“Ninguém que dependa de votos no Brasil é louco de se associar aos ateus”
A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos está numa luta de proporções bíblicas: combate pela laicidade do Estado brasileiro. O seu fundador e presidente, Daniel Sottomaior, não se deixa intimidar pela tarefa e está a transferir esse debate da esfera pública para a Justiça. (...)

“Ninguém que dependa de votos no Brasil é louco de se associar aos ateus”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.6
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos está numa luta de proporções bíblicas: combate pela laicidade do Estado brasileiro. O seu fundador e presidente, Daniel Sottomaior, não se deixa intimidar pela tarefa e está a transferir esse debate da esfera pública para a Justiça.
TEXTO: Não se foge à religião no Brasil. Aqui, a fé é ela própria uma divindade de direito próprio: omnipresente. A velar o turismo carioca no topo do Corcovado; no Brás, distrito industrial paulistano onde a Igreja Universal do Reino de Deus construiu recentemente uma enorme réplica do primeiro templo citado na Bíblia, o Templo de Salomão; nas intersecções obscuras da mata atlântica que se adentra pelas cidades, com o candomblé baiano; nos media; no Congresso. Falar de laicismo parece por isso mais um exercício de republicanismo teórico do que um debate sobre uma característica fundamental dos Estados modernos. Nas urnas, as escolhas do povo estão longe de reflectir essa necessidade. O que tolhe as elites e aumenta o poder das várias igrejas que pululam pelo país, em particular as evangélicas. É nesse contexto, e em absoluta contracorrente, que nasceu a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA). Daniel Sottomaior é o fundador (2008), presidente e principal rosto da ATEA, que está a tomar em mãos o que ele próprio, com ironia, designa como “luta de David contra Golias”: travar a promiscuidade entre o Estado e as religiões. Na Justiça. Um caso de cada vez. Conversámos numa pequena empadaria do centro de São Paulo, onde pouco depois da entrevista um pregador fortuito num altar de cartão nos diz na rua: “Deus continua existindo!”Quantos ateus estimam que existam no Brasil?Todas as pesquisas indicam de 1% a 3%. Não dá para saber exactamente quanto, porque a margem de erro é perto de 1%. Em números absolutos são…Se pensarmos em 2%, são quatro milhões de pessoas. Como são tratadas num país tão religioso?Uma imensa parte muito mal. Costumo dizer que somos os párias oficiais. Se olhar o que aconteceu na evolução do movimento negro ou do movimento LGBT, por exemplo, houve no Brasil uma progressiva judicialização dos casos de preconceito e discriminação – o que é um sinal de progresso. Hoje em dia, se uma pessoa xinga um negro de macaco, sabe que pode ser preso. Se faz o mesmo com um ateu, a expectativa é completamente diferente. Por exemplo. Há um tempo uma moça fez um tweet preconceituoso contra os nordestinos (os imigrantes magrebinos na França são os “imigrantes” nordestinos em São Paulo, é a mesma coisa) e houve comoção nacional, investigação no Ministério Público, manchetes… Óptimo. Muito bom. Agora, quando se falam as mesmas coisas para os ateus [o tweet: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”] ou pior, nunca dá manchete, acção das autoridades, ninguém vai preso, é investigado, nada. Xingar os ateus é a mais perfeita normalidade institucional. Ninguém fica indignado. É a mais pura expressão da cultura local. Acontece ao contrário: ateus a insultar crentes?É possível, mas não tenho notícia de ateus dizendo que os cristãos – ou seja quem for – são criminosos, que não merecem viver, que têm que ser segregados da sociedade, que têm que ir embora, que merecem o inferno… Não vejo os ateus dizendo isso de ninguém. Qual é o papel da ATEA?São muitos. Tentamos focar-nos em dois mais importantes: diminuir o preconceito e lutar pela laicidade do Estado. A que tipo de acções se dedicam mais?Ao activismo judicial. Com a imprensa, podemos contar relativamente pouco. O poder público – o executivo e o legislativo – depende de votos. E ninguém que dependa de votos é louco de se associar com os ateus. Sabe o que acontece. Por eliminação, sobra o judiciário. E, ainda assim, aos trancos e barrancos. Mas que acções são essas?A mais recente: no final do mês [de Março] a Cúria Metropolitana vai fazer uma procissão pedindo chuva. É a dança da chuva moderna. A diferença é que agora se sentem no direito de usar o carro do corpo de bombeiros – um serviço público essencial – para carregar a imagem pela cidade. E os bombeiros, obviamente, também não vêem nenhum problema. A ATEA vai tentar impedir que isso aconteça – ou, se não for impedido, que os cofres públicos sejam ressarcidos. E campanhas de sensibilização?Já fizemos duas, mas isso é eventual. O dia-a-dia é ir à Justiça, ir ao Ministério Público, e pedir providências. Quantos associados têm?Cerca de 14 mil, por todo o país. Como assistiu às últimas presidenciais, tão marcadas pela religião, em particular pela candidatura de Marina Silva?Não só as presidenciais: para governador, prefeito, vereador, deputado estadual… Todas as eleições são dominadas pela questão religiosa. É uma tragédia anunciada. Os evangélicos se começaram a expandir no Brasil pela TV, há 20 ou 30 anos. Têm muitos fiéis com baixa escolaridade, vítimas fáceis destes predadores, que conseguem amealhar vastas fortunas – um deles é Edir Macedo [fundador da Igreja Universal do Reino de Deus], que está até na lista Forbes entre os mais ricos. Óbvia e literalmente, o dinheiro não cai do céu. Sai dos bolsos dos fiéis. Uma parte vai parar em propaganda porque rende (se desse prejuízo, parariam). E essas pessoas, como noutros países, elegem o melhor representante que o dinheiro pode comprar. Têm interlocutores habituais? Partidos políticos, poderes locais, estaduais, federal…Ninguém é louco. [risos]Ainda assim, há algum partido em particular mais apto a incluir as reivindicações da ATEA no seu programa político?Quanto mais à esquerda, maior é a tendência de haver uma certa afinidade. São esses os partidos que vejo a poder defender os direitos das minorias e a laicidade do Estado. Mas não sei se posso apontar algum em particular – tanto que isso não aconteceu até hoje. Em 2009, endereçaram uma carta aberta ao Presidente Lula da Silva, apontando-lhe contradições no que diz respeito à laicidade. Como é que Dilma Rousseff está a tratar esta questão?A acção é sempre ambígua. Tende mais para o religioso do que para o laico. Um dado interessante: ela é agnóstica. Um pouco antes de ser candidata, numa entrevista famosa, disse [sobre a existência de Deus]: “Eu me equilibro nessa questão. Será que há? Será que não há?” Podemos interpretar isso como sendo a confissão de uma agnóstica, ou de uma ateia que está só abrindo a portinha do armário. Meses depois, miraculosamente, se converteu. Virou uma beata, como se o fosse desde a infância – e assim permanece. Isso é só curiosidade. Em termos da laicidade em si, ela prefere ceder às pressões dos evangélicos, dos religiosos, sempre que haja um conflito. Seja na questão do aborto, na questão dos direitos das mulheres, casais homossexuais… Dilma sabe qual é o poder da bancada [parlamentar] evangélica. Teve um caso emblemático do chamado “kit gay”, uma iniciativa do Ministério da Educação para incluir em material didáctico uma espécie de cartilha sobre diversidade sexual – a importância e o preconceito. A bancada evangélica disse que o Governo estava tentando influenciar as crianças a serem homossexuais e conseguiu barrar a iniciativa. Isso, obviamente, com o aval da Presidente. É possível uma associação tão pequena fazer frente a forças tão poderosas? Igrejas com tanto dinheiro, acesso a canais de televisão, que se impõem nas cidades com grandes templos…É uma luta de David contra Golias. [risos] No que diz respeito ao Brasil, a organização deles chegou com 500 anos de antecedência em relação à nossa. É natural que estejam na frente. Não temos a perspectiva de ficar num embate equilibrado de forças em pouco tempo. Temos de ser realistas: estamos só começando. Já fizemos progressos monstruosos: os media já reconhecem a ATEA como uma liderança. A quantidade de associados é enorme, mesmo para um país com 200 milhões de pessoas. No Facebook, caminhamos para os 400 mil seguidores. Para uma página em português, que só fala de ateísmo e achincalha todas as religiões, é um número extremamente expressivo. Temos muitas acções na Justiça, já conseguimos movimentar uma pequeníssima quantidade de dinheiro… Há dez anos, antes de começar a ATEA, jamais imaginaria que teríamos tantas vitórias assim em pouco tempo. Têm algum apoio do Estado, enquanto associação cívica?O Estado quer que a gente morra! Tudo o que fazemos é contra o Estado. O violador é sempre um agente do Estado. E, frequentemente, alguém do alto da pirâmide: o presidente da câmara que diz que tem que deixar o crucifixo na câmara; o magistrado que beneficia religiosos; ou o Congresso, que aprova a Concordata com o Vaticano concedendo à Igreja Católica direitos que ninguém mais tem. Todas as decisões para preservar a laicidade, num país religioso, com a religiosidade tacanha que tem aqui, são impopulares. Recebem muitas reacções de crentes?O amor cristão sempre nos é expresso nos termos mais chulos e mais violentos: “um dia, todo o joelho se dobrará a Jesus”, ou que nós arderemos no fogo do Inferno, que vamos todos morrer de cancro, que somos pessoas infelizes, que não temos mais nada para fazer, que temos que deixar [em paz] a maioria cristã… Bastante!No ano passado, sentiram necessidade de sair em defesa do colectivo Porta dos Fundos. Porquê?O Porta dos Fundos tem vários ateus. Mas isso não seria relevante, não fosse o facto de que eles fazem muitos vídeos ridicularizando muito abertamente a religião. E eles foram várias vezes atacados. Salvaguardando as devidas proporções, foi um pouco como aconteceu com o Charlie Hebdo: qual é direito que eles têm para falar coisas daquelas? O nosso apoio foi para lembrar que o sagrado só o é para os religiosos, que não podem obrigar os outros a seguir as mesmas regras que eles, inclusive as regras da sexualidade. Um jornal como o Charlie Hebdo poderia singrar no Brasil, ou seria rechaçado?Tem espaço para a Porta dos Fundos… O único problema é o espaço para os media impressos, que hoje em dia atravessam dificuldades sérias. Fora isso, assim como na França [o Charlie Hebdo] só vai vender um milhão de cópias por causa da tragédia, aqui também: iria vender 5 mil cópias, que seriam os seus fiéis… leitores. Correcção: os estudos indicam que os ateus correspondem a 1% a 3% da população brasileira e não a 1% a 6%, como estava erradamente transcrito na resposta à primeira pergunta.
REFERÊNCIAS:
Polónia: a liberdade de expressão está a passar à clandestinidade?
Em três anos, entre 2015 e 2018, a Polónia desceu quarenta posições no Índice Global de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras. O serviço público de comunicação transformou-se em propaganda do governo e os jornalistas enfrentam processos na justiça. O discurso oficial tem-se moldado com valores nacionalistas, e isso reflecte-se nos comportamentos individuais. (...)

Polónia: a liberdade de expressão está a passar à clandestinidade?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em três anos, entre 2015 e 2018, a Polónia desceu quarenta posições no Índice Global de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras. O serviço público de comunicação transformou-se em propaganda do governo e os jornalistas enfrentam processos na justiça. O discurso oficial tem-se moldado com valores nacionalistas, e isso reflecte-se nos comportamentos individuais.
TEXTO: 11 de Janeiro de 2016. O jornalista Maciej Czajkowski tinha a carta de demissão no bolso. Trabalhava no serviço de informação da televisão estatal polaca e sabia que não podia continuar mais. A direcção tinha acabado de ser substituída por simpatizantes do partido que tinha ganho as eleições legislativas em Outubro de 2015, e que se mantém no Governo — o Lei e Justiça (PiS, na sigla em polaco). “Costumam dizer que o meu nome do meio é a imparcialidade”, brinca. A carta nunca chegou a ser entregue. Maciej foi chamado para uma reunião com a direcção antes de poder marcar ele mesmo um encontro. Não foi inesperado, mas mesmo assim “foi difícil”, confessa ao P2, em Varsóvia, na redacção do jornal onde agora trabalha, o Gazeta Wyborzca, o maior jornal diário da Polónia. Czajkowski mostra-nos os cantos à casa que o adoptou depois do despedimento e vai apontando outros colegas que tiveram o mesmo destino. Nestes quase três anos, terão sido quase 300 os jornalistas despedidos do serviço público, diz um comunicado publicado no início de Dezembro pelo Gazeta Wyborzca. Nesse comunicado, o jornal recusa ceder a pressões por parte do Governo para silenciar jornalistas. “Quase 300 pessoas que não serviam?”, pergunta Czajkowski. O jornalista trabalhou 12 anos na BBC, no Reino Unido, e em 2012 regressou à Polónia com um convite para renovar a TVP, a televisão estatal polaca. A experiência correu bem, mas terminou abruptamente passados quatro anos. “Foram despedidos profissionais de topo, pessoas muito conhecidas. Basicamente, não eram pessoas que estavam preparadas para trabalhar ao serviço de um partido. ”Desde 2016 que o serviço público de rádio e televisão polacos se tem vindo a transformar num veículo de propaganda do governo. Já os meios privados mais incómodos, bem como os seus jornalistas, têm sido processados pelas mais variadas razões, no que algumas organizações internacionais denunciam como uma tentativa de boicotar o trabalho dos jornalistas. Para além da pressão nos tribunais, as empresas do estado tiraram toda a sua publicidade dos meios que não alinham com o Governo. O executivo fala ainda numa “repolonização” das empresas de comunicação social, impondo um limite ao capital estrangeiro. A maior televisão privada do país, a TVN, é propriedade da americana Discovery, e alguns dos grandes jornais do país fazem parte do grupo suíço e alemão Ringier Axel Springer Media. A par destas decisões que restringem a liberdade de imprensa polaca, causa preocupação a reforma do sistema judicial que questiona a independência dos juízes e viola as regras europeias. A medida mais controversa foi aprovada há cerca de um ano e fez com que se colocasse em cima da mesa a hipótese de activação do artigo 7. º do Tratado Europeu contra a Polónia. Essas mudanças abriram caminho para o Governo passar a controlar a nomeação e demissão dos 86 juízes do Supremo Tribunal e dos tribunais inferiores, e para o parlamento escolher a composição do Tribunal Judiciário Nacional, a quem compete a indicação de todos os magistrados. Um ano depois, uma parte da reforma foi travada depois de uma exigência do Tribunal Europeu de Justiça. Em causa estava a antecipação da idade da reforma dos juízes do Supremo Tribunal, e que só este ano já tinha obrigado à reforma de cerca de dois terços dos magistrados. No final de Novembro, o governo recuou e voltou a integrar esses juízes. As restantes alterações, no entanto, mantêm-se. “É preciso dizer a verdade sobre a liberdade de expressão. Ela foi concebida no século XVIII pelos franceses, mas acabou. ” Andrzej Tadeusz Kijowski é o especialista em liberdade de expressão do Conselho Nacional de Radiodifusão polaco (KRRiT, na sigla original), o organismo público que tem como missão garantir que este direito está a ser cumprido pelas rádios e televisões na Polónia. Kijowski recebe o P2 na sede do KRRiT. Conversamos em inglês e francês, um polaco e uma portuguesa, com a ajuda de outra polaca, Teresa Brykczynska, a porta-voz do conselho, que vai pontuando a conversa com algumas clarificações. Momentos antes de a entrevista começar, Brykczynska pergunta se não podemos ter apenas uma conversa sem câmara ou gravador. Quer saber exactamente o que vai ser perguntado — “para ter a certeza” de que sabem responder. Ao lado dela, Kijowski parece saber muito bem o que dizer. A liberdade de expressão, argumenta, “acabou em 1950 com o artigo 10. º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estabelece que a difusão de rádio e televisão pode ser limitada pelos governos”. O artigo citado por Kijowski dá a todas as pessoas o direito de transmitirem ideias e opiniões sem restrições e prevê, como afirma o especialista do Conselho Nacional de Radiodifusão polaco, a possibilidade de se estabelecer um regime de autorização prévia a empresas para obterem licenças de radiodifusão (isto é, para abrirem um canal de televisão ou de rádio). Kijowski, cuja função é a de garantir a liberdade de expressão nos media, defende que ela há muito que não existe na Europa e dá exemplos. “A situação da liberdade de imprensa na Polónia é muito melhor do que por exemplo em França e na Alemanha, porque lá não se pode de maneira nenhuma dizer as verdades sobre a situação dos imigrantes e sobre a oligarquização da democracia na União Europeia. ”O discurso não surpreende quem tem acompanhado a informação através do serviço público. Os noticiários estão cheios de discursos contra a Europa. Há um “nós” (polacos) contra “eles” (a União Europeia) constante. Um relatório publicado em Janeiro pela Sociedade de Jornalistas polaca mostra como a televisão polaca se transformou num instrumento de propaganda do partido no governo, ajudando ainda a criar uma sensação de ameaça vinda do exterior, por parte dos russos e dos imigrantes, e ainda um clima de desconfiança em relação aos membros do anterior governo, agora na oposição. Kijowski não nega a instrumentalização do serviço público. Explica que o país vive uma “guerra” de informação (Teresa torce o nariz, diz que “guerra” é uma palavra muito forte, mas sublinha que a comunicação tornou-se muito polarizada), e o serviço público não tem alternativa se não ser usado pelo governo. Mesmo se a lei diz que ele deve ser pluralista, isento e independente. Teresa Brykczynska completa: “É preciso dizer que a televisão pública é a televisão onde o nosso governo pode, e podemos mesmo dizer, deve, apresentar as suas políticas, os seus planos, porque as pessoas que votaram nele querem saber quais são as políticas que existem na Polónia”. A instrumentalização da informação é confirmada pelo relatório da organização Repórteres Sem Fronteiras que acompanha o Índice Global de Liberdade de Imprensa 2018. O país ocupou este ano o 58. º lugar no ranking, uma posição muito distante da 18. ª posição conquistada em 2015. Na tabela de 2018, Portugal ocupa o 14. º lugar e quatro estados-membro da União Europeia estão em situação pior do que a Polónia — Malta (65. ª), Croácia (69. ª), Hungria (73. ª) e Grécia (74. ª). Sobre a Polónia, o relatório da RSF fala em “cegueira ideológica” e descreve um serviço público de comunicação transformado numa voz para o governo difundir a sua propaganda. Como funciona a propaganda no serviço público? Andrzej Krajewski é o autor do estudo da Sociedade de Jornalistas publicado em Janeiro deste ano e que revela a instrumentalização por parte do partido no governo do serviço público de televisão. Recebe-nos no seu escritório, em casa. Uma parede está decorada com fotografias de Krajewski com vários ilustres, que teve a oportunidade de entrevistar enquanto jornalista — do papa polaco João Paulo II a George H. W. Bush. Do outro lado, recortes de jornais emoldurados, onde ele próprio foi o protagonista das notícias — como uma manchete de Junho de 1989 do New York Times, quando os polacos votaram nas primeiras eleições legislativas depois do fim do regime comunista. No final de Setembro e início de Outubro deste ano, antes das eleições locais, voltou a analisar os conteúdos da TVP, onde ele próprio chegou a trabalhar, como correspondente em Washington, entre 1990 e 1994. Concluiu que 73% dos momentos em que uma pessoa fala directamente para a câmara eram protagonizados por representantes do partido Lei e Justiça. Também nos comentadores, havia uma “maioria clara, perto dos 90%”, de apoiantes do governo. “As vozes contra eram muito reduzidas, quase inexistentes”, explica. Krajewski convida-nos para ver com ele o Wiadomosci, o telejornal da televisão estatal. No dia 11 de Dezembro, a notícia de abertura é o aumento das pensões, que vai entrar em vigor em Março. A peça compara o aumento com o do governo anterior, que tinha sido menor. Mostram-se imagens de brutalidade policial durante as manifestações dos coletes amarelos em França. O oráculo diz: “Macron oferece dinheiro para comprar tempo” (anunciou o aumento do salário mínimo e cortes nos impostos sobre as pensões para fazer face aos protestos). A notícia seguinte vai até ao Parlamento Europeu e o oráculo volta a marcar o tom: “Bruxelas cega perante o drama dos franceses”. “A única comparação com o que tem acontecido no serviço público na Polónia durante os últimos quase três anos é o que aconteceu na imprensa nos anos 80”. A Polónia vivia uma ditadura comunista e Andrzej Krajewski dava os primeiros passos na carreira de jornalista, ao mesmo tempo que, na clandestinidade, fazia parte do movimento Solidariedade, do histórico líder Lech Walesa, o primeiro presidente eleito após a derrocada do comunismo. “Eu julgo que a liberdade de expressão está a passar à clandestinidade”, lamenta. Ao mesmo tempo que controla a informação no serviço público, o governo polaco tem aumentado a pressão sobre os meios privados. Dominika Bychawska-Siniarska, advogada de direitos humanos especializada em liberdade de expressão, é directora do Observatório da Liberdade de Imprensa da Fundação Helsínquia para os Direitos Humanos e recebe-nos no seu escritório a poucos metros do Supremo Tribunal Administrativo da Polónia. O gabinete parece pequeno para todos os dossiers e livros que foi acumulando ao longo dos anos. A advogada denuncia um “ambiente hostil” que está a ser criado à volta dos jornalistas. “O que é novo é o uso generalizado do sistema criminal contra os jornalistas”, explica. “Isto quer dizer abrir processos com base na lei da imprensa, com base na difamação de órgãos do Estado, de instituições do Estado, e estes procedimentos raramente aconteciam antes. Os órgãos estão a tentar proteger-se através das instituições e da máquina do Estado. ”O uso do sistema judicial para proteger o Estado tornou-se mais fácil com a reforma na justiça e pelo facto de o procurador-geral e o ministro da Justiça serem a mesma pessoa. Os dados mais recentes sobre processos de difamação remontam a 2016, ano em que o número de processos contra meios de comunicação social aumentou. Em 2013 e 2014 houve 58 processos, em 2015 foram 70, e em 2016 foram abertos 101. “Não temos estatísticas [mais recentes], visto ser algo novo, mas vemos cada vez mais casos desses a serem divulgados”, afirma Dominika Bychawska-Siniarska. E a pressão tem aumentado. “Há cada vez mais casos em que a polícia vai até casa dos jornalistas, fazendo buscas à procura de material jornalístico”. No final de Novembro, elementos da Agência de Segurança Interna da Polónia (o equivalente ao Serviço de Informações de Segurança português) foram até casa de um repórter de imagem que se tinha infiltrado num grupo de neonazis polaco para um documentário emitido em Janeiro deste ano na emissora privada TVN. Piotr Wacowski chegou a estar acusado de propagação do nazismo, mas a procuradoria acabaria por retirar a acusação dias depois. “Ninguém devia ter ido até casa dele de acordo com as regras de proporcionalidade”, diz Bychawska-Siniarska. E acrescenta que este tipo de intimidações aumentou no início de Dezembro. “Este fim-de-semana [8 e 9 de Dezembro], um polícia foi até casa de um repórter de imagem que tinha filmado uns protestos. Ontem [10 de Dezembro], a polícia visitou um jornalista que tinha descrito os protestos. Mais uma vez, não havia nenhuma urgência que justificasse esta visita. ”Dominika não tem dúvidas de que é o novo partido no governo quem está por trás desta postura por parte das autoridades. “Isto é um fenómeno novo. Há muitos anos que trabalho aqui. Nós conseguíamos trabalhar em conjunto com o Governo e os parlamentares. Tínhamos a impressão de que estávamos a trabalhar para um objectivo comum, a melhoria dos direitos humanos. Agora, não temos nenhuma hipótese de comunicar com as autoridades ou com os parlamentares, a nossa voz é ignorada. ”Estas ameaças à liberdade de imprensa surgem numa sociedade marcada por uma profunda divisão política. A advogada de direitos humanos Dominika Bychawska-Siniarska descreve uma sociedade tão “polarizada” que chega a haver pessoas dentro da mesma família que não conseguem comunicar. “Infelizmente, isto tem-se tornado cada vez mais evidente, e é muito difícil de construir pontes e encontrar tópicos que não sejam políticos e usá-los para construir pontes e começar um diálogo com o outro lado”. Nuno Bernardes, um professor de português que trocou Faro pela Polónia há onze anos, conhece bem esta divisão. Sentiu-a numa altura em que jogava futebol amador, mas com três treinos por semana. Nos exercícios de aquecimento, recorda, havia uma clara separação entre os jogadores de um partido e os de outro. “Se uma pessoa fosse do partido A, e eu fosse do partido B, não fazíamos os exercícios juntos. ” Em campo, funcionavam em conjunto porque “tinham de obedecer ao treinador”. No dia-a-dia, a política é tema a evitar se se quer manter um bom ambiente. “É daquelas informações que é preferível não revelar. ”A polarização é também muito evidente nos media, explica Bychawska-Siniarska, que lamenta que esta divisão dificulte a luta pela liberdade de expressão e de imprensa. “Há os meios de comunicação muito críticos e os que são pró-governo. Muito pouco no meio. ”E no meio, ou de fora, fica quem se quer manter afastado desta divisão política. Nuno admite que tem dificuldade em manter-se informado sobre o que se passa na Polónia por causa disso. E dá um exemplo. No início de Outubro, estreou-se nos cinemas polacos o filme O Clero, baseado em acontecimentos reais e com testemunhos de vítimas de abuso sexual por parte de membros da Igreja. Entre as personagens retratadas, há um padre bêbado que aconselha a amante a fazer um aborto, um padre acusado de abusar de um menino, e um membro do clero envolvido em esquemas de chantagem e corrupção. A película foi um sucesso nas bilheteiras logo na primeira semana: mais de 1, 8 milhões de pessoas foram vê-lo, quase 5% da população do país de maioria católica com 38 milhões de habitantes. Nuno conta como a imprensa do lado da oposição “rejubilou” com o fenómeno, enquanto os meios pró-governo sublinharam que “mais de 35 milhões de polacos boicotaram a estreia”. De acordo com a retórica que domina os meios pró-governamentais, a União Europeia é uma instituição inimiga da Polónia, que procura castigar os polacos e impor regras que prejudicam a país. Uma estratégia que o partido Lei e Justiça já terá percebido que não funciona entre a população. Os polacos só se juntaram à União Europeia em 2004, mas são já um dos povos mais europeístas da comunidade. Em Setembro, o Eurobarómetro perguntou a cidadãos dos vários estados-membros como votariam caso houvesse um referendo sobre a permanência do seu país na UE. Na Polónia, 75% responderam que optariam pela permanência, um número idêntico ao registado em Portugal (74%). A Itália foi o país onde menos pessoas responderam a favor da permanência (44%). “Eu penso que temos muita sorte por sermos membros da comunidade europeia. Se não fôssemos, provavelmente hoje seríamos um país parecido com a Rússia, com outro Putin”, argumenta Maciej Czajkowski, na redacção do Gazeta Wyborzca. A este tempo de incerteza, Maciej chama um “soluço” no percurso democrático da Polónia. Dominika Bychawska-Siniarska sublinha que o país precisa de uma maior intervenção por parte da UE, uma vez que os mecanismos nacionais não estão a funcionar. “Penso que a UE é lenta, mas a decisão recente que levou à reinserção dos juízes do Supremo Tribunal foi importante. Nós vemos agora que as instituições e os tribunais internacionais estão a ser a nossa salvação”, diz a advogada de direitos humanos. Muitas das mudanças propostas pelo governo tiveram como resposta a contestação popular. Klementyna Suchanow não falha uma manifestação, diz que vive há três anos na rua. Desde que o Lei e Justiça chegou ao poder. Em 2016, quando o governo mostrou intenções de proibir o aborto, Klementyna foi uma das impulsionadoras do movimento de mulheres que tomou a rua para protestar. A contestação popular foi de tal ordem que o tema não voltou a estar em cima da mesa. Há um ano, quando foram introduzidas as maiores mudanças no sistema judicial, Klementyna também estava lá. “Posso dizer que tenho andado a tentar defender a democracia”, conta ao P2, sentada num banco de um jardim na margem direita do Vistula, em Varsóvia. Para aqui chegar, vindo do centro da cidade, é preciso atravessar o rio e deixar para trás os quarteirões modernos e as avenidas largas da capital da Polónia. Klementyna Suchanow, escritora e historiadora, acumulou ao longo destes três anos vários confrontos com as autoridades. “Já fui perseguida pela polícia algumas vezes, fui algemada, fui atirada ao chão”, conta, como se estivesse a falar de uma nova normalidade, sem qualquer arrependimento ou raiva na voz. Por causa das suas participações em diversas manifestações, também vai acumulando audiências em tribunal e chamadas para prestar declarações. Tantas que deixou de comparecer. “Parei de ir porque teria de passar todo o meu tempo nas esquadras da polícia. A parte boa é que, por causa das reformas no sistema judicial, muitos juízes sentem-se responsáveis pelas pessoas que defendem a justiça e há pessoas que trabalham em nossa defesa pro bono. ” Estas pessoas fazem-na acreditar que o sistema não está corrompido. Aos 44 anos, Klementyna confessa que é a primeira vez que sente este tipo de pressão sobre a liberdade. Lembra-se de o pai ter estado preso por motivos políticos durante a ditadura comunista. Mas, acrescenta, até há pouco tempo, “na Polónia, não havia nada relacionado com um estado nazi, ou coisas que não pudéssemos dizer ou escrever”. “Eu sou uma escritora, e estou muito atenta às palavras e ao texto, à língua, e vejo como esta situação política está a influenciar a liberdade de expressão das pessoas, como elas começam a censurar-se porque sentem que o devem fazer. ”Klementyna chama-lhe um “regime suave, estranho e clandestino”, que, a pouco e pouco, se vai instalando na mente das pessoas sem ser preciso recorrer a regras e leis. “E as palavras trazem atitudes”. Exemplifica: “Eu lembro-me da primeira parada gay e eu não vi tanta agressividade como vejo hoje. ”Um estudo da Fundação Helsínquia para os Direitos Humanos realizado antes das eleições locais de Outubro mostra como alguns candidatos do Lei e Justiça usaram retórica antimigrantes e discurso de ódio para ganhar votos. O discurso molda-se para acomodar outros valores e esta transformação já está a acontecer nas escolas. Klementyna Suchanow tem uma filha de 15 anos e por isso está mais atenta à retórica no meio escolar. Diz que passou a incorporar valores como a “promoção da família, com um homem e uma mulher, questões históricas como ‘a Polónia é a melhor’, muito ódio em relação à Ucrânia, aos migrantes, aos judeus”. “Vai levar anos a recuperar”, calcula. Mesmo se o partido Lei e Justiça não for reeleito em Outubro, quando os polacos serão de novo chamados às urnas para escolher a composição do Sejm, o parlamento. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Eu sou historiadora e conheço os processos da história. Sei que nós podemos estar no fundo neste momento, mas há sempre um fim. Estamos a falar da Polónia, mas está tudo ligado: os Estados Unidos, a União Europeia, a Rússia. Estamos a perder, mas a longo prazo vamos ganhar, de certeza, porque eu não vejo alternativa. As pessoas querem a liberdade. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
“Não ando com um cartaz. As pessoas heterossexuais também não andam”
Sandra Cunha, do BE, acha que “o Parlamento deveria representar o mais fielmente possível a sociedade” (...)

“Não ando com um cartaz. As pessoas heterossexuais também não andam”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sandra Cunha, do BE, acha que “o Parlamento deveria representar o mais fielmente possível a sociedade”
TEXTO: A socióloga Sandra Cunha, eleita por Setúbal nas listas do Bloco de Esquerda, nunca tinha dito isto a um órgão de comunicação social: “A orientação sexual não é visível – como o género, a etnia ou algum tipo de deficiência ou handicap –, embora muita gente não a esconda. Eu, por exemplo, não a escondo, mas não ando com um cartaz. As pessoas heterossexuais também não andam. Simplesmente, não escondem. ”A primeira pessoa abertamente homossexual a sentar-se no Parlamento foi Miguel Vale de Almeida, antropólogo nascido em Portugal em 1960. Entrou em 2009 como independente eleito por Lisboa nas listas do PS. Já era um dos mais conhecidos activistas pelos direitos LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo) e tinha objectivos concretos: a lei que consagrou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a lei de identidade de género que permitiu mudar o nome próprio e a menção ao sexo nos documentos sem tratamentos hormonais e cirurgias. Saiu em Janeiro de 2011, sentindo que os cumprira, embora esta última lei tenha tido de ser votada segunda vez. Nas últimas eleições legislativas, voltou a haver só uma pessoa abertamente homossexual, Alexandre Quintanilha, cientista nascido em 1951, em Moçambique, casado com o escritor Richard Zimler, que conheceu quando vivia nos Estados Unidos. Eleito pelo círculo do Porto nas listas do PS, não se dedica a esses temas (preside à Comissão de Educação e Ciência). Desengane-se quem julga que todos os outros eleitos são heterossexuais. “Há mais gente no Parlamento que também não esconde a sua homossexualidade”, afiança Sandra Cunha. Fazem a sua vida. Alguns até partilham parte dela nas redes sociais, o que quebra a separação entre a esfera pública e a privada. Só não falam nisso com jornais, rádios ou televisões. Podem, simplesmente, não querer falar na sua vida privada. Podem nunca ter sido questionadas sobre esse assunto. Pode nunca ter vindo a propósito, como desta vez, que, para assinalar o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e para o Desenvolvimento, o PÚBLICO decidiu ver que diversidade existe no Parlamento. “É deslocado estar a falar nisso, a não ser que haja uma entrevista em que isso é perguntado”, salienta. E fazê-lo, pelo menos para já, ainda implica sujeitar-se a ser alvo de notícia, o que comporta riscos. "Há algumas reticências, porque a vida privada das figuras públicas é escrutinada e a revelação da sua vida privada não as implica só a elas, implica também as pessoas que a rodeiam, que fazem parte dos seus círculos de amizade ou das suas relações familiares”. Sandra Cunha integra a Comissão dos Direitos, Liberdades e Garantias. Participa na sub-Comissão para Igualdade e Não Discriminação. Faz parte do grupo de trabalho sobre parentalidade e igualdade de género e do grupo de trabalho sobre regimes eleitorais. Tem estado, por exemplo, a trabalhar na lei sobre a autodeterminação da identidade de género, que Marcelo Rebelo de Sousa vetou no passado dia 9 de Maio, e no regime jurídico de recenseamento de residentes no estrangeiro, que será sujeito a votação no próximo dia 24. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os deputados têm pastas atribuídas e é nelas que se concentram. Podia ter ficado com outras. Ser mulher, lésbica, oriunda de uma família de emigrantes, ter nascido em França em 1972, ter vindo para Portugal ainda criança fazer a escolaridade, ter andado cá e lá, ter optado por se fixar cá, ter um percurso como activista dos direitos LGBTI, não a obriga a interessar-se por temas relacionados com género, orientação sexual ou migrações. "Uma coisa não implica a outra", salienta. "Estamos aqui para representar todos os cidadãos e todas as cidadãs. " Não deixa, porém, de ver uma vantagem. "Acho que quem calça sapatos que são seus também tem uma sensibilidade acrescida. A empatia, que deve existir sempre, é invevitavelmente maior. ”No seu entender, “o Parlamento deveria representar o mais fielmente possível a sociedade”. Não é isso que acontece. "As pessoas que têm mais actividade política ou que estão mais disponíveis para a participação política são provavelmente as que têm mais oportunidades ao longo da vida. " Ocorre-lhe o exemplo das mulheres. "Não será essa a razão principal, mas também pesa o facto de estarem mais ocupadas com o cuidado da casa e das crianças. "
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
“Se os marcianos vierem, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de mais adjectivos”
Raça, género e identidade são os tópicos de que Harryette Mullen, membro do movimento Cave Canem, se serve para construir uma poesia que quer falar do que é comum a toda a gente, e não apenas do que lhe é específico enquanto mulher, afro-americana e feminista. Os escritores negros, defende, devem escrever como quiserem, independentemente da cor. (...)

“Se os marcianos vierem, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de mais adjectivos”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 11 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-08-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Raça, género e identidade são os tópicos de que Harryette Mullen, membro do movimento Cave Canem, se serve para construir uma poesia que quer falar do que é comum a toda a gente, e não apenas do que lhe é específico enquanto mulher, afro-americana e feminista. Os escritores negros, defende, devem escrever como quiserem, independentemente da cor.
TEXTO: E se a poesia de Safo, a grega, soar a blues depois de traduzida para o inglês da América? Soou mesmo a blues a Harryette Mullen, a americana que aprendeu o som, o ritmo e a cadência da sua poesia com as línguas de poetas que não consegue ler no original. Assume o contágio entre o que escreve e essas palavras que sabe entender fora do seu significado original, ou convencional, e que transmuta para uma poesia comprometida com causas, mas sobretudo com a singularidade da sua voz. Eis Harryette Mullen, 64 anos, natural do Alabama, criada no Texas. Professora de literatura afro-americana na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, não é apenas a responsável por resgatar para a actualidade uma obra esquecida que entretanto foi considerada um clássico contemporâneo: Oreo, o único romance de Fran Ross. Publicado em 1974, o livro, que refaz a história de Teseu numa versão satírica protagonizada por uma rapariga negra, compondo um retrato cheio de humor da relação entre afro-americanos e judeus, ficou adormecido até 2015, quando Mullen convenceu um editor a reeditá-lo (em Portugal saiu na Antígona em 2016). Foi também por causa de Oreo que Harryette Mullen passou a fazer parte da História da literatura americana, mas isso é pouco para falar dela. Em Lisboa, onde veio participar no programa Lisbon Revisited – Dias da Poesia, que reuniu vários poetas na Casa Fernando Pessoa para celebrar os 130 anos do escritor português, Mullen agradece a atenção. “Nos Estados Unidos os jornais não se interessam por poesia”, sorri, os cabelos num desalinho que a faz parecer muito, muito nova, ainda mais quando combinados com o sorriso que lhe abre covas na face e lhe faz cerrar os olhos. Acabada de chegar de Los Angeles, onde vive, pede desculpa pelo cansaço e justifica o desinteresse dos media do seu país pela poesia com a vida, o quotidiano. “Estão interessados em coisas práticas. Na economia, em negócios, em comprar e vender, e a poesia nem sempre é o melhor para isso. ” Autora de nove livros em que conjuga humor, desafia convenções e joga com a linguagem de forma provocadora, diz que está sempre a dizer aos seus alunos que “a poesia só serve para perder dinheiro": "O poeta perde dinheiro, o editor perde dinheiro, o livreiro perde dinheiro. É preciso gostar de poesia por outras razões. ”Sem um único livro publicado em Portugal, Mullen deu-se a conhecer na Casa Fernando Pessoa através da tradução de outra poeta, Margarida Vale de Gato. E lê-se, por exemplo, assim em português: “Os lumes da minha maluca não são nada como o néon. Os refrescos da Royal são mais coral que o seu beijo. Se o Tide lava mais branco, bazucas mais beges que as dela não há. A sua trunfa eriçada dava um esfregão Bravo de aço. Se vi as cores da moda na revista Marie Claire, nas trombas dela não vejo pó de rouge sequer. E os elixires Tantum têm mais frescura que o verdor da axila da minha mais-que-tudo. Gosto quando abre a goela, mas a pop enlatada tem mais ritmo do que ela. Eu cá não me dou com Marilyn Monroes. A minha larica verde é tão feiinha que dói. Mas, fogo, para mim, o sex appeal da minha Choco-Shake mete num chinelo as manequins platinadas e as actrizes de cinema, esterlicadas que faz pena. ” É o poema Duma Parda, que contrasta com este, [Que penas as dela, que folhas]: “Que penas as dela, que folhas. Ondula toda em brisas. Fru-frus e franzidos que tem. Rufos que se imagina. Vestido estival, sua souplesse, ao vento leve, farfalhando os folhos, levantando as faldas, espreitando pelas cavas. Suas palavras espalhadas ao vento. Quem lhe ouve a voz, tão baixa, cada vinco ao toque suave. Recolhe as folhas espaventadas, as penas, as asas. ”Conotada com causas como a raça ou o feminismo, Harryette Mullen prefere falar em identidade. “Interesso-me cada vez mais pelo mundo no seu todo. Nos Estados Unidos temos a tendência para pensar que somos o mundo, e em Los Angeles é fácil acreditar nisso, porque o mundo vive lá; todos os dias se falam mais de 70 línguas na cidade, e cada uma das pessoas que as falam tem uma identidade e tem raça e tem género. E essa identidade não tem só a ver com o lugar de nascimento, mas com diferenças que influenciam o modo como experienciamos o mundo e que muitas vezes têm a ver com desigualdade, emigração, globalização. A raça está no fundo da pirâmide da diferenciação salarial. É a questão dos tais 99 versus um por cento em todo o mundo. ” A cor define a classe social, razões económicas sustentam o preconceito. “As pessoas simplesmente não têm as mesmas oportunidades de sucesso, de educação. Isso faz a diferença. ”Na poesia dela há isso, e também por isso é política. Mas Harryette Mullen quer mais; pretende que nela haja a universalidade que, justamente, o preconceito de raça não lhe quer conferir. “Enquanto escritora gostava que a minha poesia fosse representativa da humanidade, e a humanidade pode também ser feminina e pode ser negra ou de outras cores. Mas quando me chamam negra, ou quando chamam negra à minha poesia, dizem-me que não posso ser universal. Que sendo negra e mulher e feminista posso apenas ser específica. Porque não sou branca europeia, o tal cliché do universal. O que querem é que eu carregue uma identidade, ao contrário dos brancos, que são apenas humanos. É um complexo dizer que os europeus brancos representam a humanidade mas eu não. Também quero representar a humanidade. Sou humana. Se os marcianos chegarem aqui, dir-nos-ão: ‘vós, os humanos’. Não precisarão de todos esses adjectivos para nos descreverem. Talvez isso servisse para nos unir. Mas parece que não há marcianos, que Marte está vazio. ”Harryete Mullen cresceu numa pequena cidade do Texas, Fort Worth. A mãe era professora e por isso muito cedo na sua vida apareceu o interesse pelas palavras. “Não me lembro de aprender a ler ou a escrever. Aconteceu-me muito cedo, teria uns três ou quatro anos. O mundo em que eu e a minha irmã fomos criadas era como uma pequena escola. Havia secretárias, estantes e livros, era fácil fazer desenhos, pintar. E havia enciclopédias. Acho que começámos a ler e a escrever antes de termos consciência disso. Escrevo poemas desde muito pequenina, imitando o que estava à minha volta: a poesia das canções, das rimas para crianças. Isso é uma espécie de poesia natural quando somos muito novos. ”O aparente jogo infantil com as palavras permanece. Mas depois veio o combate a um ambiente que tendia a excluir. “O Texas é muito resistente a ideias liberais. Apesar de tudo, fui para a universidade, em Austin, um dos lugares mais liberais de todo o estado, muito diferente de Fort Worth. ” Fort Worth é cowboys. . . Tenta um retrato social desse lugar: “As pessoas que possuíam gado e terras eram os 'cow cattleman'; as que trabalhavam para elas e não tinham nem terra nem gado eram os 'cowboys', aquilo a que no México se chama de vaqueros. Alguns eram afro-americanos. Mas na sua maioria os negros que chegaram lá antes de eu nascer iam trabalhar para os matadouros. Em Fort Worth havia dois grandes centros de abate e por isso se formou ali uma numerosa comunidade negra. Os barbecues continuam a ser um grande acontecimento na comunidade”, ri-se. Logo regressa a Fort Worth e ao Sul. “Há um feriado não oficial, o Juneteenth [também chamado o Dia da Liberdade ou da Emancipação], celebrado pela comunidade negra. Depois de a escravatura ter sido banida por Abraham Lincoln, as pessoas no Sul continuaram a viver como escravas e a lutar pela sua liberdade durante muito tempo. Por isso celebram o feriado numa data diferente do dia oficial da emancipação. E, claro, celebram-no com muitos churrascos. ”Parte da poesia que Harryette Mullen escreve reflecte os sons que ouviu nesse lugar, e depois noutros e noutros, as várias formas de inglês, as diferentes línguas que de facto se falam nos Estados Unidos. “Ninguém fala o inglês standard, a não ser, talvez, os apresentadores de televisão. Há diferentes formas vernaculares de inglês. O do Norte é diferente do do Sul, o do Este é diferente do do Oeste, e ainda há o inglês do Midwest. Também há diferenças étnicas e raciais: há o chamado 'black english', há o 'spanglish'. Quero reflectir essa diversidade. " E também esse contágio: " Estudei espanhol durante anos: nunca me tornei fluente, mas houve uma altura em que conseguia ler e escrever bem, ainda que o espanhol que aprendi na escola não fosse igual ao que escutava à minha volta. Embora tenha perdido quase tudo, a música dessa língua continua a ter influência sobre mim. E também aprendi um pouco de francês e de latim, porque andei numa escola católica. ”Além das suas aulas de literatura afro-americana, Mullen também dá um curso sobre poetas negros americanos contemporâneos. Muitos deles nasceram demasiado tarde para poder integrar o Black Arts Movement dos anos 60. “Foi um movimento importante, como uma segunda 'American Renaissance', depois da dos anos 1920. Abriu um novo território e afirmou que tínhamos uma linguagem, uma literatura, uma cultura. À minha mãe ensinaram que os negros eram desprovidos de cultura própria. Eles vieram provar o contrário. Agora os escritores negros estão mais integrados: fazem parte do sistema educativo, são membros de organizações literárias, estão a ocupar um território na poesia que antes não existia porque as pessoas não liam os seus livros, não se interessavam por eles. ”Uma dessas organizações de escritores negros americanos é a Cave Canem, fundada por Toi Derricotte e Cornelius Eady em 1996. “A intenção é dar maior visibilidade a estes poetas no contexto da cultura americana. O Black Arts Movement não foi visto como parte da cultura americana. A grande diferença é que os artistas negros hoje já não são vistos como marginais em relação a essa cultura”, explica, enumerando poetas e prosadores que venceram o Pulitzer, e "até uma vencedora do Nobel [Toni Morrison, em 1993]”. “Os jovens poetas negros hoje têm muitos mais modelos com prestígio. ”Harryette Mullen, que foi uma das instrutoras do Cave Canem, tem visto alguns dos seus alunos, como Terrance Hayes, ganharem prémios de poesia. “São muito diferentes entre si. Em relação a movimentos anteriores, há maior igualdade de género e não precisam de se guiar por uma agenda política em particular. O Cave Canem existe para incentivar os poetas a escreverem a poesia que querem escrever, para quebrar o o estigma de que um poeta negro tem de escrever o que se espera que seja a poesia negra. ”Ela não o faz. Vai ao centro da palavra poesia e traz significados possíveis. “Acho que a poesia acciona o cérebro, por exemplo quando cria falhas, quando abre brechas que é preciso preencher. ” E volta à língua, à identidade. “Tenho estudado a minha árvore genealógica. Consegui recuar uns 300 anos e nenhum dos meus antepassados, até onde fui, nasceu em África. Nasceram na Virginia, na Carolina do Sul e na Carolina do Norte, na Georgia. Sou americana, acho que tenho de admiti-lo. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sublinha esse facto "porque parece que é preciso andar a dizer isto, ainda mais agora”. É o agora depois do primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Não tem dúvidas de que Obama fez diferença. Mas. . . “Agora temos a reacção. Trump foi eleito para derrubar tudo o que Obama construiu. ” Na saúde, na imigração. "Somos um país a envelhecer, precisamos de imigrantes, especialmente dos mais jovens. Não entendo a visão curta desta política; deveríamos estar a dar as boas-vindas aos imigrantes. Em Los Angeles é preciso ser muito distraído para não perceber que eles fazem grande parte do trabalho essencial. É perverso querer o trabalho feito e ao mesmo tempo não querer as pessoas. E vemos como estão a ser recuperadas palavras de antes. Como as que James Baldwin proferiu há décadas. Estamos a ler James Baldwin agora porque não o ouvimos da primeira vez. Ele foi tão profético! Disse-nos que a mudança tem de ser uma combinação de raiva e de perdão. ”O semblante de Harryette Mullen muda, então. Quer falar da diversão que é jogar com as palavras. Ter o dicionário como ferramenta e matéria-prima. Ir aos limites, explorar cada camada, desafiar sentidos. “A poesia é onde a linguagem brinca consigo mesma. Por alguma espécie de razão gosto de chalaças, de trocadilhos; as palavras são escorregadias e podem assumir muitos significados. Na poesia estarmos sempre a ver como dizer o máximo com o mínimo. Há uma energia, uma ignição que se dá quando certas palavras se juntam. ”Artigo corrigido dia 24/6 às 13h07: altera a ortografia de Safo
REFERÊNCIAS:
Jean-Marie Le Pen diz que vai fazer uma "fornada" com os que criticam a Frente Nacional
Polémica em França onde se exige um processo-crime contra o líder histórico do partido que ganhou as europeias. (...)

Jean-Marie Le Pen diz que vai fazer uma "fornada" com os que criticam a Frente Nacional
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150501223750/http://www.publico.pt/1639202
SUMÁRIO: Polémica em França onde se exige um processo-crime contra o líder histórico do partido que ganhou as europeias.
TEXTO: Um comentário anti-semita e racista do líder histórico da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen, abriu uma polémica em França, onde as organizações não governamentais exigem a abertura de um processo crime contra o antigo dirigente da extrema-direita. Num vídeo publicado no site da FN na Internet, Le Pen surge a conversar com uma interlocutora que lhe pede para comentar as críticas ao partido feitas por uma série de artistas e de outras personalidades, francesas e internacionais – entre eles Madonna, Guy Bedos (humorista), Yannick Noah (antigo campeão de ténis) e Patrick Bruel (cantor judeu). Le Pen é rápido na resposta e, a rir, diz: "Da próxima vez faremos uma fornada com eles". O vídeo foi retirado neste domingo, já a polémica estava aberta. E de pouco serviram as explicações que o líder histórico da extrema-direita francesa deu, entretanto. "A palavra 'fornada', que usei, não tinha qualquer conotação anti-semita a não ser para os [nossos] inimigos políticos e para os imbecis. Se há gente do meu campo que fez esse interpretação, não passam de imbecis". Louis Aliot, vice-presidente da FN e companheiro de Marine Le Pen (filha de Jean-Marie e actual líder do partido) disse que, se por um lado, Jean-Marie "usou bem o termo fornada", por outro "disse uma má frase". "Foi estúpido do ponto de vista político e um constrangimento". O partido que venceu as eleições europeias em França, com 25% dos votos, não quer perder o momento que lhe é favorável; Marine tem como próximo grande objectivo ser eleita Presidente de França. No Twitter, a ministra francesa para os Direitos das Mulheres, Najat Valaud-Belkacem, condenou Le Pen e disse que se o partido não o banir devido ao comentário, a FN "será para sempre o partido da náusea republicana". O SOS Racismo, em comunicado, exige que "nos próximos dias" seja aberto um processo contra Jean-Marie Le Pen, que acusa de ter "usado a mais grosseira lógica anti-semita". Comentanto as declarações de Aliot, esta organização disse também que o partido tem que deixar de minimizar as tiradas anti-semitas e racistas de Jean-Marie, chamando-lhes incidentes. O Movimento Contra o Racismo e pela Amizade dos Povos (Mrap), também classificou as palavras de Le Pen de "autêntico anti-semitismo" e anunciou que vai apresentar uma queixa contra o veterano político. Jean-Marie Le Pen já foi condenado em tribunal, mais do que uma vez, por incitamento ao ódio. Dias antes das eleições europeias, o pai da actual líder da Frente Nacional afirmou que as pressões de imigração que a Europa atravessa poderiam ser resolvidas com o vírus ébola. Le Pen também é conhecido por negar crimes contra a humanidade – classificou as câmaras de gás nazis como "um pormenor da História".
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu
Nova Iorque, o caos afectivo
Nova Iorque pode ser um imenso território povoado por ex-namorados e amantes, para o embaraço e a culpa. No seu romance de estreia, Adelle Waldman constrói uma personagem que lhe serve para um livro tão íntimo quanto político sobre a solidão e a busca de afecto. (...)

Nova Iorque, o caos afectivo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.136
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nova Iorque pode ser um imenso território povoado por ex-namorados e amantes, para o embaraço e a culpa. No seu romance de estreia, Adelle Waldman constrói uma personagem que lhe serve para um livro tão íntimo quanto político sobre a solidão e a busca de afecto.
TEXTO: No seu romance de estreia, Adelle Waldman criou uma personagem que tipifica uma certa maneira de viver em Nova Iorque nos tempos actuais. A Vida Amorosa de Nathaniel P. , romance de costumes alicerçado na figura de um aspirante a escritor, foi publicado no verão de 2013 e pouco depois considerado um dos livros do ano por jornais como o New York Times ou o The Guardian, e Waldman viu-se referida como uma das estreias mais estimulantes na literatura norte-americana. No final de 2014, o romance tinha vendido mais de 40 mil exemplares na América e não demorou até que Nathaniel P. se tornasse quase independente da ficção onde se move e o seu nome passasse a ser usado como adjectivo que qualifica quem vive numa solidão mais do que ocasional, incapaz de ter uma relação estável; um intelectual ambicioso, por vezes uma “besta” com as mulheres, mas cheio de culpa por ter consciência disso. Alguém sempre a derrapar no seu próprio escrúpulo. “Nathaniel Piven era um produto de uma infância pós-feminista dos anos oitenta e de uma educação universitária politicamente correcta dos anos noventa. Sabia bem o que era o privilégio masculino. Além disso, possuía uma consciência funcional e, francamente, bastante importuna. ” É um dos habitantes frequentes do universo do dating, com tudo o que essa condição determina, alguém num “flirt incessante e implacável”, num “substrato de solidão e cinismo”, à procura de parceiros tão estimulantes sexual como intelectualmente, capazes de preencher um vazio comum a homens e mulheres. “Ele seria muito improvável, por exemplo, num romance de Philip Roth”, especula Adelle Waldman, 37 anos, natural de Baltimore, jornalista, crítica literária, freelancer e, como Nathaniel P. até há bem pouco tempo, à espera de publicar o seu primeiro romance. Nas primeiras páginas do livro, Nate está a viver mais um confronto com aquilo a que chama o seu “egoísmo” e mais uma vez denota constrangimento face ao que esse comportamento desencadeia nos outros. Aceitar-se e ser aceite é o grande desafio. No metro, a caminho de um jantar com amigos em casa de uma ex-namorada, encontra Juliet, quatro anos mais velha, jornalista, com quem teve um caso que seria inconsequente não fosse ela ter ficado grávida. Ela decidiu abortar, ele, inconfessavelmente aliviado com a decisão, passou o serão com ela a ver um filme, telefonou-lhe no dia seguinte a perguntar como estava e seguiu com a sua rotina de escritor a viver de um adiantamento generoso para um livro, num bairro povoado de gente com semelhantes ambições de reconhecimento intelectual, até que a encontra naquela estação de metro. O embate com a consciência de Nate serve a Adelle Waldman para escrever este livro, tão íntimo quanto político: o de uma geração educada na pós-revolução sexual americana, no pós-capitalismo desenfreado, na ideia de que a meritocracia é a forma mais democrática de promover o sucesso, na igualdade de género enquanto ideal social. Com Nate e companhia – homens e mulheres com uma educação privilegiada que gravitam à volta da literatura e da arte –, ela faz todas as perguntas, numa narrativa muito sustentada nos diálogos, com personagens que obedecem a vários tipos psicológicos e ideológicos, complexas, unidas pela necessidade de se revelarem únicas no seu trabalho, mas quase todas afectivamente descompensadas. “Não sei já se houve maior solidão do que a actual”, diz Waldman, segurando o copo de plástico cheio de café quente. Chove. A conversa acontece com vista para a rua, através de uma vidraça embaciada. São poucos os carros que passam numa das avenidas mais centrais de Clinton Hill, bairro de prédios de dois ou três pisos, casas de pedra castanha e uma população de classe media que se mudou para ali a fugir dos preços de Manhattan, mas também já quase estrangulada pelo escalar das rendas que a sua mudança para Brooklyn motivou. “Um ciclo pernicioso”, conclui Waldman, que prefere, no entanto, viver ali do que “na Manhattan dos turistas e de ricos pouco estimulantes” que se tornou nos últimos anos. Pequena, magra, olhos claros, Adelle Waldman podia confundir-se com um dos muitos universitários fixados nos ecrãs dos seus computadores portáteis que enchem aquele novo espaço numa das zonas mais fervilhantes de Brooklyn. Café, restaurante, ponto de encontro para conversas, lugar de escrita e criação. “Ainda não consigo entender muito bem o que me aconteceu com este romance”, continua numa voz pausada, cheia de hesitações, como se o nome que está na capa do livro que tem à frente não fosse o seu e isso não lhe tivesse mudado a vida, permitindo-lhe viver do que sempre quis: da escrita. “Passei anos com Nate e é como se só agora o estivesse o conhecer”, afirma, dias depois de ter publicado um artigo na New Yorker, uma reflexão sobre o estado actual do romance enquanto género literário, que era também uma resposta a quem questiona a “utilidade” e a “qualidade” do romance contemporâneo, considerando-o incapaz de se reinventar, alicerçado em “convenções obsoletas”. Para Waldman, mais do que questionar a forma – “pessoalmente, aí não estou interessada em experimentalismos", refere –, a questão está em tentar perceber a função do romance e o que ele ainda faz bem: “escrever sobre a vida”. Os exemplosÉ isso que ela faz em A Vida Amorosa de Nathaniel P. “Os tempos são outros, mas inspirei-me muito nos livros de Jane Austen, no modo como consegue falar do que há de mais pessoal dentro do quotidiano mais banal. " Em Austen, como em Evelyn Waugh ou em George Elliot, encontrou a génese literária desta vida amorosa que aqui retrata, e Middlemarch [romance que Elliot publicou em 1872] está mesmo no centro de uma conversa sobre igualdade de género liderada por Aurit, a amiga que nunca dormiu com Nathaniel, confidente que o confronta com o seu pior lado. Compara Nate e muitos dos homens que conhecia a Tertius Lydgate, personagem que quer deixar grande obra no mundo mas que se revela incapaz de fazer com que as suas ideias correspondam aos actos em muitos aspectos essenciais. “Aquela distinção de espírito que pertencia ao seu ardor intelectual não penetrava os seus sentimentos e opinião em relação à mobília e às mulheres. ”Era esse também o desacerto e o desconcerto de Nate, cuja essência está no facto de ter sido criado por uma mulher. É também aí que está a chave que faz funcionar este romance. “Estava a escrever este livro há muito tempo. Fiz muitas experiências, mas só consegui libertar-me quando a primeira pessoa passou a ser um homem. Antes, revia-me de mais na personagem, continha-me com receio da colagem autobiográfica. Via-me a fazer autocensura, a preocupar-me com a verosimilhança e ao mesmo tempo com medo de não descolar do real, da minha perspectiva. Por outro lado, não queria que o meu livro parecesse mais um daqueles livros olhados de lado: mais uma mulher a escrever sobre o universo feminino das emoções. . . É a tal história, um romance de emoções só parece ser respeitado literariamente quando é escrito por um homem, caso contrário é chamado literatura feminina. Nathaniel, como eu, é de Baltimore, também filho de imigrantes; veio para Nova Iorque depois da faculdade para escrever, como eu, e, como eu, vive em Brooklyn, onde não tanto como eu se movimenta uma certa intelectualidade muito preocupada com o tom, com a aceitação, porque essa aceitação social é quase é fundamental para pagar as contas. É muito caro viver aqui. Tudo isso gera códigos de comportamento que me interessava explorar, porque são experiências novas. A geração anterior teve uma vida muito diferente, passou-nos valores que agora parecem não se ajustar. Ao criar uma personagem masculina, tornei-me mais observadora do que interveniente, e isso deu-me uma maior clareza. E apesar de todas as semelhanças entre mim e Nathaniel, ele é homem e estudou em Harvard. Eu não. E isso faz toda a diferença no que se refere a expectativas e a círculos que se frequentam”, afirma Adelle Waldman, enquanto lembra uma das frases do livro: estudar numa universidade da Ivy League é pertencer à versão americana da aristocracia. Nate era, nessa perspectiva, um aristocrata, alguém que pensava que ao chegar a Nova Iorque teria oportunidade de mostrar que era bom. Descobriu que era tudo muito mais sórdido. À sua maneira, Waldman descobria o mesmo. Depois de se formar na Universidade de Brown, foi para Nova Iorque escrever. Seria empregada doméstica e escreveria um romance, era o projecto. “Percebi que se não fizesse mais nada seria sempre empregada doméstica e nunca escreveria um romance. ” Abandonou a coluna que escrevia no Wall Street Journal, deixou o apartamento em Manhattan e foi viver para casa dos pais. Em seis meses escreveu um livro que nunca publicou. Este levou anos. “Receava que acontecesse algo parecido, não arranjar editor. Queria fugir ao óbvio. Andam muitos escritores às voltas com estes temas, o que é natural. Eu queria salvar-me, não sei se me entende, mostrar que era capaz de fazer algo verdadeiro. Foi muito difícil. Reescrevi muito até chegar a esta versão. ”Aqui não há bons nem vilões. Nate não causa propriamente empatia, mas nunca será visto como um malvado. “Bom, às vezes…”, brinca Waldman. A sua errância é a de alguém que está permanentemente a justificar-se. O leitor está dentro da sua consciência e ouve a dos outros. Sobretudo a de Aurit, a melhor amiga de Nate. “Aurit não sou eu”, garante Adelle, embora também seja. Aurit é talvez mais forte de que Nate. Ouvimo-la através dele, é dele a perspectiva, mas Aurit irá contar a sua versão. “O editor achou que era bom explorar isso, ter a voz dela. Já escrevi uma espécie de continuação. Não é outro livro. É a vez do olhar de Aurit”, conta Waldman. E no romance é Aurit quem diz a Nate ainda que “o facto de a pessoa com mais poder numa relação recusar levar a sério a infelicidade da outra, simplesmente porque nada a obriga a isso, é a suprema sacanice”. Homem ou mulher. A consciênciaNate sempre esteve em vantagem. Quando a sua relação com Hannah, a mulher que parecia a sua alma gémea intelectual, começou a degradar-se, ele agiu como um sacana, limpou a consciência com a ideia de que ela era livre para ir. “A minha intenção não é a de que Nate seja visto como um vilão. Ele, como nós, move-se nessa área cinzenta que me interessa explorar. A mesma que nos leva a ir ao Whole Foods [cadeia de supermercados de produtos biológicos] fazer compras porque isso nos faz sentir que já cumprimos um dever ético e podemos seguir em frente. Ou que simplesmente votar nos democratas faz de nós melhores pessoas. As relações amorosas não existem independentes de tudo o resto, do modo como somos socialmente, e são cada vez mais difíceis de conseguir porque a pressão é tremenda”, continua. No começo do livro, assistimos ao exercício de Waldman para construir uma personagem complexa, capaz de ganhar simpatias e antipatias em escala quase paritária, para depois esse sentimento se assemelhar mais a um inquietante “podia ser eu”. Nate está à mesa, numa conversa em que a consciência é apresentada como “o luxo supremo” (“Pedimos a outras pessoas para fazerem coisas que somos demasiado sensíveis, moralmente para fazer nós próprios”); a vida normal das classes mais privilegiadas segue e a sordidez fica afastada. Ou, como refere outra vez Nate voltando ao exemplo do Whole Foods, “metade do que pagamos quando fazemos compras lá é o privilégio de nos sentirmos eticamente puros”. As questões de género, de raça, de exclusão social, de privilégio de classe atravessam a história sem que isso seja nuclear. Fala-se sobretudo de amor, quase sempre sem dizer a palavra, “porque ela cada vez se diz menos”, adianta Adelle Waldman, que desde que o livro saiu e está a fazer o seu percurso tem sido chamada a palestras e conferências sobre igualdade de género ou relações amorosas entre urbanistas ambiciosos. Ela sorri. “Eu não sou especialista. Posso falar unicamente do que observei, da pesquisa que fiz para escrever este livro, da atenção que dou ao que se passa à minha volta e na minha vida. Talvez seja por escrever sobre a realidade. " E ver que isso serve para muita coisa que lhe escapa. Um senador republicano veio defender depois de saber do livro que as mulheres deviam preservar-se mais e ser mais recatadas para se defenderem de homens como Nate. “Como se ser crítico em relação a muitas das atitudes de Nate fosse uma questão partidária”, sorri outra vez, depois de já ter feito alguns comentários públicos sobre o tema. Há também uma crítica tão mordaz quanto irónica ao universo literário nova-iorquino onde todos querem sacar um artigo positivo ao James Wood. Foi o caso? “Conseguir isso é ter portas abertas”, brinca. Refere-se à escrita como um exercício de vaidade irresistível que quase se sobrepõe a tudo na vida de quem quer ser escritor. “Talvez seja essa uma das grandes contradições: a escrita retira-nos da estabilidade dos afectos, mas estar nos afectos é uma tremenda ajuda quando se quer escrever um romance. Talvez na poesia seja diferente. Mas a energia que isso consome não deixa espaço para quase mais nada. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Joana Vasconcelos: “Se as pessoas saírem daqui a pensar e com um sorriso nos lábios, é excelente.”
É de Joana Vasconcelos a primeira individual de um artista português no Guggenheim de Bilbau. A artista plástica conversou com o PÚBLICO sobre I’m Your Mirror, que se inaugura esta sexta-feira. (...)

Joana Vasconcelos: “Se as pessoas saírem daqui a pensar e com um sorriso nos lábios, é excelente.”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.65
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: É de Joana Vasconcelos a primeira individual de um artista português no Guggenheim de Bilbau. A artista plástica conversou com o PÚBLICO sobre I’m Your Mirror, que se inaugura esta sexta-feira.
TEXTO: Iniciou-se a expor na década de 1990, tendo o seu trabalho começado a ganhar expressão internacional, principalmente a partir de 2005, o ano em que participou na Bienal de Veneza com a peça A Noiva. Em 2010, a sua primeira retrospectiva celebrou-se no Museu Berardo, em Lisboa, e em 2012 tornou-se na primeira mulher e artista mais jovem a expor no Palácio de Versalhes, em Paris, tendo, um ano depois, representado o país na Bienal de Veneza, com um cacilheiro transformado no pavilhão flutuante de Portugal. Agora ei-la no Guggenheim de Bilbau, em Espanha. Nesta exposição está reflectido o seu percurso de 20 anos, ao mesmo tempo que é revelada uma série de peças novas. Como é que olha para esta mostra, no contexto desse mesmo trajecto? Estive ontem a discutir isso com os comissários – o Enrique [Juncosa] e a Petra [Joos] – e eles acham que se deve chamar antológica a esta exposição, porque ela vai atrás – entre 1996 e 1998 – e depois vem daí para a frente, contendo peças de diferentes períodos. Nem todos estão representados da mesma maneira, mas tem esse cariz antológico. As peças novas que aqui estão foram desenvolvidas a pensar especificamente nesta exposição ou foram trabalhadas sem esse intuito?Aconteceram as duas situações. Quando o Enrique e a Petra foram ao meu atelier em Lisboa, pediram-me para fazer um site specific para o átrio de entrada, a Valquíria. Para a feitura desse trabalho vim cá e fui-a desenvolvendo a pensar nesse espaço. Depois perguntaram-me que projectos é que tinha entre mãos – tenho sempre coisas a serem trabalhadas – e mostrei-lhes o que estava a ser feito. Tinha acabado de fazer o Pop Galo, que eles adoraram, e desde aí quiseram-no ter aqui, e estava também a desenvolver a máscara I’ll Be Your Mirror e o Solitário, o anel de noivado, que eles acabaram por escolher também. A partir daí a máscara passou a ser a peça central da exposição, como se reflectisse as outras, e o anel de noivado, enquanto peça para o exterior, também. Foi fácil dialogar com as formas curvilíneas da arquitectura de Frank Gehry, seja no grande átrio do museu com a monumental valquíria, ou no exterior, no caso das duas peças que ficaram a rodear o edifício?Muito fácil. A arquitectura do Frank Gehry é muito emotiva e tem muito movimento, no interior e exterior, e as minhas peças, como a Valquíria, sendo uma peça muito barroca, foi-me fácil adaptá-la ao espaço escultórico do átrio. Na verdade, o átrio é tanto um espaço escultórico como arquitectónico. Há um diálogo com a minha peça a desenvolver-se em espiral acompanhando o movimento criado pelo Frank Gehry. Foi simples ler o lugar. No exterior, fomos andando à volta do museu, que tem uma linha de esculturas, das tulipas do Jeff Koons à aranha da Louise Bourgeois, até chegarmos a um pátio de água muito bonito desenhado pelo Gehry e que estava vazio. Acabou por ser aí, na água, que dispusemos o anel. Como o anel é feito das jantes metalizadas dos carros, acaba por jogar com as chapas metalizadas do edifício. Já o galo está no meio das árvores, à esquerda do Puppy do Jeff Koons. Esta mostra é muito ambiciosa. Que tipo de desafios é que a feitura e montagem de uma exposição desta envergadura acarretou para si?Esta exposição é uma espécie de fronteira que ainda não foi ultrapassada, portando não se sabe bem o que está do outro lado…[risos]. Não há historial. O Guggenheim é um colosso. Não conheço ninguém que tenha feito isto, portanto não consigo explicitar o que se tem de fazer. Nós temo-nos vindo a adaptar. Há dois anos que andamos a trabalhar com eles. É uma equipa muito diferente. O facto de ser uma equipa americana introduz logo diferenças na forma de trabalhar, nos contratos, na maneira como pensam. É um sistema ao qual não estamos habituados. Por norma, operamos com estruturas e museus europeus. A um certo nível, são mais exigentes. Há mais entraves e regras do que aquilo a que estamos habituados. Ou seja, é um sistema que exige uma adaptação contínua. Nesse sentido, o grande desafio é ser capaz de, profissionalmente, adaptar-me a estas grandes estruturas, que acabam por ser máquinas gigantes e complexas na forma como operam. O título da exposição (I’m Your Mirror), para além das alusões a Nico e aos Velvet Underground, e da dimensão individualizada do jogo de espelhos, poderia ter outra leitura, já que a sua obra funciona também como espelho reflector de Portugal. Pelo menos opera a partir de elementos simbólicos que remetem para noções de portugalidade. Sem dúvida. A partir do momento em que estou a fazer uma antológica, essa dimensão está lá, porque o meu percurso reflecte o país onde vivo e quem eu sou. I’m Your Mirror é, no fundo, uma maneira de afirmar que eu sou também o espelho do país onde vivo e daquilo em que me tornei enquanto pessoa e artista. Estas peças, de diversas épocas, mostram diferentes partes de mim e também, obviamente, de onde venho. A máscara é feita de espelhos e eles simbolizam essas partes em que acaba por estar reflectida a minha identidade, de onde venho ou o que me vai envolvendo – não é, aliás, por acaso que a exposição começa com o coração de Viana e termina com a peregrinação a Fátima. Quando expõe fora de Portugal, como é o caso, nessas peças as conotações simbólicas de alguma forma diluem-se. Existe um olhar mais imparcial ou estetizante. Em Portugal, pelo contrário, porque estamos conscientes desse sistema de representações e pela relação de proximidade, tanto podem provocar forte adesão como resistências. Sim, completamente. Ainda ontem estava aqui com um grupo de bascos (uns arquitectos e outros coleccionadores) e todos eles tiravam imensas fotos ao galo. Sabiam que era um símbolo português e um deles até dizia que a avó tinha adquirido um há uns anos, mas fixavam-se era nas luzes ou na música, e discorriam sobre a sua modernidade. Ou seja, não faziam nenhum tipo de projecção sobre o galo. Estudei a história do galo e recuperei os desenhos clássicos. Foi feito um trabalho sério e depois dei-lhe um aspecto contemporâneo. E isso é que conta para a visão e perspectiva do futuro. As pessoas, quando chegam aqui sem estarem contextualizadas na portugalidade, identificam o símbolo, reconhecem-no e acham que ele tem actualidade. É isso que faz a obra. Quando se fala da sua obra, nomeiam-se sempre os aspectos formais (a escala, as cores vibrantes, o sentido lúdico), mas também existe nela uma dimensão mais reflexiva, que remete para questões sociopolíticas ou identitárias. O que desejava que as pessoas levassem daqui?Ontem, numa visita guiada, uma senhora dizia-me: “Saio daqui com um sorriso nos lábios, mas a reflectir sobre a minha pessoa e o que me rodeia. ” É isso. Quando se tem uma peça como A Noiva e se fala sobre os tabus ligados à mulher, claro que há muitas pessoas que ficam a pensar nesses assuntos, o mesmo acontecendo com a peregrinação a Fátima, ou com a máscara. Há várias coisas que tocam as pessoas segundo a sua biografia e vida. Não é possível controlar o que levam daqui, mas se ficarem com mais sentido crítico e um olhar reflexivo sobre elas próprias, é óptimo. E se saírem a pensar e com um sorriso nos lábios, é excelente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Num dos textos que enquadra a mostra é dito que as suas novas peças representam também a “realidade do mundo à volta”. Nos últimos anos o mundo tornou-se muito convulso – crise económica, a imigração, a violência sexual, a democracia debilitada. Até que ponto a exposição acaba também por reflectir algumas destas coisas?Há peças como a Burka, que foi feita quando se discutia a questão do véu em França, e que não perderam a sua actualidade. O mesmo acontece com A Noiva, que acaba por espelhar muitos dos tabus em relação às mulheres que é algo perfeitamente actual, com os movimentos contra a exploração sexual das mulheres ou os movimentos feministas. Ou seja, existe uma série de questões que, finalmente, começaram a ser faladas e que eram tabu até há pouco tempo. Nesse sentido existe uma série de trabalhos que mantém a sua pertinência. A peça central da exposição, a máscara, é no fundo sobre isso – é essa ideia de deixar cair as máscaras, de nos deixarmos de ilusões. É essa ideia de as pessoas se atreverem a falar da realidade sem medos. Espero que no futuro as pessoas vivam com menos máscaras do que aquelas que estão habituadas a pôr. Já está confirmado que a exposição irá a Serralves no próximo ano?Essa história é do melhor e é muito portuguesa. . . [risos]. Até nisso a portugalidade, para o bem e para o mal, me acompanha. Não posso responder a isso porque não seria correcto. A exposição é produzida pelo Guggenheim e exportada para Serralves. É um assunto entre eles. O que posso dizer é que as conversações estão a correr bem e que estamos a trabalhar sobre a exposição. Agora os acordos entre eles não são comigo. . . Certo. Mas supomos que é seu desejo que tal venha a acontecer?Acho fundamental irmos a Serralves. Roterdão já está confirmado e existem outros museus pelo mundo interessados, porque o modo de funcionamento do Guggenheim é esse: trata-se de produzir e depois exportar. Seria uma pena que esta exposição não passasse por Portugal como é por de mais evidente. Mas parece-me que vai correr tudo bem.
REFERÊNCIAS:
As associações de jovens precisam de jovens
A alteração do regime jurídico do associativismo jovem, que o Governo aprovou em Conselho de Ministros, no princípio de Maio, só pode ser criticada por ser tardia ou tímida. (...)

As associações de jovens precisam de jovens
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-07-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: A alteração do regime jurídico do associativismo jovem, que o Governo aprovou em Conselho de Ministros, no princípio de Maio, só pode ser criticada por ser tardia ou tímida.
TEXTO: O que se passa no associativismo juvenil é uma excelente metáfora do país: há 54 presidentes de associações juvenis com mais de 60 anos e praticamente um terço dos líderes das associações tem mais de 41. Os jovens nem sequer lideram as associações que foram criadas em seu nome: a lei actual obriga a que 75 por cento dos associados tenham menos de 30 anos, para que seja considerada juvenil, mas não tem a mesma preocupação com os dirigentes. Em suma, ela tem de ser jovem na base da pirâmide, mas pode ser gerontocrática (e masculina) no topo. Por muito banal que se tenha tornado o discurso político e mediático acerca dos jovens, a verdade é que este não passa de uma mera intenção de marketing junto de um público-alvo de consumidores, e que eles continuam sub-representados socialmente, à excepção de profissões e de modalidades nas quais a juventude e aptidões físicas são predicados incontornáveis. Por um lado, continuam a ser imbecilizados e tratados com paternalismo, por outro, continuam a ser as principais vítimas de um mercado de trabalho que lhes nega qualquer vínculo estável e que os confina à trilogia do desemprego, precariedade e imigração. Mas a questão também pode ser encarada por um outro prisma: o envelhecimento dos dirigentes e a forma como estes se foram apropriando das suas direcções. O registo das associações tornou-se obrigatório desde 2007 para que as mesmas pudessem receber uma fatia dos 5, 6 milhões de euros que lhes são destinados. Resultado: mais de metade delas teve somente um presidente desde aí e, em média, cada associação teve dois presidentes no espaço de 12 anos. A eternização do costume, que chega a prolongar-se durante décadas, segundo os dados do Conselho Nacional de Juventude. A alteração do regime jurídico do associativismo jovem, que o Governo aprovou em Conselho de Ministros, no princípio de Maio, só pode ser criticada por ser tardia ou tímida. Obrigar as associações juvenis a terem um presidente com 30 anos ou menos chega a ser ridiculamente redundante. O mesmo se pode dizer da simples subida de quota do número de jovens de 75 para 80 por cento. Foi preciso chegar aqui para acabar com uma farsa bem antiga. Mas uma outra questão ficou por tratar: só 31 por cento das lideranças são femininas. O associativismo juvenil não precisa só de jovens a liderá-lo. A igualdade de género não faz mal a ninguém.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei imigração igualdade género desemprego
V. S. Naipaul: “Sinto que tenho de escrever mais e mais. E outra vez, e outra vez”
No primeiro dia do Folio, em Óbidos, o Nobel da Literatura V S. Naipaul chegou ao palco numa cadeira de rodas, velho e doente, e só conseguiu exprimir algumas ideias muito simples. Mas seriam realmente só algumas ideias muito simples? (...)

V. S. Naipaul: “Sinto que tenho de escrever mais e mais. E outra vez, e outra vez”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-07-15 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170715053710/https://www.publico.pt/n1745034
SUMÁRIO: No primeiro dia do Folio, em Óbidos, o Nobel da Literatura V S. Naipaul chegou ao palco numa cadeira de rodas, velho e doente, e só conseguiu exprimir algumas ideias muito simples. Mas seriam realmente só algumas ideias muito simples?
TEXTO: “Escrevo para tentar perceber o que se passa no mundo”, disse quinta-feira à noite V. S. Naipaul no Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos. “A minha escrita flui, e não faço muitas revisões, porque escrevo com muito cuidado, com grande preocupação com o que se passa no mundo”. Esta foi uma das ideias que o Nobel da Literatura repetiu, de várias formas, no palco da Tenda de Autores, no primeiro dia do festival, quer respondendo ao que o entrevistador José Mário Silva lhe perguntava, quer não respondendo propriamente ao que ele lhe perguntava. “Sim, mais do que nunca”, respondeu Naipaul à pergunta “Ainda sente urgência em escrever?” Desta vez, sim, respondeu. Ele que, com 84 anos, chegou a Óbidos de cadeira de rodas, e, mal começou a falar, suscitou logo, na audiência que enchia o recinto, suspiros ambíguos, entre a indignação e a troça. Talvez estivesse já demasiado cansado para dar conferências, terá pensado a plateia. Demasiado velho. Talvez devesse ser protegido disto. “Mais do que nunca”, respondeu porém Naipaul. “Porque sinto que me empurram para o repouso, para uma atitude de não fazer nada, como se já tivesse escrito tudo. Mas eu sinto uma preocupação constante. Sinto que tenho de escrever mais e mais. E outra vez, e outra vez. É terrível”. Naipaul tem fama de ser antipático nas entrevistas. De ser antipático, ponto. Não é de agora, sempre tratou mal os jornalistas, sempre tratou mal toda a gente, diz-se. A começar pelos que lhe são próximos. Quando a primeira mulher, Patricia Ann Hale Naipaul, morreu, em 1996, ele próprio admitiu ser responsável pela sua morte, após 40 anos de maus-tratos. Agora, débil, esgotado, parecendo carregar nos ombros todo o sofrimento do mundo, continua a ser desagradável, com uma bela desculpa. “Tente outra vez”, disse várias vezes a José Mário Silva, que nem por um momento abandonou a humildade inteligente de um grande entrevistador. Terá sido a mais difícil entrevista da sua vida. A mais difícil entrevista de qualquer um. “Tente outra vez”, dizia Naipaul, após longos segundos de reflexão, que por vezes levavam a crer ter adormecido. Mas não, era mesmo reflexão. “Ele está a pensar”, dizia o jornalista e crítico literário do Expresso, para desfazer dúvidas. Naipaul pensava, e a primeira coisa que pensava era se gostava da pergunta. Se não gostava, pedia outra. Mas tinha algumas mensagens a deixar, e essas eram simples e claras. Interrogado sobre livros que tivesse eventualmente deixado inacabados, disse prontamente: “Não, não poderia fazer isso. É assim que eu defino a minha carreira: eu termino os livros”. Como se fosse apenas essa a definiçao de um escritor. Também esta ideia Naipaul exprimiu de várias maneiras, numa estranha e límpida coerência que emergia do aparente caos da entrevista. Um caos acintoso e rabugento em que todos pareciam um pouco embaraçados, e temer pelo momento seguinte. Pelo que o escritor pudesse não ser capaz de dizer, ou ser capaz de dizer. Só ele dominava realmente a situação. Nos seus silêncios, nas suas frases aparentemente fora de contexto. “Quando se escreve, não se deve pensar que se está a fazer algo inovador. Simplesmente faz-se o trabalho. É tão simples como isso”, disse Naipaul. E a emoção? Como se capta a emoção, tentava o entrevistador, interpretando a vontade que todos tinham de lhe arrancar alguma verdade última, algum truque que pudesse ser útil a todos os escritores, a todos os artistas, a todos os seres humanos com emoções maiores do que a sua capacidade de as exprimir. Como consegue ele? Qual é o segredo?“É não se pensar sobre isso”, disse Naipaul. “Faz-se o trabalho, e há um momento em que ele fica carregado de emoção”. E depois, sobre os seus temas, a imigração, os sentimentos de isolamento, desapego e desenraizamento, diria: “É o que eu faço, mas não penso muito nisso”. Ou: “É um dos mistérios da escrita, encontrar os temas. Ninguém o pode fazer por nós, ninguém nos pode ajudar. Quando começamos, não sabemos sobre o que escrever, porque não temos nada para escrever”. Não houve um momento morto em toda a conversa, apesar das pausas. Os espectadores fixavam com avidez o rosto de rapazola gozão de Vidiadhar Surajprasad Naipaul, Vidia, para os amigos, como quem não consegue parar de ler um livro. O rosto liso e belo de um dos autores que mais bem exprimiram, e pressentiram, os dramas do mundo contemporâneo. Um rosto afinal não muito diferente do do jovem escritor aventureiro de Uma Casa para Mr Biswas, ou A Curva do Rio. Apenas mais distante. “Utopia? Não penso muito nisso, nem lhe dou muita importância. Acho que o mundo não precisa de utopias”, disse Naipaul, arrasando de uma penada, e logo no primeiro dia, a ideia que inspira o festival, este ano. A uma pergunta sobre o momento em que decidiu escrever literatura de não-ficção, pareceu ficar sem saber explicar-se. Repetiu uma das frases que já ciciara várias vezes durante a sessão, como um lamento. “Não quero simplificar”. Acrescentou: “Estaria a ser tão injusto comigo próprio, se simplificasse”. Uma voz enérgica e feminina levantou-se da plateia, em seu socorro. Era Nadira Khannun Alvi Naipaul, a actual mulher do escritor. “Ele chegou ao fim da ficção”, disse Nadira. “Quando escreveu Um Milhão de Motins Agora, o meu marido estava tão chocado com o que acontecia no mundo muçulmano, que achou que não podia escrever ficção. As pessoas vinham ter com ele e contavam-lhe coisas terríveis. Isto antes do 11 de Setembro”. Naipaul calou-se, docilmente deixando fluir o pensamento através da voz da mulher. Ela compreendia-o. A preocupação com o mundo era a sua forma de estar vivo, de se agarrar à vida. A ficção podia esperar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O PÚBLICO está em Óbidos a convite do Folio
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte humanos imigração mulher maus-tratos morto feminina
Alguma coisa em que acreditar
Significativamente, em sentido contrário ao que pedia ontem João Miguel Tavares, são os eleitores que estão a dar aos partidos “alguma coisa em que acreditar”. (...)

Alguma coisa em que acreditar
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Significativamente, em sentido contrário ao que pedia ontem João Miguel Tavares, são os eleitores que estão a dar aos partidos “alguma coisa em que acreditar”.
TEXTO: “Os adultos continuam a dizer que devem aos jovens a esperança. Mas eu não quero a vossa esperança, eu não quero que vocês tenham esperança. Eu quero que vocês entrem em pânico, eu quero que vocês sintam o medo que eu sinto todos os dias. E então eu quero que vocês actuem, quero que vocês actuem como se estivessem numa crise”, disse Greta Thunberg, a sueca de 16 anos que se tornou o rosto e a voz de uma geração que entende o sentido de ultimato dos efeitos do aquecimento do planeta. Ela não falava para os eleitores europeus, mas para os líderes reunidos em Davos. Mas seja por medo, seja por esperança na mudança, a mensagem esteve na cabeça de muitos europeus no momento de actuar como eleitores. Milhões votaram pelos partidos que têm a luta pela causa ambiental entre as suas preocupações, o que garantiu um número recorde de lugares aos Verdes no Parlamento Europeu. Em França, ficaram em terceiro lugar, bem à frente dos partidos tradicionais, com 13, 5% dos votos. Na Alemanha, tiveram o melhor resultado numa eleição nacional, com 20, 5%. Na Inglaterra tiveram a maior votação desde 1989, à frente dos conservadores. Em Portugal, o PAN elegeu pela primeira vez um eurodeputado e mesmo o Bloco de Esquerda, mais identificado com as preocupações dos jovens, beneficiou certamente da “onda verde” para a sua noite de vitória. No Parlamento Europeu a bancada verde subiu 40%, conquistando 69 lugares e tornando-se o quarto maior grupo parlamentar. Mas o maior resultado das eleições de 26 de Maio talvez ainda esteja para vir. Nos últimos anos temos assistido, não sem alguma sensação de sufoco, a como muitos partidos ditos tradicionais incorporam no seu ideário as propostas de forças mais populistas, normalmente à direita, em áreas como a imigração, direitos das mulheres ou economia. Fazem-no na tentativa de conter a erosão do seu eleitorado que, consideram, é atraído pelas propostas mais extremistas, apesar dos resultados desastrosos – olhe-se para França, Espanha ou Áustria. Ao descobrirem que há um tema que parece estar na cabeça de muitos eleitores, especialmente da nova geração de votantes, como o demonstraram as eleições europeias, é natural que os partidos do sistema – os que normalmente estão em melhor condições de governar – venham a injectar nos seus programas as preocupações ambientais dos que agora lhes parecem disputar o eleitorado. Fá-lo-ão mais por medo do que por convicção genuína, mas deixai-los: o resultado final pode bem trazer mais alguma esperança para este planeta. Significativamente, em sentido contrário ao que pedia ontem João Miguel Tavares, são os eleitores que estão a dar aos partidos “alguma coisa em que acreditar”.
REFERÊNCIAS:
Partidos PAN