Banco Atlântico internacionaliza-se através de Portugal
Instituição financeira de capitais angolanos vai expandir-se para a Namíbia e Moçambique. (...)

Banco Atlântico internacionaliza-se através de Portugal
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Instituição financeira de capitais angolanos vai expandir-se para a Namíbia e Moçambique.
TEXTO: O Banco Privado Atlântico, de capitais angolanos, vai abrir uma sucursal na Namíbia até ao final de Junho, estando neste momento a ultimar os preparativos. Depois, antes de Dezembro, será a vez de Moçambique. A particularidade desta estratégia é que, ao contrário dos seus concorrentes angolanos, como o Banco BIC (dominado por Isabel dos Santos) ou o BAI (onde a Sonangol está presente), a expansão está a ser conduzida através de Portugal, via Atlântico Europa. No caso do BAI, a sua presença no BPN Brasil era directamente via Angola. O mesmo acontece com o BIC. Apesar de, tal como o BAI, ter uma presença em Portugal, as investidas no Brasil e em Cabo Verde (através da compra de activos dos BPN) foram feitas pelo BIC Angola. Na Namíbia, o Atlântico vai encontrar um mercado ainda pouco preenchido, ao contrário do que sucede em Moçambique. Neste último país, a liderança cabe ao Millennium bcp (via Millennium bim) e, depois ao BPI/CGD (através do BCI). A última instituição financeira com relevo a surgir em Moçambique foi o Banco Único, de Américo Amorim e da Visabeira, em 2011. De acordo com informações recolhidas pelo PÚBLICO, o Atlântico Europa está também a analisar a entrada em outro mercado europeu, onde haja potencial de empresas com negócios de exportação para Angola e para o continente africano. A ideia é aumentar a escala da instituição financeira, e dinamizar os negócios empresariais. O banco liderado por Diogo Cunha (ex-Banco BIG, e que substituiu André Navarro em Fevereiro do ano passado) quer ainda crescer no negócio online, onde já está presente. Neste momento, é uma das instituições financeiras que está a disputar a compra do Activo Bank, do Millennium bcp. Para já, está fora dos planos do banco a aposta em balcões. Além das mudanças que ocorreram na gestão do Atlântico em Portugal no ano passado, também já houve alterações accionistas desde que o banco abriu portas no mercado nacional, em 2009. Se na altura a petrolífera estatal angolana era accionista da instituição, em Angola e em Portugal, agora já não consta da lista de detentores de capital. Em Portugal, o Atlântico Europa é detido a 89, 5% pelo Atlântico Finantial Group (com sede no Luxemburgo), a 7% de forma directa pelo Atlântico de Angola e a 3, 5% pela equipa de gestão. Já em Angola a equipa de gestão é dona de 21% do capital, a Global Pactum é dona de uns dominantes 72, 3%, e o Banco Millennium Angola detém 6, 7%. A Global Pactum está ligada a Carlos José da Silva, presidente do banco e accionista directo (foi o seu fundador em 2006). Depois, entra-se num novo cruzamento de participações: o Millenium Angola reparte o seu capital entre o BCP (50, 1%), a Sonangol (29, 9%), o Atlântico (15%) e a Global Pactum (5%). Além disso, tanto o Atlântico como a Sonangol estão no capital da Mota-Engil Angola. O quadro podia incluir ainda os russos do VTB, mas a fusão entre o Atlântico e o VTB África anunciada em Fevereiro do ano passado acabou por não avançar. Quanto a Carlos da Silva, o gestor preside também a uma outra sociedade presente em Portugal, a Interoceânico, que junta capitais angolanos e nacionais. É ainda, desde 2012, vice-presidente do conselho de administração do BCP, onde o maior accionista é a Sonangol (com 19, 4%). No ano passado, o Atlântico Europa registou um lucro de quase 3, 8 milhões de euros, mais 71% face a 2013. O banco opera junto de clientes particulares, empresas e institucionais, com serviços que vão desde depósitos a assessoria financeira e projectos de internacionalização, passando por pagamentos internacionais e financiamentos.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Angola vai pedir a Portugal que lhe devolva património
Ministra da Cultura angolana diz que é “imperioso” regularizar a questão da propriedade e da exploração de bens angolanos no estrangeiro e já tem identificadas algumas peças que poderá vir a pedir a Portugal. A notícia é avançada este sábado pelo semanário Expresso. (...)

Angola vai pedir a Portugal que lhe devolva património
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ministra da Cultura angolana diz que é “imperioso” regularizar a questão da propriedade e da exploração de bens angolanos no estrangeiro e já tem identificadas algumas peças que poderá vir a pedir a Portugal. A notícia é avançada este sábado pelo semanário Expresso.
TEXTO: O debate internacional em torno da restituição de património às ex-colónias, que nas últimas semanas ganhou renovada projecção com a publicação de um relatório sobre os bens africanos espalhados pelas colecções públicas francesas, encomendado pelo Presidente Emmanuel Macron, poderá estar prestes a ganhar contornos mais definidos em Portugal. Em declarações ao semanário Expresso, a ministra da Cultura de Angola, Carolina Cerqueira, admitiu que o seu país tenciona dar início a “consultas multilaterais com vista a regularizar a questão da propriedade e da posse, por um lado, e, por outro lado, da exploração dos bens culturais angolanos no estrangeiro”. Embora não tenha sido ainda aberta a título oficial uma linha de diálogo com outros Estados tendo em vista a restituição de património saído do país durante o período colonial, nem esteja feita a lista de bens que serão objecto de pedidos de devolução mundo fora, Carolina Cerqueira diz que estão já identificadas peças em Portugal que poderão vir a integrar esse inventário: “Existem peças nos museus de Etnografia e de Arqueologia [de Portugal] numa variada e diversificada amostra da nossa riqueza cultural, como por exemplo os Mitadi, máscaras, cestarias, cerâmica, estatuetas de arte Mbali, machadinhas polidas do neolítico, arte Tchokwe, bonecas, entre outras”, exemplifica. Sublinhando que não há pedidos formalizados mas que o seu gabinete está já a trabalhar neste dossier, a ministra da Cultura fala ainda da necessidade de “fazer um levantamento exaustivo sobre as obras de arte angolanas que se encontram em outros países, além de Portugal, como os Estados Unidos, Alemanha, França, Bélgica, Itália e o Brasil”. O seu ministério quer começar por trabalhar, em parceria com o congolês Sindika Dokolo, um dos mais importantes coleccionadores de arte africana e marido da empresária Isabel dos Santos, na “recuperação do acervo do Museu Regional do Dundo”. Uma iniciativa que se insere num programa mais amplo promovido pela Fundação Sindika Dokolo e que diz respeito à identificação e aquisição de obras que saíram ilicitamente de Angola durante os quase 30 anos de guerra civil. O PÚBLICO está a tentar obter reacções da ministra da Cultura portuguesa, Graça Fonseca, às declarações da sua homóloga ao Expresso, mas até ao momento não foi possível. Na passada semana, as direcções-gerais do Património, que tutela os museus públicos, e dos Arquivos e Bibliotecas portuguesas garantiram não ter recebido ainda qualquer pedido de restituição das ex-colónias. O movimento para a restituição de obras de arte e documentos às antigas colónias dos vários impérios europeus tem décadas, mas intensificou-se claramente nos últimos anos, com vários Estados, como o Benim, a exigirem (e a conseguirem) obras e com outros, como a Holanda e a Indonésia, a entrarem num diálogo construtivo que pode levar à devolução definitiva de património. Mas como é natural quando se trata de um tema sensível como este, há posições contrastantes. Mesmo em França, de onde partiu o relatório elaborado pela historiadora Bénédicte Savoy e pelo economista Felwine Sarr que recomenda a restituição às ex-colónias em África de todo o património que esteja hoje à guarda dos museus e que tenha sido retirado do continente “sem consentimento”, o diferendo é evidente, e ao mais alto nível. Se o Presidente Macron parece disposto a trabalhar para fazer respeitar o relatório até ao final do seu mandato, o seu ministro da Cultura, Franck Riester, parece querer reduzir a velocidade. Ainda esta semana, noticiou a imprensa francesa, Riester mostrou-se mais adepto de um reforço da colaboração entre instituições dos vários países — através de uma nova política de circulação de obras, de um programa de exposições mais intenso e de empréstimos de longa duração — do que de uma restituição plena, definitiva, de bens. Um pouco por toda a Europa, o relatório tem levado curadores, académicos e directores de museus a pronunciarem-se. Hartmut Dorgerloh, director-geral do polémico Fórum Humboldt, projecto concebido para reunir todas as colecções etnológicas dos museus de Berlim, numa altura em que a Alemanha lida na esfera política, na praça pública e nos tribunais com o seu passado colonial violentíssimo, sobretudo devido ao genocídio dos herero no começo do século XX, garantiu recentemente à publicação especializada The Art Newspaper que nos últimos anos o seu país tem intensificado os esforços para conhecer melhor a proveniência das obras que estão nas colecções públicas, mesmo tendo consciência de que nem sempre vai ser possível apurar as circunstâncias em que ali chegaram. “A restituição pode ser uma consequência desta investigação e, de facto, em certos casos, é um imperativo. A arte saqueada tem de ser sempre devolvida”, diz Dorgerloh, garantindo que vai estudar o relatório encomendado por Macron com a sua equipa para que juntos possam identificar as lições a tirar do caso francês. “Estamos também muito interessados em perceber como é que este relatório vai ser recebido pelas comunidades nos países de origem. ”Ora essa recepção, assim como o futuro de eventuais programas de restituição, deverá depender, entre outros factores, das relações de cooperação política, económica e cultural que existem hoje entre os países ex-colonizadores e os ex-colonizados; da capacidade de mobilização das elites locais; e da natureza e estabilidade das instituições que deverão receber as peças nos Estados de origem. Para Nicholas Thomas, que dirige o Museu de Arqueologia e Antropologia de Cambridge e é consultor científico do Museu do Quai Branly, centro nevrálgico das colecções etnológicas francesas, e do Fórum Humboldt, o relatório de Felwine Sarr e Bénédicte Savoy é, sobretudo, um “manifesto” pela restituição plena e por uma mudança de atitude dos museus europeus, que até aqui se têm mostrado mais abertos a empréstimos de longa duração. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Central à retórica Sarr-Savoy está uma posição de princípio – a de que é preciso olhar para as colecções africanas sempre no contexto de um “crime”, o da colonização. Ora Nicholas Thomas, historiador que muito tem escrito sobre impérios (Islanders: the Pacific in the Age of Empire, Yale University Press, 2010) e que não se cansa de sublinhar quão violentos foram, faz questão de lembrar, no entanto, que a convivência colonial não decorreu apenas num clima de opressão e que produziu, não raras vezes, um tráfico de objectos e ideias que interessava a ambos os lados: “[Os impérios] fizeram surgir, localmente, novas formas de arte que traduzem um cruzamento de culturas, como as dos primeiros souvenirs para turistas, muito bem representados nas colecções europeias e frequentemente confundidos por objectos tradicionais retirados às comunidades. ”Defendendo que falta aos autores do relatório francês um sentido “prático” e acusando-os de “descartar o paradigma da circulação [das obras] como se fosse apenas o obscurecimento de um imperativo moral”, o director do museu antropológico de Cambridge insiste que os empréstimos de longa duração, associados aos esforços de colaboração que nos últimos 20 anos têm marcado a relação entre instituições europeias e africanas, podem ser bastante mais benéficos, sobretudo em países onde as estruturas locais não estão preparadas para garantir a fruição pública e a preservação dos objectos que poderiam ser alvo de restituição. Para já, não são muitos os chamados “países de origem” a formalizar pedidos de restituição, mas muitos académicos acreditam que eles não tardarão porque há uma nova geração nas ex-colónias consciente da importância desse património espoliado para a construção das identidades nacionais e, se é verdade que nalguns desses países as instituições culturais são ainda frágeis, outros há em que são suficientemente dinâmicas para salvaguardar e promover esse património.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime guerra cultura
Uma parceria científica e tecnológica para África
O verdadeiro desafio a longo prazo, que a todos deve mobilizar, é garantir a efetiva capacitação científica de instituições africanas. (...)

Uma parceria científica e tecnológica para África
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: O verdadeiro desafio a longo prazo, que a todos deve mobilizar, é garantir a efetiva capacitação científica de instituições africanas.
TEXTO: A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN) estabeleceram, em 2016, uma parceria científica e tecnológica no âmbito da Iniciativa Conhecimento para o Desenvolvimento, IKfD (“Initiative Knowledge for Development”), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), que está a possibilitar a concretização, desde já, de dezasseis projetos de I&D, com uma duração de três anos, em vários países africanos, com especial incidência nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPS) mas envolvendo, nalguns casos, outros países africanos. O objectivo é estimular a capacitação científica de instituições africanas juntamente com a formação avançada de investigadores e a realização de actividades conjuntas de I&D com parceiros em Portugal e da AKDNEstes projetos têm o apoio de várias instituições portuguesas de ensino superior, onde se encontram os investigadores coordenadores de cada projeto, e englobam instituições africanas com as quais já existiam relações de cooperação científica sedimentando assim parcerias que pretendem melhorar as capacidades de resposta dos países africanos aos desafios do desenvolvimento e melhorar a qualidade de vida das populações. A primeira candidatura foi aberta entre maio e julho de 2017 e concorreram 78 projectos que foram avaliados por um painel internacional composto por peritos externos. Dos 73 projectos considerados elegíveis foram selecionados 16 (22%), aos quais já foi atribuído um financiamento até ao valor máximo de 300. 000 euros, por um período de três anos. A FCT e a AKDN investiram neste primeiro concurso um valor total de aproximadamente 4, 6 milhões de euros. As áreas temáticas abrangidas nos projetos são: ciências naturais – desde a biologia à geologia e paleontologia, englobando também a oceanografia, a aquacultura e a ecologia, incluindo a proteção da biodiversidade; física – no domínio da radioastronomia; arquitetura e urbanismo; engenharia do ambiente e relações com a agricultura; arquitetura e urbanismo; ciências sociais e humanas – abordando áreas da história e da ciência política; ciências médicas e da saúde – incidindo na sida, na malária, na tuberculose e nas doenças hereditárias do sangue. Os países envolvidos em mais do que um projeto são, para além de Portugal, que participa em todos: Moçambique (dez), Angola (seis) e Cabo Verde (dois). Participam apenas num projeto instituições da Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe. Os outros países africanos envolvidos são: África do Sul, Tanzânia e Nigéria. Em vários projetos existe envolvimento de instituições de vários países. A natureza singular desta parceria centra-se na utilização de conhecimentos científicos e de recursos tecnológicos, em rede, para o desenvolvimento dos países africanos e, em particular, para a melhoria da qualidade de vida das populações. Para além da qualidade científica dos projetos o sucesso da parceria deverá ser avaliado pelo impacto dos resultados tendo em conta, entre outros elementos, os Objetivos para o Desenvolvimento das Nações Unidas. Por estas razões entenderam os dois parceiros que o acompanhamento da execução destes projetos deverá ser feito, não só de acordo com as regras da FCT mas também por uma comissão especialmente nomeada para o efeito que irá efetuar uma avaliação anual do já referido impacto, de acordo com o proposto em cada projeto. Um outro desafio que a comissão de acompanhamento irá enfrentar, esperemos que com sucesso, será a mobilização e o envolvimento dos recursos humanos e tecnológicos da AKDN e mais especificamente da Universidade Aga Khan, quer em África, quer no Paquistão, onde já estão instalados e a realizar um trabalho notável, para facilitar a criação de uma nova rede conjunta para o desenvolvimento que englobe, nas suas iniciativas, Portugal e os PALOP's. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas o verdadeiro desafio a longo prazo, que a todos deve mobilizar, é garantir a efetiva capacitação científica de instituições africanas, facilitando o envolvimento de África em redes de conhecimento e de inovação e evitar a fuga de talentos de África. Esta é uma missão que nos deve responsabilizar a todos!O autor é membro do Board of Trustees da Universidade Aga Khan e Coordenador da Comissão de Acompanhamento da Parceria FCT/AKDNO autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos
Juventude em jogo
Portugal é a principal porta de entrada na Europa para jogadores de futebol menores vindos de África e da América do Sul. Francisco, Cassiano e Valentine vieram da Guiné-Bissau, Brasil e Nigéria com o sonho de jogar num grande clube europeu. (...)

Juventude em jogo
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Portugal é a principal porta de entrada na Europa para jogadores de futebol menores vindos de África e da América do Sul. Francisco, Cassiano e Valentine vieram da Guiné-Bissau, Brasil e Nigéria com o sonho de jogar num grande clube europeu.
TEXTO: Francisco Júnior, Guiné-Bissau, 23 anos— Disseste que ias mandar o dinheiro e ainda não chegou nada. — Mas porque estás a falar assim, mãe? Saí do treino e não tive tempo. Amanhã envio. — Preciso de ir ao hospital. Não te queria dizer, mas não me estou a sentir muito bem. — Mas tens de me dizer! O que é que tens, mãe? Tens de me dizer…— Não tenho nada, envia-me só o dinheiro. No dia seguinte, às seis da manhã, o telemóvel voltou a tocar: “A mãe morreu”, disse-lhe o irmão. A mãe morreu. A mãe morreu. A mãe morreu. Ainda hoje, passados quatro anos, a frase ecoa na cabeça de Francisco. A viagem de avião do Senegal para Portugal — sozinho, assustado, sem visto. O corpo a tiritar de frio, T-shirt de algodão em cima do tronco enquanto esperava na Portela pelo autocarro que o levaria para o centro de treinos do Benfica. Os jogos em que não tinha ninguém para o ver na plateia, a solidão das férias passadas com o porteiro. De repente, o motivo principal que o fez, com apenas 15 anos, apostar tudo numa carreira de futebolista na Europa tinha desaparecido. “Ela era tudo para mim. O que mais queria era poder dar-lhe uma vida melhor. Sonhava construir-lhe uma casa como deve de ser, arranjar-lhe umas roupas decentes, fazer coisas que a minha mãe pudesse dizer ‘Francisco, aquilo que fiz por ti valeu a pena’. ”Francisco Júnior é guineense, nasceu em Bissau há 23 anos. Desde os dez que recebe convites de empresários que trazem miúdos de África para tentar a sorte no futebol europeu. É um dos pelo menos 226 africanos (a maioria da Guiné-Bissau) a jogar nas principais competições de futebol europeias que deixaram o continente com menos de 18 anos, atrás do sonho de um dia se tornarem futebolistas profissionais. Um dos 294 jogadores vindos de África e da América do Sul que, driblando a lei da Federação Internacional de Futebol (FIFA), começaram a jogar — ainda menores — em clubes europeus, de acordo com os dados disponibilizados no site zerozero. pt. “A FIFA tem uma regra geral: não podem ocorrer transferências de jogadores de futebol com menos de 18 anos fora do seu país porque se entende que até estes atingirem a maioridade têm de cumprir várias fases da sua vida pessoal. O que acontece é que a Lei de Migração de cada país [que permite a livre circulação de menores de idade perante uma autorização parental] se sobrepõe à FIFA. Na minha opinião, quem não está a fazer o seu papel são as Federações Nacionais de Futebol de cada país que deveriam obrigar os clubes a cumprir as regras e não o fazem”, acusa o advogado de Direito Desportivo João Diogo Manteigas. A mãe sempre disse “não”, que era muito novo. Só se os levassem a todos. O pai, Francisco da Silva, nunca negou que era o que mais desejava: “Ter um filho na Europa a ganhar dinheiro para investir no seu país é o que qualquer guineense quer”, confessou sentado no sofá de pele importado, na casa nova que o filho lhe mandou construir em Bissau. Promessas de dinheiro rápido a uma família de sete pessoas que vive com menos de um euro por dia parecem poder comprar tudo — até um filho. O futebol sempre foi um sonho, sim; mas também a única brecha que Francisco encontrou para poder ajudar-se a si e à família. “A vida em África não é fácil. A vida em África não é mesmo nada fácil. ” Repete o lugar-comum vezes sem conta, como se repeti-lo pudesse mudar alguma coisa. 294 jogadores africanos e sul-americanos chegaram à Europa com menos de 18 anos para jogar nas principais competições de futebol do continenteDesde que se lembra, às seis da manhã, Francisco já estava de pé para varrer a casa. Depois, com uma bandeja que a mãe lhe colocava em cima da cabeça, ia para a rua vender o que havia: bananas, pão, sal. “A maioria das vezes, só tínhamos arroz branco. Ela fazia o impossível para pôr comida na mesa”, conta no último andar de um prédio com vista de 180 graus sobre a cidade de Liverpool, em Inglaterra, onde hoje vive. Para chegar à escola, demorava duas horas de caminho, a pé, atravessado por um rio. No fim das aulas, mais hora e meia até aos treinos no estádio Lino Correia, onde joga o Sport Benfica de Bissau. A barriga ainda vazia, as pernas cansadas, os pés moídos pelos sapatos de plástico que usava para jogar. Treinava com fome. O jantar era, muitas vezes, a primeira refeição do dia. Quando começou a dar nas vistas no Sport Benfica de Bissau, com 14 anos, chegaram os primeiros convites a sério: Sporting e FC Porto estavam interessados. Portugal é a principal porta de entrada de jovens africanos e sul-americanos que aspiram jogar futebol na Europa. Na época de 2014/2015, nas várias competições (amadoras e profissionais) de futebol nacionais, contavam-se 109 jogadores que tinham chegado ao continente com menos de 18 anos, dos quais 33 ainda menores, de acordo com a análise dos dados recolhidos do site zerozero. pt. Os três grandes do campeonato — Benfica, FC Porto e Sporting — são, entre os principais clubes europeus, aqueles que mais jovens jogadores acolheram. Quando contactados, não responderam a nenhum dos vários e-mails enviados. “Somos uma plataforma giratória entre a Europa, África e as Américas, o que permite aos países africanos e sul-americanos fazer entrar os jovens e, depois de os valorizar, enviá-los para destinos de excelência desportiva, explica o presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF), Joaquim Evangelista. “Somos o maior exportador de jogadores, mas a maior parte deles não nasceram cá, são estrangeiros que tiveram direito à nacionalidade”, acrescenta João Diogo Manteigas. Vir para a Europa era para Francisco como “chegar às nuvens”. Foi Catió Baldé – “ponto nevrálgico das contratações na Guiné”, como o define João Diogo Manteigas – quem o ajudou a fazer essa viagem. “É o empresário mais influente e com maior margem de sucesso no historial da Guiné em relação à transferência de jogadores para Portugal”, reforça o advogado. O convite chegou em Janeiro de 2008, Francisco representava a selecção guineense em Dakar, capital do vizinho Senegal. Era a primeira vez que o empresário o contactava directamente:— O Benfica está interessado e vai enviar uma pessoa para o Senegal para te trazer. Há mais de quatro anos que ouvia a mesma lengalenga. Já não acreditava que um dia pudesse mesmo acontecer. O telefone voltou a tocar:— Francisco, tu é que sabes. Ou vais ou ficas. Ou voltas para a Guiné ou ficas no Senegal e viajas para Portugal, ultimou-lhe Baldé. “O Catió aborda as pessoas da mesma forma há anos e continua a fazer sucesso. Muitas vezes são as próprias famílias que lhe vão pedir ajuda para trazer os filhos. A única preocupação dos empresários é ganhar dinheiro com os jogadores. Ganham o deles e nunca mais querem saber de nada. Saber que o filho vai para a Europa já deixa os pais guineenses felizes”, denuncia Francisco. O seu pai não foi excepção: “Procurava o melhor empresário para levar o meu filho e o Catió convenceu-me da seguinte forma: ‘Se eu conseguir levar o Francisco para Lisboa, vou dar-lhe um terreno para construir uma casa e vai ter também uma viatura à vontade. ’ Acabei por aceitar”, recorda Francisco da Silva. Antes de embarcar, Francisco levava no bolso apenas o dinheiro que o então treinador da selecção guineense, Pedro Dias, lhe deu para voltar se algo corresse mal. Na cabeça, a obrigação de tirar a mãe da vida que levava. A mãe, sempre a mãe. Foi a sonhar com tudo o que lhe poderia comprar — a comida, as roupas, a casa nova — que embarcou sem visto naquele avião. “Estava tudo planeado, que deveria ser nessa viagem. Mas ninguém disse nada ao Francisco, ninguém lhe comunicou que ele iria para o Benfica”, contou Pedro Dias, em Junho, quando o encontrámos no centro de Bissau. “Ainda hoje não sei como passei… Cheguei, apresentei o meu passaporte e estava tudo certo. Quando cheguei a Lisboa, carimbaram-me o visto. ” Tinha 15 anos. Quando saiu do Aeroporto da Portela, Francisco soube pela primeira vez o que era ter frio. Trinta minutos à espera do autocarro que o levaria para o centro de estágios do Benfica, no Seixal. “Acho que nunca tremi tanto na minha vida. Depois, fui bem recebido, havia lá outros guineenses, muitos africanos…”Um dia em Portugal e já queria voltar. A sua nova casa estava vazia das conversas no alpendre com os vizinhos, das gargalhadas estridentes, dos mimos da mãe. “As pessoas eram diferentes. Na Guiné, de manhã quando acordávamos, estávamos logo todos juntos. Aqui cada um adormecia no seu canto. Ligava à minha mãe e ela começava logo a chorar. ‘Se não te sentes bem, volta. Volta, volta, por favor’, dizia-me. ”Ao fim de dois, três meses, habituou-se: cama, comida, roupa lavada, treinos e aulas de línguas — Francês, Inglês e Português. “Ainda comecei a ir à escola no 9. º ano, mas com os treinos tive de desistir. ” Nunca mais pensou em voltar. O Benfica pagava-lhe 400 euros por mês, enviava 300 para a Guiné. Francisco garante que Catió Baldé nunca pagou à família a quantia que prometeu. “Quando assinei o primeiro contrato, o documento dizia que uma parte do dinheiro deveria ir para os meus pais e para o Benfica de Bissau, mas esse dinheiro nunca chegou, ficou com os empresários. Na altura de assinar, oferecem roupa e bens materiais, mas depois nunca mais os vês. Passados anos, começas a perceber que foste e és explorado. ”109 jogam em Portugal, o país da Europa que acolheu mais aspirantes a futebolistas menores de idadeEm diferentes declarações públicas, Catió Baldé disse sentir-se como um “pai para estes miúdos”. “Tenho uma academia de futebol na Guiné-Bissau e trabalho na área de prospecção, isso leva a que descubra jogadores com talento e lhes proporcione a possibilidade de fazer testes, de serem observados na Europa”, esclareceu quando contactado por telefone. Sobre Francisco, quase não quis falar: “Ele que diga o que é que eu tinha prometido à família dele. Quem tem de fazer promessas à família é ele”, comentou exaltado. Francisco garante nunca ter visto em Catió um pai. Fez-se homem à força, passou por muitas dificuldades, mas não se arrepende: “Foi o Benfica que me tirou de África. Tenho com o clube uma dívida eterna. O Catió foi o homem que me trouxe e agradeço-lhe por isso, mas nunca o senti como pai. ”O pior era quando chegava o Natal ou as férias grandes: os colegas de malas feitas à espera da família que chegava, sorridente, de carro e Francisco sentado num lancil, a observar à distância o afecto que também desejava para si. Apesar de tudo, teve “sorte”, garante. A sua sorte foi nunca ter sido expulso do clube onde jogava. Sempre ter tido onde dormir, o que vestir e comer. Nunca ter sido despejado na rua num país que não era o seu e onde não conhecia ninguém. “Conheço muitos empresários que pegam nos miúdos, recebem o dinheiro, deixam-nos nos clubes e vão-se embora. Dizem que vão mudar a nossa vida e depois, quando chegamos à Europa, levam o dinheiro e já não querem saber”, denuncia. “O que acontece na grande generalidade destes casos é que os jogadores são colocados numa casa: 9, 10, 15, 20. . . Quando ainda são uma expectativa, uma oportunidade do ponto de vista desportivo, é-lhes dada alimentação básica. Quando deixam de o ser, são abandonados e não têm dinheiro. Ficam numa situação desumana. É disso mesmo que estamos a falar: de alguém que não tem nada, não tem ninguém”, denuncia o presidente do SJPF. Francisco reconhece que vir para a Europa foi o melhor que lhe aconteceu, mas não compactua com o esquema montado. Garante que vai falar até lhe faltar a voz: “Não tenho medo de ninguém, não dependo de ninguém — só dos meus pés. É feio trazer os miúdos de África e abandoná-los na Europa. Porque quando digo abandono, é abandono… É abandono. Falamos de miúdos. Repito: um miúdo! Um miúdo que não tem idade para ser homem. ”Não está contra a vinda destes aspirantes a jogadores de futebol, o que o revolta é a forma como são trazidos, serem tratados como “mercadorias”, serem aliciados com a promessa de um futuro que pode nunca se concretizar. Hoje tem, garante, “idade para ser homem”, mas isso não atenua o vazio que sente. A solidão é desde há muito o seu tormento maior. “Vivo sozinho, não tenho ninguém. Se tenho um problema, estou sozinho; se estou doente, estou sozinho; se estou triste, estou sozinho. Se preciso de desabafar, tenho de desabafar comigo mesmo. Se a minha família tem problemas lá, eu é que tenho de os resolver. Eles têm de ir à escola, vestir, comer. É muita coisa para a cabeça de uma só pessoa”, desabafa. Conquistou o que queria: é jogador do Everton, um clube da primeira Liga inglesa, vive num T2 na marina de Liverpool, conduz um BMW X6, calça ténis da Nike e, em dias de festa, também veste Armani. Há meses em que chega a enviar mais de 10 mil euros para a Guiné, no total — entre pai, irmãos, tios, primos e vizinhos — são mais de 20 as pessoas que dependem dele. “Os africanos acham que quem vem para a Europa fica rico automaticamente. Há muitos que não voltam ao seu país porque não conseguem enriquecer o suficiente para sustentar todos os que lhe vão pedir dinheiro. ”40 mil euros recebe mensalmente Francisco, sem contar com patrocínios e prémios de jogo. Francisco joga no EvertonFrancisco construiu uma casa para a família em Bissau, comprou um táxi para o pai — que este aluga e soma ao salário de professor (cerca de 150 euros) —, paga a escola, comida e casa dos quatro irmãos que estudam no Senegal e envia dinheiro sempre que há uma emergência. Mesmo assim, Francisco da Silva diz não se sentir ainda satisfeito “dentro do seu coração”: “O que ele faz não é suficiente para mim, gostava que ele investisse o seu dinheiro na Guiné-Bissau. Poderia ser no que quisesse, estaria aqui para o ajudar a gerir”, queixa-se. Por mês, Francisco recebe 30 mil libras (cerca de 40 mil euros), sem contar com patrocínios e prémios de jogo. “Tento guardar o máximo, hoje estou aqui, mas amanhã não sei. ” Dá-se a poucos luxos. A rotina vai pouco além dos treinos, dos jogos de PlayStation e do iPhone, uma extensão do corpo que nunca larga. A música — que pode variar entre kizomba, rap ou pop — também está lá sempre, como se a vida se recusasse a acontecer sem uma banda sonora constante. Beber uns whiskies e cantar karaoke em clubes privados, fumar chicha ou jantar no Nando’s — um franchising sul-africano conhecido pelos frangos assados — são os seus escapes. Tem uma vida monótona e regrada. “Para seres futebolista, abdicas de muita coisa. A primeira é a juventude, não te divertes como um jovem normal. Só tens dez anos, 15 no máximo. ” Há quase dez anos na Europa, já não liga quando o tom da sua pele é motivo para o insultarem em campo. “Ainda hoje nos treinos me chamaram nigger mother fucker [preto filho da puta]. Estou vacinado, passa-me ao lado. ” Meteu na cabeça que para conseguir o mesmo tem de trabalhar o dobro. O dinheiro pelo dinheiro não o fascina. Quando saiu da Guiné, nunca imaginou que a sua conta bancária pudesse vir a contar tantos dígitos. Quando saiu da Guiné, também nunca imaginou que um dia se pudesse sentir tão pobre. Nunca voltou à casa onde nasceu, rejeita tudo o que o recorde da pessoa que mais ama. A única coisa que queria era ter visto a mãe vestida com as roupas que lhe comprou numa loja europeia, a viver numa casa de tijolo, a servir-lhe um cozinhado de arroz recheado de peixes variados. Se naquela tarde não tivesse cedido à preguiça, se tivesse ido ao Western Union do Rossio enviar o dinheiro, talvez ainda fosse possível. Nunca vai saber. Os “se” são um fantasma com que teve de aprender a conviver. “A única coisa que queria era ver a minha mãe a sorrir, a dizer ‘obrigada’. Mas não consegui. Por isso é que nunca vou ser feliz na vida. Posso ter tudo, mas nunca vou ser feliz na vida. ”Cassiano Bouzon, Brasil, 14 anosEspanha, Catalunha. Dez horas de uma noite de Dezembro de 2012, um frio que enregelava os ossos. Cassiano preparava-se para o treino no campo do Cornellà, um clube barriga de aluguer do FC Barcelona onde muitos craques estrangeiros iniciam a sua carreira de futebolistas. Francisco tremia na bancada: quando viu o tamanho dos outros jogadores, achou que o filho não seria capaz. “Vi cada africano com dois metros de altura e pensei: ‘Não é possível que esses meninos tenham todos a mesma idade’. ” Cassiano começou a jogar e a temperatura subiu: fintou um, fintou outro, correu para a baliza, marcou golo. Estes foram os segundos que pai e filho congelaram na memória, os momentos que escolheram para resumir o dia que terá sido um dos mais importantes das suas vidas. “Fala o pai de Cassiano Bouzon? Gostaria muito que seu filho viesse treinar e fazer testes ao Barcelona. ” Do outro lado da linha, do outro lado do oceano, estava Josep Maria Minguella, o responsável por há anos ter levado Lionel Messi da Argentina para Espanha. Era Outubro de 2012, Cassiano tinha 11 anos, vivia em Salvador, no Brasil. Francisco Jesus emudeceu. Sonhava com este momento ainda antes de Cassiano nascer. Com o dia em que o seu “filho homem” pudesse ser aquilo que uma lesão no joelho lhe roubou de rompão, interrompendo-lhe uma carreira — que recorda “brilhante” — como médio esquerdo. Foi invadido por aquela alegria infantil e inexplicável que vem de dentro. Mas rapidamente caiu em si: e se, afinal, o filho não fosse o “fenómeno” de que todos falavam em Salvador? Fosse como fosse, tinha de tentar. Francisco projecta no filho aquilo que nunca conseguiu: ser um jogador de futebol profissional. O vídeo que partilhara no YouTube, onde em seis minutos Cassiano dribla meia equipa e marca seis golos, tinha dado frutos. É assim que muitos miúdos dão a conhecer o seu talento e se fazem notar por olheiros e empresários. Foi assim que Francisco conseguiu apontar holofotes para o filho. “O Cassiano passou. Se ficar connosco, será entregue a uma família de acolhimento aqui em Espanha. Estuda durante o dia e treina à noite. Cobriremos todas as suas despesas. ” A proposta, garantem pai e filho, saiu da boca do então presidente do Barcelona Sandro Rosell, menos de um mês depois de Francisco e Cassiano terem aterrado na cidade e dormido pela primeira vez em casa de Josep Minguella. “Não dá para ter ideia da imensidão que foi: quando vi que tinham criado um fan club para o Cassiano em Espanha, não quis acreditar. Tudo isto nos deixou muito assustados mas, ao mesmo tempo, era muito gostoso”, avalia Francisco. “Assustador. A palavra é mesmo essa: assustador”, interrompe Irtes Bouzon, mãe de Cassiano. O miúdo não pensou duas vezes: queria ficar. Dizer “não” ao clube onde joga Messi, ainda que seja Cristiano Ronaldo com quem um dia gostaria de partilhar o mesmo relvado, parecia-lhe uma loucura. “Cassiano me olhou e disse: ‘Papai, eu fico!’ Você falou firme. Vou falar só uma coisinha para você: lembra quando teve aquela dorzinha na barriga e acordou de madrugada vomitando? Você chamou quem? Aqui não vai ter mamãe nem papai. ”A imprensa deu a notícia: pai de Cassiano “disse não” ao Barcelona. “Quem sou eu para dizer não ao Barcelona? Só não podia deixar uma criança de 11 anos sozinha noutro continente, longe da família. Ainda sugeri que nos levassem a todos para a Europa: Eu, Irtes e Maria Cecília [irmã de Cassiano]… Mas foi na altura em que o clube começou a estar envolvido na polémica de contratação de menores e nada se concretizou. Em Abril do ano passado, a FIFA proibiu o Barcelona de contratar jogadores durante um ano por entender que o clube catalão violou o regulamento na aquisição de dez atletas menores. Segundo o comunicado da entidade que rege o futebol mundial, “as investigações relacionaram-se com vários jogadores menores que foram registados e participaram em competições ao serviço do clube ao longo de vários períodos entre 2009 e 2013”. Os dirigentes do Barcelona concordaram com Francisco: “Ele é de facto muito novo. Não pode ser federado porque não tem idade. E trazer a família do Brasil para a Europa é impossível”, disseram-lhe. 59 jogadores africanos e sul-americanos com menos de 19 anos jogavam nas principais competições europeias na época de 2014/2015A maioria dos miúdos africanos e sul-americanos envolvida neste tipo de convites vem de contextos desfavorecidos. Encontram na oportunidade uma forma de escapar à pobreza, de proporcionar uma vida melhor aos seus pais e irmãos. Não dizem não, não podem dizer não: o que têm a perder é quase sempre muito pouco. Com Cassiano é diferente. Cresceu no seio de uma família de classe média, com uns pais que se deixaram encantar pela possibilidade de terem em casa um “craque da bola” mas garantem não esquecer — repetem-no vezes sem conta — que primeiro têm de “criar um homem com valores, princípios e educação. Só depois nascerá o jogador de futebol”. A vida da família Bouzon divide-se entre o antes e o depois de Barcelona. Quando regressaram, Francisco dedicou-se a gerir o futuro da carreira do filho e tornou-se uma espécie de empresário a tempo inteiro, delegando o rumo da metalúrgica que geria no seu sócio. Irtes trocou a Varig, empresa de aviação onde trabalhava como secretária há mais de dez anos, pelos papéis de mãe e dona de casa e passou a assumir-se como “administradora do lar”. Maria Cecília, na altura com 14 anos, teve de deixar para trás a cidade onde nasceu, a escola, os amigos. Francisco, Irtes e Maria Cecília aceitaram ser, acima de eles próprios, o pai, a mãe e a irmã de Cassiano Bouzon. “Foram vários os clubes da Europa, os agentes FIFA, os empresários que nos contactaram. Acabámos por ficar no Rio de Janeiro, no Flamengo, onde Cassiano está muito feliz”, contou Francisco em Junho de 2014 no condomínio fechado onde vivia com a família nos arredores do Rio de Janeiro. “Não vou dizer que foi fácil. Chorei muito, senti que ninguém estava a levar os meus sentimentos em conta. Deixar a minha família, os meus amigos, a minha cidade… Mas depois pensei: ‘Quem sou eu para travar o sonho do meu chodó? Não tinha esse direito’”, reflecte a irmã de Cassiano. Francisco gosta de gabar-se de como o filho “ficou famoso de um dia para o outro”, de como foi “o garoto mais falado no Brasil”. De como a Nike patrocina todo o seu equipamento desportivo, ainda que Cassiano prefira os chinelos às chuteiras da marca quando joga à bola no terraço de casa. Depois desce à terra. Relembra que o filho ainda é uma criança e que toda a megalomania que o envolve deve ser tratada com pinças: “No mundo do futebol, há muita gente que te quer mal, que faz de tudo para travar o teu progresso. Cassiano ainda não é um jogador de futebol, precisamos ter muito cuidado nos passos que damos. Há um ano até me cobrei por colocar o meu filho num mundo tão cruel. ”Vive na ambiguidade, na dúvida de quem não sabe bem se deve continuar a lutar pelo sonho — que é tanto de Cassiano como seu — é o caminho mais certo. As suas palavras saltitam, em poucos segundos, entre a emoção e a razão: “Quando um pai perde a linha da verdade, achando que o filho pode ser uma salvação financeira para a família, acho que é aí que vem a perda do garoto”, reflecte. O Rubro-Negro encarregou-se da mudança de Salvador para o Rio de Janeiro. Por sua conta, ficaram o colégio de Cassiano, a renda da casa num condomínio privado na periferia da cidade e uma “contribuição mensal”, que permitia à família manter-se. “Com um garoto de 12 anos, é impossível fazer um contrato. Temos um documento que comprova o vínculo”, explica Francisco. O acordo de um ano durou pouco mais do que isso. “O jogador não evoluiu conforme esperado e o Flamengo diminuiu o quantitativo de atletas. Fizemos uma triagem e mantivemos quem estava melhor. Foi uma questão técnica, acontece muitas vezes os meninos virem badalados e não se adaptarem. Não houve nada de anormal, é um menino bacana, muito carinhoso”, disse em Outubro de 2014, ao site Globo Esporte, o director das camadas de base do Flamengo, Carlos Noval. Não pode dizer-se que tenha sido um balde de água fria. Cassiano estava quase sempre no banco, Francisco já esperava o pior, mas lamenta ter sabido da decisão pelos media. Não era a primeira vez que outros miúdos que se fizeram notar através de vídeos na Internet não tinham vida longa no Flamengo e acabavam dispensados. Quase dois anos depois de terem rejeitado o Barcelona, pai e filho voltaram a atravessar o oceano em Outubro de 2014. Eram para ficar uma semana, passaram-se quase dois meses. Para não chumbar o ano, Cassiano estudou com a mãe por Skype e fez exames à distância. Foram a convite do empresário Héber Miranda, que lhes abriu portas no Arsenal, Charlton, West Bromwich e Tottenham, onde o jovem fez testes. “O clube em que gostava de jogar é aquele que me der mais assistência não só para mim como para a minha família. Uma casa, algo de bom para todos”, confessa. Nem sempre os melhores vencem, conseguem chegar ao topo, mas tenho a certeza de que Cassiano vai conseguirEm Dezembro, Maria Cecília terminou o ano lectivo e Irtes decidiu embarcar com a filha para Lisboa. Estava farta de esperar uma resposta à distância, a família iria encontrar-se em Portugal e passar o Natal na Europa. Tinham planos para ficar, havia “muitos clubes europeus interessados”, diziam. Mas os problemas de sempre mantinham-se: “Precisamos de ter papéis para conseguirmos trabalhar aqui, o mundo do futebol não cria condições para as famílias virem”, explica Irtes. “Nem sempre os melhores vencem, conseguem chegar ao topo, mas tenho a certeza de que Cassiano vai conseguir”, antecipa a sua mãe. No fundo, Irtes e Francisco sabem que repetir vezes sem conta que o filho “vai ser um grande jogador de futebol” não passa de um exercício, mais ou menos realista, de adivinhação. Hoje, a família vive de novo em Salvador, longe de Cassiano que se mudou para São Paulo onde está a fazer um “tratamento para crescer”, explica Francisco numa mensagem trocada no Facebook. Sem clube mas tranquilo porque, como garante, “é um grande projecto que Héber [o agente de Cassiano] idealizou”:“Voltámos para o Brasil e, desde Fevereiro, Cassiano está a morar e a treinar em Santos. Lá, faz um tratamento hormonal de crescimento com somatropina, o mesmo medicamento utilizado por Lionel Messi no Barcelona. O objectivo é que no próximo ano esteja a disputar o campeonato de sub-15 pelo Santos. Actualmente é patrocinado pela Nike, explicou o agente por e-mail. Valentine Akpey, Nigéria, 19 anosValentine passou a infância a brincar com uma bola de plástico na praceta do bairro onde vivia em Abuja, capital da Nigéria, e ainda guarda com carinho as primeiras chuteiras que o pai lhe ofereceu. O futebol era a sua “paixão impossível”. Os pais queriam que estudasse e ele, um miúdo, nunca teve coragem de dizer em voz alta o que lhe passava na cabeça. Nada fazia adivinhar que, aos 19 anos, seria jogador do Associação Desportiva (AD) Nogueirense e viveria em Nogueira do Cravo, uma aldeia do distrito de Coimbra com pouco mais de 2300 habitantes. O dia em que o agente Tersoo John lhe disse que “tinha coração para jogar à bola”, que “não é normal tanta coragem” num rapaz da sua idade, mudou-lhe a vida. Encontrámo-lo dentro do estádio do AD Nogueirense, numa casa a menos de 20 metros do relvado e do balneário que partilha com mais dois nigerianos, um brasileiro, um costa-marfinense, um maliano, um bissau-guineense e quatro portugueses. “Sei que estiveram lá dentro, a casa não estava muito limpa, era o dia de folga da empregada”, justifica-se Rui Fernandes, director desportivo do clube. “É mais fácil captarmos um jogador de fora do que um português. Um estrangeiro que vem para cá quer-se promover, alcançar o maior sucesso possível. Somos um clube de interior, passamos dificuldades, não podemos sustentar uma equipa acima do que já fazemos. São estas as condições”. As condições a que o director desportivo se refere são alojamento e alimentação. “Há um jogador que está aqui há dois anos sem receber nada. Tive sorte, sou um dos dois que têm contrato profissional”, conta Valentine. O clube até faz mais do que aquilo a que é obrigado: “No primeiro mês, deram-me um envelope com 100 euros, não sei quanto é que os outros receberam porque nos chamaram um a um, à parte”, recorda. No Campeonato Nacional de Seniores, onde o AD Nogueirense joga, o regulamento da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) exige a inscrição de todos os jogadores, mas não obriga à realização de um contrato de trabalho: “É uma competição amadora, por norma os contratos realizam-se apenas para os profissionais”, confirma João Diogo Manteigas. Valentine é uma excepção porque, garante o director desportivo do AD Nogueirense, “não tem nacionalidade portuguesa, nem título de residência português”, fazer-lhe um contrato foi “a única alternativa”. Além disso, é um dos jogadores a quem a equipa técnica identificou mais potencial. Em caso de venda, com um contrato de trabalho, o clube garante a sua parte na transferência. Dos jogadores do AD Nogueirense que partilham casa com Valentine, apenas o maliano Sydou Ouilly não está, nem nunca esteve, registado na FPF — de acordo com o motor de busca disponível no site da instituição —, apesar de já contar quatro anos em Portugal e ter passado por clubes como o Leixões Sport Club, o Futebol Clube de Oliveira do Hospital e o Sport Clube Mineiro Aljustrelense. Como explica João Diogo Manteigas, as fichas de inscrição exigidas pela FPF, sejam jogadores amadores ou profissionais, permitem estas lacunas: “Para registar jogadores, a única coisa que a federação exige é o seguro de medicina do trabalho e a ficha de inscrição. Vêem aqui alguma anormalidade? Não há. O miúdo entra legalmente em Portugal e quando é registado a federação não pede os documentos necessários que permitam saber se o jogador se encontra legal”, esclarece o advogado. Valentine é disso exemplo. Três meses depois de ter chegado a Portugal com visto de turista — em 2013 — ficou em situação ilegal, mas só em Dezembro de 2015 recebeu a sua primeira autorização de residência. Apesar disso, o seu nome aparece registado na FPF como tendo jogado pelo Paços de Ferreira e agora pelo AD Nogueirense. 10 dos atletas jogadores do Benfica, o clube europeu que mais menores africanos e sul-americanos contava no seu plantelA FPF nega ter conhecimento destes casos e diz “não ser possível haver em Portugal inscrições que violem as regras da FIFA”. A instituição garante ainda que “monitoriza as transferências de jogadores e coopera com as autoridades portuguesas no sentido de identificar eventuais irregularidades”. Valentine Akpey fez parte de um grupo de oito jovens que em 2013 saiu da Nigéria com destino a Portugal. Queria fazer da sua “paixão impossível” uma realidade. A esperança foi-lhe vendida em forma de promessa pelo treinador português Sérgio Daniel e pelo seu agente nigeriano, Tersoo John: tinha de mostrar o que valia, dar o seu melhor. Se o fizesse, ingressaria num bom clube, garantiam-lhe. Tinha 17 anos. European Dream Came True era o nome do projecto promovido por Sérgio Daniel e pela academia De’ Elite Sports Group, uma empresa de caça-talentos onde, quando ainda tinha um site online, o empresário nigeriano Garba Tijani era apresentado como presidente, Tersoo John como vice-presidente e Sérgio Daniel como director técnico. “Este projecto consiste em escolher os melhores jogadores nigerianos dos 12 aos 23 anos para o AC Milan em Itália, o AS Mónaco em França e o SC Olhanense em Portugal, lê-se no fórum online Nairaland, onde a convocatória foi publicada há dois anos. Valentine, apresentado na conta de YouTube de Sérgio Daniel como “Spider Man” e um dos “melhores diamantes” da academia, foi um dos seleccionados. Já em 2012 tinha sido escolhido, o então presidente do SC Olhanense esperava-o no Algarve, mas, nessa altura, o visto foi-lhe negado. Um ano depois, o destino quase lhe voltava a trocar as voltas: a caminho da embaixada de Portugal na Nigéria para a reunião de pedido de visto, o autocarro onde viajava com os outros jogadores foi parado por um grupo de assaltantes armados. Ficaram sem telemóveis, computadores, todas as suas malas foram revistadas. Valentine pensou que não chegaria a tempo: “Primeiro achei que não ia sobreviver, depois só pensava como é que ia aparecer na reunião com aquela roupa, sem tomar banho, sem lavar os dentes. Estava nervoso. ”Quando finalmente chegou, recorda que havia diferentes gabinetes, calhou-lhe um homem. Descreve a conversa como se fosse hoje: perguntaram-lhe para onde queria ir, por que motivo, quem o levava, quem pagaria o seu voo e para que clube iria jogar. Valentine respondeu a todas as perguntas. No final, “ele confirmou na Internet se o Sport Clube Estrela era um clube real e disse que a entrevista tinha terminado”, conta. A resposta só chegou duas semanas depois. Valentine chegou a Portugal no dia 13 de Novembro de 2013, faltavam-lhe três meses para os 18 anos, não podia ainda assinar um contrato profissional. “Antes de virmos, a minha academia comprou um clube das distritais, o Sport Clube Estrela. Sabíamos que ficaríamos aí até nos habituarmos ao clima. ” Treinaram durante um mês, fizeram alguns jogos amigáveis, chegaram a jogar com o Benfica e o Sporting. Foi durante uma dessas partidas, no Algarve contra o Olhanense, que um agente reparou nele: “Disse-me que eu era um bom jogador e que me queria levar para outros clubes. ” Passada uma semana, Valentine estava a treinar nos Juniores do FC Porto. Foi assim que começou aquilo a que chama a sua “carreira profissional como jogador de futebol”. Depois do FC Porto, passou pelos Juniores do Paços de Ferreira, onde jogou durante uma época, mas acabou por ser dispensado antes de assinar o prometido contrato profissional. Ficou sem clube e sem plano B. No Verão de 2014, enquanto passava férias em Portalegre, foi “apanhado” pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que lhe deu 20 dias para regularizar a situação ou abandonar o país. No final de 2014, o SEF investigou 104 clubes e associações desportivas em todo o país e identificou 508 atletas estrangeiros, dos quais 203 estavam em situação ilegal. Em pelo menos 25 clubes, foram encontrados atletas sem visto ou cartão de residente, avançou o semanário Expresso em Fevereiro de 2015. No mesmo mês, o jornal Record publicou uma notícia intitulada “SEF retém jogadores no treino do Estrela de Portalegre [nome pelo qual é conhecido o Sport Clube Estrela]” e a direcção do clube informou na sua página do Facebook que não continuaria a participar do Campeonato Distrital de Seniores Masculinos. Na tentativa de controlar o aumento de futebolistas estrangeiros sem documentos a jogar em Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a Liga Portuguesa de Futebol e o Sindicato de Jogadores de Futebol Profissionais assinaram em Junho de 2015 um protocolo para “alargar o âmbito de cooperação quanto à obtenção de autorizações de residência de jogadores estrangeiros”, criar um grupo de trabalho que acompanhe casos de especial relevância e analise medidas “preventivas e sancionadoras adequadas” e promover acções de esclarecimento junto de agentes e organizações desportivas sobre a legislação de “entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território nacional”. “Tudo o que devia ter acontecido há anos só acontece agora, mas com uma coisa muito interessante: as regras para o registo do jogador na FPF não mudaram”, comenta João Diogo Manteigas. Em Agosto deste ano, Valentine aceitou jogar pelo AD Nogueirense: “O meu agente teve de me trazer para aqui. ” A pé, não alcança mais do que o único café de Nogueira do Cravo. Só sai da aldeia quando o treinador Rui Vale se disponibiliza a levá-lo à cidade mais próxima, Oliveira do Hospital. O seu dia-a-dia resume-se a dormir, ver filmes, treinar e “ficar focado”. “Tenho de me manter focado” é a frase que mais repete. 104 clubes e associações desportivas em todo o país foram investigados pelo SEF em 2014 e identificados 508 atletas estrangeiros, dos quais 203 estavam em situação ilegalDesde que chegou a Portugal, sempre teve casa e comida mas nunca ganhou mais de 250 euros por mês, pagos pelo Paços de Ferreira, depois de cinco meses a queixar-se. Ainda assim diz não ter vindo iludido, repete que o seu agente, Tersoo John, “um grande amigo”, é diferente dos “outros agentes”: “Compra-me tudo o que preciso e também me dá dinheiro para enviar à minha família. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Valentine deixou a Nigéria à revelia da família e dos amigos. Pouco depois de o seu irmão mais novo, que também se preparava para vir para a Europa, ter morrido: “Estava a jogar futebol, chovia muito e veio um raio. Quando o relâmpago chegou ao chão, todos os jogadores caíram. Foram-se levantando, um por um. Todos menos o meu irmão. ” Não se arrepende da decisão, mas tem saudades, muitas. Da comida, da namorada, da mãe. Se quisesse voltar para a Nigéria, tem a certeza de que Tersoo John lhe pagaria o bilhete. Mas não quer, ou não pode, ou não consegue sequer imaginar a hipótese. Não assim, sem nada, com o sonho por cumprir. A versão multimédia deste artigo está originalmente publicada em futebol. divergente. pt. Divergente. pt é um projecto jornalístico dos Bagabaga Studios. Este trabalho foi realizado com o apoio do Journalism Fund
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
O duro fardo de ser português
Chamem-lhe descobertas, expansão, viagem, encontro ou o que quer que seja, mas não queiram que se passe da glorificação acrítica para a anulação preconceituosa de um período crucial para a definição do que somos. (...)

O duro fardo de ser português
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento -0.29
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chamem-lhe descobertas, expansão, viagem, encontro ou o que quer que seja, mas não queiram que se passe da glorificação acrítica para a anulação preconceituosa de um período crucial para a definição do que somos.
TEXTO: Retire-se a esfera armilar da bandeira, suprima-se o estudo de Os Lusíadas, dinamite-se a Torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos, arrase-se Goa, Ouro Preto e Moçambique, apaguem-se os nomes dos navegadores da toponímia das cidades, proíbam-se as Décadas da Ásia de João de Barros, mudem-se os versos do hino que exaltam o “esplendor de Portugal”, enterre-se a lusofonia e meta-se Portugal num divã a sublimar os traumas do seu passado. O debate em torno do museu dos Descobrimentos proposto por Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa, para promover a “reflexão sobre aquele período histórico nas suas múltiplas abordagens, de natureza económica, científica, cultural nos seus aspectos mais e menos positivos” está em vias de criar um complexo de culpa tão intenso e profundo que exige a reinvenção do país. Já não está em causa o debate saudável promovido por académicos em torno do significado dos “descobrimentos”; agora a coisa fia mais fino e só se supera com uma revolução cultural que destrua uma das mais consensuais bases da identidade nacional. O debate deixou definitivamente de se fazer em torno da memória histórica e da plural discussão sobre a miséria e a glória da Expansão portuguesa. A recusa pura e simples da existência de um museu, seja das descobertas, da interculturalidade, da viagem, da expansão ou o que quer que seja, é um programa ideológico que propõe uma amputação do passado. Toda e qualquer iniciativa no sentido de expor, mesmo com olhar crítico, a aventura dos portugueses iniciada em 1415 será sempre vista como uma tentativa de veicular uma “história facciosa e que omite parte relevante da verdade histórica”, como defende uma carta de intelectuais portugueses afrodescendentes. A proposta do museu inscrita no programa de Fernando Medina sublinhava, por exemplo, que o museu deveria ter um núcleo que falasse da escravatura ou de outros aspectos “menos positivos” do colonialismo, mas essa salvaguarda não basta. Os autores da carta não só querem condicionar o futuro, o que seria legítimo, como denegar o passado que que cristalizou na “edificação comemorativa de estátuas, monumentos e museus celebradores do colonialismo e da ideologia colonial”. Bastaram 20 anos para que historiadores prestigiados como António Hespanha tivesse passado da condição de presidente da Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses para a ala dos que se indignam com o uso da palavra “descobrimentos”. Não há aqui nenhum problema. Autores consagrados e insuspeitos de qualquer propensão para o bafio ideológico, como Vitorino Magalhães Godinho ou Jaime Cortesão, usaram-na sem constrangimento porque, no seu tempo, não era susceptível dos anátemas que hoje se lhe colam. As visões da História são sempre condicionadas pelo presente e a glorificação das navegações, descobertas, expansão ou conquista são hoje felizmente temperadas por outras matizes que incorporam as visões do outro e dos seus dramas. Por isso foi importante que tantos intelectuais portugueses se tenham mobilizado para propor uma denominação alternativa para o projecto do museu. Ou para advertir que nenhuma justiça se faria ao passado nem ao presente dos portugueses se o espírito glorificador do Estado Novo o viesse a contaminar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O que agora está em causa já não são exigências para que o projecto reflicta as novas perspectivas da História e abdique de qualquer veleidade patrioteira ou “lusocêntrica”. O que está em causa é, como escreveu Eduardo Lourenço, a convocação metafórica de um “quase tribunal da Inquisição” para “pôr na pira a história do nosso pequeno país, que não o merece”. É a tentativa de subverter a memória, pegando nos seus capítulos mais negros para a pintar indelevelmente nesse tom. Não se exige um olhar transversal que inclua os dramas humanos do colonialismo em África, na Ásia ou no Brasil: impõe-se uma ideia do passado onde só esses custos existiram. Os que recusam pagar com os seus impostos um museu “construído sobre os ombros do silenciamento da nossa História” são afinal os mesmos que “exigem” à Câmara de Lisboa “uma aposta séria num Memorial de homenagem às pessoas escravizadas, num Museu do Colonialismo, da Escravatura ou da Resistência Negra”. Não seria possível fazer-se o museu com secções dedicadas ao colonialismo e à escravatura e ao lado erguer-se o tal monumento? Uma hipótese não contemplada. Porque o que subjaz a esta liturgia é uma clara tentativa de subverter uma hegemonia daninha com outra hegemonia daninha. É o irreconciliável “nós” de um lado e “eles” do outro. Nem vale a pena recuperar as teses da História que alertam para os perigos que a interpretação do passado com os olhos no presente. A escravatura, a pilhagem de recursos, a brutalidade da conquista, o genocídio e a conversão forçada foram processos detestáveis mesmo que na época fossem enquadrados num outro contexto cultural ou de valores. Mas para se perceber tudo, não se pode omitir a existência da escravatura em África antes de os portugueses lá chegarem. E saindo do pano negro que alguns querem tornar exclusivo, há que sublinhar outras facetas da História mais aceitáveis: a descoberta de rotas e de direcções de ventos, as tentativas de miscigenação de Afonso de Albuquerque na Índia, a mudança de hábitos na Europa forçada pelo contacto com os outros, como o hábito do chá, o contributo de palavras banto ou do tupi-guarani para a riqueza do português actual, a admirável arte indo-portuguesa ou a maravilhosa carta do “achamento” do Brasil de Pero Vaz de Caminha. Portugal é o que foi e se não podemos tapar os olhos aos horrores que os portugueses perpetraram, não podemos deixar igualmente de reconhecer a sua intrepidez, coragem, visão, curiosidade e energia que ajudaram a moldar a Europa moderna – e o mundo contemporâneo. Um museu sobre Portugal não pode nem deve ser a manifestação depurada de um pretenso elogio nacional nem uma orgia de verdades parciais que nos convide à autoflagelação. Porque, algures entre as duas perspectivas há-de ser possível encontrar um consenso. Serão as visões históricas sedimentadas ao longo de séculos a prevalecer? É um risco. Por difusa que seja, por inquinada que esteja com o patrioteirismo do futebol que faz de Ronaldo o novo D. João II, Portugal é uma nação velha com uma consciência nacional alimentada ao longo de séculos com o fascínio do império. Limemos-lhes as arestas e expurguemo-lo da mentira, do nacionalismo bafiento e da ideologia racial e colonial. Mas não queiram que, de um momento para o outro comecemos a olhar esse período fantástico do nosso passado como um recital exclusivo de horrores. Porque não o foi. Chamem-lhe descobertas, expansão, viagem, encontro ou o que quer que seja, mas não queiram que se passe da glorificação acrítica para a anulação preconceituosa de um período crucial para a definição do que, apesar de tudo, somos e para a imagem que, apesar de tudo, projectamos no mundo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos tribunal negro estudo negra escravatura
Morreu Cavalli-Sforza, o cientista que acabou com o conceito de raça
O cientista italiano fundou uma nova área do saber, em que o estudo da distribuição geográfica de variantes genéticas permitiu reconstruir a expansão da humanidade pelo planeta. (...)

Morreu Cavalli-Sforza, o cientista que acabou com o conceito de raça
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O cientista italiano fundou uma nova área do saber, em que o estudo da distribuição geográfica de variantes genéticas permitiu reconstruir a expansão da humanidade pelo planeta.
TEXTO: Aos 96 anos, morreu o geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, que estudou o ADN e também as línguas das populações humanas para desvendar como, a partir de África, se espalhou a humanidade pelo planeta. Essa investigação ensinou-nos algo ainda mais profundo: que o conceito de “raça” não tem qualquer utilidade em termos biológicos. Desde sempre, os humanos, mesmo os que não eram Homo sapiens, como nós, tiveram um desejo inato de viajar e correr mundo, o que fez com que há cerca de 12 mil anos, quando surgiu o homem moderno e a agricultura estava prestes a começar, existissem humanos praticamente em todos os pontos da Terra, e todos fôssemos bastante parecidos geneticamente – pelo menos, todos da mesma espécie. A curiosidade de Cavalli-Sforza foi despertada por esta viagem, que procurou compreender. Nasceu em Génova em 1922 mas fez carreira no Reino Unido, nos Estados Unidos (Universidade de Stanford, onde era professor emérito) e Itália (Universidade de Pavia, onde começou os seus estudos, no curso de Medicina). Estudou genética, quando o gene e os mecanismos da hereditariedade eram ainda um livro cheio de páginas em branco para os cientistas, e também estatística. Essa escolha poderia parecer um pouco heterodoxa quando ele era jovem, mas faz todo o sentido hoje em dia, com a ascensão da genómica – o estudo dos genomas, o livro de instruções dos seres vivos, escrito com letras feitas de ADN. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A partir dos anos 1960, depois de ter trocado a genética das bactérias pela genética humana na década anterior, como explicou numa entrevista à Nature em 2007, Cavalli-Sforza começou a publicar os trabalhos que o tornaram célebre (ver Genes, Povos e Línguas, Instituto Piaget). Traçou as migrações em massa do passado remoto da humanidade não apenas através das escavações arqueológicas, como se fazia tradicionalmente, mas também procurando pistas no sangue dos humanos actuais. Tornou-se o fundador de uma nova área do saber, em que o estudo da distribuição geográfica de variantes genéticas permite, por exemplo, reconstruir a expansão da humanidade pelo planeta. Cavalli-Sforza animou várias iniciativas de cooperação científica internacional, como o estudo do cromossoma Y e o Projecto de Diversidade do Genoma Humano – passar da leitura do genoma de uma única pessoa para a leitura de várias pessoas, para tentar compreender o que torna cada indivíduo “único e irrepetível”. Tem ADN de 1050 pessoas de 52 países de todo o mundo, guardado na Fundação Jean Dausset, em Paris – mas enfrentou a hostilidade de alguns povos indígenas, que acusaram os cientistas de biopirataria, sentindo que se apropriaram indevidamente do seu património genético. Foi uma desilusão do cientista italiano, mas este é um campo minado e cheio de mal-entendidos culturais, dos quais não foi alheio Cavalli-Sforza. O investigador que mostrou a proximidade genética entre as populações humanas, reduzindo a raça a um conceito cultural sem justificação biológica, recebeu muito correio de ódio de supremacistas brancos, revelava a revista da Universidade de Stanford, num artigo sobre o seu professor emérito em 1999.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos campo homem estudo espécie raça
Uma prenda de Natal assustadora: Jordan Peele revelou trailer do novo filme
“Somos todos os nossos piores inimigos”, diz o autor de Foge sobre Us, que quer fundar uma mitologia de horror mas não centrar-se na raça. (...)

Uma prenda de Natal assustadora: Jordan Peele revelou trailer do novo filme
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento -0.18
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Somos todos os nossos piores inimigos”, diz o autor de Foge sobre Us, que quer fundar uma mitologia de horror mas não centrar-se na raça.
TEXTO: No início deste ano, o comediante Jordan Peele tornava-se no primeiro autor negro a receber o Óscar de Melhor Argumento Original por Foge, a sua estreia também como realizador. O filme foi um fenómeno de análise, impacto crítico e bilheteira e criou, parece, um autor de género (o terror). Us, o seu novo projecto cheio de actores premiados, cujo trailer apareceu em pleno dia de Natal, prossegue essa narrativa. Lupita Nyong’o e Elisabeth Moss, uma vencedora de um Óscar e uma vencedora de um Emmy, são os dois rostos imediatamente reconhecíveis dos escassos minutos já disponíveis do filme que Peele deve estrear em Março de 2019 e que se encontra agora em fase de pós-produção. Us, que conta ainda com Winston Duke (Black Panther), Tim Heidecker, Yahya Abdul-Mateen II e Anna Diop nos principais papéis, acompanha uma família com dois filhos que vai passar uns dias na sua casa de praia, conviver com amigos e, claro, encontra uma surpresa assustadora. Tal como mostra o trailer, os quatro membros da família Wilson e os actores que os interpretam acabam a trabalhar duplamente – encontram os seus duplos aterrorizadores, aos quais também dão corpo, e ali nasce, como disse Jordan Peele, “uma nova mitologia de terror e um novo monstro”. As declarações do actor tornado autor, citadas pelo site IndieWire, foram proferidas num encontro com a imprensa e como sempre contam uma história mais profunda sobre os nossos temores sociais. “Os monstros e as histórias sobre monstros são a nossa melhor forma de chegar às verdades mais profundas e de enfrentar os nossos medos enquanto sociedade”, disse o autor de Foge, tido como importante perspectiva sobre a era pós-racial e as verdadeiras dificuldades raciais da actualidade, com temas como tolerância ou as elites à mistura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foge fez 223 milhões de euros de receitas brutas nas bilheteiras de todo o mundo, dos quais pelo menos 144. 500 euros foram arrecadados em Portugal, de acordo com números do Instituto do Cinema e do Audiovisual. Foi nomeado para quatro Óscares, entre os quais o de Melhor Filme, e proagonista de algumas das listas de melhores filmes de 2017. O sucessor de Foge não quer porém ser sobre a temática racial. “Para mim era muito importante ter uma família negra no centro de um filme de terror”, diz Peele, reflectindo acerca de uma das convenções informais do cinema de terror, o facto de a personagem negra ser sempre uma das primeiras vítimas potenciais. “Mas também é importante assinalar que, ao contrário de Foge, este filme não é sobre raça. É sobre uma coisa que penso ser uma verdade inegável: o simples facto de que somos os nossos piores inimigos”, disse num evento em que mostrou o filme, desta feita citado pela revista Hollywood Reporter. O trailer de Us foi revelado numa altura em que Foge está disponível em streaming no serviço Netflix, meses depois de ter tido a sua estreia televisiva nos canais premium na televisão e em video on demand.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave negro género corpo negra raça
Adepto morre em confrontos entre claques de Inter de Milão e Nápoles
O jogo entre milaneses e napolitanos ficou marcado pela violência e insultos racistas a futebolistas. (...)

Adepto morre em confrontos entre claques de Inter de Milão e Nápoles
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O jogo entre milaneses e napolitanos ficou marcado pela violência e insultos racistas a futebolistas.
TEXTO: Um adepto do Inter de Milão morreu esta quinta-feira depois de ter estado envolvido em confrontos com adeptos do Nápoles. O óbito foi confirmado pela polícia local. O homem de 35 anos foi atropelado por uma carrinha antes da partida entre as duas equipas, a contar para 18ª jornada da Serie A. Na causa dos desacatos esteve essa mesma viatura, que seguia pela Via Novara, em Milão, com adeptos do Nápoles, e foi bloqueada por apoiantes do Inter. Após os confrontos, Daniele Belardinelli – adepto do Varese, clube da segunda divisão que tem claque associada ao Inter – foi transportado para o hospital em estado muito grave e foi submetido a uma cirurgia no imediato. No entanto, não resistiu aos ferimentos, explica o jornal desportivo italiano Gazzetta dello Sport. As autoridades deram uma conferência de imprensa esta manhã para relatar todos os danos causados. O chefe da polícia de Milão, Marcello Cardona, anunciou que vai solicitar que os adeptos do Inter não entrem em nenhum estádio italiano "até ao final da temporada" e que seja encerrada "imediatamente" a bancada que ocupam no estádio Giuseppe Meazza "até 31 Março de 2019, isto é, por cinco jornadas e um encontro da Taça de Itália". Quatro adeptos do Nápoles foram esfaqueados, mas três deles, com ferimentos leves, ainda conseguiram assistir à partida na noite de quarta-feira. O outro foi reencaminhado para o hospital, mas está livre de perigo. Com três homens detidos, há mais detenções que podem acontecer, apesar de ser "difícil identificar todos os que participaram na emboscada", diz a polícia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O desentendimento entre os vários adeptos italianos estendeu-se para o estádio Giuseppe Meazza, onde a confusão continuou instalada durante o jogo. Kalidou Koulibaly, futebolista do Nápoles, foi alvo de cânticos racistas e o treinador Carlo Ancelotti – que perdeu em Milão por 1-0 – deixou fortes acusações ao árbitro da partida. O senegalês e o seu colega Lorenzo Insigne viram cartão vermelho neste jogo e o Nápoles acabou reduzido a nove jogadores. O golo da vitória caseira do Inter de Milão surgiu ao minuto 90+2', com assinatura do argentino Lautauro Martínez, que tinha entrado na partida para substituir o português João Mário. Com esta derrota, o Nápoles vê a Juventus consolidar a liderança, apesar do empate a dois golos, um deles de Cristiano Ronaldo, cedido na quarta-feira em casa da Atalanta. O conjunto de Turim está a nove pontos à frente do Nápoles, com 41 pontos na Serie A, e vê o Inter, terceiro classificado, reduzir para cinco o atraso para o rival.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
África: prognosticando o futuro?
Cabe aos africanos decidir as suas opções. E parece que este aspeto custa a ser aceite pelos “parceiros” económicos do continente. (...)

África: prognosticando o futuro?
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cabe aos africanos decidir as suas opções. E parece que este aspeto custa a ser aceite pelos “parceiros” económicos do continente.
TEXTO: Escrevo esta última coluna em Dakar, onde participo na XV assembleia do Codesria, Conselho para o Desenvolvimento das Ciências Sociais em África. Reunindo várias centenas de académicos africanos (e não só), este encontro, que se desenvolve num ambiente de grande riqueza intelectual, procura identificar alternativas à crise da globalização neoliberal no continente. Os diagnósticos sociais, económicos e políticos, sem anunciar um futuro risonho, apontam a forma complexa como o continente é percebido internacionalmente. Assinalam igualmente a integração num sistema de economia-mundo, quais as implicações das várias opções presentes, e quais os conhecimentos e reflexões epistémicas que ajudam a pensar a globalização desde África. As várias abordagens convergem num elemento: cabe aos africanos decidir as opções para o seu futuro, um futuro que passa pelas opções sobre que uso dar, e como, aos recursos disponíveis. Esta discussão, largamente ignorada pelos principais media europeus, acontece num momento em que as principais potências financiadoras da “ajuda ao desenvolvimento” disputam o controlo desta “ajuda”. Vista da perspetiva do G8, por exemplo, a entrada do continente no “mercado global” tem sido explicada como uma opção inapelável. Com efeito, o Plano de Ação do G8 para África, aprovado em 2002 na cimeira do Canadá, teve por objetivo apoiar o desenvolvimento integral do continente, estabelecendo parcerias guiadas em grande medida pelo Mecanismo Africano de Avaliação pelos Pares, MARP. Através do MARP procurou-se que as lideranças africanas responsabilizassem os seus pares pelo cumprimento de vários princípios de boa governação. Em contrapartida, os líderes do G8, de forma coletiva, comprometeram-se a aumentar o apoio a África através de várias modalidades, incluindo o alívio da dívida; o encorajar fluxos de capital privado; o apoio a infraestruturas e setores sociais, tais como acesso à educação, saúde e água; o apoio à paz e segurança, etc. Um elemento central desta relação entre os países africanos e o G8 era o princípio da responsabilidade e benefícios mútuos. Todavia, como Thabo Mbeki, antigo Presidente sul-africano, apontou em Dakar, esta relação desvaneceu-se, sem resultados concretos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Todavia, são vários os países africanos que vêm pressionando no sentido de uma posição mais forte, global, sobre a repatriação de capitais. Como vários estudos revelam, uma parte significativa da fuga de capitais do continente para países considerados mais desenvolvidos ocorre através do desvio de receitas de recursos naturais, da ajuda externa e de empréstimos. Estes estudos sugerem que a repatriação de capitais poderá desempenhar um papel importante no financiamento do desenvolvimento de África. Várias iniciativas têm sido lançadas procurando promover a cooperação dos países do G8 e da União Africana sobre esta questão. Em particular, advogam um maior envolvimento dos governos dos países do G8 na aplicação da transparência no sistema bancário, na identificação de depósitos de fundos desviados e na ratificação e implementação de acordos contra fraude, corrupção e lavagem de dinheiro. Ou seja, a partir de uma estratégia mais transparente sobre o paradeiro de capitais, o continente africano pode, a partir dos seus recursos, avançar no caminho do desenvolvimento de forma autónoma. Mas será que há interesse por parte dos países mais avançados? Nos últimos anos o tema da migração ilegal tornou-se dos principais tópicos da relação da Europa com o continente africano. Procurando uma resposta autónoma para esta realidade, o conselheiro especial da chanceler alemã, Gunther Nooke, avançou recentemente uma proposta com laivos coloniais. Para este conselheiro, uma das soluções do problema migratório poderá passar pela cedência, por parte de vários governos africanos, de territórios no continente, onde as potências europeias poderão estabelecer “cidades” autónomas, dotadas de bons serviços e empregos, à imagem do modelo europeu. Esta abordagem política espelha um sentimento latente atualmente entre os G8, para quem a má administração e a corrupção parecem ser sinónimos de África. Mas vejamos a crise dos migrantes. Várias multinacionais globais, dada a sua influência financeira e lobby político, têm procurado a todo o custo evitar pagar as suas dívidas de negócios aos governos africanos. Como revelou recentemente um painel de alto nível constituído pela Comissão Económica para a África, a análise da fuga ilícita de capitais do continente traz um prejuízo anual ao continente de cerca de 50 mil milhões de dólares. Por isso é tão importante a monitoria dos fluxos ilegais de capitais e a cooperação entre Estados soberanos. Numa altura em que a procura de recursos minerais está em crescendo no mundo, a partilha dos recursos africanos está, de novo, em cima da mesa, num contexto onde o regime de comércio global favorece as economias mais poderosas e acentua a exploração dos países em desenvolvimento. A permanência de um projeto colonial na “ajuda a África” está patente nas recentes declarações de John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional da atual Administração norte-americana. Para Bolton, a “ajuda’” deve traduzir-se no “assegurar que todos os dólares de assistência dos EUA enviados para África são usados de forma eficiente e eficaz para promover a paz, a estabilidade, a independência e a prosperidade”. Seja a cooperação com a China, a Índia, o Japão, a UE ou os EUA (principais parceiros), a questão central mantém-se: cabe aos africanos decidir as suas opções. E parece que este aspeto custa a ser aceite pelos “parceiros” económicos do continente.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA UE
Morreu Nelson Mandela (1918-2013): a liberdade como obra
O primeiro Presidente negro da África do Sul morreu nesta quinta-feira, anunciou Jacob Zuma, Presidente sul-africano. O líder da luta anti-apartheid tinha 95 anos. (...)

Morreu Nelson Mandela (1918-2013): a liberdade como obra
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: O primeiro Presidente negro da África do Sul morreu nesta quinta-feira, anunciou Jacob Zuma, Presidente sul-africano. O líder da luta anti-apartheid tinha 95 anos.
TEXTO: Nelson Mandela foi um homem de gestos. Como este: apenas aceitou sair da prisão quando recebeu garantias de que todos os outros prisioneiros políticos seriam libertados como ele. O advogado e activista acreditou na luta pela libertação de todo um povo. Depois de 27 anos preso, foi eleito o primeiro Presidente negro na África do Sul. O seu legado vai muito além do seu país e do tempo em que viveu. Morreu nesta quinta-feira, com 95 anos, na sua casa em Joanesburgo. Quando anunciou que deixava a política, Nelson Mandela fê-lo com a mesma naturalidade com que dizia: “Toda a gente morre. ” Escolheu deixar a presidência da África do Sul no fim do primeiro mandato dois anos depois de decidir abandonar a liderança do Congresso Nacional Africano (ANC), que transformou num farol da luta de libertação do seu país. Na sombra, manteve uma actividade pública, por vezes próxima da política. Estávamos em 1999. Cinco anos depois, com 86 anos, anunciou brincando que ia “reformar-se da reforma”. Era a sua maneira de dizer que desta vez era mesmo de verdade. “Não me telefonem, eu telefono-vos”, disse na altura num encontro com jornalistas. “Não lhe telefonámos”, escreveu o jornalista Ido Lekota em 2010 no jornal The Sowetan, “mas a sua figura ‘maior do que a vida’ continua a pairar sobre a nossa democracia e o panorama político [da África do Sul]. ”Hoje, três anos depois, Ido Lekota continuaria provavelmente a escrever o mesmo do líder da luta anti-apartheid, preso durante 27 anos por lutar contra o regime segregacionista da África do Sul, que foi prémio Nobel da Paz (com Frederik de Klerk) em 1993 e primeiro Presidente negro da África do Sul eleito um ano depois. “O estadista mais amado” do mundo, como se lhe referiu em tempos o New York Times, esteve internado este ano, com uma infecção pulmonar, como o foi várias vezes nos últimos dois anos. Deixa uma obra completa: um país que imaginou e criou a partir de um ideal. Advogado, líder da luta anti-apartheid, defensor do uso de armas em nome de uma luta igual com o opressor, Nelson Rolihlahla Mandela conseguiu ter do seu lado pacifistas como o arcebispo Desmond Tutu, que foi Nobel da Paz antes dele, em 1984, e que, quando Mandela esteve internado, rezou pelo “conforto e dignidade” daquele que considera ser “o ícone mundial da reconciliação”. Também foi o arcebispo Desmond Tutu quem disse, num dos últimos aniversários de Mandela, a 18 de Julho, que a melhor prenda que ele podia receber era que as pessoas fossem como ele, era saber que as pessoas seguiriam o seu exemplo. De pessoa revoltada a magnânimaTutu previu ser este um momento “traumático” para a África do Sul, o da perda de Mandela, figura que descreveu como “um ser humano fantástico”, numa entrevista em Junho de 2012 ao PÚBLICO, em Lisboa. “Quando vai para a prisão, é uma pessoa zangada, revoltada, que acredita na violência como meio de conquistar a liberdade. E, quando sai, emerge como uma pessoa extraordinariamente magnânima. O sofrimento por que passou ajudou-o a suavizar a sua posição. (…) Ele acreditava convictamente que se é líder pelas pessoas que são lideradas e não em benefício próprio. Fomos incrivelmente abençoados por termos Madiba [Mandela] aos comandos, num momento histórico para o nosso país. (…). ”Pelo menos até ao fim de 2010, o ex-Presidente sul-africano continuava, todos os meses, a receber quatro mil mensagens do mundo inteiro. Algumas com uma homenagem, outras a desejarem-lhe uma reforma tranquila e feliz, segundo a Fundação Nelson Mandela, em Dezembro de 2010, que, na declaração também recebida pelo PÚBLICO, juntou um pedido a todos para se coibirem de pedir autógrafos, declarações, entrevistas ou aparições públicas em apoio a algum evento, de forma a “ajudar a tornar a reforma de Madiba um período de paz e tranquilidade”. Seguiram-se meses e anos difíceis em que a sua saúde se deteriorou. E durante esta última permanência no hospital, à porta da sua casa em Joanesburgo e do hospital em Pretória, muitas flores foram deixadas com mensagens a desejar as melhoras ou a dizer: “Tata Madiba: Graças a ti, temos orgulho em ser sul-africanos. ” Ou com promessas: “Prometemos viver em paz e harmonia. ”Descendente do rei thembuO desejo de Mandela, expresso na autobiografia Longo Caminho para a Liberdade, era ser enterrado junto dos seus antepassados em Qunu, no Transkei, província do Cabo Oriental, onde nasceu em 1918, e foi educado para ser, como o pai falecido, conselheiro do rei thembu, Jongintaba Dalindyebo. Era descendente de Ngubengcuka, que tinha antes sido o rei dos thembu, incluídos no mais vasto grupo linguístico dos xhosa. Mandela descreve o rei, que foi seu pai adoptivo e do qual teria sido conselheiro, se não tivesse partido para Joanesburgo, como “um homem tolerante e esclarecido que tinha alcançado o objectivo [que caracteriza] todos os grandes líderes: manter o seu povo unido”. Este “grande líder” acolhera Mandela com nove anos, após a morte do pai que, anos antes, ficara desapossado de tudo por desafiar um representante da administração britânica. A mãe, sem condições para o criar, entregou-o ao rei. Mandela aprendeu a escutar os anciãos. Os vários nomes de Mandela Mandela é muitas vezes chamado, na África do Sul, por "Tata", que significa "pai", ou por "khulu" que é "grandioso" – ambos na língua xhosa. Mas Mandela é sobretudo referido, em sinal de respeito, por "Madiba" – nome de um chefe thembu que reinou no Transkei no século XVIII, o nome do clã de Mandela que é mais importante do que o apelido. Na clandestinidade, a partir de 1961, vestiu a pele de um David Motsamayi; disfarçou-se várias vezes de motorista, cozinheiro, jardineiro. Não foi conselheiro, nem rei, mas a sua educação de aristocrata, os estudos de advocacia, o carisma e dedicação à luta anti-apartheid fizeram dele o líder inquestionável do ANC e principal ícone da libertação da África do Sul. Não aceitou ser libertado da prisão, enquanto não fossem instituídos o fim do apartheid e o fim da proibição do ANC, o levantamento do estado de emergência e a libertação dos outros presos políticos. “Eu prezo muito a minha liberdade, mas prezo ainda mais a vossa”, escreveu num discurso lido pela filha Zindzi, num comício no Soweto, em 1985, dirigido aos africanos e membros do ANC. Recolhimento nacionalTambém por isso, a morte de Mandela é “uma perda tremenda para o país”, disse Ray Hartley, director do jornal sul-africano The Times numa entrevista ao PÚBLICO. “A África do Sul perderá aquele sentimento reconfortante de que existia este grande unificador”, disse, embora prevendo que "os processos políticos não serão afectados pelo seu desaparecimento. ”Também em entrevista, Thierry Vircoulon, investigador associado do Institut Français des Relations Internationales e co-autor de L’Afrique du Sud de Jacob Zuma (L’Harmattan), considerou que “a África do Sul vai entrar num momento de recolhimento nacional”. E realçou: “A nova África do Sul não vai desaparecer com ele, precisamente porque ele fez um excelente trabalho enquanto pai fundador dessa nova África do Sul. ”Os seus actos são frequentemente lembrados como exemplo para outros. As suas palavras ressoarão durante muito tempo como lições de vida. Frederik W. de Klerk, ex-líder do Partido Nacional, fala do líder que confrontou em duras negociações e com quem partilhou o Prémio Nobel da Paz 1993, numa entrevista a propósito do livro Conversations with Myself , também lançado em Portugal, em 2010, com o título Nelson Mandela – Arquivo Íntimo (Editora Objectiva), e que junta notas pessoais, cartas e diários de Mandela escritos antes e depois da saída da prisão: “Independentemente de qualquer crítica que possamos fazer, o homem que emerge de Conversations with Myself é uma eminente figura não só na história da África do Sul, mas na história do século XX. Ele foi Presidente para desempenhar um papel exemplar na unificação e reconciliação do povo profundamente dividido da África do Sul”, disse aquele que foi o último Presidente branco da África do Sul (1989-1994). Muitas vezes, admite na autobiografia Um Longo Caminho para a Liberdade, Mandela se questionou sobre o sofrimento que infligira à família durante a clandestinidade e nos anos na prisão de onde só saiu com 72 anos. Já em liberdade, numa entrevista à revista norte-americana Time em Fevereiro de 1990, disse acreditar no valor da dedicação quase exclusiva à luta: “Sim, valeu a pena. Ser preso por causa das nossas convicções e estar preparado para sofrer por aquilo em que se acredita vale a pena. É uma conquista para um homem cumprir o seu dever na terra independentemente das consequências. ”O difícil equilíbrio, nunca alcançado, entre a dedicação à família, por um lado, e à causa política da libertação, por outro, acompanhou-o durante a vida e é algo presente nas suas memórias do Arquivo Íntimo. Porém, aceitou-o da mesma forma que aceitou defender o recurso às armas como imprescindível para o sucesso da luta. Em defesa das armas“Nunca irei lamentar a decisão que tomei em 1961, mas gostaria que um dia a minha consciência estivesse tranquila”, disse referindo-se à decisão tomada nesse ano de passar à clandestinidade e formar o MK (Umkhonto we Sizwe – A lança da nação) de que foi primeiro comandante-chefe e que se tornou a ala militar do ANC. Viria a ser condenado a prisão perpétua em 1964 por sabotagem e conspiração. Passou 18 anos na prisão de alta segurança de Robben Island. Esteve depois na prisão de Pollsmoor, e já no final foi transferido para a cadeia de Victor Verster perto da Cidade do Cabo. Nos 23 anos que viveu depois de libertado, concluiu a missão, iniciada ainda na cadeia, de negociar o fim do apartheid com o Governo do Partido Nacionalista e foi eleito primeiro Presidente negro da África do Sul. Depois de terminado o mandato de cinco anos, retirou-se da política e passou a dedicar-se, através da fundação com o seu nome, a uma nova causa – o combate e a prevenção da sida – à qual se sentia especialmente ligado. Em 2005, a morte do filho Makgatho, vítima de sida, levou Mandela a uma rara intervenção pública desde que deixara a vida política em 1999. Lançou um apelo ao fim do tabu, para que se falasse desta como de qualquer outra doença, por considerar que só assim a sida deixaria de ser fatal. Já antes, quando estava preso, tinha perdido o filho mais velho Thembekile, num desastre de automóvel, em 1969, e uma filha pequena ainda bebé, Makawize, ambos do primeiro casamento com Evelyn Mase, de quem se divorciou em 1957. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Um ano depois conheceu e casou-se com Winnie Mandela, de quem teve duas filhas. Quando a viu pela primeira vez, “soube que a ia amar”, escreve na autobiografia. Durante os anos em que esteve preso, é a sua confidente e, durante muito tempo, quem melhor o compreende. A política, os métodos utilizados ou o rumo defendido para a luta acabam por separá-los. Mandela opta pelo divórcio em 1996. Dos seis filhos que teve, acompanharam-no até ao fim as três filhas: Zindzi, Zenani e Makawize. E Graça Machel, com quem se casou dois anos depois do divórcio com Winnie, a 18 de Julho de 1998, no dia do 80. º aniversário. Quando Mandela esteve esta última vez no hospital, Graça Machel agradeceu emocionada as muitas mensagens a desejar as melhoras do ex-Presidente vindas da África do Sul, do continente e do resto do mundo. Nessa mensagem pública e universal, Graça Machel dizia estar reconhecida a todos os que tinham, com isso, “feito uma diferença, na recuperação” de Mandela numa alusão às palavras do próprio: “O que conta na vida não é o facto de termos vivido. É a diferença que fizemos para a vida dos outros. ”
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano