Celeste Ng e o tempo em que a utopia era possível
Pequenos Fogos em Todo o Lado fala de raça e privilégio num subúrbio quase perfeito. Eram os anos 90 e a época do preconceito parecia estar a chegar ao fim. Foi antes da explosão da Internet e do 11 de Setembro. O livro está a ser adaptado à televisão. (...)

Celeste Ng e o tempo em que a utopia era possível
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pequenos Fogos em Todo o Lado fala de raça e privilégio num subúrbio quase perfeito. Eram os anos 90 e a época do preconceito parecia estar a chegar ao fim. Foi antes da explosão da Internet e do 11 de Setembro. O livro está a ser adaptado à televisão.
TEXTO: Uma cidade nos subúrbio de Cleveland, Ohio, é o cenário do segundo romance de Celeste Ng (o apelido lê-se ing), a filha de imigrantes chineses nascida nos EUA em 1980 que viu o seu nome nos principais suplementos literários americanos e o livro no escaparates e montras das principais livrarias americanas. Pequenos Fogos em Todo o Lado foi uma das sensações de 2017, está traduzido em 30 línguas e põe em confronto duas famílias ficcionais muito diferentes, os Richardsons e os Warren, num lugar bem real: Shaker Heights. “Em Shaker Heighs havia um plano para tudo. Quando a cidade fora criada em 1912 — uma das primeiras comunidades planeadas da nação —, as escolas tinham sido localizadas de forma que todas as crianças pudessem ir a pé para as aulas sem atravessar nenhuma rua principal; as ruas secundárias iam dar a grandes avenidas, com paragens estrategicamente colocadas ao longo da via-férrea para transportar quem trabalhasse no centro de Cleveland. Aliás, o lema da cidade era (. . . ) ‘A maior parte das comunidades limita-se a acontecer; as melhores são planeadas’: a filosofia era a e que tudo podia — e devia — ser planeado e de que, ao fazê-lo, se evitava o inapropriado, o desagradável e o desastroso. ” Celeste Ng cresceu nesse lugar. Autoria: Celeste Ng (Trad. Inês Dias) Relógio d’Água Ler excerto“Não é uma cidade culturalmente muito interessante, fica no meio do país, mas é um lugar muito bom para se crescer; tem escolas públicas muito boas, e foi por isso que os meus pais decidiram mudar-se para lá. E é conhecida por ser muito bonita, muito arborizada, rica, politicamente muito progressista e racialmente muito diversificada. Quando lá vivi, nos anos 90, a população era quase cinquenta por cento branca e cinquenta por cento negra, o que era muito invulgar”, diz ao Ípsilon a escritora que faz parte de um grupo racial minoritário, tradicionalmente designado de “outros”, onde se incluem os asiáticos. “Quando andava no liceu falava-se muito abertamente sobre raça e preconceito, exclusão, falava-se do perigo do estereótipo, e eu achava que essa discussão acontecia no resto do país, que em todo o lado se falava disso abertamente. Até que cheguei à universidade”, conta, com uma gargalhada a remeter para uma ingenuidade perdida e estabelecendo o paralelo com o momento do romance, os anos 90 num país que acreditava ter resolvido parte dos seus problemas e que o único rimo era o progresso não apenas económico mas também de costumes. “Era uma cidade onde se acreditava que todos os problemas seriam resolvidos. Quis olhar para esse idealismo. ”O romance arranca com uma tragédia e um mistério por resolver. A casa onde vivem os Richardsons arde e a família, constituída por um casal e quatro filhos adolescentes, vê comprometido um futuro planeado. O fogo acontece quando outra família, composta por uma mulher e uma filha pré-adolescente, sai da cidade, que passa a ser mais um lugar num percurso feito de permanências fugazes. É a família Warren a viver em permanente itinerância. O acontecimento é o mote para Celeste Ng ir à génese não apenas da comunidade, mas também à causa do incêndio transformador. Ou seja, é um romance que começa pelo fim de uma utopia. No caso de Shaker Heights, ela foi fundada por um grupo conhecido pelos shakers que se organizaram à volta de um ideal de harmonia. Eles foram embora daquele lugar, mas lugar manteve-os no seu nome, génese de uma sociedade ideal. “Eles queriam ser uma utopia, acreditavam na possibilidade de uma sociedade perfeita. Ou seja, a cidade foi fundada na ideia de que se pode planear a perfeição”, continua Celeste Ng, que justifica desta forma a razão de situar a acção nos anos 90. “Eu conhecia aquele tempo, andava no liceu como os filhos das duas famílias. Mas também sabia que aquelas personagens iriam estar a guardar segredos umas às outras e por isso teria de ser uma era antes do boom da Internet, pré-Facebook, pré-telemóveis, em que era possível esconder coisas do passado. Por outro lado, a memória que tenho desses anos é a de que nos Estados Unidos achávamos que estava quase tudo resolvido, que a economia estava bem, a gasolina era barata, uma coisa chamada Internet parecia ser tremenda; tínhamos um presidente liberal, as mulheres estavam a chegar ao poder, estávamos a resolver problemas raciais. Ou seja, tudo estava a ficar melhor. E era o tempo pré-11 de Setembro. Havia um sentimento de complacência. Claro que olhando para trás sabemos que não era verdade. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E há o paralelo entre achar que tudo está resolvido e a família pretensamente ideal do livro, os Richardsons, que também acha que tem tudo sob controlo. “Mas pouco depois vem o escândalo Monica Lewinsky que mostra que o presidente não era quem pensávamos que era, e aconteceu o 11 de Setembro e rebentou a bolha de pensarmos que sabíamos tudo. ” Na ficção há isso e o incêndio que desencadeia rupturas e o fim de uma perfeição que não existia. “O romance começou com os Richardson. Sabia que queria escrever sobre Shaker Heights e tentei imaginar uma família que encarnasse essa comunidade, uma espécie de ‘e se Shaker Heights fosse uma família?’ E depois pensei em quem poderia ter contacto com eles e virasse aquele mundo de pernas para o ar. Teria de ser uma família com outras percurso, uma família que deixa os Richardson confusos e intrigados. Depois foi deixar que entrassem em conflito. ”E tudo parece acontecer com a cadência e o formato próximo de uma série de televisão. O mistério vai-se adensando, com as personagens a revelaram fragilidades pessoais, uma intimidade em que o leitor vai penetrando até se sentir cúmplice, parte da trama que Celeste mostra de modo eficaz. “Não tinha pesando nessa estrutura de série de televisão, mas faz sentido. Pensei antes que quando começo a ler um livro gosto de me sentir implicada no que está a acontecer, sentir que alguma coisa está a acontecer e essa coisa irá representar grande mudança nas personagens. Como autora, quero que esse percurso também seja interessante para mim e quero levar o leitor comigo nessa descoberta. ”À eficácia narrativa junta-se a pertinência política. Escreve sobre raça e privilégio no passado e o que ecoa é o presente em que o livro é publicado. “São os temas a que volto sempre na minha escrita porque são coisas em que penso muito na minha vida. Ser uma americana não branca, ser uma mulher e ser mãe faz-me pensar bastante no modo como o mundo está moldado, faz-me pensar em como será o futuro do meu filho que tem sete anos e é bi-racial. E lidar com raça, em especial na actual atmosfera política, afecta todos os aspectos da minha vida. Nunca me sento com a ideia de que vou escrever um livro sobre mães e sobre raça, mas é o mundo em que vivo e por isso também é o mundo em que vivem as minhas personagens e os assuntos com que lidam vêm desse mundo. Neste momento penso que não é possível ser escritor sem se ser político. Sou mulher, não branca, sou mãe, sou filha de imigrantes; toda a minha existência é política. ”
REFERÊNCIAS:
Devemos ser bilingues?
Pais, professores e bilingues de várias idades contam uma experiência que alerta para os perigos de generalizar quando se diz apenas que saber mais do que uma língua é meio caminho para se ser bem-sucedido. (...)

Devemos ser bilingues?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pais, professores e bilingues de várias idades contam uma experiência que alerta para os perigos de generalizar quando se diz apenas que saber mais do que uma língua é meio caminho para se ser bem-sucedido.
TEXTO: Falar e escrever mais do que uma língua de modo fluente traz benefícios cognitivos e maior agilidade cerebral. Mas a vantagem pode estar a ser sobrevalorizada por estudiosos e educadores quando não fazem entrar nessa equação variáveis culturais, sociais, individuais. Frederico Lourenço, escritor, professor catedrático, começou a falar duas línguas desde os dois anos, quando a família foi viver para Oxford, Inglaterra. “Já falava português, claro, quando partimos, mas como fiz a escolaridade em inglês até aos dez anos, posso dizer que o inglês se tornou a minha primeira língua. Na verdade, eu falava muito mal português até termos voltado para Portugal. Só me tornei bilingue a partir dos dez anos. Antes disso, basicamente eu era uma criança anglófona”, conta, antes de afirmar que agora, aos 51 anos, se sente verdadeiramente bilingue, ou seja, fala e escrita, razão e emoção, desenrolam-se com a mesma naturalidade em inglês e em português. Thomas Manuel tem oito anos e quase desde que nasceu que está exposto a quatro línguas. O português do pai e do país onde vive, Portugal, o holandês — ou neerlandês — em que a mãe sempre lhe falou por ser holandesa, o inglês em que os pais comunicam entre si e o alemão que começou a aprender aos três anos quando por motivos profissionais os pais passaram um período da sua vida em Bamberg, uma pequena cidade no Norte da Baviera, e Thomas foi para uma creche. “Não falava uma palavra de alemão, mas ao fim de dois meses estava integrado e percebia tudo o que se lhe dizia”, conta o pai, o jornalista e escritor José Riço Direitinho (colaborador do PÚBLICO). Quando a família voltou a Portugal, um ano depois, e para “uma integração menos dolorosa”, Thomas entrou para a Escola Alemã de Lisboa onde estuda Alemão como língua-mãe. Agora escreve e fala as duas línguas. Não escreve em holandês, entende inglês, e no português que Thomas fala não se nota o mínimo sotaque. “Eu sou português”, diz sem hesitar ainda que veja na televisão os jogos de futebol do Borussia de Dortmund, mesmo sendo adepto do Futebol Clube do Porto, os desenhos animados sejam em holandês e em tempos tivesse confessado ao pai que sonhava em alemão. “Agora já não”, corrige, “sonho em português”. As infâncias de Frederico e Thomas pertencem a tempos diferentes, com acesso e exposição também diferentes a diferentes línguas, mas na infância de um como na do outro já ecoava o pensamento de Wittgenstein expresso no seu Tractatus Logico-Philosophicus (1922): “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, uma frase que serviu à revista New Yorker para lançar uma série de estudos e um artigo publicado no início do ano, em que encetava uma discussão sob o título Ser bilingue é mesmo uma vantagem? Começava por inventariar as vantagens cognitivas de falar várias línguas. Não apenas como ferramenta profissional, social, cultural mas como algo que afecta de forma positiva a actividade cerebral. À partida parece pacífico defender esta ideia sem exclusões de parte, mas muitos professores, terapeutas de fala e educadores com quem a Revista 2 falou juntam-se numa conclusão em coro: “É perigoso generalizar. ”A cientista explicava então o mecanismo de forma simples: “Temos um sistema no cérebro, o sistema de controlo executivo. A sua tarefa é a de nos manter focados no que é mais relevante, ignorando distracções. É o que possibilita guardar duas coisas distintas na mente ao mesmo tempo e escolher entre elas. Quando temos duas línguas e as usamos regularmente, as redes do cérebro que trabalham ao mesmo tempo que falamos activam-se e o sistema de controlo executivo salta por cima de tudo o resto e responde apenas ao que é relevante naquele momento. Os bilingues usam mais esse sistema e é esse uso frequente que o torna mais eficiente. ”É neste pressuposto que muitos especialistas sustentam a teoria de que ser bilingue ou multilingue tem efeitos no atraso da demência, na prevenção de doenças como o Alzheimer ou na ideia de que um bilingue é mais capaz em actividades criativas ou em cálculo matemático. “Isso pode ser ou não verdade”, afirmou à Revista 2 Craig Monaghan, director da St. Julian’s School, uma escola inglesa em Carcavelos. “Se assim fosse, imagino que os rankings PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, coordenado pela OCDE desde 2000] ligassem os elevados resultados em Matemática ou Álgebra com estudantes multilingues. No nosso caso, não é algo que tenhamos explorado, mas a maioria dos nossos estudantes é bilingue e tem excelentes resultados a Matemática. ” Poderiam concluir de forma um pouco simplista, acrescenta, que “existe uma correlação”. Na Escola Alemã de Lisboa, a maioria dos alunos também é bilingue, mas mais do que ter essa característica ou capacidade, o maior ou menor desafio que se coloca a essas crianças parte dos pais, ou dos educadores; eles são os intérpretes “de uma aprendizagem que é simultaneamente cognitiva relativamente às realidades que se lhes deparam, mas também do próprio fenómeno do bilinguismo”, refere José Valentim, subdirector daquela escola onde é também responsável pelo departamento de Português. “A criança, de início, apresenta uma única representação cognitiva para duas traduções diferentes e quando começa a frequentar o jardim de infância o seu cérebro possui mais do dobro da actividade em comparação com o do adulto. É nessa altura que a criança se apresenta mais aberta a novas aprendizagens, às descobertas e à pesquisa. Embora tenham decorrido muitas décadas, a teoria de Bloomfield [Leonard Bloomfield, 1987-1949, linguista] de que o controlo nativo de duas línguas nos primeiros anos é mais efectivo continua actual”, defende, apresentando dados da sua própria experiência. “Aos cinco anos, a criança que não enveredou por esse processo já domina a sua própria língua. Apresenta-se desde o início com uma flexibilidade cerebral para os registos que lhe são transmitidos. Através da audição repetida, do reforço positivo e do estímulo, e através de uma metodologia motivante e diversificada, reage espontaneamente, estabelecendo-se uma interacção recíproca entre os intervenientes no processo e, não menos importante, entre as línguas faladas e as próprias culturas transmitidas. ”E, mais uma vez, a ressalva: “O sucesso depende muito de outros factores, como as condições sociais, económicas, históricas e psicológicas, mas temos de concordar que, uma vez conseguido, permite alargar horizontes e enfrentar novos desafios”. Tira, no entanto, uma conclusão: “Os alunos bilingues desenvolvem capacidades especiais por se verem confrontados com duas realidades linguísticas em simultâneo, exigindo deles uma estruturação mental e uma predisposição para um pensamento lógico, ainda mais apurado no caso do alemão, por se tratar de uma língua com essas características. As estruturas gramaticais, a construção sintáctica das frases e o próprio léxico da língua, bem como a forma como os alemães estruturam o seu pensamento e apresentam os seus argumentos, organizando, esquematizando e planeando antecipadamente, são contributo importante que favorece e potencia o sucesso desse tipo de alunos. ”Tiveram de ser “um pouco criativos” para conseguir integrar o número cada vez maior de alunos estrangeiros que lhes iam chegando. Várias nacionalidades, vários níveis de identificação com o português, a língua de ensino naquela escola. Além de aulas adaptadas a cada situação, perceberam que o segredo era começar o quanto antes, com alunos que não sabem uma palavra de português e que, muitas vezes, pouco falam ainda na língua onde nasceram. São os casos de Melissa, Tiago e Angelina. Melissa tem quatro anos. Tiago e Angelina, três. São chineses e estão em Portugal desde Janeiro. Todos no jardim de infância do Sagrado Coração de Maria, onde aprendem as primeiras palavras em português. Angelina está impaciente. Canta em mandarim e dança ao ritmo da sua melodia enquanto a terapeuta da fala do colégio, Filipa Ferreira da Costa, mostra imagens às três crianças, pedindo a cada uma que repita com ela a palavra correspondente. Angelina desperta do seu alheamento quando vê a imagem de um boné. “Boooonééé”, vai repetindo em sotaque nasalado com gestos que indicam que é para pôr na cabeça. Esquece por momento o mandarim com que continua a desafiar o primo Tiago. Mostra que também já sabe dizer “menina”, “banana” e “leite”; arrasta o ‘s’ de sopa e fecha as vogais de “casaco” que sai num português quase imperceptível. Melissa já é capaz de construir frases simples, pondo o verbo no tempo certo e Tiago pede a atenção de Angelina. Diz “o menino bebe leite”, imitando a terapeuta e baralha o cartão com as imagens de palavras novas na mesa. Em três meses de escola já são capazes de comunicar em português usando palavras e gestos, “um feito”, considera Catarina André, directora pedagógica do Jardim Infantil do CSCM, tão surpreendida quanto expectante em relação aos resultados de um trabalho que começou agora e só terá efeitos visíveis a médio e longo prazo, à medida que os alunos forem avançando na escolaridade. “O objectivo menos ambicioso é que além de falarem e escreverem sejam capazes de compreender matérias e testes. ” Perfeito, no entanto, seria eles tornarem-se bilingues, isto é, fluentes na língua de origem e, neste caso, no português, sem sentirem o esforço da tradução mental. Melissa, Tiago e Angelina começam agora literalmente do zero nesse percurso. “Onde está o menino a vestir o casaco?”, pergunta Filipa a Angelina. Ela aponta, acerta na imagem do cartão. Todos batem palmas, ela entra em festa. Em mandarim, mais uma vez. “O mandarim é muito mais acentuado em termos nasais, ou de ressonância”, explica a terapeuta, referindo, no entanto, que mais difícil do que isso é a impossibilidade de comunicar com os pais destes meninos, que só falam mandarim. Quero recomendar trabalhos de casa, exercícios, e os pais não me entendem, é impossível. O mandarim é a língua-mãe, ponto. E se houver um irmão mais velho, então serve de intérprete. ”Filipa Ferreira da Costa trabalha em mais escolas, com crianças das mesmas idades e de outras nacionalidades e fala em experiências totalmente distintas. “O que está escrito é que uma criança exposta a duas línguas começa a falar mais tarde, mas, a partir do momento em que o faz, as duas línguas estão dominadas. A grande erupção dá-se aos quatro anos. Com eles, ainda não tenho tempo para dizer, mas em relação ao inglês acho que sim. Em termos cerebrais, nota-se um maior desenvolvimento. Geralmente ficam à frente dos outros. Em termos cognitivos falar mais do que uma língua é um grande estímulo. ” E dá o exemplo de um aluno israelita. “Fala hebraico, inglês, porque está na escola inglesa, e português, porque vive em Portugal. Tem quatro anos, nasceu cá, os pais querem ficar e ele domina as três línguas. A terapia da fala é importante nesta altura, para o português e para a estrutura da língua. ”Em relação ao mandarim é muito difícil porque a estrutura da língua é completamente diferente. “Nesta idade, o que mais nos preocupa é o bem-estar deles, que sejam capazes de se defenderem, de se salvarem e serem felizes. Sem o domínio da linguagem, isso é muito complicado”, conclui por sua vez Catarina André. As irmãs Malou e Luena Gama, seis e três anos, conversam com a mãe entre português e holandês. Quando Malou era pequena, só falava holandês. “Acho que as crianças começam a falar a língua da mãe. Deve ser por isso que se chama materna. Mas sobretudo desde que entrou no 1. º ciclo, este ano, o português domina completamente o modo como comunica. Antes, ela não tinha sotaque quando falava holandês, era como se tivesse vivido sempre na Holanda, mas isso está a mudar. Faz agora mais erros em holandês e sente-se muito portuguesa. Isso é engraçado, apesar de até aos quatro anos falar um português muito menos bom do que os outros meninos da idade dela”, conta Inge Ruigrok, holandesa, casada com um português, a viver em Portugal há dez anos. Essa aparente demora no português levou os pais a tomarem uma decisão. “Teve algumas sessões com um logopedista para corrigir a pronúncia e ver se a fonética dela se adaptava ao português. Isso foi ultrapassado em meio ano. Agora está a experimentar ler livros em holandês, mas é difícil, porque quando se aprende a ler e a escrever isso é feito com uma fonética e a fonética do português é diferente da do holandês. ”Malou está num colégio privado em Sintra onde aprende inglês. “No inglês, ela também está num bom nível. Começou quase desde bebé. ” Luena fala muito holandês. “Ainda precisa muito da mãe”, comenta Inge num português fluente, com sotaque, respondendo aos pedidos das crianças, numa conversa onde surgem palavras das duas línguas. As interjeições são em português, as cores das flores que colhem num parque de Sintra também. Pede a Luena que conte. Ela conta: “um, dois, três, quatro, cinco” em português e faz o mesmo em holandês. “Para ela, contar é sempre em duas línguas”, sorri a mãe. “Acho que é uma sorte para elas poderem crescer com duas línguas. Dá-lhes uma perspectiva das coisas muito mais abrangente. Elas são crianças que crescem no mundo. ” As aventuras do dia, como foi a escola, são contadas em português. As emoções são em português. Luena ouve buzinas na estrada e diz: “É música. ”Frederico Lourenço conta a sua história nessa perspectiva de pertença. “Em Inglaterra, os meus pais falavam entre si em português e a nossa mãe falava connosco em português, mas tanto eu como a minha irmã respondíamos em inglês. O nosso pai começou cedo a falar connosco em inglês, para aprimorar o nosso vocabulário e pronúncia — ele tinha um jeito incrível para línguas. O português estava presente nas nossas vidas, mas tanto a minha irmã como eu não tínhamos a mínima vontade de o falar. ”A relação com uma língua e outra — e mais tarde com o alemão que também fala e escreve de forma fluente — foi-se construindo com a vida e obedece a fases emocionais, racionais, relacionais. “Escrevi a minha tese de doutoramento em inglês. Como namorei durante 18 anos com um inglês, foi também a língua das emoções durante esse período. Não há uma língua que seja racional e outra emocional. Ambas são ambas as coisas. Neste momento, há uma preferência da minha parte pela escrita em português, mas continuo a ler quase exclusivamente em inglês. Leio mais grego e alemão do que português, por exemplo. ” Mas, continua, “só sei contar em inglês. Tabuada e alfabeto só sei em inglês. Os meus sonhos são trilingues: sonho em português, em inglês e em alemão. Mas eu próprio não me posso considerar trilingue, pois embora fale muito bem alemão, o nível não está no mesmo patamar do inglês e do português. Tenho uma grande amiga austríaca e por isso o alemão está muito presente na minha vida actual. Além de que a segunda família do meu pai era também austríaca. O alemão teve desde muito cedo — 12 anos — uma importância fulcral”. Frederico acrescenta um ponto considerado por todos determinante: gostar de falar línguas. E isso é algo que se manifesta cedo e que José Valentim contextualiza desta forma: “O papel da criança na aprendizagem precoce da língua é fundamental. Ela tem de possuir apetência linguística e mostrar permanente curiosidade pela novidade, pelo jogo, por aprender a ‘brincar’, ser organizada e criar mecanismos de autonomia, que acaba por enriquecer nas mais diversas vertentes da sua formação. Ultrapassada essa barreira inicial, aquilo que a priori poderia ser um handicap torna-se um reforço e um processo de evolução gradual de múltiplos estímulos que conduzem ao sucesso”, sublinha. Essas são condições “indispensáveis para que se ultrapassem barreiras, como o facto de o alemão não ser a língua oficial, ser uma língua pouco ouvida no contexto social português e ainda o facto de a criança viver em ambiente estritamente português”. Ana Bayan ensina português a estrangeiros na mesma zona onde está o CSCM, mas numa escola pública, no agrupamento de escolas Nuno Gonçalves, onde está a antiga Escola Secundária D. Luísa de Gusmão, com um população de estudantes que, além de portugueses, tem muitos alunos chineses, eslavos, paquistaneses, nepaleses ou do Bangladesh. A sua função é a de que eles entendam e se façam entender na língua em que estudam. Se conseguir que sejam bilingues, é fantástico, mas sabe que para muitos talvez seja tarde. “Seja pela cultura ou idade, mas sobretudo por causa da predisposição social e cultural para ser fluente em português”, além dos meios de que as escolas dispõem para oferecer um ensino à medida das necessidades. “Os nossos alunos estrangeiros, tanto os adolescentes como os adultos, são um grupo muito heterogéneo ao nível da língua mas também dos estímulos e estilos de aprendizagem. Muitos têm alfabetos completamente diferentes. Quem tem uma língua materna muito afastada da portuguesa demora mais tempo a aprender o português, mas nos eslavos essa diferença atenua-se porque há uma apetência académica maior e um maior acompanhamento por parte das famílias. ”O primeiro passo para se ser bem-sucedido nessa aprendizagem é começar pela rotina e pela identificação, sustenta: “Há que ensinar uma língua estrangeira recorrendo a exemplos da realidade dos alunos. Seja através de textos adaptados à idade, seja com o quotidiano. A prioridade deve ser a da linguagem do dia-a-dia, recorrendo a imagens. A imagem é o grande auxiliar. Se isso não for feito de uma forma progressiva tal qual se ensina a matemática, o aluno não chega aos objectivos”. Ana Bayan ensina português a estrangeiros desde 1987. Primeiro na Guiné-Bissau (onde apesar de a língua oficial ser o português são poucos os que o falam ou escrevem), em Espanha e agora em Lisboa. Implementou o ensino do Português como língua não-materna no D. Luísa de Gusmão, “mesmo antes de ter sido instituído como uma disciplina pelo Ministério da Educação”. Em 2012, para responder às necessidade escolares criadas pelo número de imigrantes em Portugal, o Governo promulgou um despacho que estabelecia aulas de 90 minutos três vezes por semana a alunos de nível de iniciação ou intermédio de Português e uma para o nível avançado, de modo a trabalhar o português “enquanto língua veicular de conhecimento para as outras disciplinas do currículo” e para desenvolver competências literárias. Ana Bayan lamenta a falta de meios provocados por cortes orçamentais para que a sua tarefa e a de outras escolas seja bem executada. “Se estes alunos tiverem um bom acompanhamento e elasticidade cognitiva, os resultados escolares serão muito superiores aos de um aluno que só saiba uma língua. ” Aponta exemplos concretos: “Nos alunos asiáticos, isso vê-se sobretudo em áreas onde já são bons, as ciências exactas. Nos alunos que têm um nível académico mais estruturado, como os eslavos, isso manifesta-se de forma mais transversal. ”“Quem aprende línguas estrangeiras terá um cérebro preparado para aprender qualquer outra coisa”, disse recentemente ao PÚBLICO Pasi Sahlberg, conselheiro do Ministério da Educação finlandês — o sistema de educação da Finlândia é apontado como um exemplo para o mundo e é bilingue, finlandês e sueco. No fórum sobre inovação e ensino da língua, que se realizou em Boston, em Março, Paola Ucelli, professora em Harvard, tal como Sahlberg, afirmou que “a proficiência linguística é um factor-chave para a equidade do sistema educativo”. Ao contrário da OCDE que não estabelece comparação entre aquisição de conhecimento e domínio de línguas, a Education First, organizadora da conferência de Boston, publica um índice de proficiência em inglês. Nele, Portugal aparece em 21. º lugar entre 63 países. Para o ano, a avaliação irá reflectir as alterações efectuadas pelo Ministério da Educação e Ciência, com testes a nível internacional que avaliam os conhecimentos no 9. º ano. Falamos do ensino público em Portugal. A experiência de Craig Monaghan no St. Julian’s é distinta. “A maioria dos nossos alunos são portugueses e muita da nossa cultura informal tem raízes em Portugal e não no Reino Unido”, sublinha, antes de dizer que a principal vocação do ensino naquela escola é a internacionalização. O grande desafio apontado por Craig Monaghan é desenvolver a língua académica numa criança. Na escola que dirige, isso pode conseguir-se com o inglês e ou com o português. Não se faz apenas com a aprendizagem de terminologia, mas com o cultivo de um estilo na escrita. “O nosso maior esforço vai no sentido de assegurar que a linguagem académica se reflicta numa prosa analítica e concisa e que isso se conjugue com uma voz própria da criança”, nota, enquanto faz a distinção dos objectivos que advêm de ter inglês como primeira ou segunda língua, opções que a escola oferece. “Na primeira língua estuda-se muito mais literatura. Na segunda, os estudantes tendem a olhar mais de perto para os mecanismos da linguagem. Contudo, no fim do seu percurso no St Julian’s, todos os estudantes aprenderam literatura na sua segunda língua. ”“Nada pode ser visto a partir apenas de uma única perspectiva”, defende Daniela Santos, que desconhecia as conclusões do estudo de Angela de Bruin, uma holandesa professora na universidade de Edimburgo que ficou fascinada pelo universo bilingue e se doutorou com uma tese sobre a influência do bilinguismo no desenvolvimento cognitivo. Concluiu que por vezes o bilinguismo é sobrevalorizado. “Não digo, de modo algum, que não há vantagens em ser bilingue”, declarou à New Yorker, acrescentado, contudo, que essa vantagem pode ser diferente do modo como muitos investigadores a têm tratado: “Como um fenómeno que ajuda as crianças a desenvolver as suas capacidades, a saltar de uma tarefa para outra de forma mais eficaz, que melhora o controlo executivo das suas funções. ” Para Angela de Bruin, essas capacidades resultam de uma única coisa, “da simples aprendizagem”. Pedro e Yang falam das suas filhas individualmente. A abordagem de uma à linguagem é diferente da outra. A primeira palavra de Ari foi em português, a de Juno em coreano. Juno sabia todas as letras do alfabeto aos dois anos, Ari aos três ainda as vai aprendendo. “Uma não é mais inteligente do que a outra, mas são muito diferentes”, refere Pedro, e acrescenta que “Juno constrói gramaticalmente bem as frases, mas com sotaque estrangeiro em coreano. De vez em quando, constrói frases com traduções literais do português para o coreano”. Yang sintetiza: “É como se falasse coreano com a gramática portuguesa. ”Fala-se em aprender. Seja línguas ou matemática ou expressão plástica. É também com base nisso que Frederico Lourenço confessa ter acima de tudo “um preconceito fortíssimo” contra o monolinguismo. “Acho que toda a gente deve falar pelo menos uma outra língua superlativamente bem. Não é ‘arranhar’ um pouco de inglês ou de francês: é fazer um esforço para atingir um patamar elevadíssimo nessa língua. Ter só uma língua é muito pobre. Por outro lado, não vejo vantagem em saber mal e porcamente seis ou sete línguas, como é o caso de muitos auto-intitulados poliglotas. Dominar fantasticamente três línguas é o ideal. Toda a gente devia tentar. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Entidades OCDE
O PS de Costa é a estrela no PSE, um partido em luta para não ser irrelevante
O primeiro-ministro português ainda não falou, nem precisou disso, para ser o exemplo que serve de base à estratégia dos socialistas europeus. (...)

O PS de Costa é a estrela no PSE, um partido em luta para não ser irrelevante
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.5
DATA: 2018-12-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O primeiro-ministro português ainda não falou, nem precisou disso, para ser o exemplo que serve de base à estratégia dos socialistas europeus.
TEXTO: Não será por acaso que os socialistas europeus se juntam pela segunda vez consecutiva em Lisboa. Também não será por acaso que Fernando Medina sugeriu que a contabilização da influência socialista na Europa se fizesse em presidentes de câmara, e não em primeiros-ministros - é que o número destes, apenas seis, é o espelho das dificuldades dos socialistas europeus na conquista do eleitorados e a acção de três desses governantes também não orgulha o partido. Nesta reunião dos socialistas europeus percebe-se que o partido tenta definir uma estratégia para combater o populismo, primeiro; os “conservadores”, depois; e, sobretudo, percebe-se que o Partido Socialista Europeu (PSE) luta, antes de tudo, para não se tornar irrelevante, depois das eleições europeias que ameaçam dar uma machadada na bancada parlamentar da Aliança Progressista dos Socialistas & Democratas (S&D). O PSE encolheu nos últimos anos e receia tornar-se ainda menor nas eleições europeias de 26 de Maio de 2016. Uns após outros, responsáveis do partido foram desfilando pelo palco no ISCTE a defender que esta é uma batalha para a qual têm de ter uma nova abordagem - “radical”, defenderam alguns; sem “ambiguidades”, diria mais tarde Augusto Santos Silva. Para portugueses e estrangeiros, o inimigo principal é o “populismo” que nos discursos aparece com vários nomes, como “nacionalismo”, “extrema-direita” ou aqueles que não defendem o Estado de direito. O Governo de Costa é exaltado, Jeremy Corbyn é o esperado, logo ele que é líder dos trabalhistas do primeiro país que à beira de sair da União Europeia. Talvez por isso seja o melhor exemplo para as centenas de delegados de vários países que se reuniram em Lisboa para definir a estratégia para as eleições europeias. Essa, defendeu Corbyn no seu discurso de 25 minutos, tem de mostrar os erros da austeridade que levou muitos a voltarem costas aos socialistas e sociais-democratas, com “danos na sua credibilidade”, e a votarem ao lado de populistas ou em soluções como o "Brexit", “porque estavam zangados”. O diagnóstico está feito e a cura passa por “políticas progressistas” como aquelas que foram levada a cabo em Portugal, que mostraram que “há um caminho melhor”, defendeu o inglês, e por rejeitar a “ortodoxia” económica, leia-se dos novos liberais. Um caminho que tem de ser “para muitos, e não para alguns”, repetiu. O chavão mais usado pelos socialistas europeus é uma palavra que dificilmente pode ser usada em cartazes. Ser “progressista” não entra nos ouvidos dos eleitores, apesar de dizer muito a estes delegados que em Lisboa defenderam a necessidade de “abrir as portas e janelas”, disse Udo Bullmann, membro do SPD alemão, que se bateu por uma política migratória inclusiva e não “antimigrantes”, ou pela necessidade de adoptar políticas amigas do ambiente, políticas equitativas entre homens e mulheres e respeitadoras dos direitos humanos. António Guterres, aliás, foi um dos portugueses mais referidos, ou não se celebrasse na segunda-feira o 70. º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. A proclamação de valores, mais do que de soluções ou de políticas, ocupou o espaço do congresso deste que foi um dos maiores partidos europeus que agora luta para não ir ao fundo. No campo da política, o inimigo número um dos do PSE tem várias caras. “Não é legítimo que os socialistas democráticos sejam ambíguos no que tem de ser a sua luta básica contra populismos, xenofobia e nacionalismos”, defendeu o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. Mas não é qualquer populismo ou autoritarismo. São todos. “Não podemos ser ambíguos para com regimes autoritários, venham da direita ou esquerda, sejam da Europa, América Latina, África ou asiáticos. Nós somos socialistas, por isso somos pelas democracias liberais. Temos de lutar contra toda a forma de regimes autoritários”, defendeu o governante numa curta intervenção durante a tarde. Esta luta será, na opinião de Carlos Zorrinho, uma luta de dois combates. “Vão ser travados dois combates fundamentais que não se confundem. O primeiro combate é o da sobrevivência do projecto europeu e dos seus valores, é vencer os anti-europeus. E o segundo combate é mostrar que, dentro dos que defendem a Europa, há uma alternativa”. “Temos de vencer os anti-europeus, consolidar a maioria pró-europeia” e isso será feito se os socialistas conseguirem captar o “voto útil”. “Não haverá voto mais útil do que aqueles votos que forem canalizados para os socialistas e sociais-democratas, e para o PS em Portugal. É o voto útil que serve para salvar o projecto europeu de radicalismos”, disse Zorrinho. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pela mesma bitola alinhou o secretário-geral do PSE, o alemão Achim Post, que defendeu que as eleições de Maio do próximo ano serão uma “escolha entre conservadores e socialistas”. Esta sexta-feira foi o primeiro dia da reunião dos socialistas, que consagrou o holandês Frans Timmermans como o candidato do PSE à Comissão Europeia, uma escolha feita antes da chegada à reunião em Lisboa. Este sábado será a vez de subirem ao palco três primeiros-ministros socialistas, António Costa, o espanhol Pedro Sanchéz e Joseph Muscat, de Malta.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
White trash, ou a pobreza enquanto tradição americana
Brancos, pobres, sem instrução, vivem em comunidades economicamente decadentes e lembram a verdade incómoda: a pobreza é tão antiga na América quanto a própria América. Depois do racismo, a discussão transfere-se para a questão de classe em dois livros reveladores de que há uma história por contar. (...)

White trash, ou a pobreza enquanto tradição americana
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Brancos, pobres, sem instrução, vivem em comunidades economicamente decadentes e lembram a verdade incómoda: a pobreza é tão antiga na América quanto a própria América. Depois do racismo, a discussão transfere-se para a questão de classe em dois livros reveladores de que há uma história por contar.
TEXTO: Os olhos levantaram-se enquanto as bocas continuavam a sorver a sopa. Homens e mulheres debruçados sobre a mesa num restaurante de uma pequena cidade do Ohio reagiam assim, em silêncio, a um estranho que entrava. Nem uma palavra, só um olhar a seguir e a avaliar cada movimento. Vivem ali, raramente saem e desconfiam de quem vem de fora. Pela geografia, pelo ambiente socio-económico enquadram-se na definição geral do que são os hillbillies: operários, brancos, sem formação universitária. "Para esta gente, a pobreza é uma tradição familiar - os seus antepassados ganhavam à jorna na economia esclavagista do Sul, mais tarde foram rendeiros, e depois trabalhadores nas minas de carvão, e maquinistas e operários fabris nos anos mais recentes. Os americanos chamam-lhes hillbillies, rednecks ou white-trash. Eu chamo-lhes vizinhos, amigos e família. "Quem diz disto é um homem de 31 anos, chama-se J. D. Vance e conta num livro como é nascer e crescer nesta cultura. Hillbilly Elegy, a Memoir of a Family and Culture in Crises foi publicado em Junho nos Estados Unidos e está a ser lido como um dos mais profundos testemunhos do que é pertencer a uma comunidade à qual o agora Presidente Donald Trump dirigiu grande parte do seu programa e do seu discurso, e que nas horas imediatas aos resultados eleitorais foi apresentada pelos comentadores como a grande protagonista da sua eleição. O próprio Vance assumiu isso, logo na manhã seguinte e nas páginas do New York Times. "A classe trabalhadora branca de Rust Belt acabou de tornar Donald J. Trump presidente-eleito dos Estados Unidos. "Rust Belt designa a região nordeste e Midwest dos EUA que entrou em declínio económico após a crise industrial, provocando o encerramento de muitas fábricas e consequente perda de postos de trabalho. É esse o território natural de J. D. Vance, que no seu livro conta como conseguiu estudar em Yale e contrariar as estatísticas que apontam um futuro cruel para rapazes como ele: viver de apoio social ou morrer com uma dose de heroína em zonas onde o consumo de droga se transformou numa catástrofe social. "Cresci pobre no Rust Belt, numa cidade siderúrgica do Ohio, desde que me consigo lembrar, em hemorragia de emprego e de esperança", escreveu na introdução ao livro que o levou às principais cadeias de televisão e rádio, a dar entrevistas a jornais e revistas para falar, por exemplo, do que é sentir que não se tem controlo sobre a própria vida e culpar todos os outros - e não a si próprio - por isso. A classe trabalhadora branca de Rust Belt acabou de tornar Donald J. Trump presidente-eleito dos Estados Unidos. "Colocando o foco na questão de classe e não na racial, J. D. Vance afirma que o seu livro é sobre "o que acontece na vida de pessoas reais quando a economia industrial se desloca para Sul", e sobre reagir a circunstâncias más da pior maneira possível. Conclui: o livro é "sobre uma cultura que cada vez mais encoraja a degradação social em vez de a combater". Este é o mesmo Vance, assumidamente conservador, que, na manhã do último dia 9, acusou parte dos media e dos líderes de opinião de não entenderem que possa haver outras motivações que não o racismo a fazer com que muitos americanos brancos, pobres tivessem votado em Trump. "(. . . ) A degradação sentida em certos cantos do país não tem a ver apenas com a economia; é acerca de cada aspecto da vida - desde a família à esperança de vida, ao consumo de droga que tem afectado as comunidade. O sentimento partilhado por grande parte dos líderes de opinião de verem as nossas preocupações enquanto resultado de estupidez, na melhor das hipóteses, ou de racismo, na pior, confirma os piores receios de muitos. Eles sentem realmente que as elites costeiras [da Costa Leste e Oeste] não se importam com eles, o que muitos entre essas elites parecem consentir. "Filho de pais separados, J. D. Vance foi criado itinerante por uma mãe toxicodependente e durante a sua infância conta que conheceu quinze padrastos. Foi com os avós, na cidade de Middletown, sudoeste do Ohio, junto à fronteira com o Kentucky, que conheceu alguma estabilidade e solidificou a sua identidade. "Posso ser branco, mas não me identifico com os WASPs [acrónimo em inglês para branco, anglo-saxónico, protestante] do Nordeste. Identifico-me em vez disso com milhões de operários brancos americanos sem grau académico, descendentes de escoceses e irlandeses", um dos subgrupos que considera "mais diferenciados da América" e dentro do grupo mais pessimista de todos: o da classe operária branca, sem formação académica que votou maioritariamente em Donald Trump (67%). Um grupo, afirma Vance "socialmente mais isolado do que nunca" e que "passa esse sentimento aos filhos”, que possui um forte sentimento de lealdade, é dedicado à família e ao país. Mas. . . "Não gostamos de forasteiros ou pessoas diferentes de nós, seja uma diferença em relação ao aspecto, ao comportamento, ou, mais importante, ao modo como falam", diz J. D. Vance assumindo uma pertença ao grupo mesmo quando o grupo hoje o olha como uma espécie de traidor por ter saído. E a saída foi inscrever-se nos Marines e ir para o Iraque. Quando regressou, foi para a Universidade do Ohio e daí para Yale, uma das universidades da Ivy League. Lá, conheceu a sua mulher, alguém fora do seu grupo, com quem vive em S. Francisco. Vance acentua a importância justamente da linguagem para contar este estrangulamento de classe, mas também regional e social. “Na nossa sociedade tão racialmente consciente, o nosso vocabulário quase sempre se limita à cor da pele de alguém — negros, asiáticos, brancos privilegiados. Muitas vezes estas categorias são úteis, mas para entender a minha história é preciso ser mais detalhado. " A gente de Vance vive ao longo dos montes Apalaches, a gigantesca cordilheira de 2400 quilómetros que começa no Canadá e atravessa vários estados americanos: Nova Iorque, Pensilvânia, Ohio, Pensilvânia, Kentucky, Tennessee, Virginia, Maryland, West Virginia, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Georgia, Alabama. "Mais pessimistas do que os imigrantes latinos, muitos dos quais vítimas de uma pobreza impensável. Mais pessimistas do que os negros americanos, para quem as expectativas materiais continuam atrás das destes brancos. Enquanto a realidade permitir algum grau de cinismo, o facto de hillbillies como eu serem mais sombrios em relação ao futuro do que outros grupos - mesmo muitos deles sendo mais miseráveis do que nós — indica que alguma coisa se está a passar”, refere J. D. Vance, transferindo a questão para fora do racismo e considerando que todos os discursos políticos à volta da questão rácica - com toda a carga de culpa, ressentimento, preconceito — têm dificultado e manietado um discurso lúcido sobre a pobreza e o modo como cada americano a vê. E a pobreza atravessa todas as etnias na América, como se entende da leitura de Hillbilly Elegy, mas também de White Trash: the 400-Year Untold History of Class in America, da historiadora Nancy Isenberg. 67% percentagem da classe operária branca, sem formação académica, que votou maioritariamente em Donald TrumpEnquanto o livro de Vance é um relato biográfico — pessoal e familiar — o de Isenberg é um trabalho académico que problematiza e coloca em contexto a pobreza enquanto fenómeno associado a um termo: white trash, ou lixo branco que designa os ignorantes, os irredutíveis, os de uma “crueldade congénita”, apenas capazes de replicar a vida em que nasceram e que corresponde, por exemplo, ao estereótipo da rapariga branca de ar enraivecido que insulta publicamente Elizabeth Eckford quando esta se dirige ao liceu de Little Rock, Arkansas, no momento em que foi permitido a um grupo de alunos negros frequentar uma escola para brancos. Sabe-se que essa rapariga branca nascera e crescera num cenário de extrema pobreza. Era o padrão adaptado ao seu tempo, do branco que servia na fazenda de escravos com trabalhos. “Qualquer seja o tempo, white trash lembra-nos de uma das mais desconfortáveis verdades americanas: a pobreza está sempre connosco”, afirma Isenberg, que coloca a questão de classe como um dos grandes geradores de tensão social do país. Sublinha que o cruzamento entre classe e raça é central para que se conte a história completa, mas enquanto o racismo é encarado como algo a combater por parte do discurso político, a pobreza é geralmente vista como “estando além do controlo humano”. Partindo de exemplos concretos, a professora da Universidade do Louisiana traça um quadro complexo mas claro do modo como a classe é vivida e entendida na sociedade americana. “Por detrás da ira e da ignorância brancas, está uma longa e complicada história de classe e de identidade que data do período da América colonial até às noções britânicas de pobreza. ” E depois o estigma, por incapacidade de adaptação ou inabilidade em criar riqueza. Por isso, tal como J. D. Vance, Isenberg insiste na importância de se perceber os códigos. Termos como trash ou waste (desperdício ou sobra) para designar estes brancos pobres “são cruciais para entender o vocabulário poderoso e duradouro”, escreve Isenberg, alertando ainda que não é mais possível “ignorar a estagnação e o lado descartável” associado às camadas mais baixas da sociedade como fundamentais para “explicar a identidade nacional”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os livros de Vance e de Isenberg foram lançados antes das convenções republicana e democrata, antes da campanha, e são, isolados ou em conjunto, um óptimo auxiliar para tentar perceber a América que acabou de eleger o único candidato que “tentou pelo menos”, como referiu Vance, falar para estes hillbillies ou para os white trash, coisa que não acontecia há décadas. A vitória de Donald Trump vai repercutir-se na cena política europeia. Esquerdas e direitas deverão “imaginar o inimaginável”, como ver Marine Le Pen vencer as presidenciais francesas ou Beppe Grillo dominar a política italiana. Se o querem evitar deverão mudar de vida desde já.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Novo primeiro-ministro australiano diz que país não pode ser "à prova de futuro"
Actual primeiro-ministro perdeu liderança do partido e do país. Malcolm Turnbull, seu velho rival, quer reaproximar Governo da opinião pública com uma liderança mais progressista. (...)

Novo primeiro-ministro australiano diz que país não pode ser "à prova de futuro"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.045
DATA: 2015-09-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Actual primeiro-ministro perdeu liderança do partido e do país. Malcolm Turnbull, seu velho rival, quer reaproximar Governo da opinião pública com uma liderança mais progressista.
TEXTO: Tony Abbott foi afastado da liderança do Partido Liberal australiano e, por consequência, do cargo de primeiro-ministro, ao sido derrotado pelo rival Malcolm Turnbull numa eleição interna realizada nesta segunda-feira. Esta é a quarta vez que a chefia de Governo muda de mãos na Austrália em dois anos. Foi durante a manhã que Turnbull atirou a toalha para o ringue, ao anunciar que iria demitir-se do cargo de ministro das Comunicações para desafiar a liderança de Abbott, a quem acusou de ser incapaz de dar ao executivo a energia necessária para mudar a actual política e colocar os liberais de novo à frente dos trabalhistas nas sondagens. “Se continuarmos com Abott a primeiro-ministro, é evidente o que acontecerá. Ele deixará de ser primeiro-ministro e será sucedido por Shorten”, disse Turnbull, referindo-se ao líder do partido trabalhista, Bill Shorten. Abbott ainda resistiu, apelando aos colegas que não cometessem os mesmos erros do Labor – que defenestrou dois chefes de governo em apenas três anos –, mas acabou vencido na votação realizada já noite dentro pelos deputados liberais. Turnbull venceu a votação, por 54 votos contra 44, e promete um novo estilo de liderança “respeitador e isento de slogans”. O golpe palaciano é uma repetição da novela que abalou o Labor desde 2010, ano em que o então primeiro-ministro Kevin Rudd foi afastado pela rival Julia Gillard. Rudd respondeu na mesma moeda, em Junho de 2013, a meses de novas legislativas, destronou Gillard, acabando por perder as eleições para Abbott. O remake de 2015 é ainda mais idêntico porque Turnbull já tinha liderado o Partido Liberal entre 2008 e 2009, altura em que perdeu as eleições internas para Abbott por apenas um votoEspera-se do novo primeiro-ministro uma abordagem menos conservadora do que a de Abott em temas como o acolhimento de imigrantes e refugiados, combate às alterações climáticas e legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Todas áreas nas quais o actual Governo se foi gradualmente distanciando da opinião pública australiana. Sobretudo na resposta à recente vaga de imigrantes e refugiados que partem em barcos do Sul e Sudeste Asiático – em Junho, o executivo de Abott esteve sob fogo por ter alegadamente dado dinheiro a um traficante da Indonésia para que este fizesse regressar a sua embarcação em vez de entrar na Austrália. Abott acabou por ceder à pressão internacional e nacional e anunciou há uma semana que aceitaria mais 12 mil refugiados sírios para além da quota anual de cerca de 13 mil pedidos de asilo na Austrália. Isto apesar de o seu Governo ter defendido prioridade para sírios cristãos e sem que Abott acedesse a dar entrada aos barcos de rohingya vindos do Bangladesh, Indonésia e Birmânia. Liberal à esquerda“Não podemos ser defensivos”, disse Turnbull aos jornalistas, já depois da vitória. “Não podemos ser à prova de futuro”, acrescentou, com Julie Bishop ao seu lado, que continuará como vice-líder do partido e ministra dos Negócios Estrangeiros. Antes advogado e empresário, o novo primeiro-ministro australiano estudou direito em Sidney e, mais tarde, em Oxford. Ficou célebre quando, no final da década de 80, anulou as tentativas do Reino Unido de proibir a publicação do livro de um antigo espião britânico, Peter Wright. Defende um “Governo Liberal de compromisso com a liberdade, o indivíduo e o mercado”, mas é mais conhecido pelas suas propostas progressistas, como a luta contra o aquecimento global e a legalização do casamento homossexual. Estas são as mesmas bandeiras que o fazem um elemento relativamente divisivo num partido que caminhou para a direita sob o governo de Tony Abott e que está agora fracturado por lutas internas.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
A nova Europa dividida num contexto internacional de incertezas. E nós?
Jorge Sampaio alerta para a "tendência global" dos movimentos populistas, a propósito também da eleição de Donald Trump. Neste ensaio para o PÚBLICO, o ex-Presidente da República afirma que o "Brexit" constitui um "ponto de não-retorno" e que a própria Europa tem de travar a "corrida para o abismo". (...)

A nova Europa dividida num contexto internacional de incertezas. E nós?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.068
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Jorge Sampaio alerta para a "tendência global" dos movimentos populistas, a propósito também da eleição de Donald Trump. Neste ensaio para o PÚBLICO, o ex-Presidente da República afirma que o "Brexit" constitui um "ponto de não-retorno" e que a própria Europa tem de travar a "corrida para o abismo".
TEXTO: Ao optar por me debruçar aqui sobre a “questão europeia”, chamemos-lhe assim, o meu objectivo não é trazer à colação certezas e ideias feitas acerca da Europa, do seu passado e do futuro, mas antes tentar desbravar um caminho de interrogações e perplexidades, que são afinal as de um europeu convicto, que teima em continuar a sê-lo, mas que se confronta com um conjunto de contradições, dilemas e perguntas para as quais as respostas não parecem óbvias nos tempos que correm. Ou seja, e este é o meu ponto de partida, as convicções outrora firmes que me acostumara a assumir como premissas inabaláveis de um europeísmo esclarecido estão hoje, em 2016, algo toldadas pela acumulação de dúvidas nascidas da confrontação com a realidade — o tal reality check, como bem se diz em língua inglesa —, assim como pela acentuada e generalizada erosão da confiança na Europa, no seu funcionamento, na sua capacidade de cuidar dos bens públicos europeus e de responder às expectativas dos cidadãos. Em suma, tentarei fazer nestas páginas um exercício de militantismo europeu, na certeza de que a dinâmica do capitalismo global, tal como se desenvolveu e se afirma no nosso tempo à escala planetária, exige da Europa e dos países europeus a determinação de se constituir como uma alternativa sólida, por um lado, à financeirização da economia e, por outro, ao capitalismo autoritário de “valores asiáticos”, por assim dizer. Se esta alternativa coincide com a União Europeia, tal como a conhecemos hoje, ou se exige uma outra Europa, é uma questão que está em aberto e cujos contornos aqui procurarei, precisamente, delinear. À partida, direi, como posição de princípio, que é na fractura aberta pelas insuficiências da actual Europa que importa trabalhar, mesmo se para tal for necessário quebrar alguns tabus, colocar questões inconvenientes e formular “hipóteses fora da caixa”. A eleição de Donald Trump para Presidente dos EUA traz consigo um lote acrescido de imprevisibilidade e de incertezas, sendo plausível um período mais ou menos longo de ajustamentos ou mesmo, digamos, de aprendizagem por ensaio e erro no plano da política externa da nova administração, com todos os riscos inerentesEstá já anunciada, para o próximo ano, uma cimeira extraordinária para comemorar o 60. º aniversário dos Tratados de Roma, assinados a 25 de Março de 1957, os quais, como é bem sabido, deram origem à actual União Europeia. Celebrações do género têm povoado a vida europeia, sendo que, desta vez, as questões da participação ou não do Reino Unido e a proximidade das eleições presidenciais francesas — cuja 1. ª volta está prevista para 23 de Abril — poderão vir a dominar ou mesmo a ensombrar as referidas comemorações, para não referir sequer a incerteza que paira sobre o futuro político em Itália ou da própria Alemanha, onde haverá também eleições legislativas no Outono do próximo ano. De qualquer forma, para além da coreografia habitual que inclui discursos de ocasião e a tradicional fotografia de família, o facto mais relevante será o documento a apresentar sobre “o nosso futuro comum”, tal como foi decidido e anunciado no Conselho Europeu de Bratislava de Setembro último. Mas a verdade é que sabemos, de resto bem de mais, o quanto o tema do “futuro da Europa” está hoje gasto e mais do que esgotado, uma vez que consta da agenda europeia desde a adopção do Tratado de Nice, tendo estado, de resto, no centro de vastos e múltiplos debates travados à escala europeia no âmbito da convenção lançada em Dezembro de 2001 e que se prolongou pelos anos seguintes. Não nos esqueçamos do desfecho de todo esse processo, que redundou no abandono do projecto da adopção de um tratado constitucional para a União Europeia, na sequência da sua rejeição por referendo em França e nos Países Baixos em 2005. Lembro aqui este pedaço da nossa história comum porque, com o passar do tempo, apercebemo-nos melhor do quanto a crise que a Europa atravessa hoje, e que já ninguém nega, tem raízes bem mais profundas, emaranhando razões, falácias e demagogias, disfarçando disfuncionamentos e problemas que foram deixados para trás sem que tivesse havido tentativas sérias de os resolver, a não ser através da convocação de sucessivos grupos de sábios e da apresentação de relatórios sobre o futuro da Europa, depressa deixados de lado…Por mim, considero que a consistente e reiterada manifestação de movimentos populistas, a que estamos a assistir, correspondem a uma nova e inquietante tendência global, que se expressou já no plano europeu nos referendos de 2005, que se consolidou no "Brexit" e que, no plano nacional, tem dado origem à criação de partidos nacionalistas e a vitória a figuras políticas improváveis. Mas, fixando-nos, para já, no quadro europeu, olhando para a última década, não nos pode escapar o facto de a União Europeia enfrentar uma clara acumulação de dificuldades, problemas mal resolvidos e alguns estrondosos insucessos, o que faz com que seja hoje consensual o estado de crise crónica do projecto europeu, agravado, sem dúvida, a uma escala sem precedentes, com o resultado do referendo no Reino Unido que levará à sua auto-exclusão da União Europeia. A saída anunciada do Reino Unido da União Europeia constituiu um ponto de não retorno no projecto europeuAs dificuldades e desafios são de vária ordem, mas aqui gostaria de começar por identificar duas grandes áreas: a económica, monetária e financeira, por um lado, e a da segurança, do controlo das fronteiras e das migrações, por outro. Em ambos os domínios produziu-se, a meu ver, um ponto de clivagem forte que assinala, porventura, um ponto de não-retorno, cujo desfecho está ainda por determinar. Sejamos, pois, claros: a crise das dívidas soberanas não foi resolvida, mas basicamente está apenas suspensa devido à intervenção do Banco Central Europeu. Ou seja, os fundamentos da crise continuam presentes, a saber: o baixo crescimento, o alto desemprego e a elevada dívida pública e privada cuja implicação é, respectivamente, a contenção do Estado social e do investimento público e a retracção do investimento privado com recurso a capitais próprios das empresas. Face a esta situação, a verdade é que a resposta da União Europeu (quer da Comissão, quer do Conselho) tem sido claramente insatisfatória: por um lado, como a união bancária (nomeadamente com o mecanismo de garantia de depósitos) continua por completar, a eventualidade de uma nova crise torna-se maior, a qual obviamente atingiria os países mais vulneráveis, incluindo Portugal. Por outro lado, não havendo progressos na união orçamental e mantendo-se a situação actual, não há forma de o orçamento comunitário (ou da zona euro, aliás, inexistente) poder absorver os choques assimétricos que se fazem sentir em países particulares. Acresce, ainda, que, não se tendo encontrado nenhuma solução global para o problema das dívidas excessivas, se mantém a vulnerabilidade, em particular dos países com maior endividamento, face ao agravamento das suas condições de financiamento. A interpretação dominante dos tratados, regulamentos e acordos produzidos pelas instituições europeias continua a ser, embora com algumas modulações, a de one size fits all. Ou seja, aquilo que é proposto e de certo modo exigido aos países e aos povos europeus dos países mais vulneráveis é que mantenham por períodos significativos (dez a 15 anos) políticas ou de austeridade ou de forte contenção orçamental e que registem significativos excedentes nas suas contas públicas (de resto, nunca alcançados no passado) dificilmente compagináveis com a manutenção dos seus estados de bem-estar. Mas o pior é que, de facto, ninguém parece acreditar que Bruxelas (ou Berlim) tenha qualquer iniciativa nos próximos meses para responder à crise da eurozona, para alterar a ortodoxia financeira dos credores ou para criar as condições institucionais e orçamentais que tornem possíveis programas de reforma nas economias mais frágeis. Ora, acontece que também não existe nenhum indicador no sentido da inversão de tendência de crise nos países devedores: a Grécia pode requerer um novo resgate, a negociação sobre o sector bancário italiano não está fechada e, em Portugal, a crise que nunca acabou parece igualmente concentrada no sector bancário. A confiança hoje está abalada de forma sistémica e sistemática — e, no fundo, a questão que se coloca é se esta desconfiança está já demasiado cimentada para ser reversível e evitar o alastramento dos populismos de toda a sorteEm suma, devemos reconhecer que a Europa tem um problema imediato para resolver, e que são as deficiências da moeda única. Há um conflito entre países em torno do cumprimento do Tratado Orçamental, do reforço da união bancária e da definição de elementos de união política. Como resultado de todas estas questões mal resolvidas ou por resolver, a área dos problemas sociais adquire premência redobrada — como criar emprego, incentivar maior procura na zona euro e promover maior justiça social através da luta contra as desigualdades crescentes?O conjunto destas dificuldades — monetárias, financeiras, económicas e sociais — tem constituído um ponto de clivagem forte no seio das opiniões públicas europeias, contribuindo para gerar o reforço, agora com fundamentação económica, dos argumentos daqueles que, radicalizados à esquerda ou à direita, apelam ao fim do projecto europeu e ao regresso do proteccionismo e dos nacionalismos. Como acima já mencionei, deparamo-nos, a meu ver, com uma segunda grande área de problemas relacionados com a segurança: o controlo de fronteiras e as migrações. A forma desastrosa como a União Europeia tem gerido este conjunto de dossiers tem constituído um segundo pólo de fricções e de clivagem no seio das sociedades europeias, designadamente devido às migrações descontroladas do ano passado, à questão da repartição e integração dos refugiados, que continua por resolver. Importa sublinhar que ligada a esta área de problemas está também a crise do modelo aberto, tolerante e inclusivo das nossas sociedades europeias, a braços com conflitos de ordem cultural e de valores. A dificuldade em lidar com o choque cultural que está a abrir brechas fundas nas nossas sociedades explica — juntamente com as dificuldades económicas e as desigualdades sociais — o esboroamento a olhos vistos da confiança na União Europeia, nas suas instituições e nos seus líderes, com todas as sondagens e estudos de opinião a ilustrarem esta tendência. É impossível não olhar já para as eleições de 2017 em França e na Alemanha como próximas etapas prováveis desta corrida para o abismoIsto explica, creio, a criação de partidos políticos fora do mainstream, partidos de franjas e extremos, e de movimentos inorgânicos sui generis, bem como, por efeito de espelho, o reforço dos partidos antieuropeus e populistas que advogam o encerramento das fronteiras, o proteccionismo e o regresso dos nacionalismos, porque, aos olhos dos cidadãos, está em causa o fraco ou mau desempenho da governação europeia e a sua incapacidade em gerar emprego e prosperidade ou ainda em encontrar soluções para desafios globais, como sejam o terrorismo, a gestão das fronteiras ou a questão dos refugiados e das migrações. A mim, parece-me que a confiança hoje está abalada de forma sistémica e sistemática — e, no fundo, a questão que se coloca é se esta desconfiança está já demasiado cimentada para ser reversível e evitar o alastramento dos populismos de toda a sorte. A este respeito, a saída do Reino Unido da União Europeia é inquietante, a vários títulos, de que salientarei três: primeiro, porque inaugura uma nova etapa na história europeia, a da “desconstrução” da União Europeia, uma fórmula suave para não dizer “destruição”, após 60 anos dominados pela dupla dinâmica do “alargamento-aprofundamento” da UE. Em segundo lugar, porque é uma porta aberta para que outros Estados lhe sigam no encalce; em terceiro lugar, porque é uma fonte de inúmeras e pesadas incertezas que poderão acabar por precipitar um sem-número de problemas em cascata — na área das políticas comuns, mas também no plano da economia, da segurança, da política externa ou da defesa, bem como abalar de forma duradoura equilíbrios de poder já de si precários no seio da governação europeia. Olhando para o resultado das eleições presidenciais americanas, creio que há razões tangíveis que reforçam inquietações e pessimismo, pois está claro que todas estas tendências vão no mesmo sentido, reforçando-se negativamente, sendo impossível não olhar já para as eleições de 2017 em França e na Alemanha como próximas etapas prováveis desta corrida para o abismo. Por conseguinte, neste complexo contexto europeu e internacional em que nos encontramos, reconstruir a confiança constitui, a meu ver, um desafio grande, moroso, complexo, mas incontornável. Não há economia nem mercado nem política nem democracia sem esse cimento de base, a confiança. Não há paz duradoura se a desconfiança minar as relações entre comunidades, povos e nações, se o pacto social for rompido. Não quero com isto vaticinar um destino trágico para a União Europeia — o que é dizer para todos nós —, mas sim, ao invés, lançar um apelo veemente para que se faça algo para inverter esta corrida para o abismo em que parecemos lançadosPara restaurar a confiança, é preciso proceder à recapacitação das nossas democracias no plano nacional, ao nível central e local; mas esta passa também pelo resgate da democracia representativa na Europa, na fórmula sugestiva de Soromenho Marques, pelo aprofundamento de uma União Europeia que sirva os cidadãos e defenda o interesse geral europeu. Tenho a convicção de que cabe à Europa contribuir para reinventar a democracia para a nossa era da globalização, até porque a Europa não é só parte dos problemas, mas é também solução, dando aos países mais controlo sobre políticas que se tornaram globais. Agora, tal não acontecerá se a Europa não contribuir para reforçar o poder de escolha dos cidadãos, revitalizando a ideia de que a democracia é o regime em que as alternativas políticas são possíveis. Mas, para isso, a União Europeia tem de reatar com o melhor da sua tradição, a que combina a liberdade que vem do liberalismo com a estabilidade, o bem-estar e a equidade social que vêm da social-democracia. Se Bruxelas e os Estados-membros da União Europeia não entenderem isto e nada fizerem para resgatar estes valores, as comemorações de Março do próximo ano do 60. º aniversário dos Tratados de Roma correm sério risco ou de não terem sequer lugar ou de se transformarem numa marcha fúnebre. Incapaz de gerir bem a inédita complexidade da presente globalização, o século XXI começou mal, carregando já nestes seus primeiros anos um cortejo de indescritíveis violências, situações de terror múltiplo e geograficamente disperso, crises económicas e financeiras demolidoras de um desejável progresso social, com preocupantes efeitos numa generalizada descredibilização da acção política, quer seja no plano nacional, quer no da concertação internacional, que desacredita todo o sistema do multilateralismo. Difícil, por tudo isto, ser optimista, quando a realidade nos interpela, revelando um tempo de conflito e de persistentes violações dos direitos humanos; de intoleráveis assimetrias na riqueza e no acesso aos bens públicos, que depois se projectam no desenho de uma penosa geografia mundial de doenças, epidemias e exclusões; ou na insistente existência de massacres sectários. Assistimos hoje a perversas destruições de memórias históricas que constituíam até agora acervo intocável do património da humanidade; presenciamos o alastrar de perigosos fundamentalismos, que julgávamos já sepultados pelo progresso comum; e, neste milénio gerador de tantas expectativas, convivemos com a vergonhosa tragédia dos refugiados e migrantes que procuram na Europa uma alternativa à morte, à perseguição, à violência ou à fome, e encontram o Mediterrâneo como sepultura dos seus magros sonhos, reféns de redes de traficantes que continuam a operar com escandalosa impunidade. A Grécia pode requerer um novo resgate, a negociação sobre o sector bancário italiano não está fechada e, em Portugal, a crise que nunca acabou parece igualmente concentrada no sector bancárioNeste mundo preocupado por um diferente alinhamento de hierarquias de poder e da emergência de novas inseguranças, percebemos com desalento que mesmo a União Europeia — aonde antes íamos buscar conforto, porque depositária de muitas das nossas esperanças de progresso e de equilíbrios estratégicos — tem revelado nos últimos anos uma impotência decisória que parece ser a única marca da sua política externa. Agora a questão crucial é que a saída anunciada do Reino Unido da União Europeia constituiu um ponto de não-retorno no projecto europeu. A meu ver, ignorar que estamos perante uma situação em que nada será jamais como dantes e em que nada poderá continuar a ser business as usual levar-nos-á directamente ao precipício. A história não se repete, mas há dinâmicas que parecem recorrentes, sufragadas por teorias várias, designadamente as que ao apogeu dos grandes projectos civilizacionais fazem seguir o declínio e a decadência como etapas previsíveis. Não quero com isto vaticinar um destino trágico para a União Europeia — o que é dizer para todos nós —, mas sim, ao invés, lançar um apelo veemente para que se faça algo para inverter esta corrida para o abismo em que parecemos lançados e de que, de resto, a emergência dos populismos como uma nova tendência global constitui um sério e preocupante aviso, reiterado com o resultado das eleições americanas. Perante este quadro sombrio, importará, todavia, lembrar que, da História, e da sua lenta e pouco linear passada de anos e séculos, nos chega igualmente um sólido acervo de realizações que justificam que nos continuemos a bater por um futuro melhor e pela evolução positiva da sociedade em que vivemos, no plano nacional ou internacional. O século XXI tem criado, à volta da Europa, um extenso arco de conflitos e situações de crise que lavram, vitimando sobretudo as populações civis e impelindo milhares a lançar-se em aventuras transcontinentais incertas e perigosas. A luta contra o terrorismo, se continua a mobilizar os esforços de um vasto leque de parceiros, deixa, no entanto, em aberto numerosas incógnitas, como sejam o futuro da Líbia, Síria, do Iraque, do Iémen e do Afeganistão, bem como a relação de forças entre, digamos, o eixo sunita/xiita. O relacionamento com os parceiros próximos da Europa — designadamente Turquia e Rússia — padecem de interlocução séria e de um agenda europeia própria, reféns de interesses mais vastos e contraditórios, ora focados na crise dos refugiados no que respeita à Turquia, ora na questão ucraniana no que toca à Rússia ou ainda na questão síria, que envolve ambos. A crise das dívidas soberanas não foi resolvida, mas basicamente está apenas suspensa devido à intervenção do BCEPor seu turno, o relacionamento transatlântico, tão essencial à própria dinâmica intra-europeia, está hoje suspenso por um pesado conjunto de incertezas, resultantes quer de todas as incógnitas e indefinições que rodeiam a próxima administração americana, quer, do lado europeu, das consequências do "Brexit" na redefinição dos equilíbrios intra-europeus e do seu impacto geral nas relações de cooperação, num vasto plano de matérias, incluindo a segurança e a defesa e nomeadamente com a NATO. A eleição de Donald Trump para Presidente dos EUA traz consigo um lote acrescido de imprevisibilidade e de incertezas, sendo plausível um período mais ou menos longo de ajustamentos ou mesmo, digamos, de aprendizagem por ensaio e erro no plano da política externa da nova administração, com todos os riscos inerentes. À Europa caberá a opção ou de se tornar irrelevante ou de se afirmar como um modelo civilizacional, económico e de sociedade com peso próprio, podendo afirmar-se como o fiel das múltiplas balanças que se poderão vir a desenhar no seio de uma ordem mundial multipolar, marcada por uma geometria de poderes variável. Para mim, que, sobretudo nestes últimos anos, viajei intensamente pelo mundo inteiro, convivi de perto com povos de todos os continentes, discuti e vi realidades — culturais, sociais, políticas e societais — das mais variadas, há uma coisa que se tornou óbvia: é que, de onde quer que viesse (da Ásia, África, Américas ou do Extremo Oriente), a noção de se “chegar a casa” quando se aterra na Europa (seja em Paris, Londres, Luxemburgo, Tessalónica, Amesterdão, Barcelona, Riga ou em Cracóvia) é real, além de extremamente reconfortante…E isto significa, afinal, que a Europa é a partilha de uma casa comum, de um património civilizacional e de valores, de um modelo de sociedade, e que é isto que nos faz sentir parte de uma mesma família, enfim, que nos faz sentir sermos todos cidadãos e membros de uma comunidade de destino. Para mim, é esta sensação ou sentido de filiação ou de cordão umbilical comum que dá sentido ao projecto político europeu. Ora, um dos grandes desafios que se coloca hoje é precisamente o de como reforçar este sentimento de pertença dos europeus, sejam urbanos ou de comunidade rurais, de gerações mais novas ou mais antigas; como fortalecer o sentido desta identidade partilhada; como revigorar o orgulho de ser europeu. Dever-nos-íamos bater por que a Europa do euro — ?a dos 19 do euro — seja o verdadeiro núcleo duro de uma UE reformadaAo completarem-se 30 anos da adesão de Portugal ao projecto de integração europeia, porventura a mais inovadora experiência política realizada desde a paz de Vestefália, este poderia ser o momento certo para fazermos um balanço rigoroso e exaustivo da nossa participação europeia na dupla vertente do que a Europa tem feito por nós e do que podemos fazer por ela. Como a “questão do futuro da Europa” está de volta, importa, a meu ver, que Portugal inicie um processo de reflexão interno — dentro das mais variadas sedes e foros, designadamente no plano das instituições de segurança e defesa — sobre como assegurar uma participação de qualidade na União Europeia. Temos de ser contribuintes líquidos para o debate europeu que vai ocorrer na sequência do "Brexit", que se vai intensificar e em que não poderemos figurar como espectadores mais ou menos passivos. Temos de saber o que queremos, temos de levar ideias claras e propostas bem definidas, e, sempre que possível, contribuir para liderar o debate. Sabemos já — de um saber feito de experiência e, por vezes, de dura experiência — que temos de ser mais rigorosos em relação à Europa que queremos. Já vimos que não é uma qualquer Europa que serve os nossos interesses. Creio que deveríamos identificar o núcleo duro de premissas por que nos deveríamos bater. Por exemplo, penso que deveríamos recusar todo o tipo de iniciativas restritivas que se baseiem em critérios passadistas e obsoletos, como sejam as que recorrem à figura dos “membros fundadores”. Ao invés, dever-nos-íamos bater por que a europa do euro — a dos 19 do euro — seja o verdadeiro núcleo duro de uma UE reformada. A meu ver, dever-se-ia começar por solidificar a União entre os 19 da zona euro por forma a relançar a construção europeia pela base — ou seja, através de um compromisso claramente político no sentido de reforçar os mecanismos económicos e financeiros da zona euro. Um outro ponto muito importante é que a saída do Reino Unido da UE vai produzir mudanças fundas em termos dos equilíbrios de poder intra-europeus, sendo provável, a meu ver, a consolidação do “momento unipolar” alemão, incluindo o reconhecimento norte-americano da Alemanha como o principal parceiro europeu dos Estados Unidos. Essa evolução estava esboçada já antes do "Brexit", mas a sua confirmação marcará uma viragem que obrigará Portugal a concentrar-se sobre as suas relações com a Alemanha e com a Espanha, que é o principal parceiro de Berlim (e de Washington) na Península Ibérica. Por certo, Portugal deve reconstituir, num quadro bilateral, a sua relação com o Reino Unido, como o exigem a história comum, os interesses económicos e a necessidade imperativa de proteger as comunidades emigrantes — devem estar mais de 300 mil portugueses no Reino Unido, o principal destino da última vaga de emigração. Mas essa relação deixa de ser directamente relevante na balança interna da União Europeia. [Em Portugal] são cada vez mais fortes as posições nacionalistas contra a integração europeia, incluindo do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, na ausência de uma força populista de direitaEsta alteração dos equilíbrios geopolítico-estratégicos exigirá reflexão aprofundada do nosso lado, realinhamentos e reposicionamentos diplomáticos e de política externa que convém prepararmos atempadamente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Por último, penso que é também forçoso admitir que deixou de existir, agora no plano interno, um consenso nacional sobre a política externa, incluindo entre os dois principais partidos. Tornaram-se mais evidentes as clivagens que separam os partidários do reforço de uma aliança alemã dos outros que se lhe opõem, persistem as divisões que separam os europeístas e os atlantistas, são cada vez mais fortes as posições nacionalistas contra a integração europeia, incluindo o Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, na ausência de uma força populista de direita. Neste contexto, há que nos interrogarmos sobre qual será a melhor estratégia e os vários níveis de interlocução — inclusive institucional — para inverter as divergências cavadas entre as elites políticas, que não parecem preparadas para responder à crise precipitada pelo "Brexit". Há também que reflectir seriamente sobre o impacto possível de novas opções de política externa e de defesa da futura administração americana para os nossos próprios interesses nacionais. Em suma, atravessamos um momento especialmente crítico para o nosso futuro colectivo — no plano nacional, mas também europeu e até mundial. Mas, qualquer que seja o sentido futuro da integração europeia — e sabemos que há vários cenários —, o que me parece importante sublinhar aqui é a necessidade de se aprofundar a discussão sobre que Europa queremos, que modelo para a reformatação da zona euro e que actualizações pretendemos fazer dos nossos compromissos europeus.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA NATO UE
O cinto do mundo
A olhares pouco atentos, podia parecer que “a questão racial” fosse “um assunto puramente nacional e local”, confinado aos Estados Unidos. Mas não, a “linha da cor cinta o mundo”, afirmava W. E. B. Du Bois. Era neste plano que devia ser pensada: globalmente. E era assim que devia ser confrontada: globalmente. As desigualdades de riqueza e poder, as oportunidades e os constrangimentos associados, tinham (e têm) cores e não tinham (nem parecem ter) limites. (...)

O cinto do mundo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: A olhares pouco atentos, podia parecer que “a questão racial” fosse “um assunto puramente nacional e local”, confinado aos Estados Unidos. Mas não, a “linha da cor cinta o mundo”, afirmava W. E. B. Du Bois. Era neste plano que devia ser pensada: globalmente. E era assim que devia ser confrontada: globalmente. As desigualdades de riqueza e poder, as oportunidades e os constrangimentos associados, tinham (e têm) cores e não tinham (nem parecem ter) limites.
TEXTO: “O problema do século XX é o problema da linha da cor [color line], (. . . ) a relação entre as raças de homens mais escuras e mais claras, na Ásia e em África, na América e nas ilhas do mar. ” Assim escreveu W. E. B. Du Bois, em The Souls of Black Folk, publicado em 1903. Segundo o célebre pensador afro-americano, o século que então se iniciava seria inevitavelmente marcado pelo “problema dos problemas”: a persistente desigualdade racial, com causas, contextos e consequências que se manifestavam globalmente. Como notara Frederick Douglass, anos antes, num texto precisamente intitulado The color line, publicado na North American Review (1881), o “preconceito contra a cor”, bem disseminado e naturalizado, precisava de ser confrontado. Douglass apontava essencialmente para o contexto norte-americano. Du Bois também esmiuçava as atribulações do “contacto racial” no Sul dos Estados Unidos da América, perscrutando as suas motivações e expressões morais e sociais, políticas e, claro, económicas. Mas via mais longe: o “contacto racial” estruturava relações numa outra escala, resultava de dinâmicas translocais, extravasava fronteiras, implicava um outro tipo de conexões e de explicações. Era um problema verdadeiramente global. Não por acaso, a tirada certeira tinha já surgido na declaração inicial dos promotores da primeira Conferência Pan-Africana (Londres, 1900). Assinada pelos organizadores, foi elaborada por Du Bois. A Address to the Nations of the World era clara no problema que colocava: durante quanto tempo e até que ponto as “diferenças raciais” seriam usadas para justificar a “negação” das “oportunidades e privilégios da civilização moderna” a “metade do mundo”?Tinha também sido usada num encontro da American Negro Academy, numa comunicação intitulada The present outlook for the dark races of mankind. Nela, Du Bois clarificava um aspecto importante, que o diferenciava de muitas visões coevas: a questão racial, o problema da color line, não se esgotava numa dimensão “nacional e pessoal”. Envolvia outros espaços e tempos, mais amplos e duradouros. A olhares pouco atentos, podia parecer que “a questão racial” fosse “um assunto puramente nacional e local”, confinado aos Estados Unidos, onde esta parecia à época mais gritante. Mas não, a “linha da cor cinta o mundo”, afirmava. Era neste plano que devia ser pensada: globalmente. Era assim que devia ser confrontada: globalmente. As desigualdades de riqueza e poder, as oportunidades e os constrangimentos associados, tinham (e têm) cores e não tinham (nem parecem ter) limites. Anos mais tarde, em 1925, Du Bois publicou um outro texto, sobre os mundos da cor (Worlds of color). Foi nas páginas da conhecida Foreign Affairs, que ainda hoje guia, nem sempre de modo luminoso, muitos dos que se interessam pelo fugidio domínio das “relações internacionais”. Neste texto, o “problema dos problemas” era pensado a partir dos efeitos da expansão imperial europeia, da “sombra” que esta projectara sobre o globo, feita de imparáveis discriminações e desigualdades, de iniquidades várias com efeitos prolongados. O caso da exploração da mão-de-obra numa escala global era um exemplo. Para Du Bois, “os problemas da cor e do trabalho” eram “dois lados do mesmo emaranhado humano”. O texto acrescentava textura histórica à sua argumentação anterior, concretizando alguns dos seus pontos mais caros. O caso português era abordado como sendo muito esclarecedor: na colónia de São Tomé e Príncipe, o “sistema de recrutamento laboral” correspondia, no essencial, à “escravatura”. Também ali a linha da cor era bem visível. A racialização do trabalho em contexto colonial era óbvia. A escravatura moderna, de Henry Nevinson e John Harris, entre outros, não escapava a Du Bois, que na década de 1920 tomou conhecimento em primeira mão dos temas coloniais discutidos, por exemplo, em Genebra, na Sociedade das Nações ou na Organização Internacional do Trabalho. Aspecto importante: a Foreign Affairs era a sucessora directa do que antes se chamara Journal of Race Development. E muitos pensavam (e pensam) precisamente assim: pensar as “relações internacionais” é pensar no “desenvolvimento da raça”, de uma “nação”, de um “povo”, de uma “identidade”. É assegurar a preservação da sua ascendência, no duplo sentido. E da sua descendência. A história da disciplina das Relações Internacionais, tal como a da Ciência Política, revela bem a centralidade de formas de pensamento racialista e de racialização do mundo no desenvolvimento dos saberes das ciências sociais e humanas. O excelente livro de Robert Vitalis, nosso entrevistado, mostra como e porquê. Na mesma altura em que Du Bois escrevia os seus textos sobre a linha da cor, argumentos semelhantes, com preocupações e propósitos distintos, circulavam internacionalmente, sobretudo no mundo “anglo-saxónico”. Em 1893, o historiador britânico, emigrado na Austrália, Charles Pearson publicou National Life and Character: a forecast. O medo da “expansão” chinesa e de “outras raças amarelas” era explicitado sem hesitações. E foi rapidamente associado a outros receios, com outras cores, associados a outros colectivos, sempre pensados uniforme e compactamente. O livro teve um impacto considerável, também enquanto inspiração para a política externa norte-americana e para o seu intervencionismo na América Central. Saiu cinco anos depois de uma das mais importantes formulações do “problema negro”, o maciço The American Commonwealth, da autoria de James Bryce, seu antigo colega de estudos no Oriel College (Oxford). Esta última obra constituía um exemplar esforço de formular uma espécie de sociologia comparativa das “relações raciais”, visando provar a relação íntima entre determinismo racial e a formação de uma (des)ordem global. Foi invocada como fundamental para todos os que almejaram criar políticas de segregação social e racial, um pouco por todo o mundo. Anos mais tarde, em 1902, Bryce abordou as relações entre comunidades (“raças”) “avançadas” e “atrasadas” da humanidade, no seu The Relations of the Advanced and the Backward Races of Mankind. A recorrência de interacções entre “raças”, em parte resultante de fenómenos de mobilidade crescente a uma escala global, aumentara de modo dramático e isso implicava inúmeros riscos sociais e (geo)políticos. Uma “crise na história do mundo” avizinhava-se em razão desse facto. Era preciso governar as “relações raciais”, numa escala local, mas também global, para defrontar e debelar a crise. Para Bryce, era óbvio o que estava em causa. Como escreveu no mesmo opúsculo, que registou para a posteridade nas suas Romane Lectures, era preciso evitar os “riscos que uma democracia corre quando o sufrágio é garantido a uma larga massa de homens semicivilizados”. Os princípios democráticos que pautaram a sua juventude, numa sociedade monárquica e de privilégios chocantes como a inglesa, pareciam vacilar face aos supostos estádios desiguais de “civilização”. Era este o “problema negro”, ao qual Pearson juntava o “problema amarelo”. Tal como Bryce, e, mais tarde, Du Bois, mas certamente com outros sentidos e fins, Pearson argumentava que só um enquadramento histórico global poderia permitir compreender as “relações raciais”. Chamava ainda a atenção para o facto de que as exigências de garantia de direitos sociais, económicos e políticos (incluindo os de mobilidade e de residência) por parte das “raças amarelas e negras” tenderem a aumentar. As políticas do medo tinham agora substância intelectual para manipular. Para muitos, as suas análises foram tomadas como um apelo à mobilização e ao activismo racial: era preciso preservar o lugar e os privilégios da “raça branca”. Anos mais tarde, um admirador de Pearson publicou The Rising Tide of Color Against White World Supremacy (1920). Neste, Lothrop Stoddard ia mais longe: era preciso garantir a sobrevivência dos países dos homens brancos. Segundo ele, “toda a raça branca” estava “exposta, imediatamente e inevitavelmente, à possibilidade de esterilização social e final substituição ou absorção pelas populosas raças de cor”. Era um apelo às armas. O lugar do homem branco estava em risco. Na mesma altura, a esterilização era invocada com outros propósitos, ecoando argumentos de finais do século XIX e antecipando pontes com o descalabro dos anos 30 e 40. Numa série de várias edições, iniciada em 1918, Madison Grant publicou The Passing of the Great Race. O livro foi celebrado por Theodore Roosevelt, que também apreciara, e muito, o livro de Pearson. Não por acaso, o expansionismo americano de então era visto como “um desafio nacional e racial”. A expansão territorial garantiria sobrevivência, política e racial. Para uns, era o espaço vital. Para Grant, membro da Immigration Restriction League e presidente do Eugenics Sub-Committee of the United States Committee on Selective Immigration, os imigrantes do Sul e do Leste europeu estavam a liquidar a “raça nórdica”, através da miscigenação. Tal como ouvimos recentemente, podemos deduzir que migrantes da Escandinávia mereceriam melhor recepção. No livro de Grant, como noutros do período, o racismo científico encontrava nas políticas restritivas de imigração manifestação poderosa. A invenção do passaporte fui utilíssima. O uso dos testes de literacia, por exemplo, para o impedimento do acto de voto, foi uma bênção. O próprio Stoddard escrevera de modo claro que a “restrição da imigração é uma espécie de segregação em larga escala”, através da qual “stocks inferiores podem ser impedidos tanto de diluírem como de suplantarem os stocks bons”. Em 1924, o Johnson Immigration Act estabelecia quotas com um sentido óbvio: o favorecimento do Norte da Europa. As políticas nacionais podiam atacar de frente as linhas de cor e os seus esperados efeitos, reais e imaginários, desejados ou temidos. Mas outros rasgos eram necessários, que enfrentassem o carácter e as ramificações globais do problema. Para muitos, a questão racial era, também e talvez até sobretudo, de ordem geopolítica. Para Dubois, estava fortemente associada à formação histórica, política, económica e sociocultural do imperialismo. Para Bryce, Pearson, Grant ou Stoddard, apesar das diferenças de perspectiva e ênfase, remetia para ansiedades várias e problemas existenciais concretos. Para receios de sobrevivência e ascendência, individuais e colectivas. Tratava-se de preservar, de modo tenaz, uma comunidade imaginada de branquitude, resistente a contaminações e capaz de vincar a sua supremacia global, civilizacional, de impedir o seu declínio. A identidade racial devia guiar a identidade (geo)política. A racialização do mundo determinava a espacialização da imaginação política. Cláusulas de “igualdade racial” foram negadas, como sucedeu com a proposta japonesa na Conferência de Paz de Paris, em 1919. Todos estes argumentários são, eles próprios, produtos globais. Resultam da circulação, apropriação, contestação e advocacia, por vezes bem organizada, de ideias e de políticas, de receios e expectativas, intimamente ligados a projectos de diferenciação e discriminação racial, num plano internacional, transnacional e global. E a sua história não acabou com os desvarios do século XX. Os ecos destes passados são facilmente reconhecíveis no mundo de hoje. O lugar da questão racial enquanto coordenada orientadora das imaginações da ordem internacional não se esbateu com os violentos embates e ampla geografia do segundo conflito global. Transformações processaram-se, ainda que com sentidos variados, em função de contextos sociais e políticos diversos. A expansão japonesa pelo continente asiático abalou as fundações dos impérios europeus no continente, como nas Índias Orientais Holandesas, em Singapura ou na Malásia ou no Vietname. Manifestou-se tanto pela desarticulação das estruturas administrativas e políticas locais e pelas alianças com grupos nacionalistas, como pelo seu impacto simbólico: era a demonstração da possibilidade de derrota marcial dos modernos exércitos ocidentais por adversários não brancos. Mas, também aqui, os resultados não foram uniformes. O direito de os povos asiáticos disporem de si próprios e assim se organizarem politicamente foi feito depender de vários critérios. À cabeça, desde logo, a sua acomodação no novo mundo criado pela competição entre os EUA e a URSS. A mesma Guerra Fria que, por exemplo, no que dizia respeito a África, obrigou os governos norte-americanos a temperar as pressões sobre os seus aliados ocidentais no sentido de outorgarem maior autonomia política, administrativa, económica e cultural às suas dependências. Uma leitura equilibrada destes anos, por um lado, deve sinalizar a persistente centralidade da questão racial globalmente, por outro, não pode ofuscar as mudanças que então se operaram. É sobre provavelmente o momento mais simbólico dessa transformação que trata The Color Curtain: a report on the Bandung Conference (1956), de Richard Wright. Wright, um prolífico romancista afro-americano a viver em Paris já há largos anos, e autor de livros aclamados como The Native Son (1940), Black Boy (de 1945, e de feição autobiográfica) e, mais tarde, White Man! Listen (1957), deslocou-se a Bandung, na Indonésia, durante três semanas, para acompanhar a Conferência Afro-Asiática que aí decorreu, em 1955. Nela, Wright anunciava aquilo que via como a afirmação de um novo momento de libertação das chamadas “coloured races”. É importante sublinhar que tanto a conferência como a própria obra de Wright se prestaram a consideráveis processos de mitologização. O carácter inaugurador de Bandung, como este texto demonstra, deve ser matizado por uma história mais longa de contestação ao domínio racial branco. Como Robert Vitalis assinala, “fábulas” como as que rezam sobre a presença de Kwame Nkrumah na conferência persistem. A equação de Bandung com o movimento dos não-alinhados, criado em 1961, perdura, mesmo em meios especializados. Na verdade, a maioria dos representantes dos Estados participantes estava plenamente alinhada num dos campos, como era o caso da China, da Turquia ou das Filipinas. Mesmo a ideia de uma unidade racial em revolta mereceu resistência por parte de alguns delegados, como os do Médio Oriente, e foi, por vezes, cuidadosamente omitida. Todavia, a forma como a conferência foi apropriada, por apologistas como Wright, ou por detractores, desde logo nas metrópoles imperiais europeias, tornou Bandung o epítome de uma transformação global que ditou o fim, pelo menos formal, dos impérios ocidentais. Sinalizou ainda o início de uma era em que o putativo “atraso” cultural ou civilizacional das populações autóctones perdeu legitimidade enquanto elemento aferidor da propriedade de soberania estatal. A figura de Richard Wright, e mesmo do seu relato sobre Bandung, nunca deixou de se sujeitar às mais variadas polémicas. Tendo sido comunista nos anos 1930, Wright acabaria por renunciar à militância através de um artigo intitulado I tried to be a communist (1944). Mais tarde, já em Paris, acabaria por denunciar à CIA uma série de militantes comunistas e compagnons de route também empenhados na causa anti-racista e anticolonial. As suas descrições da conferência e dos delegados mereceram críticas de muitos, que ali encontraram sinais de condescendência, referências ao suposto “primitivismo” dos activistas anticoloniais, desdém pela recorrente referência destes a questões culturais e religiosas. Anteviram em Wright um americanismo orgulhoso e um endossamento sem contemplações do que via como a modernidade ocidental. Mas, para Wright, a tocha dessa modernidade seria agora carregada pelas novas nações e pelas minorias oprimidas das sociedades segregadas. Eles eram o futuro, e a ordem global acompanharia esse novo devir. Bandung era, inequivocamente, o retrato de um novo mundo, ainda que não necessariamente idílico. Wright era apenas um dos muitos indivíduos que olhavam para os desenvolvimentos do pós-guerra com a esperança de que testemunhavam uma nova era, em que a estrutura das hierarquias raciais e socioculturais seria profundamente abalada. E que a concebia em termos globais, procurando ligar regiões aparentemente distantes e fundir os movimentos contra a segregação racial doméstica e as novas lutas de descolonização numa só corrente. Porventura, nenhuma região terá produzido maior número relativo de intelectuais comprometido com esta visão, em termos genéricos, como as Caraíbas. Maioritariamente colónias de plantação, os vários territórios que constituíam a região eram significativamente marcados pelo peso da população negra e o seu lugar social diminuído. A maior parte deles entrincheirada entre o “tradicional” colonialismo europeu e o que viam como o novo imperialismo norte-americano. Faziam parte do complexo que Paul Gilroy classificou como o Black Atlantic (no livro homónimo, onde um dos capítulos é precisamente organizado em torno de Wright), unindo as experiências das populações segregadas do Sul dos EUA e os sujeitos coloniais em África e nas Caraíbas, todas sociedades profundamente tributárias do processo triangular da escravatura transatlântica. A lista é extensa, de Eric Williams, de Trindade, de que viria a tornar-se primeiro-ministro, que estudou no Reino Unido e nos EUA, tendo escrito o seminal Capitalism and Slavery (1944), a Franz Fanon, nascido na Martinica, migrado para Paris, adoptando a causa da Frente de Libertação Nacional Argelina, mais tarde autor de Peles Negras, Máscaras Brancas (1952) e Os Condenados da Terra (1961). Aimé Césaire, também da Martinica, um dos proponentes da Négritude, que emigrou para a metrópole parisiense, onde se tornou deputado à Assembleia Nacional; CLR James, nascido em Trindade e Tobago, que circulou pelo mundo anglo-saxónico, e autor de Black Jacobins (1938), onde analisava historicamente a revolução antiesclavagista de Santo Domingo; ou George Padmore (ver número anterior), também de Trindade; são nomes que, mais uma vez, apesar das suas diferenças e divergências, partilharam uma angústia sobre o seu lugar existencial enquanto sujeitos coloniais. Todos identificaram, ainda que de modos diferentes, na questão racial a centralidade que muitos anos antes Du Bois lhe atribuíra. Formados no período entre-guerras, experimentados pelos grandes acontecimentos globais como a depressão ou a revolução bolchevique, bem como por outros de natureza local, como as múltiplas crises que emergiram em Porto Rico, Trindade ou na Jamaica na segunda metade dos anos 1930, profundamente viajados, acreditavam num projecto global de emancipação da “outra metade do mundo”. Claro que, consoante o actor e a época, este desiderato e o modo da sua concretização assumiram um pendor mais ou menos internacionalista, mais ou menos centrado na unidade nacional. Esta é uma pequena lista que poderia ser facilmente aumentada, com protagonistas de épocas mais recuadas. Desde logo, recuperando o famoso Marcus Garvey, com a sua proposta de uma diáspora africana, alimentada por uma companhia de cargueiros exclusivamente composta por negros, ou por outros nomes como Claude McKay, o poeta jamaicano, que contribuíram directamente para o que ficou conhecido como a “Harlem Renaissance”. Não se trata, todavia, de uma ligação que se cinja a um movimento intelectual. Um terço da população do Harlem nos anos 1930 era composto por habitantes das Índias Ocidentais. O domínio inglês sobre estas encontrava-se em competição com a influência norte-americana, originando múltiplos fluxos que reforçaram identidades partilhadas ou solidariedades translocais. Estas estender-se-iam também ao continente africano, primeiro em movimentos de protesto motivados pela invasão da Etiópia pela Itália, em 1935, mais tarde com o acelerar do movimento de descolonização do continente. O sentido de uma experiência comum passada marcada pelos efeitos da escravatura e do tráfico de escravos, assim como pelo domínio colonial e, no presente, pela segregação racial doméstica ou pelo domínio estrangeiro, sedimentaram movimentos e circuitos que, especialmente após 1945, ajudaram a pôr em causa uma ordem global “branca” e “ocidental”. As várias insuficiências e contradições que se manifestaram quando essa proclamada filiação comum precisou de ser materializada não deve impedir a sua séria compreensão histórica. “Apenas são grandes nações aquelas em que raças variadas se têm misturado e integrado, cada uma completando as demais, e só essas têm contribuído para o progresso da humanidade. As grandes nações do mundo — Estados Unidos, União Soviética, China, Brasil — abrangem muitas raças e culturas, e muito têm enriquecido a civilização. Paralelamente, a história prova-nos que as nações habitadas por uma só raça, e com uma só cultura, uma religião, uma língua, podem dar-nos a impressão de estabilidade e de felicidade; mas também nos sugerem paragem e estagnação; e pouco têm contribuído para o progresso da humanidade. ”O leitor mais incauto e possivelmente enrubescido talvez não hesitasse em, ao ler estas palavras, lançar um impropério contra os “activistas do politicamente correcto”. Seria algo que provavelmente o seu autor não gostaria de ouvir. Alberto Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, escrevia esta frase em 1967, num pequeno opúsculo, depois traduzido para inglês, com o objectivo de disseminar a posição portuguesa face ao que eram então as pressões para a descolonização das colónias. A afirmação global do direito de autodeterminação corporizou, também ela, um processo conturbado, e disputado. E, no entanto, nessa história entram esforços não despiciendos para fazer o relógio andar para trás e evitar o que se via como a constituição de um novo regime internacional indiferente aos supostamente desiguais estágios de “civilização”. Em 1967, a simples afirmação da superioridade civilizacional e racial ocidental e branca já não era suficiente para legitimar a presença portuguesa em África. A retórica diplomática portuguesa construída sobre o edifício mais antigo do lusotropicalismo via-se na necessidade de justificar o seu domínio imperial recorrendo à nova linguagem da autodeterminação, dos direitos humanos e da não-discriminação. Como afirmava Franco Nogueira: “Muito mais importante do que a simples criação da palavra ou do conceito teórico de multirracialismo, no entanto, é a criação da própria realidade viva a que se aplica o vocábulo. E esse mérito cabe aos portugueses, e isso desde há séculos. Porque foram os portugueses que levaram à África e ali pela primeira vez implantaram a noção de direitos humanos e a noção de igualdades de raças. ”Num exercício que talvez surja familiar a leitores regulares de jornais no presente, Franco Nogueira virava a questão de uma ordem racial desigual de pernas para o ar. Pensar o Terceiro Mundo através da “adopção de um critério étnico” seria “a mais perigosa das definições: porque suporia a tendência inevitável para o conflito de raças em plano mundial, e o Terceiro Mundo coincidiria, no fim de contas, com o cerco à raça branca e à sua civilização”. O objectivo final: legitimar a resistência do império. O resultado da projecção global da linha de cor seria um violento choque de civilizações, sendo o império português um dos últimos bastiões da civilização europeia, em mera posição defensiva. Afinal, o que importava era os direitos humanos, não a raça. Como sugeria, associar a autodeterminação e independência a direitos humanos criava um paradoxo racista: “Aceita-se a negação dos direitos humanos desde que praticada por homens da mesma raça: rejeita-se a protecção dos direitos humanos desde que exercida ou garantida por indivíduos de raça diferente. ”Há dois aspectos que é preciso sublinhar. O primeiro tem que ver com a relativa sageza de Franco Nogueira. Num período em que a Guerra Fria dominava as atenções, o eixo de fractura perpendicular que atravessava norte e sul mantinha a sua acuidade. Menos argúcia talvez fosse identificável no facto de que existiam novas formas (e mais eficazes) de manter as profundas desigualdades sociais, políticas e económicas que continuavam a caracterizar o mundo. O segundo tem que ver com a absoluta insustentabilidade das afirmações de Franco Nogueira. Não só a posição de subordinação das populações africanas no quadro imperial era mais do que evidente como as violações dos direitos humanos eram mais do que muitas. Não é preciso avançar até às violências várias associadas aos conflitos em Angola, Moçambique e Guiné, desde o uso de napalm às punições exemplares. Basta pensar no ano de 1960, nas vésperas do início dos conflitos militares. Em nenhuma das colónias portuguesas de indigenato haveria mais de 5% (para sermos generosos) de africanos com estatuto de cidadania. Isto implicava não apenas que os “indígenas” não podiam votar, mas também que não podiam, por exemplo, deter a posse privada de terra ou que, ao contrário dos europeus, deveriam cumprir um número mínimo de meses de trabalho por ano. O acesso a saúde e educação era profundamente desigual. Campos de “internamento” em territórios sem guerra, como em Moçambique, destinados aos indianos que aí residiam, após a invasão de Goa, acolheram crianças de meses. Como reportava um inspector colonial (supostamente zelador do bem-estar das populações coloniais), nesse mesmo ano e referindo-se também a Moçambique, todos sabiam que a palmatória era o “melhor instrumento, senão o único, de política indígena”. Deveria ser temperado o seu uso, mas não abolido, porque levaria o “indígena” a “maiores desobediências”. Em Angola, no mesmo ano, um governador de distrito assegurava que era “muito cedo para em Angola instituir o trabalho livre”, porque “dar ao indígena mais do que ele pode receber é convidá-lo à indisciplina, ao retrocesso, à rebeldia”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Podíamos continuar. São apenas alguns exemplos entre muitos possíveis do que consistia o carácter peregrino português na afirmação dos direitos humanos em África, numa altura em que a maior parte dos impérios europeus se encontrava em retirada. O próprio Franco Nogueira estava bem ciente destas realidades. Como afirmava em relação à questão do trabalho forçado, em 1956 (cuja legislação associada datava de 1928, admitindo legalmente ainda muitas formas de trabalho compelido), o problema situava-se na “distância que separa o que é legislado do que é praticado na África Portuguesa”. Provavelmente, são estes alguns dos dotes que permitem que a capacidade técnica de Franco Nogueira seja hoje celebrada. Todavia, o importante a reter é a forma como a questão racial era por este percebida como central na evolução do século XX. E os seus esforços para inverter as acusações de uma discriminação histórica evidente, acusando de racismo os que contestavam o domínio português, fazendo da vítima, algoz, de algoz, vítima. Tanto na forma como no conteúdo, são dispositivos retóricos hoje bem em voga. E que não devem tolher um olhar crítico sobre as profundas e persistentes marcas de desigualdade racial e cultural entre e dentro de países que sobreviveram à formação acidentada de uma nova ordem global, em princípio e teoria, indiferente à cor da raça. Princípio esse, mesmo com as suas limitações enquanto tradução real, pelo qual vale a pena lutar.
REFERÊNCIAS:
Partidos PAN LIVRE BE
“O mundo ainda não percebeu a aposta de Pequim na Inteligência Artificial”
Casey Lau é o “embaixador” da Web Summit em Hong Kong. Diz que está em curso uma batalha e que toda a startup que faz bem as coisas já recebeu uma chamada da China. (...)

“O mundo ainda não percebeu a aposta de Pequim na Inteligência Artificial”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.6
DATA: 2018-11-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Casey Lau é o “embaixador” da Web Summit em Hong Kong. Diz que está em curso uma batalha e que toda a startup que faz bem as coisas já recebeu uma chamada da China.
TEXTO: Hong Kong está a ganhar protagonismo no panorama mundial do investimento tecnológico. Pequim pôs em marcha a iniciativa Greater Bay Area que pretende aproveitar o potencial de conhecimento e poder financeiro da região, projectando-a no mundo como uma porta de entrada na cena asiática. É a partir de Hong Kong que Casey Lau dá esta entrevista ao PÚBLICO. Como descreveria o cenário de startups e investidores na Ásia?A Ásia, tal como a Europa, tem realidades muito diversas. Quando vemos que a Ásia ultrapassou o investimento europeu ou ameaça a liderança dos EUA, estamos basicamente a falar da China. É um país com mais de mil milhões de habitantes, onde qualquer startup tem de escalar o mais rapidamente possível porque os concorrentes vêm logo na peugada. É por isso que há muito dinheiro a ser injectado na China, que absorve 75 a 80% do financiamento em startups na Ásia. Em termos de investidores, o panorama é equivalente. Há fundos muito fortes na China. E no Japão, como o Softbank Vision Fund, que investe fora da Ásia, mas é dinheiro asiático. Todos estes gigantescos fundos estão atentos ao que se passa no resto do mundo, querem fazer parte das startups mais relevantes ou promissoras. A Ásia tem sido reconhecida como uma potência nas plataformas de comércio electrónico e de Inteligência Artificial. Qual é o segredo?O cenário chinês no comércio é muito diferente do dos EUA, por exemplo. Há numerosas cidades de média dimensão (à escala chinesa) onde o acesso a determinados bens só é possível por comércio electrónico. Pequim e Xangai têm os grandes centros e zonas de comércio, mas cidades mais pequenas não e é nessas que as plataformas de e-commerce são fundamentais. Quem vive em Los Angeles ou em Boston tem acesso aos mesmos produtos, aos mesmos circuitos de distribuição, às mesmas marcas. Mas na China, o panorama é muito diferente. Até porque as distâncias por vezes são enormes – para largas camadas da população a ideia de se meter no carro para ir às compras não faz sentido. Por isso é que as empresas de logística que asseguram entregas suscitam tanto interesse nas tecnológicas. E quanto à Inteligência Artificial…. ?As principais universidades chinesas estão recheadas de excelentes cientistas, que estão a ser empurrados para o desenvolvimento de projectos nessa área. Está em curso uma guerra global por este tipo de talento e de tecnologia e ganhará quem conseguir agarrá-los. A China é uma das economias que têm posto uma quantidade gigantesca de recursos e de pessoas no desenvolvimento da Inteligência Artificial. Penso que o resto do mundo ainda não percebeu muito bem a dimensão e a relevância da aposta que Pequim fez a este nível. É um dos projectos verticais mais decisivos para um país que tem mais de mil milhões de habitantes. Pode dar exemplos?Há um par de startups que estão a desenvolver tecnologia de câmara para reconhecimento facial nos serviços de imigração, nos aeroportos. Para um país desta dimensão, isto é um desafio enorme e que, a funcionar, se traduzirá num ganho fenomenal em termos de tempo, de recursos, de poupanças e eficiência. A questão é que, depois de funcionar na China, esta tecnologia será vendida ao resto do mundo. Com base neste exemplo é fácil de adivinhar que a próxima superpotência mundial será o país que conseguir dominar estas tecnologias e outras do género. Seria fácil para uma startup de fora entrar nesse mercado?Não. A China ergueu um forte muro para controlar a entrada de empresas estrangeiras. Um dos melhores exemplos é a Netflix. Eles distribuem entretenimento em formato digital, não têm um produto físico e, por isso, podem cobrir um país em dois segundos, certo? Basta ligar o botão. Mas não o podem fazer na China, onde as regras são diferentes. A Netflix, ou qualquer operador do género tem de licenciar o conteúdo a um player local e as receitas têm de ser partilhadas. Se o aspecto financeiro é importante, há uma razão ainda mais relevante, que é o lado da censura, neste caso. Isto aplica-se mais ou menos da mesma forma às plataformas de e-commerce, é muito difícil vir de fora e tentar conquistar uma parte deste mercado gigante. Porém, para o resto da Ásia, isto já não se aplica. Toda a gente quer a China mas, tirando as diferenças culturais, entrar noutros países é muito mais fácil. E estes constituem um mercado ainda assim gigantesco para qualquer startup europeia: o Japão tem um mercado de 125 milhões de pessoas, na Indonésia são mais de 250 milhões de consumidores. É mais fácil encontrar um investidor asiático do que entrar nesses mercados?É muito mais fácil. O triunvirato BAT (Baidu, Alibaba e Tencent) investe fortemente nos EUA e na Europa, é muito activo em todo o planeta. É muito provável que uma empresa que seja muito famosa no teu país já tenha dinheiro de alguma das empresas deste universo. Se a tua startup está a fazer as coisas bem e a destacar-se no que faz então é muito provável que já tenha sido contactada por um investidor chinês. É uma estratégia vertical, em que todas crescem a par, e desenvolvem os negócios em conjunto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Como é que começou a trabalhar com a Web Summit?Conheci o Paddy Cosgrave em 2015. Eu trabalhava com startups desde 2009, fundei a Startups HK, que prestava apoio a novas empresas, organizava eventos, conferências e coisas do género. Apresentávamos também startups a investidores e aos media. Quando ficou decidido que a Rise se realizaria em Hong Kong, o Paddy apresentou-me a visão dele, que eu partilhava, e acabei por me juntar assim à equipa como o responsável pela Rise e o embaixador da Web Summit na Ásia. Penso que não podes escrever isto, mas eu sou o Paddy asiático [risos]. Porquê Hong Kong? Penso que houve uma votação online. Mas Hong Kong é um hub asiático, de acesso fácil. Singapura também poderia ter sido escolhida, mas é mais difícil chegar até lá. Além disso, Hong Kong é sede, ou anfitriã, de muitas empresas de dimensão internacional e talvez haja em Hong Kong mais irlandeses (nacionalidade de origem de Paddy Cosgrave) do que em qualquer outra parte da Ásia!
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Augusto Mateus: "Onde Portugal é competitivo é na mão-de-obra qualificada"
O ex-ministro da Economia Augusto Mateus considera que, em termos de salários, o país destaca-se pelos recursos humanos altamente qualificados com baixas remunerações. (...)

Augusto Mateus: "Onde Portugal é competitivo é na mão-de-obra qualificada"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.25
DATA: 2011-06-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: O ex-ministro da Economia Augusto Mateus considera que, em termos de salários, o país destaca-se pelos recursos humanos altamente qualificados com baixas remunerações.
TEXTO: Para Augusto Mateus, economista e ex-ministro de António Guterres, Portugal deve diversificar as vendas para novos mercados, em especial para os que crescem depressa. Num estudo realizado para a Caixa Geral de Depósitos (CGD), onde estudou de modo detalhado o desenvolvimento da economia portuguesa, o economista concluiu que, mais importante do que definir onde é que o país deve apostar, é criar o ambiente favorável para que se invista, mas sempre no sector de bens transaccionáveis, não regulado. É aí que o país dispõe de vantagens. Para Augusto Mateus há elementos no memorando da troika “que são verdadeiras oportunidades para se fazerem as mudanças necessárias, mas há outros que se forem postos em marcha precipitadamente podem ser negativos”. À luz do estudo que fez para a CGD, sobre o “Desenvolvimento da Economia Portuguesa”, como vê o futuro do país?Com mais dificuldades. Temos um problema de fundo que é de competitividade que corresponde a transformações muito importantes que ocorreram no mundo e na Europa e a que nós não prestámos a devida atenção. Hoje, como o relatório demonstra, temos uma relação muito mais polarizada com o mercado espanhol, dentro dos nossos quatro grandes mercados. Mas o período que melhor correu a Portugal foi aquele em que o mercado alemão emergiu como o grande mercado de referência no contexto europeu, o que historicamente fazia sentido. A aposta de Portugal no mercado espanhol teve como consequência a redução da qualidade das nossas exportações?Sim. E não ajudou a subir a sofisticação. Numa primeira fase, ganhámos com a construção europeia, pois fizemos a construção, enquanto pequeno país, com o Reino Unido. Mais tarde, quando se fez a convergência dos dois caminhos da UE, atlântico com o Reino Unido, continental com a Alemanha, Portugal também beneficiou, pois encontrou no declínio da sua ligação com o Reino Unido uma maior progressão no mercado francês e sobretudo no alemão. Com o alargamento da UE, deu-se a consolidação com o mercado espanhol, que se tornou o grande mercado para Portugal. Foi um mau sinal que Durão Barroso e José Sócrates deram ao aconselharem os empresários a apostar no mercado espanhol?Resultou numa perda de influência do mercado alemão, que se veio somar à do Reino Unido. De tal maneira que Portugal, ficou, a partir de certa altura, diminuído. Tal como o nosso Norte, que durante muito tempo polarizou as relações de Portugal com o Reino Unido, hoje tem mais relações com a Galiza. E este é um ponto muito importante porque no contexto do alargamento e da globalização Portugal não soube consolidar o que de melhor tinha, nomeadamente, o comércio e o investimento com a Alemanha e, sobretudo, não soube encontrar novos mercados de expansão à escala global. Uma das coisas é que falamos muito dos sectores tradicionais mas o que nos distancia mais das economias europeias é termos um peso de mercados que não crescem, como o espanhol, nas nossas exportações muito significativo e precisamos de encontrar novas realidades. Refere-se exactamente a quê?A UE, no seu conjunto, tem um problema demográfico e um problema de consolidação orçamental. Hoje vivemos num mundo a duas velocidades, e a velocidade da UE é lenta. Podemos falar do Mar Negro. A imigração recente trouxe-nos pessoas da Ucrânia, da Moldávia e da Roménia. Se elas encontraram em Portugal uma base para emigrarem, porque é que Portugal não encontra no Mar Negro uma das bases de renovação do seu comércio internacional? Podia recorrer-se de alguns imigrantes que conhecem bem a economia e a realidade portuguesa e que querem regressar aos seus países. E podiam regressar numa lógica de embaixadores económicos, mas numa base comercial em que o seu regresso possa ser ao serviço da colocação de produtos nacionais nos seus países. E temos ainda o mundo emergente, basta pensar no Mercosul, no Brasil, mas não só. O Brasil já foi uma grande aposta e deixou de ser. Deve ou não voltar a ser uma grande aposta de Portugal?Convém não esquecer que a Espanha cometeu um erro estratégico gravíssimo ao colocar o seu vice-reinado das Américas do lado de lá, em Lima, no Pacífico. E desguarnecendo o Atlântico. Houve um tempo em que italianos e portugueses eram decisivos em Montevideu e Buenos Aires. Para Portugal, o Mercosul não é apenas Brasil. E temos a Índia, com a qual continua a ser possível construir uma relação muito interessante, e vários países da Ásia do Sudeste, com a China, Macau. O respeito que há em muitos países asiáticos pela longa presença de Portugal naqueles países dá-nos alguma vantagem dentro da nossa dimensão. Mas acontece que vamos perdendo oportunidades, pois precisamos de tempo para fazer esse reposicionamento. Ainda vamos a tempo?Vamos sempre a tempo, mas quanto mais atrasados mais dificuldades e outros ocupam o espaço que facilmente podia ser nosso. O vosso trabalho menciona o impacto dos actuais desequilíbrios macroeconómicos. . . Sim, porque na UE há uma segunda transformação que resultou da União Económica e Monetária e que trouxe um novo quadro macroeconómico, uma nova Política Monetária. Passámos de uma situação em que tínhamos maior margem de manobra na política orçamental e com uma moeda fraca, para uma situação em que temos uma moeda forte. A moeda forte cria oportunidades mais para uma internacionalização completa: à medida que se aprecia o euro ganhamos vantagem em usar o poder de compra. Precisávamos de ser menos tomadores de preço. Pode desenvolver?É difícil de explicar, mas nosso principal problema não é produzir ao mais baixo custo é produzir a valor unitário mais elevado. Para sermos mais competitivos precisamos de ser mais eficientes, mas o acento tónico da nossa competitividade está mais em produzir mais valor do nosso produto e não produzir a custo mais baixo. É este problema que está por detrás da economia não crescer e por detrás de um país a viver acima das suas possibilidades. O nível da despesa do Estado e das famílias está acima do que a competitividade do país permite. Qual é o vector diferenciador de Portugal, em relação a outros mercados idênticos, que nos permite apresentarmo-nos a um investidor estrangeiro?Para já era preciso que nos apresentássemos e era preciso fazê-lo todos os dias. Há que ter outra atitude. Ganhámos capacidade de responder aos que nos procuram, mas não ganhámos assim tanta para ir ter com quem nos devia procurar e não nos procurou para lhes dizer: se nos procurasse encontraria isto. O que é que o investidor encontraria?Não podemos oferecer um quadro eficiente de decisão pública, não podemos oferecer um quadro de justiça rápida. Mas podemos oferecer uma capacidade de negociação pois, para projectos de alguma dimensão, podemos negociá-los depressa, atribuir incentivos fiscais. E tomar decisões rápidas. Dizer sim ou não no prazo que quiserem. Num contexto diferente [enquanto ministro da Economia de Guterres] percebi que o que os investidores querem é segurança, rapidez e flexibilidade nas decisões. O que achavam importante era garantir que o Governo os acompanhava nas suas decisões de investimento deixando-lhes alguma margem de escolha. Tem exemplo de situações em que isso ocorreu?Por razões que desconheço, quando saí do Governo, deixei um acordo de entendimento com a INTEL assinado, para construir um projecto em Portugal. O que trouxe o interesse foi a posição que eu assumi de dizer: Portugal acompanha a vossa decisão por um valor mínimo de investimento e por um valor máximo de investimento. Abaixo de um certo valor o investimento não é estruturante e não temos razões para vos dar incentivos significativos e acima desse valor não temos condições de vos dar incentivos. Mais nenhum país ofereceu confiança e flexibilidade. Mas o investimento não foi feito em Portugal?É verdade. Mas eu consegui pôr Portugal no mapa, depois consegui que ficasse entre quatro candidatos, depois entre três, depois entre dois, e depois assinámos o protocolo. A secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, na altura, era de origem checa, e ela não largou o presidente da INTEL até que ele fosse tomando decisões a favor da República Checa. Mas dou a mão à palmatória porque não me apercebi do que se estava a passar. Mas lá o convenci e acabamos a assinar um memorando de entendimento. Mas saí uma semana depois do Governo e mais ninguém se interessou pelo projecto e o investimento acabou por ser formalizado na Turquia. Uma das conclusões do relatório é que Portugal tem que ser uma economia mais aberta e atractiva. O que temos para oferecer a quem quer investir em Portugal?Podemos oferecer coisas muito interessantes do ponto de vista do desenvolvimento turístico, o sector que é o maior gerador de riqueza e de emprego a nível mundial. Não nos interessa uma sobre utilização dos recursos nem um modelo turístico predatório. No Algarve precisávamos de ter tido uma estratégia que alargasse a base territorial, mas nós construímos na falésia. Precisamos de fazer turismo na serra, de excelência. Precisamos de diferenciar para cima o tal valor unitário a subir. Precisamos de captar mercados que não sejam as classes médias da Alemanha, da Holanda e do Reino Unido. Isto é: cada vez mais um hotel não é um hotel, tem uma relação com o património, com a cultura, com os saberes regionais. Em Lisboa pode-se construir um imenso arco patrimonial que mais nenhuma capital europeia tem em diversidade e em dimensão [Sintra, Mafra, Tomar/Templários]. Em vez de afunilar a estratégia deve ser alargar a escala?O que podia parecer uma sobre exploração de um recurso escasso, passa a ser o contrário: uma coisa harmoniosa do ponto de vista do desenvolvimento regional e local. E pode fazer emergir, para além de três regiões, Lisboa, Algarve e Madeira, onde temos algum sucesso, os Açores, o Alentejo, o Douro, um pouco o Oeste. E aí têm de surgir oportunidades. Este é um terreno onde Portugal tem um trunfo muito grande. E porquê? Porque temos um país tranquilo, diferenciado, relativamente preservado. E com uma boa política consegue-se fazer coisas sérias. A ideia que persiste é que o país está pouco preservado? É verdade que existe essa ideia. Mas se por um momento largar Portugal e for europeia e habitante do planeta terra, então fica com outra ideia. Há outra área: temos que perceber que já não somos competitivos em termos de salários. Dentro da UE, na República Checa, na Hungria, na Polónia, há mais de 100 milhões de pessoas com mais escolaridade e salários mais baixos do que os portugueses. Como é que se diz a alguém que se é competitivo? As indústrias da cablagem para automóvel são um exemplo: elas vieram para Portugal quando Portugal era o país da UE com salários mais baixos e saíram quando deixou de ser. Em Portugal há recursos altamente qualificados, temos engenheiros, médicos, gestores, físicos, químicos, gente muito escolarizada, muito competente, pois foi formada em universidades modernas e capazes, mas com salários baixos. Onde somos muito competitivos do ponto vista dos salários é no que é mais qualificado?E essa é uma ideia completamente diferente daquela que os portugueses têm. Por acaso não está a falar do sector dos não transaccionáveis?Não estou a falar de uma loucura do país, que foi a de voltar a economia toda para o sector dos não transaccionáveis, onde os mercados são protegidos e onde toda agente ganha muito. Estou a referir-me a pessoas que trabalham em sectores com salários de mercado e que comparam muito bem e onde, ainda por cima, do ponto de vista cultural, temos pessoas na casa dos 25 e 30 anos que falam muito bem inglês e são criativos, com licenciaturas, mestrados. E que fazem parte de uma geração onde o raciocino analógico está muito presente e que são muito vocacionados para a programação ou para actividades recreativas. A base é pequena e podia ser maior. Mas é uma base que nos dá capacidade de atrair investimento. Como se dá o passo em frente para atrair investimento?Primeiro, não se deve dar tanta facilidade para investimentos virados para dentro. Os níveis de política económica e acção do Estado mostram que se reduziu o risco e aumentou a rendibilidade nos investimentos para a economia portuguesa protegida e se dificultou a vida, aumentou o risco, a quem podia internacionalizar a quem podia produzir bens e serviços, que são só 30 por cento. Desse ponto de vista, se virar a política do avesso, e for decididamente para uma favorável a actividade de bens e serviços transaccionáveis, promove actividades de recursos humanos mais qualificados. Investiu-se nas universidades para ter mão-de-obra qualificada, mas não se investiu na mudança estrutural da economia para criar emprego. A análise mais aprofundada da economia portuguesa permitiu-lhe pensar em mais propostas que ajudem o país a sair da crise?Se já tivesse sido posto em marcha um plano de poupança a sério, os portugueses estavam mais seguros, em vez de andarem sem saber o que lhes vai acontecer. Estavam a poupar mais. No início de 2008 o Governo cortou nos benefícios aos certificados de aforro…Esses são os erros colossais que se cometem quando se pensa que a Política Pública deve ser feita por artistas, gente que tira coelhos da cartola e fala bem. Claro que falar bem é bom, mas não chega. E esse [corte nos benefícios aos certificados de aforro] é um dos erros da Política Económica que foram cometidos ao longo dos anos e que explicam muitos dos sarilhos em que a economia portuguesa se meteu. Voltava a apostar nos certificados de aforro?Até fazia operações novas. Uma emissão especial de obrigações de salvação nacional para as pessoas sentirem que estão a colaborar. Em tempo de guerra as populações reagiram bem a ajudar os seus países, acredito que em tempo de paz reagiriam melhor. E isso pode ajudar o Estado e a banca. A Itália tem um problema de competitividade maior do que o de Portugal, mas continua com uma taxa de poupança elevada. Os italianos continuam a poupar 14 ou 15 por cento, que aplicam nos seus bancos. E, portanto, os bancos italianos têm uma base de captação de recursos que depois reciclam para as empresas, algo que a banca portuguesa não tem. Nos últimos anos a taxa de poupança nacional desceu de 11 ou 12 por cento para seis por cento o que agravou muito as dificuldades. O nosso sistema financeiro pendurou-se em ir captar poupanças ao exterior. O nosso problema não é tanto o nível de endividamento global, mas no facto do nosso endividamento ser sobretudo externo. Medidas deste tipo dariam confiança às pessoas como também dariam se lhes dissermos que, no contexto das medidas de ajustamento, não se tocará em ninguém, rico ou pobre, abaixo de um certo nível, por exemplo de 750 euros. Temos que pôr as pessoas a pensar no futuro e a trabalhar e a pensar que há um caminho. Há que mudar a Política Económica no nosso país. Seria útil as pessoas puderem fazer poupanças a taxas de juro atractivas, e não se tem dificuldade nenhuma em montar operações em que se tem poupanças com rendimentos a taxas de juros a quatro ou 4, 25 por cento. Seriam operações concebidas ao nível dos bancos, mas em articulação com o Estado e onde os bancos se capitalizam e o Estado obtém financiamentos. É favorável à redução da Taxa Social Única (TSU)?Depende. Se a medida for feita com uma forte solidez técnica pode ser interessante, mas não resolve os problemas, mas permite trazer alguma rendibilidade às empresas que a perderam nos últimos anos. E se ela for implacável no sector regulado, virado para o sector interno, se transformar as reduções da TSU em reduções de preços (o que reduz na TSU não vai para a empresa, vai para os consumidores), e beneficiar o sector exportador pode ser positiva. Mas é preciso que isto aconteça. E podemos sempre adoptar medidas do tipo: Se tiver mais sucesso nos próximos três anos do que teve nos três anteriores, nós sobre isso damos incentivos fiscais que na prática significam reduzir a taxa de imposição do IRC. Portanto temos à disposição mecanismos que podem induzir as empresas a ir por aí. Uma das preocupações do relatório foi chamar a atenção para a sobredespesa do país. . . E podemos falar da reorganização institucional do país. Uma medida ousada de revisão de freguesias e concelhos, não dominada pela lógica economicista da poupança de dinheiro, mas dominada pela lógica de adaptar a organização do território àquilo que é o povoamento do país e às necessidades de eficácia, de massa crítica, de gestão pode ser uma vantagem muito grande. E estou optimista porque contra toda a minha expectativa o trabalho que fiz para a Câmara Municipal de Lisboa produziu algo que achava difícil: o entendimento entre PS e PSD. Não concordo com tudo o que foi feito, mas reduziu-se o número de freguesias e aproximaram-se certas decisões do nível mais fino e trouxeram-se outras para cima onde podem ter massa crítica e dimensão estratégica. Podemos fazer isto ao nível do país e com isso alterar a situação. Se pusermos as famílias a poupar mais, a consumir melhor, se corrigirmos essa sobre despesa que o relatório caracteriza bem, sem destruirmos nada em que o país converge, então há razões para se ser optimista. Há uma ideia nos liberais, e que é defendida por alguns grupos que apoiaram Passos Coelho, de que um país não precisa de política económica. . . Sim, excepto quando estão atrapalhados e precisam do Estado. Não se corre o risco de esta ideia poder prevalecer em futuros governos?Não acho que o PSD tenha essa corrente. Essa é uma realidade da campanha eleitoral e uma linha de ataque ao PSD. Claro que o PSD tem essa corrente e tem também uma corrente que não tem futuro, que é a de pensar a Política Pública como uma empresa. A Política Pública não é uma empresa. A boa Política Pública faz coisas diferentes do que as empresas e não se mete com as empresas. Está tão errado o estatista que na prática gostava de ser empresário, quanto o empresário que por ter tido sucesso numa empresa vai tentar aplicá-la nas Políticas Públicas. O mundo mais equilibrado, de maior sucesso, é aquele que dá ao mercado o que é do mercado, ao Estado o que é do Estado. E não há défice de equidade no que respeita à Política Pública. A Política Pública deve definir o quê?As regras de equidade. E tem a grande responsabilidade, que mais ninguém tem, que é harmonizar a busca de produzir com mais eficiência, com a busca de fazer aceder o máximo possível de pessoas aos frutos desse crescimento. E, portanto, creio que aqui não é tanto uma questão de partidos, porque todos têm um défice de adesão às novas Políticas Públicas. Veja a facilidade com que em Portugal se inventam coisas sobre os combustíveis. E estou à vontade porque não tenho nem acções da Galp, nem de outra empresa, nem estou ligado a elas. Mas o nosso mercado comporta-se tal e qual como era esperado incluindo a dança de preços, como dizem os bons economistas que têm estudado este tipo de ciclo de mercados em todo o mundo. Essa é outra ideia que não se tem. . . Repare que entre duas bombas de gasolina, se tiver diferença de cêntimos, é a diferença entre vender muito e não vender quase nada. Qual é a realidade que temos? Tínhamos dois países na Europa com política de combustíveis irresponsável: a Espanha e a Grécia. Sobra um que é a Espanha, pois a Grécia com a crise já alterou a sua política. Temos azar porque somos o único país cuja única fronteira terrestre é com a Espanha que tem uma política fiscal de preços com menos fiscalidade que a dos outros países. E a Espanha foi o único país cujo consumo de combustíveis cresceu durante a primeira década do século XXI. Em mais nenhum país da Europa isso aconteceu. A Espanha pactua com as emissões de CO2. A fiscalidade é útil do ponto de vista da preservação do ambiente?Sim e, portanto, Portugal está do lado certo. Há pessoas que me dizem: eu vou a Espanha e ponho combustível mais barato. É verdade, mas à custa dos impostos. O que temos é que criar economias mais libertas do carbono, temos que fazer coisas mais sustentáveis a favor do planeta. Existe muita precipitação à esquerda e à direita sobre como é que se regulam os mercados. Falou no turismo, na saúde, no desenvolvimento industrial. Há sectores que devem ser estratégicos…A Política Económica nessa matéria, deve ser mais clara do ponto de vista do como e não do onde. Devemos criar condições para que gente qualificada, em vez de pensar num emprego estável para a vida, num banco ou numa universidade, mas que sejam empreendedores, tenham ideias. A vida do empreendedor faz-se com algumas derrotas. No século XX tivemos uma breve ilusão que durou uma geração, 25 anos, entre o final da II Grande Guerra e o choque petrolífero de que podíamos ter emprego para todos. Temos que construir uma sociedade onde haja trabalho para todos e não emprego para todos. Uma coisa é ter uma política que promova o empreendedorismo, outra é dizer que tem de ser de base tecnológica. Por que é que tem que ser de base tecnológica? Consegue-se revitalizar o centro de uma cidade, sem a revitalização comercial? Não consegue. E é de base tecnológica ter de perceber a vida das lojas, os novos cafés? Não. Onde é que somos bons?Em muitas indústrias de bens de consumo que estão a ser desbaratadas, tais como os têxteis, o calçado, os móveis, cerâmica, os pavimentos. Portugal ficou preso ao debate do quê. Somos bons a fazer a casa, a fazer a mesa, a fazer o quarto, mas não assumimos isso. Somos bons no conforto do lar. E depois não somos capazes de assumir isso, de fazer o marketing, fazer um cluster, de por as empresas a colaborar umas com as outras. Como aconteceu no sector dos moldes?No sector dos moldes isso correu-nos bem. O sucesso dos moldes é construído na internacionalização das empresas e há muitos anos. Nos últimos 30 anos houve empresários e empresas que foram escolas e de onde saíram outros empresários e outros trabalhadores. Nos moldes havia diálogo e acção colectiva. Nós ainda hoje, e apesar da crise, temos uma rede de capacidade industrial que pode ser aproveitada. A necessidade de voltar a ter um sector agrícola dinâmico está na ordem do dia. O que pensa?Na agricultura a coisa pode correr-nos bem se for de grande valor. Quando se faz azeite e vinho como se faz medicamentos, de forma sofisticada, criando riqueza, sabendo que se está a produzir para um mercado de alto valor, vai ter sucesso. Portugal não tem dimensão para ser um grande produtor em quantidade de vinho, mas para ser um excelente produtor de vinhos altamente qualificados. No que se depreende está optimista, por um lado, e pessimista, por outro?Os desafios e os problemas são gravíssimos e é preciso uma mudança na Política Económica muito grande. Desse ponto de vista ainda não tenho tempo para estar optimista, mas tenho uma base optimista porque há elementos no memorando acordado com o FMI, CE, BCE que são verdadeiras oportunidades para se fazerem as mudanças necessárias, mas há também elementos que se forem postos em marcha precipitadamente podem ser muito negativos. Portanto diria que a dimensão dos problemas é grave, mas há soluções. E mais soluções haverá se incutirmos confiança ao conjunto dos cidadãos. E essa confiança pode ser incutida a partir da sua própria vida: o seu consumo, o seu rendimento. Veja como é fácil ter uma população que sente que não é deixada ao abandono. Podemos responder na saúde com voluntariado, com solidariedade e podemos responder com Políticas Sociais proporcionadas às necessidades e recursos do país. O meu pessimismo resulta também do facto das pessoas terem medo da solução. Concorda com o amplo programa de privatizações imposto pela troika?O documento identifica as empresas e os prazos. Concordo que as empresas referidas são susceptíveis de ser incluídas no programa de privatizações e também concordo que é necessário e útil vender activos para conseguir reduzir o nível de endividamento. A questão central, no entanto, é a de que não se devem fazer privatizações numa lógica exclusivamente financeira, sendo necessária uma estratégia global associada ao relançamento do crescimento da economia portuguesa para que as privatizações possam ter sucesso. Com a saída do Estado do sector empresarial não há risco de Portugal perder algumas das grandes empresas estratégicas?O quadro da UEM, na Europa, e da globalização, no mundo, obriga a ritmos muito mais intensos e exigentes de investimento e inovação por parte das empresas. O Estado português não tem outra possibilidade, nos próximos anos, senão a de concentrar drasticamente o investimento público no que é essencial e reprodutível com toda a segurança. Isto significa que a presença do Estado como accionista maioritário ou de referência pode conduzir a uma penalização do próprio desenvolvimento competitivo das empresas em causa. Por isso, qualquer estratégia de privatizações precisa de ser bem elaborada porque cada empresa tem características próprias e contribui de forma diferenciada para o desenvolvimento económico do país. Também me parece adequado que o Estado aproveite esta ocasião para reformar a sua relação com o sector empresarial onde detém posições accionistas. O Estado deve sair de todas as empresas, ou deve manter posições, ainda que parciais, nalguns sectores?Na maioria dos casos, o interesse público pode ser melhor defendido através de regras e de acordos transparentes do que através da presença accionista no capital. Admito, no entanto, que em certos casos, que as privatizações sejam parciais, desde que as necessidades de investimento não sejam muito exigentes e o papel do Estado seja o de funcionar como “regulador de proximidade” acompanhando e estimulando a contribuição económica e social da empresa. Mas, na maioria dos casos, será preferível que a regulação seja exterior seja pela optimização do papel dos reguladores, seja pelo estabelecimento de contratos que definam com rigor as obrigações a que a actividade das empresas privatizadas ficam sujeitas. Privatizar não significa ausência de regras nem diminuição da defesa do interesse geral. O que interessa é que as políticas económicas saibam, em cada momento orientar as empresas para regras de funcionamento que permitam gerar valor para os accionistas, seguramente, mas necessariamente, também, para os trabalhadores, os consumidores e as próprias regiões e países que as acolhem. Da lista de empresas a privatizar quais é que lhe merecem reservas?As privatizações que merecem maiores cuidados e necessitam de enquadramento estratégico de mais longo prazo são, sem dúvida, as que se relacionam com os bens e serviços ambientais (como as águas) e com a mobilidade internacional (como a TAP). Em ambos os casos, é imprescindível favorecer uma melhoria competitiva estratégica e, em matéria ambiental, é seguramente necessário encontrar soluções que permitam oferecer condições de qualidade e segurança na satisfação das necessidades das populações. O documento não me coloca especiais reservas a não ser no que respeita a alguns desequilíbrios nos prazos definidos que podem conduzir a precipitações que deveriam ser evitadas. Concorda com a venta da totalidade do capital da TAP, tendo em conta a aposta no sector turístico e na relação com países lusófonos?A privatização da TAP deve ser um instrumento para permitir reforçar a sua posição e do sistema de aeroportos português no quadro mais vasto da actual aliança de companhias onde está a TAP, para favorecer a valorização da posição de Portugal no Mundo, o desenvolvimento do turismo e a internacionalização das nossas empresas. A privatização da TAP levanta, assim, uma dupla questão. Apoiar o objectivo de ter “mais Portugal no Mundo” valorizando, nomeadamente, a nossa ligação aos países de língua oficial portuguesa e aos países emergentes com quem podemos partilhar diferentes formas de cooperação e apoiar o objectivo de ter “mais Mundo em Portugal” favorecendo, nomeadamente, a valorização dos nossos recurso endógenos. O que propõe?A privatização da TAP não deve ter uma vocação financeira em sentido estrito, devendo ser encarada como uma oportunidade para desenvolver e reforçar a mobilidade internacional. A questão chave continuará a ser a da articulação dos modelos de privatização com o modelo de construção do novo aeroporto de Lisboa, reforçando a atractividade e competitividade do nosso país e das nossas regiões, através da “montagem” de parcerias internacionais onde, necessariamente, a relação com a Alemanha, através da configuração da Star Alliance, assume especial relevância. As escolhas em torno do modelo de privatização da TAP são muito mais importantes para acelerar a internacionalização de Portugal do que para obter um encaixe financeiro. Acredita que daqui a três anos, Portugal vai estar em melhores condições do que as de hoje?O memorando [assinado com a troika] é uma oportunidade para corrigir situações que já deveriam ter sido corrigidas e reformadas há muito tempo. Devemos usar esta oportunidade para nos desenvolvermos, para aumentar a poupança interna, pôr ordem nas finanças públicas e torná-las sustentáveis, tomar medidas que dêem confiança aos consumidores e aos empresários e que permitam chegar ao final do ajustamento com um tecido empresarial mais robusto, inovador e competitivo. Se conseguirmos isto, sem medo de uma austeridade justa e proporcionada e com coragem para ser ousado no favorecimento do investimento privado e do crescimento económico, então daqui a uns anos o país estará mais sólido e os sacrifícios terão valido a pena. Versão integral publicada às 10h22
REFERÊNCIAS:
Os refugiados, a bomba-relógio e os medos católicos
As organizações católicas italianas que trabalham com refugiados criticam duramente a nova política do país: o Governo reclama a tradição cristã da Europa, mas as instituições dizem que a política “aldraba a realidade”. E têm receio dos efeitos negativos das orientações no acolhimento e integração dos refugiados — dos que ainda conseguem chegar. Muitos são bloqueados por uma Turquia “que não os protege” ou morrem no Mediterrâneo. (...)

Os refugiados, a bomba-relógio e os medos católicos
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 21 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As organizações católicas italianas que trabalham com refugiados criticam duramente a nova política do país: o Governo reclama a tradição cristã da Europa, mas as instituições dizem que a política “aldraba a realidade”. E têm receio dos efeitos negativos das orientações no acolhimento e integração dos refugiados — dos que ainda conseguem chegar. Muitos são bloqueados por uma Turquia “que não os protege” ou morrem no Mediterrâneo.
TEXTO: O camaronês Franck Tayodjo, 41 anos, está há 15 anos em Itália, mas tem na pele as marcas do que o levou a fugir do seu país, aos 26 anos: basta levantar ligeiramente as calças para poder ver as cicatrizes da violência e da tortura a que foi sujeito. Jornalista no Aurore Plus, ele e outros colegas eram perseguidos pelo Governo, por causa do que publicavam. “Os governos foram sempre duros com jornais mais críticos. ” Forma branda de explicar porque foi metido numa prisão subterrânea e torturado. Apesar de estar detido na cadeia Regina Coeli, no centro de Roma, Pedro Celeita, 66 anos, colombiano condenado por furto a dois anos de prisão, tem autorização do director para sair durante algumas horas do dia e ajudar outros imigrantes e refugiados no Angolo del Pellegrino: “Estou aprendendo a liberdade. Assim como me ajudaram a mim, estou agora a ajudar outros”, diz, a poucos dias de sair em liberdade e poder regressar à Colômbia, para tentar reconstruir a vida. Apenas terá de cumprir um pedido que lhe fez o Papa — já veremos o quê e quando. Às duas horas da tarde, a fila à porta do Centro Astalli, do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, da sigla inglesa), já tem umas 30 pessoas, aguardando a comida que será distribuída uma hora depois. Os rostos são sobretudo africanos, mas também asiáticos e do Médio Oriente. Para os voluntários e funcionários do JRS que ali trabalham, nem sempre a tarefa é fácil. “Quem é diferente, vem de outros países e traz consigo uma bagagem de tanto sofrimento, não é uma pessoa fácil de acompanhar”, dirá, uma hora depois, o padre Camillo Ripamonti, director do JRS-Itália, que se manifestará também preocupado com as decisões e atitudes do novo Governo do seu país e com as indecisões europeias. Odine Gideon, 21 anos, nigeriano, viu morrer gente no barco em que se meteu para chegar a Itália, depois de ter ido a pé do seu país até à Líbia. “Umas 14 pessoas perderam a vida” no barco, incluindo crianças. O infortúnio do pequeno Aylan Kurdi, que morreu em Setembro de 2015 numa praia da Grécia, repete-se incessantemente. Na mesma Casa Scalabrini, um antigo seminário transformado em residência de uns 30 refugiados, o missionário Emanuel Selleri, 35 anos, teme a bomba-relógio que as políticas europeias (ou a falta delas) estão a provocar, com o fechamento de fronteiras. Com 75 anos feitos em Julho, o padre Vittorio Trabi quer ser optimista, mas alerta: “Deixamos as pessoas entrar, mas depois não as podemos deixar dormir debaixo da ponte. ” Franciscano, capelão na cadeia Regina Coeli, o padre Vittorio criou o Angolo del Pellegrino e os Voluntari Regina Coeli, grupo de presos que ajudam quem precisa ainda mais. Na última Quinta-Feira Santa, foi este centro de detenção do bairro de Trastevere, no centro de Roma, que o papa Francisco escolheu para o gesto simbólico e litúrgico de lavar os pés a vários presos. Não é fácil o novo quadro político italiano para as organizações católicas que trabalham com imigrantes e refugiados. O Governo fecha portos aos navios e portas da burocracia, corta a torneira da ajuda financeira, cria um ambiente “hostil”, como dirá o padre Camillo. Ainda em Junho, no início da odisseia do navio Aquarius, que só esta semana conheceu um desfecho, o cardeal Ravasi foi criticado por ter recordado que Santo António também foi náufrago e defender o dever evangélico de acolher o estrangeiro. Os bispos assumem a voz da oposição às novas políticas, dizendo que se sentem responsáveis por quem foge das guerras, do deserto, da fome da tortura. A revista Famiglia Cristiana colocou uma fotografia do ministro do Interior, Matteo Salvini, na capa com o título “Vade retro”. O Papa é popular, mas as suas posições sobre este tema não colhem na opinião pública: em cada três italianos, um está do lado do Governo. . . A história de Franck Tayodjo é tragicamente vulgar: nas eleições de 2003 nos Camarões, o jornal Aurore Plus, onde trabalhava, pronunciou-se contra a fraude na contagem dos votos. A resposta do Presidente, Paul Byia, no poder há 36 anos (desde 1982), foi mandar vários militares intimidar jornalistas. Líderes de opinião, comentadores, políticos de oposição, responsáveis de um jornal católico onde Franck também colaborava, ninguém escapou à vigilância da polícia secreta. “Houve pessoas mortas, o Presidente decidiu fechar o jornal, nós procurávamos vender mesmo às escondidas, o Governo militarizou a cidade e mandou a polícia secreta ao jornal. ”E também a sua casa, onde os militares apareceram à noite: “A minha mulher disse que eu não estava e eles começaram a torturá-la. Ela gritou, eu apareci e eles levaram-me. Antes, com a polícia normal, eu escondia-me e o chefe de redacção resolvia o problema. Dessa vez, já não foi possível. . . ”Franck Tayodjo foi submetido a tortura numa prisão subterrânea. Uma das técnicas era fazer rolar os presos no chão e caminhar com as botas sobre eles. Intimidações, perseguições e tortura são práticas quotidianas, acusa. Enquanto fala, Tayodjo mexe timidamente as mãos, sentado na pequena Capela da Fuga para o Egipto, do Centro Astalli: dois bancos corridos, uma cruz etíope e um missal sobre o pequeno altar, que era a escrivaninha do padre Pedro Arrupe, antigo superior geral dos jesuítas, que criou o JRS há 35 anos, na altura da crise dos boat people vietnamitas. Nas paredes, um ícone pintado por Abbye Melaka, refugiado etíope que ali chegou na década de 1990 e hoje vive na Alemanha, evoca a cena da fuga que a tradição coloca no começo da vida de Jesus. Em frente, outro ícone representa a Última Ceia de Jesus com os seus discípulos, como que dizendo que naquela casa o pão é partilhado por quem precisa. Também Franck Tayodjo já teve de fugir, como no episódio que o nome da capela evoca. Em 2003, a região noroeste dos Camarões lutava pela secessão. “A polícia secreta queria que eu lhes desse documentos sobre isso e perguntavam quem estava por detrás de mim. ” Várias pessoas organizaram--se para conseguir a sua libertação. Um bispo católico conhecia-o e organizou a fuga, em direcção a Bamenda, na região secessionista, e depois para a Nigéria, com a qual o país estava em guerra. Mesmo assim, Franck não se sentia em segurança. Acabou por conseguir arranjar documentos falsos e meter-se no porão de um avião da Alitalia, sem poder mexer as pernas durante as oito horas de viagem. “Não sabia que era um avião italiano. ” Quando chegou a Roma, teve quem o informasse de que poderia pedir asilo político, algo que ele ignorava. No aeroporto de Fiumicino, deram-lhe o endereço do Centro Astalli, nas traseiras da igreja jesuíta do Gesù, no centro de Roma. Cinco dias depois da viagem, conseguiu finalmente tomar um duche, ser visto por um médico, contar a sua história, falar com um psicólogo e juristas e, depois, começar a aprender italiano. A resposta ao pedido de asilo, positiva, chegou ano e meio depois. A história de Franck não tem um final feliz: em Roma, faz por vezes alguns trabalhos manuais, sente-se um “eterno precário”. Vive numa casa nos arredores de Roma, com a mulher, que conseguiu juntar-se a ele mais tarde e trabalha como empregada doméstica, indo a casa duas vezes por semana. Mas sente-se permanentemente “em risco de perder a casa, de perder tudo”. E, enquanto refugiado político, não recebe nada do Estado, sublinha. Pelo meio, e ainda nos Camarões, perdera o filho de três anos, por falta de assistência médica. Ele e a mulher adoptaram uma criança, que tinha mais ou menos a idade do filho que morrera — entrou na universidade há um ano. Com tempo livre, Franck acompanha os voluntários do JRS, há cinco anos, em muitas escolas: conta a sua história e fala com os alunos acerca da situação dos refugiados. As idas às escolas fazem parte do projecto que o JRS desenvolve para alunos entre os 13 e os 19 anos, explica Francesca Cuomo, coordenadora do Finestre (palavra italiana para janelas), dedicado ao trabalho nas escolas, e do Incontro, que trabalha o diálogo inter-religioso. “Pretendemos que os jovens desenvolvam um pensamento crítico, baseado no conhecimento”, diz. Isso significa fazer com eles um percurso didáctico sobre migrações forçadas, o contexto geopolítico, a realidade dos países de origem dos refugiados, o direito de asilo, os direitos humanos. . . É nesse percurso que surge o encontro com um refugiado, que servirá de base a um conto que os estudantes escreverão para um concurso literário. “Não se trata de um relatório, mas de se meter na pele daquela pessoa, fugindo à guerra e enfrentando viagens cheias de riscos. E contar isso com um ponto de vista e sensações. ”Mais de 15 mil jovens participaram na última edição do concurso. “O objectivo não é convencer, mas permitir uma experiência e pôr os jovens ao corrente desta realidade, a partir do testemunho, que é o que a televisão não mostra. ” A memória histórica da Itália enquanto país de emigração também serve de recurso, recordando as histórias da emigração económica dos pais ou das emigrações dos avós após a destruição da II Guerra Mundial. Francesca Cuomo tem consciência de que este é um trabalho de paciência, que se confronta com uma opinião pública em que a recusa da diversidade tem crescido. “O que fazemos é plantar uma semente de mudança de mentalidade. Na aula, eles são mais do que 25, porque depois falam com os pais, os amigos. . . É só um instrumento, talvez pequeno, mas poderoso, para mudar as mentalidades. ”Donatella Parisi, responsável pela comunicação no JRS Itália, está consciente de que a tarefa é árdua e o ambiente cada vez mais difícil. “A política aldraba a realidade e a mensagem positiva fica mais frágil. ” O seu dedo aponta responsabilidades graves a muitos políticos e meios de comunicação: “O binómio imigração igual a terrorismo é cavalgado por políticos e pelos media. Tentamos apelar à responsabilidade e à deontologia dos jornalistas, contra as campanhas de ódio que já estão muito estudadas. ”Nota-se tristeza na voz. “Há uma estratégia política muito precisa num momento muito delicado”, diz. Por isso, os 63 mortos de Junho, num novo naufrágio, ou o mês e meio de navegação do Aquarius à espera de autorização para atracar num porto europeu já quase não são notícia, admite. É o “racismo e xenofobia” a crescer, diz. O padre franciscano Vittorio Trani, que reuniu os voluntários da prisão Regina Coeli no Angolo del Pellegrino, para ajudar imigrantes, refugiados, pobres e sem-abrigo, não dramatiza as palavras, mas olha a nova realidade como “muito difícil”. Os media também não ajudam, com a mensagem de que entre os refugiados podem vir terroristas. Há muitos elementos de confusão, diz, e o panorama “não permite pensar o fenómeno” na sua globalidade: pouca clareza no sistema de acolhimento, a “voz comum”, que não corresponde à realidade, de que os refugiados vêm roubar o trabalho. . . “A propaganda não se baseia na realidade”, sublinha Donatella Parisi. Há cada vez menos refugiados a chegar, depois do acordo que a União Europeia fez com a Turquia: entre Janeiro e Junho deste ano entraram em Itália apenas 18 mil pessoas, num país de 65 milhões, observa. “Pagamos à Turquia, que não protege os refugiados. ”Os meios de comunicação falam de uma emergência que afinal não existe, os políticos não resolvem os problemas e apanham a onda, como tem feito o novo ministro Salvini. “Ele já criticara, enquanto deputado europeu, o acordo de Dublin”, que atribui ao país de acolhimento a responsabilidade pela integração. Rejeita-se pois a ideia de que Grécia, Itália e Espanha são os que têm a factura mais alta. No Conselho Europeu de Junho, o problema foi mais uma vez adiado, critica Donatella: “Foi um grande falhanço, nem sequer se previu a reforma do tratado de Dublin. ”O padre Vittorio insiste em que não se pode apenas fazer entrar as pessoas. É preciso “estar na primeira fila para ajudar de modo completo”, ou seja, “acolher de forma a dar uma vida digna às pessoas, acolher com inteligência, ter a coragem de dizer, como o Papa, que a pessoa é uma pessoa”. Na portaria do Centro Astalli (o nome vem da rua onde se situa), vê-se uma fotografia do Papa quando visitou a instituição, há cinco anos. Logo a seguir, um gabinete minúsculo: duas secretárias, um relógio de parede, móveis de arquivo. Três voluntários fazem a primeira triagem de quem chega, respondem a pedidos de informação, entregam correspondência — quem não tem morada dá a direcção do centro — e impõem a ordem quando necessário: por exemplo, quando um homem e uma mulher se envolvem numa discussão acesa. Ela traz uma mala, será a “bagagem de sofrimento” de que falará o padre Camillo?Foi na cave do edifício que tudo começou, há mais de 35 anos: o padre Pedro Arrupe, que estava em Hiroxima quando a bomba nuclear foi lançada, viu as imagens dos boat people do Vietname e quis ajudar os refugiados. Além do apoio nos países asiáticos atingidos pela crise, grupos de voluntários organizaram-se em Roma para distribuir comida, organizar serviços de ambulatório, promover aulas de italiano. . . Hoje, é aqui que se concentram os serviços de distribuição de comida, duches, gabinetes de apoio médico e jurídico, serviços de apoio para a segurança social ou a vítimas de tortura. . . No último ano, mais de 14 mil pessoas foram aqui atendidas, só em Roma, mas o número chegou a cerca de 30 mil nas cinco estruturas do Centro Astalli/JRS em Itália. Uma realidade só possível com os 50 funcionários e 450 voluntários que ali trabalham. Um desses voluntários é Renzo Giannotti, 73 anos, farmacêutico aposentado que há dez anos faz o serviço ambulatório, complementando os dois médicos que dão consultas todas as tardes. É ele que guarda as fichas clínicas dos refugiados que por lá passam e que distribui os medicamentos (doados por outros amigos farmacêuticos ou alguns laboratórios) mais necessários para patologias menos graves — gripes, constipações, dores, problemas de digestão — ou para tratar alguns problemas crónicos. No Verão, 15 a 20 pessoas recorrem diariamente ao serviço. A maior parte são homens jovens, a média etária é de 25 anos. Os casos mais graves são enviados para especialistas amigos ou para as urgências hospitalares, se há necessidade de intervenção imediata. Oitenta por cento dos que procuram os diferentes serviços do Centro Astalli são muçulmanos — por isso, não se distribui álcool nas refeições ali servidas. “Aqui verifica-se um diálogo de vida. Quando o Papa veio, fez-se uma festa e quase todos eram muçulmanos”, conta Donatella Parisi. A maior parte dos que chegam são homens, mas muitos sírios vêm em família e, do Congo, há muitas mulheres que trabalham. Em 2015, o papa Francisco apelou a que instituições católicas convertessem as casas que estivessem vazias em centros de acolhimento de refugiados. Até agora, cerca de oito mil pessoas foram acolhidas nas 35 instituições que responderam imediatamente e noutras que o fizeram depois. Os Missionários Scalabrinianos — o nome vem do fundador, o bispo Giovanni Battista Scalabrini que, em 1887, fundou a congregação para trabalhar precisamente com os imigrantes pobres — fizeram-no, transformando o antigo seminário, vazio, na Casa Scalabrini. Residem ali 32 refugiados, a maior parte de origem africana — por lá já passaram mais de 120, nos últimos dois anos. Significativamente, além da capela que já existia na casa, criou-se um espaço para a oração muçulmana. “Não podíamos fazer mais nada do que abrir as portas e pensar em algo que fosse bom para as pessoas”, diz Emanuel Selleri, missionário leigo, que esteve antes na América do Sul e agora é um dos responsáveis da casa. “Eles vieram primeiro pelo deserto, depois pelo mar. Os que conseguem chegar vêm muito traumatizados e com medo de não serem aceites. ”Por isso, ali, em cerca de seis meses, sempre em comunidade, formam-se os refugiados para os munir de possibilidades de trabalho — língua italiana, carta de condução, noções básicas de economia, direitos e deveres de cidadão — e forma-se a população do bairro social em volta para acolher a diversidade. Uma rádio privada serve para os refugiados expressarem mais intimamente a sua história, os seus anseios, num momento “íntimo, quase terapêutico”. O padre Gabriele Beltrami, 47 anos, responsável pela comunidade, diz que há refugiados que querem regressar ao país de origem. Não é o que pensa o nigeriano Odine Gideon, que prefere ficar na Europa: no seu país, “não havia esperança, nada. . . ” Por causa destas situações, Emanuel acrescenta: “Fechar as fronteiras não é solução, este é mais um drama que esta política europeia e italiana está a colocar no nosso coração: fecham os portos, mas os refugiados chegam por outro lado. ” E o desabafo: “Como italiano, não posso mais com isto. . . ”O Centro Astalli também tem quatro casas para acolhimento e residência de refugiados. Num deles, o da via San Saba, residem 20 homens, actualmente, explica Giuseppe Coletta. Procura-se criar autonomia, neste caso através de um projecto experimental de trabalho em serigrafia. “Permite estabelecer relação entre pessoas que normalmente vivem sozinhas”, explica Donatella. Não tem havido só boas notícias, mesmo nestas instituições: houve paróquias onde várias pessoas abandonaram as missas, quando os párocos anunciaram o acolhimento de refugiados em instalações paroquiais. No início de Agosto, um gambiano acolhido na paróquia de Vicofaro, na Toscana, foi alvejado a tiro quando saiu à rua. Seria necessário alargar a rede de acolhimento e acção, diz Donatella, com católicos, outros cristãos, sindicatos e diferentes organizações. No Angolo del Pellegrino, criado há seis anos pelo padre Vittorio, também se faz a distribuição de comida e de roupa, há lavandaria, apoio médico e farmacêutico, apoio jurídico e para a burocracia do Estado. Não se gasta dinheiro, explica o capelão da prisão Regina Coeli, pois tudo é oferecido e recolhido por uma rede de voluntários. À hora de jantar — pão, bebida, arroz e frango para 30 pessoas —, vários carregam a bateria do telemóvel, objecto que permite a ligação ao mundo e o acesso a informação. Diariamente, há pequeno-almoço às 8h, pizza às 11h e uma ceia às 19h. Vinte pessoas podem dormir nos anexos da Igreja de San Giacomo. Ricardo, um romano de 50 anos (um dos poucos europeus), sem-abrigo, tem falta de trabalho e problemas cardíacos a mais. “Ao menos tenho comida. Caso contrário, ia para supermercados pedir esmola. ” Simon, 53 anos, veio do Líbano, ficou sem nada há um ano: separou-se da mulher, teve de ser operado, perdeu o trabalho. Hoje dorme na rua. Pedro Celeita guarda da visita do Papa à cadeia onde tem estado a recordação do momento em que Francisco lhe pediu: “Quando saíres em liberdade, toma um café e reza por mim. ”São amargos alguns cafés que Franck ainda toma. Há pouco tempo, num autocarro, uma mulher virou-se para ele a dizer que por sua causa é que o transporte estava cheio. “Em vez de pedirmos todos mais autocarros, sou eu o culpado por o autocarro ir cheio. Saí na paragem seguinte. Ou, se dou o lugar a alguém, ainda me dizem que a gentileza era ir para o meu país. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O machado que lhe fazem sentir em cima da cabeça não lhe corta a raiz do pensamento: “Vim para um continente democrático, supostamente civilizado, que deu muita coisa a África. Mas que descarrega sobre os refugiados e os imigrantes a ideia de que a crise é culpa nossa. ” E acrescenta: “As pessoas são mal informadas por muitos políticos, pelos meios de comunicação. Antes, os maus eram os italianos que emigravam ou os do Sul de Itália que vinham para o Norte. Hoje, somos nós. Raramente somos chamados para falar. . . ”A tortura a que Franck foi sujeito cicatrizou nas pernas. Continua, no coração, gravada a sangue.
REFERÊNCIAS: