O meu sangue não é assim tão puro
A nacionalidade não é limitada por uma cor e muito menos por uma etnia. Não existe uma barreira física ou ideológica entre a nacionalidade francesa e ser-se africano. (...)

O meu sangue não é assim tão puro
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.214
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: A nacionalidade não é limitada por uma cor e muito menos por uma etnia. Não existe uma barreira física ou ideológica entre a nacionalidade francesa e ser-se africano.
TEXTO: Foi necessário a França ganhar o Campeonato Mundial de Futebol para que algumas pessoas — certamente até hoje desprovidas da noção de existência de contacto inter-racial — percebessem que qualquer pessoa tem características antropológicas provenientes de todos os cantos do mundo. E logo nós, que somos portugueses e por isso geneticamente talassocratas. De verdade que há na selecção francesa descendência do Mali, do Senegal ou até da Catalunha — que também já foi gaulesa? Mas, então, do que estava à espera quem disparou baboseiras racistas sobre os 23 franceses? Pensariam eles que o sangue humano fosse fabricado gota a gota em laboratórios nacionalistas vedados à tenebrosa hipótese de contacto e consequente infecção entre o seu querido "sangue puro ocidental" e o sangue alheio (aos seus olhos sujo) como o negro, asiático ou ameríndio? Terão eles alguma vez julgado que o nosso ADN fosse constituído por uma mescla de diferentes raças e sangues? E logo nós, portugueses e por isso filhos do mundo. Tragam um pano molhado a estes senhores. Cai-lhes tudo ao saber que, apesar de dizerem ser descendentes directos de Carlos Magno, afilhados de Leopold Rothschild, quinquagésimos netos bastardos de D. João V, brancos e "puros", são agora — segundo consta — também portadores de sangue africano e ameríndio. Exactamente. Caros senhores racistas: o sangue que vos chega ao longínquo dedo mindinho do pé e vos irriga o cérebro é composto por partículas oriundas de todo o mundo. E logo nós, portugueses: um povo que tem entre os avós gente de todos os cantos do mundo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O imaculado "sangue português" que tanto hasteiam nada mais é do que a mistura de sangue entre os romanos que por cá civilizaram, os cartagineses que por cá fizeram comércio ou os hispânicos com quem desde sempre partilhamos e lutamos por terra. Junta-se ainda, a partir de 711, uma enorme percentagem de ADN muçulmano. E engane-se quem pense que foi desde 711 até à conquista do Algarve sempre à bulha com os mouros: está errado. Integrámo-los na sociedade portuguesa, tal como está documentado historicamente. A partir da conquista de Ceuta já se sabe o resto, e mais uma vez engane-se quem pense que ninguém com sangue africano ou americano chegou à metrópole e governou, pintou e escreveu: Marquês de Pombal tinha ascendência directa de índios brasileiros, Almada Negreiros e Padre António Vieira tinham genes africanos. Ora, o que eu quero dizer com isto é que o sangue português é, e ainda bem, uma riquíssima e gloriosa mistura entre sangue ocidental, africano, ameríndio, muçulmano, goês. Trata-se, afinal, do sangue globalizado e mundial. Por isso — e voltando ao início da questão —, quando leio que a selecção francesa não é realmente francesa por ter uma maioria de jogadores de etnia africana, apetece-me pedir-lhes educadamente ou que se instruam ou que não falem. A nacionalidade — e, principalmente, a dos países que se voltaram para o mar — não é limitada por uma cor e muito menos por uma etnia. Não existe uma barreira física ou ideológica entre a nacionalidade francesa e ser-se africano. No nosso caso não existe o português branco de primeira e o português negro de segunda: há apenas o português.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano Asiático
Desmond Tutu defende que Blair e Bush devem ser julgados em Haia
Não é uma posição inédita, mas desta vez foi defendida pelo Nobel da Paz Desmond Tutu. Num artigo publicado no diário britânico Observer, o bispo sul-africano, considerado um herói da luta contra o apartheid, defendeu que George W. Bush e Tony Blair devem ser julgados em Haia devido à guerra no Iraque. (...)

Desmond Tutu defende que Blair e Bush devem ser julgados em Haia
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-09-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não é uma posição inédita, mas desta vez foi defendida pelo Nobel da Paz Desmond Tutu. Num artigo publicado no diário britânico Observer, o bispo sul-africano, considerado um herói da luta contra o apartheid, defendeu que George W. Bush e Tony Blair devem ser julgados em Haia devido à guerra no Iraque.
TEXTO: Tutu acusou o anterior Presidente norte-americano George W. Bush e o antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair de terem mentido sobre a existência de armas de destruição maciça e disse que a guerra naquel país tornou o mundo mais instável, mais "do que qualquer outro conflito na história". As acusações não surpreenderam Blair, que já as terá ouvido inúmeras vezes. "É o mesmo argumento que ouvimos muitas vezes", reagiu, citado pela BBC. No início desta semana, o bispo sul-africano recusou-se mesmo a liderar um painel de uma conferência em Joanesburgo em que participava Tony Blair. Agora, Tutu defende que a campanha para derrubar o regime de Saddam Hussein em 2003 abriu caminho à guerra civil na Síria e a um possível conflito no Médio Oriente que envolva o Irão. Bush e Blair "levaram-nos para a beira do precipício, onde nos encontramos agora, com o espectro da Síria e do Irão diante de nós", escreveu Desmond Tutu. No artigo, o bispo sul-africano refere mesmo alguns números relacionados com a guerra no Iraque – "6, 5 pessoas morrem todos os dias em ataque suicidas e em explosões de veículos. Mais de 110. 000 iraquianos morreram no conflito e milhões foram deslocados" –, para depois defender que "os responsáveis por este sofrimento e estas perdas de vidas humanas deveriam seguir o mesmo caminho de alguns dos seus pares africanos e asiáticos que respondem pelos seus actos no tribunal de Haia". Desmon Tutu considera que os bons dirigentes devem ser também "guardiões da moral". "A questão não é saber se Saddam Hussein era bom ou mau, ou quantas pessoas do seu povo massacrou. A questão é que Bush e Blair nunca deveriam ter descido a esse nível de imoralidade. "Blair defendeu-se em comunicado, considerando "bizarro" dizer-se que o facto de Saddam Hussein ter massacrado centenas de milhares de iraquianos é "irrelevante". E adiantou: "Temos na memória os massacres de Halabja, onde milhares de pessoas foram assassinadas num dia pelo uso das armas químicas de Saddam, e da guerra entre o Irão e o Iraque, em que as mortes chegaram a um milhão, muitas delas causadas por armas químicas. "
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Viagem à arquitectura portuguesa da Guiné-Bissau
Guiné-Bissau, 2011 é um livro sobre uma viagem que Ana Vaz Milheiro, crítica do PÚBLICO, fez ao país africano à procura da arquitectura do Estado Novo. A autora escreveu uma versão para o jornal (...)

Viagem à arquitectura portuguesa da Guiné-Bissau
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-11-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Guiné-Bissau, 2011 é um livro sobre uma viagem que Ana Vaz Milheiro, crítica do PÚBLICO, fez ao país africano à procura da arquitectura do Estado Novo. A autora escreveu uma versão para o jornal
TEXTO: Na perspectiva do arquitecto, a viagem nunca é um tema inocente. No caso de Bissau e da Guiné, a viagem pode significar o encontro com uma arquitectura muito particular: uma arquitectura mal-amada e proscrita dos manuais que abordam o extraordinário surto da arquitectura de perfil moderno nos actuais países africanos que falam português. Fui à Guiné-Bissau à procura da arquitectura do Estado Novo. A viagem decorreu entre 3 e 10 de Outubro de 2011 e acompanharam-me Eduardo Costa Dias, sociólogo e visita constante na Guiné desde a independência, e Paulo Tormenta Pinto, arquitecto e estreante no país, como eu. Até ao desembarque, a imagem que tinha da Guiné-Bissau baseava-se nas pesquisas iniciadas três anos antes. Faltava o confronto com a cidade “real”. Na madrugada de 3 de Outubro, alojámo-nos na pensão Creola. A viagem levou-nos ainda a Safim, Empada, Nhabijões, Bafatá, Gabu, Sonaco, Contuboel, Bula, Canchungo, Cacheu e Mansoa. A arquitectura que procurava foi produzida durante o regime do Estado Novo por arquitectos sediados em Lisboa e que trabalham para o Ministério das Colónias (depois de 1951, Ministério do Ultramar) como funcionários públicos. Nomes que raramente se citam e que correspondem a visões mais conservadoras, como João Aguiar, Lucínio Cruz, Eurico Pinto Lopes ou Mário de Oliveira, até aos “quase modernos”, casos de João Simões, Fernando Schiappa de Campos, Luís Possolo, António Seabra, António Sousa Mendes, Emília Caria, António Moreira Veloso, Alfredo Silva e Castro. Todos trabalharam para a Guiné. Mas é esta arquitectura, para lá de algumas estruturas fortificadas mais antigas (casos do fortim e Cacheu ou do forte de Amura, em Bissau), do edificado de sabor oitocentista (presente em Bafatá, por exemplo, ou na antiga capital Bolama), e dos equipamentos promovidos pela Primeira República, a expressão dominante. Percorrer Bissau, capital desde 1941, é visitar uma cidade jardim africana que mantém intacta a escala doméstica, ou melhor, uma City Garden nos Trópicos. Sucessivos bairros residenciais foram dando à cidade o perfil que hoje ostenta, desde o primeiro bairro de inspiração deco, composto por um conjunto de casas cúbicas para funcionários públicos erguidas antes de 1945, com terraços visitáveis, passando pelas casas construídas pelo arquitecto Paulo Cunha em 1946 (hoje figura quase omitida pela historiografia de arquitectura, mas personagem central na realização do famoso Congresso de 1948), terminando no bairro com casas de dois pisos para os funcionários dos Correios. A cidade é portanto um laboratório de habitação de promoção pública construída entre o final da Segunda Guerra e a década de 1960. Menos visíveis, porque em zonas periféricas e portanto sujeitas a maiores transformações, são as experiências no domínio da casa para as populações africanas realizadas pelos arquitectos que trabalham a partir de Lisboa e que se iniciam no final dos anos de 1950. Levantamentos sobre a casa guineense, nas suas diversas configurações étnicas, são conhecidos desde 1948. Orlando Ribeiro, em missão geográfica pelo território, em 1947, também se interessou pelo assunto. Mas os arquitectos propõem, na sequência dos seus próprios estudos, novos bairros e casas (melhoradas em termos de organização funcional, mas realizadas em sistema de auto-construção). A casa é então, e segundo defendem, um “meio civilizador” e portanto central. Facilmente reconhecível é o bairro de Santa Luzia, uma das primeiras experiências em alojamento para africanos impulsionadas pelo Estado Novo e, mais tarde, o bairro da Ajuda, erguido na década de 60. Este último destina-se aos desalojados do incêndio que, no início de 1965, destrói parte dos assentamentos informais que circundam a capital da Guiné. Em 1968, estão já terminadas 140 casas, ocupando um rectângulo de 300 por 700 metros. É traçado pelos serviços das Obras Públicas guineenses. Os fundos são angariados localmente e os trabalhos contam com o apoio das forças militares que, em plena guerra colonial, procuram cativar as populações. Uma avenida de 1919Mas se a arquitectura doméstica representa um capitulo extraordinário da fase final da colonização portuguesa, Bissau constitui um exemplo paradigmático do que é a estratégia urbanizadora que o Estado Novo empreende a partir do fim da Segunda Guerra. Em todas as cidades africanas, dependendo naturalmente da sua escala e hierarquia no sistema colonial, é implementado um conjunto de equipamentos que complementam as estruturas habitacionais. Os equipamentos cobrem todos os programas que definem um lugar urbano: hospitalar e assistencial, educativo, desportivo e recreativo, religioso e de representação do poder político. Em Bissau, o plano da cidade implementado em 1919, ainda durante e Primeira República, da autoria do engenheiro de minas José Guedes Quinhones, deixa como legado urbano a estrutura viária e a indicação da localização dos principais equipamentos (já um “zonamento” na visão dos urbanistas). O plano de Quinhones lê bem o território, desenhando um eixo viário que liga a zona baixa do porto a um ligeiro promontório, onde se situa a actual praça dos Heróis Nacionais. Ao longo desta avenida — hoje com o nome de Amílcar Cabral — implantam-se os principais edifícios: tribunal, sé catedral (monumento cristão numa sociedade predominantemente muçulmana e animista), sede dos Correios (com mercado nas traseiras, destruído por um incêndio em 2006), e a União Desportiva Internacional de Bissau, culminando na velha praça do Império, de implantação circular. Em torno desta praça, erguem-se quatro edifícios expressivos das diferentes fases do Estado Novo: as ruínas do Palácio do Governo (que em breve os chineses transformarão), de expressão monumental e historicista; a sede moderna do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, criado em 1956 por Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral), desenhada por Jorge Chaves no final dos anos de 1940; o museu, seu contemporâneo, projectado pelos arquitectos do Gabinete de Urbanização Colonial; e a sede da TAP, já dos anos dos 1970, do arquitecto José Pinto da Cunha, então fixado em Luanda. Alguns edifícios guardam memórias extaordinárias. O Palácio do Governo, por exemplo, ocupa exactamente o lugar que Guedes Quinhones terá imaginado no plano de 1919. Preside à antiga Praça do Império. Insere-se numa arquitectura de representação política que começa a ser aperfeiçoada na segunda metade da década de 40 e que se estende do “Portugal europeu” ao “Portugal africano e asiático”. As suas fachadas conhecem muitas versões. Os responsáveis pelo edifício actual, delineado em 1945, são João António Aguiar e José Manuel Galhardo Zilhão. É bombardeado na guerra de 7 de Junho de 1998. Contemporânea é a actual Sé, urdida por João Simões ainda em 1945, em plena génese do Gabinete de Urbanização Colonial. É um edifício que se aproxima da primeira abordagem que os arquitectos do Estado Novo tentam em África: a elaboração de um estilo original para os Trópicos, sem abdicar dos temas da arquitectura tradicional portuguesa. Preferem, por afinidade climatérica, o sul. Pequenas BissausSair de Bissau é perceber como a cidade foi replicada em outras vilas e aglomerados guineenses. A operação intensifica-se com as comemorações do 5º centenário que, em 1946, em pleno governo de Sarmento Rodrigues, celebram a presença portuguesa nesta região africana. Cacheu, Mansoa, Gabú, Canchungo, São Domingos, Farim, Fulacunda, Bolama, Bubaque, Catió e Bafatá estão entre as povoações melhoradas. O engenheiro Eduardo José de Pereira da Silva assina, enquanto chefe da Repartição Central dos Serviços Geográficos e Cartográficos da Guiné, este conjunto de planos urbanos, depois publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Nestes aglomerados, traçados ortogonais tornam as estruturas urbanas mais complexas, admitindo-se igualmente pequenas praças arborizadas, apetrechadas com equipamentos de lazer e parques infantis. A intervenção pode concentrar-se numa nova avenida, como acontece em Bafatá, cidade natal de Amílcar Cabral, ligando a zona baixa da cidade preexistente às áreas de expansão; configurar uma ampliação, como em Mansoa, onde se alarga a quadrícula existente e a nova avenida funciona como um novo centro de tipo boulevard (que alberga a central eléctrica, a escola, o posto sanitário, duas caixas de água e duas residências administrativas); ou corresponder a uma nova fundação, alterando-se a toponímia local para outra de inspiração metropolitana (Gabú passa a Nova Lamego; Canchungo passa a Teixeira Pinto, por exemplo). Em Gabú, a quadrícula da cidade presta-se a uma maior disseminação dos equipamentos principais. Já em Canchungo, a avenida centraliza o investimento: residência oficial, administração e posto de correios formalizam a “praça” de representação; escola, depósito de água, casas de funcionários, igreja, estruturas de saúde, distribuem-se ao longo do eixo. A Guiné assiste assim à disseminação de um padrão “desenvolvimentista” assente num modelo urbano. Em Cacheu, núcleo fundado cerca de 1588, que entra em decadência durante o século XIX, é aberta a actual Avenida do 4º Centenário (celebrado pós-independência em 1988), lateral ao núcleo histórico e ao forte. A nova avenida termina num largo, sobre o rio Cacheu, que nos anos de 1960 recebe um padrão das comemorações henriquinas (implantado também em outras antigas províncias portuguesas ultramarinas). A escala da avenida distancia-se quer das preexistências quer das novas construções. Casas de funcionários, igreja ou sede do governo mantêm uma aparência modesta. O facto aumenta ainda mais o caracter expectante que a cidade comunica. Deste modo, a estrutura urbana permanece como um elemento à espera de ser ocupado. A exemplo das restantes cidades guineenses, esta avenida monumental compõe, na verdade, o cenário ideal às visitas de estado dos representantes do regime, como a viagem presidencial que Craveiro Lopes cumpre em 1955. Durante a década de sessenta, o conflito armado determina a escala alcançada pelos equipamentos nas regiões mais directamente ligadas ao esforço militar. Consolidam-se as instalações hospitalares, aquartelamento ou clubes militares. Mas a actual estrutura das cidades desenha-se antes e a principal avenida que as organiza monta os tais cenários adequados às festividades que comemoram o poder colonial. Mas também é são desenhos de chão que urbanizam o futuro.
REFERÊNCIAS:
Entidades DECO
A longa viagem do "Phoenicia" está perto do fim
Os fenícios foram os primeiros a circum-navegar o continente africano? Há indícios de que o terão feito 2000 anos antes dos portugueses. Para sustentar essa teoria, um navegador britânico fez construir uma réplica dos navios da época e lançou-o ao mar. A viagem à volta de África está quase completa. (...)

A longa viagem do "Phoenicia" está perto do fim
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.05
DATA: 2010-10-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os fenícios foram os primeiros a circum-navegar o continente africano? Há indícios de que o terão feito 2000 anos antes dos portugueses. Para sustentar essa teoria, um navegador britânico fez construir uma réplica dos navios da época e lançou-o ao mar. A viagem à volta de África está quase completa.
TEXTO: O Phoenicia iniciou a sua viagem em Agosto de 2008, quando saiu do porto sírio de Arwad rumo ao canal do Suez. Mas a aventura começara bem mais cedo, na cabeça de Philip Beale, marinheiro e apaixonado pelo tema da navegação nas antigas civilizações. A questão que o desafiava era se seria realmente possível navegar em redor do continente africano com os meios de que dispunham os fenícios. Só havia uma forma de o saber: tentando. A pesquisa arqueológica e o talento do construtor naval Khalid Hammoud aliaram-se e assentaram praça na ilha de Arwad, onde o Phoenicia ganhou corpo. Trata-se de uma réplica dos navios fenícios dos anos 600 a. C. , construído em madeira e propulsionado por uma vela quadrada e duas dezenas de remos. A ideia era lançá-lo numa viagem à volta de África, utilizando os meios e as técnicas de navegação disponíveis na época. Dois anos - e muitas histórias - depois, o Phoenicia navega já no Mediterrâneo oriental, contando os dias para o seu regresso a casa. Pode não ser a prova definitiva em termos científicos, mas a viagem de Philip e seus companheiros mostra que um barco com estas características poderia ter feito a viagem. É claro que o fez agora, no século XXI, com pleno conhecimento de ventos e marés, rotas e terras que ficam no seu caminho. Lançar-se da costa ocidental de África para um longo vazio rumo às ilhas do Atlântico, incluindo os Açores, e depois retomar para leste em direcção à Europa pode ser rotineiro nos dias que correm, mas aos olhos do conhecimento da época seria considerado uma verdadeira loucura. . . E ainda o era quando os portugueses fizeram a rota ao contrário, de norte para sul. São questões para debate científico. Da viagem do Phoenicia, o que fica, acima de tudo, são as histórias de uma grande aventura. E a certeza de que os portugueses não se podem sentir "minimizados" pelas conclusões da expedição. É o próprio Philip Beale, respondendo por email, quem o diz: "De certa forma, todos nós nos sentimos minimizados à medida que vamos descobrindo o que os antigos fizeram. Mesmo que os fenícios não tenham dobrado o cabo da Boa Esperança, parece que os romanos andaram por lá no século IV, mil anos antes de Bartolomeu Dias. . . Dito isto, qualquer nação que desbravou os mares e construiu um império pela força das velas pode estar orgulhosa. Os marinheiros portugueses foram os melhores da sua era. "Francisco Contente Rodrigues, professor da Faculdade de Letras de Lisboa e especialista em História Marítima, também recusa a visão de que os portugueses poderão olhar para esta iniciativa como lesiva do orgulho nacional à volta da saga dos Descobrimentos. "Estas iniciativas são sempre muito interessantes. Ajudam a compreender o passado, mas não provam nada. Nem têm de provar. A verdadeira relevância de uma "descoberta" é dada pelo impacto que ela teve nas sociedades da época. Ora, se os fenícios navegaram à volta do continente africano, isso não mudou nada. . . Já os portugueses, que refizeram vezes sem conta essas rotas, viraram uma página na história da humanidade. "Philip gosta destas coisas, de mostrar como a história dos feitos humanos pode ter de ser reescrita. Entre 2003 e 2004, construiu uma réplica dos navios indonésios do século VIII antes de Cristo e navegou das ilhas asiáticas até à costa oriental de África, mostrando que estes dois continentes poderão ter estado em contacto também por mar e não apenas por terra. Foi dessa viagem que nasceu a inspiração para a jornada do Phoenicia, repetição de outra, muitos séculos antes, cujo relato foi feito pelo historiador grego Heródoto. Os marinheiros fenícios, verdadeiros senhores dos mares ao seu tempo, contaram que, ao dobrarem a ponta de África, viram o Sol para norte. Um pormenor de que Heródoto assumidamente duvidava, mas que, à luz do conhecimento actual, fornece indícios claros de veracidade da história - indica que os viajantes se encontravam no hemisfério Sul.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Está de regresso o Porto Femme, o festival de cinema “onde a mulher é a peça central”
Segunda edição do festival decorre de 18 a 22 de Junho no Porto. Pela primeira vez há uma competição dedicada às estudantes. (...)

Está de regresso o Porto Femme, o festival de cinema “onde a mulher é a peça central”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Segunda edição do festival decorre de 18 a 22 de Junho no Porto. Pela primeira vez há uma competição dedicada às estudantes.
TEXTO: A 2. ª edição do Porto Femme - Festival Internacional de Cinema arranca esta terça-feira, 18 de Junho, no Porto, com música, exposições, workshops e filmes, “onde a mulher é a peça central”. A associação cultural XX Element Project promove, em quatro espaços da cidade até sábado, dia 22 de Junho, “trabalhos artísticos realizados por mulheres” e evidencia “os direitos das mulheres e da igualdade de género”, pode ler-se no site da organização. Um total de 116 filmes produzidos em países europeus, americanos, asiáticos e africanos serão apresentados nas salas do Cinema Trindade, no hotel Selina Porto e no espaço cultural Maus Hábitos. A entrada é livre, excepto nas sessões do Trindade. O Porto Femme conta com 16 filmes em competição nacional, de realizadoras como Catarina Mourão, Catarina Neves Ricci, Cristéle Alves Meira, Leonor Noivo, Joana Toste e Margarida Madeira, e 53 em competição internacional, entre longas e curtas de ficção, documentários e filmes experimentais, de realizadoras como Clara Santaolaya, de Espanha, Stephanie Cabdevila, de França, Cecilia Albertini e Erica Scoggins, dos EUA, Delphine Le Courtois, do Canadá, e Rafaela Salomão, do Brasil. Entre os filmes em exibição está Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias, de Regina Pessoa, distinguido no passado domingo com o Prémio do Júri, no festival de Annecy, em França, o principal certame dedicado ao cinema de animação. Nesta edição, estreia-se a competição Estudante, que “dá espaço a 29 filmes para serem mostrados e discutidos, abrindo potenciais portas para as novas cineastas pelo país fora”, avaliados e premiados por um júri. A competição XX Element, com 18 filmes, apresenta obras de “homens realizadores com equipas compostas por mulheres actrizes principais ou que ocupem cargos técnicos importantes”, explica a organização. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os workshops “Realização no Cinema”, pela realizadora Raquel Freire, e “A Câmara e o Actor”, pela cineasta Inês Oliveira, e a exposição colectiva O Prazer é todo Meu, das ilustradoras Clara Não e Cara Trancada compõem as actividades desta edição. Actuações dos grupos musicais Pedaço Mau e Palmers, no bar Barracuda - Clube de Roque, animam as sessões de abertura e encerramento do Porto Femme. No último dia, a cineasta Monique Rutler, realizadora de Velhos São os Trapos, será homenageada com o prémio Mulher-Cineasta, por ser considerada “uma das realizadoras mais importantes do pós-25 de Abril”, diz o comunicado. A 1. ª edição do Porto Femme, que decorreu de 30 de Maio a 3 de jJnho de 2018, recebeu “393 filmes oriundos de 42 países”, segundo a organização, e premiou 21 obras cinematográficas.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Mentor: um ombro amigo que pode ajudar no futuro
Um mentor é alguém que se dispõe a estar ao lado de um adolescente em risco para lhe proporcionar uma relação sólida e ser um modelo consistente. A figura de mentor é muito popular nos Estados Unidos, e só em Nova Iorque há centenas de programas de mentores quase para todos os gostos: só para raparigas, para cientistas negros, para gays, lésbicas e transgender, para pessoas com deficiências. (...)

Mentor: um ombro amigo que pode ajudar no futuro
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 3 | Sentimento 0.187
DATA: 2011-12-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um mentor é alguém que se dispõe a estar ao lado de um adolescente em risco para lhe proporcionar uma relação sólida e ser um modelo consistente. A figura de mentor é muito popular nos Estados Unidos, e só em Nova Iorque há centenas de programas de mentores quase para todos os gostos: só para raparigas, para cientistas negros, para gays, lésbicas e transgender, para pessoas com deficiências.
TEXTO: O PÚBLICO visitou vários programas e falou com mentores e protegidos e com responsáveis. Aqui fica o que eles dizem sobre esta forma de voluntariado e ajuda:Joy Schwartz, mentora de Ore Adelaja no programa Girls Quest "Sinto-me realizada ao saber que posso ter uma influência positiva"“Decidi ser mentora porque uma jovem profissional na cidade de Nova Iorque pode ficar muito isolada, demasiado concentrada na carreira. Logo que estabilizei a minha vida de adulta - conseguir arranjar um apartamento, pagar as contas e ter essa parte resolvida -, decidi oferecer-me para este programa. Fazer isto ajuda-me a sentir um pouco realizada, já que posso ter alguma influência positiva. Queria uma mentoranda que gostasse de desafios. Não tento orientá-la nas suas escolhas, mas sou obcecada com ter objectivos e traçar planos para os atingir. Muitas vezes eu e a Ore discutimos isso: se ela quer uma coisa, tem de ter um plano para o conseguir. ”Ore Adelaja, mentoranda de Joy no programa Girls Quest, Manhattan "A minha mentora ajudou a preparar-me para conviver com pessoas diferentes"“Andamos muito a pé, nunca estive tão em forma! Com a Joy tenho conhecido muitas coisas em Nova Iorque, já experimentámos muitas coisas, fomos ao bairro coreano, etc. A escola onde eu andava tinha uma maioria de negros, e no meu novo liceu não há negros. Há chineses, asiáticos, diferentes tipos de brancos. A Joy ajudou-me também nisso, a preparar-me para conviver com pessoas diferentes. Nasci na Nigéria, vim para Brooklyn com os meus pais quando tinha dois anos. Recentemente voltei lá e fiquei muito impressionada: não podia beber água, há malária. . . Isso inspirou-me: quero ser médica e o meu sonho é abrir um hospital na Nigéria. ”Susan Varghese, directora de programas do Girls Quest, um programa de mentores para raparigas em Manhattan "Contam-se pelos dedos das mãos os casos que não resultam"“O programa funciona com o compromisso de um mínimo de um ano e encontros entre mentores e protegidos pelo menos duas vezes por mês. Delineamos objectivos para a relação, perguntamos inicialmente a ambas o que querem conseguir, e vamos avaliando. Porque são duas pessoas que não se conhecem e é suposto passarem tempo juntas, isso pode ser um pouco estranho. Para encontrar os pares fazemos um intenso processo de entrevista depois ficamos com uma boa ideia de personalidade e o que procuram, em termos de idade, raça, religião, interesses, local de residência. Há uma preferência comum das adolescentes: muitas querem uma mentora jovem. querem uma irmã, não uma mãe ou avó. Mas já tive mentoras óptimas na casa dos 50. Faço isto há vários anos, e contam-se pelos dedos da mão os pares que não resultaram. ”Anthony Whittaker, responsável do programa Goodwill Goodguides, Queens "Os mentores podem mostrar aos miúdos que há carreiras fora dos gangues"“Quanto era jovem passei o mesmo que muitos miúdos que precisam de mentores: um lar sem pai, família envolvida em drogas. Mas consegui ficar longe das ruas graças ao desporto. Fiz várias coisas na vida: fui polícia, trabalhei num banco, mas estive sempre ligado ao deporto enquanto treinador de basquete. Foi assim que conheci muitos jovens de quem fui mentor, porque reconheci em muitos o perigo de caírem nas ruas. Alguns deles são hoje meus amigos. E outros ofereceram-se para serem eles próprios mentores no programa que eu dirijo. Os mentores só têm de ser eles próprios. Podem mostrar aos miúdos que há uma carreira fora dos gangues, seja a trabalhar nos Correios ou numa empresa de informática. Hoje trabalho neste programa que envolve cerca de 100 adolescentes; em alguns casos, mais difíceis, sou eu próprio mentor. Por exemplo, um miúdo que conheci quando me tentou roubar uma bola num jogo. Esse vai dar muito trabalho. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola ajuda raça
As pessoas que descobrimos em 2018 (por boas e más razões)
É inevitável: a cada ano vamos descobrindo novos protagonistas, ora por razões memoráveis (no bom sentido), ora por razões que os próprios prefeririam esquecer. Uma selecção de nomes que vão ficar colados a 2018. (...)

As pessoas que descobrimos em 2018 (por boas e más razões)
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 5.551
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: É inevitável: a cada ano vamos descobrindo novos protagonistas, ora por razões memoráveis (no bom sentido), ora por razões que os próprios prefeririam esquecer. Uma selecção de nomes que vão ficar colados a 2018.
TEXTO: Este ano, em Setembro, Fátima Carneiro, directora do serviço de Anatomia Patológica do Centro Hospitalar de São João, no Porto, foi eleita a patologista mais influente do mundo. A distinção foi atribuída à investigadora portuguesa pela revista científica The Pathologist, que, ao longo de dois meses, inquiriu patologistas de todo o mundo sobre quem consideravam merecedor do título. A médica portuguesa e docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto ficou em primeiro lugar na lista de cem posições elaborada pela revista britânica que, em 2015, já tinha atribuído a mesma distinção ao cientista Manuel Sobrinho Simões. Tal como Sobrinho Simões, Fátima Carneiro destacou-se no seu percurso profissional enquanto investigadora do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), agora integrado no I3S (Instituto de Investigação e Inovação em Saúde). Especializou-se em cancro do estômago, tendo participado em diversas descobertas nesta área, com especial relevo para a forma hereditária do tumor gástrico. Fátima Carneiro assinou mais de 250 artigos científicos ao longo da carreira, que construiu com sucesso, mas longe da atenção mediática. Foi no final de Setembro que os holofotes se acenderam e “a patologista mais influente do mundo” foi apresentada ao país. Fátima Carneiro transformou a atenção que a deixa desconfortável numa oportunidade para reclamar mais e melhor para a patologia, “central na medicina”. Foi nessa altura que, numa entrevista ao P2, partilhou, sem vaidade, a sua determinação, dedicação e generosidade. No piso superior, no seu gabinete, Fátima Carneiro falou sobre a carreira que concilia a actividade clínica, a direcção de um serviço hospitalar, as aulas como professora catedrática e a investigação. E o resto da vida. Apesar de se perder na recordação dos tempos de menina em Angola, a conversa voltava sempre ao trabalho. “Um fervilhar diário”, assegurou a todos os que imaginam que um patologista é um médico calado e sozinho, debruçado em cima de um microscópio dia após dia. Falou-se da dureza de confirmar uma suspeita de cancro presa numa amostra minúscula de uma lâmina e da importância que o olhar de um patologista pode ter na procura de uma possível solução ou, pelo menos, explicação. Lembrou o momento em que escolheu ser patologista em vez de pediatra. Defendeu a formação médica contínua e disse que quer deixar uma marca nesse capítulo durante o mandato como presidente da Academia Nacional de Medicina de Portugal. “Obter um título [de médico] não me confere competência. Eu tenho de me actualizar”, referiu, sugerindo uma maior responsabilização das estruturas pela oferta de acções de formação pós-graduada e também a introdução de testes online de autodiagnóstico para os médicos poderem avaliar os seus conhecimentos. No final de duas horas de entrevista, regressou, apressada, para o gabinete, deixando a sensação de que a fizemos gastar muito do seu precioso tempo. No seu serviço, a patologista mais influente do mundo tinha um aluno de Medicina à espera e, em cima da secretária, estava ainda uma pequena caixa com lâminas de amostras de um tumor de uma vesícula biliar para analisar. Durante a entrevista, desabafou mais do que uma vez o incómodo com a tarefa que foi forçada a adiar: “Tenho aqui estas lâminas para fazer diagnóstico que não vou poder fazer agora. Estou a prejudicar os doentes por vossa causa. ” Andrea Cunha FreitasO major Vasco Brazão estava em missão na República Centro-Africana (RCA) quando a sua família foi surpreendida por inspectores da Polícia Judiciária (PJ) nas buscas à sua casa em Lisboa. Nessa manhã, o então director da Polícia Judiciária Militar (PJM), coronel Luís Vieira, era detido, bem como elementos da PJM, da GNR e um civil. O major e o coronel sabiam que estavam a ser investigados pela PJ há mais de um ano. Tinham recuperado o material de guerra furtado em Tancos, e isso merecera-lhes elogios das chefias militares e políticas. O próprio ministro da Defesa, à data, José Azeredo Lopes, foi felicitado pelos seus pares numa reunião da NATO. O Ministério da Defesa — que tutela a PJM — saía bem do caso depois do vexame do roubo de Tancos, noticiado pela imprensa europeia. Na torrente mediática sobre as buscas a casas e escritórios e as detenções dos suspeitos para interrogatório, na última semana de Setembro, o nome de Vasco Brazão foi o que mais vezes foi referido. No conjunto dos nove arguidos no âmbito da Operação Húbris, era o único que se encontrava fora do país, o que lhe terá dado visibilidade aos olhos da opinião pública. É, pelo menos, o que nota quem encontra uma suposta ligação entre o momento das buscas e detenções e uma alegada tentativa de descredibilizar o oficial que liderou a equipa de investigadores da PJM às duas mortes no curso 127 dos Comandos. O major estivera em Portugal de férias e poderia facilmente ter sido detido, mas a operação só foi lançada na manhã a seguir ao seu regresso à RCA, estando por isso ausente no momento das detenções. Seja como for, a semana em que os 19 militares se sentaram pela primeira vez no banco dos réus (no julgamento às circunstâncias das mortes nos Comandos) foi a mesma em que o major Vasco Brazão ficou conhecido por ser o arguido mais aguardado dos nove. Foi detido à sua chegada ao aeroporto, ouvido ao longo de mais de dez horas, em duas ocasiões, e sujeito a uma medida de coacção de obrigatoriedade de permanência na residência e impedimento de contactar com militares ou com os restantes arguidos. A investigação, que chefiou, às mortes por desidratação extrema dos dois recrutas, em Setembro de 2016, durou dez meses e culminou com aquilo que porventura poucos acreditariam ou desejariam: a acusação de oito oficiais, oito sargentos e três praças, todos militares do Exército do Regimento de Comandos, a maioria instrutores, por 539 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física. Mais tarde, viria a receber um louvor pela “clarividência, determinação e assinalável capacidade de organização, materializada no volume e qualidade processual apresentada”. As suspeitas, no caso dos Comandos, apontavam para crimes militares e seria a PJM a investigar. O mesmo não aconteceu com o roubo em Tancos, cuja investigação foi entregue à PJ pela então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. A PJM, aqui também com o investigador-chefe Vasco Brazão, ficou oficialmente a colaborar com a PJ. A estratégia de defesa e a interpretação da forma como a PJM alinhou no esquema para recuperar o material de guerra são distintas quer se trate do major ou do coronel Luís Vieira, que dirigiu a PJM. Brazão admitiu ter recorrido a um informador, escudando-se no conhecimento posterior que a PJM terá dado à tutela. Vieira, que se encontra em prisão preventiva, manteve o silêncio. Os contornos pouco claros do recurso a informadores pelas polícias servem para quem, por um lado, diz não existir aqui qualquer crime, alegando ser esta uma prática frequente e necessária, e, por outro, para quem acusa, dizendo que nenhuma linha separa, neste e noutros casos, um informador de um suspeito de um crime. No recato exigido pelo segredo de justiça e na proporcional limitação de acesso ao processo, por ele imposta, a defesa tem a missão de recuperar a imagem de um “homem honrado”, como afirmou o seu advogado, Ricardo Sá Fernandes. Enquanto também porta-voz da PJM, o major tinha como objectivo projectar uma imagem da PJM como órgão de investigação criminal necessário, com uma função pouco conhecida e contestada, mas definida e justificada pelo Código de Justiça Militar. Vasco Brazão deixou a PJM, no início deste ano, para ingressar de novo no Exército e partir em missão para a RCA, onde foi chefe das operações do quartel-general de apoio à missão de manutenção de paz da União Europeia, que junta 12 Estados-membros. O major estaria numa fase da carreira em que poderia ser promovido a tenente-coronel. Agora, entre a PJM, sob tutela do Ministério da Defesa, e o Exército, dependente das Forças Armadas, quem o quererá? Ana Dias CordeiroDentro e fora da sala do hemiciclo, os deputados dos vários partidos conseguem conquistar alguma notoriedade: uns porque são líderes de bancada, outros porque são dirigentes partidários, outros ainda porque têm espaços de comentário televisivo. Há ainda os casos em que os deputados se tornam célebres por darem a cara por uma causa política ou social. Noutras situações, são as polémicas que tomam conta do seu nome (quase) desconhecido do grande eleitorado. Ainda que possa ser um fenómeno breve. Aí são notícia de telejornal e saem da sombra. Foi o que aconteceu este ano a José Silvano, Emília Cerqueira e Maria das Mercês Borges, todos deputados do PSD, que ganharam notoriedade nacional, mas não pelos melhores motivos. No caso de José Silvano, o deputado foi eleito em 2015 pelo círculo de Bragança, distrito onde foi presidente de câmara durante 12 anos. O seu nome já tinha sido notícia nacional por causa de uma coligação parlamentar (só CDS e PAN se colocaram à margem) para tentar, em segredo, alterar a lei financiamento dos partidos. José Silvano era o coordenador da bancada do PSD nessa comissão. Depois, a sua visibilidade aumentou quando foi nomeado secretário-geral do PSD, em Abril deste ano, em substituição de Feliciano Barreiras Duarte, deputado e ex-secretário de Estado que mostrou ter irregularidades no currículo académico. Mas foi o registo de uma falsa presença (e dúvidas sobre outra) numa sessão plenária da Assembleia da República que catapultou o nome de José Silvano. O Expresso noticiou, em Outubro, que o secretário-geral tinha registado com a sua palavra-passe no computador a presença numa sessão quando, na mesma tarde, estava a 400 quilómetros de distância numa iniciativa partidária. Quem teria então feito o log in no computador? O caso arrastou-se durante uma semana, uma das mais penosas desde que Rui Rio é líder do PSD. O próprio Silvano pediu, em conferência de imprensa, uma investigação do Ministério Público (o que viria a acontecer), o que pressupunha desconhecer quem teria acedido ao seu computador. Mas no dia seguinte o mistério seria desvendado, depois de o mesmo semanário ter confrontado Emília Cerqueira, a sua colega de bancada, com imagens da sessão plenária em causa que apontavam para que fosse a autora do log in. A deputada, advogada, eleita por Viana do Castelo, assumiu que entrou com a palavra-passe de José Silvano para aceder a ficheiros de que precisava. Com esse gesto assinalou (“inadvertidamente”) a presença do secretário-geral do PSD no Parlamento. Emília Cerqueira quis dar a ideia de que a troca de passwords no grupo parlamentar é banal, numa conferência de imprensa, transmitida em directo, pelas televisões. Foi essa opção que Maria Mercês Borges, deputada eleita por Setúbal, recusou ao também ser notícia por ter dado como presente (para contabilização do quórum) na votação da generalidade do Orçamento do Estado o seu colega Feliciano Barreiras Duarte, que esteve na sessão durante a manhã e saiu por causa de uma emergência familiar. Em comunicado, a deputada anunciou a demissão dos cargos que ocupava. Já Emília Cerqueira deu a cara na televisão. Visivelmente acossada pela polémica, a deputada assumiu ser natural do “Alto Minho” para deixar uma frase que escandalizaria Lisboa: “Agora toda a gente se preocupa como um bando de virgens ofendidas numa terra onde não há virgens. ” Virgem ou não, até houve quem se ofendesse nas bancadas do Parlamento, mas por pudor ficou em silêncio. Sofia RodriguesQuando o ano de 2018 começou, ainda não suspeitavam do que os 12 meses seguintes lhes iriam reservar. Mas, para todos eles, o ano que agora termina não será apenas mais um. Jovane Cabral, Gedson Fernandes e Diogo Leite confirmaram as suas qualidades como futebolistas promissores que, ainda crianças, lhes foram detectadas e conseguiram chegar ao topo. Exemplo paradigmático é o caso de Jovane Cabral. O avançado do Sporting começou o ano de 2018 no banco de suplentes da equipa secundária dos “leões”, que defrontou o Sporting de Braga B, no Minho. A mais recente estrela da formação sportinguista só entrou no relvado já na parte final da partida, substituindo o quase anónimo Budag Nasyrov. O médio azerbaijano joga agora na I Liga daquele país asiático, vestindo a camisola do FK Zira. Segundo o site Transfermarkt, especializado em avaliações dos jogadores de futebol, o passe de Nasyrov tem um valor de mercado de 125 mil euros. Já Jovane Cabral é escolha assídua na equipa principal do Sporting (jogou em 18 encontros esta temporada e marcou quatro golos) e tem um valor de mercado, segundo o referido site, de 3 milhões de euros. Percursos mais ou menos semelhantes tiveram Diogo Leite e Gedson Fernandes. Titulares, respectivamente, nas equipas de FC Porto e Benfica, que se defrontaram a 6 de Janeiro, no centro de estágios dos portistas, em Gaia, num clássico de equipas B, ambos foram subindo patamares. Diogo Leite é o mais recente herdeiro de uma linhagem de defesas-centrais formados no FC Porto, com o selo de qualidade. Bruno Alves, que aos 36 anos continua a ser chamado à selecção portuguesa, Ricardo Costa, Ricardo Carvalho, Jorge Costa ou Fernando Couto, todos eles internacionais portugueses, foram lançados muito cedo na equipa principal portista. Diogo Leite aproveitou da melhor forma a lesão do reforço Mbemba, no início da temporada, e a oportunidade perdida por Chidozie, para mostrar as suas qualidades. Estreou-se a titular na equipa principal “azul-e-branca” ao jogar uma final - a da Supertaça, ganha ao Desportivo das Aves. E só com a chegada de Militão ao Dragão, o jovem perdeu algum espaço. O FC Porto, contudo, não tem dúvidas de que Diogo Leite será uma aposta de futuro. Por isso mesmo o futebolista, de apenas 19 anos, viu o seu contrato prolongado até 2023, tendo uma cláusula de rescisão de 15 milhões de euros. Gedson Fernandes também não se amedrontou quando Rui Vitória o chamou pela primeira vez para jogar com a camisola da equipa principal do Benfica. O médio de 19 anos foi titular no jogo frente ao Fenerbahçe, a primeira mão da 3. ª pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Desde esse jogo, foi ganhando o seu espaço e, ao contrário de Diogo Leite, nem a contratação de um reforço no defeso (Gabriel) lhe retirou espaço. Ainda sem a compleição física que o pode ajudar na posição central que costuma ocupar no relvado, Gedson vai mostrando que os 250 euros e as 25 bolas que o Benfica pagou ao Frielas para ficar com o miúdo que jogava a avançado e decidia os jogos sozinho quando tinha nove anos foram bem empregues. Dos três, foi o único que já foi chamado à selecção nacional por Fernando Santos e no dia em que soube da sua convocatória o Benfica anunciou a renovação do contrato com a sua nova coqueluche, prolongando a sua ligação ao clube até 2023 com uma cláusula de rescisão de 120 milhões de euros. A afirmação de Jovane Cabral no Sporting também é precoce. Vindo de Cabo Verde com 16 anos, fez a sua formação na academia “leonina”, em Alcochete, viveiro de inúmeros craques. Contudo, a sua chamada à equipa principal sportinguista acaba por ser feita à custa da desistência do clube — ou pelo menos do seu treinador na altura, José Peseiro — noutro rebento da formação: Matheus Pereira. Jovane fez a sua estreia com a camisola principal dos “leões” quando entrou para o lugar do seu colega de equipa a 12 de Outubro de 2017, numa partida frente ao Oleiros, da Taça de Portugal. Meses mais tarde, viu Peseiro compará-lo ao seu antigo colega em termos elogiosos. “São estes jogadores que a formação tem de ter. É este carácter que queremos. Não é os que fogem quando não são titulares. Este não foge. ”E o Sporting não quer mesmo que Jovane fuja. Por isso, tal como os seus rivais, já renovou o contrato com o cabo-verdiano, que optou por representar a selecção portuguesa em vez da insular, esticando a ligação com os “leões” até 2023 e fixando a cláusula de rescisão em 60 milhões de euros. Jorge Miguel MatiasO ano de 2018 não podia ter começado de forma mais auspiciosa para João Ribas. No dia 25 de Janeiro, o jovem adjunto que Suzanne Cotter tinha ido buscar aos Estados Unidos assumia a direcção do Museu de Serralves. Escolha unânime de um júri internacional, Ribas, então com 38 anos, tinha um currículo invulgarmente sólido, mas construído sobretudo na América, onde vivera a maior parte da sua vida, e apesar de ter assinado algumas exposições importantes nesses anos de colaboração com Cotter, como a retrospectiva de Helena Almeida, continuava a ser uma figura um pouco secreta. Mas começava o ano de 2018 num cargo que prometia dar-lhe finalmente a visibilidade que até aí lhe faltara. Prometia e deu, embora não talvez exactamente a que teria desejado. Já como director, Ribas inaugurava em Junho a exposição Zero em Comportamento, na qual é tentador entrever, retrospectivamente, um sibilino aviso à navegação. Composta de obras do acervo de Serralves, propunha-se esta “apresentar gestos de irreverência ou desobediência, quer dirigidos a instituições, como a escola ou o museu, quer a formas de repressão ou controlo”. No mês seguinte, o novo director dava ao PÚBLICO uma grande entrevista, na qual assumia que a sua geração tinha “a obrigação de repensar o museu como instituição”, tornando-o “um espaço de resistência ao mercado, mas não de exclusão”. E, num primeiro sinal de divergências internas, recusava-se a confirmar se a exposição de Joana Vasconcelos no Guggenheim de Bilbau viria mesmo para Serralves. Depois foi sempre a acelerar: em Setembro, explica ao Ípsilon que a exposição Robert Mapplethorpe: Pictures não terá “salas escondidas” e, quando esta abre com uma zona interdita a menores de 18 anos e o jornal chama a atenção para o facto, Ribas anuncia a sua demissão. É o início de uma dura polémica, que servirá também para revelar publicamente as crescentes tensões entre a administração e a equipa do museu. Ribas acusa a administração de Ana Pinho de “violação continuada” da sua autonomia, esta responde acusando-o de deslealdade e acabam a digladiar-se numa insólita audição parlamentar destinada a apurar se houvera de facto censura em Serralves. O caso começa a morrer aí e finar-se-á de vez com a mais do que provável recondução de Ana Pinho para um novo mandato. Mas quando Ribas parecia destinado, após meses de súbita e algo traumática notoriedade, a deixar a ribalta, o início de Novembro trouxe a notícia de que a candidatura que apresentou com a artista Leonor Antunes venceu o concurso da DGArtes e deverá ser a escolhida para representar Portugal na Bienal de Veneza. Para João Ribas, 2018 foi um ano de extremos. Se o seu percurso profissional um dia merecer uma retrospectiva, talvez seja mesmo avisado criar uma zona reservada para este ano hardcore. Luís Miguel QueirósAlguns brasileiros terão descoberto Jair Messias Bolsonaro em Abril de 2016, durante a votação do impeachment de Dilma Roussef, quando o ex-militar ofereceu o voto aos “militares de 64” (golpe que iniciou a ditadura), “contra o comunismo e pela memória do coronel Alberto Ustra, o pavor de Dilma Roussef”, dedicando assim a sua contribuição para derrubar a Presidente ao seu próprio torturador, símbolo da crueldade do regime que durou até 1986. Mas a maioria nunca tinha ouvido o seu nome a 23 de Julho, quando o Partido Social Liberal (PSL) o apresentou como candidato às eleições presidenciais — muitos continuavam sem o reconhecer a meio de Setembro, depois de ser alvo de um atentado, numa altura em que as sondagens antecipavam que perderia contra qualquer adversário na segunda volta. Deputado federal há 27 anos, Bolsonaro fez aprovar dois projectos de lei. Se tinha seguidores, não era pela actividade parlamentar, mas pela postura de permanente provocador convidado para programas de rádio e televisão por ser garantia de escândalo. Sem desperdiçar oportunidades para alimentar esta persona, o deputado soube fazer da crise aberta pela Operação Lava-Jato (que desde 2014 destruiu a crença dos brasileiros no poder executivo e legislativo) a sua rampa de lançamento. Mais do que votar em alguém, para muitos tornou-se fundamental votar “anti-Lula” ou anti-Partido dos Trabalhadores. Messias ou mito, como o descrevem parte dos 57, 7 milhões que o elegeram Presidente aos 63 anos, Bolsomito soube apresentar-se como parecendo sempre dizer a verdade (o antipoliticamente correcto há anos na moda entre determinada direita radical) e como um outsider. Em campanha, repetiu afirmações misóginas, homofóbicas ou racistas, entre o elogio da violência e do fascismo: prometeu acabar com “os movimentos sociais e os coitadismos”; matar, prender ou expulsar “esquerdistas, petistas e bandidos” e acabar com a lei que garante atendimento médico a vítimas de violação. Também disse que preferia ver “um filho morto do que homossexual” e que o erro da ditadura “foi torturar e não matar” os opositores. Como o mundo aprendeu com o americano Donald Trump, o filipino Rodrigo Duterte, o húngaro Viktor Orbán ou o italiano Matteo Salvini, não vale a pena esperar que haja um Bolsonaro candidato e outro Presidente. O brasileiro quer de facto diminuir a maioridade penal para 16 anos, facilitar a posse de arma, proteger ainda mais os polícias envolvidos em mortes (“bandido bom é bandido morto”), reescrever os manuais escolares para que contem “a verdadeira” história da ditadura ou acabar com o apoio às organizações de direitos humanos. Com um país polarizado como nunca e tendo juízes e militares a seu lado, agora que é “mito”, dificilmente recuará face à oposição no Congresso ou perderá a atitude autoritária. Sofia LorenaEra uma tragédia anunciada. E depressa ecoaram vozes do lado do país que só se lembra do interior quando as desgraças acontecem a pedirem que António Anselmo, o presidente da Câmara de Borba, se demitisse. Afinal, haviam sido feitos estudos e reuniões com a Direcção Regional de Energia do Alentejo (DREAL), Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais do Algarve (DRARN) e câmara que alertaram para a instabilidade dos taludes das pedreiras que fizeram parte da Estrada Municipal 255 desabar e arrastar consigo cinco pessoas. Mas António Anselmo não se demitiu. “Isso é para os fracos”, disse. Durante aqueles dias, entre o colapso da estrada, a 19 de Novembro, o autarca disse-se sempre de “consciência tranquila” sobre o incidente, assumindo que “nunca na vida” tinha sido informado dos perigos daquela estrada, que a administração central passou para a autarquia em 2005. Teve sempre um discurso directo, telegráfico, por vezes distante, quando respondia às questões colocadas pelos jornalistas. Numa terra habituada aos desastres, poucas vozes se levantaram a pedir a demissão do presidente. Os borbenses vêem-no como um “bom rapaz” e reconhecem-lhe o trabalho feito ao longo destes cinco anos à frente da autarquia. Mas o trabalho de António Anselmo com os borbenses começou ainda em 2001, quando se tornou presidente das freguesias de Matriz, por um mandato, e depois de São Bartolomeu, durante dois mandatos, ambas no concelho de Borba, sempre eleito como independente em listas do Partido Socialista. Em 2013, deu o salto para a câmara. Quis candidatar-se como independente numa lista do PS, mas os socialistas viraram-lhe as costas. António Anselmo retaliou. Fundou o MUB (Movimento Unidos por Borba) e ganhou as eleições, mas sem maioria absoluta. Depois de quatro anos “muito duros”, em que encontrou a autarquia muito endividada, o que impôs a Borba ter “uma troika dentro da troika” para endireitar as contas - como disse a jornais locais -, voltou a concorrer. E ganhou com maioria absoluta. Como presidente, concentra em si os pelouros do Planeamento, Ordenamento do Território e Urbanismo, Protecção Civil, Desenvolvimento Económico, Equipamento Rural e Urbano. Por isso, aquela estrada que desapareceu estava sob a sua alçada directa. Tal como grande parte da população daquela zona, também ele está ligado ao negócio das pedreiras, o que não é incompatível com as suas funções na autarquia. É sócio de uma empresa de fabrico de artigos de mármore. Detém 50% da Carapinha & Anselmo Lda, microempresa com 19 anos e um volume de vendas de 80 mil euros. E é também vogal do conselho de administração da EDC Mármores - Empresa Gestora das Áreas de Deposição Comum dos Mármores, da qual a Câmara de Borba, e outros três municípios vizinhos, é accionista e que está em processo de insolvência. Com a cidade a fazer o seu luto, é tempo de se começarem a exigir responsabilidades. “Quando chegarem as conclusões, cá estaremos”, disse António Anselmo, dizendo-se disponível para assumir as responsabilidades, que foi sacudindo ao longo deste tempo sobre uma estrada centenária que a terra engoliu e que dificilmente voltará a existir. Cristiana Faria MoreiraNos primeiros dias de 2018, não eram muitos os portugueses que conheciam Pedro Siza Vieira, na altura já membro do Governo, mas com a discreta pasta de ministro-adjunto. Antes, tinha-se destacado como um advogado que circulava nos corredores do poder em representação da influente sociedade Linklaters, com papel decisivo em dossiers quentes como a nacionalização do Banif, a reprivatização da TAP ou a OPA da EDP, sempre do lado dos privados. Agora, que o ano caminha para os seus últimos dias, a presença regular do ministro da Economia na comunicação social já torna mais difícil que consiga escapar aos olhares indiscretos quando caminha pelas ruas à volta da Horta Seca. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A ascensão de Siza Vieira na hierarquia mediática do Governo começou com algumas polémicas, entre elas, a que levou ao pedido de escusa de participar em assuntos relacionados com a energia por ter assessorado a China Three Gorges (CTG), a dona da EDP. Pelo caminho, ainda esteve na mira das críticas por ter participado na elaboração do pacote Capitalizar, que acabou por facilitar a OPA da CTG na EDP, ou por tutelar agora o turismo, onde a sua mulher é uma figura de destaque como presidente executiva da Associação da Hotelaria de Portugal. E teve também uma ameaça de incompatibilidades a pender sobre ele, devido ao caso de uma imobiliária aberta por si na véspera de ir para o Governo. Uma questão que acabou arquivada pelo Tribunal Constitucional. Como ministro da Economia, desde Outubro, o protagonismo de Siza Vieira não tem parado de aumentar: desde os elogios das entidades patronais, aos anúncios de linhas de financiamento sectoriais, passando pelas inúmeras entrevistas sobre as oportunidades que o país está a criar, os apoios comunitários que continuam a dinamizar a economia ou a diplomacia empresarial que decidiu assumir. Siza Vieira até, no final da última semana, deu a cara pela importância de resolver a greve no Porto de Setúbal que estava a afectar a Autoeuropa, “roubando” o palco à sua colega do Mar, Ana Paula Vitorino. O advogado já não é um ministro desconhecido dos portugueses e 2018 foi o ano em que tudo mudou na vida pública de Pedro Siza Vieira. Pedro Ferreira Esteves
REFERÊNCIAS:
O mundo das vítimas e dos pobres tem direito à sua utopia
Serge Bozon põe uma professora, Isabelle Huppert, a reconstruir-se – reconstruindo, à sua maneira incendiária, uma hipótese de relação com o subúrbio, de que se aproxima através de um aluno impossível. Madame Hyde é a ficção da atracção da França branca pela França mestiça: ou seja, um filme político. (...)

O mundo das vítimas e dos pobres tem direito à sua utopia
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2018-07-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Serge Bozon põe uma professora, Isabelle Huppert, a reconstruir-se – reconstruindo, à sua maneira incendiária, uma hipótese de relação com o subúrbio, de que se aproxima através de um aluno impossível. Madame Hyde é a ficção da atracção da França branca pela França mestiça: ou seja, um filme político.
TEXTO: Madame Hyde é um filme social rarefeito pela fábula. Uma professora que é um fracasso na escola do subúrbio, Madame Géquil (Isabelle Huppert), é torturada pelos alunos. Um dia torna-se fosforescente, transforma-se em Madame Hyde, e “toca” no insolente Malik (Adda Senani). A sua luminescência queima-o: Malik abre-se, enfim, ao conhecimento. Que não é coisa benigna: os gestos de Géquil/Hyde, por exemplo, são tanto de agressão como de transmissão. É uma comédia burlesca – metafísica, se a palavra não for pesada. Pensamos em anteriores filmes de Serge Bozon, La France (2007), em que uma mulher se faz passar por homem na frente de batalha da Primeira Guerra Mundial, ou Tip Top (2013), em que duas investigadoras da polícia investigam a propria polícia… também em Madame Hyde o olhar das personagens vagueia, pressentindo harmonias que dificilmente encontram nas suas vidas: eis a razão da atracção de uma professora branca pela França mestiça do subúrbio. Madame Hyde é também um filme melancólico. E político. É por aqui que começamos a conversa com Serge Bozon, 45 anos, homem que entusiasma a abstracção do seu discurso com uma perigosa coreografia física: um perigo à mesa, diante de chás e cervejas os gestos de transmissão podem ter o efeito de agressão. Em Madame Hyde, como em Tip Top, há o “nós” e os “outros”, uma França branca e uma França mestiça. Mas não é simples oposição; a personagem de Isabelle Huppert olha de longe para o subúrbio, para a Cité 2000, como uma “possibilidade”. . . quase utópica. Sim, completamente. Constato algo de banal, a oposição entre uma França branca e uma França colorida, entre a França das cidades e a dos subúrbios. Mas quero fazer uma ficção, não um filme social de reportagem das dificuldades reais de cada personagem. Quero inventar coisas, para que seja mais surpreendente – e, por isso, talvez mais político. Em Tip Top todos os brancos estão obcecados pelos árabes. Nas mulheres, desde logo, sexualmente: o marido da personagem de Isabelle Huppert é árabe, o marido de Sandrine Kiberlain é árabe [Huppert e Kiberlain são duas inspectoras que investigam a morte de um informador da polícia de origem argelina]. Há quem aprenda árabe para ler o Corão. Em Madame Hyde é igual. A personagem de Isabelle é um fracasso, é uma professora que não consegue ensinar, mas à noite põe-se a olhar para o subúrbio. Na sua relação com Malik, que é o pior aluno da escola, ela vai conseguir que ele se abra à Ciência. Isso na vida passa-se em várias fases, no filme está concentrado numa aula de Geometria – as coisas tornam-se mais intensas assim, mais simples e elegantes. Não é realista, mas torna a perturbação mais clara, logo a superação também é mais pura. Isto para dizer que quero tratar questões sociais como o racismo ou o subúrbio não como um assunto de vítimas, dos pobres, o que é o lugar-comum da ficção, mas para fazer esses mundos serem também portadores de utopias. Os espaços são fundamentais. É neles, no subúrbio, que tudo se desencadeia, é para eles que a personagem de Isabelle olha como possibilidade. O que atrai a ficção é esse subúrbio, onde ela acaba por ir. E é essa a transformação, ir até ao fim da sua atracção. Como quem vai atrás de uma luz, seguindo Malik. A relação do rap com o subúrbio, no filme, também é particular; é um rap que não é realista, é pop, cheio de sentimento. Não me interessava um rap que imitasse “o rap do subúrbio”, mas um rap que, sendo “contra a escola” – e o meu filme é “pela escola” –, guardasse um lado juvenil, quase elegíaco, como a pop. Para resumir: o subúrbio é não só um terreno ideal para inventar personagens que não sejam vítimas mas também um terreno em que do ponto de vista fílmico há muito a fazer. Numa conversa com o cineasta Bruno Dumont a propósito de Ma Loute (2016), filme em que utilizou vedetas e não-profissionais, ele falava do fascínio, e do medo, dos primeiros em relação aos segundos. Admitia que tinha utilizado isso como eco da luta de classes. Compreendo o que ele diz. Em Madame Hyde, à parte Isabelle Huppert, Romain Duris e José Garcia, os outros não eram actores. Nem eram amadores. Por que é que os actores têm medo? Um não-actor, como não está à vontade, pode sentir-se intimidado. E quando as pessoas são tímidas e têm de fazer alguma coisa, dá-se uma excitação e uma inquietude mais difíceis de encontrar por um actor, que está muito bem nos seus sapatinhos. Os actores podem invejar isso. Mas atenção, há uma coisa desagradável em Ma Loute: temos a impressão de que Dumont está a gozar com os actores. Disso não gosto – às vezes sente-se que goza com Juliette Binoche e que ela interpreta mal e é ridícula. No meu filme não se trata de ridicularizar Huppert através dos proletários não-actores. Como Huppert é uma actriz sempre angustiada, nunca descontraída, o que se passa entre a timidez e a reserva de um não-actor e a tensão dela é coisa do mesmo nível. Não há nada no filme contra o estatuto de star de Isabelle, o que há no filme é tudo a favor do que há de mais frágil em Isabelle. Em Tip Top ela era muito assertiva, aqui é muito frágil – nessa nova fragilidade pode haver um acordo com a fragilidade dos não-actores, não uma oposição. Numa entrevista na estreia de Elle (2016), Isabelle Huppert disse-me: “interpreto cada vez menos”. E que por isso o filme podia ser visto como um documentário de uma actriz no plateau a reagir. De acordo. Mas esse não é o meu filme. Precisamente. Quando fiz Madame Hyde já a conhecia, houve menos tensão do que em Tip Top. Em França, Isabelle é associada a papéis autoritários, o que pode ir até à violência e ao sadomasoquismo. Queria pegar nela de forma oposta, queria-a frágil, porque fracassa profissionalmente, tímida, humilhada, etc. Vai transformar-se, mas não de maneira espectacular. Não se transforma em super-professora: continua na fragilidade, e acaba por colapsar. Procurava um lugar para Isabelle em que ela fizesse gestos que não fossem os seus, em que estivesse com menos munições. No início de Tip Top, na primeira semana de rodagem, ela estava contrafeita. Dou direcções precisas. Para uma cena, disse-lhe: “Estás aqui, depois vais para a esquerda, olhas para ali, ali aproximas-te. . . ”. Ela respondeu: “Não sou uma marioneta. Tens de me deixar encontrar a forma de me movimentar no espaço, de mexer o meu corpo, e em função disso fazes a mise-en scène. ” Eu retorqui: “Não”. E “não” porque pensei na mise en scène durante quatro anos e não quero mexer nela, “não” porque pensei coisas para a personagem na cena. E “não” porque precisamente queria que ela se sentisse constrangida no jogo. Quando chegou a vez de Madame Hyde ela já sabia isso, já não houve esse problema entre nós. Filmo em 35 milímetros, não se pode ver o que se faz, não há rushes, é à antiga. Fazemos poucos takes, porque a película é cara. Trabalho com uma definição de luz para cada plano – o que significa que a cada mudança de plano tudo tem de ser mudado. Isabelle adora ensaios e eu sou contra, porque procuro preservar o mistério. Foi então preciso que Isabelle se libertasse do que tinha a ver com a imagem, com a aparência. E o que se passou é que foi ela que me deu coisas e eu reagi em função delas. Não tenho teorias nem método, foi caso a caso. Na última cena de aula, ela deu-me muito, muito. Fiquei comovido. Tinha-lhe dito: “É preciso que caias e que te levantes, que caias e que te levantes, é preciso que a personagem tente o impossível, continuar a sua aula, o que não vai conseguir” – e ela investiu isso de um desespero absoluto. Falemos de gestos. Há aquela sequência em que Malik simula o bigode de Hitler e a professora levanta a mão. Um gesto. . . . . . bizarro. Porque tanto é de agressão como parece querer transmitir algo. . . É isso mesmo. Nisso Madame Hyde é cinema mudo. Há algo, em Malik e na professora, que nos reenvia para os “monstros” de Tod Browning, para o Freaks, por exemplo. Adoro isso. Existe essa ideia de monstruosidade nas personagens: num caso é exterior, física, no caso dela é uma monstruosidade secreta. No romance [O Estranho Caso do Dr. Jeckyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson], Hyde é tudo o que Jeckyll reprime: a sexualidade, a violência. Madame Hyde não é isso. Mesmo no caso da primeira cena em que ela “mata”, é para proteger Malik. A monstruosidade no filme não serve a distinção entre Bem e Mal, espelha antes uma fragilidade. A fraqueza de Malik são as suas pernas; a de Marie Géquil é ser um fracasso como professora. Isabelle, e é por isso que adoro trabalhar com ela e que vou voltar a fazer um filme com ela, é uma actriz que tem uma forma de estilizar os gestos. Não são gestos naturais, que se diriam do quotidiano, que respiram uma evidência do quotidiano. São gestos estranhos – há sempre um lado de excentricidade, como no cinema mudo. Não sei de onde é que isso lhe vem, eu próprio me surpreendo, e é por aí que muito da personagem não passa pelo "bla bla bla" ou pelo argumento. Há coisas que Isabelle inventa sozinha. Às vezes sou eu que lhe dou o ponto de partida – esse gesto de que falou, que tem de facto tanto de agressão como de continuidade, fui eu que propus. Mas sobre o mudo, sobre essa conexão [James] Whale/Browning: é verdade, mas enveredaria mais pelo lado burlesco. Um burlesco – grande palavra agora – metafísico. Sim, menos trivial. As personagem olham sempre para longe. . . É mais sonhador. . . Há um lado melancólico no seu cinema. As personagens desejam sempre estar noutro lugar, o olhar delas vagueia com a consciência de outra dimensão, a que não se consegue chegar. . . Vejo o que quer dizer. Os meus filmes são diferentes, espero nunca repetir o mesmo, mas em cada um há o apelo de um longínquo. Há uma busca, se calhar um sentimento de perda. Estou a improvisar, porque nunca tinha pensado nisso. . . mas sim, a ideia de um exterior inacessível com uma harmonia própria que dificilmente as personagens encontram nas suas vidas. Como pegar em pleno numa “questão social”, a educação, sem a transformar na declinação dum sermão: Serge Bozon mostra. Onde é que se coloca no cinema francês, território que foi demarcado nos anos 30 pelo “realismo”?Os anos 30 e os anos 70 foram as décadas maiores do cinema francês. Porquê os anos 30? Porque, e tal como em Hollywood, onde isso era mais visível, a noção de género ainda não estava fixada, nem a gramática de cada um dos códigos, tudo se comunicava. Um mesmo filme podia ser comédia musical, filme de aventuras, filme erótico, e a alegria efusiva de tudo misturar. Pense em Steamboat Round the Bend [1935], de John Ford: é uma comédia sobre o Mississípi, é filme étnico, tudo é possível. Isso existia no cinema francês, isso existia na cabeça de alguém como Julien Duvivier [1896-1967], com um misto de excentricidade e de realismo bruto, o mundo parecendo caótico. Nos anos 70, que adoro, por razões políticas e sociais, houve a ressaca das esperanças revolucionárias, que fez com que as pessoas tivessem ficado sozinhas. Não é por acaso que Eustache, Rohmer, Godard, Rivette fazem os seus melhores filmes nessa década: estavam todos em momentos de solidão, tiveram de se voltar para si próprios para encontrarem na raiva, na solidão, os seus recursos. Pegue em Une Mulher é Uma Mulher [1961], de Godard, ou em Bando à Parte [1964], e a seguir em Número Dois [1975] – aqui já não há nada do “somos jovens e belos e andamos pelos museus, pomos música na jukebox e engatamo-nos”; há algo de mais duro. Essa dureza dá um lado mais comovente. Este é o cinema de que gosto. De qual é que venho? Tenho gostos clássicos: diria Guitry, Pagnol, Renoir, Jacques Becker, Bresson, Tati um pouco; toda a Nouvelle Vague, e toda a escola [das produções] Diagonale [Jean-Claude] Biette, [Paul] Vecchialli. . . Há cineastas recentes de quem me sinto próximo: Patricia Mazuy, Alain Guiraudie. Quando tinha 25 anos, escrevia para uma revista, La Lettre du cinéma, e tínhamos – eu, Vincent Dieutre, Pierre Léon, Axelle Ropert [a sua argumentista] – uma noção de grupo, um pouco como a Nouvelle Vague. Queríamos fazer filmes e fizemos. E dispersámo-nos. Mas ficámos marcados pela ideia de que se fazemos protótipos, ou seja filmes estilizados, é porque queremos ficar próximos de um cinema popular: a estilização não vem do cinema de arte e ensaio. O que pode haver de mais estilizado do que um peplum? Quando vemos Zombie [1948], do [Jacques] Tourneur. . . é estilizado, é fantástico sonhador, é fantástico atmosférico, mas ele fazia isso para o público mais popular. Tenho um amor enorme pelo cinema popular, sobretudo quando é mais delirante, como a série B. As cenas à noite de Madame Hyde foram feitas a pensar no giallo, no cinema de terror italiano, que tinha uma sofisticação na luz e na colocação dos actores em campo mas não era cinema de arte e ensaio. Quando alguém me diz que Madame Hyde é original, que não se sabe de onde vem, penso: é um filme sobre o subúrbio, é um filme sobre a escola que questiona o que é ensinar, é um filme em que há elementos fantásticos, e lembro-me que Brisseau fez isto, em De Bruit et de Fureur [1988], que vi em miúdo, e que era poesia em filme. . . mas aí ficamos no círculo da arte, e o meu objectivo, como em O Menino Selvagem [1970], do Truffaut, é sair do círculo da arte e mostrar o que é aprender. No caso do Truffaut é simples: é aprender a ler, a escrever e a falar. No caso de Madame Hyde tudo se passa mais tarde, trata-se de aprender a raciocinar, a argumentar, a colocar um “portanto” entre cada frase, a resolver um problema sem números, só pela reflexão. Não é trivial. La France podia ser o título dos outros filmes. As suas longas tratam do exército, da polícia, da escola. Imagino que não esteja a picar o ponto das instituições. . . [risos] Não, se não seria Frederick Wiseman. A minha co-argumentista é que tem as ideias. A minha “coisa” é a mise-en-scène, a montagem, não sou forte em argumento, Nunca sou eu a encontrar o ponto de partida, é ela. Sem ela não seria capaz de fazer filmes. Sim, leio os jornais todos os dias, leio o Libé [Libération]. Mas o meu ponto de vista é outro na questão do político e do social. Olhemos para Clint Eastwood, para um filme como Mystic River [2003], que frequentemente é pesado no seu negrume. De repente ele faz Grand Torino [2008], em que há um único branco num bairro asiático, e reaparece uma frescura que tinha perdido, que havia em A Última Canção [1982], reaparecem um humor e um sentido do presente. . . Só pelo facto de a personagem não saber quais os rituais daquela comunidade, quais as palavras a dizer. É o mesmo que faço ao misturar Isabelle Huppert e um actor que não é um actor. Engendra um prazer de cinema que não acontece quando ficamos no círculo habitual. É uma forma à parte de fazer político e social no cinema francês. Sim, seria menos à parte se estivesse em Portugal. Se pensarmos num filme como A Fábrica de Nada [Pedro Pinho, 2017], e na sua dimensão de comédia musical, mesmo que sejam três minutos num filme de três horas, ou naquilo que Miguel Gomes ensaiou em As Mil e uma Noites [2015], nas variações possíveis que não opõem cinema social a cinema popular. . . Não há um academismo no cinema português. Cada cineasta é um protótipo, isso oferece resistência à fixação de uma narrativa. . . Muito justo. Já em França há demasiados filmes demasiado parecidos. Estou isolado, sim, em todo o caso tento evitar a oposição entre arte e ensaio, entre o cinema cultural chique e o cinema comercial. Não é que os meus filmes façam milhões; falo em comercial na relação com as personagem, com a comicidade, com a ingenuidade e com os actores. Tento que os filmes saiam desse tipo de fronteiras. Até porque, se há convenções no cinema comercial, também as há no cinema de arte e ensaio. Por exemplo, há vários hoje a fazerem um sub-[Pedro] Costa. A metamorfose é central nos seus filmes. Há sempre um ser que se transforma, quase sempre uma mulher. Em que “laboratório” é que as coisas, as ideias, lhe surgem ou acontecem? Começa pela ideia de uma mulher a transformar-se?Não, depende. É a Axelle Ropert que me propõe: “Isto interessa-te?”. Escrevo sempre com a Axelle, e passa-se como se passa com Isabelle no plateau: não fico horas a falar da personagem, não atiro referências; quanto muito isso passa-se num segundo instante, ou quando o filme acaba e começo a reflectir. É só a partir da montagem que começo a ser analítico. Antes é excitação, é adrenalina. Na altura de La France eu não estava interessado no subúrbio e nas questões dos árabes, hoje estou e trata-se de encontrar uma ideia que toque nesses assuntos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para Madame Hyde, Axelle propôs-me Stevenson, nos nossos dias, no subúrbio, e com uma mulher. Foi isso que me excitou. O mesmo para Tip Top. Os policiais assentam numa rivalidade mimética entre o assassino e o polícia, em que o assassino está rodeado de mulheres e de droga e o polícia é melancólico. É um cinema de macho triste, homossexual reprimido e deprimido. Por isso a ideia em Tip Top era fazer um policial com mulheres, em que elas eram não só a polícia – logo, sem possibilidade de rivalidade mimética com o assassino – como eram a polícia da polícia, porque o trabalho delas é investigar a polícia. Sobre Madame Hyde. . . porquê uma mulher? Porque queria trabalhar com Isabelle mas também porque a transformação tornava-se mais romanesca: há uma fragilidade à partida. E porque há uma inversão: José Garcia, o marido, é o homem de casa, é ele que cozinha e que trata dela, o que dá um lado de excentricidade. Se fosse a mulher a dona-de-casa e a personagem em transformação o homem, seria uma coisa mais macho. Mas é verdade que a metamorfose estava na base de La France [uma mulher veste-se de homem e parte para a frente, na Primeira Guerra Mundial, ao encontro do marido]. Axelle propôs: “O que achas de um filme de guerra em que uma mulher se traveste?”. Nunca tinha reflectido muito nisto, e agora reparo que o meu próximo projecto é uma variação contemporânea de Don Juan, em comédia musical.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático Árabes
Velhas e novas escravaturas
Este Senhor não quer nem escravos nem escravas, mas amigos e amigas. Porque não lhe fazer a vontade? (...)

Velhas e novas escravaturas
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.118
DATA: 2015-03-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Este Senhor não quer nem escravos nem escravas, mas amigos e amigas. Porque não lhe fazer a vontade?
TEXTO: 1. A escravatura não tem data de começo. Com a descoberta das Américas começaram a ser usadas como escravas as populações ameríndias. Depois, recorreu-se ao comércio transatlântico. Calculando que por cada escravo que chegava vivo, quatro morriam pelo caminho, o resultado são sessenta milhões de africanos, a que é preciso acrescentar ainda os destinados às colónias asiáticas de Inglaterra e de França. Somando tudo, temos, aproximadamente, noventa milhões. Como perguntava Antón de Montesinos: E estes não serão seres humanos? [1]Fr. Bartolomé de las Casas tinha razão para denunciar a destruição tanto das Índias e como a de África [2]. Marcello Caetano [3] verifica que até ao século XIX, todas as nações coloniais praticaram a escravatura. As chamadas colónias de plantação careciam de mão-de-obra adaptada às condições do meio e que só podia ser obtida mediante a compra de escravos, no continente africano. Os navios empregados no tráfico dirigiam-se aos portos de embarque, onde se encontravam estabelecidos os intermediários – os negreiros -, que geralmente obtinham as suas peças por meio de permuta feita com os régulos indígenas, visto estes disporem despoticamente da liberdade e da vida dos súbditos, além de possuírem também escravos e de poderem sempre obter mais através da rapina e da guerra com outras tribos. Morrem umas escravaturas, nascem outras. 2. O Papa, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, nota que hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência humana, a escravatura foi formalmente abolida. No próprio Direito Internacional consta como norma irrevogável. Mas, apesar da comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para acabar com a escravatura, em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para a combater, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, mulheres e homens, de todas as idades – são privadas de liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura. Bergoglio não esquece a teologia do Antigo (AT) e do Novo Testamento (NT) que fundamenta a defesa da pessoa, que tem valor, mas não tem preço. Mas não repousa nessa memória. Pensa nos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico aos trabalhos agrícolas e industriais, tanto nos países em que não há legislação segundo os padrões internacionais, como naqueles em que há e não é cumprida. Não esquece as condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, passam fome, são privados de liberdade, despojados dos seus bens e abusados física e sexualmente. Lembra aqueles que, chegados ao seu destino, depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas. Recorda os que em diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas são obrigados a passar à clandestinidade, e aqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho. . . Sim! O Papa pensa no "trabalho escravo". Como esquecer as pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, as escravas e escravos sexuais; as mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem poderem recusar?Bergoglio não pode deixar de pensar nos menores e adultos, objecto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional. Finalmente, todos aqueles e aquelas que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos desaparecem - alguns são vendidos várias vezes – outros torturados, mutilados, mortos. 3. No cristianismo não pode haver senhores e escravos. Só irmãos. Jesus nem servos quer, quer amigos. Talvez não fosse má ideia acabar, de uma vez por todas, com as piedosas evocações de servas e escravas. Que se perderia com isso?
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo
Silêncio que se vai filmar o fado
Não se ouve Camané da mesma maneira depois de se ver Fado Camané. É o documentário de Bruno de Almeida sobre o cantor a tentar encontrar em estúdio a medida exacta das coisas. É só inquietação, íntima e artística. (...)

Silêncio que se vai filmar o fado
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não se ouve Camané da mesma maneira depois de se ver Fado Camané. É o documentário de Bruno de Almeida sobre o cantor a tentar encontrar em estúdio a medida exacta das coisas. É só inquietação, íntima e artística.
TEXTO: Camané está a fumar um cigarro sozinho, à porta de um restaurante do Bairro Alto. Ele parece olhar para as pessoas que passam na rua, mais do que elas olham para ele, talvez porque não o reconheçam sem a sobriedade de crooner (fato preto, camisa branca) associada à sua imagem de fadista. Camané está de jeans e – apesar de ser noite e de ser Outubro – de t-shirt listada. A informalidade dá-lhe uma certa discrição, como se fosse um disfarce. É por isso que às vezes lhe pedem lume sem se aperceberem quem é e só quando devolvem o isqueiro é que o reconhecem. Aconteceu recentemente, num sábado à noite, na esplanada do snack-bar Galeto, em Lisboa. Um jovem luso-africano voltou para trás, para confirmar: “É o Camané, não é?”Camané aprecia esse reconhecimento, mas também lida com isso com uma certa humildade. Não é como se achasse que é um direito ou uma regalia. “Foi quando percebi que era famoso. Quando os africanos começaram a cumprimentar-me na rua. ”Há uns anos, Bruno de Almeida teve a ideia de fazer um documentário sobre Camané. O plano era filmá-lo nas casas de fado onde cresceu e cantou, os concertos, os bastidores do fado. O realizador concorreu ao financiamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual para documentários, mas a resposta foi que Camané não era tema para uma longa-metragem. Bruno de Almeida continuou a filmar e quando o fadista começou a preparar um novo álbum ele estava lá, com a sua câmara ao ombro. Foi em 2008. Bruno de Almeida montou um pequeno filme de meia hora sobre o making of do álbum Sempre de Mim, lançado nesse ano, para uma edição especial limitada e arquivou as horas e horas de filmagens que tinha feito. Outros filmes foram aparecendo: Bobby Cassidy, documentário sobre um antigo pugilista de Nova Iorque, e Operação Outono, reconstituição histórica do assassínio de Humberto Delgado e do julgamento dos seus carrascos. No ano passado, a Cinemateca convidou-o para fazer uma projecção do filme de 30 minutos incluído na edição especial do Sempre de Mim, e o realizador lembrou-se de fazer uma nova montagem, acrescida de imagens inéditas. Acabou com uma versão de uma hora, que mostrou na Cinemateca em Novembro de 2013. “Quando vi essa versão, apercebi-me de que não precisava de filmar mais coisas. Não precisava de fazer mais entrevistas ao Camané, não precisava dele a andar pela rua nem da glória dos concertos – o que estava ali era mais interessante”, explica Bruno de Almeida. Fado Camané, o documentário que chega agora às salas de cinema, uma semana depois de ter sido mostrado no DocLisboa, também não é o filme que foi mostrado na Cinemateca, mas uma nova versão que o realizador montou sozinho e obstinadamente nos meses que se seguiram. Apesar de ter sido filmado durante as gravações de Sempre de Mim, é muito mais do que um making of de um disco. É um retrato íntimo de um artista que personifica o fado como poucos – e é espantoso como, sem quase nunca sair do espaço impessoal de um estúdio de gravação, se descobre ali vulnerabilidade e turbulência. Camané vacila, fica sem saber o que dizer, dobra o torso e afunda a cabeça entre as pernas como se ouvir-se a si próprio fosse doloroso (ele confirma: é mesmo doloroso). “O Camané é uma pessoa que vive o interior de uma forma muito intensa. E tu sentes isso no olhar”, diz Bruno de Almeida quando Camané não está por perto. “Às vezes não é tanto o que ele está a dizer; são os olhos dele, é a maneira como ele procura as coisas. ”O direito à melancoliaBruno e Camané conheceram-se em 2006, quando o realizador regressou a Lisboa depois de mais de 20 anos a viver em Nova Iorque. Um dia chegou a casa e Camané estava lá (a mãe de Bruno deu-lhe aulas de francês). Apesar de serem da mesma geração – Bruno, 49, tem mais dois anos que Camané – não estavam propriamente condenados a serem amigos. Aos 12 anos, quando Camané ouvia fado às escondidas em casa – “Eu ouvia AC/DC e Ramones alto; depois ouvia fado baixinho”, lembra –, Bruno fez uma audição para tocar com os Xutos & Pontapés. O fado representava tudo aquilo que ele era contra. “Um puto com 15 anos em 1980 não ouvia fado”, diz. “Nós assistimos a uma série de explosões. O punk, a new wave. ” Quando vai para Nova Iorque, pouco depois, torna-se guitarrista de jazz e compositor. Improvisação, experimentalismo formal e a new wave nova-iorquina estão presentes na sua produção musical dessa fase. Nas fotografias profissionais tiradas à época, Bruno parece um jovem John Lurie. Por essa altura, já Camané cantava em casas de fado. “As casas de fado foram a minha escola”, resume. Durante anos foi o único fadista jovem, da sua geração, a cantar em casas de fado, rodeado de gente mais velha. Mas ele lembra-se de quando notou que os tempos estavam a mudar. “Queres ver uma coisa?”, pergunta Camané, parando em frente do número 39 da Rua do Diário de Notícias. A ardósia pendurada à porta tem “FADO VADIO” escrito a giz. “O dono deste sítio tem mais dez anos do que eu. Conheci-o quando cantava no Mesquita [Adega Mesquita, casa de fados no Bairro Alto], tinha eu dez anos. Ele era empregado de mesa lá. Abriu este sítio pelo fado. ” O sítio é a Tasca do Chico, e, parecendo que não, já lá vão 20 anos. “A primeira vez que se ouviu fado em tascas, com malta mais nova, foi aqui”, continua Camané. “Havia rastas à porta. Pessoas que não tinham muito a ver com o meio. Gajos de outras raças. As primeiras pessoas mais novas que se viam a ouvir fado eram de uma elite. Aqui não. Passou a ser mais universal. ”Voltando ao dia em que Bruno e Camané se conheceram: “Ele já tinha ouvido falar de mim”, diz o fadista. E, voltando-se para o realizador com um sorriso: “Foi a Amália que te falou de mim. ”“É verdade”, confirma Bruno. “Nos anos 90, quando lhe perguntei quem é que devia ouvir, ela falava nele. E a Amália era muito dura nessas coisas. Só gostava de quem fosse original e tivesse uma personalidade própria. Houve ali uma passagem de testemunho. Foi feita para ele. Para um homem e não para uma mulher. ”Bruno de Almeida conheceu Amália Rodrigues em 1990, quando filmou um concerto da fadista em Nova Iorque – começou aí a sua reconciliação com o fado e a sua obsessão com a fadista. Havia uma espontaneidade e uma força emocional no canto de Amália que era o Santo Graal que todos os músicos que trabalham com improvisação procuram. “Se ouvires as 20 e tal versões do Povo Que Lavas no Rio cantadas pela Amália, não há dois ‘povo’ iguais”, nota. “Ela diz a frase conforme se sente no dia em que cantou. ”Essa descoberta do fado também coincidiu com um período de contra-ciclo, em que depois de uma década de vanguardas e experimentalismo, as pessoas em Nova Iorque começaram a voltar-se para a world music, em busca de autenticidade. “O meu montador, um americano que nunca tinha ouvido fado na vida, andava com uma boombox [radiogravador portátil de grandes dimensões, vulgarmente conhecido como “tijolo”] no metro a ouvir o Com Que Voz. Estava completamente doido. ”Bruno de Almeida acabou por fazer um filme biográfico sobre Amália Rodrigues, The Art of Amalia. Quando o filme estreou em Nova Iorque, os jornalistas americanos insistiam em perguntar-lhe: “Porque é que ela era tão triste?” O tom era de perplexidade: como é que alguém com tanto sucesso e dinheiro podia ser infeliz? O realizador tentou explicar o melhor que podia, recorrendo a uma frase da Declaração de Independência americana sobre o direito à felicidade. “Os americanos têm aquela coisa do ‘right to the pursuit of happiness’ e nós temos o ‘right to the pursuit of sadness’”, diz. O direito à tristeza, o direito ao queixume, o direito ao fado. Uma defesa de que a melancolia tem o seu mérito. “Há coisas mais dramáticas, apesar de tudo”, nota Camané. “Na ópera morrem todos no fim. E, no entanto, as pessoas saem de lá com a alma cheia. ”Na noite seguinte, Camané fez uma coisa inédita: cantou 11 fados de Amália Rodrigues numa homenagem à fadista no Museu do Fado. Ele cantou com as letras ao lado, num cavalete, acompanhado ao piano por Mário Laginha. Começou com Foi Deus. Ao quinto fado, havia várias mulheres a chorar na plateia e daí em diante o desamparo no rosto dos que o ouviam foi crescendo, como se cada pessoa estivesse sozinha. Uma mulher sentada no chão anunciou mesmo, em voz alta, numa pausa entre temas: “Já me fartei de chorar”. Camané sabe que isso acontece nos seus concertos, tanto quanto a distância e as luzes deixam ver. “Também sou daquelas pessoas que choram nos concertos. Vi uma vez um concerto do Chico [Buarque] no Canecão, em 98 ou 99, em que ele cantou as coisas que eu mais gosto. O gajo cantou super-bem, fartei-me de chorar a ouvir. ”Obstinado rigorÉ impossível voltar a ouvir Camané da mesma maneira depois de ver Fado Camané. O trabalho, a exigência, a minúcia que existe por detrás de cada interpretação é visível no documentário. Bruno de Almeida decidiu manter o filme no espaço do estúdio, “entre quatro paredes”, para melhor captar o rigor desse processo. Há em Camané a obstinação de um leão às voltas na jaula. “É como um aquário. Sentes que estás mesmo lá dentro”, diz o realizador. Bruno de Almeida pensou no direct cinema de Albert Maysles e no seu Gimme Shelter (1970) quando estava a filmar. “O Albert Maysles acha que só é documentário quando estás com uma grande angular em cima de alguém e consegues ver os poros. Tens de estar com a pessoa. ” Em Gimme Shelter – tido como "o maior filme de rock alguma vez feito" – Maysles filmou os Rolling Stones tão exaustivamente e tão perto que isso chegou a criar antagonismo: numa cena que não foi incluída no filme (e que se encontra entre os extras da edição americana da Criterion), Keith Richards perde a paciência e protesta contra o realizador porque a sua câmara está a abafar o som de uma das colunas do estúdio quando estão a tentar ouvir gravações já feitas. “Não é fácil teres alguém a filmar-te durante seis semanas. Sobretudo se estás a fazer um trabalho bastante intimista”, diz Bruno de Almeida sobre Fado Camané. Mas é muito claro para ele que “se estás a filmar alguém tens de estar do lado dela”. “O que estou à procura quando filmo o Camané é o mesmo que procuro quando estou a filmar um actor numa ficção. O que procuro é a naturalidade, a expressividade, o que acontece no momento. Por isso é que gosto muito de pedir aos actores para improvisarem. Porque é aí que descubro qualquer coisa. Eles confiam que eu não vou usar uma coisa que não é boa. Que eu estou a segurar aquela coisa e que podemos filmar tudo o que houver porque no final vou usar as partes boas. ”Fado Camané também é um documentário sobre a relação de Camané com José Mário Branco, o produtor e director artístico que o ajuda a encontrar o rigor pretendido, a medida exacta das coisas. Que essa relação espelha a dinâmica que existe entre um realizador e um actor é muito evidente no filme, mesmo antes de Camané explicitá-lo. “O que o Zé Mário faz é dirigi-lo. É exactamente o que um realizador faz com um actor. Diz: ‘Puxa tudo para baixo. ’ ‘Don’t overact. ’ O papel é esse. E o Camané gosta de ser dirigido. Ele não tem um ego em que diz: ‘Não, eu é que sei. ’ É um excelente intérprete porque se deixa conduzir. Porque ele quer ter esse espelho”, diz Bruno de Almeida. José Mário Branco é exigente e protector como um mentor. Ou um pai. “O filme é muito sobre essa relação. Essa colaboração, e a delicadeza de um em relação ao outro. . . ” Há ainda Manuela de Freitas, actriz e companheira de José Mário Branco, autora de alguns dos poemas cantados por Camané, que apesar de não estar tão presente, paira sobre o filme como uma figura de autoridade. Camané viu o filme como se estivesse de fora, como quem descobre coisas sobre si próprio que desconhecia. “Acho que aprendi um pouco mais sobre o meu trabalho com isto. Como é que sou empurrado para fazer as coisas de maneira diferente, como é que sou puxado à razão. Não tinha noção nenhuma. Eu olho para o filme e aquilo está a acontecer-me agora, que estou a fazer um disco. Cada vez que me vou encontrar com os músicos, com o produtor, as coisas estão a acontecer desta maneira. ”O novo álbum deverá estar pronto em Fevereiro. O fadista está a finalizar a escolha do reportório com José Mário Branco e Manuela de Freitas. Uma noite, depois de uma tarde de ensaios em casa de José Mário Branco, Camané começou a cantar um dos novos fados à porta de um restaurante, onde ele e Bruno de Almeida tinham acabado de jantar. O fadista procurou o poema no email do seu iPhone. Eram dez da noite, princípio da semana, e tanto o restaurante como a rua estavam vazios. Foi um preview para três pessoas, incluindo o dono do restaurante. “Cada vez que vou para um disco novo tenho sempre a sensação de que não vou conseguir. Vou sempre como se fosse a primeira vez. E vem aquele vazio, aquele medo, aquela insegurança. ”Tudo isto é fado, tudo isto é humanoNuma casa de fado, sabe-se que alguém vai cantar quando as luzes se apagam, a porta se fecha e o ar condicionado é desligado. Os portugueses não inventaram a saudade para agora vê-la submergir debaixo do rumor eléctrico de uma máquina de ar artificial. A Tasca do Chico é um cubículo com a lotação de um eléctrico, mesas rústicas corridas, estandartes clubísticos pendentes do tecto e fotografias emolduradas nas paredes de gente mais ou menos famosa que passou pelo estabelecimento ao longo dos anos (Bruno de Almeida nota, divertido, que lhe fazem lembrar certas pizzarias em Nova Iorque). Uma coluna de pedra separa o balcão da zona de mesas corridas e é aí que o fado se canta. Guitarra portuguesa e viola começam a tocar. O flash de uma câmara dispara bem na frente de quem vai cantar e ela reage, gaiata: “Iiii, ó amigo, não faça isso nunca mais. ” Bruno e Camané estão praticamente ao lado dela. E ela canta. “Eu já não sei se fiz bem ou se fiz malEm pôr um ponto final na nossa paixão ardente. . . ”Do balcão só se vê um cotovelo espetado do lado esquerdo da coluna. Mas ela vai lançando os braços para a frente enquanto canta e o balanço fá-la avançar. As suas botas pontiagudas batem na tijoleira. Os olhos estão cerrados. Numa pausa entre estrofes, Camané começa a cantar baixinho, mas suficientemente alto para que se dê por ele. Bruno achou que ele iria cantar a seguir, mas o momento desvaneceu-se tão depressa quanto esse pensamento. O fado é fortuito e é preciso aceitar isso senão fica-se condenado à frustração. Camané deixou de cantar em casas de fado depois dos 30. “As casas de fado são lugares onde as pessoas vão ouvir fado ou não vão ouvir fado. Cheguei a cantar no Senhor Vinho com quatro japoneses a dormir de boca aberta à minha frente. ” Não deixou de frequentar casas de fado, mas ouvi-lo cantar aí é uma raridade. Este ano aconteceu três vezes, uma delas na Tasca do Chico, em Maio. “E foi o recorde”, assinala. “É também a coisa de ser a uma certa hora da noite: os músicos vêm de outras casas de fado e encontram-se todos num sítio. É o prazer de fazer música pela música, não é trabalho”, explica Bruno de Almeida. “Tanto canta o Camané como a senhora do bairro”, acrescenta Camané. Lugares como a Tasca do Chico existem fora das habituais distinções entre amadores e profissionais. Na mesma noite podem cantar um homem de 90 anos, residente em Mem Martins (“Nos fados sou conhecido como o Reinado”, diz, enquanto autografa um pequeno papel com a sua fotografia semelhante a uma estampa religiosa), e Raquel Tavares, fadista com dois álbuns gravados e presença regular na televisão. É dela o cotovelo saído da coluna. Quando termina, Camané diz-lhe: “A Anita Guerreiro cantou esse fado para mim quando eu tinha dez anos. ”Duas jovens asiáticas na rua espreitam pela janela e riem-se muito. As casas de fado estão cheias de turistas porque os guias dizem-lhes que é uma experiência que não podem perder. Sem casas de fado, como é que saberiam que estavam em Lisboa?Bruno de Almeida filmou Amália sem nunca ter posto os pés numa casa de fados. Foi Camané que o levou pela primeira vez. “Porque é que gosto de casas de fado? Por causa da espontaneidade”, diz. Não tem nada a ver com a perfeição da execução. E é imprevisível. Normalmente acontece fora de horas, quando a maioria dos turistas já se foi embora e as pessoas que restam são as que querem mesmo estar ali. E sentem-se livres para serem o que são. É uma energia colectiva. “Está tudo a viver uma emoção de uma coisa que está a acontecer no momento e não de uma coisa do género ‘a música é bonita, cantou bem’. . . Sentes que estás num espaço onde tudo pode acontecer. E que é muito humano. Porque tudo o que é espontâneo é muito humano. ”Isso também é o que lhe interessa quando faz filmes e Fado Camané não é excepção. Pode dizer-se que é um documentário sobre a procura da perfeição, mas para Bruno de Almeida essa não é a questão. O que conta é o caminho, o ter tentado – um reconhecimento de que a pureza de intenção é o cúmulo da realização. Perguntamos a Camané se ver o filme é semelhante à experiência de ouvir um dos seus discos. “Não, porque se fosse um disco meu não ouvia. Não tenho paciência. Só oiço quando estou a fazer o disco e naqueles 15 dias a seguir porque tenho de ver as falhas, etc. E é extremamente doloroso ouvi-lo. Depois ainda é mais. O filme, não. Claro que estou a ver umas partes em que estou a cantar, isso é um bocado chato. Mas há partes em que estou a chegar às coisas, isso é bonito de ver. ”Camané mudou recentemente de casa e toda a sua música ficou para trás. O único disco que tem actualmente é um CD de Chet Baker, comprado há dias por cinco euros, na Fnac. “Vamos para o meu carro ouvir”, sugere. O Volkswagen está estacionado numa rua movimentada do Bairro Alto, frente a um bar. Dois homens encostados ao carro pedem desculpa e Camané responde, como se quisesse justificar a interrupção: “É só para ouvir uma música. ” O carro torna-se um submarino com uma tripulação de quatro. “Oiçam esta música”, comanda o fadista. Chet Baker canta I’ve never been in love before sobre umas notas solitárias de piano. A melancolia nunca voltará a ser tão cool. Camané não canta como o resto de nós. Ele não tenta imitar Chet Baker. Ele canta à Camané. Na rua, um rapaz encostado à parede do bar chama a atenção de uma rapariga loira para o carro. A palavra “Camané” forma-se distintamente na sua boca. Ela observa o carro, duvidosa, e volta a olhar para o rapaz. Ele confirma, acenando a cabeça. “É. ”
REFERÊNCIAS: