Brasil. Vamos ser felizes só por teimosia
Duas semanas após a eleição de Jair Bolsonaro, o Brasil olha para o que se passou. Há um poeta diz que é preciso saber chorar e o Brasil não chora. E há medo, há perplexidade, mas há sobretudo uma tristeza que atravessa escritores e intelectuais. Eles fizeram campanha contra o presidente eleito e perderam. Porquê? Aqui fala-se de um tempo de fim de ciclo. (...)

Brasil. Vamos ser felizes só por teimosia
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.8
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Duas semanas após a eleição de Jair Bolsonaro, o Brasil olha para o que se passou. Há um poeta diz que é preciso saber chorar e o Brasil não chora. E há medo, há perplexidade, mas há sobretudo uma tristeza que atravessa escritores e intelectuais. Eles fizeram campanha contra o presidente eleito e perderam. Porquê? Aqui fala-se de um tempo de fim de ciclo.
TEXTO: Nicolas Behr leva o indicador direito aos lábios quando Chiquinho se aproxima da mesa com uma travessa na mão e conta que os dois costumavam escrever poemas. “Chiu!” Chiquinho finge que não ouve, que não vê. “Quer escutar? Assim: ‘Poetas e poetas, um dia eu vos poetarei’. ” Chiquinho é o dono do Beirute, um dos bares mais emblemáticos de Brasília, reduto de escritores, artistas, intelectuais. Fica na Asa Sul da cidade e cheio à hora de almoço num dia de muita chuva. Na placa, lê-se: “Beirute, desde 1966”. “Cheguei em 74”, diz Nicolas Behr, poeta, dono de um viveiro de plantas, brasileiro descendente de imigrantes alemães. Ele ri da suposta antiguidade do espaço onde é um cliente muito conhecido. Foi ali que conheceu a mulher com quem casou há 35 anos. Ela descia da bicicleta e ele disse-lhe “mais ou menos” um poema. “Era um bar da resistência. Brasília era então uma cidade muito pequena e tudo afluía aqui. Entretanto, a cidade cresceu, é mais dispersa, mas o Beirute continua mítico. E eu vendi muitos livrinhos de mão em mão aqui. Escrevia-os e fazia-os manualmente. ”Behr chegou a Brasília vindo de Cuiabá, cidade no estado do Mato Grosso. “A minha mãe veio trabalhar aqui. Fazia muito calor lá, sem grandes oportunidades. Eu tinha 15 anos. A cidade de Brasília não era a maravilha que é hoje. Não era arborizada. Eu saí do mato para viver numa maquete. Era uma cidade artificial. ”Conta que foi parar à poesia pela leitura, por estar num grupo de teatro e em movimentos muito politizados de cidadania estudantil. Foi preso duas vezes por participar em manifestações na Universidade de Brasília, em 1976 e 1977. Liam Maiakovski, Fernando Pessoa, viam filmes de Pasolini. “Pela primeira vez, uma geração de brasilienses, aqui nascidos ou não, assumiu a cidade. Nós amamos Brasília. Havia dança, música, poesia, literatura, filmes sobre Brasília. Isso foi importante para a afirmação da cidade”, conta, acrescentando que ainda seria preso uma terceira vez, em 1978, processado e levado a julgamento. A razão? “Por causa da poesia, dos livrinhos que eu fazia. Eles achavam que na minha casa havia uma central gráfica. Foram lá, não acharam e, como tinham de justificar a acção, processaram-me por posse de material pornográfico, uma coisa ridícula. Eu não tinha nada, mas diziam que os meus poemas eram pornográficos. ” Tinha acabado de fazer vinte anos. “As ditaduras são cobardes, medrosas e frágeis”, refere, a voz a tentar sobrepor-se a todas as outras vozes que, entretanto, transformaram o bar num imenso burburinho. Behr seria absolvido e tenta não mitificar esse passado. Pertence, simplesmente, à sua história. “Faço muitas palestras em escolas e os jovens tendem a ver os anos 1970 como uma época de glamour. Digo-lhes que não era bem assim, que se eles fizessem as perguntas que fazem nas escolas ia todo o mundo preso ou o director seria expulso. As pessoas ficam meio chocadas com isso, mas a gente tem sempre de desglamourizar o passado. ”Essa prisão foi há 40 anos. Nicolas Behr acaba de fazer 60 no momento em que o Brasil elege Jair Bolsonaro para a presidência do país. Para Behr e para muitos escritores, artistas, intelectuais é impossível não recuar a esse tempo. Este é um momento em que a memória surge de modo involuntário por necessidade de contextualizar o presente. Por isso, Behr vai à sua adolescência para dizer que está disposto a ser preso outra vez em nome da democracia. “Espero que não, mas se for preciso vou preso de novo. Sinto que é possível”, admite, “embora talvez seja só um bom alimento para a poesia”. Sorri. Tem um ar sereno; o tom é calmo; nos olhos, um misto de ironia e bonomia que os óculos de aros finos deixam passar. “Há um receio. Não se sabe”, continua, e afirma que não sente medo. “Na época tinha muito mais medo, não havia habeas corpus, podíamos ser presos sem mandato judicial. No novo regime não vai ser tão fácil, também não vai ser moleza, vai ser difícil; a gente também tem medo. As perspectivas não são boas, sobretudo quanto ao retrocesso de direitos adquiridos. Não sei porque é que o Brasil fez essa escolha. É uma escolha popular, mas é um retrocesso visível. ”Chiquinho traz uma travessa sem que ninguém tenha feito um pedido. “Não entendo a estratégia dele, traz esta comida para a mesa, não cobra, a gente come e não almoça!”, repara Behr, enquanto se serve, e serve quem está com ele, de carne com especiarias, arroz e farofa. Pede depois um arroz com lentilhas e cebola. Continua: “Nenhum regime, de esquerda ou de direita, gosta de poetas. Na Rússia foram maltratados por Estaline. Maiakovski foi quase forçado a se matar. Os poetas são imprevisíveis, uns chatos e não são a antena da raça. Não gosto desse conceito do Ezra Pound, acho uma bobagem. Mas o momento tem um lado muito interessante; é revelador de um Brasil que a gente não queria ver. ”Por exemplo, um Brasil que não sabe chorar. A ideia vem de outro poeta, Ricardo Aleixo, 58 anos, negro, de Minas Gerais. “Não sei bem por que motivo tendemos a ultrapassar as situações trágicas sem pranteá-las; atravessámos duas ditaduras e não as pranteámos Não choramos, vamos tocando o barco. Passámos pela escravidão negra, pela dizimação dos povos indígenas sem uma lágrima. ” A conversa também se faz à mesa, noutro bar associado à resistência, A Cantina do Lucas, um canto num edifício modernista no centro de Belo Horizonte, cidade de 1, 5 milhões de habitantes, onde Aleixo nasceu. Porque é que o Brasil não chora? “Talvez o Brasil seja muito macho”, responde. “Hoje podemos falar de uma certa naturalização da dor, do sofrimento, mas essa naturalização parece precedida de um esforço muito grande para corresponder às expectativas de sermos um povo feliz, um povo finalmente maduro, adulto. O país que se permite ser um país jovem, um país adolescente, tem um povo que tem de ser maduro e não chorar. É uma contradição. Uma das imagens emblemáticas da cultura brasileira contemporânea me parece ser o encontro de Darcy Ribeiro e Glauber Rocha [o antropólogo e escritor e o cineasta, exilados na ditadura militar] que passearam um dia os dois lamentado a sorte do Brasil. Poucos anos antes do Glauber morrer eles se abraçaram chorando o Brasil que não deu certo. Até tenho vontade de propor uma performance, de preferência em São Paulo, para chorar. Chorar o Brasil. É preciso chorar o Brasil. ”A conversa com Ricardo Aleixo acontece uma semana após a eleição de Bolsonaro. A de Nicolas Behr quase duas semanas depois do dia 28 de Outubro. Um dia que não surpreendeu nem um nem o outro no resultado que trouxe. “Como a minha tendência é ler o Brasil a partir da via negativa eu não esperava nada de diferente”, diz Ricardo Aleixo, voltando àquela noite que viveu no seu lugar de sempre: a casa. “Vivi aquela noite com uma percepção de que o abismo é muito maior. ” E dá o contexto pessoal. “Moro no bairro para onde fui com a minha família aos nove anos. Chama-se Campo Alegre. Esse nome é uma das muitas ironias do positivismo do Brasil. Veja, Campo Alegre, na cidade de Belo Horizonte, nas Minas Gerais!, tudo a apontar para riquezas. Mas o Campo Alegre é originalmente um lugar para onde foram 556 famílias entre pobres e miseráveis de Minas Gerais. Eu morava num bairro mais próximo do centro. O meu pai era baixo funcionário do Ministério da Agricultura e a ditadura militar criou, em 1969, um programa de casas populares. O meu bairro é o segundo conjunto habitacional criado em Minas. Hoje é um bairro de classe média com uma visão do mundo alterada o bastante para discriminar pessoas de bairros vizinhos. As pessoas têm muito medo das outras pessoas que moravam na favelinha. Então, a comemoração da vitória do Bolsonaro foi algo de horripilante. A minha casa fica num buraco, é uma caixa acústica. Além dos foguetes, o que mais me chocou foram os tiros, o cheiro de pólvora e sobretudo ouvir uma voz de criança de uns oito, nove anos, gritando "Ehhh Bolsnonaro!!!". Ricardo Aleixo volta às lágrimas, à falta delas, ao trauma. “Sabe, é como quando a mãe repreende uma criança apanhada a fazer algo errado e lhe diz, quando ela chora, para engolir o choro. Eu vivi numa família um pouco diferente, eu podia chorar, o meu pai chorava. De há uns anos para cá isso ficou ainda pior. Com o avanço das igrejas neo-pentecostais, o individualismo cresceu e a falta de perspectiva colectiva aumentou. É cada um por si, a meritocracia. Temos a tendência para continuar a viver a sobrevida de todos os dias, mesmo com a perda de direitos. . . A vitória de Bolsonaro, mas já antes a deposição de Dilma, parecem fruto desse imediatismo da sociedade brasileira, desse individualismo também, da falta de perspectiva colectiva, da falta de diálogo e isso tem muito a ver com as redes sociais, a possibilidade de todo o mundo dizer tudo o que quiser a qualquer momento sem mediação. E num contexto em que todo o mundo pode falar talvez ninguém possa porque ninguém ouve ninguém. ”Aleixo, como Behr, participam de um projecto chamado Artes da Palavra. É uma iniciativa do SESC, Serviço Social do Comércio, associação privada mantida pelos empresários do comércio que presta serviços ligados ao bem-estar, à educação, turismo e cultura dos familiares de funcionários do comércio como da população em geral. Tem um papel essencial junto dos grupos economicamente mais desfavorecidos de todo o Brasil. Após vencer as eleições, Jair Bolsonaro anunciou a intenção de impedir que o SESC canalize dinheiro para a cultura, o que causou espanto junto de grande parte da comunidade artística e intelectual. “Este ano já passei por 17 cidades em seis estados. Faltam quatro cidades no Rio Grande do Sul”, conta Ricardo Aleixo. “Não desperdicei nenhuma das apresentações para falar de como vejo o momento que atravessamos e que nos atravessa. A situação que vivi ao longo deste ano foi muito privilegiada, viajando para estar em lugares onde era esperado. Os meus livros já tratam das questões políticas e havia uma expectativa de que eu fosse falar dessas coisas. Como tinha um excedente de paciência porque venho sendo muito bem tratado, não tive nenhuma tensão na minha família, não soube de caso nenhum de pessoas pró-Bolsonaro, pude ter um armazenamento de energia e viver o meu luto pelo golpe [a destituição de Dilma Rousseff, em 2016], e a preparar-me para o pior. As pessoas perguntam como estou com a expectativa de que responda que estou mal como elas estão e eu digo: estou muito alegre. E estou muito alegre, mesmo. Acima de tudo porque sou alegre; a alegria é um valor para mim. Não tento disfarçar situações. ”É uma alegria que Ricardo Aleixo remete para a cosmovisão africana. “O meu ponto de vista sobre o mundo e sobre a sociedade brasileira em especial é o ponto de vista da população negra, de quem pensa que nem deveria estar aqui. Nós, negros brasileiros, tínhamos todas as razões para desistir. Quando a gente se muda para Campo Alegre, meu pai já era um pré-idoso, tinha mais 50 anos que eu e a minha mãe mais 42. Essa casa que, como a minha mãe falava, era em Campo Triste, porque não tinha pavimento, a luz falhava muito, andava-se quase um quilómetro para apanhar ónibus, era um horror — foi o único bem que meu pai e minha mãe conseguiram ter a vida inteira. É quando deixam de pagar o aluguer que conseguem realizar a entrada da minha única irmã na universidade, e é o que lhes permite aceitar a minha comunicação, aos 19 anos, que não queria mais estudar formalmente; iria ser um autodidata. A situação deles mudou tanto para melhor que puderem olhar com naturalidade a minha decisão. ‘Quero ser artista, quero ser escritor’, e a família toda trabalhou no sentido de eu poder vivenciar o meu sonho. Isso faz com que eu não tenha uma visão amarga da vida; negativa sim, do mundo, não da vida. ”Ricardo recorda então uma frase de Gramsci, a ideia de que não ter uma perspectiva negativa libera espaço na cabeça para ver o que não é ruim, o que não é derrota, o que é possibilidade. “Veja, demo-nos ao luxo de assistir passivamente à crise na Grécia como se nenhuma crise nos pudesse atacar! Essa crença de que somos um povo eleito, um país eleito, de que Deus é brasileiro! A minha posição pessoal é definida pela observação do deslocamento das pessoas negras pelo menos desde o início do século XX. O meu pai nasceu em 1911, 33 anos depois do acto técnico e administrativo que aboliu formalmente a escravidão no Brasil. Ele conheceu pessoas que foram escravizadas. O esforço dessas pessoas foi sempre o de tentar cooperar a partir do mínimo. É o que temos, cada dia é um dia em que você não morreu nem de fome nem de tristeza, naquele dia há mais uma chance. ” Daí, a alegria, “uma alegria mais importante do que a esperança, porque a esperança é devir enquanto que a alegria é aqui e agora. É a alegria, inclusive, de não ter morrido. É a alegria como graça. Estou alegre, isso ninguém me tira. Clarice Lispector tem uma frase parecida com isso que é: ‘vamos ser felizes só por teimosia’. Há muita gente querendo que nós nem saiamos mais de casa, que fiquemos só a lamentar o que nos foi tirado. ”Cita então a frase da líder camponesa Margarida Alves, assassinada em 1983 pelos latifundiários da Paraíba. “Uns dois anos de ela morrer perguntaram-lhe numa entrevista: ‘A senhora não tem medo de morrer assassinada pelos fazendeiros?’ E ela respondeu: ‘Medo nós tem, mas não usa’. O pobre é acostumado a não usar o medo que tem. ”Na outra mesa, noutro estado, o Estado Federal de Brasília, Nicolas Behr também decidiu cedo que não faria a universidade apesar de ter estado envolvido nos movimentos universitários. E também ele fala da queda do mito do Brasil enquanto país de samba, praia e futebol, o país alegre. “Descobrimos que somos um país conservador. Mas talvez seja um povo feliz, o que faz com que os políticos abusem muito. O Brasil é o país das grandes distorções”, afirma Behr quando outra voz se ouve na mesa. É a de Lúcia Helena Ribeiro, professora na Universidade de Brasília, especialista em literatura portuguesa, uma gaúcha descendente de portugueses, natural do Rio Grande do Sul e há 19 anos em Brasília. “Há uma grande falta de cidadania. ” Behr concorda. “Sim o brasileiro vota e acha que já fez a sua parte. ” Quanto ao envolvimento dos intelectuais na campanha, ao apelo que fizeram que que não surtiu o efeito desejado, o poeta afirma: “O escritor, o intelectual, não tem tanta importância mais, porque o livro também não faz parte do nosso dia-a-dia. Trinta por cento dos brasileiros nunca compraram um livro. ”Lúcia Helena fala da descredibilização das universidades junto da população. “Muitos vêem a universidade como um lugar de vagabundos, onde ninguém trabalha. Há uma campanha de demonização. Mas o intelectual também tem alguma culpa, separou-se do mundo enfiado nas suas pesquisas. ” Para Behr, “eles são não mais uma referência”. E acrescenta: “Hoje, os reverenciados são os formadores de opinião, os comentaristas, são eles que têm influência. Mas eu espero que a gente continue incomodando. ” Como se faz isso? “Escrevendo, publicando. ”Milton Hatoum, o autor de Dois Irmãos e Retrato de Um certo Oriente, amazonense de Manaus, filho de imigrantes libaneses, amigo de Behr que conheceu em Brasília, diz-nos, por sua vez: “Graciliano Ramos dizia, talvez com ironia, que as armas dos escritores são fracas: caneta e papel. Nossa voz é transmitida por um altifalante de baixa potência, cujo alcance é pequeno. Mesmo assim, vários escritores e escritoras manifestam-se em palestras, conferências, artigos na imprensa e nas redes sociais. ”Tarso de Melo, advogado, poeta, natural de Santo André, estado de São Paulo, onde nasceu há 41 anos, refere: “Os escritores podem escrever, claro, e actuar com outros escritores e, principalmente, unir-se a colectivos, formados por pessoas de diferentes áreas. Toda a forma de associação e solidariedade em que puder se engajar será muito importante a partir daqui, inclusive para aprender com as perspectivas de pessoas que não vivem no restrito circuito da literatura, da cultura, das artes. Na sua função específica, além disso, acho que cabe ao escritor rever criticamente a forma como se comunica, escrever cada vez mais com a consciência de que aquele fosso, dito acima, define a circulação e o alcance de seus textos, de suas ideias. ” Beatriz Bracher, 57 anos, outra escritora paulistana, tem um lamento. “O meu negócio é escrever e parece que escrever é a coisa mais inútil. ” Diz isto e emociona-se. “Tudo o que sei fazer não adianta nada. O que sei fazer não adianta para o que é preciso fazer. Não sei o que fazer”, emociona-se outra vez e a voz some-se. Como se não houvesse muito mais. “Um escritor pode escrever”, afirma simplesmente o carioca Bernardo Carvalho, 58 anos, autor dos romances Nove Noites ou Mongólia. A brevidade do comentário de Bernardo de Carvalho tem a ver com o dia em que a proferiu: o dia seguinte à eleição em que não escondia a tristeza. “O Brasil é um dos países mais hipócritas e contraditórios do mundo. O discurso do Bolsonaro se aproveita justamente disso. O discurso de artistas e pensadores tem pouca ressonância num país deseducado, de iletrados e analfabetos, para não falar na pobreza e na violência a que essa gente está sujeita. São mais de 200 milhões de habitantes. A tiragem média de um livro é de três mil exemplares. ” Sobre a espécie de descrédito dos intelectuais, diz ainda: “É normal que gente que vota à extrema-direita seja contra os intelectuais, não? Foi a mesma coisa nos Estados Unidos, com Trump. ” Diz que é preciso “tentar resistir como for possível”, e conta uma história pessoal de medo. “Horas antes do resultado do segundo turno, saindo de um restaurante nos Jardins [bairro de as cidade de São Paulo, onde o escritor vive] com o adesivo do Haddad na camisa, ouvi de um típico casal da burguesia paulistana, que passava na sua SUV: ‘Vai pra Venezuela, veado!’ O filho adolescente de um amigo foi ameaçado de morte por colegas de escola, uma escola frequentada por crianças da alta burguesia local, depois de ter participado da ocupação de um edifício no centro da cidade, com o movimento dos sem-tecto. É só o começo. ”Lúcia Helena também tem uma história para contar: “Uma menina foi espancada por sete alunos na universidade por andar de mão dada com outra menina. ” Behr ouve. Não há muito a dizer, apenas que o discurso de Bolsonaro “veio legitimar qualquer coisa que existia no subterrâneo brasileiro e não vinha à tona”. “Não vinha à tona por pudor, agora sentem que já podem. Já podem tudo porque se sentem protegidos pelo poder que aí vem. ”É o medo que impede outro escritor de se identificar. Ele tem medo. Também no dia seguinte às eleições diz: “Há um clima bastante tenso no ar. Parte do eleitorado do Bolsonaro já se sente dono do país, como se o resultado das urnas autorizasse uma série de actos de violência. Na noite de domingo, quando saiu o resultado da eleição, pessoas saíram armadas para a rua, para festejar a vitória; outras já se animavam a caçar petistas; negros e LGBT's começaram a ser perseguidos e provocados, e por aí vai. Ou seja, esses eleitores se sentiam acima de qualquer lei, alimentados pelo discurso de intolerância do novo presidente. Uma deputada recém-eleita do partido do presidente fez uma convocação na internet para que os estudantes filmassem as aulas dos professores universitários e as divulgassem, caso eles falassem sobre a eleição e criticassem o presidente eleito. Vários episódios isolados de violência foram surgindo aqui e ali no país. Hoje mesmo, no Congresso, os aliados do futuro presidente tentaram votar o projecto Escola Sem Partido, que busca amordaçar os professores em sala de aula, pois, na visão deles, os professores transformaram a sala de aula em espaço de doutrinação esquerdista; outro projecto que já foi colocado em pauta é a criminalização dos movimentos sociais, como MST e MSTS; o próprio Bolsonaro, em entrevista na televisão, atacou o jornal Folha de São Paulo, ameaçando cortar verbas publicitárias do seu futuro governo. Enfim, essas ameaças, esses ataques geram um clima de insegurança em relação a liberdade de imprensa a partir do próximo ano. Enfim, estou apenas relatando o clima geral. O país, que já estava tenso, está mais ainda. ”Noemi Jaffe, 56 anos, professora universitária, escritora, autora do livro O Que Os Cegos Estão Sonhando, descreve o actual momento como de dormência e perplexidade. “Há muita preocupação e angústia; a gente não sabe o que vai acontecer, as declarações de Bolsonaro são contraditórias. A equipa se contradiz muito. Será que as atitudes vão dar numa ditadura ou tudo será um pouquinho mais moderado? Mas mesmo no melhor cenário vão acontecer muitas perdas. ” Jaffe receia que a terceirização da sociedade, anunciada pelo novo presidente, leve a uma diminuição do desejo de frequentar a universidade, associada à intenção de privatizar o ensino superior. “As melhores universidades brasileiras são públicas”, salienta. “Mas a pior coisa em termos de projecto é o Escola Sem Partido [projecto de 2004 que pretende o que chamam uma escola sem doutrinação ideológica]. Isso é o fim, dá vontade de ir embora. Transforma professor e aluno em inimigos. É acabar com a educação. ” Lúcia Helena também fala desse temor e diz que não há ensino sem ideologia. Isso não significa que o professor doutrine os alunos. “No dia seguinte às eleições disse na minha aula: ‘Se alguém quiser gravar a minha aula vai ter de pagar porque eu sou cara’. ” Era a resposta a uma governante que pedia aos alunos que denunciassem, através de gravações por telemóvel, atitudes suspeitas de professores. Uma e outra professora não livram a esquerda de culpa. Lembram como Bolsonaro conseguiu atingir o brasileiro mediano para baixo, que está cansado de políticos e de violência. E Noemi sublinha o desprezo votado aos intelectuais. “A esquerda é muito marcada pela intelectualidade. O raciocínio das pessoas é: ‘Vocês teorizam, teorizam, mas não pegam duro’; é a ideia da esquerda caviar que despreza o povo. E não estão totalmente errados. A esquerda no Brasil são muitas esquerdas, mas dá para generalizar; ela se esvaziou, se desiludiu consigo mesma. Depois das manifestações de 2013 e da apropriação do que era da esquerda pela direita, a esquerda praticamente ficou anestesiada, olhando sem conseguir actuar. ” Quanto ao medo: “Estava com medo e agora não estou com tanto medo. Acho que não vai haver perseguições aos gays, por exemplo, mas vai ser uma coisa mais subtil e subliminar e quando a gente se der conta já perdeu muita coisa. Perdemos o essencial: os direitos sociais, a educação, a cultura. ”O medo, palavra repetida à exaustão. Um longo eco que atravessa o Brasil. O que quer dizer? Como pode levar à entropia? Que medo é este? “É preciso exorcizar o medo. Passei a minha juventude e parte da vida adulta sob a ditadura civil-militar, fui detido e fichado pelo DOPS [polícia política], mas nunca deixei de protestar contra um sistema opressor. Nessas eleições, quando me sentia angustiado ou acuado, lia poemas de Drummond, Manuel Bandeira, João Cabral, Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Adonis, Wallace Stevens. A poesia é essencial ao espírito. Lia esses poetas e escrevia o segundo volume da trilogia O lugar Mais Sombrio. A escrita e a leitura me movem e comovem. Mas se for necessário ir às ruas e protestar, farei isto sem hesitar. E, sem hesitar, afirmo que os brasileiros elegeram o mais estúpido e ignorante presidente desta triste América. Esse capitão reformado é, sem dúvida, um homem bruto e oco, sem uma única qualidade ética e moral. Preferiram essa figura sinistra a Fernando Haddad, um professor competente e ex-prefeito de São Paulo. Além disso, Haddad foi um excelente ministro da Educação, sem dúvida o melhor deste país, cujo povo necessita exactamente disso: formação educacional de qualidade. ” É Milton Hatoum, triste, por reviver um passado que não queria ver ganhar corpo, outra vez. “Há uma geração muito derrotada, muito triste, uma geração que não queria passar por tudo isto outra vez”, refere Rodrigo Lacerda. “Ponho-me no lugar deles e tento imaginar. Se eu estou triste, como estarão os que sofreram na ditadura militar e agora não sabem o que aí vem?”Na ressaca da eleição, Julián Fuks sentiu a urgência de escrever. O escritor de São Paulo, autor de A Resistência, publicou um artigo no jornal britânico The Guardian onde contava o exílio dos avôs, judeus que saíram da Roménia na II Guerra Mundial devido ao anti-semitismo nazi, e depois o dos pais, que fugiram da Argentina na ditadura. Será que era agora a vez dele?, interrogava-se. “O escritor talvez não possa muito num contexto como esse. O escritor pode não mais do que qualquer outro cidadão num contexto como esse. Trava a sua batalha na esfera individual na maior parte dos casos, mas penso que tem a seu favor uma ferramenta fundamental, em particular num país que tem combatido tanto o pensamento, a palavra e a cultura de uma maneira geral. O escritor tem ao seu dispor o seu discurso, as suas palavras, a sua razão e me parece que são armas importantes neste momento. São as únicas armas viáveis e aceitáveis no momento em que o outro lado defende clamorosamente a manipulação e a distribuição de armas literais. Neste momento, o escritor só tem ao seu dispor a sua palavra e com ela pode ter bastante alcance, acredito. ”Milton Hatoum mostra um misto de cansaço e de vontade de não se acomodar. Nunca. Falou muito, escreveu muito, fez campanhas, manifestos. Como Julián Fuks ou outro escritor, Nuno Ramos. Não queriam Bolsonaro em Brasília. Mas o povo quis. Contra os intelectuais, contra toda a argumentação dos escritores. “Uma grande parte direita brasileira e certamente todos os extremistas desprezam ou até mesmo odeiam intelectuais e artistas. São pessoas a que se refere Virginia Woolf no Mrs. Dalloway, uma personagem ‘que vinha da mais imprestável das classes – a dos ricos com verniz de cultura’. No Brasil há poucos verdadeiros liberais (da direita liberal) como se vê em Portugal e em outros países da Europa. Li declarações de jornalistas e políticos da direita portuguesa. Todos criticavam a atitude fascista do capitão [Bolsonaro]. Senti inveja dessa direita”, refere Hatoum. Julián Fuks, sobre isto, diz: “Acho que há um pensamento fortemente anti-intelectual nos tempos recentes, já que essa aliança entre intelectuais e operariado no PT resultou em algo que boa parte da população agora rechaça. O que a gente vê é isso, o pensamento de esquerda e o pensamento académico também sofrem de uma queda de autoridade. E nos casos mais extremos isso se manifesta como perseguição ao próprio pensamento académico e evidente perseguição à esquerda. Nas vésperas das eleições, a gente viu uma investida jurídico-policial nas universidades para que não houvesse troca de ideias, para que não houvesse actos políticos, debates ou pronunciamentos. É uma coisa muito assustadora ver nas universidades esse anti-intelectualismo ganhando corpo de forma bem radical. Dá para ver que essa vai ser uma das fronteiras do confronto, vai ser uma das linhas de frente da defesa da liberdade de cátedra, da liberdade de pronunciamento contra, inclusive, essa noção de escola sem partido, de universidade sem partido, de uma suposta supressão da ideologia nesses espaços quando a gente sabe que essa própria supressão já é por si mesma ideológica. ”Que desafios, então, se põem neste momento ao país? Milton Hatoum responde: “O maior desafio é defender a democracia e a Constituição de 1988. Bolsonaro tomará posse em Janeiro, mas há inúmeros casos graves, verdadeiros atentados à democracia. Em Outubro, um líder sindical e dois eleitores de Fernando Haddad foram assassinados por apoiantes do capitão. Houve e ainda há agressões verbais e físicas contra professores, jornalistas, intelectuais e artistas. Vários campus universitários foram invadidos pela polícia. Há todo o tipo de violação ao estado de direito. E isto não se limita a pessoas ligadas à cultura. Além disso, a floresta amazónica e o cerrado podem ser devastados. É uma tragédia para o meio ambiente e para os povos indígenas. ”Outro desalento. Parece o sintoma comum a todos os escritores. “Nunca pensei assistir a essa crise”, afirma Rodrigo Lacerda, editor, escritor, 49 anos, natural do Rio de Janeiro, a viver em São Paulo, autor do romance Outra Vida. “Era uma crise que ameaça estourar de novo desde a destituição de Dilma Rousseff, há dois anos. O Brasil é como um ex-alcoólico, ele não pode tomar o primeiro copo de whisky ou amanhece três dias depois em Maceió. ” É outra conversa à mesa, num restaurante do centro de São Paulo, onde o escritor traça, também ele, um paralelo entre a crise profunda no mercado editorial brasileiro e o estado actual de um Brasil que escolhe alguém como Bolsonaro, por mais que esse Brasil esteja cansado da insegurança, da corrupção, do crime, da pobreza. “É preciso que o centro-esquerda e a esquerda façam uma auto-crítica. Não estamos aqui por acaso”, afirma. Beatriz Bracher vai mais longe nessa ideia: “Não houve um compromisso de esquerda, ou centro-esquerda, um acordo. Cada partido quis cuidar de si e a gente é que está tramado. Sinto-me traída pelo centro-esquerda. ”Maria Esther Maciel, professora, escritora, ensaísta também não esconde a angústia. “O momento é assustador. Nunca pensei que pudesse viver algo assim no meu país: a eleição de um presidente truculento, sustentado por fundamentalistas religiosos, que ameaça as minorias, faz apologia das armas e da tortura, é avesso a práticas ambientalistas e defende o desmatamento da Amazónia, em nome do ‘progresso’ económico. Temo pelas minorias raciais, sexuais, culturais. Temo pelos pobres. Temo pela cultura, pela educação, pela pesquisa. É o momento sombrio de um país à beira do precipício. ” É um temor semelhante ao que sente Beatriz Bracher que enumera uma série de iniciativas e de ONG’s a trabalhar no Brasil em defesa dessas minorias, ou, como também prefere dizer, dos mais vulneráveis. Com Noemi e com Esther Maciel, também refere o fosso entre elites intelectuais e o resto da população. É Esther quem sintetiza: “Infelizmente, a ignorância – seja a decorrente da falta de investimentos na educação, seja a estimulada por grupos religiosos e pelos meios de comunicação — venceu o esforço que muitos escritores, artistas, intelectuais e cientistas fizeram para impedir o avanço dessa extrema-direita no Brasil. Houve também o ódio ao ‘petismo’ que cegou grande parte dessas pessoas para os perigos da eleição de Bolsonaro. Certamente, os escândalos de corrupção amplamente divulgados pelos media contribuíram para isso, assim como o ódio e a intolerância. Soma-se a isso a campanha suja das fake news que confundiu muita gente. ”E a literatura clama pela literatura. “A certa altura do processo eleitoral, lembrei-me muito do romance de Saramago, Ensaio sobre a Cegueira. Tem tudo a ver com o que acontece no Brasil hoje”, diz ainda Maria Esther Maciel, 55 anos, natural de Patos de Minas, cidade a noroeste de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, que lembra, como durante a campanha eleitoral, os grupos reacionários se empenharam a disseminar a palavra “comunista” para designar artistas, escritores e professores. Maciel diz ainda que a partir de agora é preciso “exercitar, mais do que nunca, os poderes da imaginação e dos sentidos, para que a vida seja possível”. Ou seja, “munir-se de um pouco de utopia para enfrentar as grandes e pequenas violências que assolam a realidade presente; empenhar-se a mostrar o aqui/agora do mundo fora dos enquadramentos; ou, parafraseando Sophia, apreender a não ceder aos desastres. Ela disse ‘sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres’. ”Todos, sem excepção, falam do fosso entre escritores e população. Como Milton Hatoum, que lhe acrescenta um “mas”: “Mas não podemos esquecer que muitos eleitores ‘escolarizados’ e ‘diplomados’ votaram em Bolsonaro. São pessoas ingénuas, sem discernimento político, sem a compreensão do processo histórico. Mas entre esses diplomados há também muitos oportunistas, gente que não quer perder privilégios. Por exemplo, Bolsonaro foi o único deputado que votou contra o PEC das Domésticas [nome popular dado à Proposta de Emenda à Constituição n. ° 66 de 2012 que dá novos direitos às empregadas domésticas no Brasil]. Muitos brasileiros abastados, acostumados à boa vida, querem manter empregadas mal remuneradas, sem direitos sociais e trabalhistas. Na minha infância em Manaus, muitas empregadas trabalhavam sem receber salário e eram humilhadas pelas patroas. Eram as ‘agregadas’ das famílias burguesas, personagens que aparecem nos romances de Machado de Assis e de outros escritores daquela época. Sob vários aspectos, o Brasil ainda não saiu do século XIX. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O tom de Rodrigo Lacerda traz uma serenidade triste: “Desde a redemocratização o Brasil, aos trancos e barrancos teve avanços, conseguiu travar a inflação, estabilizar a economia, que era básico para tudo o resto poder acontecer. Sobretudo no período de Fernando Henrique Cardoso e na primeira metade do governo Lula esses avanços foram sensíveis para a população. Mas depois o Brasil se acomodou e dormiu nos próprios louros e essa paralisia institucional acabou por comprometer os bons resultados. A constatação de que o bom momento tinha passado e que a gente não tinha aproveitado para fazer algumas reformas importantes, como a legislação trabalhista, que é dos anos 40, virou num jogo de culpabilização mútua e tomou uma forma que não tinha antes. A passagem do governo de Fernando Henrique Cardoso para o de Lula foi uma verdadeira passagem democrática, chamada festa da democracia. O Brasil teve o gostinho do que é viver uma transição de uma maneira civilizada. Mesmo pessoas que não votaram no Lula estavam felizes. Parecia que o Brasil tinha aprendido o que era democracia. Um trabalhador podia ser eleito presidente da República. Mas isso se desmoronou nos últimos anos. O fosso foi-se reabrindo. E agora estamos assim. É muito triste. ”Da mesa do restaurante de São Paulo, ainda em Outubro, ainda na ressaca mais dura, passamos para a mesa do bar em Belo Horizonte, já Novembro, outra maneira de sentir a mesma derrota. Estamos outra vez com Ricardo Aleixo num reduto de resistência. Olham-se os rostos à volta, há todas as gerações, homens e mulheres. Conversam, comem, bebem uma cerveja, uma cachaça. Os empregados de mesa parecem conhecer toda a gente. Pergunta-se a Aleixo se ali alguém votou Bolsonaro. “O dono”, responde. “Descobri o noutro dia. ” Aponta para uma fotografia na parede. “Aquele homem ali. É o senhor Olímpio, muito famoso aqui. Ele usava no peito uma tarjeta do Partido Comunista em plena ditadura. Ajudou a esconder muita gente. Este lugar foi aberto em 1962”, conta, num momento de grande vigor crítico ligado ao cinema. “Este era um dos pontos de encontro de gente como Silviano Santiago, Sérgio Sant'Ana, os músicos; o primeiro trabalho de Milton Nascimento foi aqui num bar chamado Lua Nova. Este lugar é memória viva. O senhor Olímpio tinha um modo muito próprio de lidar com a clientela. É um lugar de memória da resistência contra a ditadura militar. Caetano Veloso lançou aqui o livro Alegria Alegria. Tudo aqui está marcado pela arte e pela cultura. Ironicamente. . . o dono votou Bolsonaro. Eu continuo a vir aqui como resistência e como provocação. . . ” Muda de assunto. Aquele incomoda-o. “É hora de ser maduro. E não cometer um pecado típico do Brasil: deixar para as novas gerações a tarefa de reconstrução. A geração de hoje é feita de todos os que estão vivos hoje. ”
REFERÊNCIAS:
Dêem-nos alguma coisa em que acreditar
Os portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela democracia em 1975. Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80. Lutaram pela entrada na moeda única durante a década de 90. Não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia. O discurso na íntegra de João Miguel Tavares nas comemorações do 10 de Junho, a cuja comissão organizadora presidiu. (...)

Dêem-nos alguma coisa em que acreditar
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela democracia em 1975. Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80. Lutaram pela entrada na moeda única durante a década de 90. Não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia. O discurso na íntegra de João Miguel Tavares nas comemorações do 10 de Junho, a cuja comissão organizadora presidiu.
TEXTO: Senhor Presidente da República Portuguesa, Senhor Presidente da República de Cabo Verde, Autoridades civis e militares, Minhas senhoras e meus senhores. IEu vivi e cresci a 100 metros do local onde me encontro, ali mesmo, no cimo da Avenida Frei Amador Arrais. Foi nessa casa que habitei até fazer aquilo que a maior parte dos portalegrenses faz após acabar o secundário: deixar a cidade para ir estudar fora, na universidade. Boa parte dos portalegrenses, infelizmente, já não volta a viver aqui. Eu não voltei. Mas aquela será sempre a minha casa. E esta foi, é e será sempre a minha cidade. Tenho a honra de ser o primeiro filho da democracia a presidir às comemorações do 10 de Junho. Não sei o que é viver sem liberdade. Devo ao Portugal democrático e ao Estado português boa parte daquilo que sou. Sou filho de dois funcionários públicos. Fiz o ensino básico e secundário numa escola pública. Licenciei-me numa universidade pública. Portugal não falhou comigo. Permitiu que um simples estudante de uma cidade do interior, sem qualquer ligação à capital e às suas elites, fosse subindo aos poucos na vida e chegasse até aqui. O meu crescimento acompanhou o crescimento da democracia portuguesa. Vi o quanto o país mudou. Até ao final da década de 90, Lisboa estava a mais de quatro horas de autocarro de Portalegre, e a essa distância física correspondia uma ainda maior distância cultural. Os livros eram poucos e vendiam-se nas papelarias; o cinema só funcionava ao fim-de-semana; as bandas que nós queríamos ouvir não passavam por cá. Mas o país progredia, e eu via-o progredir. Os meus pais estudaram mais anos e tiveram mais oportunidades do que os meus avós. Eu estudei mais anos e tive mais oportunidades do que os meus pais. Como acontecia em tantas casas, a minha família investia parte do salário a comprar livros e enciclopédias que chegavam pelo correio, a prestações. Esses livros representavam o conhecimento e a educação que as famílias ambicionavam para os seus filhos. Os pais lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos chegariam às universidades. Estudariam dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso. Viajariam mais. As suas férias não estariam limitadas aos 15 dias em Albufeira. Seriam grandes. Seriam felizes. Seriam europeus. A geração dos meus pais sacrificou-se para que os filhos tivessem o que eles nunca tiveram. Mas é possível que eles tenham tido aquilo que mais nos tem faltado nos últimos vinte anos: um objectivo claro para as suas vidas e um caminho para trilhar na sociedade portuguesa. Os portugueses lutaram pela liberdade em 1974. Lutaram pela democracia em 1975. Lutaram pela integração na Comunidade Europeia nos anos 80. Lutaram pela entrada na moeda única durante a década de 90. Não é fácil saber porque é que estamos a lutar hoje em dia. IIÉ nessa dificuldade que repousam tantas das nossas angústias. As pessoas de hoje não são diferentes das de ontem: enquanto indivíduos, continuamos a amar, a sofrer, a chorar, a rir, hoje como sempre. Boa parte de nós, talvez julgue mesmo que a política é somente um cenário longínquo, distante da vida que nos importa, que é aquela que está mais próxima de nós. Daí o chamado “desinteresse pela política”. Mas creio que este sentimento é já uma consequência dos nossos próprios fracassos. A integração na Europa do euro não correu como queríamos. Construímos auto-estradas onde não passam carros. Traçámos planos grandiosos que nunca se cumpriram. Afundámo-nos em dívida. Ficámos a um passo da bancarrota. Três vezes – três vezes já – tivemos de pedir auxílio externo em 45 anos de democracia. É demasiado. Perguntamo-nos como foi isto possível. Criámos comissões de inquérito para encontrar responsáveis. Descobrimos um país amnésico, cheio de gente que não sabe de nada, que não viu nada, que não ouviu nada. Percebemos que a corrupção é um problema real, grave, disseminado, que a Justiça é lenta a responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o suficiente a enfrentá-la. A corrupção não é apenas um assalto ao dinheiro que é de todos nós – é colocar cada jovem de Portalegre, de Viseu, de Bragança, mais longe do seu sonho. O sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje vai-se desvanecendo, porque cada família, cada pai, cada adolescente, convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos certos. Que é preciso nascer na família certa. Os miúdos que não nasceram nesse tipo de “família certa” têm direito aos mesmos sonhos que os filhos das elites portuguesas – todos nós concordamos com isto. Mas será que estamos a fazer alguma coisa para que aquilo com que concordamos se torne realidade? Será que podemos garantir que o talento conta mais do que a família em que cada um nasceu? Será que a igualdade de oportunidades existe?Quando eu digo à Carolina, ao Tomás, ao Gui ou à Rita – os meus quatro filhos – “leiam mais, trabalhem mais, que o vosso esforço será recompensado” – será que lhes estou a dizer a verdade?Os meus pais disseram-me isso a mim. E eu estou aqui. Mas será que a mesa está equilibrada e o elevador social funciona hoje da mesma forma? Ou a vida estará bem mais difícil para um jovem na casa dos vinte anos, que numa economia de baixo crescimento tem de competir com uma geração mais velha já licenciada, integrada num mercado de trabalho rígido, que confere muita protecção a quem tem um lugar no quadro e muito pouca protecção a quem não o tem?No nosso país instalou-se esta convicção perigosa: um jovem talentoso que queira singrar na carreira exclusivamente através do seu mérito, a melhor solução que tem ao seu alcance é emigrar. Isto é uma tragédia portuguesa. Não podemos condenar os nossos filhos ao discurso fatalista de um Portugal que é assim, porque nunca foi de outra maneira. O desespero não nasce do erro, mas do sentimento de que não vale a pena esforçarmo-nos para que as coisas sejam de outra forma – porque nunca serão. A falta de esperança e a desigualdade de oportunidades podem dar origem a uma geração de adultos desencantados, incapazes de acreditar num país meritocrático. Esta perda de esperança aparece depois travestida de lucidez, e rapidamente se transforma numa forma de cinismo. Achamos que temos de ser pessimistas para sermos lúcidos. Que temos de ser desesperançados para sermos realistas. Que temos de ser eternamente desconfiados para não sermos comidos por parvos. Guardamos os bons sentimentos para as nossas relações pessoais, onde somos certamente seres encantadores, mas quando se trata de reflectir sobre o nosso papel enquanto cidadãos, partes de uma nação e de um tecido social e político comum, colocamos uma mola no nariz e dizemos que pouco temos a ver com isso, porque os políticos não se recomendam. Há o “eles” – os políticos, as instituições, as várias autoridades, muitas das quais (receio bem) se encontram hoje aqui presentes. E há o “nós” – eu, a minha família, os meus colegas, os meus amigos. Entre o “nós” e o “eles” há uma distância atlântica, com raríssimas pontes pelo meio. “Eles” não têm nada a ver connosco. “Nós” não temos nada a ver com eles. IIIO senhor Presidente da República costuma dizer com frequência que os portugueses, quando querem, são os melhores do mundo. O senhor Presidente da República que me perdoe o atrevimento: não há qualquer razão para os portugueses serem melhores do que os finlandeses, os nepaleses ou os quenianos. Mas tenho uma boa notícia para dar: também não precisamos de ser melhores. Para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que estão ao nosso lado. E isso conta. E conta muito. Partilhamos uma língua, um país com uma estabilidade de séculos, sem divisões, e é uma pena que por vezes pareçamos cansados de nós próprios. Tivemos História a mais; agora temos História a menos. Passámos da exaltação heróica e primária do nosso passado, no tempo do Estado Novo, para acabarmos com receio de usar a palavra “Descobrimentos”. Simplificamos a História de forma infantil. No século XVI, Luís de Camões já cantava os seus amores por uma escrava de pele negra – tão bela e tão negra que até a neve desejava mudar de cor. Para desarrumar os estereótipos, talvez precisemos de um pouco menos de Lusíadas e de um pouco mais de lírica camoniana. Menos exaltação patriótica e mais paixão por cada ser humano – eis uma fórmula que me parece adequada aos tempos que vivemos. Sendo já poucos os que acreditam nas grandes narrativas, continuamos a acreditar nas pessoas que temos ao nosso lado. E esse é o caminho para a identificação possível dos portugueses com Portugal. Sozinhos somos ninguém. A velha pergunta bíblica “acaso sou eu o guarda do meu irmão?” tem uma única resposta numa sociedade decente: “Sim, és. ” Num país algo desencantado, o grande desafio está em tentar desenvolver um sentimento de pertença que vá além dos prodígios do futebol. IVQuando o senhor Presidente da República me convidou para presidir a estas cerimónias houve muita gente que ficou espantada, incluindo eu próprio. Mas com o tempo fui-me afeiçoando à ideia de que talvez não seja absolutamente necessário ter méritos extraordinários para estar aqui, e que Portugal precisa cada vez mais de um 10 de Junho feito de pessoas comuns e para pessoas comuns. Um 10 de Junho que aproxime as linhas entre o “nós” e o “eles”. Uma festa do português anónimo, da arraia-miúda, daquelas pessoas que todos os dias fazem mais por este país do que elas próprias imaginam. O 10 de Junho do meu avô, que tinha uma casa de pasto no fundo da rua de Elvas e oferecia um prato de sopa a quem não tinha dinheiro para pagar uma refeição. O 10 de Junho dos meus sogros, que tiveram de fugir de Moçambique em 1975 e reconstruir toda a vida em Portugal com seis filhos para criar, alguns dos quais ficaram dispersos pela família até eles voltarem a ter condições para os acolher. O 10 de Junho das três mulheres que criaram a minha mulher, uma delas originária de Timor, que viajaram desde o outro lado do mundo para acolher um bebé nascido em Moçambique e fazê-lo crescer numa pequena aldeia da Beira Interior. São histórias de vida impressionantes. Portugal não é composto apenas por instituições longínquas, Parlamentos em Lisboa, políticos distantes de quem dizemos mal no café. Portugal somos nós. Sou eu. São as pessoas que estão sentadas em lugares privilegiados nestas bancadas. São os militares que desfilam à nossa frente. São os portalegrenses debaixo do sol de Junho. São as pessoas lá em casa, a ouvir estas palavras. Todos temos nas nossas famílias histórias destas, de gente banal envolvida em feitos extraordinários. Temos o hábito de levantar a cabeça à procura de grandes exemplos, e nem sempre os encontramos – mas muitas vezes os melhores exemplos estão ao nosso lado, e alguns deles começam em nós mesmos. Sobre cada um de nós recai a responsabilidade de construir um país do qual nos possamos orgulhar. Aos políticos que dirigem Portugal, e representam os seus cidadãos, compete-lhes contribuir para esse esforço, propondo-nos um caminho inteligível e justo. Os portugueses podem não ser os melhores do mundo, mas são com certeza capazes de coisas extraordinárias desde que sintam que estão a fazê-las por um bem maior. A política não falha apenas quando conduz o país à bancarrota. A política falha quando deixa o país sem rumo e permite que se quebre a aliança entre o indivíduo e o cidadão. Aquilo que melhor distingue as pessoas não é serem de esquerda ou de direita, mas a firmeza do seu carácter e a força dos seus princípios. Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos dêem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objectivo claro à comunidade que lideram. Nós precisamos de sentir que contamos para alguma coisa. (Além de pagar impostos. )Cada português precisa de sentir que conta, precisa de sentir que os seus gestos não contribuem apenas para a sua felicidade individual, ou para a felicidade da sua família, mas que têm um efeito real na sociedade, e podem, à sua medida, servir o país. É preciso dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão – tu contas. É preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do Bairro da Jamaica – tu contas. É preciso dizer ao cabo-verdiano que trocou a sua terra por Portugal, em busca de um futuro melhor para os seus filhos – tu contas, e os teus filhos não estão condenados a passarem o resto das suas vidas a limpar as casas da classe alta de Lisboa ou do Porto. É preciso dizer à mãe ou ao pai que se sacrifica diariamente para que o seu filho possa estudar numa boa escola – tu contas, o teu esforço não será desperdiçado, e enquanto cidadão português tens os mesmos direitos e a mesma dignidade que um primeiro-ministro ou um Presidente. E se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos. Currículo tem tanto o cientista que dedica o seu tempo à investigação como o reformado ou o jovem que dedicam o seu tempo a ajudar os outros. São diferentes tipos de currículo, mas são currículo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E se ainda assim vos perguntarem “quem é que tu achas que és?”, respondam apenas: “Sou um cidadão que todos os dias faz a sua parte para que possamos viver num Portugal melhor e mais justo. ”Isso chega – aliás, não só chega, como é aquilo que mais falta nos faz. Muito obrigado.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos escola filho educação mulher comunidade adolescente social igualdade estudo mulheres pobreza negra salário assalto infantil
Morreu Alvin Toffler, autor de Choque do Futuro
Autor norte-americano previu vários desenvolvimentos económicos e tecnológicos. (...)

Morreu Alvin Toffler, autor de Choque do Futuro
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Autor norte-americano previu vários desenvolvimentos económicos e tecnológicos.
TEXTO: O escritor e analista social Alvin Toffler, autor de obras de sucesso que inspiraram vários dirigentes mundiais, morreu em Los Angeles aos 87 anos, anunciou nesta quarta-feira a empresa de consultoria por ele fundada. O autor morreu na segunda-feira, diz um comunicado da Toffler Associates, sem explicar as causas da morte. Na sua obra mais célebre, Choque do Futuro, publicada em 1970, Alvin Toffler debruçou-se sobre as mudanças sociais esperadas no mundo. A Terceira Vaga (1980) e Os Novos Poderes (1990) foram outros dos seus best-sellers. Ao longo da sua carreira, ele previu vários desenvolvimentos económicos e tecnológicos, como a clonagem, a popularidade dos computadores pessoais, a aceleração da transmissão de informação, a invenção da Internet e da televisão por cabo, além do advento dos casamentos entre homossexuais. Foi ele que popularizou a expressão “excesso de informação”. Vários dirigentes mundiais, como o ex-Presidente soviético Mikhail Gorbatchov ou o ex-secretário-geral do Partido Comunista chinês Zhao Ziyang, confessaram ter sido inspirados pelos livros de Toffler e revelaram que o consultaram mesmo nos anos 1980. O multimilionário mexicano Carlos Slim afirmou que conseguiu antecipar e apostar em sectores com potencial de crescimento graças às teorias de Toffler, de quem era amigo. Publicado em 50 países, Choque do Futuro vendeu 15 milhões de exemplares. O funeral de Toffler em Los Angeles será uma cerimónia privada, estando prevista a realização posterior de uma homenagem pública. Alvin Toffler nasceu a 4 de Outubro de 1928, em Nova Iorque. Filho de emigrantes polacos, cresceu na zona de Brooklin, com a irmã mais nova. O pai era comerciante de peles e foram os tios – um editor e uma poeta, que viviam na mesma casa que os Toffler –, que fizeram com que um muito jovem Alvin quisesse escritor. “Eles eram intelectuais da era da [Grande] Depressão e estavam sempre a falar de ideias entusiasmantes”, recordou Toffler, numa entrevista dada há dez anos ao The New York Times para o obituário que o jornal agora publicou. Aos sete anos, pouco depois de ter aprendido a ler e escrever, Alvin começou a escrever poemas e ficção – dois géneros para os quais, haveria de descobrir mais tarde por entre várias tentativas de escrita, não tinha vocação. Em 1946, Toffler entrou na Universidade de Nova Iorque, para estudar inglês. Tinha menos interesse pelas aulas do que pelo activismo político, contou àquele jornal. Uma das causas que defendia então eram os direitos da população negra nos EUA. Dois anos mais tarde, conheceu Adelaide Elizabeth Farrell (também conhecida por Heidi e “uma loira deslumbrante”, nas palavras de Toffler). Viriam a casar-se em 1950. A mulher foi fundamental para a obra Toffler. Trabalhou com eles nos livros e, embora as primeiras obras, que o notabilizaram como grande pensador, tenham sido assinadas apenas por ele, mais tarde o autor divulgou que se tratava de um trabalho conjunto. Nas obras mais recentes, Já surge o nome de Heidi e esta é apresentada como sendo co-autora dos livros anteriores. “‘Nós’ não é o habitual plural majestático dos autores”, explicou Toffler numa entrevista televisiva há vários anos. “‘Nós’ é, na verdade, duas pessoas. E a outra pessoa é a minha mulher. ”A influência de Heidi começou, porém, muito antes da escrita do primeiro livro. Foi ela que o convenceu a terminar o curso e decidiram depois mudar-se para a cidade industrial de Cleveland. Alvin queria – à semelhança de escritores que admirava, como Jack London e John Steinbeck – ter experiências antes de começar a escrever. Cada um arranjou emprego numa fábrica e começaram a reflectir sobre a produção em massa. Toffler trabalhou alguns anos como soldador e reparador de máquinas. Em 1954, tiveram uma filha (a única do casal, morreu em 2000) e o então operário, percebendo que não conseguia escrever boa ficção ou poesia, decidiu avançar para outra forma de escrita. Arranjou emprego a escrever para uma revista especializada em soldadura. Pouco depois, foi contratado como repórter num jornal de distribuição nacional editado por um sindicato de tipógrafos e daí seguiu para um jornal diário. Em 1959 deu o salto para uma publicação de renome e tornou-se o editor para assuntos laborais e colunista da revista Fortune, em Nova Iorque. Esteve na Fortune cerca de três anos, antes de sair para se tornar um escritor freelancer para revistas e outras publicações. Em 1960 foi contratado pela IBM para escrever um artigo sobre o impacto a longo prazo dos computadores. Na altura, estas máquinas existiam apenas em ambiente académico e empresarial e a era dos computadores pessoais estava a duas décadas de distância. Toffler, no entanto, era ecléctico nos temas que abordava. Um dos seus conhecidos trabalhos enquanto freelancer naquela altura é a entrevista ao escritor russo Vladimir Nabokov, autor de Lolita. Foi publicada em Janeiro de 1964, na revista Playboy. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No final daquele ano publicou o seu primeiro livro, que reflecte sobre a produção e o consumo de cultura nos EUA, numa altura em que a economia do país estava em crescimento e uma fatia considerável da população tinha satisfeitas as necessidades materiais básicas. Com o sucesso de Choque do Futuro, em 1970, os Tofflers dão um novo passo na carreira de pensadores e haveriam de lançar vários livros nas décadas seguintes. Em 1996, já com uma grande reputação, especialmente entre gestores, criam a Toffler Associates, uma empresa de consultoria. Notícia actualizada às 17h43 de 30/06/2016.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Tudo sobre a revolução, de Ferguson a Ouagadougou
O rapper senegalês Didier Awadi foi a figura mais inspiradora da terceira edição do Atlantic Music Expo, que anteontem terminou em Cabo Verde. É a sua missão: “Não basta fazer belas canções de amor.” (...)

Tudo sobre a revolução, de Ferguson a Ouagadougou
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O rapper senegalês Didier Awadi foi a figura mais inspiradora da terceira edição do Atlantic Music Expo, que anteontem terminou em Cabo Verde. É a sua missão: “Não basta fazer belas canções de amor.”
TEXTO: Por estes dias, a agenda de Didier Awadi, activista e pai fundador do hip-hop senegalês e, em geral, de toda a África Ocidental (“vieux père” é de resto como o trata Tibass, o jovem rapper congolês que acompanha Awadi em digressão, quando lhe emprestamos o telemóvel para que nos facilite o contacto, atendendo a que isto está difícil…), parece o cronograma de um processo revolucionário em curso. Na verdade, são vários, televisionados ou por televisionar. Aos 45 anos, Awadi é um revolucionário em digressão, um revolucionário que finalmente (gratos, Tibass) encontramos no infernal trânsito entre Dakar, onde se orgulha de em 2012 ter forçado, na rua e nas urnas, a saída de um Presidente da República, Abdoulaye Wade, que pretendia manter-se em funções até que a morte os separasse (“Manifester c’est bon, voter c’est encore mieux” ficou, como slogan, para memória futura de uma rara transição democrática) e Ouagadougou, a capital do Burkina Faso pós-revolucionário que ele também ajudou a ganhar, contra “um Governo de criminosos profissionais”, com os manifestos pan-africanistas que desde 1998 vem gravando no seu Studio Sankara e que se tornaram a bandeira da juventude sónica local. Não sabemos se é ele que anda atrás das revoluções ou se são as revoluções que andam atrás dele. Por exemplo agora: está na Cidade da Praia, onde no passado dia 30 centenas de cabo-verdianos, sobretudo jovens, se manifestaram contra o diploma que pretendia aumentar em 65% os salários da classe política num país de emigrantes e desempregados. Convidado a participar na mesa-redonda que a terceira edição do Atlantic Music Expo, o grande mercado transatlântico com que desde 2013 Cabo Verde quer pôr-se no mapa das indústrias culturais, dedicou ao tema A revolução não será televisionada. Como é que a cultura está a construir um novo futuro, Awadi dividiu-se entre uma conferência, um concerto – lugar estranho, e de facto pan-qualquer coisa, esse onde Beyoncé, Shakira e White Stripes se cruzam com manifestos anti-corrupção e citações do anticolonialista Frantz Fanon no corpo gigante de um rapper que ainda há dias estava no Burkina Faso a reunir uma brigada para gravar um single colectivo em protesto contra a violência sexual da seita islamista radical Boko Haram na Nigéria, ou em Kinshasa a exigir a libertação de artistas detidos ilegalmente numa manifestação pró-democracia pelo Governo do General Kabila –, dezenas de entrevistas e os inevitáveis contactos com seguidores. Entre eles está Eleanor Dubinsky, americana de Ferguson que nunca mais cantou da mesma maneira desde que ouviu Sara Tavares mas de momento não pensa se não em atirar-se a um projecto de edição dos textos de Awadi na plataforma Kickstarter. Awadi não esteve nos protestos de Novembro contra o assassinato do afro-americano Michael Brown por um polícia armado na cidade onde Eleanor cresceu, mas esteve em Chicago quando a América teve o seu primeiro Presidente negro, ainda que não seja ingénuo: “O Obama não é ninguém. É só um detalhe da História. De resto, políticos americanos fazem políticas americanas”, diz ao PÚBLICO dias depois da mesa-redonda. Certo, gostaria de editar os textos, embora a maioria do seu discurso seja “freestyle”: “A comunidade negra, mesmo na América, não é politizada. E se ficar por politizar estará sempre na cauda”, responde a Eleanor, que entretanto continua a acompanhar os estados de alma em Ferguson através do hip-hop que os motins geraram. “Há a canção do John Legend [Glory], e há muitas mais coisas a acontecer. Há muitos rappers em Ferguson, e uma longa tradição musical ligada ao jazz e aos blues de Saint Louis: o Miles Davis vem de lá, o Chuck Berry vem de lá, a Josephine Baker vem de lá… Mas não há estúdios, não há estrutura, não há negócio, não há indústria, não há tutoria, não há respeito… Pelo contrário, em Dakar, parece que as pessoas se organizam”, desabafa. Awadi, continua, “é um belo exemplo do que se pode fazer numa comunidade predominantemente afro-americana como Ferguson, para a qual a música pode funcionar como arma de propaganda ou de sedução mas também como agente de transformação”. AutodeterminaçãoAté chegar a este patamar em que é consultor da Universal Music, em que força a aprovação de leis de direitos de autor no Senegal e atende o telefone a ministros congoleses para os ajudar a sair o mais ilesos possível de crises como a de Março em Kinshasa (conselho de Awadi: “Liberte-os, caso contrário vai criar um monstro”), Awadi estava ocupado a fundar o hip-hop em wolof, a língua da etnia dominante no Senegal, e a montar aquele que é até hoje um dos melhores estúdios de gravação daquela metade da África Ocidental, o Sankara, que actualmente emprega “entre 30 a cem pessoas, consoante as campanhas”. Era, explica a uma plateia mais ou menos siderada, uma questão de autodeterminação, género os artistas africanos seriam independentes ou não seriam. “Creio que sim, a revolução será televisionada; já estamos na batalha dos conteúdos e temos de ser nós a produzi-los e a vendê-los, para que se pareçam connosco, para que tenham os nossos códigos mentais, as nossas referências. É o tipo de missão de que temos de ocupar-nos; não basta fazer belas canções de amor. Quando estás numa sala e há 30 ou 40 mil pessoas que levantam a mão quando abres a boca, já não é só um espectáculo. ”Tão ou mais importante do que o estúdio onde ganha dinheiro é a rede de protecção que Awadi e outros activistas afro-americanos parecidos com ele construíram: “De cada vez que um artista é ameaçado, todas as pessoas se levantam. E os Governos têm medo do Tribunal Penal Internacional. Claro que pode ser perigoso, mas quando somos numerosos…”Isso, sublinha, é o papel que os artistas têm de fazer em África. Depois há o papel que têm de fazer no resto do mundo ocidentalizado: “Os programadores de festivais adoram convidar músicos africanos. Cantam, dançam, tocam tambor, sorriem! Mas é preciso que os ocidentais saibam que há uma parte da juventude que não tem meios para ser feliz. O estúdio, à sua escala, serve para que os músicos senegaleses possam existir artisticamente sem viagens forçadas à Europa e sem formatações. O nosso hip-hop é verdadeiramente do Senegal. Tem as nossas percussões, as nossas melodias, os nossos cantos tradicionais, as nossas línguas. ” E depois tem Shakira, Beyoncé e White Stripes, “porque é necessário”: “Se és demasiado político, as pessoas fogem. É preciso piscar-lhes o olho aqui e ali, encontrar astúcias para as fazer chegar às tuas ideias. E a minha ideia é que África já é o futuro. A África de hoje é urbana, tem as mais altas taxas de população jovem e de matérias-primas do mundo, não permite que os ditadores decidam por si, está pronta a assumir as suas responsabilidades. Acho que há um complexo que finalmente está prestes a morrer nas cabeças africanas. ”De regresso à plateia, a história de Awadi parece ser comum. Mamou Daffé, o director do Festival Sur le Niger que há meses organizou uma Caravana Cultural pela Paz disposta a percorrer o Mali e fazer activismo contra a opressão islamista, levanta-se para dizer que “ouvir o Didier [lhe] dá esperança no continente”. E depois há Teshome Wondimu, o fundador da ONG Selam, com bases em Estocolmo e em Adis Abeba: “Precisamos de mil Awadis em África. ”Um herói local, Awadi? “Não, não me vejo como um herói. Sou um activista musical, um agitador. A nossa rede fez pequenas mudanças. Não é ficção: vivi isso, vi a revolução a acontecer. ” E não foi pela televisão. O PÚBLICO viajou a convite da Tumbao
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Partidos PAN
Morreu Johnny Otis, o "padrinho do r&b"
Nunca resumiu o talento à música e por isso destacou-se também como produtor, compositor, empresário musical e DJ. Johnny Otis, conhecido como o “Padrinho do r&b” morreu na terça-feira em casa, em Altadena, Califórnia. Tinha 90 anos. O músico estava doente há vários anos. (...)

Morreu Johnny Otis, o "padrinho do r&b"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-01-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nunca resumiu o talento à música e por isso destacou-se também como produtor, compositor, empresário musical e DJ. Johnny Otis, conhecido como o “Padrinho do r&b” morreu na terça-feira em casa, em Altadena, Califórnia. Tinha 90 anos. O músico estava doente há vários anos.
TEXTO: Johnny Otis foi uma figura fulcral na passagem do rhythm & blues para o rock'n'roll. Descobriu talentos como Etta James, Jackie Wilson ou Big Mama Thornton, para quem produziu em 1952 “Hound Dog”, a icónica canção que Elvis Presley regravaria em 1956, até hoje um dos maiores sucessos do “Rei do rock"n"roll”. “O seu papel na música pop e rock"n"roll tornou-o numa lenda, ele conseguia fazer tudo. Ele é um dos maiores talentos da música americana e foi também um grande americano”, recordou à Reuters, Tom Reed, amigo de Otis e historiador de música. Um grande americano mas filho de imigrantes gregos, cujas raízes europeias nunca escondeu. Nascido John Veliotes em 28 de Dezembro de 1921, esta quinta-feira, o New York Times citava Johnny Otis numa entrevista ao San Jose Mercury News: "Geneticamente, sou um grego puro. Psicologicamente, ambientalmente, culturalmente e por escolha, sou um membro da comunidade negra", lembrando que cresceu numa comunicado afro-americana em Berkeley, Califórnia. Na adolescência mudou mesmo de nome, defendendo que Johnny Otis soava mais negro. “Em criança, eu decidi que se a nossa sociedade ditava que uns eram brancos e outros negros, eu seria negro”, contou uma vez, citado pela AP. E foi mesmo a música negra a sua grande paixão. Como músico (baterista e vibrafonista), como compositor e vocalista (cantou “Willie and the hand jiv”, compôs “Every beat of my heart” para as “Gladys Knight and the Pips”) e como divulgador incansável na rádio ou na televisão. Dizia muitas vezes que a música não era apenas notas musicais. “É a cultura, a forma como a avó cozinha, a forma como o avô conta histórias, a forma como as crianças andam e falam. ”Figura empenhada na luta pelos direitos civis e dedicado à agricultura biológica desde os anos 1990, o cognominado "Padrinho do Rhythm & Blues" é pai do guitarrista blues Shuggie Otis. Johnny Otis ao vivo
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Palavras-chave direitos cultura filho negro comunidade criança negra
Eslovénia elege primeiro presidente de câmara negro da Europa Central
Foi uma vitória apertada (por 51,4 por cento dos votos), mas já fez história: o médico Peter Bossman, oriundo do Gana, venceu em segunda volta as eleições municipais de Piran, no Sudoeste da Eslovénia, e assim tornou-se no primeiro presidente de câmara negro da Europa Central. (...)

Eslovénia elege primeiro presidente de câmara negro da Europa Central
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.027
DATA: 2010-10-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi uma vitória apertada (por 51,4 por cento dos votos), mas já fez história: o médico Peter Bossman, oriundo do Gana, venceu em segunda volta as eleições municipais de Piran, no Sudoeste da Eslovénia, e assim tornou-se no primeiro presidente de câmara negro da Europa Central.
TEXTO: Candidato pelo Partido Social Democrata (de centro-esquerda, no poder a nível nacional), Bossman bateu o incumbente, também médico, Tomaz Gantar (do centro-direita), que até se tinha saído melhor à primeira ronda, realizada a 10 de Outubro. Chamam-lhe o “Obama de Piran”, uma cidade costeira de cerca de 17 mil habitantes que os analistas dizem ter revelado, com este resultado, que a Eslovénia – antiga parte da Jugoslávia – é um “país maduro”, ao ter elegido um “representante político que não é branco”. Peter Bossman, de 54 anos, cujo pai é também médico e político no Gana, chegou à Eslovénia na década de 1970, para estudar medicina. Casou com uma colega de faculdade, Karmena, oriunda da Croácia, com quem teve duas filhas, e decidiu ficar no país. “Nos primeiros meses em que vivi na Eslovénia senti que as pessoas não nos queriam aqui [aos imigrantes africanos]. Mas nestes últimos dez ou 15 anos não tive quaisquer problemas, não fui alvo de discriminação. Acho que as pessoas já não vêem a cor da minha pele quando olham para mim, apenas um bom médico e um bom homem”, afirmou, manifestando-se “feliz e orgulhoso” pela vitória eleitoral. “Dificilmente se pode dizer que sou o típico cidadão esloveno, mas o facto de ter sido eleito mostra com clareza o nível de democracia existente na Eslovénia”, prosseguiu o novo presidente da câmara de Piran. Com uma população de cerca de dois milhões de habitantes a Eslovénia regista uma imigração com origens mais comuns em outros países da ex-Jugoslávia, como a Bósnia Herzegovina ou a Sérvia. A população negra no país não é senão uma fatia extremamente residual. Com uma campanha que exortava ao diálogo, Bossman foi amplamente criticado por não falar esloveno fluentemente ao fim de mais de trinta anos no país. A esta crítica respondeu, numa entrevista a um dos principais jornais do país ainda antes da segunda volta, que um seu amigo, professor de esloveno, se ofereceu para lhe dar aulas adicionais. “Esta é a minha casa agora. Vou ao Gana a cada dois anos para visitar a minha mãe, mas Piran é que é a minha casa. E o meu pai sempre me disse que se pudermos, temos que ajudar a sociedade, a comunidade a que pertencemos. ”
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Palavras-chave imigração homem comunidade social negra discriminação
Varsóvia: da sereia à palmeira, a arte de renascer
O século XX deixou cicatrizes profundas, mas Varsóvia mostrou ser uma fénix. Caminhamos pela história da cidade, do país, até da Europa, e não saímos incólumes – é impossível. Por estes dias, chamam-lhe a “capital da liberdade”; nós aprendemos o que lhe custou o epíteto. (...)

Varsóvia: da sereia à palmeira, a arte de renascer
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: O século XX deixou cicatrizes profundas, mas Varsóvia mostrou ser uma fénix. Caminhamos pela história da cidade, do país, até da Europa, e não saímos incólumes – é impossível. Por estes dias, chamam-lhe a “capital da liberdade”; nós aprendemos o que lhe custou o epíteto.
TEXTO: Há uma lenda na origem de Varsóvia. São várias as versões da história que tem como protagonista uma sereia – de uma maneira ou de outra, é sempre capturada e acaba sempre devolvida à liberdade, ao rio Vístula. Todas terminam com a syrenka, agradecida, a prometer que voltaria sempre para proteger a aldeia. Que, entretanto, se fez cidade, com a sereia, armada de escudo e espada, como seu símbolo. Está no brasão de armas de Varsóvia, representada em vários locais da cidade e até Picasso se deixou envolver na lenda: desenhou a sua versão dela, com um martelo em vez da espada, na parede da casa de uns amigos varsovianos – eles tinham tanta gente a bater-lhes à porta para ver a obra que acabaram por pintar por cima dela, em 1953. A lenda é-nos apresentada na Praça do Mercado da cidade velha, a estátua mais famosa da sereia bem no centro do quadrilátero de pedra escura irregular, fechado por pitorescos edifícios de várias cores. Parece um centro medieval, mas é na verdade o testemunho mais ostensivo da resiliência de Varsóvia: os números podem divergir ligeiramente, avisa o nosso guia, Jakob Wesolowski, ou melhor, Kuba, (“todos os polacos têm um diminutivo”), porém, 85% da cidade terá sido destruída durante a II Guerra Mundial. “No centro histórico nenhuma casa ficou com telhado. ”Ver as fotografias é perturbador, uma planície de tijolos, destroços, e, por um qualquer capricho, alguns edifícios, isolados, de pé, como que sublinhando a desolação. Chegou a pensar-se transferir a capital (não só pela destruição: dos cerca de 1, 3 milhões de habitantes, restavam uns curtos milhares quando as tropas soviéticas chegaram), mas a decisão do governo comunista do pós-guerra foi a reconstrução. O centro histórico foi reproduzido; no resto, venceu o modelo de cidade moderna, feita de avenidas largas e muitos parques – é uma cidade verde, Varsóvia, e não apenas nas margens do Vístula, para onde, no Verão, todos os caminhos parecem conduzir: enche-se de bares pop-up, mercados e, do lado direito, pode beber-se fora de portas (o único espaço sem restrições, num país que proibiu o consumo de álcool nas vias públicas e depois permitiu que cada cidade definisse um espaço livre). A sereia pode proteger Varsóvia, mas fá-lo por caminhos tortuosos. Deles se encarregará a nossa visita de dar nota. E o tom é logo no painel instalado na Praça do Castelo, porta giratória para a cidade velha: “Warszawa – Stolica Wolnósci, 1918-2018”, Varsóvia, Capital da Liberdade (se durante o dia pode passar despercebido, à noite, aceso, é paragem incontornável para fotos) levanta o véu de uma história turbulenta. Da cidade e do país que este ano celebra apenas os 100 anos da independência (na ressaca da I Guerra Mundial), que afinal é o “renascimento” da independência, que afinal não foi bem independência. . . ; que em 2019 assinala os 80 anos do início da ocupação nazi e da II Guerra Mundial. Antes da II Guerra Mundial, 30% da população polaca pertencia a minorias étnicas e religiosas, Varsóvia era o seu espelho amplificado. “Foi isso que perdemos na guerra”, lamenta Kuba, “uma sociedade multiétnica”. Nada é simples na Polónia, onde o século XX se encarregou de deixar cicatrizes bem fundas e que vemos sub-reptício e óbvio, a querer cair no olvido e a ostentar-se. Se começamos pela Praça Pilsudski não é por acaso: o nosso hotel tem vista para ela, a meio caminho entre a cidade velha e o coração da cidade nova, chamemos-lhe assim. É uma vasta esplanada que dá pista para a história recente da Polónia. O túmulo do soldado desconhecido é a única construção: é o monumento mais importante do país e é também o que resta do antigo palácio, destruído pela ira alemã que se seguiu à Insurreição de Varsóvia (1944). Diante deste, o monumento a João Paulo II. “Em cada cidade, vila, aldeia do país há um”, explica Kuba (“há até um grupo no Facebook com os mais feios”), mas este é especial: foi aqui que João Paulo II rezou a missa para meio milhão de pessoas na sua primeira peregrinação à Polónia, em 1979, ainda a Cortina de Ferro estava corrida – um feito que ainda hoje merece referência e que não poucos associam directamente ao esboroar do “muro”. Desses tempos em que o Pacto de Varsóvia vigorava como contraponto da NATO, impõem-se ainda o teatro e ópera nacionais (a arquitectura realista soviética de inspiração neo-clássica ao serviço da arte e da cultura, agora lado a lado com o aço e vidro de Norman Foster ao serviço de escritórios e lojas de luxo), e o “nosso” hotel, Victoria, que foi uma espécie de arauto do regime comunista para uma modernidade que nos anos de 1970 se media pelo lobby e bar com as janelas envidraçadas. “Era uma montra para os estrangeiros”, conta Kuba. E de praticamente qualquer ponto da praça a vista para o quase omnipresente em Varsóvia (e, metaforicamente, na Polónia) Palácio da Cultura e da Ciência, que se ergue como a longa sombra da história – “a prenda de Estaline” (a lenda conta que o líder da URSS propôs algo do género “agora escolha”: um metro ou o edifício), chamam-lhe os polacos, construído nos anos de 1950, é ainda hoje o edifício mais alto da Polónia (42 andares) e talvez o mais polémico. Visto daqui, pouco mais parece que uma torre de relógio a esgueirar-se acima dos telhados. Mas na sua órbita, aos seus pés, vista desimpedida, é um colosso: as fachadas trabalhadas, as colunas, escadarias e estátuas incorporam elementos clássicos e aliam-se na escala superlativa de um admirável mundo novo, da promessa de uma sociedade mais justa e igualitária. Admire-se ou não a sua arquitectura, o certo é que o seu miradouro é irrecusável: oferece a melhor vista de Varsóvia e, dizem ironicamente os varsovianos, é a única maneira de não o ver. Os habitantes de Varsóvia deixam o mirante para os visitantes e preferem usufruir de tudo o que o palácio oferece no seu interior, desde salas de teatro a bares com música alternativa. Algo que até está no ADN do Palácio da Cultura e Ciência – afinal, foi aqui que, em 1967, aconteceu o primeiro concerto de rock por detrás da Cortina de Ferro. Os Rolling Stones foram os protagonistas de um espectáculo descrito à época como um ovni que aterrara em Varsóvia e que deu origem a várias lendas urbanas. A mais persistente conta que o cachet da banda britânica terá sido pago em vodka, um vagão de vodka, do qual nem terão podido usufruir, uma vez que terá sido recambiado na fronteira britânica. Se a rejeição de tudo o que tinha o selo comunista foi a regra nos anos imediatamente após a queda do regime, parece que a sociedade cada vez mais se reconcilia com esse passado. O mais evidente exemplo é a quantidade de tours por Varsóvia que desenterram as relíquias comunistas. Contudo, também existem outros sinais mais ou menos subtis: o próprio Palácio da Cultura e da Ciência já foi incorporado no marketing da cidade: vêmo-lo em muitos souvenirs, desde os vulgares ímanes a meias; a vodka, associada a esses anos e cujo consumo decaiu de forma acentuada, está de regresso; e os bar mlecznys, “bares de leite”, que nos tempos do pós-guerra e de racionamento de carne serviam refeições à base de produtos lácteos (nutritivos e de baixo custo) voltaram, ultrapassada a vaga de chegada de franchises estrangeiras, com o mesmo conceito de comida barata e caseira. Porém, não se pense que Varsóvia actual tem algo a ver com a cidade cinzenta dos racionamentos – essa fase está ultrapassada e o patinho feio é cada vez mais uma cidade cosmopolita. Até à mesa: se os bares de leite reentraram nos hábitos (com menus variados), quando a ordem é para sair à noite os restaurantes internacionais são indispensáveis para as novas gerações (“os pais continuam a preferir convidar amigos para casa”): a cozinha asiática, “tailandesa, vietnamita e japonesa” e a italiana, “sempre”, são as preferidas. É comum ouvirmos em Varsóvia comparações com Cracóvia – “a rivalidade é muito grande porque Cracóvia foi capital muito tempo” – e muitas delas desaguam na “idade”. “Varsóvia é uma cidade muito moderna”, nota Kuba, que não se cansa de sublinhar que o que vemos ou foi reconstruído ou tem no máximo 200 anos. “É o extremo se compararmos com Cracóvia, onde cada lugar tem 400, 500 anos. ” E se na antiga capital “tudo passa pela cidade velha”, em Varsóvia “o centro deslocou-se para a cidade nova”. Os varsovianos não vão à cidade velha. É precisamente pelo “subúrbio de Cracóvia” que caminhamos até ao centro histórico de Varsóvia. A Krakowskie Przedmiescie é uma das mais antigas avenidas de Varsóvia (século XV) e fazia parte do antigo “Caminho Real”. Podemos percorrê-la em vários modos, destacando, por exemplo, os edifícios “sobreviventes”, como o Palácio Presidencial, que albergou a Deutsche Haus (casino e restaurante da Wermacht), o palácio onde Napoleão conheceu Maria Walewska (agora o Ministério da Cultura), a Igreja de Santa Ana, também conhecida com a “igreja dos estudantes” (ao domingo há uma missa específica para eles) e uma das preferidas para casamentos. É uma das muitas igrejas, algumas com mosteiros ainda em funcionamento, “pequenas aldeias”, que se alinham regularmente nesta rua onde só passam transportes públicos (no Verão, nem estes circulam), em namoro com restaurantes, cafés e lojas várias, sobretudo de souvenirs. E muitas estátuas: numa celebra-se o poeta nacional, Adam Mickiewicz, cuja obra-prima é Senhor Tadeu – “Temos de saber de cor, odiamos”, brinca Kuba. É o poeta nacional da Polónia, mas também da Lituânia e da Bielorrússia, esclarece (do tempo em que a Polónia foi parte, a mais forte, da República das Duas Nações com a Lituânia – o que, pelas fronteiras actuais, incluía os territórios da Biolerrússia e Letónia, e partes significativas da Estónia e Ucrânia). Na verdade, escreveu Lituânia, a minha pátria. . . – “mas em polaco”, sublinha Kuba. Caminhamos por réplicas de quadros de Canaletto (os originais veremos no castelo): fazem uma espécie de crónica visual do final do século XVIII nesta zona da cidade – são tão detalhados que foram usados para a reconstrução desta zona da cidade. E pelos bancos de Chopin: o compositor e pianista é um dos filhos dilectos de Varsóvia que não se cansa de evocá-lo. Nos “seus” bancos, ouvem-se trechos da sua obra, há o seu museu, uma universidade com o seu nome, locais emblemáticos da sua (curta) vida, alguns dos quais nesta órbita. O mais emblemático será a Igreja de Santa Cruz, onde foi baptizado e descansou o coração: Chopin morreu em Paris e se o seu corpo não pôde regressar a Varsóvia, como era sua vontade, veio o coração, numa jornada feita de peripécias várias. Quem quiser conhecer mais Chopin, o Chopin Point é um dos vários locais que na capital oferece concertos. É pequeno, mas Chopin até preferia assim. “Gosto de pensar que ele desfrutaria deste local”, afirma a proprietária, Basia Kotarba. No espaço, que quer mostrar o homem além da música, serve-se (e vende-se) café ao gosto do compositor (“Ele bebia muito café quando vivia aqui. Brincamos dizendo que, depois, em Paris, passou a beber vinho e morreu rápido”), e usam-se algumas das suas obsessões (como o chocolate belga) e preferências (as violetas, por exemplo) para “cozinhar” um menu particularmente guloso (veja-se o chantilly, brownie, leite de coco, violeta e mel que se juntam numa taça). Na mini-soirée a que assistimos, a música vai soando, ora leve, despreocupada, ora carregada, quase fúnebre. “Desperta em mim emoções fortes e dá-me um certo sentido de identidade, porque compôs muitas peças folk, temas polacos tradicionais”, descreve o pianista de 23 anos. Se Chopin gostava muito de café, não é segredo para ninguém o longo romance dos polacos com a vodka – wodka, ou “aguinha”, sinal da propensão dos polacos para os diminutivos. Não são poucos os que reivindicam a Polónia como o berço da bebida destilada e em 2018 Varsóvia abriu o que se afirma ser o primeiro museu da vodka do mundo – e uma das grandes novas atracções da capital. O local é uma antiga destilaria do século XIX, que teve de ser estabelecida para responder a um súbito aumento da procura: o consumo do exército russo estacionado em Varsóvia superava a capacidade de produção das fábricas da cidade e arredores. O museu está integrado num dos mais visíveis esforços de recuperação do antigo património industrial da cidade. A antiga Fábrica Koneser, enorme complexo de tijolos vermelhos característicos de Varsóvia, alberga agora escritórios, bares, restaurantes, lojas e, em breve, chegará um hotel; não muito longe, a Soho Factory foi a pioneira, com o Museu do Néon a servir como bandeira. São exemplos da gentrificação do bairro de Praga, durante séculos uma cidade distinta que mirava Varsóvia do lado direito do rio Vístula. Foi uma das zonas da capital mais poupadas pela destruição da II Guerra Mundial e agora está na moda, com a segunda linha do metro a chegar, as casas a serem renovadas e a serem vendidas por preços altos. Os habitantes de sempre convivem com os recém-chegados, endinheirados, cafés, bares, galerias de arte, lojas conceptuais e centros comerciais surgem por entre o comércio tradicional (e algumas das poucas barbearias resistentes na cidade); os edifícios pré-guerra, tantos em tijolo, muitos em estado de conservação duvidoso, estão lado a lado com os de betão, que também já ganhou o ar acastanhado das coisas gastas. Na Rua Mala, filmou-se o gueto de Varsóvia para o filme O Pianista, as casas sobreviventes, nunca restauradas, parecem apropriadas. “Daqui a três, quatro anos, tudo vai mudar, creio”, reflecte Kuba. “Vão chegar as lojas vintage, os bares, os cafés. ”Porém, ainda se mantêm vivas as tradições e o folclore local, neste bairro-cidade que durante muito tempo foi um dos enclaves preferidos pelos judeus, impedidos de viver dentro das principais cidades. No final do século XVIII uniu-se oficialmente a Varsóvia, contudo os habitantes ainda hoje se sentem “diferentes”: “Quando atravessam o rio continuam a dizer que vão a Varsóvia”, exemplifica Kuba. De regresso a “Varsóvia”, então, seguimos finalmente pela “cidade velha”, Stare Miasto, o terreno fértil para turistas, que ostenta orgulhosamente uma placa no chão com o reconhecimento da UNESCO como Património da Humanidade, exemplo notável de reconstrução, a primeira numa escala tão grande. A Praça do Castelo, o início da Krakowskie Przedmiescie, é a nossa porta, é a porta oficial, aliás, com o rei Sigismundo III no alto da sua coluna. Por aqui, a concentração de músicos de rua é maior e o tijolo vermelho tão característico de Varsóvia ao longo dos séculos anda à solta: mostra-se nos troços muralhas, exibe-se no castelo, que foi obliterado pelos alemães durante a II Guerra Mundial. “Os alemães fizeram questão, foi um símbolo da destruição da independência”, avalia Kuba, descrevendo a meticulosa colocação de bombas de 70 em 70 centímetros. A reconstrução não se deu na ressaca da guerra, ao contrário do que aconteceu em redor, mas apenas na década de 1980, com donativos populares. “O governo comunista quis deixar em ruínas como símbolo da velha ordem”, explica. Agora, guarda alguns tesouros artísticos (e não só) e, mais importante na psique nacional, porventura, volta a simbolizar um país independente. Entramos em território “medieval”, ruelas e pedras, umas e outras desalinhadas. A verdadeira máquina do tempo varsoviana é uma sucessão de edifícios em arco-íris indisciplinado, com gárgulas que nos vigiam os passos, os rés-do-chão não raras vezes ocupadas por comércio – cafés e sítios de waffles e crepes, bares rústicos onde a cerveja também pode ser servida quente (a par do vinho), lojas pequenas (com abundância de souvenirs, mas não só) e algumas joalharias (âmbar a brilhar nas montras, não fosse a Polónia um dos maiores produtores mundiais), decoração invariavelmente acolhedora com um toque retro, até chegarmos à Praça do Mercado ocupada por esplanadas dos muitos restaurantes que aqui competem pelos melhores pieroggi ou sopas zurek. A Catedral de Varsóvia, ou Catedral de São João Baptista, sobressai pela dissonância – não foi reconstruída no estilo original – e preserva a memória da sua destruição com as lagartas do tanque carregado com explosivos que foi lançado contra ela incrustadas numa parede exterior. Da cidade velha à cidade nova é um passo curto entre a cidade reconstruída e a cidade renascida. Na cidade renascida – os varsovianos diriam duas vezes: da II Guerra Mundial e do período comunista – constrói-se o que será o prédio mais alto da União Europeia e o arquitecto Daniel Liebskind desenhou o edifício com os apartamentos mais caros da Polónia. As lojas de marcas polacas destacam-se orgulhosamente, como a Empik, “tipo Fnac”, a Reserved, “chamam-lhe a H&M polaca”, e pelo meio apontam-se as antigas lojas comunistas – as marcas de luxo, como a Gucci, a Louis Vuitton, YSL, estão no Vitkac, que os varsovianos chamam “caixão”, pela cor negra (espelhada). Entre prédios com cicatrizes que parecem saídos da era industrial, passamos por edifícios barrocos e neo-clássicos, polidos, e na órbita da Praça das Três Cruzes se a neoclássica igreja de São Alexandre atrai imediatamente a vista, é a história que já não se vê que prende a atenção. A ironia: onde hoje vemos um concessionário da Ferrari e o Centro para a Banca e a Finança foi o quartel-general do Partido Comunista polaco - a “heresia” prossegue com mais lojas de luxo e bares de cocktails. Este é um mundo novo em Varsóvia, não só porque estamos na Rua Nowy Swiat (literalmente Novo Mundo), uma das preferidas dos locais para ver e ser visto: por entre um homogéneo conjunto neo-clássico (a rua foi totalmente arrasada durante a II Guerra Mundial), lojas, bares, restaurantes e a antiga casa do escritor Joseph Conrad. Na intersecção com a avenida Jerozolimskie, na rotunda que tem o nome do general De Gaulle (que, enquanto jovem, terá sido um frequentador de um café aqui na zona – donuts eram a sua escolha), uma visão inesperada: uma palmeira. Não é verdadeira, é uma declaração artística. A “palmeira” era para ter sido uma instalação breve a representar a invisibilidade do nome da avenida Jerozolimskie, Jerusalém, e do vazio da comunidade judaica em Varsóvia, mas desde 2002 que permanece no local. Depois de se estranhar, entranhou-se nos varsovianos e é comum usarem-na como ponto de encontro. É agora também um símbolo da cidade, ainda que não oficial. Da sereia à palmeira, vemos um pouco do que Varsóvia andou para aqui chegar. Se Praga é um dos guetos de Varsóvia cinematográficos, do verdadeiro já nada resta excepto uns poucos vestígios quase engolidos pela nova cidade - é como se fosse uma não-cidade dentro da cidade. No início da II Guerra Mundial, Varsóvia era a segunda cidade do mundo (só atrás de Nova Iorque) com maior população judia, 42%, quase 400 mil habitantes. Uma parte considerável da classe média e baixa, falantes de ídiche, concentravam-se na chamada zona norte de Varsóvia, onde em Novembro de 1940 os alemães estabeleceram o gueto, o maior da Europa: 3 km2 para 400 mil pessoas. No primeiro ano, 90 mil morreram de fome e de doença; a partir de 1942 começaram a ser enviados para o campo de extermínio de Treblinka, o mais próximo de Varsóvia. Os que ficavam, trabalhavam nas fábricas para os alemães – em 1943 aconteceu a primeira insurreição do gueto. “Sabiam que não tinham hipóteses de ganhar, mas queriam mostrar a resistência. Durou três semanas. ”Sete décadas passadas, em 2013, abriu o Museu da História dos Judeus Polacos (POLIN), a acompanhar o recrudescimento do interesse pelo passado judeu da Polónia e a mostrar a vontade das autoridades de atrair mais visitantes que se interessam pela história dos judeus e da II Guerra Mundial. O museu ergue-se num pequeno parque em pleno bairro residencial, no coração do antigo gueto, que se dissipou numa geografia que agora parece imaginária ou de uma realidade paralela. Sem guia, é difícil chegar aos vestígios que permanecem (e nós já havíamos passado pela experiência), dadas as poucas indicações nas ruas. Há alguns monumentos e memoriais – por exemplo, na antiga Umschlagplatz, onde os judeus eram metidos em comboios para Treblinka (quatro paredes de granito numa esquina – as flores no monumento são comuns, sobretudo no período entre Setembro e Outubro, quando muitos estudantes israelitas, finalistas do ensino secundário, cumprem a tradição de vir à Polónia) –, permanece uma sinagoga, Nozyków (há mais duas sinagogas e um cemitério judeu fora do “gueto”). Contudo, para chegar ao único troço original que resta, temos de entrar em pátios (a partir da Rua Zlota, 62) típicos da arquitectura de Varsóvia pré-II Guerra Mundial, em torno dos quais os prédios se erguiam, para encontrar o resto do muro de 3, 5 metros de altura. É um retalho nas entranhas de um quarteirão: alguns tijolos foram retirados, enviados para museus (como o de Houston e o Yad Yashem, lê-se em placas) e o espaço vazio está preenchido com algumas pedras na tradição judaica dos cemitérios: no dia em que visitamos, uma solitária rosa vermelha sobressai. Na Varsóvia pré-II Guerra Mundial, viviam 350 mil judeus; quando a guerra terminou restavam 18. 000, hoje serão dois mil. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Museu da História dos Judeus Polacos (POLIN)São mil anos de história dos judeus na Polónia que se contam no edifício simples, coberto de vidro – só a entrada se destaca, aponta Kuba, só com curvas. Sem linhas rectas e sem explicações: “Há quem diga que parece o Mar Vermelho a abrir-se para a fugas dos judeus do Egipto, outros afirmam representar a paisagem de Israel, e há os que defendem que é o passado e o futuro dos judeus, tendo no centro o buraco negro do Holocausto. " O Holocausto ocupa um espaço considerável (vejam-se as fotos da “normalidade” apregoada pelo Reich em contraponto com páginas de diários de habitantes do gueto), mas até lá acompanhamos a evolução dos judeus na sociedade polaca onde, não estando totalmente a salvo do anti-semitismo, conquistaram mais liberdades sociais e religiosas do que em qualquer outra parte da Europa. No olho fica a réplica da sinagoga de Gwozdziec, destruída. Museu da Insurreição de VarsóviaO acontecimento ainda hoje é reverenciado no país: a cada dia 1 de Agosto, às 17h, tudo e todos param, as sirenes tocam, para assinalar o feito de 1944, que é recordado em vários monumentos na cidade. Foi o início da revolta que teria como objectivo distrair os alemães e ajudar o exército soviético, que já estava próximo de Varsóvia. O que deveria ter durado poucos dias acabou numa maratona de 63 dias e a capitulação – a “vingança” alemã foi feita de ira e fogo, com a destruição de Varsóvia por esquadrões de demolições. No museu interactivo ouvimos e vemos esses dias de terrível esperança – logo à entrada, uma enorme coluna de ferro, uma espécie de obelisco, é uma janela directa para os primeiros dias: nos buracos de balas, escutamos os ruídos da cidade da altura, bombas a cair, sirenes de alarme, e orações. Museu da VodkaRecém-aberto, o museu ocupa cinco salas de exposição, que se percorrem depois de vermos um filme sobre a evolução do produto. Da matéria-prima, passando por antiga maquinaria e os desafios da entrada na UE, destaque para o repositório de garrafas de várias décadas que são um paradigma da evolução da estética e para a última sala onde aprendemos as tradições de brindes no país. Pelo meio percebemos que a vodka foi um estilo de vida ao longo de vários séculos na Polónia, os nobres bebiam-na diariamente – “comer é coisa de camponeses, beber é coisa de nobres” – e durante a dinastia saxónica tornou-se um acto oficial. No final, há uma prova de vodka. Castelo de VarsóviaDatado do século XIV, o castelo foi residência real, da presidência e sede do Parlamento. Reconstruído e reaberto em 1984, nele podem visitar-se os aposentos privados dos monarcas e alguns espaços sociais. Muito do acervo não é original – com notáveis excepções, como as obras que Canaletto pintou, entre 1767 e 1780, das ruas de Varsóvia por encomenda real –, é uma reconstituição com mobiliário de época, muito dele vindo da URSS. Na Galeria de Pintura, Escultura e Artes Decorativas, destacam-se duas obras de Rembrandt. Como irA TAP realiza voos directos entre Lisboa e o aeroporto de Varsóvia, Fredéric Chopin. A Ryanair voa directamente para o aeroporto de Mazóvia-Varsóvia, Modlin, a partir de Lisboa e Porto. Onde dormirHotel Sofitel Victoria Królewska 11, SiteOnde comerU Barssa Rynek Starego Miasta, 14 SiteStara Szafa Ulica Ludna 10 SiteZapiecek Ulica Nowy Swiat 64 SiteA Fugas viajou a convite do Turismo da Polónia
REFERÊNCIAS:
A Pretty Vulgar chega à Europa com embalagens criativas e mensagens divertidas
Marca de maquilhagem norte-americana propõe um mundo de contradições. Está à venda nas perfumarias Douglas, em Lisboa e online. (...)

A Pretty Vulgar chega à Europa com embalagens criativas e mensagens divertidas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.087
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Marca de maquilhagem norte-americana propõe um mundo de contradições. Está à venda nas perfumarias Douglas, em Lisboa e online.
TEXTO: Há um pássaro que está fora da gaiola na embalagem do rímel. Há uma garrafinha de licor com verniz lá dentro. Há um boião de tinta permanente que não é mais do que eyeliner em gel. A Pretty Vulgar é uma marca de maquilhagem norte-americana que se pauta pela originalidade e pelas contradições, diz o site da mesma. A marca atravessou o oceano e chegou a quase 20 países europeus onde vai ser vendida nas perfumarias Douglas. A Portugal chegou este mês e a novidade fica-se fisicamente por Lisboa, nas lojas dos centros comerciais Colombo e Vasco da Gama, e virtualmente na loja online da Douglas. Nos EUA, a Pretty Vulgar vende-se na cadeia Sephora, informa Clara Tena, directora regional para a Europa. A alguns países chegou em Setembro, há ainda mercados que estão a ser desbravados, mas será sempre vendida nas perfumarias Douglas, acrescenta. A marca que nasceu há um ano e meio foi criada por um grupo de profissionais de maquilhagem, conta Clara Tena, durante a apresentação à imprensa, em Lisboa. E, embora tenha a preocupação de ser cruelty free, ou seja, não é testada em animais; ser vegan, não ter parabenos, sulfatos e ftalatos, a comunicação da marca centra-se numa história que se quer contar: a das mulheres cheias de contradições, as mulheres que ora querem parecer lindas (pretty) ora querem parecer mais simples e soltas (vulgar), explica Clara Tena, mostrando um slide onde se lê: "Ela bebe whisky numa chávena de chá" para mostrar como é que as consumidoras podem parecer pouco coerentes e fazer coisas inexplicáveis. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Além do nome da marca – que quer chegar a um largo espectro de consumidoras –, há uma enorme preocupação com o nome dos produtos. Aqui há uma série de trocadilhos feitos com as palavras, por vezes, com mensagens corrosivas, a lembrar palavrões ou gestos feios, aponta a responsável. Tudo é feito com algum humor e em inglês. Se os nomes fossem traduzidos, perder-se-ia toda a intenção, reconhece Clara Tena. Além dos nomes, o packaging também é uma preocupação. Com um ar antigo, vintage, as embalagens contam uma história e muitas têm em comum os pássaros fora da gaiola – um desejo da marca para todas as mulheres, que sejam livres como os pássaros e vivam sem barreiras, explica a responsável da Pretty Vulgar. Por exemplo, o rímel (19, 95 euros) – chamado apropriadamente Raven (corvo) por ser de cor negra – vem numa embalagem que é uma gaiola dourada e o pássaro está livre no topo da mesma. Há um eyeliner que vem numa caneta que parece de tinta permanente e que se chama On Point (19, 95 euros), e outro em gel que chega num frasco de tinta, aparentemente antigo, e se chama The Ink (24, 95 euros). A linha de batons (19, 95 euros) foi baptizada com a frase Bury them with a smile e o hidratante de lábios (19, 95 euros) tem o nome de Silent Treatment. "Há sempre uma mensagem corrosiva", resume Clara Tena, acrescentando que esta é uma marca prestige, mas com preços acessíveis, criada "para as mulheres encontrarem as suas contradições".
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Este é o apocalipse dos “sem direito” a casa
Andar pelo 6 de Maio é pisar despojos de vidas. Ainda lá vivem pelo menos 100 famílias. Ao fim de 23 anos, e de 2,4 mil milhões de euros, o Programa Especial de Realojamento deixou milhares “sem direito” a casa. Dois peritos em direitos humanos da ONU estão em Portugal a avaliar a habitação (...)

Este é o apocalipse dos “sem direito” a casa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.285
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Andar pelo 6 de Maio é pisar despojos de vidas. Ainda lá vivem pelo menos 100 famílias. Ao fim de 23 anos, e de 2,4 mil milhões de euros, o Programa Especial de Realojamento deixou milhares “sem direito” a casa. Dois peritos em direitos humanos da ONU estão em Portugal a avaliar a habitação
TEXTO: No dia em que lhe demoliram a casa, eram umas 9h. Ondina Tavares desceu do seu quarto, apagou o lume, abriu a porta e deu de caras com a polícia e com alguém que julga ser funcionário da Câmara Municipal da Amadora. — A senhora vai ser desalojada hoje, tem de sair. Vá arrumar as suas coisas, disseram-lhe. Estava à espera de um papel na porta da sua casa no Bairro 6 de Maio, Amadora, a notificar. Mas nada. De roupão, perguntou:— Não põem papel na porta, não avisam, não telefonam? Mas têm o meu número!Era dia 3 de Outubro. Estava sozinha. Subiu ao segundo andar para ligar à filha. — Fiquei a tremer, não conseguia fazer nada. Nada, nada, desabafa hoje, voz trémula, nervosa na conjugação dos verbos. Ondina tem problemas de tiróide e de tensão, tem um pacemaker. — Maria Suzete, vem rápido porque eu estou desorientada, pediu à filha. A câmara mandou tirar as coisas, a casa vem para baixo. Ela continuava desorientada. Deixou os homens que entraram a tratar das suas coisas. Sentia-se incapaz. — Não sabia dar conta de nada. Eles deviam ter avisado… eu tirava as minhas coisas, queixa-se hoje. Foram eles que puseram as coisas em sacos de lixo pretos, ainda hoje amontoados em casa do irmão, para onde Ondina, a filha e os netos foram temporariamente viver. Os móveis seriam levados para um armazém da câmara, com remédios e papéis de consultas lá dentro. 77 agregados PER (dos 424 iniciais), ainda esperam realojamento; quanto às famílias “sem direito” ao PER, a CMA não sabe quantificar. Ondina dirige-se agora ao lugar a que chamou casa durante 18 anos. Uma carcaça de cimento pintada de verde-claro com azulejos brancos — e que era a casa do vizinho — ainda se mantém de pé. Em baixo havia uma sala com um corredor, a cozinha e a casa de banho; em cima eram os dois quartos. Pagava uma renda de 250 euros. Tinha espaço suficiente para cinco pessoas. Hoje atravessa sempre a estrada para não passar mesmo ao lado da casa que foi sua. Não trabalha e teve de “mandar buscar” a filha Suzete a Cabo Verde para tratar dela. Na câmara, quando foi tentar perceber a sua situação, disseram-lhe: “Não tem direito a casa. ”Sugeriram que ela e a família fossem viver com o irmão, a pessoa que oficialmente ficou com direito a ser realojado por via do Programa Especial de Realojamento (PER) – a casa onde está provisoriamente era da mãe. O irmão “ainda não decidiu se vai aceitar o dinheiro”, diz Ondina. Criado em 1993 para realojar “pessoas residentes em barracas” nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, dando apoio financeiro para construção ou aquisição de habitações, o PER tem vindo a ser executado de maneira diferente pelas autarquias. A Câmara Municipal da Amadora (CMA), que diz já ter investido mais de 46 milhões de euros nos realojamentos, tem sido criticada pelos despejos no Estrela de África, Santa Filomena, 6 de Maio. Muitas queixas são sobretudo de pessoas que estão fora do PER, ou seja, que não foram recenseadas pelo INH – Instituto Nacional de Habitação (hoje IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana). O 6 de Maio tem sido demolido ao longo do tempo, mas mais sistematicamente desde 2015. Ainda lá estão 77 agregados PER (dos 424 iniciais) à espera de realojamento; quanto às famílias “sem direito” ao PER, a CMA não sabe quantificar. A presidente Carla Tavares, ex-vereadora da Habitação, diz que “os números estão sempre a mudar”. Enquanto Ondina e a família estão alojados temporariamente em casa do irmão, ele mudou-se para a da namorada. — Eu tenho o meu agregado familiar, diz Ondina. Achava que podia [ter uma casa com] a minha filha, os meus netos que estão no meu coração. Não estou a conseguir dormir: eu dentro e a minha filha e neto na rua… Fui internada quatro vezes, quem é que me ajuda?É reformada por invalidez, e no total recebe cerca de 400 euros, que tem de dar para se sustentar, comprar medicamentos, ajudar a família em Cabo Verde. — O dinheiro não chega, sinceramente. Na casa onde agora está, pouco espaço existe para se circular. Chega-se atravessando becos do bairro. Pelo meio circulam jovens, alguns ficam à esquina parados. Suzete pede desculpa pelo cheiro abafado e a esgoto no ar. Mostra o quarto onde o filho dorme, colado à cozinha. Teme pela saúde dele. Ela dorme com outro filho num divã que se abre à noite e fecha de manhã na pequena sala. 400 euros de reforma por invalidez é quanto recebe Ondina Tavares. É com este valor que se sustenta, compra medicamentos, ajuda a família em Cabo VerdeA casa não tem janelas, e as paredes, apesar de pintadas, mostram o sinal da humidade. Em todos os cantos há sacos de plástico empilhados. Uns bidões azuis têm roupa dentro, às vezes também comida. Ondina dorme num quarto com um desumidificador, que fica ligado durante a noite e retém litros de água. A janelinha dá para um beco sem luz. Maria Suzete vem da cozinha, onde as paredes têm bolor e os canos escorrem água. — Isto não são condições para a minha mãe viver, ela é doente. Nas paredes da sala há várias estátuas de Nossa Senhora. Ondina costuma ir a Fátima pedir ajuda. — O bairro vai acabar. Não se importa de sair. Só quer uma casa onde viver. Não interessa onde. A casa de Ondina tornou-se em mais um dos escombros que por estes dias dominam o 6 de Maio. Desde que as demolições começaram em força no início de 2015 que o bairro se tem tornado um cenário apocalíptico. Tijolos, entulho, roupas, lixo, móveis abandonados, sofás, sapatos, garrafas, toalhas, tudo se amontoa naquilo que já foram ruelas de um bairro habitado maioritariamente por famílias de origem imigrante. Algumas paredes ainda têm azulejos. Outras têm graffiti. Pelo soalho agora partido adivinha-se que alguém investiu em melhorar o chão que pisava. A Irmã Deolinda Rodrigues vive no bairro há anos. Trabalha desde 1986 com população imigrante que foi chegando à Amadora e criando o 6 de Maio ou os já desaparecidos Fontainhas e Estrela de África. É directora do Centro Social 6 de Maio, gerido pelas Irmãs Missionárias Dominicanas do Rosário. Vive também o despejo das famílias. “Actualmente, o bairro não tem nada que ver com o que era. Quase metade está demolido”, lembra no seu escritório no Centro Social. “As crianças daquele tempo são agora adultas com filhos. ”Muita gente vem de países em que é difícil ter documentos, com processos demorados. O SEF está a responder lentamente, dá entrevista depois de seis meses da marcação… E muita gente podia ter a nacionalidade portuguesa uma vez que nasceu cá”Preocupa-a quem veio depois do recenseamento de 1993, e não tem direito ao PER, ou quem estava no PER mas está indocumentado e é excluído. “Muita gente vem de países em que é difícil ter documentos, com processos demorados. O SEF está a responder lentamente, dá entrevista depois de seis meses da marcação… E muita gente podia ter a nacionalidade portuguesa uma vez que nasceu cá”, desabafa. Numa reunião no Centro Social para apoiar no processo de despejo e realojamento, com técnicos da autarquia e de organizações de voluntariado, foram poucas as presenças. Duas mulheres estavam hesitantes entre aceitar o apoio financeiro/ indemnização ou o realojamento. As questões eram muitas. A CMA tem três programas para quem está no PER: o PAAR, Programa de Apoio ao Auto-Realojamento, que financia 20% do valor da casa que teria de ser construída se a família fosse realojada (o dinheiro é usado como se quiser), o Retorno, que financia o mesmo valor para a pessoa regressar ao país de origem (com pouca adesão); e o PAAR Mais, que financia 40% do valor da casa que teria de ser construída mas o dinheiro tem de ser usado na compra de um imóvel. Para os agregados PER do 6 de Maio, foi criado um programa em que financia 60% do valor do fogo que teria de ser construído (o que representa até agora 1, 5 milhões de investimento). Os valores máximos oscilam entre 78. 296 euros para um T4 e 43. 546 euros para um T0. 46 milhões de euros, ou mais, é quanto a Câmara Municipal da Amadora diz já ter investido nos realojamentos. A autarquia tem sido criticada pelos despejos no Estrela de África, Santa Filomena, 6 de MaioNo terreno, as soluções que apresentam a quem está fora do PER são ir para um centro de acolhimento temporário ou um mês de renda e outro de caução mediante apresentação de contrato de arrendamento. A autarquia tem argumentado que “ninguém fica na rua” e todos são acompanhados por técnicos durante meses. “O bairro está muito degradado, penso que grande parte das famílias se pudesse ia-se embora. Já não apetece viver aqui”, diz a irmã Deolinda, preocupada com o tráfico e consumo de droga. Deolinda ainda se lembra da altura em que a câmara colocava um papel na porta a avisar que a casa ia ser demolida. Hoje “parece” que já não o faz. Mas “ninguém pode dizer que não sabia”, há anos que se anunciou que o bairro vai ser demolido, justifica. “Em alguns casos as pessoas são descuidadas. ”Há também situações em que “a gente não sabe o que dizer, nem que pensar”, desabafa, partilhando o sentimento de desespero de quem, se pudesse, dava casas às pessoas. Muita gente veio alugar casas nestes bairros por várias razões, lembra Rita Silva, da Habita, uma associação que tem feito pressão contra os despejos sem alternativa. Mas isso é apenas “manifestação do problema brutal que existe no acesso ao mercado privado da população negra e pobre. Os senhorios não gostam e pedem fiador, e as rendas são caras. As pessoas viram-se para estes bairros onde as rendas são mais baratas e os pré-requisitos menores”. À medida que as casas caem, cai também o cuidado com o ambiente à volta. Andar pelo 6 de Maio hoje é pisar despojos de vidas. Ainda assim, a vida continua. Um grupo de homens reúne-se à entrada do bairro. Numa mesinha, servem chá à marroquina, mudando a bebida de um copo para outro até formar uma certa espuma. Às vezes também aparece uma senhora a cozinhar numa fogueira panelas de couratos, por exemplo. Adriano Furtado, mais conhecido como “Florzinho”, aproxima-se. Usa um blazer cinzento e uma boina. É falador. — Vejo-os a chegar aqui com polícia de intervenção rápida, partir as portas e as casas. Tratam a raça negra pior que um animal. Quem é que reage com a força policial que eles põem aqui no bairro?Vejo-os a chegar aqui com polícia de intervenção rápida, partir as portas e as casas. Tratam a raça negra pior que um animal. “Florzinho” vive no primeiro andar de uma das casas que estão à entrada. A estrutura de tijolos à vista tem um pequeno balcão, onde armazena um grelhador e se empilham um micro-ondas e restos de cadeiras. Lá dentro, o chão em placas de madeira dá mais luz à sala, com um sofá, uma mesa e cadeiras. Aos 66 anos, pensionista, recebe 320 euros por mês. Gravou com músicos como Katuta Branca. Até aparece na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, com direito a fotografia, tocando fero. Está em Portugal desde 1971, aqui cumpriu o serviço militar. Foi mobilizado para Angola, voltou em Janeiro de 1974. Entregou a farda em Cabo Verde, onde nasceu, depois do 25 de Abril. Vive desde 1975 no bairro. — A barraca não tinha número. Não havia telefone. Íamos buscar as cartas à papelaria, lembra. O primeiro emprego foi como cobrador na Carris. A zona onde estamos sempre foi bem servida de transportes. Apesar de viver ali há décadas, dizem-lhe que não está recenseado no PER. Foi a várias reuniões na câmara, mas nada. Pagava cerca de 40 euros anuais de IMI. Tem um advogado a tratar do assunto. — Se a câmara vier aqui pôr-me na rua, da maneira que eu vejo fazer, que vida é minha? Para onde vou? Para debaixo da ponte? Sou negro mas sou português de nascimento. Já disse: ‘Vocês querem expulsar os negros de Portugal. ’ Andei a dar a minha vida pela pátria portuguesa. E agora: sou um cão?“Florzinho” usa estas palavras para descrever o que viu acontecer no bairro a pessoas como Mozer Almeida, quase 25 anos. Com o 7. º ano, desempregado, anda a dormir em casa de uma familiar enquanto a situação não se clarifica. Mozer está em cima de um cadáver: os escombros do que foi a sua casa durante seis anos, no Estrela de África, bairro contíguo ao 6 de Maio. A casa era do avô. Depois do despejo, esteve uns tempos a dormir no carro; outros em casa de um primo, outros em casa de amigos, pessoas que têm as suas próprias vidas. Há uma lixeira do lado de lá das paredes que ainda estão intactas. Uma delas tem um quadrado que era uma janela, a única do quarto e praticamente a única de casa tirando a porta de entrada. O tio é que o ajudou a fazer aquela janela. — A parede suava. Quando era calor, era calor demais; quando era frio, era frio demais, diz. O quarto era pequeno, tinha espaço para uma cama de casal e um armário. Vivia ali com a avó, doente, que agora está em casa de uma prima. Aos 72 anos, é reformada e recebe uma pensão de 237 euros. Ele não tem direito a subsídio de desemprego, anda à procura do que for preciso. Mas não é chamado. A avó não estava abrangida pelo PER. Saíram pelas 7h30 de dia 3 de Outubro. — Nunca recebemos nenhuma notificação, queixa-se. Ninguém da autarquia os contactou a avisar, acusa. Eram os vizinhos que diziam “um dia a vossa casa vem abaixo”. Derrubaram tudo com as coisas dentro, como o frigorífico, conta. Ele levou para o armazém da câmara um colchão, sacos com roupa, loiças. — Foi o pior dia da minha vida em Portugal. Nunca esperei. Podia ter sido tudo diferente com avisos, ajudas. Mas fomos tratados como animais, com polícia dentro de casa. Empurram as portas e põem as pessoas na rua, entram com armas como se fosse um crime. À avó, propuseram-lhe ir para um lar ou para Cabo Verde. Não quis. — Uma pessoa que trabalha 20 anos para depois ser tratada como um animal… A entrarem assim… é barraca mas é a casa, é o lar, o porto de abrigo da pessoa. Sentiu-se “humilhado”. — Ainda por cima à frente das pessoas, a tirar as coisas à pressa…Foi o pior dia da minha vida, repete. Não conseguia olhar para ninguém. A Habita está a apoiar 25 agregados familiares no 6 de Maio que estão fora do PER. “As pessoas não podem ser despejadas sem que haja uma alternativa”, diz a dirigente, Rita Silva, ex dirigente do Bloco de Esquerda. “Tem de haver uma resposta do Estado, seja do Governo ou da câmara. ”Por causa de situações como a de Mozer ou Ondina, a Habita escreveu várias vezes ao provedor de Justiça que ainda recentemente emitiu uma recomendação para que o PER seja revisto. José de Faria Costa disse na carta enviada ao Ministério do Ambiente (MA) — o supervisor do PER — que “a resposta não pode ser encontrada apenas pelos municípios”. Contactado pelo P2, o MA não respondeu a tempo desta reportagem. Deu dados: em 1995 estavam identificadas quase 48. 500 famílias para realojar, neste momento faltam 3301 famílias. O investimento total até agora no PER foi de 2, 4 mil milhões de euros. A Câmara da Amadora não quer saber se são crianças ou idosos. Nas últimas demolições, vimos um senhor acamado, idoso, deixado em frente a sua casa no chão. Não conseguimos mobilizar ninguém, quem o ajudou foram os vizinhos. ”Terão sido estes os dados que o MA passou, esta semana, aos dois peritos em direitos humanos da ONU que vieram a Portugal em missão de recolher informações para avaliar o impacto das medidas de austeridade nos grupos mais vulneráveis, focando-se na habitação. Entre os locais que visitaram, estava o 6 de Maio. Esta terça-feira dão uma conferência de imprensa. A Habita fez uma queixa à ONU em 2012 sobre demolições e despejos. “Em Cascais, conseguimos que as mulheres com crianças fora do PER fossem realojadas”, diz Rita Silva. “Mas a Câmara da Amadora não quer saber se são crianças ou idosos. Nas últimas demolições do 6 de Maio, vimos um senhor acamado, idoso, deixado em frente a sua casa no chão. Não conseguimos mobilizar ninguém, quem o ajudou foram os vizinhos. ”O mesmo aconteceu meses antes a Suleimane Baldé, 47 anos. Entraram e demoliram-lhe a casa. Ele ficou sem lugar para onde ir. Não recebeu qualquer justificação ou apoio. A fotógrafa Ana Brígida, que acompanhava as demolições (autora do portfólio que acompanha este texto), foi quem lhe tentou arranjar apoio através da linha de emergência social. Deu-lhe dinheiro para os transportes até ele chegar a um Alojamento de Emergência. Mas passados dias teve de sair. É o Instituto da Segurança Social (ISS) que presta apoio a quem fica na rua, mas “apenas nas situações de grave vulnerabilidade e desprotecção social”, segundo a assessoria de imprensa. E, “na impossibilidade de encontrar alternativa habitacional em tempo útil”, encaminha as pessoas para os Centros de Alojamento de Emergência, “mantendo-se o acompanhamento até à existência de condições de autonomia”. Operado cinco vezes, Suleimane não pode trabalhar nem voltar à Guiné-Bissau justamente por causa da sua saúde. Agora está no quarto de um amigo, depois de ter dormido numa garagem, ao frio, e numa mesquita na zona. O seu corpo é esguio e visivelmente frágil. Vivia naquela casa com mais quatro homens desde 2010. Em Fevereiro de 2015, vinha da mesquita e viu tirarem-lhe as coisas de casa. Já o tinham avisado. Mas Suleimane Baldé não tinha qualquer condição para pagar renda, não tem modo de trabalhar. Há oito meses que está sem casa. — Tenho dificuldade. Fiquei admirado com a câmara e a Segurança Social. Cadáver não precisa de comer. Cadáver não precisa de casa. Cadáver não precisa de dinheiro. Mas uma pessoa que vive precisa de ajuda. Antropóloga que acompanhou as demolições no bairro de Santa Filomena e no 6 de Maio, Rita Alves não tem dúvidas de que nestes processos estão a ser “violados um rol de direitos, do direito à habitação à intimidade e família”. Autora da tese de mestrado “Para uma compreensão da segregação residencial: o plano especial de realojamento e o (anti-racismo)”, diz: “O mais grave é a violência e a negação sistemática da dignidade às pessoas”, critica. Contextualiza o PER: nos anos 1990, aparece um discurso de reconhecimento da periferia “que faz uma racialização e criminalização dos bairros”. O programa é criado num período de projecção de Portugal (primeiro na Lisboa Capital da Cultura 1994 e depois na Expo-98). É um “projecto robusto” de realojamento que também faz “uma limpeza das cidades”. Além disso, o PER usa a palavra barraca quando na verdade “a maioria das casas são construções de alvenaria feitas por pessoas que trabalharam nas grandes obras públicas em Portugal”. Ao realojar, “não está a dar casa”: na maioria dos casos, as pessoas fizeram investimentos, sacrifícios, em territórios simbólicos que elas próprias transformaram. Na sala de Amália, 39 anos, ouve-se, por estes dias, a retroescavadora que destrói a casa do lado. — Eles vão partir a minha parede, diz, olhando para trás, assustada ao som da destruição. — A parede protege o meu quarto. Se partirem a janela, fica na rua — e isso mete-lhe medo. Ouve-se também, de vez em quando, o choro da neta de dois meses. As paredes tremem, e a filha, de 23 anos, também. Amália foi mãe aos 16/17 anos. Tem outro filho com dez anos. Vive com os três, sozinha. Já fez muita coisa na vida, entre elas, ser ajudante de cozinha, o último emprego que teve. Veio-se embora porque o patrão queria que ela ficasse a trabalhar de segunda a sábado, por 530 euros, em horário repartido (das 10h às 15h e depois das 19h30 às 23h30). Não aceitou. Ao fim de meses a insistir, conseguiu finalmente que ele lhe passasse uma carta para ela receber o subsídio de desemprego. Está a sobreviver com a ajuda do pai do filho e o abono de família de 40 euros. Mora há 13 anos no 6 de Maio, e é um dos exemplos de quem investiu na casa. Fez remodelações. E as mudanças notam-se. Entra-se por um quintal amplo onde há um sofá por baixo do telheiro. A roupa está estendida ao ar. Dentro de casa ouve-se o som da máquina de lavar. A filha aparece com a bebé. Enquanto pisamos o chão de azulejos em direcção à mesa da cozinha, ela diz:— Já fiz muitas obras. Mesmo lá em cima, para proteger das chuvas. A humidade continua, porém, a estender-se pelas paredes. Desde que começaram as demolições, e agora com a retroescavadora à porta, há mais água a entrar. O filho de dez anos tem asma, que “apanhou por causa da humidade”. Antigamente, todos os anos pintava a casa de fresco. Costumava comprar muitas velas e ambientadores para disfarçar o cheiro a esgoto e humidade. Não tem meios para sair dali. — Uma casa T2 são 400 e tal euros. O ordenado mínimo é 500 e poucos…A autarquia ajuda-a com um mês de caução e um de renda, mas Amália tem de encontrar uma casa para ela, os dois filhos e a neta por, no máximo, 300 euros mês. — Pedem contrato de trabalho, fiador, está muito complicado mesmo…Pagava 150 euros de renda, até que um dia disseram-lhe, na câmara, que o dono da casa tinha resolvido o seu caso pelo PER. — Fiquei, fiquei. Em 2007, ela chamou-me para eu entregar documentos. Disse que não tenho direito a PER, mas estava no programa Pro Habita [alternativa de apoio a quem estava fora do PER e que foi suspenso por alegada falta de verbas em 2009]. Fiquei com esperança de ter uma ajuda. Vou procurando trabalho, a minha filha também, se me ajudarem com avanço do princípio…Na autarquia deram-lhe até 19 de Dezembro para resolver a situação. Investigador em Estudos Urbanos, António Brito Guterres lembra que passaram 23 anos desde o PER, e isso significa que muitas pessoas morreram, outras já nasceram, novas foram morar para os bairros. Por isso há uma enorme massa de gente que fica de fora do programa. “Muita da resistência tem que ver com isto. Como é que se pode agarrar este processo sem actualização de recenseamento?”, questiona. Grande parte do problema, neste e noutros bairros do concelho da Amadora, está no facto de a CMA não ter construído o número de habitações suficientes para o recenseamento que fez, acusa Rita Silva. “O Estado tinha que encontrar soluções para dar habitação àquelas famílias, que não são assim tantas”. O parque habitacional da autarquia distribui-se por vários bairros periféricos, como o Casal da Mira, da Boba, do Silva ou o Bairro do Zambujal, e por casas dispersas em vários bairros do concelho. Carla Tavares, a presidente, diz que não há espaço nem meios para construir mais habitação social. Reconhece que a solução tipo Casal da Mira é a prova de erros que não se devem cometer. “As dificuldades de gestão e de vivência são imensas. ” É um mau exemplo porque “são 750 fogos, com seis andares, não é possível manter as relações de proximidade que havia” e as pessoas vivem longe de tudo. Nisso a CMA e a Habita estão de acordo. A aplicação do PER destruiu laços de suporte social que existiam e “guetizou”, acusa Rita Silva. Por isso defende “um realojamento in loco”. Explica: “O 6 de Maio hoje está muito mais bem servido em termos de infra-estruturas, serviços públicos e transportes do que as segundas e terceiras periferias para onde a câmara manda as pessoas”, argumenta. “Parte significativa” do terreno onde está o 6 de Maio “é municipal”, esclarece a autarca. Mas construir e realojar ali os moradores está fora de questão. “Vá visitar o Casal da Mira e percebe o que é realojar uma Azinhaga dos Besouros em 750 fogos. ” Quanto a Santa Filomena, os terrenos são privados. "O PER mandata a erradicação dos bairros degradados mesmo em terrenos privados. Ao contrário do que diz o Bloco de Esquerda e o Habita nunca entrou na câmara uma pretensão urbanística para aquele terreno, embora tanto quanto sei Santa Filomena está num fundo fechado", responde. O Casal da Mira, hoje freguesia da Encosta do Sol, é um lugar para o qual muitos não querem ir. Foi construído em 2004 e as rendas são calculadas com base nos rendimentos declarados, composição e características do agregado familiar. A autarquia financiou este empreendimento com 22, 6 milhões de euros. O 6 de Maio hoje está muito mais bem servido em termos de infra-estruturas, serviços públicos e transportes do que as segundas e terceiras periferias para onde a câmara manda as pessoas”Pelo menos é essa a narrativa que circula entre moradores e entre quem acompanha os realojamentos. “Rusga ‘rende’ sete presos”, “Polícia cerca Casal da Mira” são títulos da imprensa sensacionalista sobre o bairro. Com prédios brancos e laranjas todos iguais, é difícil lá chegar de transportes públicos. No Google Maps, por exemplo, não há circuito sugerido para autocarro, camioneta ou comboio. A porta do prédio para onde Maria da Piedade se mudou há pouco mais de um mês está aberta. Subimos no elevador. Na sala, a árvore de Natal já pisca com as luzinhas. Um móvel castanho tem fotografias de família e estatuetas de porcelana. Uma imagem da Mona Lisa enorme pendurada na parede finta quem está sentado num dos sofás. É um apartamento com uma boa sala e dois quartos. — Estou melhor, porque onde estava não estava bem, não tinha sítio certo. Maria da Piedade, 49 anos, vive aqui com o filho e o companheiro. O outro filho, a filha e a mãe ainda vivem no 6 de Maio, em casas diferentes. Em casa da mãe entra chuva, “estamos fartos de falar com a câmara”, queixa-se. Lá vivem seis pessoas: a mãe e os irmãos, um deles com deficiência auditiva e outros dois com deficiência mental. Está a tentar que sejam realojados junto dela. Entre a família, foi a primeira a ser realojada. Arranjou um advogado, depois de lhe ter sido dito que estava fora do PER. Morava, na verdade, no Estrela de África, na casa do pai dos filhos. Ele vendeu a casa e “deixou-a na rua”. Ficou contente por ir para o Casal da Mira, não reconhece o retrato negativo que traçam. Sabe que “a câmara não dá casa”: “aluga casa”. Doente crónica, desempregada, recebe Rendimento Social de Inserção. Cresceu ao mesmo tempo que os bairros Estrela de África e 6 de Maio. O pai chegou de Viseu eram eles pequenos. Punha-a a pedir esmola, a acartar papelão, a buscar água, ainda o bairro funcionava a gerador. Lembra-se bem das destruições no Bairro de Santa Filomena, quando subiu a uma retroescavadora para impedir que destruíssem a casa de uma mulher. — Na maneira como fazem às pessoas, só na Amadora acontece, queixa-se. Na Damaia sentia-se melhor. Tinha amigos vizinhos, “porta a porta”. Tinha transportes. Aqui só rodoviária: nem Carris nem metro. — Nunca vou esquecer do bairro 6 de Maio. A nossa casa é a nossa casa. António Brito Guterres fez tese de licenciatura em Serviço de Acção Social sobre o realojamento na Pedreira dos Húngaros (que acabou em 2003) e lembra que o que está a acontecer no 6 de Maio não é novidade. Há movimentos parecidos: quem foi realojado por vezes regressa regularmente ao bairro antigo, caso do Flávio, que todos os dias vai ter com as amigas a Santa Filomena, a uma das poucas casas que resistem. Volta porque pelo menos ali havia vida de bairro, o pai construiu a casa e aumentou-a à medida da sua família, explica num dia de sol. A sensação de ser “um espaço conquistado”, no sentido em que as pessoas tinham capacidade para decidir sobre ele, reforçava uma relação afectiva que parece desaparecer quando as populações são realojadas, analisa Guterres. Parece que o realojamento é negativo? “Nem sempre”, responde. “Cada câmara fez o realojamento de forma diferente e em tempos diferentes. Houve a sensação de que ia resolver parte da pobreza. Muitas vezes a conotação do realojamento é negativa porque o tecto é melhor mas os outros aspectos são piores, como a mobilidade, o emprego, as relações com os vizinhos. Depois, o centro de saúde fica mais longe e a escola é mais segregada. ”Cada câmara fez o realojamento de forma diferente e em tempos diferentes. Houve a sensação de que ia resolver parte da pobreza. Muitas vezes a conotação do realojamento é negativa porque o tecto é melhor mas os outros aspectos são piores, como a mobilidadeAntropólogo de formação, doutorado em Geografia, Eduardo Ascensão faz parte do Expert, um projecto interdisciplinar e internacional de investigação que estuda a política de habitação e o papel dos peritos no PER. Lembra que desperta o interesse dos colegas estrangeiros por ter incluído uma solução de realojamento maciço, como o Casal da Mira, onde vive Maria Piedade, numa altura em que na Europa e nos Estados Unidos esse tipo de políticas já não se praticava (tinham sido substituídos por outro tipo de modelos como subsídio à compra ou ao arrendamento). “A maior parte desses modelos veio a revelar concentração de pobreza, situações problemáticas que fazem com que haja uma espiral para baixo, com corte das ligações económicas com o resto da cidade”, analisa. Autor do artigo “A barraca pós-colonial: materialidade, memória e afecto na arquitectura informal”, analisa a relação do PER com o passado colonial, pois a maioria dos recenseados na altura vinham das ex-colónias portuguesas em África. Olha para o programa como “um dos instrumentos da nossa reconfiguração social como país”. Por um lado, foi “maravilhoso”, afirma, por ser o primeiro programa de habitação pública com os imigrantes como destinatários. Por outro, as instituições do Estado, autarquias, IHRU várias vezes trataram “os destinatários de cor do PER com poder coercivo excessivo”. E isso fez com que “ficassem desprotegidos”, praticando assim “formas aproximadas de racismo institucional”, analisa. Exemplos: “A falta de voz com que algumas pessoas ficaram, o facto de em alguns sítios as populações brancas terem sido realojadas primeiro. ” Outro exemplo, o programa Retorno: “A indemnização era bastante abaixo de um fogo público e portanto havia aqui a ideia de que ‘ajudamos-te a ir embora e deixas de ser problema nosso’. ”O que o turismo tem que ver com as demolições?Neste momento, “o PER já não responde à sua função que é realojar, está é a justificar o despejo”, critica Rita Silva. António Brito Guterres acrescenta: “É intolerável as pessoas viverem em sítios esconsos, sem esgotos. Mas não realojá-las é escandaloso. O que está em causa é que estamos no século XXI e não dão alternativas além da rua. Dão dois meses de renda a quem não tem fiador, nem rendimento, nem muitas vezes documentos. ”Para Eduardo Ascensão, os agregados “não PER” “muitas vezes” têm condições “mais precárias e são mais pobres do que os que foram recenseados em 1993”. Defende que o facto de “serem administrativamente não PER” não os deve excluir. É taxativo: é preciso concluir o programa e “resolver de vez estes casos”, que têm sido “tratados de forma brutalmente opressiva por parte de agentes do Estado”, “injectando, se for preciso, financiamento adicional”. Situações como a de Amália, de Suleimane, de Ondina, de Mozer, em que o “dono da barraca” aproveita o seu próprio realojamento para fazer dinheiro, são minoritários, diz. “O Estado tem obrigação de providenciar habitação digna para estas pessoas. Não pode deixar as autarquias em roda livre e ser cúmplice de situações que já foram denunciadas. ” Se o investimento no PER foi de 2, 4 mil milhões, neste momento para fechar o programa é necessário “uma ínfima parte disto”. Acrescenta: “A transferência de populações deu imenso dinheiro a ganhar a muita gente. Menos às pessoas que lá viviam. ”O que devia ser feito ao PER? Primeiro concluir. Depois, planear com os moradores, defende António Brito Guterres: “Estou habituado a trabalhar em processos com as pessoas, por isso confio nisso para decidir melhor. ”A verdade é que, lembra, o próprio primeiro-ministro, António Costa, parece ter sugerido indirectamente o falhanço do PER na Cimeira Europeia de Bratislava, Eslováquia, em Setembro, ao apresentar como medidas de combate ao terrorismo a regeneração urbana, o desenho de políticas públicas específicas e “regeneração física dos bairros periféricos” na Europa. Algumas das soluções propostas pela Habita para resolver o problema da habitação social em Portugal passam pela expropriação e acordo com os privados nos terrenos em que foram construídos estes bairros, misturando depois a construção de habitação a custos controlados com a habitação privada (sendo que em alguns casos, como no bairro da Cova da Moura, a reestruturação seria suficiente). Apesar de serem consideradas barracas, é preciso lembrar que os proprietários pagavam Imposto Municipal sobre Imóveis em quase todos estes casos. 6690 número de pessoas a viver em barracas em 2011, segundo o INE. Em 1981 eram 74. 603 em 1981. Mas a habitação social não chega aos 2%A realidade alterou-se muito nos últimos anos. O número de pessoas a viver em barracas passou de 74. 603 em 1981 para 6690 em 2011, segundo o INE. Mas a habitação social não chega aos 2%. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Isto mostra que “não há política social de habitação neste país”, diz Rita Silva. “Depois do PER, não houve outro programa de habitação social. O Estado gastou muito dinheiro público desde os anos 1980 em créditos bonificados, que eram subsídios à banca através das famílias. E investiu muito pouco em habitação social”, critica a activista. As verbas deviam ter sido usadas para a habitação social, defende. “Os aumentos dos arrendamentos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto são preocupantes. A pressão é enorme, faz com que esteja a haver aumentos em toda a AML de Lisboa e Porto, o que afecta a maior parte das famílias. ” A consequência é a população ser empurrada para os segundos e terceiros subúrbios. “A habitação social não tem de ser esta construção pobre, feia, para os pobres”, critica, por outro lado, Rita Silva. E sublinha: “A sociedade acha inaceitável que seja recusado um tratamento hospitalar a alguém por não ter dinheiro. Mas é bastante aceite que uma pessoa seja despejada por não ter dinheiro, nem alternativa. ”Está na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo o ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. ”
REFERÊNCIAS:
Us, uma curta para mostrar como é ser jovem, negro e gay
Us é uma curta-metragem que reúne dez britânicos queer e os põe a falar na primeira pessoa sobre ser jovem, negro e gay. O filme, dirigido por Catarina Almeida, lisboeta, e Chanel Baker, inglesa, foi criado no âmbito da licenciatura em Comunicação de Moda com especialização em Filme, da Universidade de Middlesex, em Londres, e foi estreado na revista Dazed & Confused. Catarina, 21 anos, explica, ao telefone com o P3, o motivo que as levou a abordar a moda de uma forma tão imprevisível: “Sempre me senti fascinada com a condição humana e a sua vulnerabilidade. E penso que não tinha que fazer uma coisa literal e sup... (etc.)

Us, uma curta para mostrar como é ser jovem, negro e gay
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 18 | Sentimento 0.087
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
TEXTO: Us é uma curta-metragem que reúne dez britânicos queer e os põe a falar na primeira pessoa sobre ser jovem, negro e gay. O filme, dirigido por Catarina Almeida, lisboeta, e Chanel Baker, inglesa, foi criado no âmbito da licenciatura em Comunicação de Moda com especialização em Filme, da Universidade de Middlesex, em Londres, e foi estreado na revista Dazed & Confused. Catarina, 21 anos, explica, ao telefone com o P3, o motivo que as levou a abordar a moda de uma forma tão imprevisível: “Sempre me senti fascinada com a condição humana e a sua vulnerabilidade. E penso que não tinha que fazer uma coisa literal e superficial, como colocar lá um par sapatos ou uma saia. ” Por achar que a moda pode ser algo mais “relevante e importante”, decidiu “contar uma história” — ou dez. Procuraram, então, rapazes negros e queer, que estivessem disponíveis para contar, em frente a uma câmara, a sua perspectiva da masculinidade do homem negro e da falta de representação que ele tem na comunidade gay. O filme encerra em si uma certa espontaneidade, visível, por exemplo, nas roupas de cada um: “Nós não lhes fizemos qualquer tipo de styling, eles vestiram-se de forma natural e acho belíssimo que no vídeo se veja o estilo deles, porque acabamos por perceber como eles são”, refere Catarina. As imagens dos participantes a conviver na rua, a rir, a posar para a câmara, enquanto partilham as suas experiências pessoais e desfazem preconceitos, permitem que o espectador entre na intimidade de cada um. “Para os deixarmos à vontade, pusemo-los numa sala e dissemos ‘falem do que quiserem’. Eles começaram a falar de assuntos aleatórios, até que chegaram às experiências pessoais”, conta Catarina. Foi neste momento que se descobriram as histórias, como a de um jovem cuja família "fazia uma grande pressão para ele não ser gay e parar de agir assim” por motivos religiosos, ou de outro que ouviu as palavras "vou ter que te renegar", quando a irmã encontrou pornografia gay no seu telemóvel. Um dos problemas que os jovens destacam na curta-metragem, e que Catarina sublinha, é o facto de as pessoas não ligarem a homossexualidade aos negros: “Eles disseram que a homossexualidade era sempre associada aos homens brancos, magrinhos e femininos e que não achavam isso normal”, refere Catarina. Além disso, a realizadora lamenta que o preconceito venha “muitas vezes da própria comunidade negra” e que haja tanta pressão para “o homem negro ser masculino e até mais violento”. Para Catarina, a “beleza do projecto” residiu no facto de “todos eles terem encontrado um elo comum”. A realizadora queria que “as pessoas vissem o filme e se identificassem", que percebessem que "não é uma coisa estranha”. E essa é a ambição que Catarina leva para o futuro: “Criar qualquer coisa que possa gerar e abrir uma conversa, seja dentro da área moda ou não, quero sempre dar um significado ao meu trabalho. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens negro homem comunidade gay negra