A Europa como ideal fascista
De onde vem o medo? Para onde é que nos transporta? As perguntas atravessam uma conversa sobre o presente com Aamir Mufti, crítico pós-colonialista com trabalho sobre minorias, questões de raça, migração, linguagem. Ultimamente, focou-se nos radicais de direita dos Estados Unidos. (...)

A Europa como ideal fascista
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Africanos Pontuação: 7 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.9
DATA: 2017-09-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: De onde vem o medo? Para onde é que nos transporta? As perguntas atravessam uma conversa sobre o presente com Aamir Mufti, crítico pós-colonialista com trabalho sobre minorias, questões de raça, migração, linguagem. Ultimamente, focou-se nos radicais de direita dos Estados Unidos.
TEXTO: Nada será como antes nem será como está porque o mundo mudou e a permanência não existe. Negar isso é permitir que a escalada de violência aumente e os radicalismos vençam os ideais democráticos. A ideia de segurança total, a crise dos refugiados, o renascer de nacionalismos e o extremismo de direita são questões globais que devem ser discutidas quebrando amarras, defende Aamir Mufti, 57 anos, paquistanês, professor de Literatura Comparada na Universidade de Los Angeles, UCLA, antropólogo, crítico pós-colonialista. Estudioso do modo como a linguagem reflecte e é capaz de mudar comportamentos, esteve em Lisboa para falar de refugiados, terrorismo e migração em mais uma edição da Lisbon Summer School organizada pelo Lisbon Consortium/Universidade Católica, este ano sob o tema Global Translations. Num entrevista exclusiva ao PÚBLICO, Mufti sublinha a necessidade de a linguagem se adaptar aos novos desafios globais, acusa a União Europeia de estar a falhar nos seus objectivos e de a esquerda estar “perdida”, de aprender com o racismo de Michel Houellebecq. Tudo enquanto se fixa no estudo do extremismo de direita nos Estados Unidos, onde se está a criar uma ideia imaginária de Europa. A conversa acontece um dia depois de uma intervenção polémica, com Mufti a falar de como a linguagem pode ajudar a entender ou a resolver a actual crise. “Qualquer luta política é em parte uma luta pela linguagem”, sublinha, enquanto tenta recuperar do jet lag com um chá forte numa manhã de chuva. O que nos diz a palavra “refugiado”, hoje?Tendemos a pensar nos refugiados como figuras abstractas mas não são; são pessoas muito concretas que carregam todo o tipo de histórias — pessoais, políticas, sociais. Trazem línguas, religiões. A literatura é o lugar para imaginar estas coisas de modo muito diferente da forma demasiadas vezes simplista e abstracta dos discursos públicos. Uma boa definição de refugiado é de Hannah Arendt; a grande pensadora judia, alemã, diz que um refugiado apátrida é uma pessoa que não pode confiar em nenhum Estado no mundo para proteger os seus direitos. Não é uma definição legal. É uma definição política. Muito simples, mas efectiva. Quando não há um Estado capaz de proteger os seus plenos direitos, essa pessoa é apátrida e pode tornar-se um refugiado. Apátrida e refugiado não são necessariamente a mesma coisa, mas são realidades próximas: não ter um Estado que nos proteja e a possibilidade de se ser exilado, ficando numa condição física bastante vulnerável que é a do refugiado. O que distingue a actual crise que afecta os refugiados de antigas crises de refugiados, como as das décadas de 30 e 40 do século XX?Há semelhanças e diferenças. A diferença é que os anos 30 e 40 já aconteceram e há uma consciência muito forte de não permitir que tal volte a acontecer. Por outro lado, muitos lugares na Europa parecem felizes por isso estar outra vez a ocorrer. Há uma grande contradição na sociedade europeia sobre o que é refugiado, qual é a relação entre o refugiado e a Europa e como responder a isso. Seja de forma concreta ou através de ideias abstractas, ajuda humanitária, defesa de direitos humanos. São debates prementes. Como se responde e qual a responsabilidade? Claro que neste momento não existem campos de concentração na Europa. A Alemanha absorveu um milhão de pessoas nas suas vilas e cidades, não estão indefinidamente em campos. Há muitas coisas diferentes, mas também há uma continuidade: o modo como um número relativamente pequeno de pessoas é visto como ameaça às culturas nacionais ou à cultura europeia; a ideia de que há aliens entre nós e são um mal para o nosso futuro. Esse tipo de ansiedade e medo tem qualquer coisa em comum com os anos 30 e 40. Não existem campos de concentração na Europa. A Alemanha absorveu um milhão de pessoas nas suas cidades. Mas há uma continuidade: o modo como um número relativamente pequeno de pessoas é visto como ameaça às culturas nacionais ou à cultura europeiaFala dos nacionalismos?Sim, absolutamente, a extrema-direita, todos os tipos de nacionalismo radical que ressurgiram. Esperava-se que a União Europeia soubesse combater ou tivesse posto fim a isso. Disse “nacionalismos nunca mais”, sim à coexistência e tudo o que ela representa; paz perpétua como um conceito, um ideal da União Europeia. Estão a aprender da maneira mais dura que não é tão simples. A questão, neste momento, é que tipo de entendimento podem ter as políticas europeias sobre quem são os refugiados e, além dos refugiados, quem são os migrantes. Qual é o lugar deles na Europa e como a vida moderna mútua pode ser possível. Como é que o medo e a violência podem ser controlados. Nenhuma forma de vida pode ser inteiramente fundada no medo e na violência. A ideia de uma segurança absoluta?Sim. Paz perpétua e segurança absoluta são abstracções e idealismos; não são muito realistas. Mas, nessa busca, podemos ter situações que são mais ou menos sustentáveis. Esse é o desafio. A questão de fronteira tornou-se central no último ano. Desde a chegada de Donald Trump, comecei a olhar mais do que alguma vez para a extrema-direita americana e a notar uma presença em massa de fascismo na América. Passa-se quase tudo de forma subterrânea, mas não escondida. No último ano, passei muito tempo a estudar este fenómeno e percebi que há uma espécie de abordagem europeia a este tema. Os americanos brancos são europeus, e os australianos e neozelandeses e canadianos e os radicais americanos de direita falam disso desse modo. Chamam-se a si mesmos europeus. Nunca tinha ouvido isto antes na América. Nem sequer dizem euro-americanos, dizem quase sempre “povo europeu”; “somos da Europa, construímos uma civilização europeia no continente americano e agora vêm estes e querem tirar-nos isso”. É mais ou menos este o raciocínio. Com a chegada de Trump, comecei a olhar mais do que alguma vez para a extrema-direita americana e a notar uma presença em massa de fascismo na América. Passa-se quase tudo de forma subterrânea, mas não escondidaE que ideia têm de uma civilização europeia?É contraditória de muitas formas, porque ser-se de movimentos de extrema-direita não tem muito que ver com os direitos individuais que fazem parte da ideia de América. Parte dos valores europeus e do papel da lei em defesa dos direitos do indivíduo choca com o preconceito racial e com a ideia de serem de uma raça intelectualmente superior, “e agora esta gente de raça inferior está a chegar e isso irá certamente causar mistura racial, genética, miscigenação e certamente reduzir o nível de inteligência”. Estes são os seus pensamentos. Mas não podem dizer, por exemplo, que os asiáticos são menos inteligentes do que os americanos brancos como não podem dizer que os judeus são menos inteligentes que os brancos. Ah. . . para eles, os judeus não são brancos, de todo! Pela primeira vez vejo os judeus na América a serem removidos da identidade branca de um modo muito gradual, muito lentamente, mas está a acontecer. Portanto, a ideia do que é ser europeu, do que isso significa, é muito contraditória, muitas vezes é a liberdade de expressão, mas é também a de uma comunidade orgânica que herdou uma cultura. É quase uma noção germânica do III Reich, de que a vida moderna e o capitalismo destruíram comunidades tradicionais e modos tradicionais de vida. E a vida moderna é judaica, lato sensu. O que pergunta é muito importante, mas eles não têm certeza sobre o que é isso. Vai publicar esse estudo?Sim, estou a escrever. E não é separável da ideia de refugiados, do medo, da visão da ameaça civilizacional. Vai chamar-se Europa e não Europe, em inglês. Europa aqui significa o efeito estranho de qualquer coisa que não é bem a Europa. É a Europa da imaginação. E que Europa imaginária é essa?Essa Europa pode existir na Nova Zelândia, na América do Norte, mesmo na Argentina. É uma ideia de como são os europeus, de onde vêm, quem são. Quem acredita nessa ideia da Europa acredita muitas vezes na mitologia norueguesa, do Norte, os que se chamam os filhos de Odin. Outros são muito cristãos – ortodoxos ou católicos –, alguns converteram-se à ortodoxia ucraniana para reclamar a sua herança branca. E há os ateus, os pós-morte de Deus ligados ao nazismo. É um cenário muito ambíguo e disperso que me fascina e aterroriza, porque estou a criar um filho na América. Falo do futuro; eles estão a ficar cada vez mais poderosos e mais dominantes. Muitos jovens irão aderir, está a tornar-se popular. E gera oposição. É a razão pela qual há um forte movimento antifascista entre muitos jovens, que se chamam a si antifa e aparecem em comícios de extrema-direita. Muitos membros da chamada geração millennial na América dedicam-se a combater o fascismo e os neonazis. Significa que sabem que há uma fatia da sua geração que está do outro lado. Os mais velhos não entendem isso. Tenho colegas, gente brilhante, académicos, intelectuais, que se recusam a acreditar que isto é importante, alegam que sempre houve racistas brancos. Não é verdade, está a haver uma mudança, há uma coisa nova a emergir, também em muitos países na Europa. Esses grupos estão em contacto. Os europeus e os americanos estão muito próximos. Desde o velho Ku Klux Klan aos jovens hipsters da nova direita, os níveis de paranóia são extraordinários, mas trazem teorias históricas muito concretas"E como se dão essas trocas?Encontram-se. Há um grupo americano chamado The Traditionalist Worker Party que faz parte do velho tradicionalismo ligado ao pensamento fascista italiano, ao Hezbollah, e a uma espécie de heideggerianismo atenuado, simplificando o que é o heideggerianismo. É a rejeição do mundo moderno, o recuo a formas tradicionais de vida e que pode passar pelo cristianismo ortodoxo e atravessa toda a Europa. Da Grécia à Hungria, República Checa, têm vídeos no YouTube das marchas onde se encontram. Tudo se faz de forma aberta para quem quiser ver. E em todos esses vídeos vemo-los a expressarem-se como europeus. Isto quando os europeus estão a tornar-se minoria nos seus próprios países. É o seu grande medo. No seu primeiro livro, Enlightenment in the Colony (2007), falava sobre isso mesmo, o medo de ser minoria. Sim, eu estava à procura de material sobre o judaísmo na Europa e sobre os muçulmanos na Índia para estabelecer uma comparação. Muito tempo depois ressurge o medo de ser uma minoria. Toda a política de Israel é sobre isso, de como os judeus não devem deixar que se tornem uma minoria, e agora vêem os nazis americanos perguntar porque é que os judeus podem reclamar isso e eles não? Porque é que não têm um Estado étnico que garanta que não sejam uma minoria? Isto quando os judeus são as pessoas menos ligadas à extrema-direita na América; sempre se manifestaram contra a ideia de a América ser um país branco, sempre abriram as portas à imigração. Os extremistas ligam isso à queda de Constantinopla e da Andaluzia. Os níveis de paranóia são extraordinários, mas trazem teorias históricas muito concretas. Como se podem desconstruir essas teorias?Podemos rir. É de loucos, só podemos rir. Mas muita gente está a falar assim. Desde o velho Ku Klux Klan aos jovens hipsters da nova direita com o mesmo corte de cabelo, chamado fasc, curto nos lados e comprido no topo. Têm um estilo, uma moda, maneiras de vestir e uma subcultura jovem. Está a tornar-se uma subcultura com uma imagem a que muita gente adere sem saber bem porquê, mas tem raízes políticas. E produzem que tipo de cultura?Estão a começar. E essa é outra grande questão. O que se conhece é material vídeo e sobretudo paródia, sátira, fazer piadas acerca de algumas ideias. São eles que estão a ter piada. A esquerda é quase toda muito séria e zangada. Eles estão a divertir-se. Falei disto numa conferência sobre género, ninguém estava à espera, e falei do género fascista. Foi na Califórnia. Geograficamente, onde é que estas pessoas se concentram nos Estados Unidos?Em todo o lado. Estão na Califórnia! Pensamos na Califórnia como um paraíso anti-Trump, mas é o lugar onde nasceu o partido nazi americano, onde nasceram os Hells Angels, o sítio onde está baseada a maior instituição que nega o Holocausto nazi, chama-se Institute for Historical Review, nome muito inocente ao ouvido, mas determinado em afirmar que não existiram câmaras de gás, etc. Um destes grupos chama-se Identity Europa. Pode imaginar um americano de uma pequena cidade a dizer Europa? O nome do líder é Nathan Damigo, muito activo em universidades por todo o país. Colam posters cheios de imagens de estátuas da Grécia Clássica, tudo muito bem produzido, esteticamente muito actuais. Não se pense que são pessoas que vivem nos bosques de forma primitiva, com armas e aos tiros. São esclarecidos, sabem de linguagem mediática, conhecem a tecnologia; muitos têm formação universitária, passaram por aulas como a minha onde pensamos estar a converter e a educar mentes ao ensinar pensamento progressivo. E estão a pensar no apuro pan-europeu. Fala de tudo isso num tom de exaltação e surpresa. Até que ponto essa observação altera o seu discurso crítico, pós-colonial?Mudei o modo de pensar estas questões, o enquadramento. Tornou-se claro que existe um processo histórico longo e que a direita o entende melhor do que a esquerda. O capitalismo, na sua concepção, vem da supremacia branca, desde o seu nascimento, no período mercantil; a supremacia branca a criar a escravatura e a colonização e os genocídios e depois regras de colonização, formas de pensamento racista, exploração do trabalho consoante a raça. Tudo isso até à era pós-colonial. Houve um grande cataclismo no século XX, em que tudo começa a derrocar-se. Os pensadores mais importantes dessa mudança pós-colonial são judeus da Europa, como Hannah Arendt, Claude Lévi-Strauss. É espantoso! Erich Auerbach, o filólogo alemão que viveu na Turquia durante a guerra e teve uma vasta experiência do mundo europeu e um papel na europeização do mundo não europeu como professor de Humanidades na Universidade de Istambul. Fez daquela instituição islâmica uma universidade europeia. A minha pergunta é: que tipos de sociedade estamos agora a criar, local e globalmente, e qual será o lugar da supremacia branca, que historicamente formou as relações sociais, no presente e no futuro? Muita gente na Europa está a falar da coexistência entre minorias que vêm de outros locais. A direita entende isto muito bem actualmente; está a lutar pelo regresso da supremacia branca, a dizer que num contexto de migração em massa estas formas de relação social não podem sobreviver. É um ponto importante. E a esquerda não está a saber lidar com isto. Para ela, estes são novos europeus e a Europa vai permanecer como está. Não. É preciso redefinir a sociedade europeia, a assimilação tem de acontecer não apenas por parte dos imigrantes, mas do cruzamento das sociedades. Queremos uma sociedade quase instintivamente nostálgica das suas glórias imperiais do passado? Não estou a dizer oficialmente, mas na vida de todos os dias. Vai permanecer esse tipo de sociedade ou vamos repensar o passado colonial? Isso não está a acontecer. Encontro-me numa posição muito estranha: sou um crítico e um pensador pós-colonial e estou a defender a União Europeia no Reino Unido. Na América esse pensamento não é tão urgente?Sim, na América também. Sabendo tudo isto, presume-se que a vitória de Donald Trump não o surpreendeu. Não me surpreendeu, mas surpreendeu quase todos os meus amigos, surpreendeu a minha mulher. Desde Maio de 2016 tornei-me obcecado pelo estudo da extrema-direita. Assisti a alguns episódios protagonizados por apoiantes a Trump e não queria acreditar no que via. Estava tudo ali, visível, mas ninguém contava. Quem não contava, os media, os jornalistas?Sim, pareciam adormecidos. Trataram sempre Trump e a extrema-direita como uma piada e mesmo agora não entendem, e as perguntas, quando o entrevistam, fazem-me rir e também fazem rir esses extremistas. Que perguntas deveriam ser feitas?Não perguntas liberais como “como pode dizer que crianças nascidas nos Estados Unidos deveriam ir para a terra dos pais ilegais? Não são americanas?” Eles riem e dizem: “Não, elas não são americanas. São mexicanas, não têm a marca étnica do nosso povo. ” É assim que falam. Como outros noutros países. A América não é uma nação baseada num princípio, como se pensa, mas como quase todas as outras é baseada num predomínio étnico. Chamam-lhe uma nação proposicional por causa do famoso discurso de Abraham Lincoln em Gettysburg, o chamado Gettysburg Adress [o discurso mais famoso de Lincoln, em 1863, no fim da Guerra Civil], em que ele recordou os princípios fundadores da nação e a preposição de que todos os homens são criados iguais. Para os extremistas, Lincoln foi o idiota que destruiu a América ao introduzir o veneno da igualdade. Para eles, os pais fundadores não tinham dúvidas de que aquela era uma nação branca e os negros nunca poderiam ser cidadãos. A cidadania para negros livres só aconteceu depois da Guerra Civil. Eles querem retirar da Constituição Americana a emenda que salvaguarda essa igualdade, a de que qualquer pessoa pode ser americana por ter nascido lá. Como o meu filho. Eu e a minha mulher não éramos cidadãos americanos quando ele nasceu; éramos imigrantes legais, mas não cidadãos. Mas o meu filho é americano. É o direito à nacionalidade por nascimento. A razão é essa emenda pós-Guerra Civil que deu a cidadania a ex-escravos. Quando falam de sociedade branca, falam de supremacia branca. Estamos a viver um momento extraordinário em que grandes mudanças podem acontecer. Vamos sempre dar ao que se chama grande ferida americana, a escravatura?Pois, tudo na América parece ser sobre escravatura e entre ser negro ou branco. Tudo. Mesmo a imigração. E está a ressurgir depois de décadas. Repito, há quem siga a extrema-direita e a leve a sério. Muitos deles não são idiotas. Podem ter ideias loucas mas em muitos aspectos estão a entender melhor o que está a acontecer do que os chamados “liberais”. Faço sempre o arco com a Europa. W. E. B. Dubois, o grande intelectual afro-americano [1868-1963], publicou The Souls of Black Folk [1903], o seu grande legado sobre relações raciais. Ele afirma que a grande questão do século XX iria ser a racial. Eu hoje poria isso de um modo um pouco diferente; penso que é importante que o capitalismo entre na equação enquanto conceito e a ligação entre o capitalismo e a supremacia branca. Mas agora que a China está prestes a tornar-se a grande potência capitalista, como é que se vai pensar esse problema? Voltamos ao grande arco. A supremacia branca no máximo do seu poder, a transferência do poder geopolítico da Europa para a América, o grande conflito soviético que foi a Guerra Fria e, no momento pós-colonial, os movimentos anticoloniais por todo o lado nas décadas de 40, 50, 60 e 70 e mesmo nos anos 80, e chegamos a este ponto, o do multiculturalismo, globalização, um momento pós-colonial e uma nova ordem. Tudo o que é tomado por permanente não é permanente. Nada é permanente. Eles entendem isto. Há discursos disponíveis no YouTube onde se vê os líderes de extrema-direita a falarem com estes argumentos. Vêem o fim do apartheid na África do Sul como parte deste processo em que a sociedade branca está a ser destruída. Quando falam de sociedade branca, falam de supremacia branca. Estamos a viver um momento extraordinário em que grandes mudanças podem acontecer. Está pessimista?Sou por natureza um pessimista, mas sinto-me optimista em relação a isto. É muito estranho. Pode explicar porquê?Porque há agora uma inevitabilidade histórica. A sociedade europeia irá morrer em duas gerações. Demograficamente. Não há população suficiente para uma regeneração que sustente o Estado social. Capitalismo e demografia como sistema único no mundo geraram este desequilíbrio populacional entre Norte e Sul. As condições de vida sustentável são outro grande desequilíbrio. É um movimento inevitável. Não estou a falar em termos naturais, mas sociais. O sociólogo italiano Sandro Mezzadra diz que a migração em massa não é um processo demográfico anónimo, mas um movimento social, e o argumento que estou a construir para este projecto é que o migrante pós-colonial na Europa é uma figura que devolve à pátria europeia a questão do passado colonial. É a oportunidade de a Europa usar isso para se tornar verdadeiramente pós-colonial. É um regresso de modo a limpar tudo, arrumar tudo, e vir com disposição de constituir novas relações sociais não baseadas no passado colonial essencialmente racista. O migrante pós-colonial na Europa é uma figura que devolve à pátria europeia a questão do passado colonial. É a oportunidade de a Europa usar isso para se tornar verdadeiramente pós-colonialDeste seu pensamento pode concluir-se que a extrema-direita está organizada e a esquerda e o chamado “centro” estão perdidos?A esquerda está perdida neste momento. O que deve fazer quem quer defender os princípios da democracia?Não tenho uma resposta clara para isso. Estou a esforçar-me para ter. É a grande questão do nosso tempo. O politicamente correcto tem de terminar. A correcção política do tudo limpo. A extrema-direita não tem essa correcção e por isso pensa coisas novas. A esquerda não é capaz de um pensamento novo neste momento. Por estar preocupada com o politicamente correcto?Sim, penso que sim. Queremos uma linguagem de justiça social e que fundamente novas possibilidades humanas mais do que simplesmente uma linguagem de multiculturalismo. Na sua leitura, referiu Sandro Mezzadra, dizendo que a condição branca do europeu não foi posta em causa pelo multiculturalismo, mas apenas tornada menos evidente para tornar possível a coexistência com os não brancos. . . O multiculturalismo foi um penso rápido na grande ferida que é a história da Europa. Internamente, com o genocídio dos judeus; externamente, com a colonização, a escravatura, os genocídios. E o multiculturalismo não é uma maneira de lidar com essa grande lesão. A sociedade europeia irá morrer em duas gerações. Demograficamente. Capitalismo e demografia como sistema único no mundo geraram este desequilíbrio populacional entre Norte e SulFalou há pouco da União Europeia como a guardiã de um ideal. Onde é que está a falhar?A grande falha da União Europeia é evitar estas questões. Lidou com a questão judaica até certo ponto, mas mesmo aí de forma bastante incorrecta. França, por exemplo, o modo como distingue judeus e árabes é à velha maneira colonial aplicada na Argélia. Os judeus podem ser europeus, mesmo judeus árabes. Jacques Derrida, Hélène Cixous. . . , mas os árabes muçulmanos não podem ser europeus. Estas são formas de distinguir os árabes dos judeus que derivam de 1840. Nessa década, o Estado francês recrutou rabis asquenazes [provenientes da Europa Central] para os fazer chefes de sinagogas na Argélia. Foi o início do processo de europeização dos judeus árabes. A tecnologia colonial de diferenciação entre árabes e judeus, entre populações diferentes, está a acontecer, não é uma coisa só do passado. Depois os judeus foram a ameaça, agora assistimos mais uma vez à ameaça árabe. O desafio é desenvolver novas formas de pensar a sociedade. Ideias como cosmopolitismo e multiculturalismo estão a falhar diante dos nossos olhos. Como é que a literatura está escrever este presente?Muito do que se tem escrito surge no grande corpo a que se deu o nome literatura pós-colonial ou de imigração; e isso foi tornado exótico e chegou-se a uma fórmula; quando há uma fórmula, há uma expectativa: “Isto é o que nos vão dar. ” Tenho essa experiência; enquanto alguém considerado crítico pós-colonial, esperam certas coisas de mim e é uma luta não seguir o padrão. Podia viver muito bem só disso, de dar às pessoas o que elas querem. Arranjo muitos problemas por não o fazer e tento ensinar os meus alunos a não viverem debaixo desse tipo de expectativa ou de compromisso que impede de pensar de forma nova, original, que faça a diferença, que não seja apenas a repetição de uma fórmula. Mas há grandes escritores. Zadie Smith, agora; ouvi uma entrevista recente onde ela dizia que as pessoas pensam o multiculturalismo como um dado adquirido. Londres é multicultural e é apenas isso; o mundo é simplesmente isso, e ela diz que os acontecimentos do último ano fizeram-na perceber como esse momento é temporário. Espero qualquer coisa grande dela em resultado dessa conclusão. E Michel Houellebecq?É um caso interessante. Pertence à direita conservadora, muito anti-islâmica. A maior parte das pessoas com quem falo — caso de críticos literários — ficam chocadas e perguntam-me porque estou a trabalhar sobre Michel Houellebecq se ele é um racista. É precisamente por isso. Estudo-o porque ele é racista, quero entender o que isso é, e uma vez mais, porque é um escritor de extrema-direita e percebe que a esquerda, com todo o seu multiculturalismo, é incapaz de produzir um pensamento. Submissão [Alfaguara, 2015] não é um romance islamofóbico e esse é o grande truque do romance. É brilhante. Gosta de Houellebecq, escritor?É um louco, sabemos. A maneira como escreve sobre pornografia é demasiado para mim. É pornografia explícita, não é erotismo. É violento com as mulheres, é insuportável por vezes nessa violência de género, difícil de ler, mas revela-nos coisas acerca do nosso mundo. É sobretudo sexo, religião e raça, e muito revelador. Submissão, como disse, não é islamofóbico. No livro, o país vai aceitando o islão e as pessoas convertem-se maciçamente; a Sorbonne torna-se um seminário islâmico. Ele parece estar quase a dar as boas-vindas ao islão como um final para o conflito. Se é isso que é preciso, vamos fazê-lo. E o extraordinário, muito houllebecquiano, é que essa conclusão é assegurada por uma aliança entre patriarcas franceses e patriarcas islâmicos. É a grande atracção para os homens franceses se converterem. É tão louco! É orientalista, mas não islamofóbico. Orientalista tal como Edward Said definiu o orientalismo, com um olhar eurocentrado?Sim, nesse sentido. Ele escreve com base no imaginário francês colonial acerca do islão. O islão ocupa um lugar muito peculiar na história de França. Houve uma islamofilia em França, e muito patriótica, no sentido de uma ordem doméstica em que os homens têm as regras de uma certa ordem social e onde no centro está Deus. Isto foi muito atraente na cultura francesa no século XIX e início do século XX. Muitas personalidades francesas converteram-se ao islão nesta visão da ordem doméstica patriarcal com ênfase no sexo. Ter várias parceiras legais garante aos homens o acesso sem restrições ao sexo. Ele escreve a partir deste fascínio colonial do islão como doutrina doméstica. Adoro o romance. Repito, a direita radical ensina-me mais agora do que o multiculturalismo. Mas há outro escritor insano, francês, Jean Raspail. Acho que Michel Houellebecq fez uma reescrita do livro de Raspail chamado Le Camp des Saints [1973]. É um romance muito popular na extrema-direita americana. Steve Bannon, o estratega de Trump, afirmou que é o seu livro preferido na literatura. É sobre a chegada de mais de um milhão de imigrantes da Índia à costa francesa. Cem barcos chegam como uma grande armada, quase uma invasão, e as ruas ficam cheias dessa gente pobre, faminta e moribunda e o resto do romance é sobre o que acontece ao Sul, com a população a fugir para o Norte e o exército a descer. É o fim da civilização francesa, num ápice. Ele tem ideias apocalípticas sobre a demografia e de como isso é inevitável. Agora é lido como profético por essa direita radical. Dizem: aí está 2015, foi exactamente o que aconteceu. Ao criar os refugiados indianos, não quis distrair as mentes com o islão. Ele altera o que acha que são os factos para os tornar mais evidentes. Isto tem mais de 40 anos. É um romance horrível, muito mal escrito, mas de um modo estranho acho que Houellebecq está a reescrever esse texto. Edward Said denunciou o preconceito em relação ao islão e a sua representação, marcado pelo eurocentrismo. Perante tudo isto, como podemos agora ler aquele que é considerado o seu grande livro, Orientalismo (Cotovia, 2004)?Ele foi meu professor, grande amigo e mentor. Deve ser lido no sentido de um aviso sobre o que é agora a realidade diária: conflito de civilizações, violência de ambos os lados, o terror e a guerra contra o terror, a escalada desde os ataques ao World Trade Center. Todos os anos há uma nova escalada em direcção a um nível cada vez maior de loucura. Temos de mudar a nossa linguagem, o modo de pensar, alterar os nossos instintos ou o que tomamos como instintos, mas que são mais apreendidos que que outra coisa; não são coisas espontâneas que nasceram connosco. Aprendemos a pensar e a reagir emotivamente dessa maneira. É preciso empreender a laboriosa tarefa de mudar isso. Tornarmo-nos pessoas diferentes. Por isso o livro é mais relevante do que nunca. Não é sobre a representação de muçulmanos e árabes, é sobre esta história de violência entre o Ocidente e o mundo islâmico há séculos e de como ficar ciente disso e como começar a interromper esse processo de escalada constante. Dizia que é preciso mudar a linguagem: não parece coisa para uma geração. Mas há mudanças que vão acontecendo. Quando Donald Trump venceu as eleições americanas, muitos analistas disseram que se deveu a uma nova forma de linguagem. Pois. Talvez seja um motivo pelo qual o politicamente correcto deve ser questionado, o outro lado mostra o que parece não ser politicamente correcto. É abertamente racista, xenófobo. Quer dizer que se pode aprender acerca de linguagem com Trump?(Pausa) O politicamente correcto, especialmente na versão americana, cheia de interditos. . . como deverei pôr isto?O exemplo da n-word (eufemismo para nigger)?Sim, sim. Interdita. E, no entanto, ouvimos a palavra todos os dias na música contemporânea, no cinema americano, mas só é usada por afro-americanos, sejam cantores ou actores. Os filmes de Tarantino têm todos a n-word, mas dita por uma personagem negra. Na América nem se pode levantar a questão da imigração. Eu sou imigrante. Cheguei aos Estados Unidos para ir para a universidade, a minha formação anterior foi no Paquistão. Acho importante perguntar quais as implicações da imigração de massa, é estúpido fingir que nada irá mudar. Estamos a pedir que as coisas mudem, queremos que as coisas mudem, queremos fazer desta sociedade pós-colonial livre do imaginário racial do passado. São perguntas importantes; temos de as fazer abertamente e discuti-las. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Isto enquanto o inglês continua a ser a língua hegemónica, o tema do seu último livro, Forget English! (2016). Sim, a hegemonia global do inglês. É inevitável neste momento, não pode ser revertida, não podemos recuar a uma situação linguística anterior. Esqueçam o inglês? Não. Mas pensem mais nas outras línguas. Nos departamentos de inglês não se pensa por exemplo no que é a anglofonia. A anglofonia é só uma coisa bonita, as pessoas escreverem e pensarem em inglês em todo o lado! Mas tentem entender o que acontece quando falam inglês. Há uma diferenciação de classe no acesso? As línguas tradicionais estão a ser destruídas? É o que tento discutir nesse livro e a ideia de literatura mundial. É dominada pelo inglês. É preciso fazer as perguntas e não este non-sense de nem sequer poder mencionar a palavra “imigração” e dizer é tudo o mesmo, somos todos o mesmo. Não somos todos o mesmo. Trazemos diferentes histórias. Vir do lado do império ou do lado imperializado são duas coisas muito diferentes. Somos diferentes tipos de seres humanos em resultado dessa divisão. Por isso fala do paradoxo por detrás da ideia de igualdade?Sim. Igualdade não é o mesmo que semelhança. As tradições europeias geralmente equiparam igualdade e semelhança, e o multiculturalismo reproduz a semelhança; não é um modo de reconhecer a diferença. A diferença não é cultural. É histórica, são as diferenças históricas de diferentes populações. As heranças familiares vêm daí e formam seres humanos diferentes. Essa questão tem de ser central. O que temos é mau e queremos mudar, queremos criar outra coisa e estamos a mover-nos, mais e mais, no sentido de misturar populações diferentes, mas esta mistura não pode ser imaginada ou concebida em termos multiculturais. Não é só o imigrante que tem de fazer o esforço de mudar e ajustar-se. A questão é mudar as próprias sociedades nas quais o imigrante é assimilado. A questão é como é que as sociedades de acolhimento podem mudar e no que se poderão tornar no futuro. Não sabemos, mas tem de ser discutido de forma mais rigorosa e aberta. É o que vou tentar fazer no meu próximo livro. Esta Entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
800 pessoas resgatadas no Mediterrâneo numa única noite
Operações da Marinha italiana coincidem com debate sobre o problema na cimeira europeia. (...)

800 pessoas resgatadas no Mediterrâneo numa única noite
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento -0.07
DATA: 2013-10-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Operações da Marinha italiana coincidem com debate sobre o problema na cimeira europeia.
TEXTO: Mais de 800 pessoas foram resgatadas na noite passada de embarcações em dificuldades no estreito da Sicília, revelaram as autoridades italianas, na mesma altura que, em Bruxelas, os líderes da União Europeia discutem como lidar com a chegada de cada vez mais refugiados às costas do Sul da Europa. Segundo a edição online do jornal La Repubblica, dois dos navios da Marinha italiana que participam na operação Mare Nostrum – lançada na semana passada por Roma para evitar novos naufrágios trágicos – resgataram 400 pessoas durante a noite de quinta para sexta-feira no canal que separa a Sicília das costas da Tunísia. Outras 250, incluindo dezenas de mulheres e crianças, foram acolhidas a bordo de duas vedetas da Guarda Costeira que foram ao encontro de um barco em dificuldades a 25 milhas da ilha de Lampedusa. A Guarda Costeira resgatou ainda 95 eritreus que viajavam numa embarcação detectada a mais de cem milhas a sudeste da pequena ilha italiana e um navio mercante com bandeira do Panamá recebeu ordens para desviar a sua rota e resgatar 80 imigrantes de um barco em dificuldades numa zona próxima. O diário italiano adianta que parte dos resgatados foram levadas para Lampedusa, mas as autoridades decidiram levar de imediato algumas centenas para outros destinos – uma decisão que tende a ser tomada cada vez com mais frequência devido à sobrelotação dos centros de acolhimentos na pequena ilha. O La Reppublica dá conta da enorme tensão que se vive ali há várias semanas e adianta que a situação tende a piorar, quer por causa do fluxo constante de recém-chegadas quer por causa dos procedimentos “absolutamente inadequados” de resposta aos pedidos de asilo. Exemplo disso é o facto de continuarem na ilha, alojados em condições precárias, os 157 sobreviventes do naufrágio de 3 de Outubro, apesar de quase todos terem perdido familiares ou amigos na tragédia, a pior de que há registo com 339 mortos confirmados. A notícia dos salvamentos sublinha a urgência de uma resposta da União Europeia ao apelo lançado por Itália, com o apoio dos países do Sul, para a partilha de responsabilidades no combate à imigração ilegal e no acolhimento dos refugiados (uma parcela cada vez maior dos que arriscam a vida na travessia do Mediterrâneo). Reformas encalham nos corredores de BruxelasNa cimeira que decorreu em Bruxelas, os líderes europeus comprometeram-se a prevenir novas tragédias no Mediterrâneo, numa acção que terá três frentes, de acordo com a AFP. A "prevenção" de desastres como o ocorrido em Lampedusa no início do mês, a "protecção" fronteiriça e a "solidariedade" para com os países de origem dos refugiados e com os países por onde transitam. "Lutamos para impor o tema das migrações e para que as conclusões prevejam um conteúdo operacional", explicou o primeiro-ministro italiano, Enrico Letta, no final da cimeira. As propostas "são satisfatórias, já que incorporam o conceito de solidariedade", sublinhou Letta. No entanto, será preciso esperar até Dezembro para que apareçam respostas concretas que permitam reforçar os instrumentos à disposição da UE para o controlo das fronteiras exteriores, o Frontex e o Eurosur. A melhoria da operacionalização destes programas "será crucial para ajudar na detecção de barcos e de entradas ilegais", de acordo com o documento final do Conselho. Há ainda que aguardar até às eleições europeias de Maio, para que o novo Parlamento Europeu possa debater as reformas da política migratória da UE, em particular o direito de asilo, assunto que divide os países do Norte e do Sul. Qualquer reforma vai encontrar obstáculos, uma vez que 24 dos 28 Estados-membros rejeitam modificar as suas políticas de asilo. Notícia actualizada às 17:27 - Acrescentaram-se as conclusões da cimeira do Conselho Europeu.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
Quando as tragédias nos são indiferentes
Com a tragédia do voo da Malaysia Airlines, o conflito ucraniano mudou de natureza. Deixar andar tornou-se impossível. (...)

Quando as tragédias nos são indiferentes
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Com a tragédia do voo da Malaysia Airlines, o conflito ucraniano mudou de natureza. Deixar andar tornou-se impossível.
TEXTO: 1. O Iraque está já em estilhaços, com consequências profundas para a região. A guerra na Síria soma-se em vítimas e em refugiados, numa escala assustadora. As negociações com o Irão levaram as partes a aceitar um prolongamento de quatro meses para conseguir um acordo. O eterno conflito israelo-palestiniano, na sua versão actual, começa a ser cansativo, sobretudo porque teima em obedecer a uma lógica que perdeu qualquer razão de ser. Enquanto não acabar o macabro princípio do “dente por dente, olho por olho”, ninguém vai chegar a parte nenhuma. Ontem, como todos os dias, mais um atentado terrorista no Iraque matou algumas dezenas de pessoas. E ontem, como todos os dias, o regime sírio matou mais umas centenas. O balanço quotidiano das vítimas já deixou de ser notícia. Finalmente, com a tragédia do voo da Malaysia Airlines, o conflito ucraniano mudou de natureza. Deixar andar tornou-se impossível. O problema é que a via que Putin escolheu de confronto com o Ocidente tornou mais visível a ausência de estratégia europeia face a Moscovo, mesmo que, até agora, tenha acompanhado os Estados Unidos, mesmo que sempre um pouco mais atrás. Putin ainda não conseguiu, como esperava, dividir a aliança transatlântica. Deixou-se isolar na cena internacional, como se viu na sua recente digressão pela América Latina. Tem na mão a chave do conflito: ou uma fuga para a frente ou a abertura para negociações realmente sérias. E tudo isto se passa em território europeu. 2. A Europa está rodeada de conflitos por todos os lados. A relativa ausência americana deixa ainda mais a nu a sua dificuldade em ter uma acção externa coerente. Mesmo assim, deu-se ao luxo de fracassar na sua primeira tentativa de preencher os lugares de topo das instituições europeias na quinta-feira passada, incluindo o de chefe da Diplomacia europeia. Não é um bom sinal. Na quinta-feira, num debate organizado pelo Movimento Europeu, António Vitorino começou a sua intervenção com uma “má notícia”: o “impasse no Conselho Europeu”. E outra boa: a escolha de Juncker para presidir à Comissão. Apontou a questão fundamental: a crise mudou os equilíbrios entre as instituições e entre os Estados, criando uma “nova normalidade” europeia, que é preciso agora corrigir, recuperando o papel da Comissão. Mas também disse que a Europa se tem de reformar urgentemente e que, para sermos totalmente honestos, algumas das exigências do Reino Unido (ou da Holanda), independentemente das suas intenções políticas, fazem sentido. Por exemplo, que a Europa deve ter um conjunto de grandes prioridades para o futuro, e não uma “árvore de Natal” onde cada um é livre de colocar o seu enfeite. E que o crescimento tem de ser, necessariamente, uma delas. Pascal Lamy, o francês que dirigiu a OMC é o presidente honorário da “Notre Europe – Institut Jaques Delors”, da qual Vitorino é o presidente executivo, veio a Lisboa dizer basicamente a mesma coisa. Há ideias mas é preciso considerá-las e debatê-las. Vitorino reconhece que recuperar a influência da Comissão na definição da agenda política é o grande desafio de Juncker. O recém-eleito presidente não está a ter das capitais a cooperação necessária para conseguir levar a cabo essa tarefa, afastando o risco de fazer da Comissão uma das vítimas colaterais desta crise. O antigo comissário português anda a avisar há já muito tempo que a Comissão, se escolhida apenas segundo o critério político do PE (e não através de uma negociação com o Conselho Europeu) poderia vir a revelar-se um problema: seria uma Comissão prisioneira de um “sistema de Assembleia”, sem a margem de manobra de que precisa. 3. Na semana passada, algumas peripécias deram-lhe razão. Ter instituições europeias com um equilíbrio entre homens e mulheres é, em si mesmo, uma coisa boa. Mas não a forma como Martin Schulz, o presidente do PE, a colocou, ameaçando chumbar (ou seja, não investir) a nova Comissão se não houver pelo menos nove mulheres. O mesmo Schulz também disse que o comissário escolhido pelo Reino Unido (Lord Hill) corria o risco de ser “chumbado” pelos deputados por excesso de eurocepticismo. Alguém lhe deve ter dito que era uma declaração politicamente pouco ajuizada. No dia seguinte, corrigiu o tiro, dizendo que alguns amigos lhe tinham explicado que Lord Hill até era, afinal, uma pessoa sensata, no quadro político britânico. Não é a primeira vez que o PE age em mood “politicamente correcto”. Na primeira Comissão Barroso, os deputados vetaram o nome do Comissário Italiano, figura conservadora e respeitável (duas coisas que se podem conjugar) porque considerava a homossexualidade um crime.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
A vida aventurosa de Myriam Anissimov
A escritora, cantora, actriz, jornalista que vive na sombra dos homens que biografou: Primo Levi, Romain Gary, Vasily Grossman. (...)

A vida aventurosa de Myriam Anissimov
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A escritora, cantora, actriz, jornalista que vive na sombra dos homens que biografou: Primo Levi, Romain Gary, Vasily Grossman.
TEXTO: És como eu, não consegues ganhar a vida a trabalhar. ” Quando Myriam era ainda muito nova e o jovem namorado Patrick Modiano lhe disse aquilo, ela quis acreditar. Era uma frase que ia contra tudo o que a mãe lhe ensinara. Vida certa. Dinheiro certo. Mas a mãe ensinara-lhe também que a verdade vinha antes de tudo e a verdade é que ela não sentia o mínimo talento para ser “funcionária de alguém”. Achava que “podia ser qualquer coisa especial”. Foi por intuir isso que um dia, tinha 22 anos, fez a mala, pôs lá dentro um livro de Schopenhauer e outro de Thomas Bernhard e apanhou o comboio para Paris, deixando a “hostil e obscura” Lyon, à procura “de um outro mundo de que não fazia a mínima ideia”. Myriam, a rapariga que “dormia com os homens sem sentir qualquer amor”, sonhava amar. “Queria amar como Mathilde de La Mole amava Julien Sorel. Como Catherine Earnshaw amava Heathcliff. Como Anna Karenina amava Vronsky. ” Naquele comboio ainda não podia saber, mas seria cantora, actriz, jornalista, fotógrafa, escritora e biógrafa de Primo Levi, Romain Gary e Vasily Grossman. Fala dessa viagem inicial com um misto de admiração pela rapariga e ternura pela ingenuidade. “A minha vida é a literatura, com amor e música”, diz agora, 72 anos em Junho, voz rouca irreconhecível para quem a puder ouvir cantar nas gravações que existem, com vinte e poucos anos, poemas de Albertine Sarrazin ou os que Modiano escreveu para ela quando andavam ambos pelas ruas de Paris e a mãe a ia vendo na televisão e se admirava, perguntando-lhe ao telefone quanto lhe pagavam por isso. “Ela tinha medo e tinha razão. Eu era uma rapariga muito nova sem um tostão numa cidade que não conhecia. ”Ri. As mãos sobre os joelhos, os ombros encolhidos, os olhos quase fechados. O rosto não revela o cansaço de um dia longo. São nove da noite em Lisboa. Já deu quatro entrevistas e teve uma conversa para uma audiência no Cinema S. Jorge, onde abriu a Judaica — Mostra de Cinema e Cultura. Em nenhum caso para falar dela. Esteve em Lisboa para falar de Romain Gary (1914-1980), o escritor francês que fica para a história como o único a vencer duas vezes o prémio Goncourt. Algo só possível porque um dos livros vencedores foi assinado com pseudónimo e a identidade descoberta quando era tarde de mais para lhe ser retirado. Gary era judeu como ela, escritor como ela e um dia pediu-a em casamento. Ela não sabia ainda quase nada da vida dele, a não ser que era mulherengo e bom escritor. Ela era uma miúda e ele “um senhor”. Queria amar como Mathilde de La Mole amava Julien Sorel. Como Catherine Earnshaw amava Heathcliff. Como Anna Karenina amava VronskyNão conheceu os outros dois homens que biografou. Também judeus, como ela. Primo Levi e Vasily Grossman. Perante estes três nomes — Primo Levi, Grossman e Gary —, a assinatura da biógrafa fica na sombra. Poucos saberão que Myriam Anissimov teve uma juventude tão venturosa. “Quando se anda a mexer na vida de escritores como estes, quem quer saber da nossa?”, continua, misto de desafio e humildade, sem se escusar a perguntas, mas dizendo que está tudo no seu livro Jours Nocturnes (2014, Éditions du Seuil), uma elaboração ficcionada sobre factos reais na qual a escritora narra, sem pudor nem vestígio dos seus complexos de miúda, uma “exigência tumultuosa” onde conheceu quase toda a gente por acaso. “Uma aventura”, sintetiza. O livro é uma espécie de ajuste de contas com a mãe, Bella Frocht, uma grande leitora de clássicos, dogmática, que lhe recitava a doxa estalinista e a privou do mínimo sentido de “defesa contra a hostilidade, a brutalidade do mundo”. Sentia que isso a colocava num “estado de inferioridade face a todos os que mentem elegantemente”, escreve nessa autobiografia ficcionada, onde, ao contrário do que acontece nesta conversa, os protagonistas nunca aparecem com os verdadeiros nomes. As contas com a mãe estão acertadas, concede. Amaram-se e odiaram-se em doses iguais, numa relação agora pacificada. Chama-lhe petite Maman. “Ela está velhinha. Tem 90 anos. Voo daqui para Toulouse e sigo para o campo para estar com ela. Só depois volto a Paris. ”Myriam vive na cidade onde sempre quis estar, onde nunca sentiu que não era bem-vinda por ser judia, como aconteceu em Lyon era ela adolescente. Alguém lhe disse que não queriam ali “israelitas”. Os pais conseguiram escapar à Shoah. Myriam, romancista, escritora, jornalista, ex-actriz, ex-cantora em discos e cabarets, a rapariga que um dia quis ser fotógrafa mas cedo percebeu que não tinha grande talento para isso nasceu em 1943 com o apelido Frydman num campo de refugiados judeus em Sierre, na Suíça. O pai, judeu de origem polaca, era alfaiate e escritor de língua yidish. “Acho que nasceu daí a minha vontade de escrever”, diz. E ainda a sua identidade: “Sou uma escritora yidish de língua francesa. ”Quando chegou a Paris, levava um manuscrito muito incipiente e vontade de se revelar talentosa em alguma coisa. “As coisas foram-me acontecendo sem eu saber muito bem porquê”, conta, talvez por andar muito pela rua e Paris naquela altura ser uma cidade aberta. “Paz e amor, está a ver. ” O livro fala desses encontros, sucessão de gente a passar, mais ou menos demorados. “Ficávamos em casa uns dos outros. ” Ela tinha um pequeno estúdio, só com uma cama, mais nenhum móvel. Foi num desses casos que conheceu o actual Nobel francês, Patrick Modiano (n. 1945). “Foi ele a primeira pessoa a dizer que eu tinha talento como escritora e a mandar-me continuar”, conta sem pressa, divertida com detalhes. “A mãe dele era uma ex-cantora de boulevards e viviam numa casa muito grande, com grandes janelas. Ele tinha publicado um romance [La Place de l’Étoile, 1968] e escrevia letras de canções para ganhar a vida. Quando ele viu o meu manuscrito, levou-me a casa de uma mulher que fazia trabalhos como secretária. Tinha sido secretária de um Presidente da República e vivia num velho apartamento em ruínas com a irmã. Quando abriu a porta, foi um susto. Ela tinha barba, um cigarro na boca, vestia um roupão e, à volta da cintura, uma espécie de saia feita com tecido grosseiro de roupa de homem. Era um monstro. Viu-nos e começou com uma fúria nervosa. Que ele tinha de casar comigo. O Patrick disse: ‘A minha amiga tem aqui um manuscrito que queria que passasse à máquina. ’ Eu não tinha nenhuma experiência. Escrevia à mão. Mais tarde, ela disse que aquilo era muito sexual e eu achei estranho porque em nenhuma daquelas passagens havia sexo. ”O manuscrito seria ainda muito elaborado. “Eu não fazia a mínima ideia de como se trabalhava um texto”, admite. Um “feroz” crítico literário achou-a capaz de ser escritora e ia-lhe dando dicas, prazos para cumprir. O romance, Comment va Rachel, saiu em 1973, seis anos depois de se instalar definitivamente em Paris. Já tinha dado provas como actriz em palcos de teatro experimental, e também como cantora. Modiano, que no livro aparece com o nome de Arturo, “testa alta”, “a graça de Amedeo Clemente Modigliani”, um coleccionador de papéis e todo o tipo de arquivos, dera-lhe poemas para cantar. Eram amigos, namorados, partilhavam os dias e as noites mais boémias da cidade. Mas o primeiro grande encontro literário foi com Albertine Sarrazin, a escritora de origem argelina, transgressora, várias vezes presa por roubo e desacatos, vítima de abusos sexuais, que morreu em 1967 aos 29 anos. Os livros de Sarrazin têm muito de autobiográfico. “Conheci-a pouco depois de ela sair da prisão. Ela tinha mais uns seis ou sete anos do que eu e sentia-me fascinada por aquela rapariga rebelde que escrevia coisas muito bonitas, que tinha estado presa e contava isso. Quando cheguei ao teatro pela primeira vez e me perguntaram que texto queria dizer, escolhi um dela [La Traversière, 1966]. Fui escolhida e fiquei incrédula”, conta, mais uma vez indo aos pormenores. Foi um dos muitos encontros felizes. Como o que aconteceu com a professora de canto, uma vienense que conseguiu fugir de Auschwitz. Deu-lhe aulas de graça e no fim disse-lhe que nunca mais a queria ver se não passasse na audição. “Cantei as canções de Albertine Sarrazin e de coisas que eu tinha escrito e disseram-me que eu iria fazer um disco. E foi assim. ” O poema Que nous faisait cette vie, de Albertine Sarrazin, ganhava a voz de Myriam, que deixara para sempre o apelido Frydman (um dos produtores achava-o demasiado judeu e ela trocou-o por um dos primeiros que encontrou numa consulta a uma lista telefónica: Anissimov). Houve mais poemas de Albertine ditos por Myriam, que continuava no teatro e a ter outros acasos felizes. Interpretava uma peça de Tchékhov, naquele que era o seu primeiro papel a sério, quando uma “senhora” foi ter com ela, gostavam que ela aceitasse entrar no elenco de um filme. Visconti estava a adaptar Em Busca do Tempo Perdido. ‘Ela disse-me: ‘Tu serás a Albertine’. ” Albertine é uma das personagens centrais da obra de Proust que ganha relevo em A Fugitiva, o sexto volume. “Parecia-me inacreditável!”O filme não chegou a acontecer. As exigências de Visconti eram pouco reais. Um exemplo: em Deauville, na Normandia, um dos cenários onde seriam filmadas as cenas do Hotel Cabourg, o realizador pediu para serem retiradas todas as antenas e cabos eléctricos visíveis, para replicar ao máximo o tempo do livro. Myriam não foi Albertine, mas viveu muitas personagens no teatro até a literatura ganhar protagonismo. Os escritores rodeavam-na ou ela rodeava-se deles. Conta o encontro com Albert Cossery (1913-2008), que escrevia uma frase por dia e publicou oito romances marcantes em 60 anos de carreira onde escarneceu brilhantemente dos judeus. Conta ainda o encontro com Arthur Adamov (1908-1970), dramaturgo, um dos grandes nomes do Teatro do Absurdo, e como conheceu Leonard Cohen. Foi por causa de um poema. É que na vida de Anissimov havia a música, sim, mas antes de tudo a literatura. “Eu tinha tido uma reunião com o director do Olympia, outro acaso que me aconteceu, para agendar umas gravações. E ele perguntou se eu queria ver o espectáculo à noite; que lhe ligasse mais tarde a pedir o bilhete. Ouvi umas coisas para me situar e dei com Leonard Cohen a cantar, a dizer o poema The Partisan [uma canção sobre a resistência francesa escrita em 1943]. Fiquei emocionada e nessa altura dizem-me que já não é possível arranjar lugar, que o Presidente Giscard d’Estaing ia assistir e levava uma grande comitiva. Fiquei desolada. Aceitaram que eu aparecesse e pelo menos nos bastidores ficaria. O Cohen passou por mim, cumprimentou-me. Cantou. Houve uma ovação, ele sai de cena, vê-me e diz, ‘olha esta menina bonita’ e abraça-me e fomos abraçados, atravessámos a barreira policial, entrámos num Rolls Royce e fiquei uma semana no hotel com ele. Toda a minha vida é feita de episódios absolutamente improváveis. ” Entre o romance e a biografiaEstávamos em meados da década de 1970, havia um segundo romance, Le Resquise (1975), já havia uma marca. Desde o início que Anissimov levava para a sua literatura as inquietações das mulheres judias do pós-Holocausto. Como conciliar emoções, sexualidade, continuar individualmente após o trauma colectivo. À medida que os livros vão saindo, as suas personagens femininas vão-se tornando mais independentes. Rue de nuit, 1977; L’Homme rouge des tuileries, 1979; Le Marida, 1982; Le Bal des puces, 1985; La Soie et les Cendres, 1989. Os cinco anos seguintes serão diferentes. Tinha acabado de publicar um romance e queria escrever outros quando a editora lhe propõe que escreva uma biografia. Oferecem-lhe um avanço irrecusável. “O cheque que a Gallimard me pôs à frente dava para eu viver dois anos. E era só um adiantamento. ” Escolheu escrever sobre Primo Levi (1919-1987), o escritor que sobrevivera a Auschwitz e quisera pôr a vida num livro Se É Isto Um Homem (ed. D. Quixote). Foram cinco anos de pesquisa e escrita e uma nova aprendizagem para quem estava já familiarizada com o jornalismo. Escrevia para a Géo, e mais tarde passou a colaborar com o Nouvelle Observateur, com revistas e jornais literários. É assim que, em 1996, sai Primo Levi ou la tragédie d’un optimiste. A crítica foi unânime em louvar a biografia. E em 2004 era publicado Romain Gary, le caméléon. Entre as duas biografias, saíram dois romances: Dans la plus stricte intimité, 1998 e Sa Majesté la Mort, 1999. Vie et mort de Samuel Rozowski, Denoël é publicado em 2007 e passam-se outra vez cinco anos até outra biografia: Vasily Grossman: Un écrivaint de combat, em 2012. Até que ponto há contágio entre romance e a escrita biográfica? “Como personagens reais, esses homens não tiveram qualquer influência nos meus romances. Mas a sua escrita sim. Especialmente Levi, tão lógico, tão claro, tão inteligente, cheio de um humor requintado. Eles podem no entanto aparecer como personagens numa ficção”, afirma. É o caso de Gary, que conheceu em 1977, já ele tinha dois Goncourts. O primeiro em 1956, com As Raízes do Céu (agora publicado em Portugal pela Sextante) e o segundo em 1975, com Uma Vida à Sua Frente (também Sextante, em 2011), assinado com o pseudónimo Émile Ajar. Gary será central no próximo romance de Anissimov, um livro sobre “dois homens mais velhos e famosos que eu conheci quando era, digamos, uma jovem atraente. Teriam exactamente a idade do meu pai se ele estivesse vivo. Eram ambos famosos e muito fascinantes. O segundo era um célebre maestro”, adianta, agora sem dizer o nome. Na sua ficção, como nas biografias, a linguagem de Anissimov está sempre próxima da poesia. Essa marca atenua-se quando há uma vida real para contar. “Pois é. Isso é porque a proposta de um romance passa pela música, a composição, uma estrutura que permita sentir o tempo voar. Nas biografias tento ser mais exacta, mas só a matemática, a ciência, é objectiva. A objectividade na pintura, na música e na literatura está na coerência da harmonia universal, do mundo expresso de um modo diferente da ciência. ” Daqui conclui que escrever uma biografia é escrever um romance com enorme contenção. “Temos de nos restringir apenas ao material recolhido, aos factos. ” Nunca se sabem todos, “é impossível conhecer completamente a vida de alguém. Por isso, biografar é uma constante ilusão, uma espécie de síntese entre ciência e literatura”. Volta aos detalhes. É neles que se encontra a essência. É corriqueiro dizer isto, “mas é isso mesmo”. É o biógrafo nas suas limitações. Porque a família pede que não se revele algo, porque há segredos. “Sobre sexo, dinheiro, traições. ” Dá um exemplo. “O filho de Gary pediu-me para não contar algumas coisas muito tristes sobre a sua mãe. Achei que devia respeitar; isso iria fazê-lo sofrer e ele queria manter a memória da mãe. ” Algo semelhante aconteceu com Vasily Grossman. “Fedor, o seu enteado, não me quis dar as cartas que Grossman enviou ao seu último amor, Ekaterina Zablotskaya. Ele deixou a sua mulher durante dois anos para ir viver com Zablotskaya. O Fedor aceitou falar sobre isso, contar a história, mas sem mostrar as cartas que eram muito emotivas e eróticas. Contou-me que as duas mulheres estavam ao pé dele no hospital quando morreu de cancro, em 1964, com 59 anos. Mas as cartas eram outro assunto. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nos romances de Myriam, pelo contrário, não há limitações, “mesmo que as pessoas se zanguem”. “Sinto-me absolutamente livre. ” A memória ficcionada que escreveu é um exemplo disso. Os nomes não estão lá, mas quem viveu aquele tempo no mesmo espaço que ela reconhece-se. Quem leu sobre esse tempo nesse espaço sabe também quem são os protagonistas. Como se Myriam fosse uma das mulheres que inventou para os seus livros e se libertasse daquela timidez inicial, a do complexo incutido pela mãe. “Ela fez-me complexada”, insiste. A proposta de um romance passa pela música, a composição, uma estrutura que permita sentir o tempo voar. Nas biografias tento ser mais exacta, mas só a matemática, a ciência, é objectivaEm Lyon, tinha tirado um curso de fotografia e foi fotografando quase sempre. Tirou fotos em reportagens que fez em Nova Iorque, mas pede: “Pode chamar-me cantora, actriz, jornalista, escritora, sei lá, mas não sou fotógrafa”, ri outra vez. E não faz uma pausa entre este raciocínio e o tema seguinte. É que ela podia continuar a falar, encadeando histórias, pessoas, lugares de forma tão entusiasmante como o faz nas biografias que escreveu, como se estivesse lá e é capaz de levar quem a lê e ouve a cada sítio, ao íntimo de cada pessoa. Fala do pai. Foi dele que veio a tal verdade, o impulso que ele lhe deu para a escrita, os amigos que iam lá a casa falar de literatura, o avô que lia Espinosa, a mãe que lê em alemão, mas sobretudo a descoberta que fez a partir dos 14 anos, o que era a verdadeira literatura. “A admiração por um autor ou por um livro não é a mesma quando se tem 17 anos, 30 anos, 50 e mais. ” Há no entanto as referências, os que foram e continuam a ser decisivos: Blaise Cendrars, Apollinaire, Flaubert, Stendhal, Kafka, Soma Morgenstern, David Shahar, Aharon Appelfeld, Joseph Brodsky, Angel Wagenstein, Proust — “um génio” — e claro Thomas Bernhard. “Acho que ele é um dos mais importantes escritores europeus do século XX. Inventou uma nova linguagem. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Campanha contra imigração sem documentos gera acusações de racismo no Reino Unido
Política do Governo inclui cartazes com a frase "Vá para casa ou arrisca-se a ser detido", operações de identificação nos subúrbios de Londres e mensagens no Twitter com fotografias de suspeitos. (...)

Campanha contra imigração sem documentos gera acusações de racismo no Reino Unido
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 18 Africanos Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Política do Governo inclui cartazes com a frase "Vá para casa ou arrisca-se a ser detido", operações de identificação nos subúrbios de Londres e mensagens no Twitter com fotografias de suspeitos.
TEXTO: O Governo britânico está a ser acusado de "fomentar tensões raciais" devido a uma campanha para identificar imigrantes sem documentos, que tem como lema "Está ilegal no Reino Unido? Vá para casa ou arrisca-se a ser detido". Agentes dos serviços de imigração foram vistos a mandar parar "indivíduos de pele escura" em estações dos subúrbios de Londres e o Ministério do Interior começou a divulgar no Twitter fotografias de detenções de suspeitos. A edição online do jornal The Independent avança nesta sexta-feira que agentes do Ministério do Interior britânico realizaram nos últimos três dias "operações de identificação aleatórias" em quatro subúrbios de Londres – Walthamstow, Kensal Green, Stratford e Cricklewood. De acordo com testemunhos de pessoas que assistiram às operações, os agentes interrogaram "apenas indivíduos de pele escura". Um dos habitantes do subúrbio de Kensal Green, identificado como Phil O'Shea, disse ao jornal londrino Kilburn Times que os agentes reagiram com agressividade às questões levantadas por pessoas que não estavam a ser inspeccionadas: "Eles estavam a mandar parar e a interrogar todas as pessoas não-brancas, muitas das quais eram obviamente habitantes de Kensal Green que iam para o trabalho. Quando lhes perguntei o que se passava, ameaçaram deter-me por obstrução e disseram-me para seguir o meu caminho. "Questionado pelo The Independent, o Ministério do Interior negou que estas operações de identificação estejam ligadas à campanha realizada em seis bairros londrinos, também nesta semana, em que duas carrinhas foram postas a circular com um cartaz em que se podia ler a frase "Está ilegal no Reino Unido? Vá para casa ou arrisca-se a ser detido ". De acordo com o mesmo jornal, o ministério não conseguiu, no entanto, dar exemplos de operações de identificação semelhantes no passado. Oposição diz que liberdades fundamentais" estão em riscoO comportamento dos agentes foi criticado pelo deputado Barry Gardiner, do Partido Trabalhista, na oposição. O deputado escreveu à ministra Theresa May, acusando o Governo de estar a "pôr em causa as liberdades fundamentais" do Reino Unido. "Ainda não vivemos numa sociedade em que a polícia ou quaisquer outros agentes da autoridade têm o direito de deter pessoas sem uma justificação plausível, para lhes exigir a apresentação de papéis. Mas as acções do seu departamento parecem estar a levar-nos nessa direcção", escreveu o deputado. A consultora política e activista Christine Quigley, também do Partido Trabalhista, usou o Twitter para criticar as operações nos subúrbios de Londres: "Parece que os inspectores do UKBA [serviço de estrangeiros e fronteiras do Reino Unido] estão a mandar parar apenas pessoas de minorias étnicas em Walthamstow. Para vossa informação, UKBA – nem todos britânicos são brancos. "Em declarações ao The Independent, o representante dos trabalhistas no bairro de Brent, Muhammed Butt, considerou que as operações dos agentes e a campanha "Vá para casa ou arrisca-se a ser detido" estão ligadas. "Estas inspecções não são apenas intimidatórias, são também racistas e geradoras de divisão. Depois de falar com testemunhas, parece que apenas foram interrogadas pessoas negras e de aparência asiática. E os brancos australianos e neo-zelandeses que podem ter ultrapassado os limites da sua estadia?"Imagens de detenções no TwitterNas últimas horas, as acções do Governo britânico contra a imigração de pessoas sem documentos reflectiu-se também nas redes sociais, com o Ministério do Interior a publicar fotografias de suspeitos no momento em que são detidos. As mensagens são acompanhadas pela palavra-chave #immigrationoffenders (infractores da lei de imigração) e mostram imagens dos momentos das detenções, com a cara dos envolvidos – suspeitos e agentes – escondidas. As reacções no Twitter vão desde o apoio incondicional a comparações à Alemanha nazi. "Há algum branco?", questiona o utilizador Dave Sykes. Um outro utilizador, Dev Raval, pergunta se "esta é mais uma ideia que foram buscar aos nazis". No extremo oposto, um utilizador que se apresenta como apoiante do partido UKIP (anti-europeísta e anti-imigração) insta as autoridades a deportarem os suspeitos detidos, enquanto outro pede que o ministério vá actualizando os casos – "O que lhes vai acontecer agora? Por favor, actualizem a informação. Vão deixar que saiam em liberdade?"Na madrugada desta sexta-feira, foi criada uma conta no Twitter chamada "UK Go Home Office", que se dedica a ridicularizar as mensagens do Governo. Um dos tweets salienta a alegada natureza racista das operações nos subúrbios de Londres: "Olha à tua volta. Os infractores das leis de imigração vêm em várias formas, tamanhos e tons de castanho. "O director executivo da associação de defesa dos refugiados Refugee Action, Dave Garratt, considera que a política do Governo britânico pode "incitar tensões raciais". Num texto publicado no jornal The Independent, Garratt diz detectar sinais de uma "cruzada com vista à criação de um ambiente hostil", com "carrinhas nas ruas com frases ameaçadoras e, alegadamente, pessoas não-brancas a serem mandadas parar e revistadas". Citado nesta sexta-feira pela edição online do jornal The Guardian, um porta-voz do Ministério do Interior, citado sob anonimato, defendeu a estratégia do Governo: "Não pedimos qualquer desculpa por pôr em prática as nossas leis de imigração e os nossos agentes realizam centenas de operações como esta em Londres ao longo de todo o ano. "Em Maio, uma semana depois dos surpreendentes resultados do UKIP nas eleições locais, David Cameron anunciou que a alteração das leis de imigração seria uma prioridade do seu Governo. A proposta – lida pela rainha na abertura do ano parlamentar – prevê o limite do acesso dos imigrantes a benefícios sociais e aos serviços de saúde e poderá ser aprovada até ao Outono.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei imigração rainha racista ilegal
ONU diz que ataque a vila síria teve por alvo casas de rebeldes
O grupo de observadores da ONU na Síria regressou neste domingo à vila de Tremseh, na Síria, para continuar a investigar as denúncias de massacre. Num ataque há três dias terão morrido entre 200 e 300 pessoas. Por aquilo que viu, a ONU diz que o ataque “pareceu visar grupos e casas específicas, a maioria de rebeldes". (...)

ONU diz que ataque a vila síria teve por alvo casas de rebeldes
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-07-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: O grupo de observadores da ONU na Síria regressou neste domingo à vila de Tremseh, na Síria, para continuar a investigar as denúncias de massacre. Num ataque há três dias terão morrido entre 200 e 300 pessoas. Por aquilo que viu, a ONU diz que o ataque “pareceu visar grupos e casas específicas, a maioria de rebeldes".
TEXTO: A equipa da ONU, que esteve ontem em Tremseh para investigar as denúncias do massacre de quinta-feira para sexta-feira, disse ter visto uma escola queimada e casas destruídas, com vestígios de incêndios em cinco delas. Além disso, os observadores das Nações Unidas dizem que “havia sangue em várias casas”. Sausan Ghosheh, porta-voz da missão, salientou em comunicado que “numerosos tipos de armas foram utilizadas no ataque, nomeadamente artilharia e morteiros”. Um grande número de vítimas foi “executado sumariamente” e 17 pessoas, entre elas mulheres e crianças, foram mortas quando tentavam fugir daquela aldeia, no centro da Síria. Ainda assim, a missão da ONU diz que ainda há incertezas quanto ao número de vítimas dos bombardeamentos do exército e execuções das milícias leais ao regime do Presidente, Bashar al-Assad. “A equipa da ONU prevê voltar a Tremseh amanhã (domingo) para continuar a sua missão de avaliação”, garantiu Sausan Ghosheh. Damasco critica carta "apressada" de AnnanAs autoridades sírias vieram entretanto hoje negar as acusações feitas pela missão – e já avalizadas pelo enviado especial das Nações Unidas e Liga Árabe à Síria, Kofi Annan – de que foram usados helicópteros e artilharia pesada em Tremseh. “As forças do Governo não usaram aviões, nem helicópteros, nem tanques ou artilharia. A arma mais pesada usada foram RPG [granadas lançadas por rockets]”, insistiu o porta-voz do Ministério sírio dos Negócios Estrangeiros, Jihad Makdissi. Pela primeira vez, as autoridades reconheceram a morte de civis, tendo Makdissi feito um balanço de mortos na operação militar contra Tremseh de “37 terroristas”, usando a terminologia do Governo para se referir aos combatentes da rebelião, e dois civis. Esta mesma fonte frisou ainda que a operação das forças governamentais visou combater os rebeldes “que estavam a lançar ataques em zonas circundantes”. Makdissi avançou ainda que Annan enviara ontem mesmo uma carta ao ministro dos Negócios Estrangeiros sírio, Walid al-Moualem, na qual era apontado que o exército usara meios de combate pesados. “O mínimo que pode ser dito sobre o que esta carta diz sobre o que aconteceu em Tremseh é que não se baseia nos factos. Tão diplomaticamente quanto nos é possível, afirmamos que esta carta foi feita de forma apressada”. Relatos de oposicionistas dão conta que a aldeia esteve horas sob cargas da artilharia pesada – tanques e helicópteros de combate – após o que a milícia Shabiha entrou no local, começando a executar pessoas, com tiros na cabeça. Segundo os activistas a maior parte dos mortos são civis. O Governo sírio insiste, porém, que o que se passou em Tremseh foi uma operação militar contra combatentes rebeldes que se tinham refugiado na zona e nega a ocorrência de mortes de civis. A aldeia, que fica a cerca de 25 quilómetros para noroeste da cidade de Hama, é habitada por sunitas e está rodeada de localidades alauitas (a comunidade religiosa de Assad e do regime). Sendo confirmada a vaga de mortes, denunciadas por activistas no terreno e residentes, este terá sido o mais grave massacre desde o início da revolta em Março de 2011 e já o quarto no país atribuído às tropas de Assad nos últimos quatro meses. Ban Ki-moon apela à ChinaO secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, apelou ontem ao ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Yang Jiechi, para pedir a Pequim que "use a sua influência" para fazer cumprir o plano de paz do mediador Kofi Annan, informou o porta-voz da ONU, Martin Nesirky. Ban e o seu interlocutor "debateram a situação na Síria e a necessidade imperiosa de fazer cessar a violência imediatamente", disse Nesirky. “Ban pediu à China para usar a sua influência a fim de fazer aplicar totalmente e imediatamente o plano em seis pontos [de Annan] e o comunicado do Grupo de Acção sobre a Síria", que prevê uma transição política.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Um curto poema sobre a Índia ou as sete vidas de um fotógrafo
É um dos fotógrafos contemporâneos mais reconhecidos. Está em Lisboa para mostrar a sua Índia, um “curto poema” sobre o país onde já esteve mais de 80 vezes. É possivel que McCurry tenha no arquivo uma fotografia do templo em que este domingo morreram cem pessoas. (...)

Um curto poema sobre a Índia ou as sete vidas de um fotógrafo
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um dos fotógrafos contemporâneos mais reconhecidos. Está em Lisboa para mostrar a sua Índia, um “curto poema” sobre o país onde já esteve mais de 80 vezes. É possivel que McCurry tenha no arquivo uma fotografia do templo em que este domingo morreram cem pessoas.
TEXTO: Sabe-se quando se tem pela frente uma fotografia de Steve McCurry, sobretudo se o cenário for a Índia, onde diz ter aprendido a ver e saber esperar. Também nos faz esperar enquanto termina a entrevista anterior. Está sentado numa cadeira com vista para a rua, acena em cumprimento. Minutos mais tarde, apertamos-lhe a mão esquerda — a direita está incapacitada por um acidente em miúdo. É um homem que se demora no olhar. Pedimos ao fotógrafo norte-americano que faça uma visita guiada pelas vinte fotografias que traz a Lisboa (Barbado Gallery). Antes, pede um café, quer saber a marca, justifica-se por ser um forte bebedor. Acompanha com uma miniatura de pastel de nata. Segue o tour. Aponta as mulheres de costas, vestes vermelho-vivo abrigadas por um tronco de árvore numa tempestade de pó no Rajastão. Data: 1983. Dessa série há uma outra imagem que ele frequentemente diz ser a sua eleita. Mas não está nesta exposição. Conhecemo-la de livros. Pedimos que conte a história de uma outra fotografia, parede oposta. Uma criança de colo e a sua mãe, rostos colados ao vidro de um automóvel. Local e data: Bombaim, 1992. “Estava num táxi a caminho do hotel, parámos num semáforo. Era Agosto, época de monção. Eu ali no conforto de um ar condicionado e eles lá fora. Só meses mais tarde percebi que tinha ali uma fotografia. ”Voltamos à sala da entrada, vidraça para a rua Ferreira Borges, de entremeio, numa parede à direita, uma citação de Alberto Moravia em Uma ideia da Índia (edição portuguesa da Tinta-da-China). Steve McCurry está com 66 anos e como já disse por diversas vezes não se importará se as primeiras linhas no seu obituário forem sobre Sharbat Gula, a menina afegã que fotografou em 1984 e que no ano seguinte estava a comover o mundo na capa da National Geographic. Resume-se a vida de um fotógrafo da agência Magnum, premiado com Medalha de Ouro Robert Capa e várias do World Press Photo, a uma única imagem?McCurry acaba de chegar do Afeganistão, esteve lá três semanas em trabalho. Há trinta anos, foi o Afeganistão que o levou às páginas do New York Times, da Time, da National Geographic quando assistia à invasão soviética e disfarçava rolos de fotografia nas bainhas de um traje tribal para os fazer passar na fronteira com o Paquistão. Era então um jovem freelancer de 28 anos. Esteve nas guerras Irão-Iraque, nas guerras do Golfo, na ex-Jugoslávia — não se revê na descrição de repórter de guerra mas viveu embedded. Foi dado como morto, espancado, roubado, preso. Também lhe trouxe popularidade. O discurso deste homem relativamente baixo, que veste camisa de ganga sob um casaco de quadrados miudinhos e saca de um boné quando sai para a rua, é muito feito de frases soltas, algumas surpreendentemente sem remate. Dois dias depois da entrevista, mais de cem pessoas morreram num incêndio num templo do estado de Kerala, no sudoeste da Índia. A primeira vez que foi à Índia, estava com 27 anos, tinha sido fotógrafo do Daily Post, de Filadélfia, e lançava-se como freelancer. O que procurava, uma espécie de “educação em Humanidade”?Sim, é verdade. Tinha curiosidade sobre essa parte do planeta — já tinha viajado por África, pela América Central, pela Europa. Ia ficar por umas seis semanas. Foram dois anos. E comecei a descobrir sítios e pessoas, histórias às quais quereria voltar num futuro próximo. Voltou mais de 80 vezes. Que país tinha, ou tem, para revelar?Bem, o meu trabalho na Índia, as fotografias que se podem ver nesta exposição, são um poema curto sobre o país. Não contam toda a história, não é um trabalho feito para ser publicado numa revista, digamos que são sobretudo as minhas impressões, um olhar poético sobre sítios e tempos que me afectaram. É um país com uma grande profundidade cultural. Mas nesta Índia que mostra raramente vemos sinais de uma modernidade, quase como se tivesse a intenção de trazer para os nossos dias uma Índia milenar, que o é, mas também estagnada. A parte da Índia que a torna única, e é isso que me interessa, fala sobretudo de tradição, de uma qualidade antiga de um lugar. De facto, estou pouco interessado no investimento em programas espaciais [refere-se à Organização Indiana de Investigação Espacial, ISRO, na sigla em inglês] ou no avanço tecnológico. Preocupa-me mais um modo antigo de vida. É preciso estar muito tempo num sítio para o experienciar e à sua cultura?Tudo é válido. Tanto um fotógrafo como um escritor podem sentir-se validados logo nas primeiras impressões, como ficarem um ano e mesmo assim não entender o que os rodeia. Diria ainda que é comum que se consiga fotografar tanto melhor quanto se tiver conhecimento sobre o que fotografamos. Mas na verdade uma empatia na rua, olhares que se cruzam, pode originar um excelente retrato. Leu o mais recente artigo do fotógrafo e ensaísta Teju Cole, na revista do NYT?Sim. [De forma sucinta, escreve Cole que o mais recente conjunto de trabalhos do fotógrafo, India, reunido em livro pela Phaidon, é o essencial de McCurry. Mas é aborrecido. Popular mas aborrecido, por evocar clichés esquecendo que o garante do carácter único de qualquer país é a mistura do seu passado com o seu presente. ]Quer comentar?[aponta para a fotografia à entrada da galeria, que mostra táxis de tejadilho amarelo que se cruzam com transeuntes e vendedores de rua] Está a ver isto? Isto é Bombaim, anos 90. Para si, é só isso a Bombaim moderna?Também fotografei o programa espacial em Bangalore, onde faziam equipamento de satélites; fotografei fábricas de televisores; moda. Algumas foram publicadas no NYT, na National Geographic. Mas não são visualmente interessantes. Não me interessam laptops assentes no colo nem telemóveis. Aliás, a maioria do meu trabalho na Índia vem de muito antes desse avanço, foi feito entre os anos 80 e agora. Dou-lhe outro exemplo: fiz um trabalho sobre nómadas por ser um modo de vida em vias de extinção, por causa do crescimento urbano, da expansão da rede rodoviária, da explosão demográfica. É isto que me fascina. A sua família atribuiu-lhe a alcunha de Perpetual Motion (sempre em movimento). Hoje, podemos dizer que estavam certos. O que lhe chegou primeiro, a ideia da viagem ou a fotografia?A viagem. Quando tinha 19 anos já estava na Europa, trabalhei em restaurantes em Estocolmo e Amesterdão, fui até à Turquia, Israel. Voltei, continuei os estudos, empreguei-me como fotógrafo, isto até me aborrecer e querer voltar a viajar. Só se consegue fotografar quando se viaja? Podem estar a acontecer histórias no nosso bairro. Absolutamente. Depende sempre do que nos interessa e de como queremos viver a vida. Fotografar a família, o bairro, a cidade, as ruas, o metro, a paisagem. Ou o Tibete e a Síria. Ou tão somente fazer selfies. Tem sempre a ver com as mesmas questões muito primárias: como quero viver a vida? O que quero ler? Que música quero ouvir? Que alimentos quero consumir?Disse que gostaria de não ter a sua agenda ao serviço da notícia. Contudo, é como se tivesse passado a vida embedded na frente de várias guerras. É destemido?Ter medo é bom. Na semana passada voltei do Afeganistão, estive lá em trabalho três semanas. Aquele país é um perigo: há ataques suicidas, raptos, de tudo. Estamos sempre alerta. Prestamos atenção aos comandos que nos chegam do cérebro e é inevitável perguntarmo-nos: é sensato estar aqui, neste lugar onde explodem bombas?Mas se está a trabalhar tem tempo para fazer essa pergunta?Sem dúvida! Por que raio é que me pus nesta situação em que vou ser morto por causa de uma fotografia?! Inúmeras vezes. É um repórter de guerra?Não me revejo aí. Mas tive a experiência de ver crianças, mulheres, civis a perderem casas, famílias, tudo o que tinham, e é aí que os valores mais altos da vida se revelam e que agradecemos estar vivos. E é aí também que percebemos como uma fotografia e uma reportagem escrita podem ajudar, informar o mundo para que o mundo faça qualquer coisa com essa informação. Que balanço pode fazer entre fotografia documental e fotografia artística? Acho que mesmo nas vidas de Robert Capa, Henri Cartier-Bresson ou André Kertész aconteceu que uma fotografia se tornou dominante, universal, publicada e republicada, icónica. Pode até perder o propósito inicial, de contar uma certa história que estava a ser feita para uma revista. Bem, isso é falar de si próprio. Refere-se à fotografia da menina afegã, Sharbat Gula, que em 1985 fez a capa da National Geographic. Tem uma teoria sobre as razões que levaram a que essa fotografia tivesse a repercussão mundial que conhecemos?Tinha aqueles olhos hipnóticos e acho que na sua expressão se misturavam emoções várias, entre uma grande dignidade, uma ousadia de se sentir uma sobrevivente sabendo que era uma órfã, refugiada e a viver em condições miseráveis numa tenda. Mas orgulhosa na sua sobrevivência. Quando vemos arte, ou fotografia, muitas vezes atribuímos significados que dizem mais sobre nós do que sobre aquilo a que assistimos. Mas conhecendo um pouco o povo afegão sabemos o quão resiliente pode ser no meio da adversidade. De facto, podemos perguntar o que há de diferente naquela fotografia?! Autenticidade. Voltaram a encontrar-se 17 anos depois. Sim. Descobrimos que tinha um irmão, que se tinha casado, que tinha três filhos e vivia numa aldeia no Afeganistão, que o marido trabalhava numa padaria em Peshwar. O que aconteceu é que a pudemos ajudar com dinheiro, fomos benfeitores. Pode uma fotografia que alcança esta magnitude ser também um colete de força? Toldar a criatividade porque de alguma forma se está sempre a tentar voltar àquele ponto?Nunca o senti. Estou agradecido por ter tido a oportunidade de a fazer. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Fotografar tornou-se uma prática mais democrática. O fotógrafo Don McCullin diz mesmo que a fotografia foi sequestrada pelo digital e pelo mundo da arte. É a evolução. A realidade é assim mesmo: vemos as pessoas a fotografarem o que estão a almoçar, os amigos, a si próprios. É verdade que todos temos máquinas fotográficas, ou usamos o telemóvel. Mas nesse telemóvel podemos também escrever um poema, um ensaio, uma peça de teatro, uma canção. Acho fantástico documentarmos as nossas vidas e daqui a vinte anos estarmos a ver a memória do que éramos. É um tesouro!Estava em Washington Square, no seu escritório, acabado de chegar de um mês num mosteiro no Tibete e viu as Torres Gémeas afundarem depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Duas experiências opostas numa vida bastante preenchida. O que lhe sobra fazer?Viajar, trabalhar, publicar livros — tenho dois na calha, um sobre leitura, melhor, situações de pessoas a ler; outro sobre o Afeganistão. Quem escolheria para o fotografar a si?Nunca pensei nisso (risos).
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra cultura educação homem criança medo espécie mulheres extinção alimentos morto
Um Nobel do presente para salvar o futuro
“Uma criança, um professor, um livro, uma caneta podem mudar o mundo”, disse Malala na ONU, no dia em que fez 16 anos. Agora, partilha o Nobel da Paz com um indiano de 60 que há décadas devolve crianças à escola. (...)

Um Nobel do presente para salvar o futuro
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-04-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: “Uma criança, um professor, um livro, uma caneta podem mudar o mundo”, disse Malala na ONU, no dia em que fez 16 anos. Agora, partilha o Nobel da Paz com um indiano de 60 que há décadas devolve crianças à escola.
TEXTO: Os premiados são dois mas o Nobel da Paz deste ano é para a educação. Malala Yousufzai, a adolescente paquistanesa baleada por extremistas por defender o direito das meninas estudarem, tornou-se num símbolo desta luta. O indiano Kailash Satyarthi, o outro laureado, é um activista dos direitos das crianças que combate o trabalho infantil e escravo no seu país e no mundo – um trabalho que só fica completo quando as crianças que resgata voltam à escola ou entram numa pela primeira vez. “É uma grande mensagem do comité Nobel, olhando para o cenário actual na Índia e no Paquistão”, notou Satyarthi, que falou aos jornalistas no seu gabinete em Nova Deli. Os vizinhos que já travaram guerras vivem um novo momento de escalada, militar e retórica. Prometendo “trabalhar de mãos dadas” com Malala (como é conhecida em todo o mundo), o antigo engenheiro diz que esse terá de ser um trabalho global pela paz. Malala, que soube do prémio nas aulas, dedicou-o “às crianças sem voz, que devem ser ouvidas”. Afirmou-se “orgulhosa por ser a primeira paquistanesa, a primeira jovem mulher e a primeira jovem” [aos 17 anos, é a mais nova de sempre] a receber o Nobel da Paz e convidou os chefes de Governo do Paquistão e da Índia a estarem presentes na cerimónia de entrega. Este também é um prémio contra o radicalismo e o desentendimento entre fés. “O Comité considera importante que um hindu e uma muçulmana, um indiano e uma paquistanesa, se juntem na luta pela educação e contra o extremismo”, ouviu-se no anúncio, em Oslo. “Particularmente em áreas atormentadas por conflito, as violações contra as crianças levam à continuação da violência de geração em geração. ” Um prémio a dizer que um mundo com menos guerras não é possível se a educação não for uma verdadeira prioridade. Por isso é que este é um prémio para o futuro, muito atento ao presente: o extremismo religioso que quase matou Malala é o dos taliban, uma invenção das forças de segurança paquistanesas que chegou a liderar o Afeganistão e continua a ameaçar o país da adolescente e o vizinho a sudeste. Quando, em 2007, os “estudantes de teologia” chegaram a Mingora, capital do Vale de Swat, onde Malala vivia, já tinham passado anos a queimar escolas afegãs, muitas vezes deixando desfiguradas dezenas de alunas. O extremismo religioso que baleou Malala é o mesmo da Al-Qaeda cuja presença no Afeganistão serviu de pretexto à missão internacional no país, a seguir aos atentados de 11 de Setembro de 2001. Era também para devolver às mulheres o direito a sair à rua e às meninas o direito a estudar que as tropas foram enviadas para o país, diziam então George W. Bush e Tony Blair. Quando era ainda secretária de Estado de Barack Obama, Hillary Clinton repetiu essa ideia, defendendo que a missão internacional – que a partir de 2015 será extremamente reduzida – não pode deixar essa tarefa por cumprir. O direito à educaçãoNo momento deste Nobel, o mesmo extremismo, desta vez sob o nome de Estado Islâmico, tenta impor a sua visão de sharia (lei islâmica) na Síria e no Iraque, com dezenas de milhares de mulheres e meninas limitadas nos seus direitos ou vendidas como escravas sexuais. Há ainda a gigantesca crise de refugiados sírios – mais de nove milhões, um terço da população – e iraquianos, a fazer crescer o número de refugiados no mundo. Os ataques dos radicais islamistas do Boko Haram que têm visado muitas escolas na Nigéria (em Abril, raptaram 276 alunas de um liceu), também explicam este aumento. Ora, em média, metade dos refugiados são crianças, e muitos passam anos sem se sentarem numa sala de aula ou trocam a escola por tarefas que lhes permitam contribuir para o orçamento familiar. No final do ano passado, havia pelo menos 60 milhões de crianças que não iam à escola, 6, 5 milhões no Paquistão. “O Nobel é uma vitória para o direito à educação. Um direito em grave risco na MENA [Médio Oriente e Norte de África] onde as escolas são frequentemente atacadas ou usadas como quartéis”, comentou no Twitter Nadim Houry, responsável da Human Rights Watch para esta região. Este é, então, um Nobel para a educação e para a possibilidade de futuro. No caso de Malala, também para a coragem – já ameaçada de morte por falar em público contra as ordens dos taliban, continuou a fazê-lo e, naturalmente, a ir à escola. O ataque, a 9 de Outubro de 2012, que a deixou entre a vida e a morte, desfigurada e com a perna e o braço direito paralisados (várias cirurgias depois, resta uma paralisia parcial na face), aconteceu na carrinha de caixa aberta em que voltava da escola. Os dois atacantes feriram ainda duas crianças e deixaram a sua melhor amiga Moniba (que mantém uma cadeira vazia com o nome de Malala na escola), coberta de sangue.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte lei escola violência educação ataque mulher adolescente mulheres infantil
Poeta ganês Kofi Awoonor e três britânicos entre os mortos de Nairobi
A milícia islamista Al-Shabab atacou e ocupou um centro comercial na capital do Quénia. Há 59 mortos, quase 200 feridos e reféns. (...)

Poeta ganês Kofi Awoonor e três britânicos entre os mortos de Nairobi
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento -0.2
DATA: 2013-09-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: A milícia islamista Al-Shabab atacou e ocupou um centro comercial na capital do Quénia. Há 59 mortos, quase 200 feridos e reféns.
TEXTO: Uma unidade das forças especiais israelitas entrou este domingo no centro comercial de Nairobi que foi atacado por um comando islamista. Morreram 59 pessoas e há um número indeterminado de reféns. Os feridos são quase 200. "Os israelitas já entraram e vão em socorro dos reféns e dos feridos", disse uma fonte dos serviços de segurança quenianos à AFP. Ao início da tarde ouviam-se tiros no interior do edifício. O Governo queniano não explicou ainda se foi a seu pedido que Israel está a intervir. Uma porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita, Ilana Stein, disse que o ataque começou junto ao café e padaria ArtCaffe, propriedade de israelitas. Mas apenas um israelita foi atingido e tem ferimentos ligeiros, o que leva a crer que este ataque não está relacionado com Israel. As nacionalidades dos mortos e feridos ainda não foram devidamente apuradas, mas o Gana e o Reino Unido já confirmaram a morte de cidadãos. Um dos mortos é o poeta e diplomata ganês Kofi Awoonor, que estava no centro comercial com o filho, que ficou ferido, anunciou o governo do Gana. "Três britânicos morreram e tememos que oesse número aumente", disse também este domingo o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, William Hague. Sabe-se que entre os feridos há americanos, canadianos e franceses. Este centro comercial já tinha sido considerado pelos Estados Unidos uma zona de risco por ser o local de encontro da comunidade de diplomatas na capital queniana - e por ter um café israelita no rés-do-chão. Ao sábado, diz a Reuters, as lojas, os cafés gourmet e os restaurantes de sushi de Westgate estão cheios. O Quénia é o centro da diplomacia em África, sendo em Nairobi a sede africana das Nações Unidas e de outras organizações. Não tem sido poupado ao terrorismo. Em 1998 a Al-Qaeda matou mais de 200 pessoas ao fazer explodir um camião armadilhado junto à embaixada americana de Nairobi. E, em 2002, terroristas islâmicos atacaram o hotel Indian Ocean, propriedade de israelitas, e lançaram mísseis contra um avião de Israel. O ataque de sábado foi reivindicado - primeiro no Twitter, depois através da estação de televisão Al-Jazira - pela Al-Shabab, a organização armada islamista que actua na Somália (onde controla extensos territórios) mas tem feito incursões no Quénia. Tropas do Quénia participam na missão da União Africana na Somália e o Governo de Nairobi tem patrulhas em território somali que tentam evitar a progressão da Al-Shabab. A presença queniana na Somália foi condenada pela Al-Shabab que ameaçara com "duras" represálias. "O que o povo queniano vê em Westgate é a justiça punitiva pelos crimes cometidos pelos seus soldados", publicou a Al-Shabab no Twitter antes de encerrar a conta que estava a usar, no sábado à noite. "O Quénia não se deixa intimidar pelo terrorismo", disse o Presidente queniano, Uhuru Kenyatta, que afirmou ter perdido "membros da família" no ataque. O Departamento de Estado americano condenou o "acto de violência sem sentido que resultou na morte de mulheres, homens e crianças inocentes". A embaixada dos EUA em Nairobi disse estar em contacto com as autoridades e disponibilizou toda a ajuda necessária. A BBC avança que as autoridades estimam que so que ainda permanecem no interior do edifício se encontram em várias localizações, o que está a dificultar a operação de resgate. A polícia e os militares fizeram raides no Westgate e retiraram dezenas de pessoas que estavam escondidas nas lojas, mas a operação poderá estar ainda longe do fim. Algums meios de comunicação estavam a avançar que o comando islamista poderá ter-se refugiado, com reféns, dentro do supermercado. Algumas testemunhas disseram que os atacantes — que entraram no centro comercial depois de terem lançado granadas para o seu interior — tinham metralhadoras AK-47 e disseram aos muçulmanos para saírem, tendo começado a executar os não muçulmanos. Pouco depois do ataque, que teve lugar ao meio-dia local (10h em Lisboa), foram enviadas para o centro comercial as unidades de elite da polícia e do exército, apoiadas por helicópteros de combate. Do interior do centro comercial foram retiradas perto de mil pessoas.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
"Esta é a pior tragédia humanitária do mundo"
A maior seca dos últimos 60 anos afecta a Somália, o Quénia, a Etiópia, o Uganda e o Djibuti. "Há décadas que não vimos nada assim", contam os responsáveis das ONG no terreno. (...)

"Esta é a pior tragédia humanitária do mundo"
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 | Sentimento -1.0
DATA: 2011-07-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: A maior seca dos últimos 60 anos afecta a Somália, o Quénia, a Etiópia, o Uganda e o Djibuti. "Há décadas que não vimos nada assim", contam os responsáveis das ONG no terreno.
TEXTO: Sainab Yusuf Mohamed partiu com os filhos e calcorreou centenas de quilómetros à procura de ajuda. "Não tínhamos nada para comer". Quando chegou a Bardhere, no Sul da Somália, contou à Reuters que um dos seus filhos não resistiu. "Depois, quando estávamos a enterrar o seu corpo, o meu segundo filho também morreu". Não tinha nada, perdeu tudo à procura de alguma coisa. Fatuma também deixou a Somália, caminhou um mês com os quatro filhos, de três a dez anos, para tentar chegar a um campo no Quénia. Fez mais de 400 quilómetros e até levou as suas 15 cabras, mas viu-as morrer pelo caminho, uma a uma. "Estava muito calor, havia poucos abrigos", contou a um activista da Save the Children, que depois repetiu a história ao diário britânico Independent. "Deixei o meu marido, não sei se o volto a ver. " Sainab Mohamed e Fatuma arriscaram tudo para chegar a Dadaab, no Norte do Quénia, um campo preparado para receber 90 mil pessoas. Agora é o maior campo de refugiados do mundo, vivem lá 382 mil pessoas e a hemorragia está longe de estancar. Mais de 54 mil atravessaram a fronteira na Somália para procurar ajuda, só em Junho. Por cada dia chegam ao campo de Dadaab pelo menos 1400 pessoas, e outras 1700 pedem ajuda no campo de Dolo Ado, na Etiópia. Mais de metade das crianças que chegam estão subnutridas. Num só campo, escreveu ontem o Independent, estão a morrer 60 bebés por dia. Dos 7, 5 milhões de habitantes da Somália há 2, 8 milhões a precisar de ajuda urgente, segundo a ONU. A seca não é uma realidade estranha no Corno de África, mas este ano as chuvas de Abril e Maio chegaram tarde e foram um terço do habitual. É a pior seca das últimas seis décadas: afecta a Somália, Quénia, Etiópia, Uganda e Djibuti, 12 milhões de pessoas segundo as estimativas de organizações humanitárias, mais do que toda a população de Portugal. Os alimentos são poucos e o preço dos que existem disparou. Volta a falar-se de fome, muita fome. Tragédia inimaginável"É uma tragédia humanitária de proporções inimagináveis", disse o responsável do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), António Guterres, que na sexta-feira visitou um campo de refugiados somali na Etiópia. "Esta é hoje a pior tragédia humanitária do mundo. " "Há décadas que não vimos nada assim. Funcionários endurecidos por anos de trabalho choram perante o que vêem", afirmou ao Independent Louise Paterson, directora da organização não governamental britânica Merlin na Somália e no Quénia. Nos campos geridos pela ONU há cada vez mais dificuldades em garantir os apoios mais essenciais, como o acesso à água e a condições sanitárias. "Inúmeras pessoas" nem chegam aos campos porque morrem pelo caminho, segundo o ACNUR, e ao alerta de Guterres juntam-se os de diversas outras organizações humanitárias. Num comunicado conjunto, o Fundo da Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Programa Alimentar Mundial e a ONG Oxfam apelaram a um maior apoio para colmatar os efeitos da seca "que expõe milhões de homens, mulheres e crianças à devastação da fome e da subnutrição". "Mais de 50 por cento das crianças que chegam aos campos da Etiópia estão num estado crítico de subnutrição e temos cada vez mais informações de crianças que morrem de fome no trajecto", disse a porta-voz do ACNUR, Melissa Fleming. Outras chegam tão fracas que acabam por morrer nas primeiras 24 horas. Há zonas da Etiópia em que o preço do milho duplicou desde Maio, e na Somália chega a pagar-se mais 240 por cento pelo sorgo vermelho.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU