ANC à frente na contagem mas com menos votos do que em 2009
Primeiros resultados das legislativas de quarta-feira atribuem ao partido 59% dos votos. (...)

ANC à frente na contagem mas com menos votos do que em 2009
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-05-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Primeiros resultados das legislativas de quarta-feira atribuem ao partido 59% dos votos.
TEXTO: Com um terço dos boletins contados, o Congresso Nacional Africano (ANC) soma 59% dos votos inscritos nas eleições de quarta-feira na África do Sul, um resultado aquém do conseguido pelo partido em 2009, mas suficiente para garantir a reeleição, no Parlamento, do muito contestado Presidente Jacob Zuma. Segundo os dados divulgados ao início da manhã pela comissão eleitoral, 72% dos 25 milhões de eleitores inscritos participaram nas legislativas, as primeiras em que puderam votar os sul-africanos nascidos já depois do fim do apartheid, em 1994, realizadas apenas alguns meses após a morte de Nelson Mandela. Os responsáveis confirmaram também que a votação decorreu sem incidentes, apesar do atraso na abertura de algumas mesas de voto. Com 31% dos votos contados, o ANC obtinha um resultado em sintonia com o previsto pelas sondagens, mas significativamente abaixo dos 66% conseguidos nas legislativas anteriores. Os escândalos que rodeiam o Presidente Jacob Zuma – acusado de ter gasto indevidamente 17 milhões de euros na construção de uma mansão na sua terra natal –, o desemprego de 25%, a insegurança ou a má qualidade dos serviços públicos são algumas das razões apontadas para o ligeiro declínio daquele que continua a ser, para a esmagadora maioria da população negra, o principal responsável pelo fim do regime de segregação racial. Tal como indicavam as sondagens, a Aliança Democrática (AD), liderada por Helen Zille, antiga activista anti-apartheid e agora primeira-ministra da província do Cabo Ocidental, aumentou a sua votação, conseguindo 27, 4% dos votos. O recém-formado Economic Freedom Fighters (EFF), o partido do ex-líder da Liga da Juventude do ANC Julius Malema, obtinha 4, 2%. Vários analistas prevêem que uma votação abaixo dos 60% deixará desconfortável o ANC, mas os resultados agora divulgados não são ainda significativos da votação nas zonas rurais, que chegam habitualmente mais tarde e são tradicionalmente favoráveis ao partido, refere a AFP. O escrutínio deverá estar concluído sexta-feira, mas os resultados definitivos só devem ser anunciados no fim-de-semana, para garantir que todas as queixas são avaliadas. Seja qual for o desfecho, a maioria garante a reeleição de Zuma, o terceiro Presidente negro da África do Sul e também o mais polémico. A votação no Parlamento está agendada para dia 21 deste mês.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Análise: Gaza, o ‘Orientalismo’ e o extermínio de minorias no Magrebe e Médio Oriente
O conflito Israelo-Palestiniano só terá uma solução definitiva se passar as respectivas fronteiras e for abrangente, cuidando das minorias étnicas e religiosas vítimas de violência, desde a Mauritânia ao Iraque, defende o autor. (...)

Análise: Gaza, o ‘Orientalismo’ e o extermínio de minorias no Magrebe e Médio Oriente
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-07-27 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20140727170259/http://www.publico.pt/1664199
SUMÁRIO: O conflito Israelo-Palestiniano só terá uma solução definitiva se passar as respectivas fronteiras e for abrangente, cuidando das minorias étnicas e religiosas vítimas de violência, desde a Mauritânia ao Iraque, defende o autor.
TEXTO: A faixa de Gaza vê-se, uma vez mais, desde o passado dia 8 de Julho de 2014, envolvida numa espiral de violência. Analisado de uma perspectiva histórica, este conflito é apenas mais uma conflagração num longo ciclo de incivilidade. Também cíclicas são as inúmeras acções de protesto contra a ocupação israelita, aparentemente assentes na mais pura ética humanitária. Duas semanas de combates provocaram já centenas de mortos, na sua maioria civis. Uma estatística macabra que irá seguramente aumentar à medida que prossegue a invasão terrestre de Gaza. Contudo, na mesma região, no Iraque, o autoproclamado Califado Islâmico já liquidou milhares de xiitas, que são igualmente oprimidos no Bahrain, no Iémen e nessa verdadeira Meca da intolerância, a Arábia Saudita. Ainda no Iraque, as populações Assíria e Yazidi não só vivem sob o jugo da ocupação há largas centenas de anos, mas também se encontram à beira da extinção. Em 2007, cerca de 800 membros da minúscula comunidade Yazidi, com aproximadamente meio milhão de residentes, foram chacinados num único dia (14 de Agosto), numa série apocalíptica de ataques bombistas. Nem uma voz de protesto se fez ouvir na Europa. São, com certeza, muito poucos os activistas pró-Palestina que sabem sequer quem são os yazidis ou os assírios, estes últimos uma comunidade autóctone que precede as invasões árabes e que testemunhou o êxodo de cerca de um milhão de conterrâneos durante a última década, num universo total de 1, 5 milhões de habitantes. O seu último enclave, a histórica planície de Nínive, encontra-se à mercê deste sinistro Califado. Isto após metade da população ter sido exterminada pelo governo turco durante o Genocídio Arménio, Grego e Assírio, que ceifou 2, 5 milhões de vidas e que a Turquia continua a negar até aos dias de hoje. Todavia, informação em primeira mão encontra-se à distância de um clique na Internet. A título de exemplo, é possível saber mais sobre os assírios através da Assyrian International News Agency, o Seyfo Center ou até via Facebook. Basta pesquisar a página ‘A Demand for Action’ e/ou contactar o seu gestor, Mardean Isaac, que colabora com o jornal britânico The Guardian. Igualmente ignorados são os coptas do Egipto, periodicamente hostilizados por via de ataques bombistas e linchamentos públicos, com o beneplácito das forças policiais que, em várias ocasiões (e com a aquiescência do poder político), tomaram parte nessas mesmas chacinas (exemplo recente, entre muitos: o massacre de Maspero, em 2011). Desta forma, a comunidade Copta do Egipto arrisca-se a seguir o mesmo caminho dos coptas sudaneses ou dos mandeus e shabaks do Iraque: a extinção. Após expurgar o país de minorias religiosas durante o século XIX, o Sudão, onde impera um regime teocrático presidido por Omar al-Bashir, formalmente acusado de genocídio e alvo de um mandato internacional de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional em 2009, vira-se agora contra a população negra (por exemplo, no Darfur) perante o silêncio ensurdecedor da Liga Árabe, sempre tão activa no que toca ao conflito Israelo-Palestiniano. Um autismo que se estende à Mauritânia, país no qual a escravatura apenas foi abolida em 1981 mas onde ainda se mantém por via de um sistema de castas, encabeçado pela minoria árabe. Mais: perante a apatia da vasta comunidade de activistas ‘orientalistas’ (vide próximo parágrafo), a Mauritânia dá-se ao luxo de manter sob ocupação, desde 1975, um terço do território do Saara Ocidental, enquanto Marrocos anexou os restantes dois terços, isto em clara violação da deliberação do Tribunal Internacional de Justiça. O mesmo se passa com a autoproclamada República Turca do Chipre do Norte que, desde 1974, tem abertamente menosprezado as resoluções da ONU. Ambas as ocupações continuam a ser ignoradas, ao passo que a ocupação de Gaza e da Cisjordânia monopoliza a atenção de uma babel de Organizações Não Governamentais (ONG). A pergunta é inevitável: porquê? Numa escala de carnificina, o sofrimento assírio e yazidi é incalculável: uma coisa é ocupação, outra completamente diferente é extermínio. É esta hipocrisia, fruto da ignorância, que permite a existência de outras muito mais devastadoras, como o facto de a Turquia negar o Genocídio Arménio-Grego-Assírio, ocupar parte do Chipre e Curdistão, apoiar islamistas na Síria e ainda arrogar-se o direito de censurar Israel. Ironicamente, o Estado de Israel é também um produto da intolerância árabe, especificamente do êxodo forçado de um milhão de judeus de países de maioria muçulmana que posteriormente se enraizaram na Palestina e permitiram a expansão ilegal e manu militari das fronteiras hebraicas propostas pela ONU em 1947, para as actuais, de 1967.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Violência continua e Obama envia procurador-geral para Ferguson
Presidente diz que estará atento para ver se a presença da Guarda Nacional "está a ajudar ou a fazer piorar a situação". Foram detidas 31 pessoas em Ferguson durante a noite e, em protestos em St Louis, até uma sobrevivente do Holocausto foi parar à prisão. (...)

Violência continua e Obama envia procurador-geral para Ferguson
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.050
DATA: 2014-08-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Presidente diz que estará atento para ver se a presença da Guarda Nacional "está a ajudar ou a fazer piorar a situação". Foram detidas 31 pessoas em Ferguson durante a noite e, em protestos em St Louis, até uma sobrevivente do Holocausto foi parar à prisão.
TEXTO: Mais de uma semana depois da morte do jovem Michael Brown, atingido com vários tiros por um polícia, continua a haver manfiestações violentas na cidade de Ferguson, Missouri. Um recolher obrigatório foi estabelecido e cancelado, e a Guarda Nacional, força de reservistas do Exército e Força Aérea, foi chamada para reforçar a segurança. Num protesto na vizinha cidade de St Louis foram detidos vários manifestantes, incluindo uma sobrevivente do Holocausto de 90 anos. O Presidente norte-americano, Barack Obama, decidiu enviar o procurador-geral (equivalente a ministro da Justiça) Eric Holder para Ferguson com a missão de supervisionar o caso. Obama disse ainda que iria estar atento à deslocação da Guarda Nacional e se esta “está a ajudar ou a fazer piorar a situação”. O Presidente avisou o governador do Missouri, Jay NIxon, que o uso desta força deve ser "limitado", distanciando-se da decisão de utilizar a Guarda Nacional para reprimir os protestos. “Não há desculpa para o uso de força excessiva pela polícia”, disse o Presidente. Mas enquanto criticava a polícia que usou violência contra os manifestantes, criticou também a "pequena minoria" dos que "saíram para rua com a intenção de explorar a fúria e drustração pela morte de Brown para fazer pilhagens nas lojas de Ferguson". Na noite passada, houve mesmo disparos contra a polícia de Ferguson, uma cidade de 21 mil habitantes que é subúrbio de St Louis. A polícia garante não ter usado as armas: "Nem uma bala foi disparada por nós, apesar de termos estado sob intenso ataque numa zona, que incluiu o uso de cocktails molotov", garantiu o capitão Ron Johnson. A actuação da polícia, bastante militarizada, gerou críticas por estar a aumentar a tensão e provocar violência em protestos que começam por ser pacíficos. Vários jornalistas foram detidos e criticaram o uso excessivo de força pelas autoridades policiais. Na segunda-feira, o correspondente do jornal britânico Guardian notava que a polícia tinha retirado os jornalistas do local “para que não haja testemunhas independentes do que acontece aos manifestantes”. Noite após noite, o mesmo quadro repete-se em Ferguson: manifestantes que pedem “justiça”, e que gritam o slogan: “Mãos ao ar, não disparem”, quando na véspera uma autópsia privada realizada a pedido da família por um antigo médico legista de Nova Iorque mostrou que a vítima foi atingida por seis tiros, dois dos quais na cabeça. Brown, negro, estava desarmado. Na estação norte-americana MSNBC, a comentadora Melissa Harris-Perry lembrou que entre 2006 e 2012 “um polícia branco matou uma pessoa negra pelo menos duas vezes por semana” nos EUA. Muitos estavam desarmados. Que foto escolheriam os media?O caso expôs problemas de discriminação em Ferguson, onde os negros são parados muito mais vezes do que os brancos em operações de rotina. Todos já experimentaram o que quer dizer “conduzir sendo negro”. Apesar do problema ser mais agudo neste local (com uma maioria de 70% de população negra, a força policial tem três negros entre 53 polícias), o caso está a provocar ondas a nível nacional. O facto da fotografia de Brown escolhida nos media ter sido não a do dia em que recebeu o diploma do liceu (o graduation day) mas sim uma em que aparecia mal encarado, levou milhares de pessoas a partilhar no Twitter qual seria a sua foto que os media tirariam das suas páginas de Facebook, caso fossem mortos a tiro pela polícia com a hashtag IfTheyGunnedMeDown – a jovem de uniforme de soldado sorrindo ou num grupo que parecia estar numa festa rija de cigarro e bebida na mão? O jovem de sorriso bem-comportado com a família ou a fazer um sinal de "v" de vitória com ar de desafio para a câmara?Enquanto isso, em St Louis, a capital do estado, um grupo de manifestantes foi detido, incluindo uma sobrevivente do Holocausto de 90 anos, Hedy Epstein. Epstein, que vive em St Louis depois de ter emigrado para os EUA em 1948 (após a guerra viveu em Inglaterra e voltou à Alemanha para ser testemunha no processo de Nuremberga), é uma conhecida activista anti-guerra e defensora dos direitos dos palestinianos. O protesto foi pacífico, e Epstein, junto com outros oito manifestantes, foi detida por não ter seguido as ordens da polícia para dispersar. “Faço isto desde que sou adolescente”, disse Epstein em relação a protestar. “Não pensei que tivesse de o fazer aos 90 anos. Temos de enfrentar isto hoje para que as pessoas não tenham de fazer isto aos 90 anos”, disse ainda antes de ser levada pela polícia.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Protestos revelam uma divisão geracional na luta pelos direitos cívicos
Os líderes políticos da comunidade afro-americana não dizem nada aos mais jovens. (...)

Protestos revelam uma divisão geracional na luta pelos direitos cívicos
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-08-20 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20140820170208/http://www.publico.pt/1666967
SUMÁRIO: Os líderes políticos da comunidade afro-americana não dizem nada aos mais jovens.
TEXTO: A crise racial em Ferguson, Missouri, revelou uma divisão na comunidade negra, que tem uma base geracional, de classe e da falta de visão política oferecida pela política afro-americana da era de Obama. Quando perguntaram a um jovem de St. Louis quem era o líder dos protestos que não pararam desde a morte de Michael Brown – que levaram o governador do Missouri a declarar o estado de emergência e o recolher obrigatório – ele apenas respondeu: “Temos um líder? Não. ” E a seguir sugeriu que o martirizado Brown talvez fosse o melhor exemplo de liderança para os jovens zangados e alienados de Ferguson. Os protestos têm decorrido em duas vias separadas. Por um lado, líderes dos direitos cívicos organizaram marchas não violentas. Por outro, jovens manifestantes, e alguns desordeiros, tiveram acções violentas e saquearam outras zonas da cidade. Líderes como Jesse Jackson e Al Sharpton estiveram em Ferguson, mas os seus apelos à calma não foram eficazes. Ironicamente, o negro que teve uma liderança mais visível nesta crise foi o capitão da polícia estadual de trânsito Ron Johnson, cujas presença forte, mas sensível, tem ajudado a desarmadilhar a situação. Não devia ser surpreendente que os jovens de Ferguson recusassem os apelos à não-violência. Na era da luta pelos direitos cívicos, houve incidentes violentos esporádicos em que se envolveram jovens negros americanos, indignados com o racismo e a pobreza, que não conseguiam ou não queriam comprometer-se com a disciplina da não-violência. Martin Luther King enfrentou estes episódios em Birmingham e Memphis e foi assobiado quando visitou Watts, após a rebelião desta cidade, em 1965. O que torna a situação de Ferguson diferente do que se passava nos anos 1960 é que não existe nenhum Stokely Carmichael nem Panteras Negras para conseguir chegar até aos jovens. Estes usaram a linguagem da violência para expressar a raiva e a decepção. Não se enganem: o homicídio de Brown não é a verdadeira origem da violência em Ferguson, mas antes a faísca que a ateou. A pobreza, a segregação, o desemprego e um clima de racismo anti-negros assombram esta pequena cidade nos subúrbios de Saint Louis. “Os motins são a língua dos que não têm voz” e são oprimidos, lembrou-nos King. Por isso, não é surpreendente que os jovens negros de Ferguson não consigam identificar um líder. Os líderes políticos negros nacionais da era da luta pelos direitos cívicos têm tentado manter a ligação com as gerações mais novas, mas esbarram nas limitações de recursos e nas capacidades de chegar às classes mais desprivilegiadas. Esta fronteira é geracional, à primeira vista, mas também tem a ver com a classe social. O mundo de milhões de jovens negros americanos, que não têm grande acesso à educação, é bastante simples e acaba sempre em desvantagem para eles: os negros levam tiros na rua, e não podem ter qualquer esperança de obter justiça. Na era de Obama, estes jovens acham as lições do tempo da luta pelos direitos cívicos cada vez mais difíceis de entender. A frequência com que a polícia mata homens negros, a presença policia militarizada, inspirada nos modelos desenvolvidos por causa da guerra no Iraque, e a persistência até a exaustão da segregação racial tornam vazio qualquer discurso sobre progresso em questões raciais. Tudo isto deixa os líderes dos direitos civis em apuros. Não querem criticar demasiado o que tem feito o Presidente Barack Obama sobre as questões raciais e de pobreza, sabem que o Procurador-Geral Eric Holder é um aliado. Mas, e isto é o mais importante, aqueles por quem dizem falar – a juventude negra que saiu para as ruas de Ferguson na última semana – acham as vozes destes líderes indistinguíveis do barulho produzido pelos políticos brancos, que só a violência sem restrições consegue fazer parar. Historiador, Universidade de TuftsExclusivo PÚBLICO/The Washigton Post
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte homens guerra homicídio violência educação negro racismo comunidade social pobreza desemprego negra
"Esta é a pior tragédia humanitária do mundo"
A maior seca dos últimos 60 anos afecta a Somália, o Quénia, a Etiópia, o Uganda e o Djibuti. "Há décadas que não vimos nada assim", contam os responsáveis das ONG no terreno. (...)

"Esta é a pior tragédia humanitária do mundo"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 | Sentimento -1.0
DATA: 2011-07-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: A maior seca dos últimos 60 anos afecta a Somália, o Quénia, a Etiópia, o Uganda e o Djibuti. "Há décadas que não vimos nada assim", contam os responsáveis das ONG no terreno.
TEXTO: Sainab Yusuf Mohamed partiu com os filhos e calcorreou centenas de quilómetros à procura de ajuda. "Não tínhamos nada para comer". Quando chegou a Bardhere, no Sul da Somália, contou à Reuters que um dos seus filhos não resistiu. "Depois, quando estávamos a enterrar o seu corpo, o meu segundo filho também morreu". Não tinha nada, perdeu tudo à procura de alguma coisa. Fatuma também deixou a Somália, caminhou um mês com os quatro filhos, de três a dez anos, para tentar chegar a um campo no Quénia. Fez mais de 400 quilómetros e até levou as suas 15 cabras, mas viu-as morrer pelo caminho, uma a uma. "Estava muito calor, havia poucos abrigos", contou a um activista da Save the Children, que depois repetiu a história ao diário britânico Independent. "Deixei o meu marido, não sei se o volto a ver. " Sainab Mohamed e Fatuma arriscaram tudo para chegar a Dadaab, no Norte do Quénia, um campo preparado para receber 90 mil pessoas. Agora é o maior campo de refugiados do mundo, vivem lá 382 mil pessoas e a hemorragia está longe de estancar. Mais de 54 mil atravessaram a fronteira na Somália para procurar ajuda, só em Junho. Por cada dia chegam ao campo de Dadaab pelo menos 1400 pessoas, e outras 1700 pedem ajuda no campo de Dolo Ado, na Etiópia. Mais de metade das crianças que chegam estão subnutridas. Num só campo, escreveu ontem o Independent, estão a morrer 60 bebés por dia. Dos 7, 5 milhões de habitantes da Somália há 2, 8 milhões a precisar de ajuda urgente, segundo a ONU. A seca não é uma realidade estranha no Corno de África, mas este ano as chuvas de Abril e Maio chegaram tarde e foram um terço do habitual. É a pior seca das últimas seis décadas: afecta a Somália, Quénia, Etiópia, Uganda e Djibuti, 12 milhões de pessoas segundo as estimativas de organizações humanitárias, mais do que toda a população de Portugal. Os alimentos são poucos e o preço dos que existem disparou. Volta a falar-se de fome, muita fome. Tragédia inimaginável"É uma tragédia humanitária de proporções inimagináveis", disse o responsável do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), António Guterres, que na sexta-feira visitou um campo de refugiados somali na Etiópia. "Esta é hoje a pior tragédia humanitária do mundo. " "Há décadas que não vimos nada assim. Funcionários endurecidos por anos de trabalho choram perante o que vêem", afirmou ao Independent Louise Paterson, directora da organização não governamental britânica Merlin na Somália e no Quénia. Nos campos geridos pela ONU há cada vez mais dificuldades em garantir os apoios mais essenciais, como o acesso à água e a condições sanitárias. "Inúmeras pessoas" nem chegam aos campos porque morrem pelo caminho, segundo o ACNUR, e ao alerta de Guterres juntam-se os de diversas outras organizações humanitárias. Num comunicado conjunto, o Fundo da Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Programa Alimentar Mundial e a ONG Oxfam apelaram a um maior apoio para colmatar os efeitos da seca "que expõe milhões de homens, mulheres e crianças à devastação da fome e da subnutrição". "Mais de 50 por cento das crianças que chegam aos campos da Etiópia estão num estado crítico de subnutrição e temos cada vez mais informações de crianças que morrem de fome no trajecto", disse a porta-voz do ACNUR, Melissa Fleming. Outras chegam tão fracas que acabam por morrer nas primeiras 24 horas. Há zonas da Etiópia em que o preço do milho duplicou desde Maio, e na Somália chega a pagar-se mais 240 por cento pelo sorgo vermelho.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
NATO nega ter deixado morrer migrantes no Mediterrâneo
A NATO desmentiu “categoricamente” a acusação, feita pelo jornal britânico "The Guardian", de ter deixxado morrer de 61 migrantes africanos, que foram deixados à sua sorte num barco no Mediterrâneo, depois de alertarem a Guarda Costeira italiana e terem passado por um porta-aviões da Aliança Atlântica. (...)

NATO nega ter deixado morrer migrantes no Mediterrâneo
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-05-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: A NATO desmentiu “categoricamente” a acusação, feita pelo jornal britânico "The Guardian", de ter deixxado morrer de 61 migrantes africanos, que foram deixados à sua sorte num barco no Mediterrâneo, depois de alertarem a Guarda Costeira italiana e terem passado por um porta-aviões da Aliança Atlântica.
TEXTO: Segundo o diário britânico, a embarcação com 72 passageiros, incluindo mulheres, crianças e refugiados políticos, tinha saído de Trípoli, Líbia, para a ilha italiana de Lampedusa quando se viu em apuros. Fizeram soar alarmes, pediram ajuda da guarda costeira italiana e tentaram contactar um helicóptero militar e um navio da NATO. . . mas não houve qualquer tentativa para os socorrer. Depois de 16 dias, 68 dos ocupantes do navio estavam mortos. Onze chegaram a terra, mas dois morreram pouco depois. Nove sobreviveram para contar a história. “Todas as manhãs acordávamos e encontrávamos mais corpos. Deixávamo-los no barco durante 24 horas, e depois atirávamo-los ao mar”, contou Abu Kurke, um dos sobreviventes. “Nos últimos dias, já não nem sabíamos quem éramos. . Todos estavam a rezar, ou a morrer. ” Lei marítima obriga a ajuda“Houve uma renúncia da responsabilidade que levou àmorte de 60 pessoas”, acusou Moses Zerai, um padre eritreu em Roma que dirige uma organização de refugiados e que esteve em contacto com o navio pelo telefone satélite da embarcação, enquanto a bateria deste durou. “Isto é um crime, e um crime não pode ficar sem castigo só porque as vítimas eram migrantes africanos e não turistas num cruzeiro. ” A lei internacional marítima, sublinha o "Guardian", obriga a qualquer navio, incluindo unidades militares, a prestar auxílio a outras embarcações em dificuldades sempre que possível. Uma porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os refugiados pediu mais cooperação dos navios comerciais e militares. “O Mediterrâneo não se pode tornar no Wild West”, comentou Laura Boldrini. “Os que não ajudam as pessoas não podem continuar impunes. ”As revoltas e instabilidade em países do Norte de África levaram a um aumento do número de pessoas que tentam chegar à Europa de barco – nos últimos quatro meses, acredita-se que 30 mil migrantes tenham tentado atravessar o Mediterrâneo de barco. Muitos morreram. Ninguém admite contacto com barcoEste barco tinha saído de Trípoli a 25 de Março levando 47 etíopes, sete nigerianos, sete eritreus, seis ganeses e cinco sudaneses. Havia 20 mulheres e duas crianças pequenas – uma delas tinha apenas um ano. No caminho para Lampedusa, quando estava no mar há apenas 18 horas, a embarcação começou a ter problemas e a perder combustível. O “Guardian” reconstruiu a história com base em testemunhos dos sobreviventes e pessoas que estiveram em contacto com o barco. Os migrantes começaram por contactar o padre Zerai, que alertou a guarda costeira italiana – que lhe assegurou que tinha dado o alarme e que as autoridades estavam a par da situação. Um helicóptero militar apareceu pouco depois e forneceu pacotes de bolachas, água, e deu indicações de que o barco deveria manter-se na sua posição até chegar um navio de ajuda. Mas nenhum país admite ter mandado este helicóptero. Itália diz ter avisado Malta para o barco, Malta nega ter tido qualquer contacto com os migrantes. O capitão ganês, não vendo sinais do navio de auxílio prometido, decidiu que poderia chegar a Lampedusa com os 20 litros de combustível que ainda tinha. Mas dois dias depois de ter partido da Líbia tinha perdido o rumo, ficado sem combustível, e estava ao sabor da corrente. O porta-aviões da NATOA corrente levou-o para perto de um porta-aviões da NATO, tão perto que seria impossível não terem sido vistos. O “Guardian” tentou descobrir que navio da NATO seria este, e descobrindo que o Charles de Gaulle operava no Mediterrâneo nestas datas, tentou obter comentários. Recebeu uma resposta dizendo que o porta-avião francês não estava no local. Confrontado com notícias que falavam da presença do Charles de Gaulle na região na altura, um porta-voz da NATO recusou-se a fazer comentários.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU NATO
Necrópole mediterrânica
As ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado. (...)

Necrópole mediterrânica
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado.
TEXTO: A Europa está de novo a fazer contas à vida, engasgada entre o constrangimento real de um imprevisível superpovoamento e o sentimento de culpa de que não se livra, ao olhar as pregas da História da colonização africana. Em A África Começa mal, René Dumont (ed. D. Quixote) alerta para o primeiro modelo civilizacional (a corrupção mercantil) que os europeus ofereceram aos africanos: no século XVI, os agentes negreiros vendiam armas e álcool aos chefes tribais, corrompendo-os, para que estes lhes oferecessem homens e mulheres a serem integrados no tráfico humano. Foi um bom princípio. Os mapas manipulados em Berlim, em 1885, resultantes do tratado que retalhou África em fatias atribuídas a alguns países europeus, permitiram quebrar as organizações indígenas, eliminaram imensas distinções autóctones e inventaram pátrias onde as não havia. Além disso, impuseram uma lógica civilizacional baseada na “ilusão de que o etnos [europeu] constituía o centro do universo cultural, o núcleo paradigmático de normas, instituições e valores em torno do qual giram, para sua glória, todas as outras culturas como satélites” (Urrutia). Sem darem por isso (exceptuando-se as elites corruptíveis), os africanos ficaram fora do processo histórico de que eles deveriam ser protagonistas — como se sabe, apenas na segunda metade do século XX surgiram os movimentos de consciencialização e de libertação dos povos africanos. “Nada está fora de um território ideológico”, enuncia Jorge Urrutia (Leitura do Obscuro, Uma Semiótica de África, Teorema). E não. Acontece que as ideologias esculpidas nos territórios africanos não passam de pérfidas réplicas daquilo que há de pior nos capitalismos europeus do século passado. Entretanto, tem-se como seguro que a repatriação dos desesperados que atravessam o Mediterrâneo (fugidos às guerras, à seca, à pobreza e ao banditismo), vítimas de redes mafiosas a quem pagam montantes elevadíssimos por documentação que de nada lhes servirá, deverá ser a única saída possível de um complexo jogo em que tudo está em causa: a inclemência de uma Europa que fecha as portas aos outros (e aos seus); a inflexibilidade dos angariadores de migrantes nos países africanos; a severidade das redes mafiosas que garantem liquidez aos bancos europeus e confortam o BCE; a montagem do circo humanitário, gerador de novos empregos filantrópicos e paliativos (e este é um caso de matéria sensível); a indecência das redes de adopção clandestina, de lenocínio e tráfico de menores. Os tempos não estão bons para acusar ninguém, de tal modo estão todos os agentes relacionados. Nem as nossas lágrimas conseguem afirmar que não são as de crocodilo. O Frontex faz o que pode (e seria prudente que a agência pudesse ser ainda dotada de mais meios); os centros de refugiados e a ONU actuam como podem e conhecem-se casos de verdadeira abnegação; as organizações religiosas (especialmente católicas) denunciam as situações. Mas neste cenário, nem os românticos (os que teorizam sobre as razões do caos e imputam à Europa o crime global) nem os pessimistas (aqueles que, no fim de contas, pensam como os românticos, mas sem chorar) têm razão. Não é um tempo para razão. É talvez um tempo para aceitar que o mundo é um lugar terrível, mas merecedor de uma pequena tarefa diária. De resto, é impossível uma leitura do obscuro, sem a sensação de nos enganarmos. Professor
REFERÊNCIAS:
Ninguém diz a Angélique Kidjo quem ela deve ser
É a última grande diva da música africana que faltava ao quadro de honra do Festival Músicas do Mundo. A cantora do Benim Angélique Kidjo actua amanhã em Sines, apresentando um disco que pretende recontar a História do mundo desde Adão e (sobretudo) Eva (...)

Ninguém diz a Angélique Kidjo quem ela deve ser
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 5 Mulheres Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: É a última grande diva da música africana que faltava ao quadro de honra do Festival Músicas do Mundo. A cantora do Benim Angélique Kidjo actua amanhã em Sines, apresentando um disco que pretende recontar a História do mundo desde Adão e (sobretudo) Eva
TEXTO: Angélique Kidjo passou a infância e a adolescência no Benim a ouvir dos seus pais que ninguém podia escolher por ela, que só a ela cabiam as decisões da sua vida. E desde cedo entreviu os pequenos e contínuos choques que tal postura poderia provocar num mundo habituado a girar sobre si próprio num andamento completamente distinto. Por não controlar cada passo da sua mulher, o pai de Angélique era frequentemente questionado acerca da sua masculinidade e justificava-se dizendo que se a mulher era feliz nalguma coisa ele devia estar a acertar. À medida que crescia, Angélique começou a exasperar-se com o facto de o pai sentir necessidade de se justificar, de se explicar perante aqueles que continuavam a abanar a cabeça em incredulidade, censurando aquela família em que não era a férrea vontade máscula a ditar e a autorizar os movimentos de cada um. Mas serviria de lição: a liberdade de um caminho implica muitas vezes o confronto com a desconfiança, a falta de entendimento e a intolerância para a diferença. É um teste permanente. Apesar de ser uma lição que Angélique Kidjo repete sob várias formas durante uma entrevista, recordando ensinamentos parentais como alicerces para a sua recusa absoluta em deixar-se aprisionar por aquilo que terceiros possam pensar, projectar ou esperar da sua vida e de cada uma das suas acções, também as capas dos discos que circulavam em casa desde pequena foram responsáveis por perceber que não havia portas trancadas para a crescente vontade de se entregar por inteiro à música. Os irmãos mais novos da cantora aventuravam-se já com bandas e os pais acreditavam que o desporto e a música ajudavam a edificar personalidades mais sólidas e preparadas para lidar com os outros, mas seriam as capas dos LP a abanar-lhe as certezas e a mostrar-lhe que o mundo exterior podia ser mais consonante com o seu mundo interior. “Esses álbuns que os meus irmãos traziam para casa vinham da América ou da Europa”, recorda. “E tinham quase sempre homens brancos na capa, ou então, em menor número, homens negros. Lembro-me que a primeira vez que vi uma mulher negra foi a Aretha Frankin, a cantar em inglês, e pensei ‘Uau, uma afro-americana pode ser artista, mesmo sendo mulher’. Quando se é mulher em África e se canta música que não é tradicional, é-se considerada prostituta. ”Na altura, era essa a regra que encontrava nas ruas e no universo próximo. Tudo mudou quando Kidjo percebeu que já alguém ousara, antes de ela pensar verdadeiramente em fazê-lo, furar essas convenções esburacadas e desde sempre caducas. Ao ver-se diante da capa de Pata Pata, álbum publicado pela sul-africana Miriam Makeba em 1967, as peças do futuro da jovem cantora reordenaram-se num segundo. “Aquilo deu-me a volta à cabeça!”, garante. “Se ela conseguiu fazer isto, então eu também vou conseguir, ninguém me vai impedir e vou fazer aquilo que quero. ”Vencido esse constrangimento moral, Angélique começaria rapidamente a travar uma outra batalha que se mantém até hoje. Parece haver em torno da sua obra, desde o início, uma obsessão de contornos quase laboratoriais para analisar a percentagem de África contida nas suas canções. Tendo crescido a ver e ouvir as rodelas de vinil de James Brown, Fela Kuti, Ebenezer Obey, Johnny Haliday, Jimi Hendrix, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Wilson Pickett e todo o santo disco que tivesse os selos Motown ou Stax a rodar no gira-discos, Kidjo enfiou desde sempre todo esse vasto referencial dentro dos seus concertos e das suas canções. “Às vezes olho para trás e pergunto-me como pode a minha memória ter absorvido tanta música”, espanta-se hoje. “Mas, na verdade, desenvolvi a minha memória a fixar todas as partes das músicas de que gostava – as guitarras, os baixos, as baterias, as segundas vozes, lembrava-me de tudo. ”Esta capacidade de se relacionar com músicas tão diferentes encontra igualmente explicação na forma como um dos irmãos mais velhos lhe desmontou os preconceitos e a fez repensar a música. De início, quando o rapaz levava música clássica para casa, Angélique reagia e falava com a boca perto do seu coração popular, dizendo-lhe “Mas que raio de música é essa? Isso é estúpido!” Em vez de a forçar a ouvir, o irmão desatou a adaptar e a tocar peças de Beethoven no banjo. E, de repente, acendeu a sua curiosidade. Daí que Angélique Kidjo se abespinhe quando ouve, uma e outra vez, que a sua música “não é africana o suficiente”. “África está em toda a música, goste-se ou não, e é impossível fazê-la desaparecer”, contraria. E ri-se quando a observação parte de europeus ou de norte-americanos rodeados de rock, pop, música electrónica – “devem achar que isso não veio tudo de África”. “A nossa música é inclusiva”, contrapõe, argumentando que a música africana não se faz difícil e se deixa espalhar por todos quantos a queiram levar consigo, independentemente de cores, línguas ou origens. Voltar a EvaEve, belíssimo álbum que Angélique Kidjo lançou já este ano, rodeando-se de gente que não nega, precisamente, a africanidade da sua própria música – Kronos Quartet, Dr. John, Rostam Batmanglij (dos Vampire Weekend) ou os músicos de jazz Steve Jordan e Christian McBride –, um portento rítmico adornado com melodias que nunca se deixam abocanhar pela previsibilidade, vem já de longe, desde que em 2005 integrou a delegação de uma missão humanitária, em visita a refugiados do Darfur num acampamento instalado no Chade. Desde então, conta a cantora, a sua cabeça caída sobre a almofada nunca mais passou a significar repouso total. “Aquilo que estava acontecer era que as mulheres eram violadas sempre que saíam do campo para ir buscar lenha que lhes permitisse cozinhar a comida dos miúdos e dos homens. Os homens ficavam lá sentados, sabendo do perigo que elas corriam e não as acompanhavam para as proteger ou ajudar. Depois olhavam para elas vitimizando-as, mostrando desprezo por elas”, relata. “É horrível – ao ouvir isto, a nossa boca fica aberta e o nosso coração dói, todo o corpo dói. Somos mesmo seres humanos quando permitimos que isto aconteça aos outros?”Esta condição da mulher africana, de sacrifício e superação de dificuldades e violências por vezes infligidas pela própria comunidade, ficou a ressoar na cabeça de Angélique Kidjo, há vários anos a braços com o trabalho da sua ONG (Fundação Batonga) em apoio da escolaridade das raparigas do continente, lutando pela erradicação do tétano ou contra a mutilação genital feminina. Nessa mesma viagem, com a UNICEF, “acendeu-se uma luz” na chegada ao Quénia. “Ao ver que aquelas mulheres lutam para encontrar comida para os miúdos e mantêm os seus sorrisos e ainda cantam, pensei como podia mostrar isto ao resto do mundo. E disse às mulheres quenianas que então encontrei: 'Quero que as pessoas oiçam as vossas vozes, quero que oiçam a alegria e a resiliência no vosso canto'. ” Essas vozes, ouvimo-las logo a abrir Eve (em M’Baamba), em diálogo com a sua, justapondo-se ao seu percurso. Kidjo conta que é daqui, do encontro com estas mulheres africanas, que retira a força para “ver o melhor que existe em cada situação – é o que elas fazem todos os dias para criarem os seus filhos, para conservarem a humanidade e se manterem de pé. ” E é algo que a cantora revisita mentalmente sempre que lhe dizem que, por ser africana, tem o acesso vedado a determinado programa de televisão, a apresentar-se em sítios onde não percebem a língua em que canta, enfim, de cada vez que alguém lhe sugere que pode e deve amputar um pouco da sua identidade para se adaptar a uma formatação prévia. “Sempre que me tentam rebaixar e atirar para o gueto, é nestas mulheres que penso”, reafirma. Não há surpresas: Eve vai buscar o seu título à Eva que nos dizem ter tentado Adão com uma maçã. E aquilo para que Angélique Kidjo está, mais uma vez, a apontar é o seu sentimento de injustiça e deturpação de igualdade perante uma História do mundo que tem sido invariavelmente contada por homens. Desde a primeira mulher. “Nós aceitamos e vamos avançando”, comenta, mas tal como nos tribunais “há sempre dois lados para uma história: o lado da defesa e o da acusação. Nesta história da Humanidade, temos sido acusadas desde Adão e Eva. Não é preciso duas pessoas para haver sexo? Então porque somos culpadas por isso? Ela tentou-o com uma maçã? Adão não tinha cérebro? Adão não tinha livre arbítrio para escolher? Podemos escrever os livros que quisermos, mas essa história tem de ser contada de forma diferente ou desaparecer. ”O pai vem à conversa recorrentemente. Foi ele quem lhe ensinou que “um homem que diminui uma mulher não é um homem, é um cobarde”, e foi ele quem a empurrou para fora do país quando o Benim se transformou num regime marxista – em 1972, quando um golpe de Estado instalou Mathieu Kérékou no poder durante quase duas décadas –, em que a liberdade de expressão ficara severamente comprometida. “Se pensarmos bem, a ideologia comunista não é má de todo, mas quando uma ideologia prega e diz às pessoas o que devem fazer e não as deixa serem donas da sua vida torna-se uma ditadura”, diz, explicando a sua saída, primeiro para Paris, depois para Nova Iorque, onde ainda vive, aos 54 anos. Se tinha de ter cuidado com o que dizia – sob pena de ser encarcerada ou pior ainda –, Angélique não estava disposta a viver no seu país. Hoje como nessa altura, a sua vida guia-se pela mesma máxima que atravessa a sua autobiografia, Spirit Rising: “Ninguém me vai dizer quem devo ser. " “Ninguém tem escrito na testa em bebé que vai ser presidente deste ou daquele país, que vai ser isto ou aquilo. Claro que há circunstâncias que podem ser mais benéficas e mais fáceis para alguns porque a vida é mesmo assim, mas já alguém viu uma criança acabada de nascer com as mãos cobertas de ouro? Não, pois não?” Não, não há notícias de tal. E enquanto assim for, não contem com o silêncio de Angélique Kidjo.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
As mulheres ciganas estão a fazer a sua pequena revolução
As ciganas portuguesas estão a levantar-se contra as várias formas de discriminação de que são alvo dentro e fora das suas comunidades. Que movimento é esse, que junta mulheres do país inteiro? Como começou? Quais são as suas prioridades? (...)

As mulheres ciganas estão a fazer a sua pequena revolução
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 5 Mulheres Pontuação: 21 Animais Pontuação: 6 Ciganos Pontuação: 21 | Sentimento -0.18
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ciganas portuguesas estão a levantar-se contra as várias formas de discriminação de que são alvo dentro e fora das suas comunidades. Que movimento é esse, que junta mulheres do país inteiro? Como começou? Quais são as suas prioridades?
TEXTO: Guiomar Sousa é mediadora sociocultural. Está habituada a fazer a ponte entre pessoas ciganas e pessoas não ciganas. Invoca o dia em que, contra o concurso Miss América, 400 feministas se dispuseram a queimar soutiens, cintas e outros “instrumentos de tortura”. “Estamos atrasados 50 anos”, comenta aquela activista, de 36 anos. “O movimento feminista é uma novidade nas comunidades ciganas, mas a nossa ideia não é chocar. Estamos a adaptar o feminismo à nossa realidade. ”Serão perto de duas dezenas as mulheres que fazem parte deste movimento. Nos últimos cinco anos, foram-se cruzando em encontros e acções de formação, percebendo pontos em comum, trocando contactos, forjando amizades. Neste último ano, têm-se desdobrado pelo país a dizer que são “mulheres e ciganas” e que “existem e resistem”. Maria Gil – que já foi feirante e empregada de balcão e faz teatro comunitário e teatro do oprimido – assume a autoria da frase que identifica o movimento. Em Maio de 2017, estava ela no Porto, na manifestação “Mexeu com uma, mexeu com todas”, olhou em redor e reparou que ela e a filha eram as únicas ciganas. “Faziam poemas nos quais incluíam mulheres negras, mas nem uma palavra sobre mulheres ciganas. De uma forma muito espontânea, peguei num bocado de cartão e escrevi: “Mulheres e ciganas, existem e resistem. ” Partilhou a imagem nas redes sociais. “A frase começou a ser usada. ”“A história das mulheres ciganas é uma história de resistência”, sublinha aquela activista, de 46 anos. Há uma discriminação externa que dificulta o acesso à educação de qualidade, ao emprego, à participação na vida pública. E uma discriminação interna que faz com que rapazes e raparigas, homens e mulheres não sejam tratados da mesma forma dentro das suas famílias e das suas comunidades. “Estamos a viver um tempo muito bom”, considera o alto-comissário das Migrações, Pedro Calado. “Tínhamos apenas a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, no Seixal, agora temos a Ribaltambição, na Figueira da Foz. E há outras mulheres muito activas, como a Cátia Marisa, de São Brás de Alportel, a Guiomar Sousa, de Espinho, a Maria Gil, do Porto, a Toya Prudêncio, de Gondomar, a Vanessa Matos, de Braga”, prossegue. “Como diz um provérbio cigano, ‘A fogueira começa com pequenos ramos’. Esse é o momento em que estamos. Estamos a começar a fogueira. ”Já têm uma agenda concorrida. Algumas estiveram no passado fim-de-semana no Festival Política, organizado pela Produtores Associados e pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural, em Lisboa. Muitas estão este fim-de-semana na Academia Política das Comunidades Ciganas, em Torres Vedras, iniciativa do Conselho da Europa, que está apostado em promover a participação. Guiomar Sousa foge agora de todos os holofotes. Morreu-lhe o pai há pouco tempo. E o luto, nas comunidades ciganas, é um assunto muito sério. Um lenço esconde-lhe o cabelo e roupas largas, longas, negras, escondem as formas do seu corpo. Não usa maquilhagem, nem jóias. Não ouve música, nem se deixa fotografar. Quem não deixa de estar em todo o lado apesar do luto integral é Olga Mariano. O seu marido já morreu há mais de 20 anos. E a história da luta pela emancipação das mulheres ciganas confunde-se com a história desta mulher, de 68 anos. Há 50 anos, Olga Mariano fez algo que cigana alguma havia feito: tirou a carta de condução. Não foi um ímpeto feminista. “Às vezes, a necessidade obriga. ” O pai, que era vendedor ambulante, vendera um grande lote de tecido a um alfaiate que lhe pagara com um Fiat 1100 cinzento-claro. Ele nunca fora à escola. “O meu irmão mais velho sabia ler e escrever, mas não tinha a 4. ª classe. As minhas duas irmãs estavam casadas. A única solteira era eu. O meu pai emancipou-me para tirar a carta. ”Viviam no Fogueteiro, na freguesia da Amora, no concelho do Seixal. Olga conduzia os pais às feiras de Sesimbra e de Cascais e às festas da família em Évora. Houve críticas. “Como é possível uma mulher cigana conduzir? Como é que o pai a deixou tirar a carta? Amanhã ela casa-se e ele vai ficar desprevenido. ”A família de Olga era uma excepção. O pai, fervoroso adepto de futebol, lamentava não conseguir ler o jornal A Bola. E queria que o filho e as filhas aprendessem a ler, a escrever e a contar. Eram os únicos ciganos daquela escola. Quase não havia ciganos nas escolas portuguesas. A esmagadora maioria não podia permanecer mais do que 24 horas num sítio, andava de terra em terra a ler a sina, a vender tapetes, cobertores, atoalhados, peças de tecido e outros produtos, a fazer pequenos trabalhos. A carta de condução não foi apenas útil para a família de origem. Foi também útil para a família que Olga formou aos 22 anos. Conduzia o marido à feira e com ele trabalhava de segunda a sábado. Ao longo de mais de 20 anos, tiveram banca em Almada. De repente, ele adoeceu. Ela enviuvou volvidos três anos. Olga fez tudo como manda a tradição. Cortou o cabelo bem curtinho. No primeiro ano, ia ao cemitério todos os dias. Nos primeiros cinco, tinha de usar dois lenços – um mais pequeno, interior, que cobre o cabelo, e outro maior, exterior, que vem da cabeça até à cintura. Só depois podia usar apenas um, atado de trás para a frente. A indumentária era o que menos a preocupava. Pior era aquela dor, pior era reorganizar a vida. “A coisa descambou”, recorda. Os filhos eram muito novos. “Ainda precisavam do braço forte do pai. Eu própria não tinha cabeça para nada. Foi uma fase muito ruim. ”Recorreu ao rendimento mínimo garantido, o actual rendimento social de inserção. Era nova aquela medida destinada a aliviar a pobreza extrema e a ajudar a encontrar forma de sair dela. Num instante, Olga, a filha, Noel Gouveia e outras três ciganas, Alzinda Carmelo, Anabela Carvalho e Sónia Matos, foram seleccionadas para frequentar uma acção de formação. Como dizer não? Em vez de 150 euros de prestação social, receberiam uma bolsa equivalente ao salário mínimo nacional, que rondava os 350 euros. A mediação sociocultural despontava em Portugal por recomendação de Bruxelas. Em 2000, os mediadores começaram a entrar em diversas escolas de territórios considerados críticos. Olga, por exemplo, assumiu de imediato o lugar de mediadora no Bairro Padre Cruz, em Lisboa, e lá se manteve até 2005. Não foram só as portas de uma nova profissão que se abriram. Por sugestão de um formador, logo em 2000, aquelas cinco mulheres fundaram a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas. Os ciganos, em particular as mulheres, continuavam a deixar a escola muito cedo. E elas queriam reduzir o absentismo escolar, reverter o abandono escolar, ajudar as mulheres a conciliar a vida familiar e profissional. No virar do século, Olga, a mais velha e mais experiente das cinco, tornava-se a primeira mulher cigana a liderar a primeira associação do género em Portugal. Durante 14 anos, a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas foi a única. Porquê? “Muita relutância dos homens e falta de coragem das mulheres”, resume Bruno Gonçalves, mediador sociocultural que partilha com Olga Mariano o lugar de mais influente activista cigano. Além do domínio masculino colocar grandes entraves ao desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres, não há tradição associativa na população cigana. As poucas organizações que tinham aparecido no pós-25 de Abril quase que se resumiam à figura de algum homem respeitado num determinado meio e ao seu círculo. Nos últimos 20 anos, pouco a pouco, alguns homens e algumas mulheres foram-se capacitando através de acções promovidas por entidades públicas, como o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que já teve outros nomes, e privadas, como a Rede Europeia Antipobreza – EAPN Portugal. Se lhe perguntarem o que serviu de trampolim às mulheres, Bruno Gonçalves apontará, sem hesitar, duas iniciativas. Primeiro, o Escolhas, um programa de inclusão social de crianças e jovens de contextos socioeconómicos vulneráveis criado pelo Governo em 2001. Segundo, o Programa Europeu de Formação para Mediadores Ciganos – Romed, lançado pelo Conselho da Europa em 2011. Foi no seio do Romed que em 2013 nasceu a Letras Nómadas, liderada por Olga Mariano e Bruno Gonçalves, que já fora presidente da Associação de Ciganos de Coimbra e vice-presidente do Centro de Estudos Ciganos. A liderança da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas passou para Noel Gouveia, que está com 43 anos e casada com um não-cigano. De repente, tudo convergia. Mulheres ciganas de toda a Europa juntavam-se em Helsínquia para definir a Estratégia para o Progresso das Mulheres e Raparigas Ciganas. Portugal aprovava a sua primeira Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (e que está a rever neste momento). Finalmente, ia haver dinheiro para apoiar o associativismo cigano e alguns pequenos projectos. Em Novembro de 2013, em parceria com a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, a Letras Nómadas organizou o I Encontro de Mulheres Ciganas, em Lisboa. “Feliz o dia em que decidimos fazer isso”, comenta Bruno Gonçalves, que levou a mulher, a sogra e a cunhada. Há um antes e um depois daqueles dois dias a pensar o presente e a procurar formas de construir um futuro de emancipação. “Em 20 anos de activismo cigano, nunca andámos tanto. As mulheres são a mudança. ”A cunhada, uma mediadora de 37 anos chamada Tânia Oliveira, resume o encontro em três frases: “Conhecemos várias mulheres com as quais temos objectivos em comum. Isso veio dar mais força às que pensavam que estavam sozinhas. Até hoje lutamos pelo empoderamento das outras mulheres ciganas. ”Na tentativa de fomentar a participação, da segunda edição do Romed formaram-se grupos de acção comunitária em sete municípios. O da Figueira da Foz, coordenado por Tânia, deu origem à Associação Ribalta Ambição – Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas. Ela é a presidente e a irmã, Marisa Oliveira, dois anos mais velha, é a vice-presidente. No Verão do ano passado, organizaram o II Encontro de mulheres ciganas. Sob o lema “Siñando Kali [Ser Cigana] no século XXI”, quiseram abrir espaços de diálogo entre ciganas de todo o país, mostrar bons exemplos, semear confiança. Tânia Oliveira gosta de dizer que “é solteira e boa rapariga”. Foge à conversa sobre a pressão social para encontrar um marido e ter filhos, algo que afecta ciganas e não ciganas que já ultrapassaram a barreira dos 30 anos. Prefere pôr a tónica na flexibilidade para trabalhar, estudar e lutar pela igualdade de género. Deixou a escola findo o 4. º ano, apesar de no seu tempo a escolaridade obrigatória ir até ao 9. º ano. “Eu e a minha irmã queríamos estudar, mas a escola era longe e não tínhamos quem nos levasse”, relata, numa mesa de café. “Eu andava nas feiras, não tinha condições de as levar”, acrescenta a mãe, Maria de Fátima, sentada ao lado. A escola não fazia parte das prioridades. A venda ambulante garantia o presente dos pais e haveria de garantir o futuro dos filhos. O abandono escolar precoce era “normal”. “Bem lá no fundo, acreditava que o meu futuro não passava pelas feiras e mercados, nem pelo papel formatado de mulher que cuida dos filhos e da casa”, afirma. “Sabia que podia alcançar muito mais sem comprometer a minha identidade cigana. ”Aos 18 anos, fez um curso profissional que lhe deu equivalência ao 6. º ano. Tornou-se mediadora sociocultural nas escolas da Figueira da Foz. “Foi um enorme prazer ajudar a minimizar o absentismo e o insucesso escolar”, assegura. Esteve lá seis anos. Teve outros trabalhos temporários de mediação. Esteve um ano no serviço de habitação social e outro no transporte de alunos com necessidades especiais. Através do Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, obteve o 9. º ano. Entretanto, despertou nela o desejo de se licenciar. “Para me concretizar enquanto mulher e para dar o exemplo”, justifica. Candidatou-se ao ensino superior, via programa +23. E está a fazer o curso de Animação Socioeducativa na Escola Superior de Educação de Coimbra. Entrar agora até parece fácil, difícil mesmo é ter bons resultados. Está a ser o cabo dos trabalhos. “Passei um bocadinho…. Tenho de acompanhar jovens que tiveram um percurso escolar regular. Não tenho explicações. Estava a trabalhar até às 19h na Figueira da Foz e as aulas começavam às 18h30 em Coimbra. ” O contrato de trabalho acabou. “Vou ter de ir mais às aulas, vou ter de me esforçar mais. . . ”Tem uma bolsa e um tutor. Faz parte do Opre, que começou por ser um projecto-piloto e se tornou uma política pública de acesso ao ensino superior gerida pelo ACM, em parceria com a Letras Nómadas e a Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens. No ano lectivo 2015-2016, eram oito os estudantes apoiados. Agora, são 29. “Cada ano, vamos multiplicando”, orgulha-se. A educação parece-lhe fundamental para a mudança de ideias feitas acerca do seu povo. “Temos um objectivo? Temos. Vamos ter obstáculos? Vamos. Vamos ser apoiadas por alguns? Vamos. Vamos ser criticadas por outros? Vamos. Mas isto faz parte do percurso. É isto que faz a mudança. ” Há uma mensagem que vai repetindo: “Trabalho e estudo, mas nunca deixei de ser cigana. Continuo a respeitar a minha comunidade e a ter o respeito da minha comunidade e isto para nós, enquanto mulheres e ciganas, é fundamental. ”As pioneiras assumiram a escolarização como prioridade. “A minha bandeira é a educação. É o instrumento que nos dá a partilha”, enfatiza Olga Mariano. E é essa também a bandeira das novas activistas ciganas. “É a melhor que podemos ter”, corrobora Guiomar Sousa. “Permite reconhecer e lutar pelo que é nosso por direito. ”A escolaridade da população cigana é muito baixa. “Atinge proporções mais preocupantes entre as mulheres, que na sua maioria não ultrapassam a barreira do 1. º ciclo do ensino básico”, segundo o Estudo Nacional das Comunidades Ciganas, feito por Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias em 2014, a pedido do ACM. E interfere em tudo – no acesso à formação profissional e ao emprego, na capacidade de perceber o funcionamento das instituições, na possibilidade de participar na política. A presença de crianças e jovens ciganos nas escolas portuguesas mais do que duplicou em 20 anos. Poucos, porém, terminam o 3. º ciclo e ainda menos o secundário, segundo o Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo 2016/2017. Na tentativa de fazer com que todos cumpram a escolaridade obrigatória, que agora vai até ao 12. º ano, o Ministério da Educação criou outras ofertas educativas, como os Percursos Curriculares Alternativos, os Programas Integrados de Educação e Formação ou os Cursos Profissionais, onde está grande parte dos alunos ciganos. E o ensino doméstico, o ensino em itinerância e o ensino à distância. A questão é complexa, até porque a escola é uma realidade recente na vida dos ciganos portugueses e a mentalidades não mudam do dia para a noite. Se dúvidas houvesse, bastaria ver que uma das netas de Olga frequenta o ensino doméstico. E essa não é uma escolha da avó. “O melhor é fazer tudo direitinho até ao 12. º ano, mas se vão tirar as meninas da escola. . . eu costumo dizer: quem não caça com cão caça com gato. ” Como tem equivalência ao 12. º ano, assumiu o papel de tutora. “Eu mantenho-a ali certinha. Ela não falha. ”Olga associa a escolha do filho e da nora à “censura social”. Moram a quatro ou cinco quilómetros da escola. O horário dos transportes públicos nem sempre coincide com o horário escolar da menina de 12 anos. Os pais trabalham, não podem aparecer à hora certa para a transportar entre cá e lá e não querem que ela seja objecto de comentários. Quando isso acontece, há processos de marginalização dentro da comunidade. O argumento étnico é conhecido. A honra é importantíssima no seio das comunidades ciganas. A honra das famílias tradicionais assenta no comportamento das mulheres, que se devem manter castas até ao dia do casamento. A opinião dos outros membros da comunidade é muito pertinente. Para garantir que uma rapariga não é alvo de falatório, a partir da puberdade limitam-se os contactos com rapazes. “Nós ainda vivemos na aldeia, mesmo estando nos meios urbanos”, explica aquela dirigente associativa. “As nossas aldeias são os bairros sociais. Toda a gente sabe a vida de toda a gente. Há aquela censura. Continuamos a ter um grande controlo social, porque vivemos à margem – não porque queremos, mas porque as câmaras nos põem em bairros sociais e os não-ciganos não nos querem ao pé deles. ”O rendimento social de inserção tem tido um papel fulcral. Para não arriscar perder aquela prestação social, muitas famílias mantêm as crianças e jovens na escola e algumas mulheres têm iniciado ou retomado a trajectória escolar através de programas de educação alternativos, como a alfabetização de adultos, o Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências ou a Iniciativa Novas Oportunidades. A sensação de que a venda ambulante é uma carreira em vias de extinção também é algo motivador. Pode ser uma revolução, apesar de todas as limitações. “Fui beneficiária do RSI durante três meses”, sublinha Noel Gouveia. “Há 17 anos que sou contribuinte. ” É mediadora sociocultural, professora de dança cigana, dirigente associativa. Também saiu da escola com o 4. º ano. Foi fazendo formações. “A escola é a base de tudo. ”Já fez mediação em escolas. Agora mesmo é mediadora Opre. “Eu namoro a família para que ela permita o casamento entre a filha e o curso e namoro a universidade, como se fosse a sogra, para ela receber bem a nora”, brinca. “Tem sido uma experiência única e de verdadeira mudança dentro das comunidades ciganas e fora delas. Daqui a uns anos, vamos ter muitos licenciados. Nada como ter exemplos vivos. ”Por ser considerada um exemplo para outras mulheres, Toya Prudêncio, 30 anos, recebeu o galardão de Cigana do Ano em 2016. “É sinal que estou a percorrer o caminho certo”, orgulha-se. Foi a segunda vez que tal distinção foi atribuída pela Letras Nómadas. Guiomar Sousa recebera-a em 2015. Também saiu da escola finda a 4. ª classe. Tinha de limpar, cozinhar, lavar roupa e criar a irmã, de três anos. “Eu tinha o sonho que acho que toda menina tem: casar-se, ter filhos, ter um lar. ” Conheceu o marido, Bruno Prudêncio, numa festa de noivado, contava 16 anos. Começaram a falar às escondidas. Volvido meio ano, uniram-se. Não fizeram um casamento tradicional cigano, com três dias de festa, porco no espeto, sucessivas mudas de roupa. Fizeram um “fugimento”, isto é, desapareceram durante três dias. Andaram a passear pela região centro. No regresso, foram recebidos pelas famílias em festa. Como a prioridade é manter a honra da família, se um rapaz e uma rapariga têm sexo, as famílias consideram que estão casados. Toya deixou a casa da família, na Maia. Estiveram um mês em casa dos sogros, em Gondomar. E arrendaram uma casinha que era “metade” da sala do apartamento que hoje ocupam. “Nos primeiros anos, as feiras ainda davam. Depois, começamos a ver que não era vida”, conta ela. Ele queria voltar a estudar. Abandonara a escola no 6. º ano. Fez um curso de educação e formação de adultos que lhe deu equivalência ao 9. º. Toya está a contar esta história sentada à volta da mesa da sala. O marido está sentado no sofá, a estudar, e diz: “Tinha o 9. º ano, não consegui emprego. Toca a voltar à escola. Três anos e meio. Tinha de apanhar três autocarros. Tirei o 12. º ano – um curso profissional de técnico multimédia. Agora vai surgir qualquer coisa. Incrível. Só mesmo filmando as caras que as pessoas fazem. As pessoas não têm noção – a cara que fazem, o ar de riso, o ar de quem está enojado por estar na nossa presença. ”Não foi perda de tempo. Entrou como cantoneiro na Junta de Freguesia de Baguim do Monte. O presidente olhou para o currículo e mudou-o para a secretaria. Durante cinco anos, trabalhou lá. “Sempre através de medidas de emprego, sem direito a subsídio de férias, subsídio de Natal, subsídio de desemprego. ”Toya começou a pensar na possibilidade de voltar a estudar. “A vida estava estabilizada. ” A câmara atribuira-lhes um apartamento. Todos os dias, o marido ia para o trabalho, as filhas iam para as aulas e ela ficava em casa. “Eu sempre gostei de saber mais. O meu cérebro nunca andou muito quietinho. ”Pensava começar por uma certificação de 6. º ano. Bruno Gonçalves, “esse grande desestabilizador”, desafiou o casal a tentar entrar no ensino superior, através do +23. Tinham de se inscrever em duas cadeiras isoladas, para ver como se adaptavam. “Apliquei-me 100%. Às vezes, estávamos os quatro aqui a estudar. ”Bruno entrou logo no curso de Educação Social na Escola Superior de Educação do Porto. Toya não conseguiu entrar à primeira. Virou-se para outro lado. Começou este mês o curso de Educação da Universidade Aberta. Os sonhos de Toya alteraram-se. “O meu sonho é acabar o meu curso e arranjar um emprego, dar uma vida melhor às minhas filhas. O que me imagino a fazer? Tanta coisa! Jesus! O que mais quero fazer com este curso é empoderar jovens, incentivá-los, mostrar que há outros caminhos. Quero trabalhar com jovens de etnia cigana e não só. Nem só os de etnia cigana precisam de incentivo. Moro num bairro social e vejo isso. ”O entusiasmo não abafa a necessidade de medir as palavras. Assumindo-se como feminista, isto é, como defensora da igualdade de género, Guiomar Sousa explica o cuidado: “O feminismo é um terreno minado. Temos de saber onde pisamos para que os nossos tenham a plena noção do que nós defendemos. ”As activistas estão mobilizadas para lutar pelo direito à educação, pelo conhecimento da história e da cultura da população cigana, contra a discriminação étnico-racial, contra os estereótipos de género, pelo “empoderamento” das mulheres. Isso é evidente nos projectos que têm desenvolvido com o Fundo de Apoio da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Não discursam sobre práticas culturais nefastas. O grande tabu é o teste de virgindade. Há quem se limite a afirmar que o assunto é privado (inúmeras mulheres sentem-se honradas e sentem que honram as suas famílias com tal prática). Há quem se limite a dizer que é raro (a maior parte dos casais, hoje, opta pelo “fugimento”). E há quem veja nesta prática um atentado aos direitos humanos, mas tema as reacções dos defensores das tradições (afinal, a ideia é provar que uma mulher pode estudar, trabalhar, ser activista sem deixar de respeitar as tradições). Há reacções defensivas quando se puxa pelo assunto casamentos arranjados. “Ninguém é obrigado a casar-se”, frisa, por exemplo, Olga Mariano. Os pais podem combinar tudo quando os filhos são crianças, mas não os podem forçar. A rapariga pode “dar cabaças”, isto é, pode romper o compromisso. A mesma reacção defensiva ocorre quando o assunto é o casamentos precoce. “Nenhum pai quer que uma filha se case antes dos 18 anos”, afirma a activista. Só que muitos, como já se disse, optam pelo “fugimento”. Basta-lhes desaparecer umas horas. “Culturalmente, não há namoro. Quando um rapaz toca numa rapariga, é para ficar. ”Para Maria Gil, o maior desafio de qualquer feminista cigana “é criticar as estruturas patriarcais internas sem reforçar os estereótipos negativos sobre a sua comunidade”. A população cigana não é homogénea. As comunidades são muito diversas. E o machismo não é um exclusivo destas comunidades. “Estamos a começar a fazer alguma coisa. A partilha de preocupações parece pouco, mas já é alguma coisa”, realça. A escolaridade não é só uma via para o emprego. “A escolarização vai abrandar o ritmo dos casamentos precoces. E criar massa crítica de práticas que vão contra a dignidade da mulher. ”Diz coisas que nenhuma outra activista se atreve a dizer. Como esta: “A violência doméstica é silenciada. Uma mulher cigana não pode denunciar um homem cigano à polícia. Conheço mulheres ciganas que fizeram isso e estão fora do país. Os filhos não falam com elas. O facto de terem fugido de uma história de violência faz delas umas putas. ” As separações, como as uniões, são assunto de toda a família. “Às vezes, não podemos fazer esta exposição”, esclarece Maria Gil. “Eu posso, porque já não tenho tanto medo, tenho algum. Há mulheres activistas que não podem dizer tudo o que pensam. Têm de ter o aval do marido. Vivem com aquele medo de, a qualquer momento, ver a sua caminhada interrompida…. ”Já foi ameaçada por se assumir como feminista, por falar do que não se fala, por contestar homens mais velhos. “Já recebi telefonemas: ‘Vê lá como é que falas da próxima vez que fores à televisão. ’ Já apanhei alguns sustos. ” Não é só o sexo masculino. “O machismo é tão perverso que gera nas mulheres um sentimento de protecção. ” Muitas “são umas patetas alegres, têm um homem que toma conta delas e defendem que há as mulheres sérias, que são firmes, castradoras, e as outras, que ousam fazer as suas opções”. Às vezes, cansa-se, mas não se cala. “Compreendi que era importante ser voz. E a verdade é que o faço de uma forma, se calhar, diferente da que outras fazem, porque elas têm um suporte que eu nunca tive”, diz. “Tenho de fazer valer o meu direito à liberdade. Desde cedo me vi privada de liberdade. ”Maria Gil tinha sete anos quando o pai morreu. A mãe tirou-a da escola. Deixou-a voltar aos oito, de luto carregado. Voltou a tirá-la quando ela concluiu o 4. º ano. “Resisti. Percebi que era tratada de forma diferente por ser menina. Por ser menina, não podia usar calças. Por ser menina, não podia sair sozinha. ”Havia regras que não lhe faziam confusão. Não sentia falta de saídas noturnas, para bares ou discotecas, por exemplo (“Havia tanta festa em casa”). Mas outras faziam-lhe e rebelava-se contra elas. Devorava os livros dos primos, que continuavam a ir à escola. Estudava sozinha. Fez o 6. º ano autopropondo-se a exame. Foi fazendo as suas escolhas – e pagando o preço. Casou-se com um não-cigano com quem teve três filhos. “Era uma história de amor que eu queria viver. ” Separou-se. Esteve uns anos sozinha. Juntou-se a outro não-cigano. Teve uma filha. E sentiu-se muitas vezes posta de lado por isso. As relações com não-ciganos não são bem vistas. Nota uma espécie de medo. “Isso revelou-se mais quando decidi não voltar para casa da minha mãe com os meus quatro filhos, ficar a morar com eles no centro da cidade, sem o controlo directo de familiares. ” Que exemplo está ela a dar a outras meninas e mulheres? “Mostro que é possível uma mulheres estar sozinha e isso provoca receio numa população que está estruturada em torno da família. ”Alerta várias vezes para a necessidade de não se generalizar. “Esta é a minha experiência. Há mulheres ciganas que não se identificam comigo. Há mulheres que por causa disso me dirigem insultos. E há mulheres com as quais não me identifico de todo. Eu não me identifico com mulheres que silenciam a opressão. ”Cada uma das mulheres que dão forma ao movimento tem uma história única. “Este movimento pode levar a alguma coisa”, acredita. “Não é um movimento registado. É uma sucessão de palavras e de acções. Cada mulher vai dando o seu contributo. No Norte não temos uma associação. A ideia é criar uma e fazer um trabalho mais consistente. ”A Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-Discriminação 2018-2030, aprovada em Janeiro, assume como objectivo central a eliminação dos estereótipos de género. Reconhecendo que estes se cruzam com outros, reconhece necessidades específicas de mulheres ciganas, afrodescendentes, idosas, com deficiência, migrantes, refugiadas. Do Plano de Ação para a Igualdade entre Mulheres e Homens consta o “envolvimento de crianças ciganas, particularmente meninas, em actividades de promoção do ensino e de combate ao abandono escolar”. E o Plano de Combate à Violência contra Mulheres e Violência Doméstica refere “programas específicos para a intervenção junto de vítimas em situação de especial vulnerabilidade em virtude da intersecção de vários factores de discriminação”, incluindo mulheres ciganas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Já fizemos muito trabalho”, suspira Noel Gouveia. No início deste ano, a sua associação passou a partilhar a sede com o Centro Romi, um espaço comunitário projectado por oito mulheres ciganas. “Já passámos esta luta para outras mulheres. Isso é muito bom, mas no fundo estamos a vender sonhos sem segurança. ” Sonhos sem segurança? “Estamos a incentivá-las a sair do rendimento social de inserção, a estudar, a arranjar emprego, mas ninguém nos dá emprego, temos de ser nós a criar emprego para nós. Aquelas mais clarinhas não dizem que são ciganas e arranjam um trabalhinho. As mais escurinhas, como eu, não. ”Conta 17 anos de sucessivos trabalhos temporários. “Estou tão precária e insegura como se estivesse na praça. Na praça, tínhamos de comprar à noite para vender de manhã. Aqui é igual. Não sei se amanhã vou ter projecto. ” Olha para a filha, que tem nove anos e está no 3. º ano. Não pode desistir. “Gostava que a minha filha não fosse identificada pela etnia. Ela é mulher, é portuguesa, faz parte da raça humana. Para os não-ciganos é a ciganita, para os ciganos já não é cigana, porque o pai dela não é cigano. Ela costuma dizer que não é só uma sandes de queijo, nem só uma sandes de fiambre, é uma sandes mista. ”
REFERÊNCIAS:
Pio arromba o filme e Jonas chega mais perto de si próprio
Um cineasta nascido em Nova Iorque foi abalroado na Calábria por um adolescente cigano. Através da personagem de Pio, Jonas Carpignano, italiano para os americanos, americano para os italianos, pele negra para os brancos, demasiado claro para os negros, tacteia o seu sentimento de não pertença. Com A Ciambra há um pacto em movimento entre o cinema, as pessoas e os lugares, por um sobrinho-neto do neo-realismo italiano. (...)

Pio arromba o filme e Jonas chega mais perto de si próprio
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 5 Ciganos Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um cineasta nascido em Nova Iorque foi abalroado na Calábria por um adolescente cigano. Através da personagem de Pio, Jonas Carpignano, italiano para os americanos, americano para os italianos, pele negra para os brancos, demasiado claro para os negros, tacteia o seu sentimento de não pertença. Com A Ciambra há um pacto em movimento entre o cinema, as pessoas e os lugares, por um sobrinho-neto do neo-realismo italiano.
TEXTO: Pio vem das margens de um filme anterior, onde era personagem secundária. E é como se agora arrombasse a porta — não é metáfora — para ser protagonista. É comovente ver uma personagem a ocupar um filme como coisa de vida ou de morte. Ganha-se, aliás, se se vir Mediterrânea (2015) e A Ciambra (2017) de seguida: avista-se Pio mais ao lado no filme que Jonas Carpignano realizou em 2015, como uma tentação de caos para quem está ao centro, Ayiva, um refugiado do Burkina Faso que atravessou mar e terra em busca de ordem na Calábria; no filme de 2017 com que Carpigano se manteve em Gioia Tauro, no Sul da bota italiana, mas redireccionando a atenção para outra personagem, já é o caos que ordena. Ayiva fica de lado, Pio ocupa o ecrã. A Ciambra é o filme que agora se estreia. Realização:Jonas Carpignano Actor(es):Pio Amato, Koudous Seihon, Damiano AmatoÉ como se a ficção e o documentário, para resumir de forma grosseira, trocassem de lugar. Do filme de uma personagem com um plano e direcção — o desígnio ficcional como busca de normalização – passamos à realidade sem planos ou desculpas. Mediterrânea, o filme “de” Ayiva, é mais “normalizado” do que A Ciambra, o filme “de” Pio. Mas é inescapável que ainda assim de cada vez que o africano Ayiva e o adolescente Pio se encontram em A Ciambra — o pacto entre dois mundos que se sentem excluídos dos “italianos”: o dos refugiados africanos e o de uma família cigana, os Amato – o filme parece ser tomado por tentações redentoras. O protector Ayiva tenta normalizar o imprevisível Pio — o rapaz de 14 anos que quer afirmar-se como adulto repetindo os gestos do clã — como talvez o realizador Carpignano queira atribuir sentido, propósito redentor, à sua experiência imersiva, quando se deixou abalroar pela família Amato no seu domínio chamado A Ciambra e quando os abalroou com o seu cinema. A primeira meia hora, ainda antes da “história” que quer atribuir sentido a tudo, é deles e dos esquemas com que se esgueiram entre a máfia calabresa e a polícia: roubar carros e “negociar” a devolução. Não se sabe quem utiliza quem no mundo fechado de crimes e escapadelas que, ao permitir ao cinema entrar, lhe devolve uma mão-cheia de cenas com facas, roubos, cigarros e fumarada. É um pacto que não é de não ingerência. Mas tem a delicadeza de não objectificar pessoas e gestos. O realizador desvenda, tanto quanto é possível passar segredos, o método. “Os dias não eram estruturados. Aparecíamos às oito da manhã, filmávamos cinco ou seis horas e depois parávamos para almoçar e ficávamos por ali, pela casa. Quando sentíamos que estavam prontos, voltávamos a reuni-los e filmávamos o mais que podíamos — muitas vezes apenas duas horas. Comecei o filme com um outline de personagens e situações, mas o que ia vendo era sempre mais verdadeiro em relação ao lugar. Por exemplo, conversas entre duas pessoas numa colina. . . ou miúdos a queimar cobre. . . isso entrava na narrativa. ”A ideia de fazer os Amato “representar” os seus actos, concorda, podia ter resultados obscenos, mera imitação da verdade. “À medida que as conversas progrediam, eu dirigia-as para onde sentia que deviam seguir, mas o plano não era repetir a cena como se estivessem a representar as suas actividades. Por exemplo, os miúdos fumam. Nunca disse a algum deles ‘agora tens de aceder um cigarro porque na cena anterior estás a fumar’. A ideia era que fizessem o que normalmente fariam. Sabia que certas conversas iriam aparecer, que alguns iriam comportar-se de certa maneira. A cena do jantar em família, por exemplo: nunca disse que o principal seria a irmã de Pio embebedar-se, mas sabia que se nos sentássemos todos ficariam bêbedos porque isso tinha acontecido milhões de vezes antes, e que ela começaria a beber muito e que desceria aquele clima ligeiro de gozar com as conversas. Tinha acontecido sempre quando jantava com eles. Não, não era preciso recriar. ”Aliás, Jonas conta que, tendo havido “problemas técnicos” nas primeiras semanas de rodagem de que resultou o desfoque de cenas, foi necessário voltar a filmar, mas. . . “Nove em dez vezes acabei por utilizar o material desfocado. Quando eles tinham de fazer algo que já tinham feito, ficavam demasiado conscientes sobre os caminhos que a conversa devia tomar e para onde é que eu estava a conduzi-los. São quase todos analfabetos. Não havia argumento que pudessem ler. Quando chegavam, conversávamos, o que permitia manter a espontaneidade. Nunca foi o processo de dizer o que tinham de dizer. ”Por isso talvez aquele momento paradoxal que é a sequência do funeral. Durante o serviço fúnebre na igreja, o padre apresenta os membros da família do defunto e os planos de A Ciambra vão dizendo também quem é quem. O momento é paradoxal porque, dizendo-nos que eles são eles, mostra também que os Amato não estão reféns deles próprios, elevaram-se a personagens de cinema. “Conheci esta família quando estava na região a rodar uma curta” sobre a chegada a Itália de refugiados africanos (A Chjana/The Plain, 2012, seria o antepassado de Mediterrânea). “O carro com material técnico foi roubado por um dos irmãos de Pio. Fui negociar a devolução, mas não estavam disponíveis devido à morte de um familiar, só podiam negociar depois do funeral. Ou seja, a primeira coisa que vi deles como família foi o funeral. O carro que tinham roubado era fundamental para o meu trabalho, tive de esperar e pude observar tudo. Esse funeral estruturou para mim aquela família, delineou quem era quem, as relações que tinham uns com os outros, de uma forma que nunca fazem: é difícil saber quem é quem, de que forma estão relacionados. Foi por isso o momento, no filme, de explicitar de forma natural quem era quem. Não gosto quando os filmes traem a lógica de um mundo em favor da exposição. ”Caberá aqui, para resolver “o assunto” Martin Scorsese — é o produtor executivo – sem massacrar Jonas com o peso do italo-americano, contar que, do encontro que há semanas os dois tiveram em Bolonha, Jonas, nunca tendo perguntado directamente “porque é que se interessou pelo meu filme?”, acha que Scorsese “sentiu, ao ver A Ciambra, que estava a viver com aquelas pessoas. Que, não as conhecendo, conhecia-as bem”. Por essa razão, aliás, gostamos muito de Mean Streets (1973). Dias antes desta conversa, Jonas levou os Amato a almoçar na praia. Ao contar isto, quer sublinhar que a história entre eles começou antes dos filmes e continua após os filmes. “É uma relação que decorre. Foi um período intenso, vimo-nos todos os dias durante meses, mas agora não é um ‘cada um vai à sua vida porque o filme acabou’. Não. Antes já havia relação, éramos amigos mesmo antes de saber que faria um filme com eles. E enquanto não soube que tinha dinheiro para o filme, nunca lhes falei disso, não queria desapontá-los. Eles contam-me coisas, eles sabem coisas de mim. Antes de mim, ninguém tinha ido comer uma refeição a casa deles. ”Mas acrescenta: é uma relação de confiança com limites. “Sei que, embora gostem de mim, nunca poderei ser um deles. Dei-me conta, em algumas situações, e até por aquilo que no filme se passa entre Ayiva e Pio” — a amizade a concorrer com a fidelidade familiar —, “de que, quando encostados à parede, escolhem um deles e não a mim. Ou seja, sinto-me felizardo por ter chegado muito perto deles e muito perto dessa linha divisória e muito consciente dessa linha divisória”. “É verdade que Pio entrou na minha vida um pouco como tenta arrombar a porta” em A Ciambra, continua. Jonas, como contou, estava a trabalhar na curta A Chjana/The Plain. Quis expandi-la para uma longa mas não conseguiu pôr o projecto de pé” — haveria de ser Mediterrânea. Pio andava por ali “constantemente” à volta de Jonas, Jonas à volta de Pio. Decidiu filmar o novo amigo. “Foi com ele que se infiltrou em mim o conhecimento desse lugar” — A Ciambra, onde antes nenhum italiano entrara, seria então o título de uma curta antes de ser esta longa. “Eu passava, naquela altura, mais tempo com os africanos, mas comecei a conhecer os ciganos e senti-me incompleto se não incluísse Pio e a sua família” no que filmava. Jonas, Pio, Ayiva. Talvez chegue a altura para perceber o que atraiu e mantém o realizador interessado em Gioia Tauro, na Calábria, e nas mutações desse território, de contar que o realizador, 34 anos, filho de pai italiano e de mãe de Barbados, vivendo entre Nova Iorque e Itália (neste momento), sabe da sensação de não pertencer. Antes disso, uma revelação exaltante: Jonas é sobrinho-neto de Luciano Emmer, o realizador de filmes como Domenica d’Agosto ou Le ragazze di Piazza Spagna, que por sublimes que sejam não o salvaram do esquecimento. Sabe, desde criança, desde Nova Iorque, que o cinema é uma questão de território e pessoas, que cinema era sinónimo de Itália. “Cresci numa casa em que o cinema era importante todos os dias. Sempre houve discussões apaixonadas, os filmes eram parte da vida. Por isso, quando comecei a fazer filmes, vim imediatamente para Itália. Mas nunca disse a mim próprio que queria fazer parte da tradição do neo-realismo. Mas obviamente que, quando comecei a tomar decisões sobre como contar histórias, esses filmes, que foram os primeiros a emocionar-me e a formar-me, passaram a estar presentes. São as minhas referência. ”Nova Iorque, Itália, Barbados, brancos e negros. . . “Quando estou em Nova Iorque, sou o italiano; em Itália, sou o americano. Quando estou com brancos, sou o tipo de cor; quando estou com negros, sou o tipo de pele clara. Sempre senti que havia algo que me mantinha fora das pessoas que estão na estrada principal, sempre questionei o que era pertencer. Sou muito sensível a isso. O que me tocou em A Ciambra é que aquilo pelo qual aquela família é criticada, que é também a sua força: a solidariedade. Esse implacável ideal de que pertencem a uma tradição é o que os leva a serem segregados mas também é o que tornou possível que tivessem sobrevivido centenas de anos sem país sendo perseguidos em todos os países. Embora não me analise, não posso deixar de perceber que os filmes que estou a fazer têm lá dentro essa questão. À medida que exploro esta comunidade, acabarei por chegar perto de saber o que é que isso significa para mim. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os filmes que tem andado a fazer terminam com um desfoque. Com isso libertam a sensação de que algo continua para as personagens e que algo continua no trabalho de Jonas. Ver Mediterrânea e A Ciambra, um a seguir ao outro, como desafiávamos no início, torna nítido esse movimento de descoberta de um território e suas personagens. “Os filmes são processos de descoberta de pessoas que entraram na minha vida e como tal não quero nem posso prever o que essas pessoas serão. . . o desfoque é possibilidade de encontro mais à frente na vida, forma de dizer aos espectadores: ‘não pensem que sabem tudo sobre estas pessoas, quando voltarmos a elas iremos saber mais’, iremos saber o que lhes foi acontecendo ou onde elas estão. É uma forma de medir a temperatura. Não só desta região mas também deste país. ”A vida em Gioia Tauro, diz Jonas Carpignano, nascido em Nova Iorque, está a ser um processo de descoberta: chegar mais perto de si próprio.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano