A moda e a música juntaram-se no último dia do Portugal Fashion
Mais de 34 mil pessoas passaram pelo evento de moda que esteve no Porto durante três dias. (...)

A moda e a música juntaram-se no último dia do Portugal Fashion
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mais de 34 mil pessoas passaram pelo evento de moda que esteve no Porto durante três dias.
TEXTO: No último dia da 43. ª edição do Portugal Fashion, “costurou-se” moda e música na passerelle da Alfândega do Porto, com modelos a desfilar coordenados Pé de Chumbo com Cuca Roseta a cantar ao vivo; e os Storytailors com a violinista Ian como que a orquestrar o desfile. Num dia dividido entre roupa, calçado e acessórios, que terminou com um divertido desfile de Júlio Torcato que fecha um ciclo de três décadas na moda. Na Alfândega do Porto, por onde passaram mais de 34 mil pessoas, a evocação ao fado começou logo no primeiro desfile do dia com Marta Marques e Paulo Almeida, da Marques'Almeida, com raízes em Londres, que fizeram desfilar vestidos de ganga com mangas balão, aplicações de franjas, saias pretas compridas e fluidas com folhos. O fado continuou mais ao final da tarde, com Cuca Rosetta no desfile de Alexandra Oliveira, da marca Pé de Chumbo, de Guimarães. A designer levou a desfile a colecção de Verão 2019 inspirada no desenho das palhinhas utilizadas no mobiliário, no ouro, nas formas e nas cores do Minho. Alexandra Oliveira apresentou coordenados com muita cor, feitos de seda, algodão e ráfia em texturas encorporadas que criam volumes ou leves e românticas. A designer vende para mais de 20 países. Umas horas antes, João Branco e Luís Sanchez, dos Storytailors, com banda sonora da violinista Ian ao vivo, apresentaram um desfile que foi pensado ao pormenor. “Quisemos espicaçar a imaginação das pessoas para que façam a sua própria interpretação do desfile”, diz João Branco. Os dois têm um registo de contadores de histórias com metáforas na passerelle. Para esta colecção "222", que surge na sequência das duas últimas, os designers inspiraram-se em “sinais que se lêem através da numerologia, de mensagens universais de boa fortuna, concretização”, acrescenta Luís Sanchez. Apresentaram tons pastéis rosas, brilhantes com linhas mais românticas e femininas, e outras peças com cortes que deixam revelar o corpo. Nuno Baltazar também se inspirou na música, mas de Ellis Regina e de Chico Buarque para apresentar "Tatuagem", uma colecção que é de "intervenção". "É também das mais difíceis que fiz até hoje”, desabafa por entre o frenesim dos bastidores no final do desfile. Inspirou-se na forma como os artistas reagiram à censura no Brasil. “Tudo o que está na colecção está por um motivo”, diz enquanto aponta para os cintos que os modelos levam na cintura em alusão à “censura que segurava o artista no Brasil”. O designer fez desfilar contrastes de tecidos muito estruturados, telas de algodão muito duras por oposição a tecidos leves, e ainda sedas muito luminosas com cores vibrantes. A mudança de loja para a Rua do Bolhão, na Baixa do Porto, em Junho deste ano, trouxe-lhe mais vendas, sobretudo de turistas. “Está a correr muito bem. É um Porto mais moderno, com mais energia, diferente”, descreve. E a loja online esta prestes a funcionar. Também Katty Xiomara se inspirou na arte, mas de três mulheres: a pintora Carmen Herrera, a designer gráfica Paula Scher e a arquitecta paisagista Bárbara Stauffacher. A designer levou à passerelle a colecção "BeBold" com detalhes, estampados vibrantes, contrastes de cor, aplicações e bordados e volumes. Luís Buchinho também levou a arte mas japónica, inspirou-se nas gravuras Gyotaku, um método japonês de gravura de peixes. “Surgiu no século XIX e era uma maneira dos pescadores registarem os seus troféus e depois, mais tarde, houve intervenções de artistas”, conta o designer ao PÚBLICO. Conseguiu, então, um efeito de brilho metálico semelhante ao das escamas de peixes com coordenados plissados e enrugados. O criador fez desfilar saias com estampados Gyotaku, calças de cintura alta com riscas em cores contrastantes e molas de pressão nas carcelas laterais e vestidos de Jersey. É precisamente o mercado asiático que tem mais peso nas vendas internacionais, como Tóquio, Hong-Kong e Pequim. Ainda que venda tanto em Portugal como no exterior. Já Luis Onofre fez desfilar a colecção de calçado que levou a Milão, mas com algumas alterações de cores só para o desfile de 36 modelos, dos quais seis foram masculinos. “Vermelho é o tom da estação, depois fui buscar uma tendência mexicana e inspirei-me numa concha rara do México que os Incas usavam muito para bijuteria”, conta. Com fivelas de cowboy cobertas de cristais, entre outros materiais. Um destes modelos pode custar entre 100 e 600 euros. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A noite terminou com um desfile muito animado de Júlio Torcato que quis comemorar 30 anos de carreira de forma diferente, “não num formato de uma colecção para a estação convencional”, explica enquanto mostra os coordenados que pediu 30 pessoas de várias áreas modificarem. Desde os gémeos Guedes, que pintaram dois casacos com graffitis, até Mário Matos Ribeiro, fundador da ModaLisboa. O Portugal Fashion é organizado pela Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) e é cofinanciado pelo Portugal 2020. Contou com a presença do novo secretário de Estado da Defesa do Consumidor, João Torres, que reforçou a importância da iniciativa para reforçar a indústria da moda. E que “mostra ao mundo o trabalho que é feito no país” nesta área, diz ao PÚBLICO.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
Jóias de Elizabeth Taylor vendidas por 87 milhões, quatro vezes acima do valor de licitação
A sua paixão por jóias sempre foi conhecida e até muitas vezes criticada. A actriz Elizabeth Taylor, que uma vez disse que a mulher só precisava de diamantes para ser feliz, tinha uma colecção única de diamantes, pérolas, esmeraldas, rubis e safiras; anéis, brincos, colares, broches e tiaras. A Christie’s levou a colecção à praça na terça-feira em Nova Iorque e, tudo junto, estava avaliada em mais de 30 milhões de dólares (21,2 milhões de euros) mas no leilão rendeu 116 milhões de dólares (87,6 milhões de euros), estabelecendo um recorde. Nunca nenhuma colecção tinha atingido um valor tão alto. (...)

Jóias de Elizabeth Taylor vendidas por 87 milhões, quatro vezes acima do valor de licitação
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-12-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: A sua paixão por jóias sempre foi conhecida e até muitas vezes criticada. A actriz Elizabeth Taylor, que uma vez disse que a mulher só precisava de diamantes para ser feliz, tinha uma colecção única de diamantes, pérolas, esmeraldas, rubis e safiras; anéis, brincos, colares, broches e tiaras. A Christie’s levou a colecção à praça na terça-feira em Nova Iorque e, tudo junto, estava avaliada em mais de 30 milhões de dólares (21,2 milhões de euros) mas no leilão rendeu 116 milhões de dólares (87,6 milhões de euros), estabelecendo um recorde. Nunca nenhuma colecção tinha atingido um valor tão alto.
TEXTO: Elizabeth Taylor pode ter trocado várias vezes de marido, casa e carros mas nunca de jóias. A colecção foi aumentando ao longo dos anos e em nenhuma estreia de um filme, cerimónia, festa de caridade, entrega de prémios, aniversários ou até mesmo nos seus oito casamentos, a actriz apareceu sem um conjunto de jóias, na maior parte das vezes bem vistosas. Quase todas as peças leiloadas superaram em muito os valores previamente estimados. A grande estrela do leilão foi o colar do século XVI conhecido como “La Peregrina” e que foi arrematado por 11, 8 milhões de dólares (8, 9 milhões de euros). O colar decorado com rubis, diamantes e pérolas perfeitamente simétricas tinha um preço inicial de 2 milhões de dólares (1, 5 milhões de euros). Apontado como uma das peças mais cobiçadas do leilão, o anel de diamantes com um aro em platina de 33 quilates, avaliado em 2, 5 milhões de euros, oferecido em 1968 por Richard Burton a Elizabeth Taylor, foi vendido por 8, 8 milhões de dólares (6, 6 milhões de euros). O anel que Richard Burton, apelidado de o grande amor da vida da actriz, com quem se casou duas vezes, comprou num leilão em 1968, pertenceu inicialmente a Maria I de Inglaterra e depois às rainhas espanholas Margarita e Isabel. Segundo a leiloeira, o licitador da peça é um coleccionador privado asiático. O diamante Taj Mahal, também oferecido por Richard Burton quando Elizabeth Taylor fez 40 anos, foi comprado por 8, 8 milhões de dólares (6, 6 milhões de euros), um recorde para uma jóia indiana. O primeiro lote a ser leiloado foi uma pulseira de ouro com pedras preciosas que foi à praça por 35 milhões de dólares (26 milhões de euros) e foi arrematada por 270 milhões de dólares, aproximadamente 204 milhões de euros, dando desde logo um indicativo muito positivo para o leilão. Minutos depois, um colar de marfim e ouro superou em mais de 100 vezes o valor inicial estimado de 1500 dólares (1132 euros) ao ser comprado por 314, 5 mil dólares (237, 5 mil euros). Uma pulseira de diamantes oferecida por Michael Jackson, amigo próximo da Taylor, foi leiloada por 600 mil dólares (453 mil euros), quando o preço inicial estimado era de 30 mil dólares (22, 6 mil euros). Ainda o leilão não ia a meio quando vários recordes já tinham sido batidos, incluindo o da colecção completa, que pertencia à coleccçao da Duquesa de Windsor, leiloada em Genova em 1987 por 50 milhões de dólares (37, 7 milhões de euros). O anterior recorde de uma só jóia vendida em leilão pertencia às Pérolas de Baroda, arrematadas em 2007 por 7, 1 milhões de dólares (5, 4 milhões de euros). Marc Porter, da Christie’s, disse à BBC que o leilão “foi um dos mais extraordinários de sempre”, definindo-o como uma “prova de amor mundial a Elizabeth Taylor”, que não foi esquecida durante todo o leilão que contou com várias ovações. Elizabeth Taylor, que morreu em Março deste ano aos 79 anos, já tinha expressado em vida que quando morresse desejava que os seus preciosos acessórios fossem leiloados. No seu livro de 2002, intitulado “My Love Affair With Jewellery”, onde fala sobre a sua paixão por jóias, a actriz escreve que nunca olhou para as suas jóias como troféus. “Estou aqui para tomar conta delas e amá-las. Quando eu morrer e elas forem leiloadas, espero que quem as compre lhes dê uma boa casa. ”Antes do leilão desta terça-feira em Nova Iorque, as jóias foram expostas em Moscovo, Londres, Los Angeles, Dubai, Genebra, Paris e Hong Kong. O leilão continua esta quarta-feira com a colecção de roupa de alta-costura da actriz, onde estão incluídos os dois vestidos do casamento com Burton, assim como vários vestidos Pucci, Versace e Christian Dior, especialmente criados para Elizabeth Taylor.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
O segredo de José Luís Peixoto
"Em Galveias, numa vila com cerca de mil habitantes no interior do Alto Alentejo, havia uma pessoa muito preocupada com a morte de Kim Jong-il, em Pyongyang." Essa pessoa era o escritor José Luís Peixoto, que em Dezembro de 2011, quando o líder norte-coreano morreu, já estava com viagem marcada para o país mais fechado do mundo. Em Abril de 2012, partiu. "Viajar é interpretar", escreveu. Mas a ficção sobre o que viu, a acontecer, ficará para mais tarde, como contou à revista 2. Agora, publicou o seu primeiro livro de viagens: Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Outros "igualmente inesperados" virão (...)

O segredo de José Luís Peixoto
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2012-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: "Em Galveias, numa vila com cerca de mil habitantes no interior do Alto Alentejo, havia uma pessoa muito preocupada com a morte de Kim Jong-il, em Pyongyang." Essa pessoa era o escritor José Luís Peixoto, que em Dezembro de 2011, quando o líder norte-coreano morreu, já estava com viagem marcada para o país mais fechado do mundo. Em Abril de 2012, partiu. "Viajar é interpretar", escreveu. Mas a ficção sobre o que viu, a acontecer, ficará para mais tarde, como contou à revista 2. Agora, publicou o seu primeiro livro de viagens: Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Outros "igualmente inesperados" virão
TEXTO: O que pode querer dizer um estrangeiro acabado de chegar a Pyongyang a um cidadão norte-coreano? Um guia de conversação comprado num hotel da capital dá umas pistas. Não basta aprender a dar os bons-dias. Considera-se que pode ser útil algo como: "Proponho um brinde à vida longa e à saúde do líder Camarada Kim Jong-il. " Ou: "Quero começar por visitar a estátua de bronze do Camarada Kim Il-sung para exprimir as minhas condolências. " E quem não sentirá vontade de partilhar que "Pyongyang é limpa e bela e parece ter as melhores condições de habitação do mundo"? Ou talvez algo politicamente correcto à luz do regime local: "Os Estados Unidos têm de sair do Sul da Coreia. Não têm quaisquer fundamentos para permanecer no Sul da Coreia. "De facto, para quê aprender a perguntar onde é o restaurante mais próximo se o mais que certo é o guia ter tratado disso, e de tudo o resto. A Coreia do Norte não é um local onde um turista (fará sentido esta palavra num sítio como este?) possa simplesmente ir à procura de um restauranteonde lhe apetece comer, ou decidir o que pretende fazer no resto da tarde. De qualquer forma, José Luís Peixoto não se ocupou de frases apologéticas. Não foi para isso que o escritor português atravessou meio mundo. Ou melhor: se calhar até foi, mas não para as decorar e repetir. Há muito tempo que queria ver uma ditadura de perto. Isto foi em Abril. O escritor ainda não tinha regressado e já começara a escrever o livro Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Não costuma tirar tantas notas, mas desta vez encheu praticamente três blocos. Esta semana, em Lisboa, numa sala de reuniões da sua editora, a Quetzal, José Luís Peixoto conversa com a revista 2, sem pressas. Acabou de chegar da Índia - Goa e Bombaim - mas a entrevista obriga-o a voltar agora à Ásia Oriental e àquela experiência de há meses, quando viu de perto um "país muito extraordinário". Antes de qualquer mal-entendido, convém talvez citá-lo a partir do seu livro e esclarecer:"1 - Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras. 2 - Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras. "Não tinha a ilusão de que iria escapar à realidade que tinha sido encenada para si e para os outros membros do grupo formado para a visita a que a Koryo Tours (que organiza viagens através de Pequim) chamou de "Kim Il-sung 100th Birthday Ultimate Mega Tour". Mega tour porque as visitas são normalmente de uma semana, no máximo, e esta era de 15 dias. Foi um momento de celebração em grande, em mega, por causa, precisamente, dos 100 anos do nascimento de Kim Il-sung, o fundador da nação. Entremos então nesse "país extraordinário", onde a separação entre a realidade e a ficção é uma linha marcada a régua, pelas mãos do poderoso departamento de Propaganda do regime agora chefiado por Kim Jong-un. A menina Kim guiou José Luís Peixoto, o escritor irá agora guiar-nos a nós. "Há uma encenação grande para quem visita, mas há uma encenação maior para quem está lá. Essa é que é a grande encenação ali. Porque aquelas pessoas vivem num país completamente fechado e é tarefa do Estado criar uma ideia sobre todo o mundo que existe lá fora, não é?"Essa tarefa obriga a que telemóveis fiquem na fronteira dentro de um saco de plástico (e em Pyongyang as chamadas para falar com os filhos, em Lisboa, custaram-lhe seis euros por minuto), tal como livros (transgrediu e levou o D. Quixote de La Mancha na bagagem) e outros objectos que possam veicular informação ocidental, num país onde apenas um grupo muito restrito tem acesso à Internet. "As pessoas não têm sequer noção do que é a realidade fora da Coreia do Norte. Por exemplo, não têm qualquer acesso a música que não seja aquela música, que é muito limitada [descreve no livro o género que celebra o regime, o Taejung kayo, em que as canções têm títulos como Iremos seguir-te para sempre; O general é nosso pai e Defenderemos o General Kim Jong-un com as nossas vidas]. Nasceram sem esse acesso e nem concebem que exista outro tipo de música. Nem concebem que existe outra realidade. "A carrinha dos visitantes estrangeiros atravessou o país: de Pyongyang à Zona Desmilitarizada (que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul, num corredor de alta tensão que atravessa toda a península coreana); de Kaesong (também no Sul), onde foi servida uma refeição pouco habitual ("Não é agradável roer ossos de cão"), a Hamhung (a segunda cidade do país) e Pujon, o ponto mais a norte do percurso. Passou ainda por Nampo para visitar a siderurgia Chollima, Sariwon e Wonsan. Pelo caminho formam-se imagens dos campos extensos, cultivados graças à mão-de-obra de centenas e centenas de pessoas agachadas, com pequenos utensílios. E de fábricas a cuspir fumo, com maquinaria pesada e a precisar ainda assim de trabalho humano duríssimo. "Aquela população está num tempo fora deste tempo", diz à revista 2. Realidade em forma de romance"É uma realidade que vem já quase com a forma de um romance, muito delimitada, com personagens-tipo muito caracterizadas: o militar, o guia, a criança pioneira", conta-nos o escritor. "Às vezes andamos numa aldeia do interior [de Portugal] e nem nos apercebemos dos elementos exteriores que ela recebeu. Na Coreia do Norte isso não acontece. Isso faz com que se viva sob uma realidade própria, estagnada. A ignorância do mundo ali sente-se em tudo. Todos os elementos foram pensados. . . Os melhores atletas da Coreia do Norte são os melhores atletas do mundo, porque a Coreia do Norte é tudo o que há. É muito pobre esse imaginário. Os elementos são sempre os mesmos. "A máquina é poderosa e mesmo os muito poucos que viajaram para o exterior não deixam de acreditar no seu Governo. José Luís Peixoto falou com guias que já tinham estado na Europa. "Algumas pessoas consideram que a Coreia do Norte é mais organizada, que existe uma vida melhor. Não sei até que ponto não se obrigam a elas próprias a ignorar uma quantidade de coisas que são a vida real daquele país. Mas é um facto que essas pessoas apontam algumas questões que são muito más, que existem na nossa sociedade e que não existem ali. Como as crianças ou as mulheres andarem sozinhas na rua, à noite, com medo de serem assaltadas ou agredidas sexualmente. Na Coreia do Norte não há essa possibilidade. As pessoas não têm esse medo. "Ali, há razões para fazer a apologia do regime: "A ignorância e a sobrevivência. Ninguém pode apontar o dedo a quem tenta sobreviver, a quem tenta que aqueles que ama sobrevivam. Isso é o que todos fazemos. " E assim como os norte-coreanos "tomam como absolutamente adquirido toda aquela informação que recebem pelas fontes do Estado e da propaganda, eu acho que nós, neste lado do mundo, também tomamos por garantido uma série de informação que recebemos e que se calhar não é tão garantida assim. Todos nós não podemos duvidar de tudo em todos os momentos. Temos de ter a segurança de acreditar em alguma coisa". São muitos os mecanismos de isolamento do "Reino Eremita". Não basta impedir a entrada de telefones ou rádios. O escritor conta-nos uma história. "Fomos aconselhados a dar um presente aos guias que falasse do nosso país. Eu levei duas garrafas de vinho do Porto. Mas avisaram-nos muito sobre as características que esse presente deveria ter: bebida, cigarros ou alguma coisa que se pudesse consumir. Houve um alemão que não sei bem o que é que deu, mas sei que o embrulhou em jornais alemães. No dia seguinte, os guias estavam completamente alterados e a devolver-lhe os jornais e a dizer para ele os levar porque eles não podiam aceitar aquilo. Os jornais, que eram o papel do embrulho. Eram jornais banais, mas esse tipo de coisas são muito ameaçadoras. "É a Propaganda que escolhe o que os norte-coreanos devem conhecer do exterior e por isso "não há verdadeiramente um conhecimento do que é o mundo fora dali. . . Quando existe alguma coisa estrangeira, é muito controlada e muito folclórica. Como, por exemplo, as danças russas. E diz-se às pessoas: "Isto é como eles se divertem na Rússia"". Sociedade militarizadaTambém é a Propaganda que escolhe o que os estrangeiros podem conhecer do país. A menina Kim, a guia desta Mega Tour, é praticamente a única voz norte-coreana do livro - sempre para lembrar os limites e as regras. Quase como se não fosse necessária outra, porque sabemos de antemão que as falas iriam ser, muito provavelmente, as mesmas - inventadas não pelo escritor, que neste livro foi fiel à realidade (já lá iremos), mas pelo regime para serem repetidas à exaustão. Museus, monumentos, locais sagrados (ou seja, relacionados com algum aspecto da vida dos grandes e queridos líderes), fábricas, montanhas e aldeias - tudo faz parte dessa grande narrativa chamada República Popular Democrática da Coreia, onde o questionamento, a existir, está totalmente silenciado. Por isso, talvez, também teve medo: quando no final, o guarda da fronteira quis ver as fotografias que tirou durante a viagem (". . . tive medo que o meu coração se ouvisse a bater", descreve) e quando no hotel Yanggakdo ("o melhor hotel de Pyongyang", com mais de mil quartos, segundo o folheto) o chamaram à recepção depois de um telefonema para Portugal. Afinal, era só uma camisola esquecida na cabine telefónica. É uma sociedade onde a ordem é uma palavra cheia e o Exército é omnipresente. "Vêem-se militares em todos os lugares, sempre, constantemente. Uma em cada cinco pessoas é militar. " É ameaçador? "Não, por ser tão presente. Eles estão muito mal apetrechados, a maior parte não tem qualquer espécie de arma, a única coisa que tem é o uniforme. Mas mesmo os civis muitas vezes se confundem com os militares pelas roupas: muitas vezes são muito próximas de um uniforme militar; e os militares também fazem muitos trabalhos civis. Na televisão há sempre a glorificação dos militares, mesmo as crianças que estão a saudar os militares quando eles passam no desfile, vê-se que elas aspiram a ser militares um dia. Não são uma força que seja sentida como opressiva pelas populações. Na verdade, essa opressão nunca se sente directamente. Nunca ninguém chama a atenção de ninguém sobre nada porque as pessoas entram nos museus a marchar, em filas organizadas. A própria movimentação das pessoas em todos os momentos é sempre muito alinhada. . . Estão sempre muito compostas. "Mais impressionante ainda é o culto cego da personalidade que se dedica aos chefes de Estado. "Tem uma repercussão no quotidiano em aspectos tão prosaicos para um visitante como a impossibilidade de dobrar um jornal com a imagem do líder, ou tirar fotografias onde fiquem cortadas algumas partes do corpo dos líderes. Têm de ser sempre fotografados de corpo inteiro", diz-nos José Luís Peixoto. "São aspectos que são de uma característica que ali é vivida de uma forma muito intensa: a absoluta impossibilidade de pôr minimamente em questão as capacidades e as qualidades sobre-humanas dos líderes. " E por líderes entenda-se a dinastia Kim, ou seja, Il-sung, o Eterno Líder, Jong-il, o Querido Líder, e agora o neto e filho, Jong-un, o Líder Supremo. O culto não se limita a inventar um milagre como o arco-íris duplo que apareceu no monte Paektu no dia em que Kim Jong-il nasceu. Nem aos retratos dos dirigentes, que são os únicos possíveis nas paredes de casa dos norte-coreanos. Ou às flores baptizadas com os seus nomes - "Cheirei as kimilsunguias e as kimjonguilias. Não cheiram a nada", lê-se no livro. Está em todos os momentos da vida pública - e privada - da população. Nos emblemas com as caras de Kim Il-sung ou (e) Kim Jong-il que têm de levar ao peito cada vez que saem de casa. "Não conheço religiões tão vividas como aquele culto. Não há nenhum escape. O culto aos líderes é total. "Como a sopa da mãeEm todo o caso, os movimentos de um ocidental não são tão controlados como o escritor previu. Ainda que a regra de não se poder andar sozinho na rua seja "de ferro, de pedra ou de qualquer outro material de rigidez sem apelo", escreveu. Tirou mais fotografias do que seria seguro e transportou sempre o D. Quixote de La Mancha. "O D. Quixote era um pouco como comer a sopa da minha mãe: encontro palavras que a minha mãe usa corrompidas. Para não falar de todos os paralelismos que é possível traçar: a encenação e a alucinação. É uma questão que colocamos a nós próprios - isto parece mesmo real. Mas a realidade é discutível. Depende muito dos sentidos e os sentidos não são nada objectivos. Dependem de coisas como bebermos a água choca do poço do Kim Il-sung" - que a guia assegurou que fortalecia o espírito, mas que ao escritor estragou algumas partes da viagem. "Esperava na verdade menos liberdade e menos contacto com as pessoas do que aquele que tive", continua. "Houve conversas interessantes (com os guias de museus, às vezes um ou outro falava inglês), que nem incluí no livro, sobre aspectos mais ligados à vida [quotidiana]: como conhecem alguém e se casam, ou sobre os rituais da morte, os funerais. Mas mesmo esse diálogo é muito oficial. A verdade é que se notava sempre a preocupação de não ficar mal na fotografia, sempre a preocupação de dizer que a Coreia é um país extraordinário, que as pessoas vivem muito bem. "Também não sentiu que houvesse ordens expressas para a população não se relacionar com os visitantes. Pôde emocionar-se com "o cuidado dispensado às crianças", lê-se. "Essa ternura, repetida ao longo dos dias, amenizava bastante outros aspectos da paisagem. Não é quantificável, como o Produto Interno Bruto, o número de médicos por mil habitantes, mas acredito que é igualmente uma marca de desenvolvimento civilizacional. "De volta à conversa em Lisboa: "O que eu senti é que há uma barreira enorme, que é a língua. Mas essa barreira existe na maioria dos países asiáticos. Depois, também existe o pouco hábito de contacto com os estrangeiros, o que faz com que os estrangeiros sejam muito olhados, olhados de uma forma que se sente que é curiosa e às vezes amedrontada. Mas também há uma coisa interessante: eu cheguei ontem da Índia, que é um lugar onde as mulheres têm às vezes aqueles brincos enormes, e todos aqueles adornos, e andava muita gente a ver-me as orelhas e os piercings e as tatuagens. Na Coreia do Norte, fui com camisolas de manga comprida e considerei tirar os piercings (embora não o tenha feito) porque achava que podia ser um motivo de mais estranheza e mais distância. Na verdade, cheguei lá e percebi que só o facto de ser estrangeiro já era distância suficiente. Não havia nada que fizesse com que essa distância fosse maior. Inclusivamente, havia pessoas que participaram nessa viagem que eram de outras raças, que à partida podiam causar uma estranheza maior, com tons de pele mais escuros, e isso não se notava. A estranheza era igual. E depois havia estranheza perante coisas que se calhar não tínhamos pensado, como por exemplo peso a mais. Qualquer pessoa com um pouco mais de peso era muito estranha ali porque na Coreia do Norte toda a gente é muito magra. . . [Os líderes] são um pouquinho anafados, mas na rua não se encontra uma única pessoa que tenha um pneu! Toda a gente é mesmo muito magra. Também se pode fazer todo o tipo de especulações acerca disso. A especulação de que a alimentação não é a melhor, na minha opinião, é justificada. Mesmo não andando atrás das pessoas a ver o que elas comem, dá para perceber que a alimentação é muito má. . . Existem carências grandes. "Logo no início do seu relato, José Luís Peixoto escreve que "talvez a decisão de visitar a Coreia do Norte tenha nascido do desejo de estar num lugar onde nenhuma pessoa tivesse a minha aparência. Ou talvez não". No fim, foi precisamente isso que o extenuou. Assistiu ao fogo-de-artifício das celebrações do aniversário de Kim Il-sung, a 150 metros de distância das outras pessoas do seu grupo, sentindo-se um "norte-coreano": "Depois de ser tão apontado e de me sentir tão estranho, sempre tão diferente, tive ali um descanso. Aquele alívio de por um momento não ser notado foi tão grande que senti que voltei a ser uma pessoa como as outras, que eram as que me estavam a rodear e que eram norte-coreanas", explica-nos. Nota-se esse cansaço. José Luís Peixoto assume-o. "Tinha uma epifania quase diária: estou na Coreia do Norte!. . . A primeira metade, vivia-a com grande entusiasmo, a segunda como uma condenação. Foi curioso que a partir de certa altura o objectivo de liberdade se tornasse a China [a ponte para chegar e partir da Coreia do Norte]. Ansiava por poder andar sem ter alguém atrás de mim, escolher o que ia comer, telefonar a quem eu quisesse, mandar mensagens. Sentia saudades de coisas como a publicidade. "Mais perto do jornalismoComo já dissemos: José Luís Peixoto ainda não tinha deixado a Coreia do Norte e já começara a escrever Dentro do Segredo - continuou depois em jornadas de trabalho de 15 horas no Brasil, EUA, Macau; e enviou o livro à editora a partir de Toronto (Canadá). Tinha feito várias leituras antes, tirado muitas notas durante. E desta vez, pela primeira vez, a sua escrita recorreu-se de outros elementos. "As fotografias e os pequenos vídeos que fui fazendo foram muitíssimo úteis" - "uma forma de tirar apontamentos", diz. Porque precisava de ter a certeza de que tudo o que estava a escrever correspondia ao que tinha visto. Porque sentiu a necessidade de se "aproximar do jornalismo", sobretudo da crónica. "Foi uma experiência diferente, que me deu um trabalho diferente de escrita. Se digo que o comboio era de uma determinada cor, ele era mesmo dessa cor. Num romance posso dizer que o comboio é azul porque na verdade não existe comboio. "Talvez o surrealismo deste país dispense a ficção. Ou talvez esta ainda não esteja totalmente afastada. "Posso algum dia tentar fazer. " Por enquanto, a realidade que estava à frente dos seus olhos pedia outra coisa. "Era muito importante que o texto tivesse um carácter documental, sério. Pelo tema e por aquilo que me propunha retratar. . . Nunca se tem completamente a noção do que é a verdade e do que está realmente a acontecer, porque existem versões antagónicas, e ambas às vezes parecem falhar, num ponto ou noutro. Quando colocamos alguma coisa em causa, depois sentimos a tentação de colocar tudo em causa. Por isso, muitas vezes sinto que aquela história não está completamente bem contada. A minha tentativa foi de a contar, mas apercebi-me claramente de que não estava a contar a história final e que certamente haveria muitos equívocos da minha parte. " "Não tive acesso a informação que permitisse acrescentar alguma coisa, mas senti que não havia esse livro: como é estar lá? Foi isso que me levou à Coreia do Norte. "Houve outras. "A necessidade de me afastar de mim próprio enquanto tema" para falar de uma realidade exterior. Em todo o caso, usa a primeira pessoa. Talvez nem fizesse sentido ser de outra maneira, num local onde o confronto com o outro, que passa a ser o estrangeiro, visitado pelo leitor, é tão brutal. "Também é cansativo esse confronto. Não há fuga. "A escrita também saiu do seu processo habitual porque foi espoletada pela viagem, sabendo de antemão que era isso mesmo que iria acontecer. "Vivia aquela experiência de estar lá sabendo que iria escrever sobre ela, e quando voltei, escrevi. O livro foi surgindo, mas eu tinha a intenção à partida de escrever sobre a Coreia do Norte. "Dentro do Segredo será apenas um pequeno fragmento de uma realidade para a qual não existe uma só verdade. "Eu tenho uma vivência desse país que é muito intensa e muito importante para mim, marcante, e que está expressa no livro. No entanto, não é a única, e tenho a certeza de que há muitas histórias para contar e por contar. É um país absolutamente fascinante, apesar de toda a crueldade que encerra e que me parece que é muito evidente. "No final, o escritor dirige-se a um futuro e hipotético leitor norte-coreano. Em coreano. Tradução, por favor: "Digo-lhe que aquilo que ali está é aquilo que eu pude saber neste momento e que ele está numa posição, sob um certo ponto de vista, privilegiada para saber algumas coisas mais do que eu. Mas sob outro ponto de vista, vai ter um conhecimento diferente do meu. " Ou seja, o escritor que visitou a Coreia do Norte em Abril de 2012 ajudará a completar a imagem. "Essa questão pode ser transposta para aqui, para este preciso momento: nós não temos distanciamento para fazer um retrato completo desta sociedade, onde a informação circula de forma diferente e onde às vezes nos parece que temos informação a mais, porque a [falta de] distância não nos permite ter uma perspectiva. Daqui a 50 anos possivelmente vamos ter essa perspectiva, mas vai-nos faltar o cheiro, o contacto directo dos sentidos. Neste livro, em muitos momentos, tenho a preocupação de dizer que foi assim em 2012; não porque eu ache que ele vai ser lido daqui a séculos, mas porque acredito que é um livro marcado no tempo e daqui a dez anos a situação naquele país vai ser certamente diferente, aquilo que se vai saber vai ser certamente diferente, e vamo-nos surpreender com isso. "Também nos iremos surpreender com aquilo que está para vir de viagens futuras, assegurou. "A obra total de um autor pode ser comparada a uma obra mesmo, a uma construção. Este livro abriu uma nova ala. Tenho a intenção de escrever outros livros de viagem. As crónicas [que escreve para a revista Visão] têm sido importantes. Necessariamente torno-me uma personagem. A partir deste livro, o eu já está caracterizado. "Texto publicado na Revista 2 de 18 de Novembro de 2012
REFERÊNCIAS:
Vietname: Os filhos do pó
Há 40 anos saía da antiga Saigão o último contingente militar americano. Para trás ficava um país com as marcas da guerra e muitos filhos, conhecidos como “bui doi”, “filhos do pó”. (...)

Vietname: Os filhos do pó
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 40 anos saía da antiga Saigão o último contingente militar americano. Para trás ficava um país com as marcas da guerra e muitos filhos, conhecidos como “bui doi”, “filhos do pó”.
TEXTO: Os filhos abandonados pelos soldados americanos no Vietname cresceram com o inimigo no rosto, foram ostracizados, muitos acabaram nas ruas como sem-abrigo. Uma americana-asiática criou a Operação Reunificar e acredita que testes de ADN podem ser a última esperança para juntar pais e filhos. Mas nem todas estas histórias têm um final feliz. PUBVo Huu Nhan estava no seu barco a vender legumes no mercado flutuante no delta do rio Mekong quando o telefone tocou. A pessoa que lhe ligava dos Estados Unidos tinha uma notícia estrondosa para lhe dar: uma base de dados de ADN ligava Vo Huu Nhan a um veterano da guerra no Vietname que poderia ser o seu pai. Nhan, de 46 anos, sabia que o pai tinha sido um soldado americano, que se chamava Bob, mas pouco mais. “Estava a chorar”, lembrou-se recentemente Nhan. “Ao longo de 40 anos, não soube nada do meu pai, e estive finalmente com ele. ”Mas o caminho para a sua reconciliação não tem sido fácil. Os resultados positivos do teste de ADN desencadearam uma cadeia de acontecimentos que envolviam duas famílias separadas por 14 mil quilómetros e a doença do veterano, Robert Thedford Jr. , vice-xerife reformado do Texas, tem dificultado o processo. Quando o último contingente militar americano deixou a antiga Saigão — actual Cidade de Ho Chi Minh — entre 29 e 30 de Abril de 1975, deixou também um país com as cicatrizes da guerra, um povo sem saber do seu futuro e milhares de filhos. Estas crianças — metade negras, metade brancas — foram fruto de ligações amorosas com empregadas de bar, com “hooch” (como eram conhecidas as vietnamitas que limpavam as instalações militares americanas), com engomadeiras e com as mulheres que enchiam os sacos de areia que protegiam as bases americanas. Chegam agora à meia-idade com histórias tão intricadas como as dos dois países que lhes deram vida. Cresceram com o inimigo no rosto, foram cuspidas, ridicularizadas, sovadas. Foram abandonadas, enviadas para longe para viverem com outros membros das famílias ou vendidas como mão-de-obra barata. As famílias que ficavam com estas crianças eram muitas vezes forçadas a mantê-las escondidas e a raparem-lhes os cabelos louros ou os caracóis que as denunciavam. Algumas foram enviadas para programas de reeducação em campos de trabalho forçado ou acabaram como sem-abrigo a viver nas ruas. Eram conhecidos como “bui doi”, o que significa “filhos do pó”. Quarenta anos depois, muitos continuam no Vietname, demasiado pobres ou sem qualquer prova que lhes permita candidatarem-se ao Amerasian Homecoming Act, uma lei de 1987 que deu estatuto de imigrante americano aos filhos de soldados americanos. Agora, um grupo de americano-asiáticos (amerasian, na expressão inglesa que resulta da fusão das palavras “americano” e “asiático”) acaba de se lançar numa última tentativa para reconciliar pais e filhos com o apoio de uma nova base de dados de ADN num site de genealogia. Os que ficaram para trás têm pouquíssima informação sobre os seus pais — a maioria da documentação e das fotografias foram queimadas sob o regime comunista e as memórias foram sendo apagadas. É por isso que a única esperança está nos testes de ADN. É Primavera na Cidade de Ho Chi Minh. As árvores de alperce, símbolo do Festival de Primavera de Tet (que marca o início do calendário lunar), estão em flor. Um sem-fim de motociclos serpenteia entre o tráfego automóvel. Lojas de moda como a Gucci cintilam ao lado de cadeias de restaurantes da KFC. Pouco ou nada resta da presença americana do passado, excepção para um helicóptero enferrujado no pátio do museu dedicado à glória comunista. Mas os segredos de família estão enterrados como minas terrestres. A instrutora de Pilates de New Jersey Trista Goldberg, de 44 anos, orgulha-se de ser americano-asiática e é a fundadora da associação Operation Reunite (Operação Reunificar). Em 1974, foi adoptada por uma família americana e em 2001 descobriu a sua mãe biológica. Há duas primaveras reuniu 80 pessoas para fazerem testes de ADN numa casa na Cidade de Ho Chi Minh. Assim, Trista espera conseguir completar o processo de 400 pessoas que ainda têm pendentes as suas candidaturas a um visto americano. “Bastava uma reviravolta do destino e também eu seria uma dessas pessoas deixadas para trás”, diz. Mais de 3 mil órfãos vietnamitas foram retirados do caos que se viveu nos últimos dias da guerra. A vida mudou com a lei de 1987, que permitiu a 21 mil americano-asiáticos e mais de 55 mil membros das suas famílias ficarem nos Estados Unidos. Os “filhos do pó” tornaram-se de repente “filhos de ouro”. Houve vietnamitas com posses a comprar americano-asiáticos para logo a seguir os abandonar mal chegavam aos Estados Unidos, diz Robert S. McKelvey, antigo marine e psiquiatra infantil, autor de The Dust of Life: America’s Children Abandoned in Vietnam (numa tradução literal “Os Filhos do Pó: As Crianças da América Abandonadas no Vietname”). Foi em parte por causa de fraudes como esta que os Estados Unidos apertaram as regras de acesso à imigração e em resultado a atribuição de vistos teve uma descida drástica. No ano passado, foram atribuídos 13. Nhan viajou de casa, na província de An Giang, até à Cidade de Ho Chi Minh para a sessão de recolha de ADN organizada por Trista Goldberg. É um homem pacato, um pai de cinco filhos, com a 3. ª classe, um sorriso largo e orelhas de abano. Quando ele tinha cerca de dez anos, a mãe disse-lhe que era filho de um soldado americano. “Por que é que os miúdos passam a vida a gozar comigo? Chateiam-me tanto que às vezes fico com vontade de lhes bater”, dizia Nhan à mãe. “Ela fez uma pausa e explicou-me que eu era ‘mestiço’. Parecia triste, mas os meus avós disseram que gostavam de mim na mesma, que isso não interessava. ”Depois de feitos os testes de ADN, Nhan e os outros aguardaram para ver como esta nova tecnologia os poderia levar ao sonho americano. No Outono, Louise, a mulher de Bob Thedford, uma entusiasta de genealogia, acedeu à sua conta pessoal no site da Family Tree DNA (empresa que analisa os genes das pessoas para determinar a sua ancestralidade e que está a colaborar com o projecto de Goldberg) e teve uma grande surpresa. Havia novas informações sobre o seu marido, um link pai-filho. O filho era Nhan. Há muito que Louise suspeitava de que o marido poderia ter tido filhos nos seus tempos de soldado no Vietname, no final dos anos 1960. Pouco tempo depois de estarem casados, Louise tinha encontrado na carteira do marido a fotografia de uma mulher vietnamita. A notícia acabou por chocar mais a filha, Amanda Hazel, com 35 anos, uma assistente jurídica em Fort Worth. “Para ser honesta, devo dizer que a primeira coisa em que pensei foi: têm a certeza de que isto não é um esquema?”, recorda Hazel. Pouco tempo depois, chegaram as fotografias de Nhan. Ele era igualzinho ao avô, Robert Thedford Sr. , um veterano da Marinha que combateu na II Guerra Mundial. “És tal e qual o teu avô PawPaw Bob”, disse Bob ao filho. Thedford, o robusto vice-xerife reformado do condado de Tarrant, no Texas, conhecido como “Vermelho” por causa da cor caju dos seus cabelos, conheceu a mãe de Nhan quando estava na base aérea de Qui Nhon. Tem uma vaga memória dela e a família diz que raramente falava sobre a guerra. “Ele nunca se sentava para lamentar [a guerra]”, recorda agora o enteado, John Gaines. “Quando lhe perguntava se tinha matado alguém, ele respondia: ‘Sim, mas tens de entender que havia razões por detrás disso e que fazia parte da guerra. E não vou ficar para aqui sentado a explicar-te o que é que isso significa’. ”Enquanto Thedford ensinava a filha Hazel a andar de bicicleta e a nadar no Texas suburbano, Nhan crescia na quinta de porcos dos avós, nadava no rio e era apanhado a roubar mangas. A disparidade entre estas duas vidas continua a atormentar Thedford. Diz Gaines: “Ele continua a dizer: ‘Eu não sabia’. ” “Eu não sabia como poderia estar lá, ou teria encontrado maneira de estar. Só vos posso dizer que me surpreendeu e odeio tê-lo descoberto 45 anos depois. ”Seguiram-se várias tentativas de contacto, apesar de Nhan não falar inglês nem ter computador. Houve quem tivesse servido de intermediário para a troca de emails; houve trocas de encomendas. Nhan mandou sandálias feitas por ele e os chapéus típicos em cone de quem trabalha nos arrozais; os Thedford mandaram uma nota de 50 dólares e produtos dos Texas Rangers. Robert Thedford estava sempre a perguntar-lhe: “Precisas de alguma coisa?” Depois, houve a primeira e emotiva chamada por Skype, e os dois choraram quando se viram pela primeira vez. “Ele parecia-se comigo”, diz Nhan. “Senti que fiquei imediatamente ligado a ele. ” Mas em Agosto último, Thedford, com 67 anos e que já tinha recebido tratamento por causa de um cancro de pele, voltou a ficar doente. O cancro tinha alastrado e foi submetido a uma série de intervenções cirúrgicas, a mais recente a 3 de Abril. À medida que a família do Texas ia tratando e cuidando dele, ia também descurando a do Vietname. Recentemente, Nhan e Hazel falaram por Skype, ele num velho e poeirento computador nas traseiras da retrosaria de um amigo, na Cidade de Ho Chi Minh, ela na sua sala com os cães a correr por ali à volta. Nhan perguntou como estava o pai. “Tem passado bem. Já se consegue sentar. Estão a tratar dele. Sinto-me mal por não te ligar, mas a mãe e o pai pensam em ti e falam muitas vezes de ti. ” Enquanto estava no hospital, Thedford mostrou fotografias de Nhan às enfermeiras, dizendo: “Este é o meu filho no Vietname. ”Em Dezembro de 2013, Nhan levou os resultados dos testes de ADN ao consulado americano na Cidade de Ho Chi Minh, para que o seu processo fosse reavaliado. Não obteve qualquer resposta até agora. Um porta-voz da Secretaria de Estado diz que a legislação sobre a privacidade impede comentários sobre o caso. Hazel afirma que toda a família está empenhada em ajudar Nhan a emigrar, apesar de ela saber que a transição seria difícil. “Vai deixá-lo completamente à toa”, diz. A história deles ainda não tem um fim, assim como a guerra é uma ferida que não sarou. É uma história que continua em espiral, como a dupla hélice do ADN que os juntou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
O poder redentor das histórias
Saímos de Desh - o primeiro solo de dança contemporânea do coreógrafo britânico de ascendência bengalesa Akram Khan (Londres, 1974) – com a convicção de termos visto, para além dele, uma multidão de personagens em cena. Magistralmente interpretado, a partir de textos da poetisa Karthika Nair, trechos dançados e, sobretudo, com a assombrosa concepção visual de Tim Yip, Khan traz-nos uma deslumbrante meditação poética sobre os conflitos interiores de um emigrante da segunda geração: a ambiguidade da pertença, a mitologia das origens, a nostalgia da infância e das histórias fantásticas dos antepassados, e os balanço... (etc.)

O poder redentor das histórias
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Saímos de Desh - o primeiro solo de dança contemporânea do coreógrafo britânico de ascendência bengalesa Akram Khan (Londres, 1974) – com a convicção de termos visto, para além dele, uma multidão de personagens em cena. Magistralmente interpretado, a partir de textos da poetisa Karthika Nair, trechos dançados e, sobretudo, com a assombrosa concepção visual de Tim Yip, Khan traz-nos uma deslumbrante meditação poética sobre os conflitos interiores de um emigrante da segunda geração: a ambiguidade da pertença, a mitologia das origens, a nostalgia da infância e das histórias fantásticas dos antepassados, e os balanços da idade adulta. Discretas subidas e descidas de uma tela translúcida (sobre ela se projectarão imagens animadas), criam dimensões de espaço e tempos narrativos tão vívidos, que configuramos com nitidez pessoas, memórias e lugares ausentes de que Khan fala. Sob sonidos de tráfego, buzinadelas e vozearias cacofónicas, discernimos, nos movimentos da personagem, o transeunte no frenesi das sobrepovoadas urbes asiáticas. Inesquecível, a face que desenha a marcador na pele do próprio crânio, a convocar a figura do pai, o pequeno cozinheiro bengalês emigrante. Ao dialogar com vozes masculinas, femininas ou infantis em off, em bengali ou num inglês com sotaque, Khan reconstrói meandros emotivos das relações familiares, geracionais e da ambivalência cultural. Numa cena, agacha-se para ajudar uma menina invisível a calçar-se, e o atacador, agigantado na projecção animada, forma uma corda que o levará a outras geografias: segue num barquinho ao longo de um caudaloso curso de água ladeado de luxuriante floresta tropical; há bandos aves a esvoaçar, e o cair da noite estrelada. Cruza-se com um elefante, enfrenta um crocodilo. Uma criança a correr na selva, acossada por um tanque de guerra, ou os contornos de uma turba em protesto, aludem à guerra de libertação com o Paquistão (1971). Abate-se a chuva torrencial das monções, e pensamos num país que vive na iminência da catástrofe, o primeiro que submergirá ao aquecimento global. Khan recolhe com um simples gesto de mão este universo imaginado e regressamos ao palco. Liga a um call centre e reclama a avaria de seu gadjet; em linha, uma voz infantil com acento asiático. O seu desalento lembra-nos das multinacionais deslocalizadas no 3º mundo, do trabalho infantil, e da população subnutrida em insólita convivência com a alta tecnologia. Num belíssimo contraluz, Khan dança um trecho inspirado no kathak que aprendeu em criança, e entendemos nesta incorporação física o essencial da sua conexão à Ásia. As distorções visuais e da proporção de objectos, a dar-nos a visão infantil ou adulta destas vivências, pedem meças ao mundo surreal de Alice ou às geniais prestidigitações cénicas Robert Wilson. Desh (“pátria”, em bengalês) é a mais bem-sucedida peça de Khan, e do temário autobiográfico da sua obra. No início, emerge da escuridão, alumiado por um candeeiro, qual Diógenes contemporâneo em busca da identidade estilhaçada. O que nos vai contar é, afinal, sobre amor e sobrevivência, a urgência e fragilidade dos afectos, partilhados por milhões de emigrados. E sobre o poder redentor das histórias. Neste périplo íntimo, épico e encantatório, o alusivo prevalece sobre o explícito. Nada é gratuito nesta produção de luxo, algo refém, porventura, da sua própria exuberância. Mas a energia comunicativa faz o pleno, e figurará, decerto, entre o melhor que vimos em 2014.
REFERÊNCIAS:
"Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem"
Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations. (...)

"Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations.
TEXTO: No seu livro, de 2015, um dos grandes objectivos é compreender o nascimento das Relações Internacionais e da Ciência Política nos Estados Unidos da América. Contra a ortodoxia historiográfica de ambas as disciplinas, mostra como mundividências imperiais foram cruciais na formação de ambas as disciplinas e ao seu posterior desenvolvimento. Quais as principais causas e consequências desta história pouco conhecida?Eu mostro como a história do império é apagada, mas também como os académicos das relações internacionais começaram, de modo activo e talvez inconscientemente, a construir uma história mais útil da sua disciplina durante a Guerra Fria. O que é verdade em relação a muitas disciplinas, na verdade, não apenas no caso das Relações Internacionais. A história diplomática, a história do “desenvolvimento” e a Sociologia são outros exemplos. Se, como os então líderes emergentes da disciplina insistiram, as Relações Internacionais só se tornaram uma disciplina “científica” nos anos 1940 e 50, através da promoção do “realismo” (uma vez que Realpolitik era então uma palavra má) e da construção dos Estados Unidos como um “poder do statu quo”, então não haveria nada mais a dizer sobre essas décadas pré-científicas anteriores. Como seria de esperar, os professores marcharam, mais ou menos, com o Departamento de Estado, a Casa Branca e outras agências do Governo, procurando refutar os argumentos do rival soviético e dos chamados “países não alinhados” sobre a natureza e a extensão do poder que os Estados Unidos exerciam globalmente. Também demonstra que ocorreu um processo de “invisibilização do racismo”, apesar de as “relações internacionais significarem relações raciais”. Porque acha que isto aconteceu? Quais foram, e são, as consequências deste facto?A realidade persistente da opressão dos afro-americanos na sua demanda por direitos iguais era o outro problema que fazia coxear o Governo americano na sua rivalidade com a União Soviética em relação aos corações e às mentes dos europeus, dos africanos e dos asiáticos. O racismo em casa complicava a diplomacia dessas décadas. O contexto da Guerra Fria ajuda a explicar os esforços das administrações em dessegregar os Estados do Sul no pós-guerra, como os trabalhos de vários historiadores têm demonstrado (Mary Dudziak, Penny von Eschen e Paul Gordon Lauren foram os mais proeminentes). Também aqui, uma história mais útil do passado começou a ser criada: do racismo como um atavismo e uma excepção ao que Gunner Myrdal identificou como o “credo americano” — roubando a ideia sem o dizer a Alain Locke, da Universidade Howard, já agora. Mais tarde, a escritora Toni Morrison escreveu sobre a tendência poderosa, na cultura do pós-guerra, de “silêncio e evasão” sobre o passado e o presente do racismo. Eu peguei na ideia e traduzia-a usando um termo em voga na teoria das relações internacionais nos anos 1990: descrevi-a como a “norma contra a detecção”. Outro aspecto importante que sublinha tem que ver com o facto de a contribuição de académicos afro-americanos nessas disciplinas ser também desvalorizada ou omitida. Qual a razão? A realidade é hoje diferente?Não há exemplo mais poderoso do silêncio e evasão do que a persistente ignorância sobre os académicos negros e as suas inovações intelectuais numa academia profundamente segregada. Só começa a mudar quando académicos negros são admitidos nas torres de marfim (brancas) nos EUA. O mesmo é verdade em relação às mulheres nas relações internacionais, e há agora trabalho a ser feito por Patricia Owens e outras pessoas no Reino Unido no sentido de identificar académicas influentes neste campo, mas que hoje estão completamente esquecidas. Em alguns meios, a ideia de que os EUA eram essencialmente um poder anti-imperial e anticolonial persiste. É uma consideração sustentada na sua condição de antiga colónia e no facto de, mais tarde, ter sido uma das grandes potências que patrocinaram a descolonização. A história entre estes dois momentos perde-se, ou é desvalorizada. Pode falar-nos um pouco mais dessa história e de como condicionou o desenvolvimento de várias ciências sociais?O saudoso e grande economista do MIT Morris Adelman — que é uma personagem central no livro que estou a escrever agora sobre os vários mitos que preocupam a esquerda anti-imperialista e a direita imperialista nos EUA — disse uma vez que “o senso comum sabe muitas coisas que não são verdade”. As crenças que referem sobre os EUA, aparentemente indisputáveis, mas na verdade artificiais, encaixam-se nesta definição. Deixei de me surpreender com os vários mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem determinadas certezas, sem reflectirem seriamente sobre a natureza das “provas” e sobre os problemas que resultam de se pensar a partir dessas “provas”. Por isso, pergunto no White Order: como é que aqueles que acreditam que os EUA nunca foram imperialistas explicam que uma geração pioneira de pensadores conservadores, liberais e progressistas tenha dito o oposto? Porque estão eles errados?Após as invasões americanas do Afeganistão e do Iraque, deu-se uma renovação do interesse nas histórias do colonialismo, da administração colonial e da repressão colonial. Como é que as ciências sociais se relacionaram com estas dinâmicas? E com os seus trágicos falhanços, posteriormente?É verdade que o início dessas guerras no Médio Oriente, que agora percebemos serem intermináveis, deram um novo fôlego ao estudo do colonialismo, e a ideia de que os EUA eram um império emergiu de uma forma que não víamos desde os finais dos anos 1960 e inícios de 70. Victor Bulmer-Thomas e Tony Hopkins lançaram este ano novos e detalhados estudos, Empire in Retreat e American Empire, respectivamente, que “nasceram” das invasões no Afeganistão e no Iraque. O coronel na reserva Andrew Bacevich, que também se reformou recentemente na Universidade de Boston, onde leccionava História e Relações Internacionais, escreveu sete livros sobre o militarismo e a política externa norte-americana desde 2003, e, talvez devido ao seu historial e conservadorismo profissional, granjeou maior visibilidade nos media do que a maior parte dos outros críticos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Eu diria que o padrão mais significativo nas ciências sociais se prende com a militarização da academia desde 2001. A Antropologia, a Psicologia, a Ciência Política tiveram papéis auxiliares a desempenhar na contra-subversão, no regime de tortura e por aí fora. As antigas “escolas de estratégia” (Harvard’s Kennedy School e Belfer Center, a School for Advanced International and Strategic Studies da John Hopkins, a Woodrow Wilson School de Princeton e as suas cópias) prosperam, enquanto o Departamento de Defesa e o arquipélago de intelligence (CIA, DIA, NSA, etc. ) são hoje fontes muito mais importantes de financiamento para os meus colegas do que as fundações privadas. Ao contrário do que sucedia na década de 1960, não há praticamente oposição a esta transformação altamente problemática. No seu livro, e entre os vários escritos dos autores que estudou, deparamo-nos com um medo generalizado da “mistura racial”, da “decadência civilizacional” e com um alarmismo relacionado com as políticas populacionais. Infelizmente, podemos encontrar ansiedades semelhantes hoje em dia. O que é novo e o que é velho nos discursos presentes do medo?Concordo completamente sobre os ecos que se fazem sentir do passado, e creio que não dei o devido valor ao peso que o medo assumiu (e continua a assumir) nesses projectos. Estou agora a tentar, de facto, acompanhar o que as ciências sociais têm a dizer sobre o medo. Ele é fundamental, como deixam claro, para os argumentos a favor da restrição da imigração e similares, mas também remete para crenças irracionais sobre escassez de recursos e sobre as ameaças como o Irão ou o Iraque colocavam ao “acesso” a estes. Posso estar errado, mas tenho dificuldades em ver diferenças sérias entre os argumentos produzidos por actores políticos e intelectuais da, sei lá, década de 1920, e os do presente. Qual a importância de expandirmos as nossas investigações sobre processos que tornam o racismo invisível ou marginal, no sentido de lidarmos com os desafios políticos contemporâneos? Ainda é possível detectar uma Realpolitik racial hoje em dia?Da mesma forma, entendo que uma Realpolitik “racial”, ou melhor, “racista”, com a sua imaginada fractura de absoluta e inerradicável diferença, está viva, e bem viva, hoje em dia. Retorno ao tema que estou a estudar presentemente. Na década de 1920, as “matérias-primas” que se dizia estarem em escassez e que, como tal, despertavam a ameaça de um futuro conflito, tal como hoje, estavam nas colónias, semicolónias e dependências de África, da Ásia e América Latina. Apologistas da ordem imperial começaram a insistir que as matérias-primas encontradas nos trópicos e semitrópicos eram, por direito, “a herança da humanidade”. Como o ex-governador da Nigéria Frederick Lugard enquadrou o problema no seu Dual Mandate in British Tropical Africa (1922), as raças que habitavam estes lugares não tinham qualquer “direito de negar as riquezas aos que delas precisavam”. Era uma questão de vida ou morte. Durante a Guerra Fria, os gurus de uma “geopolítica” reabilitada (ou, pelo menos, eles assim o esperavam), George Kennan a despontar entre eles, opunham-se à independência das colónias, sustentando que essa independência bloquearia inevitavelmente o acesso do Ocidente a essas matérias-primas de que tanto necessitava. Também eles se dirigiam para a ideia de “herança da humanidade” e desdenhavam da que postulava direitos soberanos. Estas crenças persistiram incólumes desde o trauma nacional erradamente recordado como o “boicote da OPEP”, quando as acções dos países produtores, como um precoce crítico desta duplicidade de princípios o colocou, foram regularmente condenadas como “crime”, “máfia”, “pirataria” e “chantagem de preços”, e que persistiram até às intervenções de 1991 e 2003 no Iraque e bem depois disso.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Crânio pré-histórico pode ser peça-chave do puzzle da história humana
O fóssil data de uma altura em que a nossa espécie se terá efectivamente cruzado – e terá procriado – com os neandertais. (...)

Crânio pré-histórico pode ser peça-chave do puzzle da história humana
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O fóssil data de uma altura em que a nossa espécie se terá efectivamente cruzado – e terá procriado – com os neandertais.
TEXTO: Um fragmento de crânio encontrado no Norte de Israel está a permitir perceber melhor uma fase crucial da história dos primeiros humanos na altura em que a nossa espécie saiu de África à conquista de outras partes do mundo, afirmam cientistas liderados pelo antropólogo Israel Hershkovitz, da Universidade de Telavive. Os seus resultados foram publicados na revista Nature com data de quinta-feira. Trata-se da parte superior do crânio (ou seja, sem face nem maxilares) e foi desenterrada na gruta de Manot, na Galileia Ocidental. As técnicas de datação permitiram determinar que o crânio tem cerca de 55. 000 anos de idade, ou seja que data de um período em que se pensa que elementos da nossa espécie estavam a emigrar de África. Ainda segundo estes cientistas, as características do crânio sugerem que terá pertencido a um parente próximo dos primeiros Homo sapiens (que, mais tarde, colonizariam a Europa). Por isso, a equipa considera que o crânio representa a primeira prova concreta de que o Homo sapiens viveu naquela região ao mesmo tempo que os neandertais. Para Hershkovitz, o crânio é “uma peça importante no puzzle da grande história da evolução humana”. Terá pertencido a uma mulher, embora não seja possível dizer ao certo. Com base na genética, já se pensava que a nossa espécie e os neandertais terão procriado aproximadamente durante o período representado pelo crânio. É por isso que todas as populações de origem euroasiática ainda são portadoras, no seu genoma, de ADN de neandertal. “Temos aqui a primeira prova fóssil directa de que os humanos modernos e os neandertais viveram na mesma área ao mesmo tempo”, diz o co-autor e paleontólogo Bruce Latimer, da Universidade Case Western Reserve (EUA). “A coexistência destas duas populações numa região geográfica confinada, aliada ao facto que os modelos genéticos indicarem que houve cruzamento entre as duas espécies, abona em favor da ideia de que esse cruzamento ocorreu no Levante”, diz Hershkovitz. Os neandertais, robustos e de sobrolho maciço, prosperaram na Europa e na Ásia há uns 350. 000 a 40. 000 anos, tendo-se extinguido pouco depois da chegada dos Homo sapiens. Quanto à nossa espécie, os especialistas pensam que terá surgido há uns 200. 000 anos em África, tendo mais tarde migrado para outros locais. A gruta de Manot situa-se à beira da única rota terrestre que os antigos humanos poderiam ter percorrido para viajar de África até ao Médio Oriente, Europa e Ásia. Permaneceu vedada durante 300. 000 anos e foi descoberta em 2008 durante a construção de canalizações de esgoto. Armas de caça, conchas perfuradas, talvez usadas como ornamentos, e ossos de animais já foram desenterrados na gruta juntamente com outras ossadas humanas.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
As novas realidades em que vamos viver
A frase-chave de 2017 tem que ver com as realidades paralelas criadas pela ciência e pela tecnologia – de ambientes de realidade virtual a criações de inteligência artificial, passando pela terraformação de outros planetas. É ler, para não sermos surpreendidos pelo futuro. (...)

As novas realidades em que vamos viver
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.136
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A frase-chave de 2017 tem que ver com as realidades paralelas criadas pela ciência e pela tecnologia – de ambientes de realidade virtual a criações de inteligência artificial, passando pela terraformação de outros planetas. É ler, para não sermos surpreendidos pelo futuro.
TEXTO: O Future Today Institute lança há uma década o Relatório de Tendências Tecnológicas para o ano que se segue. O trabalho é feito a partir de um mecanismo científico que analisa em contínuo as práticas tecnológicas e científicas que irão ajudar a definir o futuro. Se é verdade que o mundo é cada vez mais complexo e o futuro se parece cada vez mais com um filme de ficção científica, são relatórios como estes que nos ajudam a antecipar o que aí vem e a adaptar comportamentos para os incluir nas nossas vidas. Seguem-se seis tendências para 2017 e três produtos inovadores que já aplicam algumas dessas tendências. A inteligência artificial é uma escolha óbvia nesta lista, tão óbvia que está contida dentro de praticamente todas as outras áreas de destaque. Como explica este relatório, há dois tipos de inteligência artificial: uma fraca, outra forte. A primeira verifica-se nos sistemas de recomendação típicos da Internet (sejam os produtos da Amazon, as músicas do Spotify ou os textos para ler a seguir no PÚBLICO). A segunda é a que permite a um sistema computacional tomar decisões de forma integrada, por enquanto ainda no campo da ficção científica. Alguns dos aspectos mais sedutores do próximo ano neste campo estarão na evolução da aprendizagem que os sistemas artificiais poderão fazer – os algoritmos que lhes dão origem irão induzir uma auto-aprendizagem a partir de uma enorme quantidade de dados disponíveis. Um dos bons exemplos com conclusão para o próximo ano é o Watson, da IBM, que está a aprender a ler e interpretar imagens radiológicas para inferir o historial clínico de pacientes. E, regressando ao relatório, a tendência será a de deixar de programar os computadores. No futuro os computadores “serão treinados como cães”. Várias evoluções no campo da robótica permitem antever novidades muito interessantes para o próximo ano. Uma área a merecer especial atenção é a dos robôs cooperativos, que juntam várias máquinas para executar funções de forma coordenada – de forma bem mais evoluída do que aquela que se vê numa linha de montagem. Também os robôs de companhia apresentam uma lógica promissora, especialmente porque será uma forma de a robótica entrar no mercado de massas. Com o envelhecimento geracional que se verifica nos países ocidentais, a tendência para desenvolver robôs de companhia será crescente. Nesse sentido, o mercado líder para estas transições será o Japão, onde o envelhecimento é maior e o investimento tecnológico está mais canalizado para aí. Este é um novo termo que junta todas as várias tendências que relacionam o mundo real e a experiência em ambientes virtuais: a realidade aumentada, que sobrepõe uma camada virtual ao ambiente que rodeia o utilizador; a realidade virtual, que coloca o utilizador num ambiente totalmente virtual, já usado em jogos e filmes pioneiros; as câmaras especiais de 360 graus que criam vídeo e imagem em rotação completa; os produtos que apresentam hologramas, que são imagens tridimensionais, a partir de ecrãs como smartphones. Estas aplicações vão começar a ser frequentes na indústria de entretenimento (jogos, filmes de terror, pornografia, clips musicais, etc. ), seguindo, aliás, a tendência deste ano. Mas também deverão começar a invadir o ambiente profissional, com apresentações tridimensionais que ultrapassam o PowerPoint normal e com câmaras de 360 graus para aplicações de segurança e transmissão desportiva, entre muitos outros exemplos. Também vale a pena estar atento a aplicações de realidade virtual para tratar doenças como depressões e stress pós-traumático, bem como mecanismos de marketing para levar produtos até potenciais clientes. Se há uma nota a reter no ano informático de 2016, ela tem que ver com os escândalos de segurança. Dos Panama Papers aos emails de campanha de Hillary Clinton, nunca se falou tanto de segurança e pirataria informática – incluindo ao nível diplomático, visto que a mais recente polémica envolve a interferência da Rússia no processo eleitoral norte-americano. Ao mesmo tempo, a pressão por parte desses mesmos Estados para criar mecanismos de intrusão nos aparelhos dos cidadãos tem também consequências na segurança dos mesmos. E se em 2016 o FBI colocou a Apple em tribunal por esta se recusar a dar acesso a um iPhone específico, em 2017 é de esperar que se renove a exigência de produção de um mecanismo de acesso privilegiado a software ou hardware (de perfis de redes sociais a telemóveis, passando pelos computadores pessoais e pelas contas de email). Com a informática no centro das discussões sobre defesa e segurança, é de esperar que se renovem as competências informáticas das entidades policiais e militares – criando novas formas de espionagem e protecção da lei, abrindo também caminho a um reforço dos mecanismos legais para defesa e acusação relacionados com actividades digitais e com implicações legislativas profundas. Em paralelo com as questões de segurança estão, por razões óbvias, as preocupações com a privacidade. O anonimato digital não existe, mas a percepção de que assim é está cada vez mais presente na mente de cada cidadão que abre um browser de Internet. Para evitar a invasão de privacidade ao nível do indivíduo, muitas empresas vão instalar esquemas de privacidade diferencial – um mecanismo em que os dados individuais continuam a ser recolhidos, mas são de tal forma alterados que não podem ser depois individualizados de forma a destacar uma única pessoa. A Apple já anunciou que está a trabalhar nisto e outras empresas, nomeadamente a Google e a Facebook, devem ir pelo mesmo caminho. Daqui decorrem outros problemas, como a gestão da encriptação, abrindo novos mercados para empresas com soluções inovadoras e integradas em todos os passos da vida digital dos cidadãos. Outra área em que a manutenção da privacidade será essencial tem que ver com a evolução tecnológica que permite que o reconhecimento facial seja individualizado ao pormenor. Já é possível seguir alguém numa cidade através das câmaras de vigilância instaladas em serviços públicos (como as de trânsito) e as privadas (como as dos multibancos), graças a softwares de processamento facial muito poderosos. Se a isto adicionarmos mecanismos avançados de captação de imagem em tempo real como os drones e os vídeos de 360 graus, percebemos que os redutos de privacidade no espaço público são algo em vias extinção. Este é mais um conceito nascido na ficção científica, mas que parece estar prestes a ganhar dimensão real. Terraformar um planeta consiste basicamente em importar padrões ambientais da Terra de forma a criar condições para a vida humana. Elon Musk, o visionário da Tesla e da SpaceX, anunciou este ano que pretende chegar a Marte em menos de dez anos – e assim que lá chegar promete adaptar o planeta para receber humanos dispostos a iniciar a imigração espacial. Esta é uma tendência muito nova e o trabalho feito até agora consiste no levantamento de espécies capazes de resistir em ambientes extremos, como micróbios que vivem em temperaturas extremas no deserto do Atacama ou bactérias que se reproduzem em ambientes sem oxigénio nas fontes hidrotermais do fundo do oceano Atlântico. A biologia sintética, outra área de saber em expansão, pode ajudar a manipular organismos artificiais que sejam úteis. Juntamente com os planos detalhados para exploração da Lua e de Marte, é de esperar que se desenvolvam ideias – e experiências – para construir do zero ambientes capazes de criar uma atmosfera com oxigénio, água e alimentos. São microcomputadores que têm a dimensão de um grão de pó. Podem trabalhar de forma integrada, como uma nuvem de pó, captando e transmitindo informação sobre o meio ambiente (desde imagens a sensores térmicos), que depois é tratada por outras máquinas. Dada a dimensão destas partículas, pode ser até algo que se insere no organismo humano para o estudar sem perturbações de maior. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Estónia foi pioneira ao permitir que estrangeiros possam aceder aos seus serviços de cidadania – e em consequência ao mercado europeu. O resultado do "Brexit" pode bem impulsionar uma solução semelhante para os empreendedores do Reino Unido, tal como o crescimento da economia asiática pode promover um esquema semelhante em Singapura para os países vizinhos. Trata-se de um fio utilizado para suturas de feridas que informa remotamente sobre o estado clínico de um paciente, alertando para uma infecção ou antecipando uma situação de emergência como um ataque de coração. É algo que ainda está na mesa de laboratório de várias universidades americanas, mas cujos resultados são muito promissores.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei humanos imigração campo tribunal ataque extinção alimentos cães
Os mundos da ansiedade
As “políticas do medo” não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença. (...)

Os mundos da ansiedade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: As “políticas do medo” não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença.
TEXTO: Os “Perigos Amarelos”Em 24 de Outubro de 1871, em Los Angeles, cerca de 500 homens irromperam pela Chinatown local e atacaram violentamente os residentes chineses. Entre 17 a 20 emigrantes chineses foram enforcados, alguns já depois de mortos. A um faltava-lhe um dedo, por ter um anel de diamantes que alguém cobiçara. A cultura do justicialismo popular e do linchamento, bem disseminada nas “sociedades de fronteira” da época e hoje ainda familiares, não escolhia origens étnicas. Dos dez homens julgados pelo acto, oito foram condenados por homicídio, destinados à famosa prisão de San Quentin. Graças a expedientes “técnicos”, as condenações foram inconsequentes. A causa directa invocada para justificar este acontecimento dizia respeito a um ataque de um emigrante chinês a um polícia e a um rancheiro. O polícia, Jesus Bilderrain, interviera numa altercação de rua. O rancheiro Robert Thompson perseguira um dos envolvidos e foi morto. Não tardou que um boato circulasse velozmente indicando que a comunidade chinesa da Calle de los Negros, uma viela pobre e destituída, estaria a assassinar “brancos” em massa. Seguiu-se um dos mais brutais linchamentos da história americana. O boato, então como hoje, produzira as consequências esperadas. Outras causas pesaram também neste desfecho. O aumento regular da população chinesa na Califórnia suscitara desde cedo inúmeros ressentimentos, pouco justificados. As populações brancas e mestiças sentiam-se ameaçadas com a presença de estrangeiros, apesar destes providenciarem uma força de trabalho fiável e de baixíssimo custo. O decréscimo na oferta de emprego e a desvalorização de salários no mercado laboral, por certo acicatada e aproveitada por proprietários e empresas, assim o determinava. O fluxo de trabalhadores chineses era consequência da fuga à pobreza extrema, à fome, epidemias e violência resultantes da Rebelião Taiping (1851-1964), na qual se estima que tenham morrido entre 20 a 30 milhões de soldados e civis. Em 1863, a legislação local já subtraíra um importante direito a esta comunidade: o de poder testemunhar contra alguém da comunidade branca. Em 1868, um tratado entre o Império Chinês e os EUA regulava os fluxos migratórios, de natureza pouco restritiva. A migração era essencialmente pendular, maioritariamente composta por homens. As mulheres migrantes eram sobretudo prostitutas e escravas sexuais. Um ano antes do massacre, o Naturalization Act estendeu direitos de cidadania a afro-americanos, mas não a asiáticos, vistos como sendo impossíveis de “assimilar”. Em vários lugares não podiam comprar terra, votar, participar no processo judicial ou ter negócios de qualquer espécie. Em 1875, o Page Act proibiu a entrada de imigrantes “indesejáveis” nos EUA. A entrada de trabalhadores asiáticos não remunerados e mulheres passíveis de se envolverem em prostituição estava vedada. O efeito depressivo nos salários e a imoralidade da mulher chinesa foram invocados como justificação, sobretudo por políticos conservadores, mas também por organizações laborais, com envolvimento presidencial. O “mal” da importação da mulher chinesa tinha de ser atendido, não necessariamente devido à desumanidade imposta, mas sobretudo pelo seu suposto impacto nocivo na “moral pública” e nos “valores familiares cristãos”. A Associação Médica Americana defendia que os imigrantes chineses eram portadores de germes que acabariam por liquidar as comunidades brancas. As prostitutas chinesas seriam um agente eficaz neste processo. Dos cerca de 40 mil chineses que, então, entraram no país, apenas 136 eram mulheres. A lei contra a prostituição gerou mais prostituição. E aumentou a tensão entre quem a controlava. Em 1882, o Chinese Exclusion Act veio responder ao crescente sentimento sinófobo nos EUA. Foi um dos mais significativos exemplos de restrição à liberdade de circulação de pessoas com base num critério exclusivamente étnico e durou até 1943. Proibia trabalhadores de qualquer qualificação de entrar no país durante dez anos, contando com o apoio entusiasta da Federação de Trabalho Americana. Os já residentes eram tornados estrangeiros, privados de cidadania. Uma série de adendas posteriores acentuou as restrições, sempre acompanhada de justificações baseadas em estereótipos raciais e étnicos. Como um dos poucos críticos, um senador republicano declarou, à época, era a “legalização da discriminação racial”. Visava o controlo da circulação de pessoas e a gestão do mercado laboral bem como a manutenção de privilégios de classe e raciais. De permeio, estimulou dinâmicas de tráfico ilegal de pessoas. Gerou ainda inúmeros momentos de violência e perseguição de comunidades chinesas. Os massacres de Rock Springs, no Wyoming (1885), e de Snake River, no Oregon (1887), são apenas dois exemplos. O primeiro envolveu uma série de mineiros brancos que culpavam os chineses pelo seu desemprego. O facto de estes aceitarem salários muito mais baixos e de terem substituído os trabalhadores brancos numa greve em 1875 alimentou o ressentimento. Os trabalhadores chineses pagaram o preço das políticas salariais da empresa e da instrumentalização de preconceitos raciais existentes. Os agressores estavam ligados aos Knights of Labor, a mais importante associação americana de trabalhadores na altura. O resultado foi a violência descontrolada, que conduziu pelo menos à morte de 28 pessoas. Queimadas na sua própria casa, mortas por animais, à fome ou a tiro. Alguns dos agressores foram presos, mas logo libertados, sendo ovacionados pela população. O segundo massacre resultou na morte de 34 garimpeiros, envolvendo actos de tortura. Ninguém foi punido pelo crime, apesar de alguns dos implicados terem sido julgados. Estes episódios pontuaram a longa história de sentimento antichinês nos EUA, não esgotando, contudo, as suas manifestações. O argumentário do “perigo amarelo” assumiu inúmeras formas e justificações. O amarelo teve várias tonalidades e serviu para várias composições. A futurologia da desgraça impendente foi alimentada pela literatura, muita dela publicada em fascículos em jornais de referência. Emergiu um género literário que prosperou nos últimos anos do século XIX. A sinofobia foi promovida por políticos e pelos moralistas de serviço. Os “guerreiros-como-imigrantes” invadiam para depois conquistar. Induziriam os americanos ao vício do ópio ou do jogo, ou propagariam doenças. Corromperiam a moral e sorveriam os recursos americanos. O medo do “amarelo” não se esgotou nos chineses, envolvendo mais tarde os japoneses, os sul-coreanos e os vietnamitas. A metáfora sobre o acordar do “gigante adormecido” ganhou contornos claros e duradouros durante o reinado do imperador alemão Guilherme II. A invocação do cortejo de depredações de Genghis Khan ganhou uma nova expressão. A conhecida alegoria de Hermann Knackfuss, Povos da Europa, guardem os vossos preciosos bens, encomendada pelo imperador em 1895, supostamente após um sonho, sintetizou de modo claro a relação entre imaginação (geo)política, racialização do outro e politização do medo. A litografia foi enviada para outros monarcas europeus. A mensagem era clara: uma aliança ocidental, assente numa civilização cristã e liderada pelo império alemão, devia fazer face ao “perigo amarelo”. De outro modo, o declínio do ocidente seria inevitável. O Inverno da civilização faustiana, como diria Oswald Spengler, em 1918, estaria próximo. O “perigo amarelo” escondia ambições imperiais óbvias, a weltpolitik alemã. Tal já sucedera com o envolvimento alemão na Tripla Intervenção associada à Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895. Em 1900, por ocasião da partida das tropas alemãs para combater a Rebelião dos Boxers na China, Guilherme II revelou as suas ideias chauvinistas. Instigou as tropas à liquidação absoluta do inimigo, sem tréguas, sem prisioneiros, invocando Átila e os hunos. À xenofobia da Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros (os Boxers) deviam-se contrapor sentimentos racistas antichineses, em voga um pouco por todo o mundo. Os alemães deviam dar um exemplo de “masculinidade” e “disciplina” a todos. Anos depois, sob a sua autoridade, os Herero e os Nama eram massacrados no Sudoeste Africano Alemão. Uma década depois começava a Primeira Guerra Mundial, com as conhecidas consequências. Aquando da sua abdicação, Guilherme II revelou ainda todo o seu anti-semitismo, reclamando uma vingança futura. Com a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, a invocação do “perigo amarelo” deslocou-se para os japoneses, também eles reduzidos a “povos de raça amarela” ou “mongóis”. A sua ascensão no Pacífico justificou todo o tipo de estereótipos, sendo o da impossibilidade da sua assimilação recorrente. O fim da guerra de 1905 trouxe inúmeras crises nas relações com os americanos. A segregação das crianças japonesas nas escolas públicas de São Francisco ou os boatos, outra vez os boatos, de que os imigrantes japoneses no México e no Canadá eram agentes disfarçados que se preparavam para invadir os EUA são apenas dois exemplos. Como quase sempre, o momento foi acompanhado pela emergência do especialista em “vulnerabilidades” nacionais e indefinições “estratégicas”. O livro sensacionalista de Homer Lea, The Valor of Ignorance (1909), sintetizou esse processo. Lea foi uma figura fascinante, tendo sido conselheiro de Sun Yat-sen durante a revolução republicana chinesa de 1911. No seu livro profetizou um confronto entre os EUA e o Japão, aventando uma invasão da Califórnia e das Filipinas. As suas ideias “geoestratégicas” foram acolhidas por “analistas” e corpos de interesse directamente envolvidos no processo. A sua insistência na “virilidade” e “estabilidade” das “nações”, dependentes da “homogeneidade da raça”, foi abraçada por muitos. O seu prognóstico de que a Alemanha e o Japão dividiriam o mundo entre si se continuassem a resistir “à influência deteriorante do industrialismo, do feminismo e da charlatanice política” encantou, atemorizando, vários círculos. A “homogeneidade anglo-saxónica” tinha de ser assegurada face ao largo contingente de cidadãos negros e ao aumento da imigração. O influxo de japoneses, os verdadeiros representantes do “perigo amarelo”, constituíam a grande ameaça. A “segurança nacional” estava, supostamente, em perigo. A sugestão da ideia da existência de uma quinta-coluna japonesa nos EUA ecoaria anos mais tarde. Durante os anos 1930, o FBI desenvolveu programas de counter-intelligence clandestinos nos Little Tokyos de Washington, Oregon e da Califórnia. Durante a guerra, a ideia serviu de justificação para o realojamento e internamento forçado de cerca de 110. 000 americanos de ascendência japonesa. Cerca de 62% destes tinham cidadania americana. Os antigos medos de uma invasão e os interesses específicos associados à agricultura e à pesca na Califórnia, que temiam a concorrência, atingiam um corolário dramático. "The Russians are coming" tornou-se uma expressão popularizada enquanto forma de paródia sobre o medo que tomou conta da sociedade norte-americana durante a Guerra Fria, em grande medida devido à comédia com o mesmo nome, de 1966. Ela remete, no entanto, para as notícias de que, nos finais dos anos 1940, o primeiro secretário da Defesa dos EUA, James Forrestal, tinha sido encontrado na rua anunciando uma invasão soviética, notícias que são hoje tidas por apócrifas. Esta não é, no entanto, a única polémica que envolve Forrestal. Suicidou-se em 1949, saltando da varanda do hospital psiquiátrico onde estava internado. Teorias da conspiração multiplicaram-se aos longos dos anos, nomeadamente sobre a possibilidade de um assassinato. Todavia, não restam dúvidas sobre a pressão a que se encontrava sujeito. Anunciara-se que não apoiaria a recandidatura de Truman, que o havia, entretanto, demitido. O seu casamento havia terminado de forma turbulenta. Mais, Forrestal tinha sido, desde início, um dos principais defensores de uma política externa implacável face à União Soviética. Este episódio não deve ser lido como um exercício de análise psíquica da política internacional. Ele mostra como as “políticas do medo” não têm de ser, necessariamente, uma maquinação instrumental de elites políticas engenhosas. Num certo sentido, a trajectória de Forrestal não é excepcional. Primeiro, o medo anti-comunista não nasceu com o início da Guerra Fria. Ele já tinha um importante precedente no primeiro Red Scare. O House Un-American Activities Committe, que tornaria famoso o senador Joseph McCarthy, tinha sido criada em 1938. Com ritmos diferentes, o medo soviético foi-se alastrando progressivamente pelos diferentes sectores da administração. Os debates historiográficos sobre o início da Guerra Fria têm frequentemente sido marcados por oposições antagónicas. No entanto, é relativamente unânime que, à época, a União Soviética não tinha o poder para desafiar militarmente os Estados Unidos. Os efeitos devastadores da guerra na URSS ou o monopólio atómico tornavam inconcebível um ataque em solo americano e improvável uma intervenção armada na Europa Ocidental, como afirmava um relatório da CIA de 1947. O perigo fundamental era a subversão económica e política. A influência dos partidos comunistas francês e italiano, a Guerra Civil na China ou a independência da Índia contribuíam para uma visão caótica e ameaçadora do mundo. A essas circunstâncias juntou-se a dramatização e simplificação do perfil do “inimigo”. Da URSS não se podia esperar conciliação ou razoabilidade. O seu objectivo era um “Soviet-Dominated World Communism”, como indicava um relatório do então criado National Security Council. A relutância em retirar militarmente do Irão, entre outras reacções, adensou estas apreensões. O recurso a estereótipos para caracterizar o inimigo reforçava os temores de decisores políticos e instilava um sentimento de perigo iminente. Tratava-se de nada menos do que um embate entre civilizações irreconciliáveis. A luta era apocalíptica, o inimigo radicalmente novo. Não possuía fronteiras identificáveis. Era dissimulado. Por vezes era russo, noutras asiático. Poderia até ser americano ou “ocidental”. As dinâmicas do medo popularizavam-se também internamente. O perigo de uma “quinta coluna” foi exacerbado. Para além da limitação de liberdades individuais, bem conhecida, iniciativas como a National Conference on Citizenship alertavam que a ilusão da paz estava a fazer esmorecer o sentimento patriótico. Como alertava o comandante nacional da American Legion, as “filosofias anti-americanas floresciam”. Em 1948, uma “semana da democracia derrotando o comunismo” foi organizada. Em 1950, na West Virginia, uma “semana do americanismo” incluía o “dia de combate ao comunismo-socialismo”, o “dia de responsabilidades cívicas” e o “dia da liberdade de oportunidades”. Estas manifestações pretendiam responder àquilo que era visto como um sintoma mais profundo. A sociedade norte-americana tornara-se refém do consumo e os valores patrióticos esmoreciam. Em suma, esta era uma sociedade despojada de virilidade. Essa visão era perfilhada por autores liberais como Arthur Schlesinger Jr. . No seu Vital Center (1949) – símbolo do liberalismo e conservadorismo unidos por valores comuns face à ameaça totalitária de esquerda e de direita – alertava para uma “era da ansiedade” que tornava as massas propensas a aderirem a visões radicais da sociedade. Essa “feminilidade” era identificável nas forças de esquerda que se deixavam seduzir pelo comunismo. Uma nova geração de liberais menos idealistas e mais empreendedores era a solução. Ironicamente, o remédio para a ansiedade só gerava mais ansiedade. O recurso a metáforas de virilidade foi bem mais acentuado no seio da direita conservadora. Para homens como McCarthy, o liberal da costa leste ou de Washington D. C. , merecia desprezo. Era, como se diz hoje, um “bem-pensante”, distante do povo real. O establishment liberal, que venerava os “comunistas e maricas do Departamento de Estado”, tinha vendido a “China a uma escravatura ateísta”. Os medos sobre a homossexualidade exacerbavam-se e foram associados à Guerra Fria. Na sequência do despedimento de 91 funcionários do Departamento de Estado por serem homossexuais, um senador republicano defendeu que se realizasse um estudo sobre os homossexuais que trabalhavam para o Estado. O motivo: Estaline tinha obtido de Hitler uma “lista mundial” de homossexuais que podiam ser usados como elementos de subversão. Um relatório produzido na sequência destes eventos sublinharia que aqueles que se envolviam abertamente em “actos de perversão” não dispunham da “estabilidade emocional” de uma “pessoa normal”. Os temores de uma sociedade emasculada conjugavam-se com uma retórica de decadência civilizacional que pretendia galvanizar a opinião pública e, aspecto fundamental, limitar a dissensão. O conjunto de dinâmicas do medo aqui enunciadas revelou-se de forma particularmente aguda aquando do episódio dos prisioneiros de guerra norte-americanos no conflito na península norte-coreana. O facto do número de prisioneiros chineses e norte-coreanos que não queria voltar aos países comunistas ser muito superior ao do número de norte-americanos que não queria voltar aos EUA e que estes fossem apenas 21 de um universo de cerca de três mil não impediu que a opinião pública norte-americana reagisse alarmada. Dada a convicção generalizada da superioridade política, moral e económica da sociedade norte-americana, a recusa destes prisioneiros em voltar só se poderia dever a técnicas misteriosas empregadas pelos comunistas. A ideia de lavagem cerebral, com antecedentes, tornou-se então central no debate público americano. Disseminaram-se as teorias sobre as técnicas pavlovianas e hipnóticas dos comunistas, reveladores do seu carácter radicalmente novo e ameaçador. O medo de que a subversão alastrasse levou a que este grupo social se tornasse um dos mais estudados na história dos EUA. As forças militares ficaram aterrorizadas com a perspectiva dos “métodos de aniquilação mental dos comunistas”. A cena cultural reproduziria estes medos, facto particularmente visível no filme The Manchurian Candidate (1962). Se nos EUA o comunismo se apresentava como ameaça fundamental ao “modo de vida” americano e à civilização ocidental, em várias capitais europeias esse vento não soprava apenas do Leste, vinha também do Sul. Após a progressiva descolonização asiática, o temor da ascensão do nacionalismo africano conjugou-se com o que era visto como o perigo do declínio do Ocidente, temperado pela persistência de visões racializadas das populações nativas. Estes temores tornaram-se particularmente salientes em momentos em que o domínio colonial foi posto em causa através de meios violentos. Foi esse o caso da revolta Mau Mau no Quénia. A revolta, iniciada em 1952 e atribuída aos Kikuyu, foi no essencial o resultado de problemas agrários. Todavia, foi desde cedo retratada pelas autoridades britânicas como um exemplo de “selvajaria” decorrente de uma mentalidade “primitiva”. Houve quem não hesitasse em associar a rebelião a uma infiltração comunista em África, por via da intromissão das Nações Unidas e dos elementos progressistas ocidentais, ambos instrumentalizados pelos comunistas. Este argumento faria escola entre as várias potências coloniais. No entanto, foram as próprias autoridades britânicas que negaram qualquer interferência comunista. A dissociação dos eventos no Quénia de uma trama comunista pretendia reforçar a ideia de que este era um movimento desprovido de qualquer “racionalidade” moderna. Os múltiplos relatos na imprensa britânica de uma violência inaudita visavam demonstrá-lo. A imagem dos juramentos iniciáticos que eram atribuídos aos Mau Mau e que invadiam a mente tanto dos colonos como das audiências britânicas era apenas uma das ilustrações disponíveis. Mas estes eram fortemente exagerados pela imaginação dos cronistas e das autoridades civis e militares. Num documento privado, que não chegou ao conhecimento público por ser demasiado explícito, referia-se que os juramentos incluíam actos como a masturbação em público, beber sangue menstrual e actos “não-naturais” com animais. Apesar disso, os colonos acreditavam que 80% dos Kikuyu tinha participado nestes actos. O que não era verdade. Mas este tipo de exercício legitimava medidas de repressão e punição colectivas. Os relatos, com ampla circulação, sublinhavam a violência contra brancos e as práticas de violência cruéis. Instilou-se um temor na sociedade colona acerca dos seus trabalhadores e empregados domésticos Kikuyu. A realidade, essa, era substancialmente diferente. A revolta traduziu-se na morte de quase 13 mil Kikuyu e apenas 58 brancos. As práticas de desmembramento foram esporádicas, ao contrário do que era amplamente sugerido. Mas o boato e a propaganda tornavam mais fácil legitimar o estado de emergência instaurado pelas autoridades britânicas, marcado por múltiplas violações de direitos humanos e liberdades individuais. A essencialização e a desumanização do “inimigo” e a projecção de uma luta de vida e de morte entre a “civilização” e a “barbárie” também se fizeram sentir no caso da libertação da Argélia. Aqui, as desigualdades sociais e económicas organizadas em torno da diferença étnica e cultural eram manifestas, reforçadas que eram por um sistema político discriminatório. Em 1947, existiam dois colégios eleitorais distintos, cada um elegendo seis representantes. Para o primeiro votavam cerca de 460 mil europeus e 58 mil muçulmanos “assimilados”. No segundo, um milhão e quatrocentos mil “nativos”. Ademais, as eleições eram frequentemente viciadas pelas autoridades francesas. Quando a violência organizada foi despoletada em 1954 pela Front de Libération National (FLN), as autoridades francesas estavam cientes destas realidades. A população argelina crescia a um ritmo muito superior ao da sociedade metropolitana e ao da população colona, o que colocava problemas de monta à ideia de uma Argélia francesa. A livre circulação de argelinos para a metrópole, que se contavam então nos 300 mil, e que regressavam à origem transportando “perigosas ideias políticas e sociais”, exacerbava os temores administrativos franceses relativos à integração plena do território. Em sentido contrário, essa imigração traduzia-se numa “invasão real e berberização de bairros inteiros em Marselha e Paris”. Os perigos abundavam. Mas a vontade francesa de manter a Argélia como parte integrante da França persistiu. Para alguns, depois de contida a ofensiva do pan-eslavismo, o Ocidente confrontava-se agora com a do pan-islamismo. A ideia de choque civilizacional era promovida. Um primeiro-ministro de De Gaulle declarava que a Argélia era a “fronteira entre dois mundos hostis”. As intenções francesas visavam transformar os termos do debate, num momento em que a autodeterminação e os direitos humanos se tornavam princípios orientadores da ordem global. Os seus oponentes eram retratados como “assassinos sem piedade” ou “instrumentos de um imperialismo teocrático, fanático e racista”. A sua desumanização era evidente. O governo francês invertia as acusações de racismo e xenofobia, atribuindo-as à FLN. A centralidade da questão feminina nos debates suportava esse esforço. Por exemplo, num filme produzido para audiências norte-americanas disseminava-se a ideia de que apenas a França poderia acabar com a tradição muçulmana da subjugação da mulher. A descrição do adversário como essencialmente fanático, imbuído de um espírito de Jihad, além de simplificar e reduzir as causas do ressentimento a uma “essência” muçulmana, autorizava respostas violentas. Quando as forças nacionalistas argelinas massacraram 123 pessoas em Constantinois, em 1955, a resposta francesa em Philippeville saldou-se na morte de 1237 muçulmanos. A ordem era para atirar em qualquer árabe que as tropas francesas encontrassem. Os episódios de tortura sistemática ou de suspensão de direitos fundamentais são amplamente conhecidos. A defesa da “civilização ocidental” autorizava a desproporção, alimentada que era pela desconfiança generalizada relativamente a qualquer muçulmano, resumido à sua condição religiosa e étnica pelo temor da diferença. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O livro de Corey Robin, Fear: the History of a Political Idea (2004), escrito num momento em que a Guerra ao Terror colocava desafios de monta às promessas de liberdade, providencia um guia fundamental sobre como o “medo”, enquanto dispositivo político, orientou alguns dos mais importantes pensadores que reflectiram sobre as sociedades ocidentais. Hobbes, Montesquieu, Tocqueville ou Arendt prestaram o devido tributo filosófico ao poderoso incentivo do medo, nas suas múltiplas formas e, crucialmente, de modos diversos. A incursão histórica que dá forma a este texto procurou, deliberadamente, sinalizar historicamente formas de politização do medo em contextos democráticos. Todos eles incluíram zonas interditas, definidas em função da nacionalidade, da aceitabilidade política ou da raça ou etnia. Mas estes casos não autorizam um libelo contra estas sociedades. Restam poucas dúvidas que as políticas do medo assumiram proporções muito mais vincadas em sociedades autoritárias ou totalitárias, corporizadas no judeu ultraminoritário enquanto potencial ameaça ao corpo nacional ou no kulak desapossado que poderia reverter a marcha da história. O objectivo é o de sinalizar como as políticas do medo podem ser, hoje, facilmente reavivadas. O exagero desproporcionado da ameaça, o estereótipo e unificação do “inimigo” enquanto forma absoluta do mal, as imagens de civilizações decadentes ou emasculadas permanentemente acossadas, a ligeireza no recurso a sentenças apocalípticas são algumas das suas manifestações mais comuns. E elas abundam, um pouco por todo o lado. Todos os episódios aqui elencados podem ser vistos como manifestações de problemas globais. Não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, muitos deles associados às múltiplas globalizações que desde há muito originaram o encontro da diferença e as ansiedades e receios deste resultantes. Nascem do estereótipo e do rumor. Decorrem de simplificações de vária ordem, da redução de problemas a explicações mono causais ou da sua claríssima manipulação interesseira. Promovem “soluções” que frequentemente ampliam o problema que declaram resolver. É obrigatório descodificar os seus usos mais grosseiros e perniciosos.
REFERÊNCIAS:
Religiões Islamismo
Um sorriso pode ajudar a identificar um morto
A fotografia de alguém a rir pode ajudar a identificar um cadáver. Mais do que uma foto do tipo passe. Já as selfies, não são de grande utilidade. E quem acha que é sempre possível tirar teimas com uma recolha de ADN está enganado. Falámos com homens e mulheres que descobrem identidades. (...)

Um sorriso pode ajudar a identificar um morto
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 3 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.049
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A fotografia de alguém a rir pode ajudar a identificar um cadáver. Mais do que uma foto do tipo passe. Já as selfies, não são de grande utilidade. E quem acha que é sempre possível tirar teimas com uma recolha de ADN está enganado. Falámos com homens e mulheres que descobrem identidades.
TEXTO: Um coveiro revolve o terreno para o preparar para mais um enterro e depara-se com um corpo enrolado em plástico. Não há caixão. Apenas um corpo pequeno, deitado de lado. Uma vez no gabinete médico-legal perceber-se-á que o cadáver está mumificado. E que pertence a uma criança do sexo masculino, que teria dois anos quando morreu. Assim começou um caso que intrigou alguns dos elementos do Laboratório de Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária. Daquele corpo enterrado havia mais de 45 anos, cuja identidade era desconhecida, parecia impossível, pelo estado em que estava, recolher-se sequer uma simples impressão digital. Noémia e Jorge Calarrão, peritos em impressões digitais, são marido e mulher. Ele trabalha na Judiciária desde o final dos anos 70. Ela — que ajudou na identificação de vítimas do tsunami de 2004 no sudeste asiático —, desde os anos 80. Reconhecem que muitas vezes os casos mais difíceis, por muito pouco românticos que possam parecer, os acompanham nas conversas até casa, depois de terminado o dia de trabalho na sede do LPC, em Lisboa. O corpo mumificado, encontrado em Março de 2013, foi um verdadeiro desafio. No computador de uma das salas do LPC, Jorge Calarrão mostra-nos as fotografias feitas então: parecia feito de barro. A pedido do gabinete médico-legal da Covilhã, o casal de peritos pôs-se a caminho para ajudar a resolver o mistério. Como o cadáver estava, “já não era possível, por exemplo, hidratar os dedos para ‘reavivar’ as cristas”, explica Noémia — as cristas são a parte mais saliente que vemos na pele na ponta dos dedos, os sulcos são o espaço entre as cristas e é tudo isto que compõe uma impressão digital quando pintamos os dedos com tinta e os calcamos, ainda frescos, numa folha. Mas daqueles dedos desidratados não se conseguia retirar qualquer imagem usando este método simples. “Com muita paciência”, e depois de muitas horas de trabalho à volta dos dedos do cadáver, Jorge e Noémia conseguiram fazer um molde de cada um — uma pasta cinzenta, que parece plasticina, da qual é posteriormente feita uma fotografia tridimensional. . . Acabou por resultar. Estavam recolhidas as impressões digitais — o elemento que constitui o mais rápido e o mais barato recurso para identificar um corpo, como nota Carlos Farinha, director do LPC. Mas que nem sempre é possível obter, ou que nem sempre é útil nesta coisa da identificação humana, como vamos ver em breve. Para já, de bata e luvas brancas, Noémia Calarrão mostra-nos alguns dos instrumentos que fazem parte da sua mala de trabalho, quando é chamada a uma morgue: uma espécie de pinça, “para quando é preciso mergulhar os dedos dos cadáveres em água quente”; outra, para endireitá-los de forma a ser possível manuseá-los; os frasquinhos de vidro, “com os reagentes para encher os dedos”; tintas; tiras de papel onde se fixam as marcas. . . Os médicos recolhem as impressões digitais quando fazem as autópsias, mas quando os cadáveres estão demasiado decompostos pedem ajuda a quem mais conhecimentos tem de lofoscopia, “o estudo dos relevos da pele”, como diz o dicionário — precisamente, pessoas como Noémia e Jorge. Mesmo quando já não há pele visível nos dedos, vai explicando Noémia, a derme, camada intermédia que fica logo abaixo da epiderme, “pode conter pontos característicos suficientes para permitir fazer uma identificação”. Regresso ao cadáver mumificado da Covilhã: o que torna o “caso absolutamente extraordinário” é que, provavelmente, nunca se tinha conseguido retirar uma impressão digital de um corpo enterrado havia mais de 45 anos, explica o director do LPC. Por isso, pretende partilhar a experiência, futuramente, com outros peritos no estrangeiro. É certo que a identidade do corpo da criança continuava por descobrir. “Este caso mostra que vale sempre a pena tentar recolher impressões digitais”, diz Noémia. Mas o facto é que o mistério permanecia. Uma impressão digital só tem valor se houver possibilidade de a comparar com outra. E neste caso, até ver, não havia. “O que se apurou foi o seguinte: houve um acidente de carro, em 1968, envolvendo emigrantes portugueses em França. Morreram cinco pessoas da mesma família, que foram enterradas no cemitério da Covilhã”, conta Carlos Farinha. O pai de família sobreviveu. “Por alguma razão, o corpo da criança não terá sido enterrado com os outros. . . não sabemos porque estava sem caixão”, prossegue. “Como aquela zona é particularmente fria, a destruição dos tecidos foi muito mais lenta” do que é habitual. Tendo a autópsia detectado lesões que eram compatíveis com as de um acidente de viação e tendo a polícia recolhido, nas suas averiguações no terreno, indícios de que aquela criança podia ser um dos elementos da família acidentada em 1968, o pai foi informado da descoberta. Veio de França, de propósito. Não trazia nenhum documento do filho com impressões digitais para comparar com as recolhidas por Noémia e Jorge — em 1968 crianças pequenas não tinham passaporte, conta Carlos Farinha, “estava agregado ao da família”. Não havia também “como ir ao coval originário — na medida em que quando não se trata de campa ou jazigo térreo de família os covais são periodicamente renovados”. Ou seja, não era possível confirmar se faltava um corpo à família enterrada em 1968. A identificação através do ADN — comparando o perfil recolhido no cadáver com uma amostra do alegado pai — foi inconclusiva. As amostras recolhidas no corpo mumificado estavam demasiado danificadas. Beco sem saída? Este menino era, afinal, o menino que se pensava, ou não?Desfecho da história: “O tribunal fechou o processo mesmo assim, porque o pai disse: ‘É o meu filho. Tenho a certeza. Ele tem a boca assim porque tinha a chupeta’”, recorda Noémia, com duas fotografias da criança na mão — duas imagens a preto e branco, com mais de 45 anos, que o emigrante trouxe de França quando veio fazer o reconhecimento do filho. Noémia confessa que também vê parecenças entre estas fotografias, de uma criança pequena, muito bonita, de rosto redondo, e a fotografia do rosto mumificado que aparece no ecrã do computador. Com uma “natureza muito focada no apoio ao processo crime”, o que faz o LPC nisto de trabalhar na busca da identidade dos cadáveres, mesmo quando não estão em causa suspeitas de crimes?“Poderia dizer-se: ‘ah, se não tem a ver com crime não tem a ver com PJ. ’ Mas não. . . Em termos de impacto, esta componente do nosso trabalho, da identificação humana, pode ser tão significativa quanto a outra”, responde Carlos Farinha. “E seria um desperdício não aproveitar o desenvolvimento das nossas técnicas” para esse fim. Por isso colaboram em muitos casos com o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF). Dar um nome a um corpo pode ajudar uma família a fazer um luto, “a fechar ciclos”. Pode ajudar a resolver um problema de uma herança. Pode encerrar uma investigação policial de um desaparecimento. . . E pode, seguramente, cumprir aquele que é um desígnio para pessoas como Noémia: “Todos têm direito a ter uma identidade”, mesmo depois de mortos. Farinha dá exemplos recentes, a começar pelo jovem português encontrado morto no mês passado em Brighton, Inglaterra, junto a uma linha de comboio, depois de ter estado alguns dias desaparecido. “A polícia inglesa contactou o consulado português em Londres para perguntar se estávamos disponíveis. E nós dissemos que claro que sim. Enviaram-nos as impressões digitais recolhidas no local. Nós pedimos cá as impressões do jovem ao Instituto dos Registos e Notariado (IRN). E os nossos peritos fizeram a análise e comparação. ” Cada ponto concordante entre a “amostra-problema” — as impressões recebidas de Inglaterra — e a “amostra-referência” — as fornecidas pelo IRN — foi assinalado a vermelho pelos técnicos (a validação é feita por pessoas e não por computadores, nota o director do LPC). No final: “houve um hit” — na gíria que aqui se usa, “concordância”. Corpo identificado. De resto, sempre que há notícia do desaparecimento de um português no estrangeiro ou de um desastre em que é previsível que as vítimas apareçam, o LPC adianta trabalho e pede os registos ao IRN — onde estão os dados biométricos de todos os cidadãos com cartão do cidadão, continua Carlos Farinha. “Lembra-se do pesqueiro que naufragou na Galiza [em Abril do ano passado]? Sabíamos que havia cinco portugueses e tratámos de ir logo junto do IRN pedir aquelas identificações para que se pudesse fazer a comparação mal os corpos fossem encontrados e as autoridades espanholas nos mandassem os dados. . . ”O director do LPC chama a isto “fazer o trabalho de casa”. Tornar o processo de identificação mais célere, é, desde logo, ser capaz de dar respostas mais rápidas a famílias que vivem momentos de grande ansiedade. O mesmo aconteceu em 2013, diz, quando um avião das Linhas Aéreas de Moçambique que ligava Maputo a Luanda caiu na Namíbia, matando 33 pessoas, incluindo sete portugueses. “Uma equipa do Instituto de Medicina Legal foi para o terreno, mandava-nos para Lisboa a informação que recolhia e nós aqui [no LPC] fazíamos as comparações e dávamos os resultados. Outros países que sabiam que estávamos a fazer aquilo para os nossos nacionais, encaminharam para nós os registos de identificação dos seus cidadãos: a França mandou dos seus, Angola mandou de angolanos, o Brasil mandou de brasileiros. . . ”, conta Farinha. “Aperceberam-se que tínhamos uma equipa na frente e uma equipa pericial na retaguarda, e recorreram a nós. Das 33 vítimas acabámos por identificar 18. ”No LPC da PJ, João Paulo Cardoso é “o perito que trata de imagem, dos rostos, da reconstrução facial” — é assim que Carlos Farinha o apresenta à Revista 2. Este é o homem a quem Noémia e Jorge recorrem quando os dedos dos mortos não estão em estado de lhes dar respostas. “A mim só me interessa o crânio, preferencialmente com mandíbula e completamente limpo de tecidos moles”, explica João Paulo, cabelo grisalho, bata branca, sorriso discreto. Uma das técnicas que usa passa por comparar imagens de crânios de mortos com fotografias de vivos, sobrepondo-as. Dito de uma maneira mais profissional: João Paulo Cardoso faz “identificação forense por sobreposição craniofacial”. À frente do seu computador, cheio de fotografias de crânios — de frente, de perfil, mais de lado. . . —, explica: “Fazemos a documentação fotográfica do crânio, ou através de vídeo, no INMLCF. É que nós somos diferentes uns dos outros porque o nosso crânio e mandíbula são diferentes. ”Depois, faz-se a sobreposição de fotografias. “Uma fotografia ante mortem de uma pessoa a sorrir é o ideal para usar neste tipo de identificação, por causa da dentição”, prossegue João Paulo “A dentição dá-nos uma série de elementos. ”Já as selfies e todas as fotografias tiradas muito próximas do rosto não são boas, “porque alteram a forma do rosto”. Uma foto tipo passe, por exemplo, também está longe de ser ideal para este trabalho. Fotografias a sorrir e a rir, sim. O resultado do trabalho de João Paulo é uma espécie de foto montagem, pedaços de um rosto de alguém vivo, que sorri, sobre a fotografia que alguém fez do seu crânio, depois de morto. Nas sobreposições vão-se assinalando os “pontos concordantes”, até se chegar, ou não, a um veredicto que nunca é de 100% de certeza mas que deve andar lá perto — outras técnicas, como a comparação de perfis de ADN, poderão corroborar ou reforçar o resultado obtido por João Paulo que para explicar como funciona este método utiliza uma montagem que fez, para uma apresentação pública, do seu próprio rosto sobre um crânio. “Um processo de identificação é sempre um processo de comparação, se não temos nada com que comparar podemos ter as melhores perícias, que elas não nos servem de grande coisa. . . ”, sublinha João Pinheiro, vice-presidente do INMLCF — este patologista forense, foi o primeiro perito português a participar em missões internacionais das Nações Unidas para a documentação de crimes contra a Humanidade (no Kosovo e na Bósnia), a partir do ano 2000, tendo trabalhado na identificação de cadáveres encontrados nas valas comuns que os massacres deixaram. Esta regra básica vale mesmo para os mais complexos processos de recolha de perfis de ADN, diz. “Se não houver ADN do próprio [que pode ser obtido em objectos de uso íntimo, como uma escova de dentes] ou de primos, de pais, de tios para comparar, não serve de nada. ”Nos casos do jovem estudante português, que tinha sido dado como desaparecido na zona de Brighton, e dos pescadores, na Galiza, sabia-se que identificações pedir ao IRN. “É preciso explicar isto: só podemos ir à base de dados do IRN buscar as impressões digitais na perspectiva de 1 para 1: ‘olhe, dê-me a impressão do senhor não sei quantos ou do BI número tal’ — enfim, é uma maneira de falar, tudo isto tem um processo”, diz Farinha. “Depois, vemos se há correspondência. As coisas são muito rápidas e a colaboração com o IRN é muito boa. ”Ou seja, aparece um cadáver sem nome, não há pistas, mas há impressões digitais? A base de dados do IRN é inútil. Não há fotografias de alguém que se admite pode ser o morto encontrado? João Paulo não tem como trabalhar. No caso das impressões digitais, há sempre a hipótese de recorrer a uma base de dados da própria PJ — chama-se AFIS (sigla para Automated Fingerprints Identification System). Mas esta é limitada: tem cerca de 200 mil entradas de impressões digitais recolhidas apenas a arguidos e em locais de crime. Noémia diz que nos casos dos indigentes encontrados mortos, cujos cadáveres não chegam a ser reclamados é frequente encontrar correspondência, porque muitos cruzaram-se algures na vida com a Justiça. Mas há todos os outros casos. . . E há também todas aquelas situações em que não conseguem recolher nem impressões digitais, por o corpo estar demasiado degradado. Nem sequer um perfil de ADN. “Podemos conseguir tirar impressões digitais de um cadáver com um ano, dois ou três e num corpo com quatro dias não conseguir tirar nada”, diz João Pinheiro. “Depende tudo muito de uma série de factores, a estação do ano, o sítio onde está o corpo, onde foi abandonado ou onde ficou, se havia animais, insectos, formigas, ratos, se estava dentro de água ou não. . . ”Em relação ao ADN, passa-se algo semelhante. Dá um exemplo recente, um caso “difícil”, que felizmente acabou com uma identificação. O de uma jovem mulher cujo cadáver foi encontrado muitos meses depois da morte, em Tábua, em Novembro do ano passado. Estava em avançado estado de decomposição. “Tratava-se de um corpo esqueletizado não identificado, incompleto, com alguns ossos ainda articulados”, explica. Havia uma suspeita de quem podia ser. O laboratório de Genética do INMLCF encarregou-se do caso. “Do cadáver foram recolhidas amostras dos pêlos púbicos e do úmero. A análise aos pêlos, a primeira a ser efectuada, não permitiu obter resultados. A análise ao osso, a partir da pulverização com azoto líquido, obrigou a sete extracções, na tentativa de obter material biológico em quantidade e qualidade suficientes para permitir a comparação com a amostra do suposto familiar. As amostras estavam bastante degradadas. ” O processo de obtenção de um perfil genético só ficou concluído a 2 de Março deste ano. “E foram precisas sete extracções!”, sublinha João Pinheiro. Aquele era mesmo o corpo da jovem de que se suspeitava. Nem todos os processos envolvem amostras tão difíceis de analisar como as deste caso, frisa o médico. Se se trata de “um corpo fresco” pode ser “muito rápido”. Mas as identificações podem levar até um ano. Num tempo em que por causa de séries do tipo as norte-americanas CSI ou Ossos há um pedacinho de cientista forense em cada um de nós, é preciso que se diga isto: “Nas ciências forenses nem tudo o que é possível está garantido”, sublinha o director do LPC, Carlos Farinha. “Na ficção, se se encontra um cabelo, ou uma mancha de sangue está garantido que se vai determinar um perfil de ADN. Na realidade, muitas vezes, em Portugal, os pingos de sangue, por exemplo, caem em superfícies que são lavadas com lixívia, cozinhas, casas de banho, e só isso pode prejudicar a análise. ”A verdade, diz João Pinheiro, é que a identificação humana é, na maior parte dos casos, feita a partir de vários elementos, uma soma de informações recolhidas por diferentes pessoas — dos médicos, antropólogos e geneticistas forenses que trabalham no Instituto aos polícias. “Raramente usa apenas um método”, prossegue. No caso dos cadáveres que ninguém reclama — 66 no ano passado —, “poucas vezes se fez a identificação pelas impressões digitais”, precisamente por falta de termo de comparação. No LPC não há cadáveres — há máquinas, computadores, câmaras fotográficas, reagentes, laboratórios, e, eventualmente, amostras biológicas recolhidas no terreno ou nas morgues. . . Os cadáveres propriamente ditos para os quais é preciso ir à procura de identidade vão directos para os gabinetes do INMLCF, onde todas as salas de autópsias obedecem a rigorosas regras de higienização e ninguém entra sem batas e umas botas altas de borracha brancas. O trabalho dos médicos forenses começa com descrição de todos os detalhes. “Todos os órgãos são pesados — o peso diz-nos muito sobre a saúde ou não de um determinado órgão: um fígado pesa um quilo e meio, se pesar 3 quilos é anormal. Um coração pesa 300 gramas, um de um atleta pode pesar 700, ou 800 gramas. . . se pesar um quilo, não é normal. No coração medimos as válvulas por dentro. . . estão ali muitas fitas métricas”, diz João Pinheiro, numa das salas do INMLCF em Coimbra. Tudo isso pode ajudar a identificar uma pessoa. “Depois todos os líquidos são medidos: o conteúdo do estômago, o sangue na cavidade pleural. . . ” Perto da mesa de autópsias, há uma mesa de fotografia de órgãos. “Em tempos tínhamos fotógrafos. Agora somos nós que fotografamos na hora. ” Se o corpo estiver “fresco”, as tatuagens, os piercings, os sinais, a roupa podem ser essenciais para chegar a identidade. “E os dentes. Vê-se que dentes perdeu antes da morte, anotam-se as cáries, os tratamentos feitos, com que materiais — em Portugal usam-se uns, no Brasil outros. ” Tudo isto pode dar pistas para ajudar a identificar um cadáver. Sobretudo, claro, se o morto quando era vivo ia ao dentista e se consegue chegar aos seus registos dentários. Os corpos não identificados chegam ao INMLCF, em muitos casos, acompanhados pela polícia — “que já perguntou no terreno, já fez perguntas, às vezes chegamos até a atrasar um pouco as autópsias para dar mais tempo às polícias para chegarem a uma identificação”. Por vezes, como se viu, peritos do LPC assistem — “mas quem toca nos corpos são sempre os médicos”, nota Carlos Farinha. Algumas amostras acabam a ser analisadas no LPC. Alguns resultados acabam por ser difundidos para a Interpol, quando se assume que se está perante um corpo de um estrangeiro mas não se consegue chegar a nenhuma conclusão sobre quem possa ser. No Verão de 2013, por exemplo, dois corpos foram encontrados no porão de um navio que vinha do Togo e atracou em Ponta Delgada. “Ter-se-á tratado de uma tentativa de emigração. Morreram por confinação. Recolhemos as impressões digitais, foram difundidas internacionalmente mas não temos resposta até hoje”, diz Carlos Farinha. Em suma, polícias, LPC e INMLCF complementam-se. “Temos regras de articulação, complementaridade e obediência ao interesse público e processual… e vamos funcionando”, prossegue o director do LPC. Ainda assim, em 2014, segundo as estatísticas do INMLCF, houve 16 cadáveres para os quais não foi mesmo possível encontrar um nome. As autópsias revelaram que morreram por suicídio (3), acidente (5), homicídio (1). Noutros casos não se conseguiu sequer determinar a causa de morte. No site da PJ há uma secção com registos de cadáveres por identificar há anos. São cerca de 60 — o de um homem de 50 ou 60 anos encontrado junto a uns arbustos na Travessa dos Salgueiros, no Porto. Outro que caiu na rua, em Lisboa, que deu entrada no Hospital do Capuchos, morreu, e nunca foi reclamado. Outro encontrado junto à linha do comboio, em Benfica. Outro num talude que desce ao Rio Douro, em Canelas…Na maior parte dos casos, são as autarquias que pagam os funerais destas pessoas. Em Lisboa, é a Santa Casa da Misericórdia (SCML) que os suporta. A Revista 2 acompanhou em Novembro dois deles — aconteceram ambos numa tarde húmida e fria. “Nestes funerais não há ninguém para confortar, nem há forma de saber alguma coisa da vida das pessoas para dizer umas palavras”, contou o padre António Cecílio Pereira, que está bastante habituado a fazer funerais de não reclamados. “Quando há familiares, vai-se ter com eles antes, pergunta-se: ‘Que idade tinha? O que fazia? Do que gostava?’ E às vezes, no fim da cerimónia, as pessoas vêm perguntar-me: ‘Mas conhecia-o?’ Porque podemos fazer uma narrativa da vida da pessoa. Nestes casos. . . nestes casos não se pode fazer isso. . . São funerais diferentes. ”À hora marcada, chegaram as carrinhas e os funcionários da agência funerária Servilusa, com quem a Santa Casa tem protocolo. A assistir, estavam apenas dois voluntários da Irmandade da Misericórdia e de São Roque, que tem entre as suas missões acompanhar até à última morada estas pessoas. Levaram flores. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “São dois homens, não têm nome, nem têm idade, nada. O resto é com a polícia”, limitou-se a explicar um funcionário da agência, depois de retirados os caixões das carrinhas. Uma vez posicionados nas covas abertas na terra molhada, o padre leu umas palavras: “Senhor, que a morte deste nosso irmão nos comprometa a viver mais de acordo com o evangelho, a levar uma vida mais cristã, que nós vivamos mais unidos e que a nossa fé aumente. Senhor, Nosso Pai, recebe a alma deste nosso irmão. Morrendo para este mundo, viva para nós e nenhum de nós que aqui estamos se perca ou desanime na sua caminhada. Amén! Assim seja!”Repetiu duas vezes — uma por cada corpo que baixou à terra.
REFERÊNCIAS:
Entidades PJ