro-me da conversa e tento repensar a estratégia de como colocar o corpo na cidade, de como realmente chegar em Lisboa. Há um trunfo: nessa minha curta vida de turista-rinoceronte, eu ainda não vi o Tejo. Ganho a Rua Augusta, alcanço a Praça do Comércio num esforço de driblar estátuas humanas, shows de sapateado, performance de músicos cegos, pedintes, garçons oferecendo mesas e muitas, inacreditavelmente muitas selfies (aliás, pode-se alugar um pau de self oferecido por alguns africanos). Enfim, chego entre as Avenidas da Ribeira das Naus e Infante Dom Henrique. O Tejo, sob a perspectiva do passeio público, está tomado por pessoas felizes. Eu, cada vez mais melancólico, resolvo procurar os moradores da cidade. Plano complexo, mas que conta com a ajuda de um amigo lisboeta que mora em São Paulo. Acolhido por amigos dele, encontro Lisboa finalmente, 24 horas depois de chegar na Baixa, no 31 de dezembro de 2017. Quem são os lisboetas? Nesse cais, que liga o passado ao futuro, há os que resistem ao turismo que provocou outro tipo de terramoto na Baixa e no Chiado. Buscam algum tipo de consolo nos becos, escadas e mirantes. Mas quem são os lisboetas? O que encontro, para além da emblemática cena das roupas no varal, que indica sinal de vida local, são as diferentes perspectivas do Tejo. Encaixo mais uma peça no meu quebra-cabeça: os lisboetas são os que contemplam o Tejo, não o perdem de vista mesmo sem vê-lo a toda hora. Vez por outra, de relance, entre um beco e uma escada da Graça, eu vacilo e vejo a Baía da Guanabara. As duas cidades confundem-se dentro de mim. Lisboa é a cidade que eu invento, composta por outras vivências, no caso, fortemente, pelas lembranças do centro carioca. Não é saudade, mas reinvenção. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quanto mais lisboeta percebo-me, mais carioca eu sou. Trata-se de um retorno a um Rio de Janeiro que não existe mais e da descoberta de uma Lisboa que só existiu na minha cabeça. O céu azul das duas cidades, os montes, as cozinhas generosas, os navios, os portos, os botequins, as mercearias com legumes e frutas expostas, um tipo de humor, um tipo de tristeza e uma vocação para a resistência. São cidades fortes, com topografias imperiais e sítios urbanos com pequenas joias, guardada a proporção entre o que faz a mais antiga tão rica na arquitetura histórica e, a mais nova, deslumbrante, numa topografia que homenageia de forma surpreendente a terra portuguesa. Sempre traí o Rio com Lisboa. Como um amante que, finalmente, depois de anos, toma coragem para lançar-se na empreitada amorosa, percebo que é tarde demais. Lisboa não me esperou. Tenho vontade de caminhar dia e noite, já sei que não ficarei muito tempo, pois sonhos são inabitáveis. Tento seguir um velho que se embrenha por um beco, como se pudesse roubar-lhe o passado e tudo o que ele viveu aqui. Na errância, dos becos da Alfama caio num plano inóspito da Rua da Alfândega. Constato que o cais não recebe mais invasores, comerciantes, artistas, aventureiros, muito menos amantes. Agora, a cidade turística mata a sede dos curiosos e quase tudo está fora de alcance. Resta a partida, o Tejo e o mar.
REFERÊNCIAS:
Elas querem threesomes, eles querem MILFs. O que pesquisámos no Pornhub em 2018?
O maior site pornográfico do mundo divulgou uma longa análise que revela as preferências mais íntimas dos internautas. 2018 foi ano de Stormy Daniels e de Fortnite. (...)

Elas querem threesomes, eles querem MILFs. O que pesquisámos no Pornhub em 2018?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O maior site pornográfico do mundo divulgou uma longa análise que revela as preferências mais íntimas dos internautas. 2018 foi ano de Stormy Daniels e de Fortnite.
TEXTO: Ninguém vê pornografia na Internet, mas todos vêem pornografia na Internet. Só no Pornhub, o mais popular site de conteúdos sexuais a nível mundial (e o 30. º site mais visitado em todo o mundo), 92 milhões de pessoas procuraram e assistiram a vídeos pornográficos a cada dia de 2018. No total, e mantendo-se a tendência até ao final deste mês, o site terá recebido este ano 33, 5 mil milhões de visitas – um aumento de 5 mil milhões de visitas face a 2017. Estes são os maiores números numa longa e detalhada análise que o site publicou esta semana, e que revela as preferências íntimas dos internautas ao longo dos últimos doze meses. Os termos mais pesquisados a nível mundial foram lesbian (lésbica), hentai (um estilo japonês de anime e manga de teor pornográfico), MILF (acrónimo inglês para mother I’d like to fuck), step mom (madrasta) e japanese (japonês/a). São termos que têm estado no top das pesquisas do Pornhub ao longo dos últimos anos. Há nuances, claro. Para já, entre homens e mulheres. Para o sexo feminino, que representa 29% das visitas a nível mundial (quase um em cada três visitantes), lesbian, japanese e hentai foram os três termos mais pesquisados por ordem decrescente. Entre os homens, a preferência foi para japanese, MILF e hentai, pela mesma ordem. Quanto às categorias mais exploradas no site, as mulheres preferiram lesbian, threesome (sexo a três) e japanese; os homens visitaram sobretudo japanese, MILF e mature (mulheres maduras). Outra nota sobre o público feminino: no top dos 20 países que mais acedem a este site (um grupo que é liderado pelos EUA, seguido pelo Reino Unido e pela Índia), as Filipinas são a nação onde há a maior proporção de mulheres entre os visitantes do Pornhub (38%), seguida do Brasil e da África do Sul (ambos com 35%). Fora desse top, no entanto, e como mostra o mapa, há países com uma proporção de mulheres visitantes ainda maior, como a Namíbia ou o Paraguai. E Portugal está abaixo da média no que diz respeito à proporção de mulheres que visitam este site. Para os visitantes do Pornhub identificados como homossexuais (ou que têm interesse em conteúdos homossexuais), korean (coreano), japanese e black (negro) foram os termos mais pesquisados. A categoria mais visitada, paradoxalmente, foi a de straight guys (homens hétero). Estas preferências, no entanto, não são universais. Olhemos para o mapa: a categoria lesbian é claramente a mais popular em toda a América do Norte e na maior parte da América do Sul. E é uma dos mais populares na Europa, incluindo em Portugal. Já ao nosso lado, Espanha prefere mulheres maduras. A categoria hentai é especialmente popular na Ásia e também no espaço correspondente à antiga União Soviética. Ebony (relativo à pele negra) é a mais visitada na África subsariana. Mas há outros termos que, não tendo chegado ao top, registaram este ano um grande crescimento de interesse. Para começar, Stormy Daniels. Estrela pornográfica há muitos anos, a norte-americana foi em 2018 a personalidade mais pesquisada no Pornhub. O motivo é evidente: protagonizou um dos mais mediáticos processos em que o Presidente norte-americano Donald Trump esteve envolvido nos últimos tempos — o milionário terá mantido uma relação extraconjugal com Daniels e terá comprado o seu silêncio de forma ilícita, através de uma despesa não declarada que foi mediada pelo seu advogado Michael Cohen, esta quarta-feira condenado a três anos de prisão. Mas há outra celebridade que também disparou no top do Pornhub e que nada tem a ver com o universo pornográfico. Trata-se da ex-actriz norte-americana Meghan Markle, que casou este ano com o príncipe Harry de Inglaterra. (Mas não, não há filmes pornográficos protagonizados pela actual duquesa de Sussex. )Ao mesmo tempo, o casamento de Meghan Markle com o príncipe Harry foi responsável pela maior quebra de tráfego no site a nível mundial (-10%). Outros eventos internacionais que disputaram a atenção dos visitantes do Pornhub foram a final do Mundial de Futebol (que causou uma quebra de tráfego na ordem dos 66% na Croácia e dos 55% em França), a Liga dos Campeões (só em Portugal o tráfego caiu 9%) e a grande apresentação anual da Apple. Outras personalidades muito procuradas em 2018 – mas, em princípio, sem resultados satisfatórios para os curiosos: Nicky Minaj, Cardi B, Ariana Grande ou a youtuber sssniperwolf. Outra ainda, que continua no top há vários anos, mas esta sim com um filme pornográfico disponível: a socialite Kim Kardashian. O seu vídeo, aliás, continua a ser o mais visto em toda a história do Pornhub. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E em relação a personagens fictícias, e sem surpresa para os mais atentos, Fortnite foi o termo relacionado com videojogos mais pesquisado no Pornhub. E Bowsette, uma vilã feminina inventada pelos fãs de Super Mario, é a personagem mais pesquisada nesse universo. Já no universo televisivo e cinematográfico, Harley Quinn foi a personagem que pelos vistos protagonizou mais fantasias em 2018, seguida da Mulher Elástica (de Os Incríveis), dos próprios Incríveis, Star Wars e Family Guy.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Jacqueline Kennedy achava Martin Luther King um homem "terrível"
Jacqueline Kennedy não gostava nem dos franceses, nem do general de Gaulle. E o defensor dos direitos civis norte-americanos Martin Luther King era “um homem terrível”. Meses depois do assassínio do marido, John F. Kennedy, um amigo e historiador fez-lhe uma entrevista. As cassetes áudio só agora foram conhecidas. (...)

Jacqueline Kennedy achava Martin Luther King um homem "terrível"
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento -1.0
DATA: 2011-09-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Jacqueline Kennedy não gostava nem dos franceses, nem do general de Gaulle. E o defensor dos direitos civis norte-americanos Martin Luther King era “um homem terrível”. Meses depois do assassínio do marido, John F. Kennedy, um amigo e historiador fez-lhe uma entrevista. As cassetes áudio só agora foram conhecidas.
TEXTO: Os extractos da entrevista foram emitidos ontem à noite pela cadeia de televisão ABC e esta quarta-feira sai para as bancas o livro que resultou das oito horas de conversa entre Arthur Schlesinger e Jackie: “Jacqueline Kennedy: Historic Conversations on Life with John F. Kennedy”, editado pela filha, Caroline. A entrevista ocorreu quatro meses depois da morte de JFK, em Novembro de 1963, em Dallas. A viúva tinha 34 anos. Abundam descrições da vida da família Kennedy na Casa Branca – “os nossos anos mais felizes” – e de como o Presidente gostava de ter os seus filhos sempre por perto – é famosa a fotografia de John Kennedy Jr (na altura chamavam-lhe John John) debaixo da secretária da Sala Oval. Há intimidades reveladas (apesar de terem ficado de fora tópicos como os casos extraconjugais do Presidente), mas também detalhes sobre os momentos de tensão da Guerra Fria. No auge da crise dos mísseis cubanos (1962), que levou o país a preparar-se para um confronto nuclear com a União Soviética, a primeira-dama implorou ao marido que a deixasse ficar, juntamente com os filhos, ao seu lado, na Casa Branca. “Por favor, não me mandes embora”, disse ao Presidente. “Se acontecer alguma coisa, vamos todos ficar aqui, contigo”. Depois disso, Jackie contou que JFK se divertia a imaginar o seu assassinato, considerando que seria “o momento certo para o fazer” para que deixasse um legado positivo na História. “Lembro-me que depois da crise dos mísseis, quando tudo se resolveu de forma tão fantástica, o John disse: ‘Bom, se alguém tiver o plano de me matar esta é a altura’. Viu naquele momento que não poderia ficar melhor”. Mas também se ficou a saber que John F. Kennedy temia pelo país com a ideia de que lhe pudesse suceder o seu vice-presidente Lyndon Johnson, o que acabou por acontecer depois do seu assassinato. “Ele disse-me: Oh, meu Deus, podes imaginar o que aconteceria se Lyndon fosse Presidente?”. Da parte de Jackie, as antipatias iam para outro lado. “Simplesmente não consigo ver uma fotografia do Martin Luther King [herói da luta pelos direitos da população negra] sem pensar ‘este homem é terrível’”. Contou que o Presidente lhe mostrara “uma cassete que o FBI tinha da altura em que Luther King esteve aqui [Washington] para a sua Marcha pela Liberdade. Ele disse, sem amargura nem nada, que ele estava a angariar todas aquelas raparigas e a tratar de uma festa de homens e mulheres, quer dizer, uma espécie de orgia no hotel”. Numa entrevista à ABC, Caroline afirmou que estes comentários resultaram de “actividades venenosas” do director do FBI, J. Edgar Hoover, e que a mãe “admirava extraordinariamente” Martin Luther King. Durante 47 anos as gravações estiveram guardadas na Kennedy Library. Jackie Kennedy morreu em 1994 sem nunca ter escrito as suas memórias. Caroline aproveitou o 50º aniversário da entrada do seu pai na Casa Branca para as revelar.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte homens guerra filha homem espécie mulheres assassinato negra
O clube dos poetas negros
Quase nenhum dos participantes tem livros publicados. Cruzaram-se no Djidiu, iniciativa do áudio blogue Afrolis, espécie de Clube dos Poetas Negros. É lá que dizem a sua poesia ou contam as suas histórias partilhando esta ideia do que é ser afrodescendente ou negro em Lisboa. (...)

O clube dos poetas negros
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento -0.16
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quase nenhum dos participantes tem livros publicados. Cruzaram-se no Djidiu, iniciativa do áudio blogue Afrolis, espécie de Clube dos Poetas Negros. É lá que dizem a sua poesia ou contam as suas histórias partilhando esta ideia do que é ser afrodescendente ou negro em Lisboa.
TEXTO: Março, último domingo do mês. É um dos raros dias de Sol nesta Primavera tardia em Lisboa. Às mesas do bar Tabernáculo (R. de São Paulo) espalham-se jovens e uma ou outra criança. Começam, pouco a pouco, a tomar a palavra para dizer poesia, dirigem-se ao centro da sala, olham para uma “plateia” cheia. São homens e mulheres negros que se juntam para um momento de partilha. Trazem sobretudo material seu: poemas, histórias, apontamentos. Uma dupla de irmãos, Carlos Graça e Carla Lima, faz uma performance: ele diz a sua poesia, ela canta gospel. Encenam a intervenção. Os temas para este dia são macro e micro agressões. A maioria não fugirá da questão e relata experiências em nome próprio. Carla Fernandes, Alexandra Santos, Santiago d’Almeida, Michel Té (Te Abi Pequêrs Té), Luz Gomes, Apolo de Carvalho são alguns dos que trouxeram as suas palavras. O ambiente é descontraído, de festa mas também de intimidade. Junho, último domingo do mês. Estamos na Graça, em Lisboa, na Casa Mocambo, um espaço que serve cozinha africana e tem recebido algumas iniciativas culturais. As mesas são ocupadas por jovens, alguns estiveram na sessão de Março, mas há várias caras novas, e há também pessoas mais velhas. O tema é a família, e vão contar-se histórias de trabalhadoras domésticas ou falar de relações amorosas. Histórias, de novo, em nome próprio ou com personagens inventadas – que podiam muito bem ser reais. Quase nenhum dos participantes tem livros publicados. A maioria nem sequer tem um blogue ou site onde disponibiliza as suas criações porque geralmente aparecem e dizem poemas escritos de propósito para o evento, poemas que estavam na gaveta, poemas que estavam encravados. Entre Março e Junho aconteceram mais duas sessões de Djidiu “a herança do ouvido”, uma iniciativa da Afrolis – Associação Cultural onde participam poetas e contadores de histórias, ou quem esteja interessado na produção literária africana e negra. É sempre no último domingo do mês. As pessoas inscrevem-se e intervêm. Objectivo? “Produzir conhecimento sobre a própria realidade”. Porque a “experiência de vida como africanos / negros no mundo tem particularidades”, define-se. O Djidiu surgiu depois do Ciclo de Cinema Documental África Positiva, organizado na Casa do Brasil, em Fevereiro, também pela Rádio Afrolis. Criado em Abril de 2014, como aúdio blogue, o AfroLis – que agora é também uma associação – tem por missão divulgar a diversidade dos afrolisboetas. A passagem para o convívio surgiu porque queriam conhecer quem estava a aderir ao blogue, conta Carla Fernandes, a mentora. “Quisemos dar mais e receber mais”, explica, sentada numa das mesas do Tabernáculo, o local onde aconteceu o primeiro Djidiu público. A Afrolis reflecte sobre as experiências dos afrodescendentes negros em Lisboa através da rádio porque “é bom ter exemplos positivos, que é o que o audioblogue faz”. Mas “também é bom que as pessoas reflictam sobre a sua própria realidade”, e que o façam através da poesia, de contos ou de reflexões mais próximas da crónica explica. E é isso que se pretende também com o Djidiu. O tema do primeiro Djidiu, as micro e as macro agressões, surgiu para dar uma visão global da experiência dos afrodescendentes negros em Lisboa e reflectir de forma mais profunda sobre situações de racismo. Seguiu-se o tema da revolução e liberdade em Abril. Em Maio a temática foi África, Junho foi dedicado à família – segue-se o tema da beleza em Julho. O que são micro e macro-agressões? Um exemplo de micro agressão é pedirem para tocar e agarrar nos cabelos afro, diz Carla Fernandes, “porque o que está por detrás disso é a possibilidade de tocar no outro”, fazer dele “mais ou menos um objecto”, explica. “É uma coisa mínima. Mas quando se nega esse acesso, a micro-agressão pode-se tornar uma macro-agressão: ‘porque é que não me deixas tocar? Agora vou tocar mesmo, se não deixares vou-te bater…’”A apoiar esta actividade está o Grupo de Teatro do Oprimido, por isso todas as quartas-feiras o grupo reúne-se para trabalhar textos e discutir os temas. Levam autores como Noémia de Sousa ou Toni Morrison, autores de língua portuguesa e não só. Todas as sessões para o público são em locais diferentes porque a ideia é “mostrar que [nós, os negros] podemos ocupar os espaços em Lisboa”, diz. “Por isso é bom girar para nos habituarmos a entrar e a frequentar esses espaços”. “Basta/ Quero mudar de casta/ Quero sair desta vida que se arrasta/ posso? Posso agora dizer-te algo, patrão?” O poema Basta é da mentora da Afrolis. Falando agora como poeta, Carla Fernandes sente que a “a experiência de opressão”, “um historial manchado por humilhação, por exclusão” une este Clube dos Poetas Negros. “É uma experiência sofrida de formas diferentes, mas quando a trazemos à tona toda a gente tem um sentimento mais ou menos semelhante. Nem sequer são precisas muitas palavras. ”Jornalista e tradutora Carla Fernandes nota que a maioria do que é levado para “o palco” do Djidiu são “experiências transformadas em texto”, “não necessariamente poemas”. Há quem venha da spoken word, do hip-hop, da tradução, do contar histórias – tudo maneiras diferentes do que pode ser poesia. Basta/ Quero mudar de casta/ Quero sair desta vida que se arrasta/ Posso? Posso agora dizer-te algo, patrão?A pouco e pouco, o Djidiu começa então a formar-se como um Clube de Poetas Negros, que aliás era a ideia inicial do projecto. Apesar de haver pessoas brancas, o público é predominantemente formado por pessoas negras. “Há uma identificação com as temáticas e com os textos. Acho que faz sentido sublinhar o ‘poeta negro’ – se bem que sinto que há dificuldade em algumas pessoas em fazê-lo, sublinham mais a parte do africano. Mas o negro é a experiência comum a todos nós. ”Afrodescendente? Negro? Que palavra usar? Nenhuma é consensual, nota, mas afrodescendente “é um termo que tem potencial para ser uma categoria política, até porque é um termo que sai de um historial de luta”, acredita. O importante é “ir para a frente” com as questões comuns, acredita. A verdade é que é muito difícil separar a imigração da questão racial, pelo menos em Portugal. Há muita gente que nasceu em Portugal e é tratada como imigrante, há muita gente que se identifica mais com o país de origem dos pais, há muita gente que rejeita ser visto de outra forma que não como português. A nível institucional, a associação deparou-se com grandes dificuldades em concorrer a apoios, justamente por não se afirmar como uma entidade dedicada a imigrantes – não cabe, assim, nos apoios à imigração. Nascida em Angola, veio para Portugal com a família quando tinha dois anos. Criou o formato de áudio blogue com entrevistas semanais para dar voz aos entrevistados, fazê-los falar na primeira pessoa: “porque tantas vezes não falamos por nós”. Ela sente que se está a criar uma rede que não tem só a ver com a poesia, “o que é bom porque temos que criar espaços seguros para falar da experiência”. “Isso é muito importante, às vezes as pessoas não valorizam. No primeiro Djidiu uma pessoa verbalizou isso: ‘tenho este poema há anos, já fui a várias sessões de poesia, e nunca consegui ler porque pensava sempre que não era o lugar. Mas aqui sinto-me à vontade’, disse. E eu pensei: ‘é para isto que o Djidiu serve, para criar espaços seguros para nos podermos exprimir à vontade. ”De facto, não há assim tantos espaços como este. Carla Fernandes sentiu que era mesmo necessário criar algo assim. “Vai-se a muitos eventos, até sobre racismo, e quem fala mais são as pessoas brancas. E tu pensas: ‘então as pessoas que mais sofrem não estão a verbalizar porquê?’ Faltam espaços seguros. Não é para separar. É por uma questão de empatia, de olhar de reconhecimento. ”Entre 2008 e 2013, Carla Fernandes esteve ausente de Portugal, na Alemanha, e quando regressou notou uma grande diferença na “afirmação da identidade negra” em Lisboa, por isso acredita que este tipo de espaços e iniciativas estão e vão continuar a aumentar. “Ainda está numa fase inicial mas tem muito potencial”. As redes sociais ajudam muito: “Quanto mais acesso há ao que se passa noutros territórios, como Itália, Espanha, etc, onde há grupos que pensam nestas questões, mais se cria a noção de que não estamos sozinhos”. O Djidiu aproximou ainda mais os irmãos Carlos, 29 anos, e Carla, 27 anos. Nunca tinham trabalhado juntos. Carlos começou a escrever rap ainda novo com um MC da zona onde vivia, em Moscavide, Lisboa. As letras tinham sobretudo a ver com os problemas do bairro, com a realidade à sua volta. Por razões profissionais, parou. Os dois sempre ouviram música de Cabo Verde, de onde são os pais, e foram sendo influenciados pela mãe que escrevia. Carlos não podia ser rapper, mas podia dizer poesia falada. É um dos fundadores do Djidiu. Quando o Djidiu começou, convidou a irmã a juntar a sua voz de gospel. Tem muito a ver com criarmos o nosso espaço. Muitas vezes o pessoal pergunta: "por que é que os media não nos representam", ou X e Y não nos representam? Se temos capacidade, então vamos criar instrumentosCarla Lima: “Sempre fomos muito ligados à terra [Cabo Verde], era muito presente em casa. E sempre tivemos aquela coisa ‘de onde a gente vem’. Comecei a despertar para a questão de ser negra, africana, por causa do meu irmão. Via-o a estudar, interessei-me também e percebi que fazia sentido. Participei no primeiro Djidiu com a parte de música que adaptámos aos temas. Nunca tinha trabalhado com o meu irmão. Adorei, foi das melhores coisas que fiz até hoje”. Depois dessa estreia, Carla começou a escrever a sua poesia. “Escrevo sempre algo relacionado com África e com ser negra. O Carlos tem muito mais conhecimento da história. Eu uso sempre a minha experiência porque assim tenho a certeza do que estou a falar”. A ideia da Afrolis era dar voz a quem escreve e partilhar “o que é isto de ser negro, o que é ser africano”, lembra Carlos Graça. Vai vendo as pessoas que frequentam o Djidiu a consciencializarem-se de algumas situações de discriminação e a reagirem quando antes não o faziam. Nas sessões das quartas-feiras conversam muito sobre os temas, por vezes fazem os poemas em conjunto. Querem um ambiente familiar. No tema de Julho, os padrões de beleza, a ideia é questionar se “enquanto negros, realmente temos que seguir um padrão de beleza europeu”, por exemplo. “Sempre achei que era feia”, diz Carla Lima. “Tenho a pele clara, tenho os olhos claros, tenho o meu cabelo claro e mesmo assim nunca me senti integrada nos padrões de beleza”, confessa. O Djidiu surgiu da necessidade de criar “hábitos de pronunciação”, define. “Fala-se muito de África e dos negros mas não de nós para nós”. Carlos: “Tem muito a ver com criarmos o nosso espaço. Muitas vezes o pessoal pergunta: ‘por que é que os media não nos representam’, ou X e Y não nos representam? Se temos capacidade, então vamos criar instrumentos. Por isso o ciclo de África positiva: se os media nunca dão uma imagem positiva de África, então vamos mostrar nós para contrabalançar um bocado. ” Carla Lima completa: “Não é fantasiar, nem romantizar, mas mostrar o que há para as pessoas pensarem pela própria cabeça”. Está em pleno período de exames, e recebe-nos entre estudos e exercícios na Faculdade de Arquitectura, da Universidade de Lisboa. O edifício fica no alto da Ajuda, com vista para o rio Tejo. Lá dentro, imensos estiradores e desenhos, jovens conversam e mexem em cartolinas e papel. Porque a morte gosta de ausentar ânimas e de causar sofrimentos/ Porque Nelson Mandela gosta do sossego e da liberdadeEle anda sempre com a fotografia da mãe ao peito. Michel Té, ou Te Abi Pequers Té (na foto de capa), é um dos que está ligado à fundação do projecto Djidiu – natural da Guiné-Bissau, foi ele quem sugeriu o nome, por causa do enquadramento que estavam a querer dar à plataforma. “Djidiu é crioulo da Guiné-Bissau. O papel do Djidiu é muito vasto. Queríamos intervir e encontrei na palavra a identidade do grupo: Djidiu não é aquele que se limita a contar a história. É poeta, historiador, visionário político, contador de histórias, recita versos. Músico, filósofo. Escolhemos intervir pela oralidade, que é a função do Djidiu, uma biblioteca falante. Também queremos transmitir pela oralidade aquilo que sabemos”. Este poeta não data as coisas que faz, “porque posso pensar hoje e escrever daqui a um ano”, então nesse caso, de que data é o poema? Já participou em um par de antologias. Também não nos quer dizer a idade: “Quando é que eu nasci? Quando saí da barriga da minha mãe? Quando estava no útero? É necessário para a sociedade mas é uma banalidade. ” Para ele, “uma das coisas mais brilhantes no Djidiu é a partilha”. Se Nelson Mandela morresse era bem feito é um dos seus poemas. "Porque a morte gosta de ausentar ânimas e de causar sofrimentos Porque Nelson Mandela gosta do sossego e da liberdade Porque Deus é perfeito e conhece todo o nosso gosto Se Nelson Mandela morresse era bem feito Porque um BOM-GRANDE LIDER merece toda eternidade"Apolo de Carvalho tem 26 anos e trabalha em restauração. Está a tirar uma pós-graduação em Estudos Estratégicos e de Segurança e tem a ambição de fazer doutoramento em breve. Chegou à Afrolis através de Herberto Smith, o fotógrafo do aúdioblogue. Acordai, povos e nações/ Despertai e recordai as vossas grandes civilizações/ Mergulhai nús, livres e sem temorEscreve em português e em crioulo de Cabo Verde, onde nasceu. “Renascimento africano” é um dos seus poemas: “Acordai, povos e nações/ Despertai e recordai as vossas grandes civilizações/ Mergulhai nús, livres e sem temor (…) Parti em safari de introspecção tal iniciante destemido”. Viveu em França, e foi lá e em Portugal que descobriu a “África de Cabo Verde”. Escreve sobre a sua história e a necessidade de regressar às origens, e cada vez mais prefere dizer os seus poemas em crioulo cabo-verdiano. “Não existia um espaço como este, que convoca todos os afrodescendentes e africanos a contarem a sua história”, comenta sobre o Djidiu. “É importante porque acaba por ser um momento de vivência”, diz. É “como se fosse aquela grande árvore em África em que os anciões e os novos iam falando”, compara. “Acabamos por levar coisas e discutir temas polémicos – o mais interessante é que conseguimos desconstruir as nossas ideias de forma super harmoniosa. ”Os encontros têm ainda outra função: dar argumentos para a defesa de situações de racismo. “Arma-nos intelectualmente, dá-nos armas para saber como responder e defender-nos de situações dessas”, comenta. Depois há muita gente que não é africana que vai ao Djidiu, ouve e passa a palavra. “O mal de muitas associações africanas é que se fecham entre os membros, temos a mesma luta mas parece que estamos acantonados e esquartejados. A Afrolis procura trazer pessoas. ”“(…) Nesta linguagem de partes, que parte as pessoas em bocados, metades, pedaços, como se as pessoas não fossem por inteiro. Eu também sou negra porque há parte de mim que vem da negritude, sou parte de algo que me querem fazer acreditar não ter lugar em mim”. Escreveu poemas como este, Partes, que leu no Djidiu. E apesar de regularmente o fazer, é uma descrente na sua obra, nem se se considera poeta. Identifica-se mais com a palavra de intervenção, com a poesia falada, com slam. Alexandra Santos, Alexa, 29 anos, tem um blogue Queering Style, “espaço queer feminista que tem como missão a visibilidade de discursos e de identidades variadas” – começou como um blogue e é hoje um site e “sonho tornado realidade”. Tem várias colaborações e vertentes, da escrita à imagem. Nesta linguagem de partes, que parte as pessoas em bocados, metades, pedaços, como se as pessoas não fossem por inteiro. Eu também sou negra porque há parte de mim que vem da negritudeNo Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, perto do local onde trabalha, Alexa diz-nos que o Djidiu é um espaço “muito importante” para fazer sentir às pessoas que podem ter voz, que há outras pessoas como elas, para sentirem “que não estão sozinhas no mundo”. Especialmente por ter um lado “genuíno” e despretensioso que faz quem lá vai sentir-se à vontade para levar algo que está menos acabado ou que não considera “bem poesia”, por exemplo. A afirmação de um Clube dos Poetas Negros importa, defende. Sobretudo porque “dentro da nossa negritude – a minha mais clara do que outras – temos dificuldade em encontrar pessoas com quem nos identificamos, pelo menos no meu espaço a maioria das pessoas não são negras”. Dá o exemplo do cabelo, e do facto de “ser assediada” muitas vezes por causa ele, uma experiência que é facilmente e rapidamente partilhável e compreendida por quem passa por ela. Falar sobre o tema, escrever, e intervir é dar voz a estas questões e aos próprios negros, diz. “Tudo isto é criação de espaço e movimento. Nesta construção de comunidade – as coisas acontecem-me a mim e não só a mim – o Djidiu é importante. E é importante nas suas especificidades. Nem todos os jovens negros se irão identificar com um espaço como aquele – mas é bom que exista, e há outros que se identificam, e por isso pode-se transformar numa espécie de família. ”Alexa tem mais poemas sobre a questão racial. É um tema que a faz reflectir através de vários pontos de vista. Por ser “mais clara” sente “discriminação dos dois lados”: sendo que “não se pode chamar discriminação quando um grupo minoritário (negros) não se sente à vontade com alguém que tem obviamente mais privilégio (brancos)”, defende. A negociação “que faço neste corpo” é “às vezes de muito esticar” e constantemente de “educar e ver onde me encaixo”, confessa. “Não sou branca efectivamente, mas depois também não sou negra efectivamente. Tenho constantemente que me explicar. Quando as pessoas dizem: ‘ah, olho para ti e não te vejo como mulher negra’. E em espaços de mulheres negras me dizerem: ‘não és branca? Já vi muitas mulheres brancas com o teu cabelo’. E a minha negritude não é o meu cabelo. ”São estas situações, quando a angustiam, que se tornam motor para escrever: “Entendo as tensões que a minha própria palavra trazA mãe, mais escura, cabo-verdiana, não se posiciona como mulher negra – ou pelo menos Alexa nunca fala desta questão nem com a mãe, nem com as irmãs (é trigémea). “Porque não tenho mais amigos negros? É uma busca. E busca também para quebrar estereótipos que tinha na minha cabeça. Mas é um movimento consciente. Sou de Loulé, e durante muito tempo éramos as únicas miúdas mais escuras da turma, tanto que o nosso nome na escola eram as pretas: a preta 1, a preta 2 e a preta 3. Houve todo um exercício da minha parte para desconstruir isto – coisa que as minhas irmãs nunca fizeram. ”Perguntam-lhe qual é o problema de se identificar como uma mulher branca. Ela responde: “A questão é que o meu corpo não é branco. Isto custa explicar. Há dias que estou com vontade, outros em que só quero que a outra pessoa compreenda!”Para o Djidiu sobre a revolução e liberdade Luz Gomes criou um poema que se chama lIbErdAdE RevOlUcIOnÁrIA dO CoRPo. Lê-se assim: “Não acredito em nenhuma liberdade revolucionária que não passe pelo meu corpo de menina-mulher da pele preta… Que não venha das minhas entranhas de vida sanguínea… (…) Não acredito em nenhuma liberdade revolucionária que não poetise a reinvenção fragmentada de cotidianos do meu corpo de menina-mulher da pele preta. . . ”Brasileira do Recôncavo baiano, a viver em Portugal há dois anos, Luz Gomes está a fazer um doutoramento em museologia sobre galerias de arte que trabalham com artistas angolanos em Lisboa. Em quase todos os espaços é confundida com uma africana. É uma questão “perversa”, considera: as pessoas não a associam ao estereótipo da brasileira e “olham para o meu fenótipo e atrelam a África”. Não acredito em nenhuma liberdade revolucionária que não passe pelo meu corpo de menina-mulher da pele preta…Leitora de escritores como Manoel de Barros, Anaïs Nin, Odete Semedo, Toni Morrison, Rainer Maria Rilke, Pablo Neruda, é autora de um blogue que se chama Etnografias poéticas de mim. Tem ido aos encontros do Djidiu desde o princípio, com alguns intervalos, e lá sempre leu os seus textos. “Acredito no Djidiu como espaço importante nessa discussão que não é simplesmente o texto, mas esse corpo que fala – eu sempre penso a partir do corpo. Porque todos os processos de opressão que a gente sofre vêm pelo corpo: é o corpo que sente física ou emocionalmente. É interessante pensar nos corpos negros nesses espaços do centro [de Lisboa], falando poesia e de questões que atingem a população negra”. Não há maneira de não comparar a questão racial em Portugal e no Brasil, nota. Algumas coisas são comuns. “Sempre nos vêem como bons bailarinos, bons músicos, mas a escrita nos é cara. A gente nunca está sendo colocada nesse patamar – e quando escreve, a qualidade do trabalho é sempre questionada. ”Por isso o Djidiu é importante para trazer estas questões, bem como a liberdade de, como negra, falar da questão do racismo mas também de amor ou de outra coisa qualquer – algo que Luz Gomes faz na sua poesia, que anda muito à volta de temas como o amor e a mulher. “Não consigo pensar nessas questões fora do meu corpo, porque quando sou discriminada é por causa do meu corpo. ”Se por um lado não há forma de pensar Lisboa senão como um lugar onde há música feita por africanos e seus descendentes, noutros espaços nota que é a única negra. “Tem uma população negra no centro que circula mas não está presente em alguns espaços. Ou tem essa população na música mas não na poesia. ”Djidiu pode ser espaço onde as pessoas se sintam à vontade e falem de forma aberta. “A gente tem que se ver em diferentes espaços: eu não tenho que abrir o jornal e ver a população negra atrelada à criminalidade. A gente quer se ver de outras formas e a partir dos nossos olhares”, continua. Em Portugal e Brasil os negros têm que procurar um espaço, e muitas vezes isso é “mal interpretado”, continua. As pessoas dizem “a arte é para todo mundo”, não se deve separar. “Mas se os indivíduos na sociedade não são tratados de forma igual, se a mulher não é tratada de forma igual, se negro não é tratado de forma igual, como me quer convencer que a produção dessas pessoas será vista de forma igual?”Naquela tarde de Março do primeiro Djidiu de que Carla Fernandes falava, foi Santiago d’Almeida Ferreira quem tomou a palavra no palco e desabafou que já tinha estado noutros encontros literários mas nunca tinha se tinha sentido à vontade para ler o seu Foge do Bandido. Ali leu: “Queres? Queres mesmo? Queres mesmo tirar me a pele? Escaldar-me a cor, e pelar me a voz? Queres mesmo que seja escuro, negro, preto e fusco? Queres que corra, tente fugir? Que me coce com palha-de-aço e beba água das poças de óleo que a terra derrama?”Até há pouco tempo não se considerava poeta. Mas no blogue Conjecturações Desmielinizantes podemos ler vários dos seus poemas. Nem todos falam das questões da negritude. Santiago d’Almeida Ferreira, 27 anos, nascido em Viseu diz ter sido o primeiro português a admitir que é intersexo – algo a que o senso comum chama “erradamente” de “hermafrodita”. “O intersexo é um espectro muito grande”, e não “é apenas a genitália”. “Queres? Queres mesmo? Queres mesmo tirar me a pele? Escaldar-me a cor, e pelar me a voz? Queres mesmo que seja escuro, negro, preto e fusco?A viver há dois anos em Lisboa, é artivista – um artista e activista pelo anti-racismo e feminismo. Foi bailarino, coreógrafo, trabalhou em restaurantes e está neste momento a estudar Antropologia. Co-fundou em 2015 a sua associação, Acção pela Identidade, que se dirige à defesa e estudo da diversidade de género e de características sexuais, incluindo a experiência das pessoas trans e intersexo, cruzadas com questões de raça e etnia, por exemplo. “Trabalhamos na primeira pessoa, e isso significa que somos especialistas das nossas próprias causas”, diz. “É muito importante haver alianças entre comunidades, e a própria comunidade LGBT perceber que há pessoas negras – estamos a trazer essa interseccionalidade e fomos pioneiros nisso”. Isto porque também se depara com “bastante racismo no activismo LGBT dominado por pessoas brancas”, queixa-se. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Desde sempre que sofre discriminação, desabafa. “O racismo sempre foi muito presente. Nasci em Portugal, o meu pai é de Angola e a minha mãe de Viseu e não fui criado com os meus pais biológicos. Na escola chamavam-me preto”. No Djidiu encontrou muita gente com quem se identificou. Grande parte do seu background veio de África, por isso não tem problemas em se identificar como afrodescendente. “Por ter consciência que a minha pele era negra, diferente, essa questão esteve sempre presente nos meus textos. Não podia dizer noutras plataformas que sofri racismo no trabalho. Mas na escrita podia, de forma quase escondida, transmitir essa dor e sofrimento – hoje escrevo menos na base da dor e mais na base da reflexão”. De qualquer maneira, “está marcado no meu corpo ser inter sexo e ser negro, é uma pele que não dispo”. No Djidiu identificou-se mais com os poemas que falavam sobre a actualidade. Nota que ainda “existe uma grande necessidade de falar sobre racismo”. “Estamos a querer falar, a querer gritar, a dizer: ‘Hey, temos andado aqui, porque não estamos a ter o mesmo tempo de antena?’ Senti isso. Estávamos todos a querer dizer a mesma coisa, porque foi isso que eu fui fazer. Há um espaço para eu falar. Enquanto afrodescendentes estamos nesse momento do ‘grito’ e de querer falar. ”
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano