Campanha contra imigração sem documentos gera acusações de racismo no Reino Unido
Política do Governo inclui cartazes com a frase "Vá para casa ou arrisca-se a ser detido", operações de identificação nos subúrbios de Londres e mensagens no Twitter com fotografias de suspeitos. (...)

Campanha contra imigração sem documentos gera acusações de racismo no Reino Unido
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 18 Africanos Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Política do Governo inclui cartazes com a frase "Vá para casa ou arrisca-se a ser detido", operações de identificação nos subúrbios de Londres e mensagens no Twitter com fotografias de suspeitos.
TEXTO: O Governo britânico está a ser acusado de "fomentar tensões raciais" devido a uma campanha para identificar imigrantes sem documentos, que tem como lema "Está ilegal no Reino Unido? Vá para casa ou arrisca-se a ser detido". Agentes dos serviços de imigração foram vistos a mandar parar "indivíduos de pele escura" em estações dos subúrbios de Londres e o Ministério do Interior começou a divulgar no Twitter fotografias de detenções de suspeitos. A edição online do jornal The Independent avança nesta sexta-feira que agentes do Ministério do Interior britânico realizaram nos últimos três dias "operações de identificação aleatórias" em quatro subúrbios de Londres – Walthamstow, Kensal Green, Stratford e Cricklewood. De acordo com testemunhos de pessoas que assistiram às operações, os agentes interrogaram "apenas indivíduos de pele escura". Um dos habitantes do subúrbio de Kensal Green, identificado como Phil O'Shea, disse ao jornal londrino Kilburn Times que os agentes reagiram com agressividade às questões levantadas por pessoas que não estavam a ser inspeccionadas: "Eles estavam a mandar parar e a interrogar todas as pessoas não-brancas, muitas das quais eram obviamente habitantes de Kensal Green que iam para o trabalho. Quando lhes perguntei o que se passava, ameaçaram deter-me por obstrução e disseram-me para seguir o meu caminho. "Questionado pelo The Independent, o Ministério do Interior negou que estas operações de identificação estejam ligadas à campanha realizada em seis bairros londrinos, também nesta semana, em que duas carrinhas foram postas a circular com um cartaz em que se podia ler a frase "Está ilegal no Reino Unido? Vá para casa ou arrisca-se a ser detido ". De acordo com o mesmo jornal, o ministério não conseguiu, no entanto, dar exemplos de operações de identificação semelhantes no passado. Oposição diz que liberdades fundamentais" estão em riscoO comportamento dos agentes foi criticado pelo deputado Barry Gardiner, do Partido Trabalhista, na oposição. O deputado escreveu à ministra Theresa May, acusando o Governo de estar a "pôr em causa as liberdades fundamentais" do Reino Unido. "Ainda não vivemos numa sociedade em que a polícia ou quaisquer outros agentes da autoridade têm o direito de deter pessoas sem uma justificação plausível, para lhes exigir a apresentação de papéis. Mas as acções do seu departamento parecem estar a levar-nos nessa direcção", escreveu o deputado. A consultora política e activista Christine Quigley, também do Partido Trabalhista, usou o Twitter para criticar as operações nos subúrbios de Londres: "Parece que os inspectores do UKBA [serviço de estrangeiros e fronteiras do Reino Unido] estão a mandar parar apenas pessoas de minorias étnicas em Walthamstow. Para vossa informação, UKBA – nem todos britânicos são brancos. "Em declarações ao The Independent, o representante dos trabalhistas no bairro de Brent, Muhammed Butt, considerou que as operações dos agentes e a campanha "Vá para casa ou arrisca-se a ser detido" estão ligadas. "Estas inspecções não são apenas intimidatórias, são também racistas e geradoras de divisão. Depois de falar com testemunhas, parece que apenas foram interrogadas pessoas negras e de aparência asiática. E os brancos australianos e neo-zelandeses que podem ter ultrapassado os limites da sua estadia?"Imagens de detenções no TwitterNas últimas horas, as acções do Governo britânico contra a imigração de pessoas sem documentos reflectiu-se também nas redes sociais, com o Ministério do Interior a publicar fotografias de suspeitos no momento em que são detidos. As mensagens são acompanhadas pela palavra-chave #immigrationoffenders (infractores da lei de imigração) e mostram imagens dos momentos das detenções, com a cara dos envolvidos – suspeitos e agentes – escondidas. As reacções no Twitter vão desde o apoio incondicional a comparações à Alemanha nazi. "Há algum branco?", questiona o utilizador Dave Sykes. Um outro utilizador, Dev Raval, pergunta se "esta é mais uma ideia que foram buscar aos nazis". No extremo oposto, um utilizador que se apresenta como apoiante do partido UKIP (anti-europeísta e anti-imigração) insta as autoridades a deportarem os suspeitos detidos, enquanto outro pede que o ministério vá actualizando os casos – "O que lhes vai acontecer agora? Por favor, actualizem a informação. Vão deixar que saiam em liberdade?"Na madrugada desta sexta-feira, foi criada uma conta no Twitter chamada "UK Go Home Office", que se dedica a ridicularizar as mensagens do Governo. Um dos tweets salienta a alegada natureza racista das operações nos subúrbios de Londres: "Olha à tua volta. Os infractores das leis de imigração vêm em várias formas, tamanhos e tons de castanho. "O director executivo da associação de defesa dos refugiados Refugee Action, Dave Garratt, considera que a política do Governo britânico pode "incitar tensões raciais". Num texto publicado no jornal The Independent, Garratt diz detectar sinais de uma "cruzada com vista à criação de um ambiente hostil", com "carrinhas nas ruas com frases ameaçadoras e, alegadamente, pessoas não-brancas a serem mandadas parar e revistadas". Citado nesta sexta-feira pela edição online do jornal The Guardian, um porta-voz do Ministério do Interior, citado sob anonimato, defendeu a estratégia do Governo: "Não pedimos qualquer desculpa por pôr em prática as nossas leis de imigração e os nossos agentes realizam centenas de operações como esta em Londres ao longo de todo o ano. "Em Maio, uma semana depois dos surpreendentes resultados do UKIP nas eleições locais, David Cameron anunciou que a alteração das leis de imigração seria uma prioridade do seu Governo. A proposta – lida pela rainha na abertura do ano parlamentar – prevê o limite do acesso dos imigrantes a benefícios sociais e aos serviços de saúde e poderá ser aprovada até ao Outono.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei imigração rainha racista ilegal
Dias de horror para os rohingya
Há 176 aldeias rohingya desertas e 400 mil pessoas em fuga da Birmânia para o Bangladesh. A ONU fala em “limpeza étnica”. Um grupo que fugiu da aldeia de Maung Nu testemunha a violência do Exército e conta como sobreviveu na floresta, comendo folhas de bananeira. (...)

Dias de horror para os rohingya
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 176 aldeias rohingya desertas e 400 mil pessoas em fuga da Birmânia para o Bangladesh. A ONU fala em “limpeza étnica”. Um grupo que fugiu da aldeia de Maung Nu testemunha a violência do Exército e conta como sobreviveu na floresta, comendo folhas de bananeira.
TEXTO: Os soldados chegaram à aldeia birmanesa de Maung Nu pouco depois das 8 da manhã e vinham preparados para a guerra. Dispararam primeiro para o ar mas depois apontaram para as pessoas que fugiam, disparando indiscriminadamente. Deixaram mortos e feridos sobre os arrozais. Era a vingança dos militares pelo ataque de militantes rohingya a postos de polícia, que ocorrera umas horas antes. O agricultor Mohammed Roshid ouviu os tiros e pôs-se em fuga com a mulher e os filhos, mas o seu pai, de 80 anos e dificuldades de locomoção, não teve a mesma sorte. Roshid diz ter visto um soldado a agarrá-lo e a cortar-lhe a garganta com tal ferocidade que quase o decapitou. “Queria voltar para trás e tentar salvá-lo, mas a minha família não me deixou porque eram muitos soldados”, conta Roshid, de 55 anos. “Não ter podido fazer nada pelo meu pai foi o momento mais triste da minha vida. ”A “operação de limpeza” do exército birmanês em Maung Nu, e em dezenas de outras aldeias povoadas pela minoria rohingya, levou à fuga de cerca de 400 mil pessoas para o Bangladesh e já foi classificada pelas Nações Unidas como uma “limpeza étnica”. Espera-se que nos próximos dias o número de refugiados aumente. Os que já estão no Bangladesh – exaustos, agarrados aos parcos pertences, alguns descalços e com lama pelos tornozelos – encheram completamente um campo e construíram abrigos improvisados. Há quem simplesmente se sente nas bermas das estradas e multidões acotovelam-se quando grandes camiões de assistência despejam sacos de arroz e garrafões de água. As organizações de direitos humanos dizem que vão ser precisos meses, ou até anos, para se conhecer verdadeiramente a devastação que obrigou tantas pessoas a fugirem da Birmânia – a minoria rohingya é considerada população imigrante oriunda da Índia e Bangladesh. Fotografias de satélite mostram vários incêndios, testemunhas relatam que os soldados mataram civis, e o próprio Governo admite que 176 aldeias rohingya estão agora desertas. Ainda não há uma contagem das vítimas porque o acesso à área continua vedado pelos militares. Quase uma dúzia de rohingyas que escaparam da aldeia de Maung Nu fizeram um relato das últimas horas que passaram nas suas casas e da longa jornada que se seguiu. Durante dois dias, foram entrevistados no campo de refugiados de Kutupalong, perto da fronteira do Bangladesh com a Birmânia, onde chegaram na semana passada. A Fortify Rights, uma organização de direitos humanos que se foca no Sudeste Asiático, estima que o número de mortes em Maung Nu e em três aldeias vizinhas ascende a 150. “Não sei dizer quantos foram”, lamenta Soe Win, professor do secundário. “Todos nós vimos o que os militares fizeram. Mataram-nos um por um. E o sangue começou a escorrer pelas ruas. ”A mais recente onda de violência começou a 25 de Agosto, quando um grupo emergente de militantes rohingya, o Exército de Salvação Rohingya de Arracão, atacou dezenas de postos avançados da polícia em todo o estado de Rakhine, matando 12 pessoas. A subsequente repressão militar levou centenas de milhares de refugiados a abandonar a Birmânia, país de maioria budista e até há pouco tempo governado por uma junta militar, onde os rohingya há muito enfrentam a negação da cidadania e de outros direitos. O Comité Internacional de Resgate, organização que ajuda populações em zonas de guerra, estima que um total de 500 mil pessoas acabarão por fugir para o Bangladesh, o que corresponde a metade da população rohingya da Birmânia, a maioria da qual vive no estado de Rakhine. Há muito que a zona é palco de tensões entre os budistas e os apátridas rohingya, que embora lá vivam há séculos, ainda são considerados pelo Governo como imigrantes ilegais. A crise tem provocado protestos generalizados e a condenação da Birmânia e da sua líder de facto, Aung San Suu Kyi, laureada com o Nobel da Paz – só esta semana Suu Kyi se pronunciou sobre a situação dos rohingya não usando em momento nenhum do seu discurso o termo “rohingya” mas “muçulmano”, disse estar “preocupada com o número de muçulmanos que fugiram para o Bangladesh”, que não teme “o escrutínio internacional” e escusou-se a criticar as operações militares em Rakhine. O alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad al-Hussein, chamou ao sucedido “um exemplo flagrante de limpeza étnica”. Em Maung Nu, minúscula aldeia de 750 casas nas margens do rio Mayu, os rohingya viviam há muito tempo em relativa paz e tomavam chá com os seus vizinhos budistas, afirmam os entrevistados. Mas essa coexistência pacífica acabou após os ataques dos insurgentes rohingya. A repressão militar tem sido incessante deste então e ainda na semana passada o fumo negro no horizonte era visível desde o Sul do Bangladesh. Mohammed Showife, um mecânico de automóveis de 23 anos, relata que no primeiro dia do assalto ele e a família tinham acabado as orações matinais e estavam a preparar o arroz quando três soldados apareceram no quintal, anunciando sua chegada com uma salva de metralhadora, e lhes disseram que tinham de abandonar as suas casas imediatamente. “Bengalis, saiam de casa. Podem ir para onde quiserem, mas não podem viver aqui”, disseram os militares, segundo Showife. Na fuga, separou-se dos familiares e parou para ajudar o vizinho Mohammed Rafique, de apenas 17 anos, que vira uma bala atravessar-lhe completamente a anca. Correram por entre uma multidão que saqueava casas e soldados; estes levavam lança-morteiros ao ombro e incendiavam outras habitações. Procuraram abrigo na selva, usando a folhagem luxuriante e densa após as monções como esconderijo. Aí chegados, algumas mulheres soluçavam silenciosamente, enquanto outros olhavam em redor, sem saber o que fazer. Tentaram tratar a ferida de Rafique com água fervida e trapos rasgados das roupas. A primeira noite chegou, trazendo consigo uma inquietante escuridão, esbatida apenas pelos pontos de fogo e sombras que cintilavam no céu. Não sabiam nesse momento que outras cinco noites assim se seguiriam. No segundo dia, o empresário Mohammed Zubair, que se escondera em casa, recebeu uma chamada de um sargento alto e magro que todos conheciam e a quem chamavam “Bajo” e com quem havia jantado muitas vezes. “Bajo” disse-lhe que os militares iriam requisitar um dos seus barcos de passageiros e, dadas as circunstâncias, Zubair, de 40 anos, não achou que tivesse outra opção que não fosse obedecer. Mandou o capitão do barco entregá-lo no pequeno cais da base militar, onde os oficiais receberam as chaves com um aviso para o capitão: “Também vais ser morto. ” O condutor do barco acabou por conseguir escapar ileso, juntando-se ao resto da população em fuga. Zubair conta que seguiu os militares para saber o que iriam fazer com o seu barco e que ficou em choque quando os viu começar a empilhar corpos na embarcação, um após outro, como se fossem troncos de madeira. Nesses corpos incluíam-se os de dois rapazes de 13 anos que conhecia bem. “Aquela visão fez-me desmaiar”, diz Zubair. Acredita que os corpos tenham sido lançados ao rio. No terceiro dia, a mãe de Rafique, Khalida Begum, de 35 anos, desesperada por notícias do filho, cansou-se de saltar de casa em casa com os seus outros quatro filhos. Educara-os sozinha depois da morte do marido há vários anos, trabalhando como costureira para os sustentar. Conseguiram chegar à selva, onde viu Rafique estendido e imóvel junto a uma árvore. Correu para ele, enchendo alegremente a sua cara de beijos, enquanto ele despertava da sua confusão febril. Estava tão desorientado que a princípio nem reconheceu a mãe, mas pouco depois estavam abraçados a chorar. Ao sexto dia, os habitantes de Maung Nu decidiram em conjunto começar a andar para norte, em direcção à fronteira com o Bangladesh, temendo que o perigo se intensificasse. Caminharam durante oito dias em condições muito adversas, alimentando-se de folhas de bananeira e bebendo água de riachos. No meio do choro das crianças, Showife carregou Rafique às costas, enquanto o adolescente alternava entre períodos de consciência e perda dela. As pernas dos viajantes começaram a inchar. Chegaram finalmente a um cruzamento, no topo de uma colina, onde um simples pilar anunciava que tinham cruzado a fronteira do Bangladesh. Eram 16h30 e chovia. À sua frente, uma nova cidade de refugiados, milhares de tendas temporárias, postes de bambu cobertos por lonas de plástico preto. Ao descerem a colina tentando não escorregar na lama, sabiam que os esperavam tempos difíceis. Durante os dias seguintes, fechar os olhos equivaleria a ver os corpos inertes dos vizinhos e a ouvir o estrondo dos tiros junto ao ouvido. Mas naquele pilar surgiu um pouco de alegria. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Senti-me tão contente”, conta Khalida Begum. “Estava maluca, estava extasiada. Pensei que finalmente estávamos em segurança. ”Ao lembrar esse momento dias depois, os olhos de Khalida enchem-se de lágrimas. Era a primeira vez que se permitia acreditar no que os que tinham retirado Rafique da aldeia lhe diziam: que o seu filho iria sobreviver. Exclusivo PÚBLICO /The Washington Post. Tradução de António DomingosEste artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Façam como a Austrália, diz Abbott, não deixem entrar ninguém
Política de Camberra é criticada pelas organizações de defesa dos direitos humanos e pela ONU. (...)

Façam como a Austrália, diz Abbott, não deixem entrar ninguém
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Política de Camberra é criticada pelas organizações de defesa dos direitos humanos e pela ONU.
TEXTO: O primeiro-ministro australiano Tony Abbott aconselhou a União Europeia a seguir o exemplo do seu país e repelir todos os migrantes chegados por mar, de modo a impedir os naufrágios mortais no Mediterrâneo. “Centenas, talvez milhares de pessoas, afogaram-se a tentar chegar à Europa desde África. O único meio de impedir estas tragédias é pôr fim à chegada dos barcos”, disse Abbott aos jornalistas. “É urgente que os europeus adoptem uma política muito firme que possa pôr fim ao tráfico de seres humanos no Mediterrâneo”, insistiu o primeiro-ministro australiano. Pouco depois de chegar ao poder, em Setembro de 2013, o Governo conservador de Tony Abbott lançou, com a ajuda do exército, a operação Fronteiras Soberanas para desencorajar os refugiados de chegarem à Austrália por via marítima. Antes de Abbott – e quando o país era governado por um executivo trabalhista –, as chegadas de migrantes eram quase diárias e pelo menos 1200 pessoas morreram no mar. Diz o actual Governo que, com a esta política, nenhum imigrante morreu no mar nos últimos 18 meses. A estratégia da operação Fronteiras Soberanas joga-se em duas frentes: imigrantes ilegais e requerentes de asilo. No caso dos ilegais, os barcos da marinha interceptam os barcos clandestinos e reencaminham-nos para o ponto de trânsito de onde eles partiram, que é quase sempre na Indonésia. No caso dos requerentes de asilo que chegam por barco à Austrália, estes são colocados em centros de retenção na ilha de Manus, na Papua-Nova Guiné, ou na ilha de Nauru, no oceano Pacífico. Aí ficam a aguardar a conclusão dos procedimentos administrativos de avaliação do seu pedido. Quando um pedido de asilo é considerado legítimo, o Governo de Camberra não autoriza o exilado a instalar-se na Austrália. As opções que lhe são oferecidas são três: voltar para o país de origem, ficar a viver num dos campos de retenção nas ilhas ou aceitar viver no Camboja, um dos países mais pobres do Sudeste asiático, com quem a Austrália assinou um acordo para este efeito. Os defensores dos direitos humanos denunciam esta política, considerando que a Austrália pura e simplesmente descarregou noutros países as suas responsabilidades. As Nações Unidas também acusam Camberra de fugir às suas obrigações enquanto país signatário da Convenção sobre os Refugiados de 1951, que estipula que os migrantes têm o direito de pedir asilo.
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Étnia Asiático
O Parlamento Europeu tem "cada vez mais antieuropeus na bancada"
“Há uma falta de pedagogia dos governos face às vantagens da Europa”, diz o diplomata que se confessa também “muito céptico” sobre a aplicação do Tratado de Lisboa aos casos da Polónia e Hungria: as penalizações contra a violação dos valores europeus foram pensadas para outros tempos e “são dificilmente adaptáveis”. (...)

O Parlamento Europeu tem "cada vez mais antieuropeus na bancada"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.333
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Há uma falta de pedagogia dos governos face às vantagens da Europa”, diz o diplomata que se confessa também “muito céptico” sobre a aplicação do Tratado de Lisboa aos casos da Polónia e Hungria: as penalizações contra a violação dos valores europeus foram pensadas para outros tempos e “são dificilmente adaptáveis”.
TEXTO: Francisco Seixas da Costa, o diplomata que fez boa parte da carreira em organizações internacionais multilaterais, foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus entre 1995 e 2001. Nesse período, representou Portugal nas negociações dos tratados de Amesterdão e Nice. Foi já como observador que assistiu ao desfecho do Tratado de Lisboa, com o qual, diz, "a Europa iludiu-se a si própria". Esteve nas negociações do Tratado de Nice que subiu o número de eurodeputados após o alargamento a 27 e reforçou os seus poderes. Quais as dificuldades dessa negociação?Os alargamentos da União Europeia (UE) levaram quase sempre à mudança dos tratados, a mais neutral foi a suscitada pela entrada de Portugal e Espanha. O alargamento aos países do Leste, um imperativo de natureza política e estratégica, levou a uma reflexão na União para alterar os tratados e adaptá-los às novas exigências. Os que se habituaram numa UE a 12 ou a 15 a ter o poder de decisão essencial não quiseram que numa União largada essa capacidade fosse fortemente afectada. Muitas das alterações dos tratados de Nice e de Lisboa - antes houve a tentativa de Tratado Constitucional - têm a ver com as relações de poder e a necessidade de alguns países justificarem às suas opiniões públicas que o facto de serem contribuintes líquidos e de terem um peso demográfico grande determinava mais poder no processo decisório. Por isso, há países que pela introdução do novo mecanismo de decisão do Tratado de Lisboa procuraram garantir que em cada decisão de Bruxelas havia um número mínimo de países representados, 55%, e que as decisões correspondiam, no mínimo, a 62% da população. A negociação foi difícil?Foi difícil porque pela primeira vez traz uma realidade nova na União, que é a distinção. No passado, a França e a Alemanha tiveram a mesma posição em número de votos, de eurodeputados e de comissários. Em Nice, tudo muda. A Alemanha passa a ter mais eurodeputados que a França, o factor demográfico passar a ter mais importância e reforça o país mais populoso, a Alemanha, o que foi difícil para os franceses. O Tratado Constitucional era uma compensação para Paris?Era a vitória de uma certa Europa política, era um avanço para a unidade política, que não era federalista no sentido tradicional, mas traduzia um salto qualitativo de natureza quase semântica no processo europeu. O Tratado Constitucional não era muito diferente do que acabou por ser o Tratado de Lisboa, mas o facto de aparecer como Constitucional foi lido em muitos países como um salto em frente que criava uma subordinação demasiado grande das entidades nacionais face às europeias. Um passo maior que a perna?Claramente. A prova foi que a primeira rejeição é na Holanda, seguida da França e o processo parou. Ironicamente podemos dizer que, se a primeira rejeição tivesse sido em Portugal, seguida da Irlanda, as coisas teriam sido diferentes. O interessante é que a Europa consegue este milagre, o de se iludir a si própria, isto é renegociar um tratado, o Tratado de Lisboa, que no fundo não é muito diferente do anterior, o Constitucional. Em primeiro lugar, a criação de um presidente do Conselho Europeu que evita que seja o primeiro-ministro do país com a presidência [de turno] a garantir em termos funcionais por seis meses essa mesma presidência. Criou-se um Alto Representante para a Política Externa e de Segurança que passou a vice-presidente da Comissão Europeia. Ao sê-lo, há pela primeira vez na história da UE, uma ligação entre duas instituições que em princípio são separadas. O facto de o Alto Representante ser do Conselho de Ministros e ao mesmo tempo vice-presidente da Comissão permite maior coerência entre as funções das duas entidades. Em Lisboa, houve também o reforço dos poderes do Parlamento Europeu. Pode-se ir mais longe?Aumentaram os poderes de co-decisão, os poderes do Conselho com o Parlamento. Houve necessidade de equilibrar o que sempre se chamou défice democrático. Convém lembrar que, quando começou, o Parlamento Europeu era constituído por parlamentares que vinham dos parlamentos nacionais e só depois passam a ser eleitos. À medida que ganha poderes, o Parlamento Europeu deixa de ser apenas um órgão declaratório, passa a decisório, e cada vez mais os Estados têm cuidado com quem enviam para o Parlamento Europeu. Hoje, o Parlamento Europeu ganhou poderes muito importantes no Orçamento e passou a ter um papel mais decisivo nas áreas legislativas em que o Conselho decidia por maioria qualificada. O aumento dos processos de co-decisão, a relação entre o Parlamento e o Conselho foi alargada a mais áreas, o que significa que no Parlamento Europeu os deputados passam a ter um acesso e poder em sectores e áreas temáticas mais importantes. Os lobbies europeus - lobbies no sentido positivo - passaram a ter um papel junto dos deputados, o que dá mais protagonismo e força ao Parlamento e maior legitimidade às decisões da União. E retira ao Conselho o ónus da decisão, que é partilhada. O que levanta outro problema que o Tratado de Lisboa procurou resolver, o papel dos parlamentos nacionais. No Tratado de Lisboa, estes recebem alguma recuperação de poderes segundo o princípio da subsidiariedade e a capacidade de rever algumas decisões europeias. Não sei se utilizaram estas capacidades, provavelmente foi algo cosmético. Porquê cosmético?Sempre foi tensa a relação dos parlamentos nacionais com o Parlamento Europeu, na ideia de quanto mais reforçarmos este menos poderes têm os nacionais. Há parlamentos que sentem o desapossar dos poderes pela Europa de forma dramática, o caso mais evidente é o britânico. É aqui que está o motivo de a opinião pública olhar de soslaio para o Parlamento Europeu, apesar de consagrada a petição pública para propostas legislativas?Julgo que o princípio da petição de um milhão de cidadãos fazer uma proposta à Comissão nunca foi utilizado. Nesta decisão do Tratado de Lisboa há um aspecto do politicamente correcto. Não há uma opinião pública europeia, mas 28, as nacionais mobilizadas por uma agenda de interesses e preocupações diversas. Com o alargamento dos últimos anos, como vimos nas crises norte-sul em matéria económico-financeira, e leste-oeste com os refugiados, esta diversidade que é rica é também uma fraqueza para a identidade da UE. Um alemão sabe que o seu governo é sempre relevante no aspecto europeu, pelo que há uma hierarquia subliminar que dita uma diversa mobilização para as eleições europeias. O cidadão português sente que a sua voz, com 20 deputados – os alemães têm 90 -, é menos importante, o que o leva à abstenção. Qual é a forma de resolver a situação?A realidade será sempre esta, mas há uma falta de pedagogia dos governos face às vantagens da Europa. Os governos quase sempre procuram que a UE seja o bode expiatório do que corre mal e que as suas decisões sejam a glória nacional. A Europa passa da Europa das soluções a ser a dos problemas, o que é muito complicado de reverter. Mesmo em Portugal, com postura favorável à vida europeia, há uma degradação objectiva, por um conjunto variado de factores. Um deles é que as novas gerações não têm ideia do que era Portugal antes de estarmos na União. Sendo o Parlamento a bancada de excelência do multilateralismo, que efeitos têm as actuais críticas à multilateralidade?A grande perversão que afecta o Parlamento Europeu, e uma ironia democrática, é de ter cada vez mais antieuropeus na bancada. A democracia tem esta fragilidade, a de abrir caminho aos seus inimigos, mas não podemos pôr só no parlamento quem pensa e está a favor da Europa. Nos últimos anos, devido a uma certa má vontade suscitada por políticas europeias, aumentou o número de deputados eurocépticos e eurocríticos. "Europrudentes" como diriam alguns em Portugal. Somado a isto, há o facto de alguns governos nacionais terem uma atitude extremamente reticente face ao projecto europeu, que vão ter direito, após as eleições europeias e a substituição da Comissão, a nomear um comissário que pode ir com ideias antieuropeias. Estas ideias, somadas às de outros comissários da mesma linha, ainda que minoritários mas com eco nos deputados eurocépticos, leva a uma espécie de quinta coluna que vai introduzir clivagens hoje inexistentes. Por isso, estas eleições europeias são das mais importantes porque estamos pela primeira vez com uma União muito diversificada, com sensibilidades diferenciadas, algumas das quais quase no limite da coerência dos princípios que esses países subscreveram quando entraram. Arriscamo-nos que essa diversidade possa bloquear o funcionamento da União. Depois do "Brexit" é cordial a revisão prevista do número de eurodeputados por país? Haverá um rateio, cuja lógica foi feita em Nice. A discussão agora estará a ser feita de forma mais racional, mas seguramente quem vai ganhar com a repartição vão ser os maiores países que, também é verdade, numa lógica relativa estão desprotegidos. Isto é, o seu número de deputados não corresponde necessária e automaticamente à sua população. Não sei se mais um ou menos um deputado é relevante ao nível das decisões, mas é simbólico e na UE, onde estamos a transferir para uma gestão comum um conjunto de valores de soberania, o simbolismo é importante para além do valor objectivo do processo decisório. E os Estados mais pequenos e pobres, que estão ligeiramente distanciados do padrão médio de interesses do projecto legislativo em Bruxelas, necessitam de mostrar às suas opiniões públicas que não estão desmunidos de influência sobre o projecto europeu. Os eurodeputados aprovaram duas propostas para a aplicação do artigo 7. º do Tratado de Lisboa à Hungria e Polónia por quebra dos valores europeus. Que efeitos práticos terá isso?E, senão tiver, o que acontece?É uma boa questão que só o futuro vai responder. Vejo com cepticismo a possibilidade de esses mecanismos irem até ao fim. Sabemos que a comunidade é uma comunidade de interesses, por vezes para além dos princípios, e que o isolamento de um país pode configurar a afectação de interesses, por exemplo, de natureza económica. Tenho a sensação de que a UE, por vezes, dá mais relevo e importância ao bom relacionamento e que será capaz de flexibilizar políticas para garantir esse bom entendimento. Estou muito céptico sobre a aplicação do artigo 7. º do Tratado de Lisboa. Foi em Nice que, durante a presidência portuguesa e com o caso austríaco em fundo, que introduzimos esta norma para contrariar a deriva de algum Estado-membro. Pensávamos que eventualmente um Estado pudesse sair dos carris, só que hoje há vários a saírem dos carris e os mecanismos previstos no Tratado de Lisboa são dificilmente adaptáveis. Há países que, mesmo que não tenham saído dos carris, estão pouco disponíveis a associarem-se a uma medida punitiva que, mais tarde, pela sua própria evolução interna que não podem prever, lhes possa a vir a ser aplicada. A criação de um precedente pode-lhes ser negativa. Se a comunidade de interesses está acima dos princípios, o que resta da União?A União fez uma opção estratégica que teve o seu preço. Quando foi criada funcionava apenas na base de algumas questões económicas e a sua homogeneidade política e ideológica era muito grande. A entrada de Portugal, Espanha e Grécia foi neutral face a estes equilíbrios. E foram muito compensados com fundos comunitários que melhoraram a paisagem, os bolsos e tiveram impacto na mudança das mentalidades, porque na altura a União era um clube de países ricos. O alargamento à Áustria, Suécia e Finlândia, reforçou o pilar neutralista no sentido de segurança e defesa. Depois entraram os países do Leste, mais interessados em serem membros da NATO do que da UE, têm mais gratidão aos Estados Unidos do que a Bruxelas, e trouxeram para a União todas as suas idiossincrasias, os seus problemas internos e as suas minorias. A UE quando fez este alargamento não teve a noção da "Babilónia" que aí vinha. Na altura tínhamos a noção de que a ânsia dos países do centro e leste europeu se tornarem membros da União era tal que, para eles, era uma espécie de colonização política do leste. Também trouxeram outra questão difícil de resolver. Ao longo de décadas esses países tinham visto as suas soberanias tuteladas por Moscovo, pelo que tornou-se muito difícil pô-las em partilha na União Europeia, quando as tinham acabado de recuperar. Por isso, há um esforço de repatriação da soberania, que se vê claramente na Polónia. O mundo actual, entre a financeirização da economia e o capitalismo autoritário asiático, retira espaço ao discurso dos valores europeus?Hoje fala-se de 80% de economia e 20% do resto, a União vive marcada por um discurso económico-financeiro limite. Mais do que isso, dividida por esse discurso, como se viu durante a crise de 2007. Quando se fala de valores dá-me a ideia que se lhes dedica uns minutos escassos. Habituámo-nos na UE, com diferenciações nacionais em função das constituições, a um certo modelo liberal e democrático assente em princípios que os Estados-membros se comprometiam a subscrever nos critérios de Copenhaga que estão na Carta dos Direitos Fundamentais e plasmados nos tratados. Hoje verificamos que certos governos europeus estão polarizados e seduzidos por modelos de natureza autoritária, de suposta eficácia na governação, que os transforma em democraturas, democracias que têm qualquer coisa de ditaduras. Pensávamos que isto só ocorria em países como a Turquia, Singapura ou as Filipinas, nunca na UE, mas não deixa de a afectar e a alguns governos europeus que se sentem com as mãos suficientemente livres para tentarem algumas aventuras. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Até onde pode resistir a Europa?O teste são as eleições europeias. Estamos sem liderança europeia, o governo alemão que era fundamental para a direcção europeia está em crescentes fragilidades internas. O francês está em situação difícil e vivemos um tempo dramático em Itália, que durante anos foi elemento garantido no processo europeu e que tem derivas que não só põem em causa os equilíbrios económico e financeiros europeus como os princípios básicos que pensávamos adquiridos em matéria de respeitos de direitos humanos e de minorias. Estamos em tempos muito complexos, é preciso ser muito optimista para ser optimista. A frase sobre os modelos de democraturas foi corrigida às 12h30.
REFERÊNCIAS:
Entidades NATO UE
Ana Gomes e Timor-Leste: “Fiz muitas coisas que não estavam no cardápio diplomático”
O fim da ditadura de Suharto e o processo democrático da Indonésia abriram a janela de oportunidade para mudar os dados da relação entre Lisboa e Jacarta. Não foi um caminho plano, houve escolhos, sobressaltos e não poucas incertezas. (...)

Ana Gomes e Timor-Leste: “Fiz muitas coisas que não estavam no cardápio diplomático”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-11-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O fim da ditadura de Suharto e o processo democrático da Indonésia abriram a janela de oportunidade para mudar os dados da relação entre Lisboa e Jacarta. Não foi um caminho plano, houve escolhos, sobressaltos e não poucas incertezas.
TEXTO: Há pouco mais de 16 anos, a 20 de Maio de 2002, Timor-Leste tornou-se o primeiro Estado soberano do século XXI. A independência do território mobilizou a sociedade portuguesa num movimento sem precedentes, dinamizou a diplomacia e passou a ser a causa nacional bem-sucedida. Ana Gomes foi o rosto para a opinião pública de um combate ao estilo de David contra Golias, entre a Indonésia e Portugal, com o futuro de Timor em cima da mesa. “Fiz coisas que não estavam no cardápio diplomático”, admite a antiga diplomata. “Fiz muitas coisas à margem da diplomacia como cidadã empenhada em Timor, como militante, fui mais do que uma diplomata típica, mas nada fiz à revelia do Ministério dos Negócios Estrangeiros, sempre dei conta”. Esta é a auto análise de uma combinação virtuosa e a confissão de um sucesso de quem, nos meios diplomáticos de Jacarta, à frente da Secção de Interesses Portugueses que funcionava na Embaixada da Holanda, era conhecida por “Madame East-Timor”. A questão de Timor sempre esteve na sua agenda. “Mesmo sem instruções”, confessa. “Em Tóquio, falei com grupos de defesa dos Direitos Humanos e através deles descobri que companhias petrolíferas nipónicas estavam prestes a investir na exploração de petróleo no mar de Timor”, refere a propósito da sua colocação, entre 1989 e 91, como conselheira na embaixada de Portugal na capital japonesa. “Fui ter com essas companhias e disse-lhes que a questão de Timor não estava resolvida, e eles não investiram”, remata. Em Díli, a estratégia por si desenhada fazia uma contenção de danos. “Quando os funcionários públicos timorenses eram pressionados pelos indonésios para assinarem papéis de apoio à Indonésia, a aceitarem arroz e a pôr bandeirinhas, eu aconselhava-os a dizerem que sim e, depois, no dia das eleições a votarem de acordo com a sua consciência”, exemplifica. O engenho foi levado ao extremo, de forma menos ortodoxa nos cânones das limitações diplomáticas. “Comprei passaportes indonésios, passaportes verdadeiros e quando os timorenses queriam sair de território indonésio a solução era recorrer a estes passaportes, nos quais o local de nascimento era a ilha das Flores”, descreve. “A procura foi tanta que inflacionámos os preços dos passaportes, passaram de 800 mil rupias para três milhões, e a população da ilha das Flores aumentou exponencialmente”, diz com um sorrido de malícia. Em Portugal, este seu empenho viria a ser consagrado, embora não se tenha livrado de epítetos pouco elogiosos: “a maluquinha de Timor” ou “a freak de Timor”. É sabido que, não raras vezes, a Pátria é madrasta no reconhecimento e a maior pequenez é a de entre muros. Mas, atenta, a Associação de Imprensa Estrangeira em Portugal atribuiu-lhe o prémio personalidade do ano de 1999. Quando em 7 de Dezembro de 1975 a Indonésia ocupou Timor-Leste, o general Hadji Mohamed Suharto celebrava o oitavo aniversário da sua chegada ao poder. Portugal tinha fechado o ciclo do Império e recuperava das vicissitudes internas do Processo Revolucionário em Curso (PREC). Estas duas realidades eram assimétricas: o regime indonésio estava numa fase de consolidação, apogeu e expansão territorial com a invasão de Timor e a antiga potência colonizadora fragilizada. Lisboa queria “arrumar a casa” depois da descolonização e os esforços diplomáticos tentavam sossegar os parceiros internacionais com a normalização democrática. Não era, pois, tempo de abrir novas frentes. “Os que trabalhávamos na questão de Timor sabíamos que o problema ia resolver-se pela evolução do processo interno político indonésio”, conta Ana Gomes. “Apoiámos uma rede democrática na Indonésia, sabíamos que seriam estas forças que queriam libertar o país do grande problema que era Timor-Leste”, lembra. Portanto, houve mais do que voluntarismo, do que coração. “A partir de 1989, tentei vender, primeiro a Durão Barroso, então ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE), e depois a Jaime Gama a ideia que devíamos estar atentos ao que se passava na Indonésia, pelo que tínhamos de ter lá uma delegação ou qualquer coisa para acompanhar o processo político interno, porque ia haver uma janela de oportunidade”, relata. Assim, a questão de Timor começa a sair do estado de banho-maria. Esta janela de oportunidade surgirá anos depois. A crise financeira asiática de 1997 precipitou a queda do regime do ditador Suharto, cujo capital se baseara na brutal repressão e no crescimento económico. Em 1997, a crise desmorona o regime. Suharto cai. Mais tarde, a 5 de Maio de 1999, em Nova Iorque, os ministros Gama e Ali Alatas acordam a instalação de uma delegação de interesses portuguesa em Jacarta e uma indonésia em Lisboa. “É naquele dia que Gama diz que me vai pôr em Jacarta, que tenho de ser a cara para a opinião pública”, revela. Era, finalmente, a janela de oportunidade com uma grande dose de responsabilidade. Antes do 25 de Abril de 1974, a jovem estudante Ana Gomes chegou à militância política contra a ditadura através do MAEESL, acrónimo do Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa. Que se tornou um autêntico viveiro do despertar da consciência dos últimos anos do marcelismo e se viria a revelar a incubadora de muitas vocações políticas que seguiram o seu caminho após a Revolução dos Cravos. Na miríade de organizações e tendências ali representadas, dos comunistas ao “Grupo de Estudantes” trotskistas, passando pelas diversas declinações maoistas, estava o MRPP, então Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado. “Entrei em princípios de 1973 nos Comités de Luta Anti-Colonial (CLAC), o meu primeiro controleiro foi Manuel Pita e o segundo Maria José Morgado”, aponta. Os CLAC eram inspirados pelo MRPP, e nos liceus, primeiro, e depois nas faculdades, fervilhava o debate político. A oposição à guerra colonial estava no centro, como poucos anos mais tarde a eclosão do Movimento das Forças Armadas veio a comprovar. “Nos tempos da luta anticolonial ganhei a consciência do problema de Timor, lembro-me que tinha um disco de capa vermelha e amarela editado pelo MRPP com canções da Fretilin”, resume. Esta vivência tornou Ana Gomes uma diplomata atípica na questão de Timor. Depois da experiência revolucionária portuguesa, desembarca em Jacarta quando a capital do Estado-arquipélago está em efervescência política pela descompressão após a queda da ditadura. “Três dias antes de chegar a Jacarta, a 27 de Janeiro de 1999, há a declaração da Indonésia sobre a independência”, lembra. O sucessor de Suharto, o Presidente Jusuf Habibie, anuncia que o Conselho de Ministros decidira que Timor ia receber uma “autonomia regional de grau mais”. Disse, ainda, “que se a maioria dos timorenses não a quiser”, o Governo proporia ao Parlamento que Timor seria libertado da Indonésia. “No dia desta declaração reuni com Alatas na ONU e vi-o sem saber o que dizer, mas depois confirma a consulta aos timorenses”, recorda. “O Presidente Habibie não tinha o compromisso de Suharto com Timor, achava que os timorenses eram uns ingratos e, por isso, admite o referendo sobre a independência quando se estava a trabalhar para um estatuto de autonomia a 15 ou 20 anos e, só depois, se via a independência”, explica. “Foi esta a janela de oportunidade”, resume. Quando desembarca em Jacarta, tem muitas incertezas. Viria a confirmar, pouco depois, que os militares eram a parte dura, sabe que a posição do Governo de Habibie pode ser contrariada pelos generais e, sobretudo, que há que aproveitar o momento. “Os indonésios já estavam no seu PREC”, sintetiza. A 5 de Fevereiro, menos de uma semana depois da sua chegada, Ana Gomes avista-se com Xanana Gusmão na prisão de Cipinang: “A primeira conversa foi muito boa, falámos como se já nos conhecêssemos, num registo de confiança que se intensificou, hoje trato-o por “Boss”, o seu petit nom”. Abre-se, assim, um período que classifica como muito importante, de ligação directa com Xanana preso e com os timorenses do exterior, mais radicalizados. “Todos os dias, às cinco da manhã, Xanana telefonava-me da prisão, ele tinha um telefone escondido e provavelmente consentido”, relata. “A noite da assinatura do acordo foi memorável, com Xanana na casa prisão de Salema. Fizemos bacalhau à Gomes de Sá, eu dava 150 mil rupias aos guardas e ficava lá o tempo que queria”. Assim viveu a jornada de 5 de Maio de 1999 quando, na sede da ONU, sob o olhar do secretário-geral Kofi Annan, foi assinado o acordo entre Portugal e a Indonésia, a caminho do referendo. A distensão entre Lisboa e Jacarta, os propósitos do Presidente Habibie e o bom ambiente entre os ministros Gama e Alatas não agradavam às casernas. “Começou a causar problemas aos militares indonésios que tinham em Timor um campo de negócio, de promoção e de treino”, reconhece a diplomata. “Os militares ficaram desagradados com Habibie e Alatas, começaram a organizar milícias [em Timor] para travar este entendimento e a fazer massacres, o primeiro dos quais foi em Liquiçá, em Abril de 1999”, lembra. Na sequência, a chefe da delegação de interesses portugueses passou à ofensiva. “Fui ao Estado-Maior das Forças Armadas da Indonésia para falar com o general Wiranto, que não me recebeu, mas falei numa sala a dez generais e oficiais superiores aos quais disse que o massacre de Liquiçá era da sua responsabilidade e que se tentavam tirar-nos da mesa das negociações se enganavam, podiam tirar o cavalinho da chuva, como nós dizemos”, relata. “Eles ouviram, pouco falaram, mas depois há um comunicado das Forças Armadas no qual se me referem como uma estranha diplomata que vai às Forças Armadas da Indonésia para insultá-las”, prossegue. A comunidade diplomática em Jacarta temeu o pior. “No dia a seguir, o embaixador inglês telefonou-me a perguntar se já tinha feito as malas, mas Alatas fez tudo para impedir a minha expulsão e as negociações continuaram”, destaca. Ana Gomes encontra uma justificação, politicamente incorrecta, para este desenlace. “O facto de ter sido uma mulher a interpelá-los ajudou-os a digerir aquilo, pensaram que eu era uma pobre-diaba”, argumenta. “Ainda houve outro incidente, os militares vieram com um draft de acordo que fez adiar a assinatura de 28 de Abril para 5 de Maio, mas expliquei a situação ao ministro da Defesa e eles lá foram digerindo”, afirma. Os acontecimentos, o tempo e o jogo diplomático estão a favor de Portugal quando, a 1 de Janeiro de 2000, Lisboa assume a presidência rotativa da União Europeia (UE). “Já com o referendo feito, em 30 de Agosto, com a anulação pelo Parlamento da Indonésia da anexação de Timor e o restabelecimento das relações diplomáticas com Portugal, Jacarta não queria ter más relações com a UE”, analisa. Contudo, a situação em Timor não estava resolvida. “A seguir ao referendo [de 30 de Agosto de 1999] havia um risco calculado porque a segurança ficava a cargo dos indonésios”, constata. A desconfiança, como se provou, era mais que legítima. “Xanana já estava na embaixada do Reino Unido e quando há os primeiros sinais de violência tenho de arranjar um avião para ir buscar os portugueses, o objectivo era uma força internacional para parar a violência das milícias”, lembra. São múltiplos telefonemas de aflição. “Telefonava a chorar, precisávamos de uma força internacional e assim veio a acontecer”, afirma. Foi num desses momentos, na urgência de encontrar segurança, que a diplomata terá dito não se importar se os capacetes são azuis (a cor dos destacamentos a mando da ONU), ou às bolinhas. Ana Gomes prefere recordar outros episódios que a marcaram. “Muita da população refugiava-se das milícias em casa dos notáveis, como o Manuel Carrascalão”, aponta: “Num fim-de-semana, estava em Jacarta fiz telefonemas para todo o lado, para os meus colegas embaixadores, e decidi telefonar para casa de Manuel Carrascalão. Atendeu o filho dele, o Manelito, que me disse que o pai tinha ido falar com a polícia e que estavam em casa cercados pelas milícias. Disse-lhe para ter calma, que tudo se ia compor, depois telefonei a um amigo meu francês, jornalista da AFP, o Bernard Estrade, que estava em Díli, ele foi a casa do Carrascalão, acabou por assistir ao assalto e dá-me a notícia que o miúdo tinha sido assassinado, foi uma das coisas mais horríveis que me aconteceu”. Dias depois, em Timor, Ana Gomes encontra-se com a família Carrascalão e confirma o comportamento díspar das forças indonésias. “Eles estavam protegidos das milícias em instalações da polícia, fiquei com um número de telefone e, quando atendessem, tinha de dizer que queria falar com o Quiqui, que mais tarde vim a saber ser o próprio chefe da polícia da Indonésia”, lembra. “Naquela altura, houve muita gente, como o advogado Aniceto Guterres, que ajudei a safar das milícias graças aos jornalistas”, revela. “Disse-lhes para irem para casa do Aniceto, que estava cercado, e quando lá chegaram os jornalistas as milícias começavam a recuar”, assegura. A violência surgia, no entanto, de todos os lados, de forma inesperada e com as mais diversas motivações. “O momento mais duro, mais complexo, mais arriscado e que resolvi melhor foi quando, na zona de Betun, em Timor Ocidental, um refugiado timorense, que tinha ensandecido, me pôs uma catana em cima”, recorda. A bem sucedida causa da independência de Timor não só beneficiou da conjuntura interna da Indonésia. Foi marcada por um intenso trabalho. De resgatar o tema do esquecimento internacional a vencer o descrédito nacional de uma solução. “Foi com Ramalho Eanes como Presidente da República que comecei a trabalhar sobre Timor, pois para além de Timor e Macau serem obrigações constitucionais do Presidente, ambas as questões eram um desígnio de Eanes”, destaca quem, de 1982 a 86, foi consultora diplomática presidencial: “Em 1983, começámos a receber o Ramos Horta quando ninguém o recebia em lado nenhum. ”Os antecedentes imediatos eram preocupantes. “Foi só por quatro votos que, em Novembro de 1982, tínhamos ganho na ONU a resolução 37/30, a diplomacia portuguesa estava na defensiva”, constata. A resolução solicitava ao secretário-geral que iniciasse consultas com todas as partes directamente interessadas. Começa uma coordenação de divisão de tarefas. “A engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo é nomeada consultora de Eanes encarregue da divisão de Timor, o embaixador António Franco [seu marido] faz contactos com Ramos Horta e, no MNE, Queirós de Barros estava, então, a negociar a ida de uma missão parlamentar a Timor, que fora proposta pelo meu colega António Valente, um grande diplomata, e na altura director-geral de África”, recorda. “Esta ideia era boa mas foi distorcida, os indonésios concordam com a negociação no âmbito do secretário-geral da ONU, Javier Pérez de Cuéllar, e querem que Portugal aceite os termos das eleições promovidas pela Indonésia em Timor nas quais não se punha a autodeterminação”, acentua. “Pintasilgo estava nessa, eu e outros não estávamos”, revela. Esta visita, laboriosamente arquitectada, não se veio a realizar. “Em Novembro de 1985, no início da campanha de Mário Soares a Presidente da República, o bispo Ximenes Belo veio clandestinamente a Lisboa, fica na Nunciatura e o núncio organiza um almoço ao qual comparece Soares”, relata. Durante a refeição oferecida pelo anfitrião, o arcebispo Salvatore Asta, Ximenes Belo critica a ocupação da Indonésia e apoia a Fretilin. O candidato presidencial é surpreendido pela frontalidade do clérigo. “A partir deste almoço, e com Soares já em Belém, o Presidente questiona no Conselho de Estado de 29 de Julho de 1986 a estratégia negocial que fora seguida pelo primeiro-ministro… Mário Soares”, revela. Em sucessivos andamentos, vão-se juntando várias peças. “Na Comissão de Direitos Humanos de Genebra, em Fevereiro de 1987, o embaixador António Costa Lobo, com o beneplácito de Eduardo Azevedo Soares, seu amigo e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, afirma não aceitar que as eleições indonésias de Abril de 1987 equivalessem a uma consulta ao povo de Timor-Leste”, recorda. “Esta posição deixou apopléctica a delegação indonésia liderada pelo então diplomata Ali Alatas, e uns dias depois eles afirmam querer negociar e retomam as conversações com o secretário-geral da ONU”, resume. Ou seja, é conferida a dimensão internacional ao que os generais de Jacarta propagandeavam como uma questão interna. Nesta contabilidade, sempre a somar, Ana Gomes recorda outros papéis e contribuições. “O Presidente Jorge Sampaio em Belém, António Guterres como primeiro-ministro e Gama à frente do MNE, coadjuvados, respectivamente, por Carlos Gaspar, José Freitas Ferraz e Fernando Neves fizeram um trabalho excelente na questão de Timor”, sublinha. Como os seus colegas do Palácio das Necessidades Rui Quartin Santos, Francisco Ribeiro Telles, Carla Grijó, Nuno Brito, João Ramos Pinto e Manuel Gamito. A ex-diplomata e eurodeputada do PS não conjuga Timor na primeira pessoa do singular. Apesar do seu envolvimento na causa, chama a atenção para outros actores. “A Igreja era o outro lado da resistência, tanto ou mais importante que a guerrilha era a resistência civil cujo pilar era a Igreja”, precisa. “A Indonésia, o país mais muçulmano do mundo, fez a proeza de converter Timor-Leste ao catolicismo quando a maioria da população era animista que, ao serem obrigados a confessarem a sua religião aos indonésios, diziam ser católicos”, explica. “Foi este o último reduto da resistência”, sintetiza. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Da Igreja timorense destaca o papel do bispo Ximenez Belo e o de Basílio do Nascimento, bispo de Baucau, a segunda cidade de Timor-Leste. “Se não fosse ele, as milícias tinham destruído Baucau, sou devota de Dom Basílio apesar de ateia”, assegura. Com ele teve cumplicidades militantes e de resistência. “Levei um saco enorme de rupias para o bispo Dom Basílio eram oito mil dólares em rupias”, revela, descrevendo o volume desta entrega com um amplo gesto de mãos. “Sou privilegiada, assisti a dois PREC”, resume. O português e o indonésio que permitiram a liberdade para Timor. “Mas tenho uma mágoa”, lamenta: “quatro ou cinco funcionários dos que contratei para a embaixada em Jacarta estão a ser mal tratados pelo MNE, têm o mesmo salário que há 20 anos, sem descontos para a Segurança Social ou assistência na Saúde. São gente de uma dedicação extraordinária, dói-me quando recebo as suas mensagens que transmito ao ministério mas nada sucede. ”
REFERÊNCIAS:
Tsunami na Indonésia matou pelo menos 429 pessoas, e o vulcão continua a rugir
Cães pisteiros, drones e maquinaria pesada estão a ser usados para procurar vítimas soterradas, e há milhares e pessoas em abrigos. Continua a não ser seguro ir para as zonas costeiras, porque pode haver novos tsunamis. (...)

Tsunami na Indonésia matou pelo menos 429 pessoas, e o vulcão continua a rugir
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.25
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cães pisteiros, drones e maquinaria pesada estão a ser usados para procurar vítimas soterradas, e há milhares e pessoas em abrigos. Continua a não ser seguro ir para as zonas costeiras, porque pode haver novos tsunamis.
TEXTO: Estão a ser usados drones e cães farejadores para procurar vítimas soterradas, e o último balanço feito pelas autoridades é de que pelo menos 429 pessoas tenham morrido por causa do tsunami que atingiu a Indonésia no sábado. Há ainda 1485 feridos e 154 desaparecidos, mas é provável que estes números venham a aumentar. As buscas por sobreviventes continuam até ao final desta semana, ainda que as autoridades locais admitam que a probabilidade de encontrar alguém com vida é “diminuta”. O vulcão Anak Krakatau continua a expelir grossas nuvens de cinza. Foi o colapso de uma parede lateral do vulcão, provocando um deslizamento de terras, que tenha estado na origem do tsunami que atingiu as ilhas de Java e Samatra. Na segunda-feira, as autoridades indonésias confirmaram que este foi o mecanismo que criou as ondas destruidoras. A agência meteorológica diz que uma área de cerca de 64 hectares, o equivalente a 90 campos de futebol, tinha colapsado e caído no fundo do mar. Os socorristas estão a usar máquinas pesadas, cães pisteiros e câmaras especiais para detectar e desenterrar corpos soterrados pela força devastadora das águas e das lamas que arrastam ao longo de uma faixa de 100 km na costa ocidental de Java, diz a Reuters. A destruição é bem visível ao longo da costa, onde ondas de dois metros esmagaram veículos, deitaram árvores abaixo, ergueram grandes pedaços de metal, vigas de madeira e arrastaram móveis e objectos que estavam nas habitações e deixaram-nos espalhados nas estradas e nos arrozais. A busca deverá em breve ser estendida mais para Sul. “Há vários locais que pensávamos que não tinham sido afectados, mas estamos a chegar a zonas cada vez mais remotas, e na verdade há muito mais vítimas”, disse Yusuf Latif, porta-voz da agência nacional de protecção civil indonésia, citado pela Reuters. As autoridades não descartam a possibilidade de haver novos tsunamis. “Uma vez que o Anak Krakatau entrou em actividade, não é de excluir essa possibilidade”, disse à Reuters Hermann Fritz, geólogo do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos EUA. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mantém-se por isso o aviso para que os habitantes não regressem à costa, e há milhares de pessoas em tendas e abrigos temporários, que funcionam em mesquitas ou escolas, por exemplo. “Está toda a gente em pânico”, disse um responsável municipal na cidade de Labuan, Atmadja Suhara, que está a ajudar a tomar conta de 4000 refugiados. A Indonésia está numa zona de especial actividade sísmica, mas como este tsunami não foi precedido por um tremor de terra significativo, não houve alerta, porque os sistemas de aviso dependem da detecção de actividade sísmica. As autoridades chegaram a confundir inicialmente o tsunami com uma maré crescente e chegaram a apelar à população que não entrasse em pânico. O pior tsunami na Indonésia aconteceu em 26 de Dezembro de 2004, após um gigantesco sismo de 9, 1 na escala de Richter, com epicentro em Aceh, que afectou uma vasta área do Sudeste asiático. Causou cerca de 230 mil mortes numa dezena de países banhados pelo Oceano Índico, dos quais 168 mil em território indonésio.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Moçambique: terra de todos, terra de alguns
No Corredor de Nacala, uma das áreas mais férteis e povoadas de Moçambique, milhares de camponeses ficaram sem terra em troca de promessas de uma vida melhor. Hoje, resistem e travam uma luta de David contra Golias com empresas vindas de todo mundo. Portugal, com a Portucel Moçambique à cabeça, é o país da Europa que mais área explora nesta zona. (...)

Moçambique: terra de todos, terra de alguns
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: No Corredor de Nacala, uma das áreas mais férteis e povoadas de Moçambique, milhares de camponeses ficaram sem terra em troca de promessas de uma vida melhor. Hoje, resistem e travam uma luta de David contra Golias com empresas vindas de todo mundo. Portugal, com a Portucel Moçambique à cabeça, é o país da Europa que mais área explora nesta zona.
TEXTO: Até há pouco tempo, Maria tinha a certeza de que a terra onde nasceu, a terra que lhe calejou as mãos durante uma vida, seria a mesma onde iria morrer. A única riqueza que deixaria aos seus filhos, a mais preciosa de todas. Ser camponesa é uma profissão que não escolheu, mas que, aos 63 anos, descreve como a mais bela. Maria não se chama assim, mas não quer revelar o verdadeiro nome. Tem medo. “Tenho medo por causa das ameaças. Queremos falar daquilo que sentimos, queremos ralhar com o Governo de Moçambique, estamos contra tudo o que está a acontecer. Mas, se o fazemos, sofremos represálias. ” Não se cansa de repetir que a vida do camponês merece respeito e diz que se o Governo quer acabar com a fome, como diz, tem de parar as grandes empresas de investimento agrícola que estão a “roubar terra” e a deixar as pessoas sem terrenos férteis para cultivar alimentos. As ameaças de que Maria fala começaram em 2008, quando a crise de alimentos levou muitas empresas de agricultura, silvicultura e pecuária de larga escala a deslocaram-se para países africanos, asiáticos e latino-americanos à procura de terras produtivas e de mão-de-obra barata. Na última década, mais de 70% das aquisições de terras agrícolas de grande escala foram feitas na África subsariana. A apetência pelo Corredor de Nacala — umas das áreas mais férteis e povoadas de Moçambique que atravessa as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Zambézia e Tete — foi uma das mais vorazes. Pelo menos 38 empresas instalaram-se na região e receberam do Estado moçambicano o Direito de Uso e Aproveitamento de Terra — aquilo a que em linguagem local se chama um DUAT — de 1, 4 milhões de hectares, de acordo com os dados recolhidos pela Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) Grain em 2016. O Governo de Moçambique apoia-as e defende que estes investimentos ajudam a criar postos de trabalho, a acabar com a fome e a melhorar a nutrição no país, onde um terço da população sofre de insegurança alimentar, ou seja, tem dificuldade em aceder a alimentos. Mas continuam a ser os pequenos camponeses, que representam 80% da população, os responsáveis pela produção da quase totalidade (90%) dos alimentos consumidos no país. Também com a bandeira de melhorar a nutrição na África subsariana, os países do G8 (sigla que denomina os oito países mais ricos do mundo — Estados Unidos, Japão, Alemanha, Canadá, França, Itália, Reino Unido e Rússia — e que passou a denominar-se G7 depois de a Rússia ter sido excluída em 2014, em represália pela anexação da Crimeia) promoveram parcerias público-privadas entre muitos Estados africanos e multinacionais do sector agrário. O programa chama-se Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutricional em África [NASAN] e foi selado em 2012. O relatório de avaliação do programa, escrito em Maio de 2016 pela redactora independente da União Europeia Maria Heubuch, não podia ser mais explícito, põe em causa as boas intenções da NASAN e considera-a uma “ameaça” aos camponeses: “As políticas acordadas nos países de acolhimento visam criar um ambiente favorável às empresas”, arriscam-se a “facilitar as expropriações, marginalizar ainda mais os pequenos produtores e as mulheres, apoiando, simultaneamente, práticas agrícolas não sustentáveis”. O mesmo documento salienta ainda que “os pequenos agricultores praticamente não foram consultados aquando do estabelecimento dos Quadros de Cooperação por País, embora devam ser os beneficiários últimos da NASAN”. Em Moçambique, o acesso à terra foi uma das grandes lutas da Guerra de Libertação. Durante o regime colonial, uma pequena elite explorou quase em exclusivo os terrenos mais férteis e atirou os camponeses para os solos menos produtivos, para longe dos mercados. Com a independência, em 1975, a terra foi nacionalizada. A primeira Lei de Terras proibiu a venda de terrenos no país e o Estado tornou-se o responsável pela sua distribuição — a terra passou a ser vista como um meio de criação de riqueza e bem-estar social. Mas os melhores talhões foram, entretanto, tomados pelo poder político e os camponeses continuaram sem lhes poder aceder. Depois de 1997, as empresas estatais deixaram de ter o monopólio das explorações agrícolas. O DUAT passou a ser gratuito e vitalício — um direito que, em teoria, protege todas as explorações familiares e pequenas cooperativas que utilizam a terra há pelo menos dez anos. Segundo a lei, se uma empresa nacional ou estrangeira quiser hoje ter acesso a terra em Moçambique, é obrigada a consultar as comunidades locais para confirmar se essa área está livre e se a sua presença é autorizada, antes de pedir ao Governo o direito a explorá-la. Mudanças que, segundo Maria, não foram capazes de reverter o essencial: “Porque é que a quem vem de fora pagam um salário alto e a nós nos dão o valor mínimo? Se trazem as máquinas para produzir, porque é que não nos ensinam a usá-las e as deixam aqui para nós? Também sabemos conduzir. Como não nos calamos, dizem que somos contra o desenvolvimento, mas que tipo de desenvolvimento é este? Estamos é contra a escravatura que nos fazem. Os negros não são pessoas? São pessoas!”Jogo de forças“Nós, os pobres. ” É assim que Francisco Chicompa apresenta as famílias camponesas que vivem em Napai II, uma aldeia no distrito de Mecuburi, província de Nampula, no Norte de Moçambique. O rótulo pegou-se-lhes que nem lapa: pobres lhe chamam, pobres se vêem. Ainda assim, com 60 anos, Francisco nunca pensou ser outra coisa que não camponês. Uma vida difícil que o ensinou a resistir aos caprichos da natureza e à incerteza das sementeiras. Uma vida difícil que lhe vergou o corpo já franzino. Da terra trazia a comida para ele, a mulher e os 11 filhos. Da terra trazia o dinheiro para comprar roupa e mandar as crianças à escola. Na terra, conservava as memórias dos seus antepassados, um diamante que tinha obrigação de passar intacto às gerações futuras. Aos sete hectares que os pais lhe deixaram, somou mais três que desmatou com as próprias mãos. Era tudo o que tinha e hoje sabe que era tanto. O desaire começou num dia perdido no ano de 2011. Soprado pelos ventos do progresso, o projecto de plantação de árvores Lurio Green Resources (iniciativa da empresa Green Resources) apresentou-se aos camponeses de Napai II como a solução dos seus problemas: “Viemos acabar com a vossa pobreza. ” As promessas eram muitas: construção de uma escola, de um centro de saúde, duas fontes de água, emprego permanente. Em troca, os camponeses teriam de ceder a única coisa que lhes garantia o sustento: as suas terras. Seis anos depois, a produção e rendimento agrícolas diminuíram, as compensações e indemnizações não foram pagas como acordado, o emprego continua a ser sazonal e precário e as terras onde a comunidade construía as habitações e produzia alimentos para consumir e comercializar estão agora ocupadas por plantações de eucalipto. “Dizem que há muito espaço disponível, que não existe nenhum motivo para conflito, mas se há muita terra livre porque é que querem exactamente o sítio onde estão os camponeses? Porque é que não vão para as matas onde os reassentam?”, questiona Vicente Adriano, da Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais. Quase sem uma pausa para respirar, dá a resposta: “Porque não querem desbravar mata, querem terra fértil, já cultivada, com água. ”Em Napai II, numa manhã de Janeiro de 2017, dezenas de homens e mulheres estão dispersos numa roda à espera que comece a reunião de resolução de conflitos onde estarão também presentes os representantes do governo local e da empresa Green Resources. Francisco Chicompa ensaia uma última vez a leitura de uma carta escrita pela comunidade, como se tivesse receio que lhe falte a voz no momento de falar. Os camponeses podem até ser o elo mais fraco neste jogo de forças, mas estão unidos, não desistem. A folha de papel manuscrita que Francisco segura entre as mãos é prova disso: “Pedimos aos Serviços de Cadastro para virem delimitar os 30 hectares que nos pediram e nos devolvam 370, porque o que nos fez a Green Resources é uma tristeza inesquecível para o povo. ” Mas, entretanto, os 400 hectares a que se refere já estão plantados com eucaliptos e as famílias que aí viviam foram obrigadas a sair. A empresa norueguesa Green Resources, a Portucel Moçambique, controlada pela empresa portuguesa The Navigator Company — anteriormente conhecida por grupo Portucel Soporcel — e a emiradense Vale do Rio Lúrio gerem 67% da totalidade de terra cedida pelo Governo de Moçambique a explorações de larga-escala depois de 2008. Sozinhas ocupam sete vezes mais hectares (961. 298) do que as sete empresas moçambicanas que operam na região (119. 012 hectares), segundo os números compilados ONGD Grain. Escoltado pela polícia, o entretanto substituído administrador do distrito de Mecuburi está sentado numa cadeira de plástico — uma espécie de trono improvisado para a reunião. Quando Francisco termina de ler a carta, Hilário Anapacala dá a palavra ao representante da empresa, que garante ter negociado a cedência da terra com a “rainha [chefe tradicional] e toda a sua equipa de liderança”. O engenheiro Aníbal dos Anjos repete que o objectivo do projecto Lurio Green é “ficar para sempre” e construir uma fábrica de papel na província de Nampula, motivo pelo qual “precisa de uma machamba grande” para plantar eucaliptos. Já o líder governamental pressiona a população a ceder às exigências da Green Resources e mostra-se incomodado com a presença “inesperada” de “pessoas da Europa”. Ambos recusaram falar para esta reportagem. Apartada da roda de pessoas, está uma mulher vestida com uma farda que faz lembrar a da polícia. Rosto cerrado, não diz uma palavra. É a chefe de Napai II, a “rainha”, como lhe chamam. Foi ela a representante dos camponeses desde o início das negociações e a única que parece não estar contra a plantação em massa de eucaliptos. As promessas por cumprir estão à vista de quem as quer ver. Mais difícil é perceber se existe, ou não, ilegalidade em todo o processo. De acordo com a lei, é obrigatória a organização de uma consulta comunitária — espécie de acordo de cavalheiros, selado pelo Governo, entre a comunidade e a empresa. Mas são muitos os esquemas usados para contornar as regras: “As consultas comunitárias resumem-se a conversas com os líderes tradicionais e as empresas. É obrigatório que esteja presente pelo menos um representante do Governo, mas os administradores, os chefes de posto, que deveriam defender o povo, só pensam na agenda do dinheiro. Para conseguirem o direito a explorar a terra, pedem às pessoas para assinar uma folha sem título e anexam as assinaturas a um documento onde está escrito que a cedência foi autorizada. Se a rainha recebeu cabeças de cabrito e uma casa nova, imaginem quanto é que não deram ao administrador do posto. . . ”, denuncia o coordenador de projectos na Comissão Arquidiocesana Justiça e Paz, Anselmo César. “A questão principal é que o Estado não se demitiu das suas funções, o Estado definiu como suas funções servir o capital, servir o desenvolvimento do capital”, acrescenta o economista Carlos Nuno Castel-Branco. “Os impactos negativos são mais do que os positivos”, avalia o estudo sobre “O Avanço das Plantações Florestais sobre os Territórios dos Camponeses no Corredor de Nacala: o caso da Green Resources Moçambique”, proposto por um grupo de três organizações moçambicanas — Livaningo, Justiça Ambiental e União Nacional Camponeses — e realizado em 2016 pela consultora Lexterra. Os representantes do Governo moçambicano não partilham a mesma análise: “A Constituição da República de Moçambique define a agricultura como base do desenvolvimento económico do país. As terras são ocupadas de acordo com uma dinâmica — demográfica, de produção. . . São áreas que estão subaproveitadas neste momento. Quase 90% da agricultura nacional é composta por pequenas explorações, temos pouco sector privado. A cultura empresarial ainda é incipiente, resta muita área para ser trabalhada”, avalia o director provincial de Agricultura e Segurança Alimentar de Nampula, Pedro Zucula, numa entrevista que deu ao P2 no seu gabinete. Uma posição que é reforçada pela vice-ministra da Agricultura e Segurança Alimentar: “Não existe nenhum conflito de interesse, pelo contrário, o que nós estamos a notar é que o pequeno produtor actualmente está preocupado em aumentar as suas áreas de produção, já tem consciência do que realmente tem de produzir (. . . ) É uma novidade para nós que existam camponeses a queixarem-se da presença destas empresas”, diz Luísa Caetano Meque, enquanto lê um documento projectado na parede que o seu assessor vai escrevendo ao mesmo tempo que o P2 lhe coloca questões. “Agora estamos no aguenta, aguenta, aguenta. Dantes havia produção, conseguíamos vender e comprar no mercado. ” Francisco chama-lhe “aguenta, aguenta, aguenta”, o Governo diz que é o “desenvolvimento”. É como a pobreza, depende sempre dos olhos de quem a vê. Falta de terra para cultivar e menos comida, é essa a cara com que o progresso se apresentou aos camponeses de Napai II. “Só pagaram os cajueiros, mas os outros produtos que havia ali dentro da machamba, nada. Na minha terra tinha 90 cajueiros. Por ano, tirava cinco mil, seis mil meticais [90 euros]”, queixa-se Francisco. As outras árvores de fruto não sabe quanto é que davam, era a mulher que fazia a colheita e a vendia no mercado. Não sabe, nem quer saber, a terra é um património que não se pode traduzir em meia dúzia de tostões: “Não vale a pena ser analista, saber que gastei tanto ou apanhei tanto”, explica. CatarseChegamos ao Ruace na província da Zambézia. Para trás, à esquerda, os campos que noutros tempos alimentavam os moradores da aldeia estão hoje cobertos de soja. É essa a herança visível das “promessas doces” feitas pela empresa de agricultura intensiva Hoyo Hoyo. O frenesim nas ruas anuncia que a missa de domingo está prestes a começar, só as 44 pessoas reunidas no edifício da antiga escola quebram a normalidade. Dez anos depois, perdido o que havia para perder, o medo de falar desnudou-se. A sua revolta já não tem filtros, querem “descarregar”. As mesmas histórias repetiram-se vezes sem conta, como se tivessem sido passadas a papel químico: “Não éramos ricos, mas tínhamos uma vida boa, podíamos mandar os nossos filhos à escola, construir as nossas casas. Agora perdemos tudo. . . ”Durante três horas, o que ali se viveu foi uma catarse colectiva. Todos os presentes eram antigos trabalhadores da Urari Kapel, uma empresa pública que começou a produzir milho, feijões, girassóis e soja depois da independência de Moçambique, a 25 de Junho de 1975. Faliu logo depois, com a intensificação da Guerra Civil, que começou em 1977. Nessa altura, as pessoas que ficaram desempregadas tomaram conta das terras, tudo com o aval do Governo: “Veio um grupo de extensão rural da província que fez a distribuição das áreas pelos próprios trabalhadores. Começámos a produzir, a produzir, a produzir, 30 anos a produzir. Esses, quando vieram, encontraram tudo limpo. As pessoas conseguiam meter tractores, lavravam. . . Trabalhámos desde que a Kapel saiu até ao momento em que eles entraram. ” Baptista Frisado, 54 anos, nunca chama a Hoyo Hoyo pelo nome. Como se evitá-lo a pudesse tornar menos real. A Hoyo Hoyo (que em changana, uma das línguas do Sul de Moçambique, significa “bem-vindo”) é uma empresa registada no país em 2008. Era detida pelo grupo Quifel Resources, controlado pelo empresário e piloto de automóveis Miguel Pais do Amaral. Já depois de o Governo ter aprovado a exploração de 28 mil hectares nas províncias da Zambézia e de Tete, a empresa foi vendida e registada como Hoyo One nas ilhas Maurícias — conhecidas por serem um paraíso fiscal — e passou a ser controlada pela Hoyo Hoyo B. V, com sede na Holanda. Ambas integram o Grupo BXR, dos Países Baixos, detido por banqueiros com fundos ligados ao Credit Suisse e pelo checo Zdenel Bakala, com uma fortuna avaliada em 1, 6 mil milhões de euros, segundo a revista Forbes. O relatório “Os usurpadores de terra do Corredor de Nacala”, publicado pela ONGD Grain, reúne esta informação e adianta ainda que em 2012, ano em que a empresa passou para as mãos do Grupo BXR, as pessoas já tinham sido expulsas das suas terras, mas o investimento em produção era ainda nulo. Ainda hoje, os camponeses de Ruace conseguem descrever, ao detalhe, aquela terça-feira — dia 12 de Agosto de 2008 — em que se encontraram com os representantes do Governo local e da empresa de agro-negócio. O dia em que, recordam, a Hoyo Hoyo entrou na sua aldeia com uma “política do açúcar” e lhes garantiu que, se desistissem das 136 associações a que pertenciam e fossem trabalhar para a empresa, conseguiriam aumentar a produção. “Disseram que queriam fazer um campo de demonstração para fomentar a produção de soja e que seriam os nossos compradores locais”, recorda Teresa Augusto, 43 anos. “Prometeram ajudar-nos a lavrar as machambas para aumentarmos a produção e termos uma agricultura avançada. Ficámos muito satisfeitos. Foi uma festa grande. Mas já está a fazer dez anos e nada. Nada. . . ”, acrescenta Baptista Frisado. Os camponeses de Ruace foram reassentados no Moja, uma zona montanhosa a mais de quatro horas a pé da aldeia. Nunca mais puderam voltar a entrar no recinto onde lhes tinham sido prometidas as hortas de experimentação. Até o cemitério, onde antes velavam os seus mortos, está agora cercado. “Desde 2011, nenhum de nós trouxe dali um cesto de milho. Nem pelo menos dez quilos de soja. Depois de chover, aqueles terrenos tornam-se um pântano. Em 2011, ficámos na miséria. Em 2012, ficámos na miséria. Em 2013, ficámos na miséria. Em 2014, quando voltámos a estar na miséria, decidimos alugar outra machamba”, conta Teresa. Queixa-se dos solos pouco férteis e dos conflitos com outros camponeses que reivindicam ter direito às mesmas terras. “Ficar na miséria” é trabalhar durante meses no campo e não conseguir trazer comida para casa porque a terra é árida. Berta Assane, 61 anos, não demorou muito a perceber que teria de se virar por outro lado. “Abandonei aquilo, não me trazia benefício, sofria de graça. Os 1500 meticais [20 euros] que a empresa me deu de indemnização ajudaram-me a conseguir outro terreno no lado do Niassa [província que faz fronteira com a Zambézia]. Quando vou para lá, chego a passar dias longe de casa, é impossível ir e voltar, antes estava a poucos minutos da minha horta”, conta. Berta e Teresa acabaram por desistir e renunciar ao talhão onde foram reassentadas. Arminda Ambrósio põe os olhos nas amigas e diz que gostaria de fazer o mesmo, mas não tem dinheiro para isso. Com 42 anos e nove filhos, três falecidos, queixa-se de que “já não era para estar nesta situação”: “Antigamente, eles iam à escola porque eu tinha dinheiro, produzia soja, milho e conseguia vender. Até roupa nova os meus filhos tinham. Agora não tenho nada. Não tenho maneira de comprar cadernos, livros, canetas, de pagar a matrícula. Não tenho. Estão em casa e aí ficam. Sentados. ”Os camponeses já tinham pedido muitas vezes ao Governo local para legalizar o terreno onde as associações trabalhavam há quase 30 anos. A resposta era sempre a mesma: “A terra é do Estado, não se vende. ” “Porque o nosso pai nos traiu?” A pergunta é retórica, mas, ainda assim, repetida até à exaustão. Como se, na resposta, pudessem encontrar uma solução. O “pai” de que falam é a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), partido no poder desde a independência do país. O mesmo movimento revolucionário que lutou contra o colonialismo, que se bateu para que os camponeses pudessem ter acesso à terra, usa-os agora “como isca para poder apanhar peixe”. As palavras são do camponês Custódio Mulotiba: “O antigo director do posto veio como isca, com uma política de açúcar, e dominou-nos. Disse-nos que, depois de a empresa abrir, ficaria dois anos, mas nem um dia aqui dormiu. Está a viver em Maputo, com uma vida boa. Nós é que ficámos. Há um provérbio que diz que, quando os elefantes lutam, quem sofre é o regadio. ”“Há uma justificação histórica para isto. Depois da independência, num contexto em que não podíamos fugir da influência imperialista, mas não queríamos que os recursos do país fossem totalmente saqueados pelo capital externo, formou-se uma burguesia nacional que protegesse os recursos de Moçambique. E quem é mais patriótico do que aqueles que lutaram pela libertação da pátria? A primeira onda de expropriação foi feita pelo Estado para fazer emergir este grupo de proprietários que não teve sucesso. Depois, uma boa parte destas empresas ficou obsoleta: os sistemas de financiamento não eram adequados, não havia serviços de apoio à reabilitação empresarial. A ligação com o capital estrangeiro tornou-se uma opção viável por vários motivos: são multinacionais que dominam os mercados internacionais, têm tecnologia, têm reputação, têm experiência. O grande problema é que tornar os recursos apenas disponíveis para as multinacionais significava que a burguesia capitalista oligárquica moçambicana iria perder no processo. Para que isso não acontecesse, ligou-se a penetração do capital internacional ao desenvolvimento do capital nacional — não é por acaso que houve uma enorme campanha de divulgação das riquezas de Moçambique, “temos gás, temos petróleo, temos carvão, temos minerais”, explica Carlos Nuno Castel-Branco, doutorado em Economia e professor no Instituto de Estudos Sociais e Económicos, em Maputo, e no Instituto de Economia e Gestão, em Lisboa. E continua: “A maneira de fazer esta ligação entre capital nacional e internacional foi colocar os primeiros a negociar com os segundos. Mas, para este processo acontecer sem custos adicionais, o Estado teve de abdicar dos seus ganhos: minas, recursos, foi tudo posto à disposição a baixo custo, tornando qualquer negócio favorável. ”Os camponeses de Ruace sentem na pele esta indefinição nas fronteiras que deveriam separar a acção do Estado daquilo que são os interesses de privados. Sabem estar a travar uma luta de David contra Golias, mas, mesmo assim, recusam-se a entregar aquilo que garantem ser seu. Em Outubro de 2016, voltaram a confrontar o Posto Administrativo de Lioma, ao qual pertence Ruace, e a Hoyo Hoyo, com uma carta onde pediam uma resposta às promessas que lhes foram feitas: “Por verificar que a empresa Hoyo Hoyo demorou aproximadamente nove anos sem cumprir os seus compromissos, a comissão comunitária dos produtores de Ruace (. . . ) lamenta o facto de a empresa ter prometido actividades enganosas ao povo — construção de uma escola e de um hospital rural, água canalizada, reabilitação da estrada entre Ruace e Lioma e assistência técnica aos produtores associados (. . . )” e pede a “devida resposta”. Mais de um ano depois, continuam à espera. Quando contactados pelo P2, o então chefe do Posto de Lioma, João José Nwole, e o director de investimentos agrícolas da Hoyo Hoyo, Gordon Cameron, aceitaram explicar o seu lado da história e quebrar o ciclo de silêncio que, dia após dia, corrói um pouco mais a esperança dos que só pedem que o prometido seja cumprido. “Não tem havido conflitos. Para começar a trabalhar, a empresa precisa que lhe seja cedida área e, para isso, fazem-se consultas comunitárias. Nada tem entrado em contradição com as populações. A área explorada pela empresa é diferente da área onde as famílias produzem. As empresas vêm incrementar a própria agricultura, conseguem produzir em grandes quantidades, enquanto a população produz em pequenas quantidades”, diz o responsável do Governo local, alheio às queixas dos camponeses de Ruace. Já o director de investimentos agrícolas da Hoyo Hoyo garante, por email, que os responsáveis locais da empresa estão em “estreita comunicação” com os líderes comunitários e atira a culpa para os anteriores donos: “Os portugueses, proprietários originais da Hoyo Hoyo, fizeram muitas promessas que não cumpriram ou não puderam cumprir. Quando assumimos a empresa, avaliámos esses compromissos — já que agora exploramos apenas 3 mil hectares [os portugueses tinham dez mil] — e, portanto, temos um negócio muito menor. De acordo com o nosso tamanho actual, a Hoyo Hoyo construiu uma ponte na estrada entre Ruace e Lioma; construiu e mantém quatro poços de água em Ruace; forneceu, em 2012, uma ambulância, combustível e a sua manutenção; dá assistência material e alimentar a dois orfanatos; dá assistência alimentar aos membros mais carenciados da comunidade; oferece estágios a estudantes de universidades locais. Não foi possível realizar grandes projectos, como a construção da escola, porque os 10 mil hectares iniciais não se materializaram, portanto, as receitas não foram suficientes. ” O responsável não comenta os solos arenosos para onde as hortas dos camponeses foram transferidas, mas garante que “todos os reassentamentos ficaram concluídos em Outubro de 2016, bem como os pagamentos de reinstalação”. “Sabemos que, em alguns casos, a população não aceitou ser reassentada porque as suas outras machambas ficavam longe. Preferiram receber o dinheiro e, em seguida, desenvolver mais machambas perto das suas áreas”, explica. “Ter machamba é um direito humano!” Teresa não tem dúvidas de que o direito a ter um pedaço de terra para cultivar deveria fazer parte de um dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O documento, adoptado pelas Nações Unidas em 1948, diz que todo o ser humano deve ter acesso “a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos (. . . )”. Mas Berta, Teresa e Arminda não conseguem imaginar como é que isso será possível sem que antes lhes garantam o chão onde vão buscar tudo o resto: “A Lei da Terra foi feita para que os moçambicanos pudessem explorar as suas terras, e agora estamos a passar fome. Antes, fazíamos quatro refeições por dia — o mata-bicho [pequeno-almoço], almoço, lanche e jantar, mas agora já não estamos a conseguir. Perdemos corpo”, queixam-se. Mais do que em soluções universais, mais do que em vozes que estão lá longe, Berta acredita que é em Moçambique, nas mãos do Presidente Filipe Nyusi, que pode estar o antídoto para quebrar a “maldição” que caiu sobre Ruace. Pedem aos jornalistas, em quem identificam um instrumento capaz de ampliar a sua voz, para ir a Maputo perguntar “porque não olham por eles, porque é que o ‘pai’ os abandonou”. Pedem ao Governo, a quem chamam “pai”, para ir até ao Ruace ver aquilo a que estão sujeitos. E deixam-lhe uma mensagem: “Se ele [Filipe Nyusi] estivesse aqui mais perto, até podíamos ir a pé. Dormíamos no caminho até chegar lá, onde está o nosso Presidente. Assim, seria possível contar-lhe o que se está a passar, o que estamos a ver, o que estamos a sentir. ”A resistência mora aquiHá 19 anos, quando Nakarari ainda não era Nakarari, Agostinho Mcerneia pegou numa faca de mato e desbravou o caminho que o levou ao sítio onde hoje vive com a mulher e os sete filhos. Orgulha-se de ter sido o primeiro a chegar à aldeia. De ter sido aquele que chamou os outros. Olha em volta — para as crianças que brincam debaixo da mangueira, para as mulheres sentadas num tapete de palha — e com um sorriso de glória conta como foi: “Dava medo passar aqui. Era só mato, não vivia ninguém. Como fui comandante das milícias [forças armadas, apoiadas pelo Estado, que protegiam as zonas rurais], tinha experiência e consegui. Vi que era uma boa terra, que tinha o rio perto, água para regar as hortas. ”Agostinho não sabe ao certo quantos anos tem, mas garante serem mais de 60. É o líder da aldeia de Nakarari, uma aldeia que pertence ao distrito de Malema, na província de Nampula. Um homem recto em quem todos confiam. Era também a ele que o Governo da região recorria sempre que tinha algum assunto para tratar. Até ao dia em que rejeitou a oferta do chefe do Posto Administrativo de Mutuali — 150 mil meticais [cerca de 2 mil euros] em troca do direito de exploração dos 31. 292 hectares que a comunidade de Nakarari explora colectivamente. Era mais dinheiro do que aquele que alguma vez teve de uma só vez, mas não pagava o que não tem preço. Como não se dobrou, foi posto à margem: o homem-ponte, por quem passava toda a informação, é agora mal aceite pelos representantes do Governo. “Ele disse-me: ‘Você é velho, fique com esse dinheiro. ’ Mas como é que eu ia dizer isso às pessoas? Este mangueiro é nosso, fomos nós, todos, que o semeámos, que o levantámos. Vou receber os 150 mil e obrigar toda a gente a sair? Isso não vale a pena. ” A resposta não deixou margem para negociações, preferia as terras que ficam para sempre ao dinheiro que se evapora: “Queriam deixar entrar a Agromoz, queriam deixar entrar o ProSavana. . . ” Para Agostinho, a Agromoz e o ProSavana são duas faces de uma mesma moeda, ambos representam uma ameaça. A Agromoz é uma empresa de agricultura de larga escala que explora uma extensão de 10 mil hectares em Wakua, a aldeia que faz fronteira com Nakarari e estabelece a divisão entre as províncias da Zambézia e Nampula. Resulta de uma parceria entre o Grupo Américo Amorim (accionista maioritário) — que deve o seu nome ao empresário português que faleceu em Julho de 2017 e foi considerado pela revista Forbes o homem mais rico de Portugal, com uma fortuna avaliada em 4, 4 milhões de dólares; a Focus 21 — gerida pela família do ex-presidente de Moçambique Armando Guebuza; e o Grupo Intelec — uma das maiores sociedades moçambicanas de investimento privado. Sem site institucional ou presença nas redes sociais, chegámos a duvidar da sua existência. Uma pesquisa por “Agromoz” no motor de pesquisa da Google remete-nos apenas para artigos publicados na imprensa e relatórios de diversas organizações da sociedade civil. O ProSavana é um projecto ainda mais ambicioso. Foi apresentado, em 2011, pelos Governos de Moçambique, Brasil e Japão como um “programa de desenvolvimento agrícola” e prevê a ocupação de 14 milhões de hectares em 19 distritos da região do Corredor de Nacala. Várias organizações da sociedade civil consideram que, se o programa for para a frente, representará um dos maiores ataques à agricultura camponesa em Moçambique. Até agora, têm conseguido travar o seu avanço, mas as negociações nunca cessaram e a sua implementação continua a ser uma hipótese. Agostinho não precisa que lhe contem o que acontece quando um projecto de agricultura de larga escala chega a uma aldeia do interior do país. Viu-o com os próprios olhos: “As pessoas desalojadas pela Agromoz, que estavam do lado da Zambézia, vieram para Nampula. Eram 120 refugiados — mulheres, crianças. . . Não tinham onde ir, ficaram sem terra, não tinham nada. Disse-lhes onde poderiam construir as suas casas, que ficassem aqui mesmo. Ia fazer o quê? Mas a terra onde estão não é tão boa como a que tinham, não podíamos ajudar mais, apontámos apenas as áreas disponíveis e eles tiveram de fazer tudo sozinhos. ”“Os refugiados”: é assim que quem vive em Nakarari chama aos que lhes pediram um poiso onde pudessem reconstruir a vida. “Refugiados” não porque foram obrigados a abandonar o seu país por motivo de guerra, desastre natural, perseguição política, religiosa ou étnica, mas porque ali chegaram vulneráveis, a pedir refúgio, a naufragar em terra firme. Desde que chegou a Wakua, em Setembro de 2012, a Agromoz dedica-se sobretudo à produção de soja e milho, e tem tentado introduzir o cultivo de girassol (utilizado para ração animal). Dos 10 mil hectares que lhes foram cedidos pelo Governo para exploração, já desmataram 2500 e prevêem aumentar a produção numa média de 500 a 750 hectares por ano. “A nossa ideia é, inserindo sempre a comunidade na nossa actuação, expandir a área e continuar a crescer. Depois de quatro anos de experiência, estamos focados em tornarmo-nos uma empresa mais eficiente, racional e optimizada”, diz o administrador da empresa, Justiniano Gomes. Confrontado pelo P2 com a situação dos desalojados de Wakua, Justiniano Gomes garante que a Agromoz seguiu a lei moçambicana: “Quando chegámos à zona de Wakua, envolvemos, desde o início, os líderes e as autoridades locais. O processo de atribuição do DUAT é legal, tivemos dezenas de reuniões comunitárias em que explicámos o que seria o projecto da Agromoz — as vicissitudes, os aspectos positivos e negativos. Dentro dos aspectos negativos, o maior é sem dúvida o desalojamento das pessoas. Houve um conjunto de indemnizações — valores definidos por lei — para cada bananeira, cada árvore de manga, cada casa, cada hectare de terra lavrado. Foi feito um levantamento exaustivo do número de pessoas que trabalham e moram na zona que queremos explorar. O que é que quero dizer? Que ainda temos população nos nossos hectares, só nos preocupámos em desalojar aqueles que estão na área que queremos cultivar. ” Já João José Nwole, chefe do Posto Administrativo de Lioma, distrito ao qual pertence Wakua, mostrou desconhecer a situação dos “refugiados”: “Aquilo que sei é que no princípio da campanha havia um pequeno conflito em relação aos limites da área da Agromoz. Nessa altura, fomos lá gerir e alertámos a empresa que não podia entrar na área da população. O conflito ficou resolvido e, desde então, não tenho informação de que a população tenha sido prejudicada. ”Julião Antre foi um dos primeiros a pedir ajuda à comunidade de Nakarari: um terreno para capinar e outro para construir uma casa já dava para “avançar com a vida”. Chegou com a mulher, os sete filhos e a roupa que traziam no corpo. “Apontámos o terreno livre onde podiam ficar, mas não é terra boa. Não é!”, reforça Agostinho. “Em Wakua, tinha 37 plantas, 2, 5 hectares de machamba e quatro casas. O dinheiro da indemnização foi 14 mil meticais [cerca de 190 euros]. Era pouco. Comecei a queixar-me e disseram-me: ‘Você é filho da empresa, vai ficar aqui até morrer. ’ Quando ouvi isso, acalmei-me. ” Julião conta que trabalhou na empresa entre 18 de Setembro de 2012 e 24 de Março de 2014 — com dois contratos de seis meses e um de um ano. “Depois, fui expulso. Sem motivo, disseram só que o serviço acabou. Agora já não quero voltar, prefiro ter a minha própria machamba, plantar para comer, para vender. Ser livre. ”Da parte da Agromoz, Justiniano Gomes garante que a empresa não ficou a dever nada a ninguém e diz ter “todo o prazer” em recapitular o processo de indemnizações: “Muitas vezes, as pessoas são entrevistadas, sentem-se importantes naquele momento, e depois dizem que a Agromoz lhes deve cem mil ou um milhão de dólares. Se efectivamente existiu um processo de desalojamento, o funcionário que venha ter connosco. Nós identificamo-lo no nosso arquivo e fazemos prova do que foi tratado na altura. Se alguém diz isso, das duas uma: ou tem más intenções ou pode estar esquecido do processo a que foi submetido juntamente com todos os outros vizinhos. Na altura, todos ficaram muito contentes por vir trabalhar para a empresa. ”Os camponeses desalojados de Wakua e a Agromoz põem lentes diferentes para descrever o que se tem passado nos últimos anos: uns vêem mais pobreza, outros mais progresso. Uma diferença inconciliável que se traduz, muitas vezes, em duelos silenciosos travados nos bastidores. “No dia 8 de Maio de 2016, era um domingo, os membros da União Nacional de Camponeses [UNAC] vieram de várias regiões de Moçambique para visitar os camponeses desalojados pela Agromoz. Poucos dias depois, recebemos uma notificação da polícia e fomos acusados de ter cavado uma picada na estrada que dá acesso à empresa, e de fazermos parte de um encontro entre os homens da Renamo [Resistência Nacional Moçambicana, o segundo maior partido político] e do MDM [Movimento Democrático de Moçambique, a terceira força política no país]”, conta o Presidente da União Distrital de Camponeses de Malema. A acusação de que Manuel Massana fala é resultado de uma carta enviada pela empresa aos diversos representantes do Governo local e regional. Nesse documento, Mana Luft, directora de recursos humanos da Agromoz, refere-se a uma reunião que terá sido organizada próximo da sede onde “a população é convidada a invadir a empresa, queimar pneus e partir para o confronto físico”. A responsável salienta ainda que não estava presente “nenhum único membro do Governo ou do partido Frelimo” e que se ouviram frases como “vou convocar um feiticeiro para enfraquecer os brancos, eles vão abandonar a empresa; vamos começar com uma guerra aqui”. Mana Luft recusou ser entrevistada e não autorizou a recolha de imagens no interior da Agromoz, mas aceitou receber-nos para uma conversa informal — “apenas para vos enquadrar, tudo o que digo é em off, não têm autorização para usar”, salientou. Mas não é só a Agromoz que está atenta às movimentações dos habitantes de Nakarari. O DUAT de 31. 292 hectares que a comunidade explora de forma colectiva há quase duas décadas também chamou a atenção do Governo: “Pediram-nos para apontar numa folha o terreno que estamos a capinar, o número de hectares, o nome do camponês, e entregar essa informação no Posto de Mutuali. Convocámos uma reunião na comunidade para decidir o que fazer e as pessoas disseram que não queriam marcar nada. Recusaram-se porque nos pediram para não contar o mato, só a terra cultivada. Não se pode contar só a terra que estamos a capinar, o mato também é nosso, há-de ser de quem? Decidimos que vamos esperar alguém vir aqui explicar-nos para que quer esta informação”, conta Agostinho. O pedido para a demarcação individual das terras de Nakarari vem na sequência do programa Terra Segura, uma iniciativa do Governo, implementada pelo Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, que prevê até 2019 “o registo e regulamento da ocupação de 5 milhões de parcelas feitas de acordo com as normas costumeiras”. “O programa Terra Segura é tão engraçado. Há um Estado que, em 30 anos, conseguiu delimitar e atribuir cerca de 100 mil DUAT [Direito de Uso e Aproveitamento de Terra] em todo o país. Hoje, temos um ministério que se propõe conceder 5 milhões de DUAT em cinco anos. Como vai fazê-lo, com que critérios? Olhando para o programa Terra Segura, é claro que pretende atribuir DUAT em áreas propensas a conflitos. Na minha opinião, este programa é um instrumento que vai legitimar claramente a usurpação de terra, na medida em que poderá delimitar terras confinando os camponeses a terrenos marginais, improdutivos e limitados; vai permitir que o Estado consiga ter uma reserva, uma espécie de banco de terras para fazer a sua própria alocação de terrenos. E, em cinco anos, não vão poder ser atribuídos 5 milhões de DUAT, é extremamente falacioso”, critica Vicente Adriano, da Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais. Durante a reunião em Nakarari, Helena Victor foi a primeira a levantar a voz contra a demarcação de terras: “Já viram o que aconteceu aos refugiados? Se quiserem alguma coisa, venham cá e falem connosco. ” Quando chegamos à casa onde vive com o marido e os cinco filhos, chamamos pelo seu nome mas, aos 56 anos, Helena aprendeu que as ameaças nos podem vir bater à porta quando menos esperamos: “Quero falar primeiro com o Agostinho, para saber do que se trata”, trava-nos. Depois do aval do “secretário”, lá começa a explicar o motivo da desconfiança: “As pessoas não podem vir aqui e achar que ainda vivemos na época colonial. Não! Têm de nos explicar o que querem e nós é que decidimos se vamos falar ou não. Desde que a Agromoz entrou na Zambézia, temos de estar atentos, com os olhos bem abertos. ” Helena e o marido, Bernardo Mulodoua, são camponeses por conta própria e não há nada — nem o dinheiro, nem um contrato de trabalho, nem as férias — que os convença de que “ir trabalhar para os outros” lhes pode melhorar a vida: “Talvez ao início até seja bom, mas e depois? Mandam as pessoas para a rua, a terra que antes capinavam já não está pronta para cultivar, vão fazer o quê? Comer o quê?”Da venda do milho, da soja e das diversas variedades de feijão (nhemba, boer, manteiga, jugo, holoco) que cultivam em oito hectares de terra, a família de Helena retira por ano, em média, 45 mil meticais (629 euros) — um valor que, dividido por 12, fica ligeiramente acima do ordenado mínimo mensal estabelecido para o sector agrícola em Moçambique (3642 meticais, cerca de 50 euros). Com esse dinheiro, compram sementes, produtos hortícolas, roupa, calçado e pagam a escola dos filhos que ainda estão a estudar. “E não é só o que ganhamos, é preciso não esquecer que é dessa terra que tiramos a comida com que nos alimentamos o ano inteiro”, acrescenta. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A vida de Helena resume-se ao trabalho no campo. Acorda, vai para o campo, toma o mata-bicho e vai para o campo, vem fazer o almoço, descansa até o sol baixar, e volta para o campo. Ainda assim, não consegue entender como é que ser dependente, estar à mercê dos outros, lhe vai trazer garantias de um futuro melhor. Por isso, pede a Deus que lhe dê saúde para continuar e ao Governo de Moçambique apoio, não só para si, mas para todos os camponeses que querem continuar a sê-lo. Sobre o boato que se espalha quase em surdina — de que há empresas de agricultura de larga escala interessadas nas terras de Nakarari —, Helena arregala os olhos e nega-o três vezes. Como se estivesse a enxotar um pensamento mau que lhe tenha vindo à cabeça: “A maldade que chegou a Wakua vem para aqui? Não, não, não. Para onde havemos de ir, para as montanhas? Não nos vão apanhar porque estaremos aqui, à espera, para os receber. ”Esta reportagem é parte do webdocumentário publicado na revista de jornalismo de investigação Divergente, que pode ser visto em terradealguns. divergente. ptEste trabalho foi realizado com o apoio do Journalismfund. eu e da Free Press Unlimited
REFERÊNCIAS:
Quando as luzes se apagarem, brilharão os corpos que pagaram a crise
Dos estaleiros de Viana do Castelo aos bairros mais duros da Grande Lisboa, Marco Martins vem-se fixando obstinadamente nos despojos da crise. Desta vez, foi encontrá-los em Inglaterra, onde nos tornámos os melhores a esquartejar perus e a limpar rabos de reformados com Alzheimer. Provisional Figures Great Yarmouth, peça que agora chega ao Porto e a Lisboa, tinha tudo para ser um matadouro, só que não: este espectáculo salvou várias vidas. (...)

Quando as luzes se apagarem, brilharão os corpos que pagaram a crise
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Ciganos Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Dos estaleiros de Viana do Castelo aos bairros mais duros da Grande Lisboa, Marco Martins vem-se fixando obstinadamente nos despojos da crise. Desta vez, foi encontrá-los em Inglaterra, onde nos tornámos os melhores a esquartejar perus e a limpar rabos de reformados com Alzheimer. Provisional Figures Great Yarmouth, peça que agora chega ao Porto e a Lisboa, tinha tudo para ser um matadouro, só que não: este espectáculo salvou várias vidas.
TEXTO: Os números sempre foram provisórios, como no título que Marco Martins acabou por roubar ao jargão das estatísticas da imigração, mas, mais desemprego, menos “Brexit”, ainda hoje haverá cinco ou seis mil portugueses que sabem marcar com um X no mapa de Inglaterra o lugar exacto onde o zumbido das agulhas dos salões de tatuagens se cruza com o cheiro a fritos dos estaminés de fish & chips e com os néons intermitentes daquela que só pode ser a maior concentração de casas de máquinas a oeste de Las Vegas. Há dias em que parece uma trip das boas, com castelos insufláveis e algodão doce. Há dias em que parece um apocalipse de obesidade mórbida, gravidez adolescente e overdoses de heroína. É o lugar exacto onde ainda hoje, mais desemprego, menos “Brexit”, o bacalhau para demolhar, as alheiras de Mirandela e o vinho em boxes de cinco litros se pagam em libras num dos dois minimercados Lusa, onde há missa em português ao primeiro domingo do mês na igreja católica da Regent Street (“Tens de dizer ‘Rua Augusta’, se não ninguém conhece”), onde à entrada de um beco sem saída alguém escreveu “Dukes of Ribatejo”. O tipo de lugar a que por sorte ou por azar cinco ou seis mil portugueses passaram a chamar casa. Great Yarmouth. “The finest place in the universe”, escreveu Charles Dickens em 1849, quando para ali levou um dos mais amados working class heroes da Inglaterra vitoriana, David Copperfield, sem imaginar que 160 anos depois a indústria alimentar e a doentia atracção dos ocidentais por carne processada e perus para rechear no Natal lhe dariam abundante descendência portuguesa. “Uma cidade de merda”, actualiza Victoria, que numa vida anterior, quando tinha 22 anos, tentou afogar num jacuzzi com cinco desconhecidos a tragédia proletária de se ver coroada Miss Great Yarmouth (200 libras não pagam um ano de sorrisos nos jornais locais e de presenças em quermesses, mas pagam uma dívida a um dealer, e Victoria tinha e ainda tem uma irmã bastante pragmática). A ela nunca lhe disseram que Great Yarmouth era “o Algarve inglês”. Nunca lhe mentiram, ou pelo menos não acerca disso. Também não a chamaram para uma entrevista depois de responder a um anúncio do Correio da Manhã, nem lhe pediram para mostrar as mãos e os dentes, nem lhe disseram que ia para Inglaterra embalar fiambre, also known as esquartejar perus (peitos para a Europa, testículos para a China). Victoria e Carmo continuariam até hoje a viver vidas paralelas em Great Yarmouth se não se tivessem cruzado num ensaio do espectáculo que Renzo Barsotti convenceu Marco Martins a montar, depois de ter descoberto “os portugueses da Bernard Matthews” (also known as Bernardo Mateus), então um colosso da indústria alimentar do Reino Unido movido a mão-de-obra barata importada da periferia da União Europeia. Em 2012, já fora o produtor italiano, para quem o trabalho é definitivamente “o grande tema do século XXI”, a levá-lo aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, então já em estado terminal, onde Marco Martins acabaria por levantar um auto popular com 16 trabalhadores; aí se iniciou uma aproximação aos “despojos da crise” que, radicalizando o vaivém entre ficção e realidade, o encenador e cineasta prosseguiu no seu último filme, São Jorge (2016), descida ao submundo das cobranças difíceis e da sobrevivência nos bairros mais duros da Grande Lisboa, e agora aprofunda nesta peça em que junta no mesmo palco crepuscular quatro working class heroes da última vaga da imigração portuguesa, quatro outcasts locais que não tiveram pernas para fugir quando a explosão do turismo low-cost no Mediterrâneo apagou a costa inglesa do mapa, e ainda um cozinheiro esloveno. É para eles finalmente sobressaírem que as luzes se vão apagar sexta-feira e sábado no Porto, onde, depois da estreia de há duas semanas no Norfolk & Norwich Festival, Provisional Figures Great Yarmouth se apresenta no Rivoli, via FITEI — Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, e depois, de 28 de Junho a 4 de Julho, em Lisboa, no Maria Matos, onde encerrará o ciclo Migrações (e todo um período da vida daquele teatro municipal, mas essa já seria outra história, outra despedida). No escuro, veremos como brilham os corpos que pagaram a crise. Hão-de mostrar-nos o cabelo quebradiço, os braços que já não dá para esticar totalmente, as pernas que passaram a coxear, as cicatrizes da queda aparatosa que pôs fim a uma vida inteira de trabalho, a pele que tiveram de largar, as tatuagens que fizeram para poder aguentar, e as que desfizeram porque já não aguentavam. “Great Yarmouth? Deus do céu, é a primeira vez que lá vais?”, pergunta o funcionário na bilheteira da estação, ar apreensivo até perceber que a viagem vai ser de ida e volta. Great Yarmouth. Carmo (dois ataques cardíacos, um osso sobreposto a outro no ombro esquerdo, uma tendinite crónica, e o pior ainda foram as depressões) tem jeito para frases bombásticas à mesa do café: “Se vivesses aqui morrias. ”Encenação:Marco Martins Porto. Teatro Rivoli. Praça Dom João I. T. 223392200. 15 e 16 de Junho. Sexta às 21h30; Sábado às 19h00 (FITEI 2018 - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica). 7, 50€ Lisboa. Maria Matos Teatro Municipal. Avenida Frei Miguel Contreiras, 52. T. 218438801. De 28 de Junho a 4 de Julho. Terça a domingo às 21h30. 6€ a 12€ (c/desconto)Ao longo dos últimos dois anos, Marco Martins foi apanhando aviões para lá e para cá na esperança nem sempre muito realista de muitas milhas depois ter um espectáculo para estrear, um espectáculo a que pudesse chamar, para esconjurar a dor e a poesia de atrás dos números haver pessoas, Provisional Figures. Tinha uma história de trabalho com Renzo Barsotti e o seu Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua que, antes de chegar a Viana do Castelo, já vinha da comunidade cigana da Baralha, em Santa Maria da Feira, e o tema interessava-lhe “muito” — mas a primeira ida a Great Yarmouth “foi devastadora”, diz ao Ípsilon horas antes da segunda apresentação do espectáculo na cidade que, com o tempo (e com as idas e vindas dos portugueses que nunca deixaram de estar ali apenas provisoriamente, mesmo que entretanto já se tenham passado 15 anos), se impôs como protagonista. “Lembro-me de ir para a paragem às 4h da manhã, a hora em que saía o autocarro para a Bernardo, e de os portugueses passarem por mim como se fossem fantasmas. O regresso, à noite, ainda era mais duro. E depois havia os ingleses que eu via dia e noite a fumarem de pijama à porta de casa, com montes de filhos à volta. Estava a acabar o São Jorge e na minha cabeça Great Yarmouth ia ser um filme: as imagens eram muito fortes. ”Não foi um filme (talvez ainda venha a ser). Quando Marco Martins começou a fazer entrevistas para escolher os seus não-actores, já se tinha tornado claro que Great Yarmouth ia ser “um espectáculo sobre a vida dos imigrantes portugueses em Inglaterra e sobre o trabalho na Bernardo Mateus” (os anúncios dos anos em que a fábrica só tinha trabalhadores ingleses, e que hoje são memorabilia alojada no YouTube, pareceram-lhe, diz, “material muito sugestivo”). Mas a intermitência da produção à distância e da própria comunidade portuguesa, naturalmente flutuante, obrigaram-no a reconfigurar o projecto mais uma vez. “Era impossível manter um grupo fixo. Passava dois ou três meses sem cá vir e quando regressava as pessoas tinham desaparecido para outro trabalho, para outra cidade. Mudei de estratégia e pedi ao director de casting com que costumo trabalhar, o Zé Pires, para passar cá um mês a fazer entrevistas. À medida que ia vendo o que ele me mandava — a Victoria que foi Miss Great Yarmouth, o Bob que trabalhou na reserva ornitológica… —, fui percebendo que tinha de abrir o espectáculo a esta cidade estranha onde vêm parar tantas pessoas perdidas, tantas pessoas em fim de vida. O contraste entre os portugueses fechados na fábrica 12 horas por dia e os habitantes originais da cidade tornou-se uma via. ”Através deles, das suas histórias de infância, juventude e lágrimas nos olhos quando os filhos nasceram ou saltaram pela primeira vez no castelo insuflável vermelho com estrelas azuis e brancas, Great Yarmouth é outra vez a cidade technicolor dos circos ambulantes e dos sorvetes, dos hotéis chiques para os ricos e das pensões para a classe média, dos luna parks e das barracas de praia, dos bikers e dos mods; a cidade que se reconverteu, esgotado o ciclo de prosperidade do arenque e mal refeita da destruição da Segunda Guerra Mundial, em estância balnear de massas. Os casinos, os carrosséis, os pontões e o Jardim de Inverno, agora abandonado, enchem-se de gente feliz em férias e não apenas de casais de adolescentes com bebés ao colo ou de reformados que desistiram de andar a pé porque o mercado lhes impinge cadeiras de rodas eléctricas ou scooters de mobilidade em suaves prestações mensais. A Regent Street ainda não se chama Rua Augusta nem é este amontoado de lojas de souvenirs baratos e de roupa em “SALDOS SALDOS SALDOS”. As fábricas ainda não olharam para tantos quartos e parques de campismo vazios e pensaram que podiam fazer de Great Yarmouth um dormitório para operários polacos, lituanos e portugueses. Através deles, também, das suas histórias de perda, fracasso e noites mal dormidas, Great Yarmouth é de novo a cidade que correu mal. Uma bolsa de pobreza endémica, white trash, numa região genericamente rica, um fracasso estatístico em termos de desemprego, abandono escolar, gravidez adolescente, obesidade, doença mental, alcoolismo e abuso de heroína que nas eleições locais de 2014 deu 41% dos seus votos ao UKIP (entretanto já os reduziu a menos de 5%) e dois anos depois, no referendo do “Brexit”, se revelou a quinta cidade mais eurocéptica de toda a Inglaterra, com 71, 5% de votos “leave”. “Um lugar bizarro”, confirma Joe McIntosh, director do SeaChange Arts, o centro de criação ligado ao circo e às artes de rua que co-produziu Provisional Figures e o acolheu na Drill House. “No período vitoriano, Great Yarmouth ganhou fama como estância balnear para gente com dinheiro, daí os belos edifícios e toda a parafernália de entretenimento da marginal. Hoje continua a ser uma das três estâncias balneares mais frequentadas de Inglaterra — recebe seis milhões de visitantes por ano —, mas quando a classe média começou a ir para o estrangeiro ficou com o refugo do mercado. A pesca e a transformação do arenque, que durante séculos foram o pilar da economia local, já tinham acabado, a marinha mercante passou a operar com barcos demasiado grandes para a barra que aqui havia, e Great Yarmouth entrou numa espiral de decadência. Há famílias que não trabalham há três gerações, desde que o avô perdeu o emprego na pesca. ”O lucro gerado pelas reservas de petróleo e de gás descobertas mais recentemente passa literalmente ao largo de Great Yarmouth e dos seus quase 99 mil habitantes. O novo maná da energia eólica também. “É riqueza que não fica na cidade. Quem trabalha nesse sector tende a viver fora daqui. Restam as fábricas, e a indústria dos cuidados domiciliários, mas essas só parecem entusiasmar a mão-de-obra imigrante”, diz Joe McIntosh. Sorte, azar ou lei da oferta e da procura, enquanto o desemprego local se mantiver galopante, muitos polacos, lituanos e portugueses (mas também cabo-verdianos, angolanos, curdos, paquistaneses…) continuarão a ter aqui o seu lugar a esquartejar perus ou, como se ouve dizer num dos cafés da King’s Street, “a limpar rabos de reformados com Alzheimer”. Não será o “Brexit” a fazer os ingleses salivar com isso. Pouco passa do meio-dia, a hora em que os mais pobres dos pobres se juntam à porta do Exército da Salvação para a distribuição de comida. Raparigas de pele acastanhada pela heroína, punks de 60 e tal anos ainda com a crista intacta, só que murcha. Não há portugueses aqui. Esses caminham em passo apressado, vindos “lá do office”, onde “a assistente social não estava”. Jogam sueca no Café Tropical, SIC Notícias ligada. Trocam receitas de bolo de mármore na biblioteca, onde há um escaparate inteiro de livros sobre como lidar com a demência e permanecer são. Já terão sido mais. Na King’s Street, os cafés e as mercearias portuguesas ainda se sucedem, há sempre gente a entrar e a sair da Fernanda Lopes Hairdresser, mas o Pátio das Cantigas (“Portuguese foods, wines and delicacies”) fechou. Cátia e Hugo, que há sete anos vieram de Almada (ele à frente, “com um contrato de trabalho na Bernardo”, depois ela e os dois filhos, que entretanto já são três), têm visto muitas famílias a irem de férias para já não voltarem. “Umas dez só no ano passado. ” Na mercearia de que tomaram conta há oito meses, e que além de portugueses também abastece cabo-verdianos, angolanos e guineenses (“Essa variedade toda de feijões é por causa deles”) e ainda polacos, lituanos e moldavos que "vêm à carne e aos enchidos”, os clientes queixam-se do aumento do custo de vida, “dizem que não compensa trabalhar só para pagar as despesas”. “Há menos dinheiro, menos avios grandes. Mas vamos ficar, agora são as crianças que já não querem ir embora. O ‘Brexit’ não nos assusta, trabalhamos os dois a tempo inteiro, os miúdos estão cada um na sua escola. ”A imigração portuguesa em Great Yarmouth esteve no auge entre 2009 e 2014, o ano em que o UKIP fez o seu sinistro brilharete eleitoral. Mesmo depois desse sinal, “a votação expressiva no ‘Brexit’ foi um choque para os portugueses, não tinham noção de que não eram bem-vindos”, conta Marco Martins. “No dia seguinte muitos tiveram medo de sair à rua. De repente descobres que o teu vizinho não te quer aqui — e começam a aparecer histórias. Nessa fase senti um enorme decréscimo de interesse no projecto, havia o receio de que quiséssemos falar de política e as pessoas esquivavam-se. ” De resto, acrescenta Renzo Barsotti, a descoberta de que a comunidade portuguesa em Great Yarmouth não é verdadeiramente uma comunidade como as que caracterizaram a emigração das décadas de 50, 60 e 70, de que “é cada um por si” (“A precariedade laboral também é uma precariedade identitária, os processos de identificação e desidentificação com Portugal e com Inglaterra são contínuos, complexos e concorrentes”), foi “dura, pessoal e artisticamente”. E uma dor de cabeça para o encenador. “Estava perdido. Sabia que queria trabalhar com as histórias pessoais, mas faltava-me um corpo de texto que lhes desse chão. E então o Gonçalo M. Tavares sugeriu-me que fizesse um espectáculo sobre aquilo em que as pessoas estão a pensar enquanto matam animais. Passou a ser sobre isso. ”No processo de passar a ser sobre isso, os nove não-actores que acabaram por chegar à estreia tiveram de se transformar em animais de palco. Mesmo quando trabalharam com a sua própria verdade. Sobretudo quando trabalharam com a sua própria verdade. A verdade dos movimentos repetitivos da Carmo na linha de montagem da Bernardo (“choques eléctricos, cortar o pescoço, tomates para a China, furar o cu, tirar pulmões”), aqui convertida em número de circo. A verdade dos cabelos em desalinho do Bob em mais um dia ventoso, quando ainda não precisava de binóculos para ver o sol reflectido na penugem de uma pêga, a sua ave favorita. A verdade da receita de peru recheado que o Ivan cozinhou na Alemanha, na Suíça, na Jamaica, em Miami, no Havai, até vir parar a Great Yarmouth, este desterro para imigrantes e misfits que já não vivem, apenas vegetam. A verdade de que o Pedro nunca ficará sem um par. A verdade da filha da Ana a dançar Nirvana em versão Patti Smith. A verdade da tatuagem que o Richard, coração partido, esfolou com uma lixa depois de uma noite de copos e drogaria. A verdade do casting que poderia ter feito da Victoria uma das Spice Girls, em vez de uma Miss Great Yarmouth. A verdade dos invernos em que dormia num quarto diferente todas as noites e dos verões em que ficava sem quarto para dormir, e de que o Peter, cujos pais geriram um hotel em Great Yarmouth, não quer falar. A verdade dos dois amores que o Sérgio teve no circo, e que estão longe de chegar ao amor que o vemos a gritar pelos pais, antes de abrir as asas do anjo que tem nas costas e voar. Só dois dos nove não-actores de Provisional Figures alguma vez tinham entrado num teatro. Nenhum tinha lido os manifestos de Marinetti, Yvonne Rainer ou Mierle Laderman Ukeles. Quase todos parecem ter nascido para isto. “A primeira regra do trabalho com não-actores é não os pôr a representar personagens”, explica Marco Martins na sessão de perguntas e respostas que a Drill House abre na noite de estreia, minutos após o fim da peça e o momento Cristiano Ronaldo do Sérgio — que, claro, com a sua cicatriz de uma ponta à outra da nádega e as suas lágrimas verdadeiras roubou o palco como estava escrito (lá fora, o filho de Victoria, que estuda teatro na universidade, comenta que “nasceu uma estrela, um performer nato”). Peter, o primeiro a entrar em cena, já não esfrega as mãos uma na outra para libertar a tensão dos últimos instantes antes de as luzes se apagarem, e fala agora pelos cotovelos dos amigos portugueses que fez nos ensaios, e de como passou a andar para todo o lado com o Sérgio, apesar de esse veterano em Great Yarmouth que antes disso foi funcionário da limpeza no aeroporto de Gatwick e embalador de lasanhas numa fábrica de Bristol ainda não conseguir completar uma frase em inglês ao fim destes anos todos. Quase na outra ponta da meia-lua de cadeiras, Bob continua “a tremer como uma folha”: quando o foco se acendeu em cima dele, a marcação que dá início ao espectáculo, percebeu que não conseguia arrancar nenhuma palavra da boca. Foi já no fim de um processo de criação particularmente lento, e para o qual precisou de recorrer a “facilitadores" (Nuno Lopes, Sara Carinhas, Romeu Runa e Victor Hugo Pontes), que Marco Martins percebeu que os dois pólos do espectáculo só podiam ser esses “dois homens da mesma idade, mais ou menos da mesma altura, mas com histórias de vida radicalmente diferentes” e, o que também interessava, “uma relação com os animais fatalmente distinta”: “Antes de trabalhar na manutenção de um parque de auto-caravanas, o Bob passou muitos anos em projectos de conservação da natureza. O Sérgio andou com um circo, teve aquela história com a rapariga das cobras, e depois matou perus na Bernardo. ”Naturalmente, o corpo impôs-se num espectáculo que, por causa das assimetrias no domínio da língua, nunca teria podido depender exclusivamente do texto. Mas impôs-se também porque “a própria morfologia de cada um diz muito acerca do que foram estas vidas”, aponta o encenador, “basta olhar para a diferença entre a Carmo e o Bob”: ela pequena e densa, os músculos deixados a amolecer à sua sorte desde a reforma antecipada, ele esguio e frágil (“como uma folha”, de facto), as bochechas mirradas praticamente coladas aos maxilares sem dentes. Estes corpos contam desamores, internamentos em unidades psiquiátricas, suicídios falhados. Duas gravidezes, anos a fio no Colégio Militar, uma nova vida a dar aulas de zumba. E contam uma crise. Não apenas porque Marco Martins a tenha querido contar, mas porque ela estava lá: há uma diferença entre a poesia destas vidas e a sua pornografia. “Não gosto daqueles espectáculos comunitários em que cada um vai lá lamentar-se como se fosse o café do bairro organizado em forma de palco. Talvez venha daí a minha obsessão de levar isto para um lado que se sobreponha ao testemunho. Na verdade, quando lhes peço para me contarem as suas histórias, dou por mim a interessar-me sempre pelas coisas mais poéticas, não pelas mais gráficas. E depois esforço-me por encontrar uma zona em que o intérprete sinta que o que está a contar é importante e significativo não só para mim mas também para ele. É muito complicado. E muito delicado. Queres sempre saber mais acerca destas pessoas. A realidade nunca deixa de estar à flor da pele porque aqui tudo muda diariamente de uma forma drástica — é isso que torna Great Yarmouth tão apaixonante. ”Great Yarmouth. Uma sucessão de casas de máquinas com nomes flamejantes (Caesar Palace, Silver Flipper, Flamingo, Circus Circus, Golden Nugget, The Mint, Gold Rush, Leisure Island), e no fim o bingo dos anos 60 em que dois cartões só custam dez pence. Um pub de esquina onde se chega ao fim da tarde para comer caracóis e ver reality-shows da TVI. Hotéis que agora são residências para seniores de classe média-baixa porque o clima aqui é o melhor de toda a ilha — mesmo com esta ventania. Um esloveno grande e volumoso que chegou para ser catering manager de uma rede de casinos e acabou a fazer voluntariado no centro de refugiados local, entre 1001 outras actividades comunitárias, porque quando regressou ao lugar onde nasceu percebeu que os amigos casaram/emigraram/morreram e ele passou a ser um estranho: Ivan, que ainda hoje não entende como é que Marco Martins o quis no elenco final (dos 15 participantes do último workshop foram escolhidos apenas nove), se havia “pessoas mais profissionais” e ele nem sequer pode dar um passo sem as muletas. Uma portuguesa de Sintra que há 15 anos, “por causa de um amor proibido e de um capricho que se tornou um pesadelo” (“Eu achava que a vida lá fora era um mar de rosas, não um dia-a-dia árduo de desgaste físico e psicológico”), respondeu a um anúncio e se viu a esquartejar perus de noite e a dormir em quartos de pensão partilhados de dia (ou foi ao contrário?): Carmo, que em Provisional Figures representa “a fábrica em si e o que a maior parte da imigração portuguesa viveu” e que desde os ensaios, diz-nos o filho de 22 anos, atende o telefone com outra voz. Um inglês da cidade grande mais próxima que só veio a Great Yarmouth beber uma cerveja com a irmã e ficou a fazer uma peça de teatro com “oito completos estranhos”: Richard, um trabalhador da construção civil que precisou de se expor no palco para “fechar um capítulo” pessoal que mete uma tatuagem e uma ex-mulher, e que daqui só sai ou para o próximo filme de Marco Martins (“Seria fantástico, seria o ideal”) ou para o Sul da Europa, onde pretende abrir um parque de campismo para motoqueiros com a nova namorada. Uma descendente de cabo-verdianos que saiu de Oeiras para se juntar ao irmão em Londres e que ao fim de dez anos “daquela vida agitada” desembarcou em Great Yarmouth para umas férias e decidiu ficar, por causa do sol e de uma certa vida portuguesa que encontrou nos cafés e nos minimercados: Ana, a agitadora local, que fundou uma associação de dança comunitária, a Afrolusa, e entretanto abriu o seu próprio negócio de aulas de zumba. O filho de um guarda-costeiro que cresceu junto ao rio, a apanhar boleias dos barcos-piloto, quando ainda não havia estrangeiros em Great Yarmouth a não ser a rapariga asiática da escola e “o chinês do take-away”: Bob, uma cabeça tão extraordinária e tão disponível para tudo (“Nunca deves deixar de aprender, é fixe fazeres coisas que nunca fizeste antes: expandem-te como pessoa”) que na vida já estudou as migrações das salamandras, já tratou sozinho dos oito hectares de uma reserva ornitológica, já consertou telhados, e agora é um intérprete em digressão internacional. Um moçambicano que o pai meteu com dez anos num avião para Lisboa, direcção Colégio Militar, “para dar um futuro ao puto”, e que depois de reprovar no último ano veio parar a Inglaterra, onde entre outros expedientes limpou o chão da Bernard Matthews (bem menos mau “do que tirar as tripas ou estar no deboning”): Pedro, que entretanto descobriu que numa cidade onde “as pessoas vêm morrer” — “descansar em paz, era assim que eu devia ter dito” — podia ganhar a vida a cuidar de idosos e deficientes, pelo menos “se não der certo andar pelo mundo como rapper”. Um inglês que aos 12 anos veio com os pais abrir um hotel em Great Yarmouth e depois se entusiasmou quando regressou, já adulto, “com a quantidade de imigrantes”: Peter, que não sabia se ia conseguir conseguir levar Provisional Figures até ao fim porque quando chegou aos ensaios vinha de “uma série de problemas pessoais” que lhe deixaram “a auto-confiança muito em baixo”, e depois ainda passou por “uma ruptura amorosa”. Um português de olhos azuis e rosto de actor de cinema que ainda sabe de cor todos os transportes que teve de apanhar para se mudar de Bristol, onde rebentou duas hérnias inguinais a levantar tabuleiros industriais de molhos de lasanha, para Great Yarmouth, onde trabalhou 15 anos na Bernardo até “um acidente na sanitation” o deixar incapaz: Sérgio, para quem todos os dias são iguais, “um cafezito” de manhã, “uma volta até ao shopping para ver as lojas de uma libra” pela tarde, “um copito” no Galante ao cair da noite. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Uma ex-Miss Great Yarmouth que nos últimos meses, “em vez de continuar sentada ao sol no jardim a detestar a vida por ter fodido tudo com as drogas”, teve um trabalho, coisa que já não lhe acontecia há nove anos: Victoria, a quem este espectáculo deu “uma razão para viver”. Ivan, Carmo, Richard, Ana, Bob, Pedro, Peter, Sérgio, Victoria. Também conhecidos por Great Yarmouth. O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto e do Teatro Maria Matos
REFERÊNCIAS:
Os Emmys foram um jogo Netflix contra HBO... e no fim ganhou A Guerra dos Tronos
Uma noite marcada por um pedido de casamento em palco: os Emmys deram 23 prémios a cada um dos dois grandes "canais" concorrentes e foram um espectáculo entre o poder do blockbuster dos dragões e o poder da comédia feminina da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel. Veja a lista dos principais vencedores. (...)

Os Emmys foram um jogo Netflix contra HBO... e no fim ganhou A Guerra dos Tronos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2018-11-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma noite marcada por um pedido de casamento em palco: os Emmys deram 23 prémios a cada um dos dois grandes "canais" concorrentes e foram um espectáculo entre o poder do blockbuster dos dragões e o poder da comédia feminina da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel. Veja a lista dos principais vencedores.
TEXTO: A noite dos Emmys saldou-se com mais uma vitória de A Guerra dos Tronos e a distinção unânime da comédia da Amazon The Marvelous Mrs. Maisel nas principais categorias – e o que é que isso diz sobre a televisão hoje? Que depois de, em 2017, o streaming ter conquistado o primeiro Emmy de melhor série dramática com The Handmaid’s Tale, fenómeno semelhante se produziu este ano na comédia. E diz-nos que a revolução Netflix já está no mesmo patamar que o modelo de distribuição convencional e conseguiu, nesta 70. ª edição dos Emmys, tantos prémios quanto a suspeita do costume há 17 anos, a HBO. Mas sobretudo confirma que na televisão ninguém pára os blockbusters: mesmo não estando há mais de um ano no ar, a fantasia de dragões e gelo criada a partir dos livros de George R. R. Martin foi a mais premiada. A cerimónia dos Emmys que decorreu na madrugada desta terça-feira em Los Angeles não foi uma noite de grandes afirmações sobre o estado da arte nem sobre os muitos temas que trespassaram este pequeno grande meio. E não por falta de tentativas, mas lá iremos. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas Televisivas rematou uma noite longa com a entrega do Emmy de Melhor Drama à série A Guerra dos Tronos (HBO/SyFy/TVSéries), cuja ausência no ano passado (dada a sua tardia data de estreia) permitiu em parte a vitória de The Handmaid’s Tale (Hulu/Nos Play), que era também a sua mais forte concorrente em 2018. Também distinguiu Peter Dinklage como actor secundário na mesma série – o prémio para melhor actriz secundária numa série dramática foi para Thandie Newton, pela sua prestação em Westworld (HBO/TVSéries). O melhor actor dramático foi Matthew Rhys pela última temporada de The Americans (FX/Fox Crime), série que também recebeu o prémio de argumento mas que viu Keri Russell perder para Claire Foy, que no seu último ano como rainha em The Crown foi premiada como melhor actriz dramática. A real série Netflix foi também distinguida pela realização de Stephen Daldry. A comédia foi uma das duas secções dos Emmys em que a dispersão da noite teve a sua excepção, com The Marvelous Mrs. Maisel a dar o prémio de melhor série à Amazon, de melhor actriz a Rachel Bresnahan, de melhor actriz secundária a Alex Borstein e de melhor argumento e realização a Amy Sherman-Palladino. A autora da popular Gilmore Girls tornou-se assim na primeira mulher a acumular esses dois Emmys. Bill Hader e Henry Winkler venceram respectivamente como protagonista e actor secundário da nova série Barry (HBO/TVSéries). A outra categoria que viu os prémios concentrarem-se foi a de série limitada, com a favorita American Crime Story: O Assassinato de Versace (FX/Fox Life) a ser distinguida pelo protagonista Darren Criss e pelo realizador Ryan Murphy, que subiria ao palco perto do fim da cerimónia também para recolher o Emmy de Melhor Série Limitada – batendo Genius: Picasso (National Geographic), Godless (Netflix), esta consolada pelos prémios de actuação para Jeff Daniels e Merritt Wever, e outras séries ainda por estrear em Portugal. Contra o favoritismo de Laura Dern pelo filme The Tale (HBO/TVCine), Regina King recebeu o prémio para a actuação de uma actriz numa série limitada, por Seven Seconds, também Netflix. O serviço de streaming receberia ainda o prémio de escrita por Black Mirror, pelo episódio USS Callister, batendo, entre outros, David Lynch e Mark Frost por Twin Peaks. Last Week Tonight, de John Oliver (HBO/RTP3), bateu Trevor Noah ou Stephen Colbert, e Saturday Night Live foi a melhor série de variedades. Mas, posto tudo isto, um dos pontos altos da cerimónia foi mesmo o pedido de casamento do realizador Glenn Weiss, que dirigiu os últimos Óscares e aproveitou o seu Emmy para surpreender a namorada e mergulhar uma plateia de estrelas em ovação e lágrimas, gerar uma leva de alertas noticiosos e pôr o Twitter em alvoroço romântico. “O melhor momento da noite”, para o Guardian, suplantou em parte os momentos criados pela Academia e pelos anfitriões da cerimónia, Colin Jost e Michael Che, para serem memoráveis. E distraiu momentaneamente o grande público do que fica no fim do fogo-de-artifício que enfeitou o número musical de abertura – as contas e os jogos de poder entre canais e produtores, mas também o futuro da televisão. “Com os contributos espantosos das pessoas nesta sala, podemos manter a televisão durante uns cinco, seis anos no máximo”, brincava Colin Jost. Os Emmys são os prémios mais importantes da televisão norte-americana, mas também uma cerimónia e uma academia que lutam contra o desfasamento – entre o meio televisivo, as suas audiências e as novas plataformas, entre as séries nomeadas e/ou premiadas e sua popularidade ou valorização crítica. Já lhes foi apontada falta de frescura, pela omissão dos produtos mais disruptivos (este ano, por exemplo, não houve grandes nomeações para Twin Peaks nem vitórias para Atlanta, por exemplo), e já foram pretexto para um estudo do Katz Media Group que, em 2017, o ano de The Handmaid’s Tale, concluía que a maioria dos americanos nunca tinha visto ou sequer ouvido falar de grande parte das séries nomeadas, devido à ausência de séries dos canais generalistas nesse panteão (a excepção este ano foi This is Us mas Uma Família Muito Moderna ou A Teoria do Big Bang não constaram da lista). Os prémios da indústria televisiva constituem, no fundo, um espelho polido da situação actual da televisão, e é aí que entra A Guerra dos Tronos, a série que, sendo da televisão por subscrição, e ainda por cima premium, é um arrasador fenómeno de massas que mal voltou a entrar na corrida levou os prémios que pertenceram à dura série The Handmaid's Tale no primeiro ano de presidência Trump e três semanas antes da eclosão do movimento MeToo. Foi em parte sob as suas sombras que decorreu uma noite partilhada com “as muitas pessoas talentosas e criativas que ainda não foram apanhadas”, como brincou o apresentador Michael Che no número inicial da cerimónia, e com os “milhares na audiência e com as centenas em casa”, como resumiu o outro apresentador, Colin Jost. A sombra do dragão parecia tímida, só com dois grandes prémios, mas a noite terminou mesmo como o célebre aforismo do futebol segundo o qual são 11 contra 11, mas no fim ganha sempre a eficaz máquina da Alemanha – neste caso, a eficaz máquina de A Guerra dos Tronos, que em 2019 chegará ao fim depois de anos de domínio, e que com 45 Emmys já é a série mais premiada de sempre. Com os seus nove prémios em 2018 (as contas finais incluem também os Emmys atribuídos na cerimónia prévia Creative Arts), permitiu em parte que as contas continuassem equilibradas para a HBO – ou empatadas. A histórica casa de Os Sopranos ou The Wire e a nova morada online de Black Mirror ou The Crown receberam 23 Emmys cada depois de, pela primeira vez na história, o Netflix ter tido mais nomeações para os Emmys (112) do que a HBO (108). A Amazon levou mais oito prémios, todos de The Marvelous Mrs. Maisel (cinco na cerimónia desta noite e mais três nos Creative Arts), para o campo do streaming, a que se juntaram os quatro do Hulu, somando um total de 35 distinções para estes novos grandes produtores de TV que tanto investem – é célebre a revelação de que o Netflix gastará 6800 milhões de euros em conteúdos contra os dois mil milhões de um canal incumbente como a HBO. A NBC foi a terceira estrutura mais premiada, com 16 Emmys. Nos últimos dias, escreveu a imprensa especializada, as festas dos Emmys e os mais de cem eventos de promoção para a cerimónia foram dominadas pelas conversas sobre as mudanças no sector, desde as grandes fusões Disney-Fox até às consequências do vendaval de denúncias de casos de assédio, como a saída do poderoso Les Moonves da presidência do canal generalista CBS. Mas na cerimónia propriamente dita os temas foram outros – a ausência de referências directas ao Presidente dos EUA, as mensagens sobre género e a comunidade LGBTQ de Ryan Murphy, e sobretudo a diversidade. Celebrou-se o grupo de nomeados mais diversificado de sempre – “estamos um passo mais perto de um Sheldon negro”, brincaria Kenan Thompson no número musical que dividiu com Kate McKinnon, Kristen Bell e Titus Burgess, entre outros –, e constatou-se que isso é uma trémula vitória – “vêem, não havia nenhuma e agora há uma”, diriam sobre a primeira nomeação para uma actriz de origem asiática no drama, para Sandra Oh, por Killing Eve (BBC America). Os prémios nas principais categorias (vencedores a negrito)Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Empresas e membros do Partido Republicano em defesa do casamento gay
Facebook, Google, Apple e Microsoft e outras 375 empresas pedem ao Supremo que estabeleça a igualdade no casamento em todos os estados, sendo acompanhados por 303 antigas e actuais personalidades ligadas aos republicanos. (...)

Empresas e membros do Partido Republicano em defesa do casamento gay
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 18 | Sentimento 0.416
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Facebook, Google, Apple e Microsoft e outras 375 empresas pedem ao Supremo que estabeleça a igualdade no casamento em todos os estados, sendo acompanhados por 303 antigas e actuais personalidades ligadas aos republicanos.
TEXTO: Quase 400 empresas norte-americanas e 303 personalidades ligadas ao Partido Republicano defendem que o casamento entre pessoas do mesmo sexo deve ser legalizado em todo o território dos Estados Unidos, em dois documentos enviados ao Supremo Tribunal. O Supremo vai debruçar-se no próximo mês sobre duas questões fundamentais relacionadas com quatro processos distintos – por um lado, se os cidadãos norte-americanos têm o direito constitucional de se casarem com pessoas do mesmo sexo em qualquer estado; por outro lado, se os estados que ainda se opõem à igualdade no casamento devem reconhecer a legalidade dos casamentos celebrados nos estados que os autorizam. O que se espera é que a decisão final do Supremo (que será anunciada até Junho) ponha fim à confusão legal no país sobre os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, e que estabeleça um critério único a nível federal. O mais provável, de acordo com a tendência dos últimos anos, é que a igualdade no casamento passe a ser reconhecida em todo o território dos EUA. Para fazerem ouvir a sua voz, as empresas e as personalidades ligadas ao Partido Republicano recorreram a uma figura legal semelhante à que permite aos cidadãos portugueses constituirem-se como assistentes – no caso norte-americano, quando alguém se envolve num processo como amicus curiae, o objectivo é fazer chegar ao tribunal um conjunto de argumentos que considera não estar a ser apreciado pelos juízes. Num desses documentos, 379 empresas, desde pequenos negócios a gigantes da tecnologia como o Facebook, a Apple, o Google ou a Amazon (mas também de outras áreas, como a Coca-Cola, a Pepsi, a Disney, a CBS ou a Goldman Sachs), defendem que o Supremo deve decidir a favor da igualdade no casamento em todo o território dos EUA, baseando os seus argumentos nas perdas económicas e financeiras provocadas pela actual confusão na legislação. "A inconsistente legislação estadual sobre o casamento constitui um fardo económico acrescido para as empresas americanas, com um custo estimado em mil milhões de dólares [cerca de 905 milhões de euros] por ano", lê-se no documento. "A nossa capacidade para crescer e manter os nossos negócios através de medidas para atrair e manter os melhores talentos está a ser prejudicada. A miscelânea de leis estaduais aplicáveis ao casamento entre pessoas do mesmo sexo prejudica os nossos interesses e as relações entre empregador e empregado", argumentam. As empresas queixam-se, em particular, da ginástica que têm de fazer para acomodar vários planos de benefícios sociais para os seus trabalhadores, e da dificuldade em atrair potenciais funcionários que são casados com pessoas do mesmo sexo para estados onde essa ligação ainda não é reconhecida. Num outro documento, 303 republicanos – entre os quais o antigo mayor de Nova Iorque Rudolph Giuliani, 23 actuais e antigos membros do Congresso e sete actuais e antigos governadores – juntaram-se com o mesmo objectivo. O autor da proposta é Ken Mehlman, antigo presidente da Comissão Nacional Republicana. Na apresentação do documento, Mehlman salientou que "os republicanos costumam ter um grande respeito pelas decisões dos tribunais, em particular pelas do Supremo Tribunal". "Os dados indicam que a aceitação pública [da igualdade no casamento] tem crescido muito rapidamente, e de forma muito significativa", sublinhou. No texto enviado ao Supremo, antigos e actuais membros e conselheiros do Partido Republicano consideram que as leis que excluem os casais de pessoas do mesmo sexo da "instituição do casamento civil" são "inconsistentes com as promessas constitucionais de protecção e de igualdade de tratamento". Por trás desta iniciativa estará também o desejo de afastar este tema da campanha eleitoral para as presidenciais de 2016 – depois da derrota de Mitt Romney contra Barack Obama, em 2012, um relatório da Comissão Nacional Republicana sublinhou que o partido teria de aproximar-se mais "dos hispânicos, negros, asiáticos e dos gays americanos". Em 2013, o Supremo norte-americano decidiu, por cinco votos a favor e quatro contra, que uma das cláusulas mais importantes da Lei de Defesa do Casamento (DOMA, na sigla original) é inconstitucional – contrariando a Secção 3 dessa lei, aprovada em 1996, o Supremo considerou que é contrário à Constituição negar a validade de um casamento entre pessoas do mesmo sexo.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA