É pele portuguesa, com certeza – tatuada há cem anos e exposta em Lisboa
O Instituto de Medicina Legal sugeriu, o Mude programou. Mais de 60 amostras de peles tatuadas entre 1910 e 1940 estão no Bairro Alto para falar de marinheiros, de fado, de algum crime e da cidade de Lisboa. (...)

É pele portuguesa, com certeza – tatuada há cem anos e exposta em Lisboa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Instituto de Medicina Legal sugeriu, o Mude programou. Mais de 60 amostras de peles tatuadas entre 1910 e 1940 estão no Bairro Alto para falar de marinheiros, de fado, de algum crime e da cidade de Lisboa.
TEXTO: É isto: um panóptico negro, com Michel Foucault a lembrar-nos a teoria do “homem infame” nas paredes exteriores, e no centro dele dezenas de amostras de pele humana. Há mamilos, umbigos e alguns pêlos, mas sobretudo tatuagens das décadas de 1910 a 1940. São peles portuguesas, com certeza, e, reacções epidérmicas à parte, O mais profundo é a pele é uma exposição que mostra pela primeira vez ao grande público a tão intrigante quanto importante colecção de tatuagem do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), agora parte da programação do Museu do Design e da Moda (Mude). O mais profundo é a pele está no Palácio Pombal, nas raias do Bairro Alto lisboeta, porque a tatuagem portuguesa, e da Lisboa do início do século XX, era do Bairro Alto, de Alfama, da Mouraria, do Castelo. Era mais de homens do que de mulheres, estava conotada com “o homem criminal”, como recorda Carlos Branco, investigador externo do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) e um dos dois curadores da mostra. Vivia o fado, as prostitutas (também elas utilizadoras de tatuagens), e inscreve-se numa tendência internacional, à época, de relacionar a prática da tatuagem com a boémia, com os marinheiros, mas sobretudo com a marginalidade e com distúrbios psicopatológicos. Há o incontornável “Amor Mãe” (assim, sem o “de”), uma pequena Beatriz Costa, emblemas do Belenenses, os três pastorinhos em Fátima, um pénis naif numa nádega com um aviso a toda a largura do fundo das costas (“Alto, se entras fodes-te”), ou a revelação das tatuagens que Adelaide da Facada, a mulher de O Fado (1910), envergava no estudo inicial de José Malhoa para a sua futura pintura emblemática. Tinha os cinco pontos na mão, corações nos braços, mas o rei D. Manuel II sugeriu que figurasse menos marcada e por isso acabou só com uma discreta tatuagem no pulso. Alguns destes exemplos estão ilustrados, como reproduções fichadas do corpo de utentes do INML, outros estão em pedaços de pele recém-restaurados e conservados em 61 frascos rectangulares em formaldeído, outros ainda fotografados. Agora, “evoluímos da sombra e do que era escondido sob as roupas para a ribalta”, diz o tatuador Hugo Makarov, convidado com outros colegas a reinterpretar alguns dos motivos clássicos da tatuagem para a antecâmara da exposição. E não só as marcas no corpo, a tinta a marcar a pele de forma ritual ou meramente lúdica está por toda a parte, como até este “género muito primordial” que está patente na exposição é também recuperado por muitos tatuadores, nota Makarov. Fala perto de Afrodite, o vestido de Jean-Paul Gaultier que, com uma peça da joalharia medicamente prescrita da jovem designer Olga Noronha, fazem a pontuação Mude na exposição. Mude fora de portasO mais profundo é a pele é a terceira exposição do Mude fora de portas, programação do museu enquanto a sua casa-mãe está em obras (e haverá mais três mostras fora de casa até ao final do ano). A directora do museu, Bárbara Coutinho, lembrou esta quinta-feira aos jornalistas a relevância de mostrar espólio para o museu municipal. Um contributo para o “retrato sociocultural da Lisboa do final do século XIX e do início do século XX”, mas também a sua associação lata ao design – extravasando as fronteiras do design “numa perspectiva mais clássica”, e com o museu a propor olhares “para a prática de desenho de diferentes maneiras”. O traço destas tatuagens com cerca de cem anos é rudimentar, tanto quanto as suas ferramentas (tinta da china, agulhas e paus de fósforo acesos, e mais tarde as máquinas eléctricas "à séria" ou as improvisadas com esferográficas), são monocromáticas e os homens usam mais figuras e as mulheres mais inscrições e palavras. Elas diziam tatuar-se mais a pedido dos amantes, eles por imitação, ócio, tradição (é o caso dos marinheiros), ou afirmação de um estatuto, explicam Catarina Pombo Nabais, co-comissária da mostra e coordenadora do Laboratório de Ciência, Arte e Filosofia do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, e Carlos Branco. Quando, há mais de cem anos, Rodolfo Xavier da Silva, o director do INML (que era também director de um estabelecimento prisional), decidiu encetar esta colecção, “seguia uma corrente científica da época e iniciou a recolha deste tipo de características das pessoas que passam pelo instituto – que faz exames a vivos e não só autópsias”, explica Maria Cristina Mendonça, do INMLCF e uma das coordenadoras da exposição. Pessoas como Serafim da Assumpção Esteves, que foi preso e amplamente fotografado com o corpo desenhado e que, três anos depois da sua detenção, foi encontrado morto na Praça da Figueira. Identificar era a palavra-chave. Serafim tinha a ficha completa no INML e era inconfundível. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A prática científica ditava que se medisse exaustivamente o corpo humano e associava isso à caracterização psicológica e social, era antropométrica. Algo depois estudado por Michel Foucault em Vigiar e punir, obra em que explora também o panóptico como a arquitectura de onde tudo podemos ver sem ser vistos em prisões, escolas ou hospitais, entre outros. Corpos controlados, vigiados, marcas nos corpos, alvos da criminologia. No total, são cinco salas (e a antecâmara onde os tatuadores do agora desenham em mdf inspirados pelas tatuagens de ontem), entre as quais a do panóptico com pele dentro – a tatuagem mais antiga que lá mora é de 1912 –, um espaço para a tatuagem erótica (com O Fado e outras peles), a capela com amostras de pele tatuada com motivos religiosos (muitos Cristos) e duas grandes salas dedicadas aos registos (fotografias, fichas, ilustrações) que distinguem o arquivo do INML de Lisboa. Em Coimbra e no Porto, os INML também recolheram peles e imagens, mas não compilaram os registos que dão mais camadas ao espólio exposto até 25 de Julho. A colecção, e a exposição com ela, tem uma “epiderme, uma camada filosófica, antropológica, cultural”, explica Catarina Pombo Nadais. Além dos registos criminais, das fichas sanitárias e das ilustrações à escala ou individualizadas, conta histórias sobre a cidade – é possível identificar onde eram feitas as tatuagens, a ligação ao fado, ver como os marinheiros traziam peças mais coloridas e sofisticadas do Japão, de Macau –, mas também permite perceber como a ciência, e a vida, viam estes corpos.
REFERÊNCIAS:
A fractura exposta na indústria “mais sexy da Europa”
Após 40 anos de união, a associação do calçado é disputada por duas listas. Um dissídio feito nos bastidores políticos, nas divergências pessoais e, na penumbra, no conceito sobre o que é sexy no calçado. (...)

A fractura exposta na indústria “mais sexy da Europa”
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Após 40 anos de união, a associação do calçado é disputada por duas listas. Um dissídio feito nos bastidores políticos, nas divergências pessoais e, na penumbra, no conceito sobre o que é sexy no calçado.
TEXTO: O clima de união que durante décadas distinguiu a APICCAPS no universo do associativismo empresarial português acabou por estes dias de Abril de 2017. As eleições para a direcção da associação dos industriais de calçado vão ser disputadas por duas listas, o que acontece pela primeira vez desde 1975. De um lado, a candidatura de continuidade promovida por Fortunato Frederico, o dono da Fly London que liderou a associação nos últimos 18 anos, tendo o designer e industrial Luís Onofre como cabeça; do outro o líder do Grupo Pedreira, Sérgio Cunha, 59 anos, que gere marcas reconhecidas na indústria como a Nobrand. O que os separa não são só nomes, simpatias pessoais ou jogos de protagonismos locais tão ao gosto do Norte do país: o que está em jogo é uma divergência sobre as estratégias para o futuro da “indústria mais sexy da Europa”, estatuto que a APICCAPS reivindica. O que é normal no mundo associativo, haver várias listas a disputar o poder, deu origem a um temor: a união que ajudou a transformar um sector anacrónico numa indústria florescente acabou. Agora, Luís Onofre e Sérgio Cunha empenham-se em desfazer a ideia de que a cisão vai deixar feridas abertas. “Quero evitar esses clichés que dizem estar em curso uma guerra”, diz Luís Onofre; “Isto não é uma guerra, é uma disputa de ideias”, nota Sérgio Cunha. Os discursos oficiais, porém, nem sempre resistem à realidade das conversas privadas ou às mensagens nas redes sociais. Há diferentes explicações para o fim da unanimidade. A primeira, apresentada por elementos próximos da lista de Luís Onofre, aponta para a ingerência política do presidente da Câmara de Felgueiras, Inácio Ribeiro, do PSD, que se dedicou a promover um industrial do concelho para a presidência da associação. O autarca chegou a manter contactos com elementos da actual direcção para fazer valer as suas teses. Fortunato Frederico, ausente no estrangeiro, esteve incontactável para esclarecer os termos dessa intervenção. Inácio Ribeiro não respondeu aos contactos do PÚBLICO. Luís Onofre não quer “acreditar que a Câmara de Felgueiras esteja envolvida neste processo” o que a acontecer, sublinha, seria “grave”. E Sérgio Cunha diz desconhecer qualquer ingerência política. A intervenção do autarca pode não ter sido a causa maior da candidatura do líder do grupo Pedreira, um dos maiores do sector, mas acendeu a luz da dissidência. Como sempre aconteceu no calçado, a direcção cessante recorreu a uma prerrogativa do regulamento eleitoral e avançou com um nome para suceder a Fortunato Frederico. Luís Onofre aceitou com relutância e começou a convocar nomes, incluindo o de Sérgio Cunha, convidado a manter o cargo de presidente da Assembleia Geral. As diligências de Onofre antes da assembleia que determinaria o rumo do processo eleitoral caíram mal a Sérgio Cunha. Depois, chegaram os estímulos para avançar. “Recebi imensos convites para criar uma lista, vi que tinha muita gente boa do meu lado”, diz Sérgio Cunha. E avançou, apesar de ter havido tentativas de fundir as duas candidaturas. Com o tempo, a corrida eleitoral começou a trazer à luz do dia divergências com a direcção actual que pareciam estar adormecidas. E impôs novas leituras sobre o protagonismo local dos principais pólos da indústria – Felgueiras, Guimarães, Benedita, São João da Madeira, Oliveira de Azeméis (base de Luís Onofre). Neste particular, a lista de Sérgio Cunha é ilustrativa, com 11 felgueirenses entre os 26 nomes da sua lista – o que o candidato considera “normal”, uma vez que Felgueiras “representa quase metade da produção e da exportação” do sector (uma proporção que outras fontes consideram “muito exagerada”). Luís Onofre dispõe de nomes mais dispersos, mas não deixa de ter os seus trunfos em Felgueiras, com Reinaldo Teixeira a correr para a presidência da Assembleia Geral e Joaquim Moreira, da Felmini, a ter um lugar de destaque. Nos programas eleitorais de cada candidato, a avaliação ao percurso da APICCAPS, o desempenho da direcção cessante e o mérito da equipa técnica da associação são questões maiores. E é aqui que se fundam os principais consensos. “Não há motivos para grandes mudanças. Tem de haver continuidade a um trabalho de 30 anos que deu resultados”, diz Luís Onofre. “O que a APICCAPS fez nos últimos anos foi fantástico. A indústria esteve morta e hoje todo o mundo louva o trabalho feito no sector”, aponta Sérgio Cunha. Uma constatação que o leva a considerar que a associação “tem um corpo técnico fantástico”. Se ganhar as eleições, Sérgio Cunha quer manter o director-geral da associação, Manuel Carlos, considerado o principal ideólogo da transformação da indústria, no cargo. “Admiro-o. A indústria deve-lhe muito. Quero tê-lo ao meu lado”, diz Sérgio Cunha. Mas, afinal, o que separa os candidatos? Mesmo no espírito de “continuidade”, Luís Onofre diz que “é preciso avançar com o rejuvenescimento da indústria com pessoas novas” e considera importante garantir “a comunicação directa com as pessoas”, algo que o candidato considera ser uma falha dos últimos anos. Sérgio Cunha, que também aposta no papel das segundas e terceiras gerações da indústria, quer mais mudanças. No avanço para a indústria digital. No desenvolvimento do comércio online. E, principalmente, quer a associação “a trabalhar para as necessidades das empresas”. Se Cunha ganhar as eleições, a imagem e o conceito da marca “Portuguese Shoes”, alicerçada em sapatos de mulher com pedras preciosas e estiletes a simbolizar luxo e sofisticação vão acabar. “Temos de deixar de apostar em calçado que nós não produzimos”, diz Sérgio Cunha. No perfil da indústria, os produtos de luxo não têm o peso, por exemplo, dos sapatos de homem em pele, mas é precisamente nesse nicho que se insere Luís Onofre, um dos ícones da modernidade do sector. O designer de 46 anos, que factura 12 milhões de euros com a venda de sapatos de mulher que facilmente custam 600 ou 700 euros o par foi o eleito pela direcção cessante por poder consolidar uma imagem luxuosa e sofisticada da indústria. Essa estratégia, muito focada e ampliada pelo director de comunicação Paulo Gonçalves, pode ser corrigida. Com a indústria expectante, a campanha acelera por estes dias. Ambos os candidatos dizem ter trunfos para ganhar uma eleição na qual as empresas votam de acordo com o número de trabalhadores. Os grandes grupos estão divididos, como parecem estar os mais pequenos. Ganhe quem ganhar, Sérgio Cunha e Luís Onofre subscrevem uma mesma promessa: depois do dia 21 a associação virará de página e encerrará este momento original de divergências. com Luísa PintoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Apesar de a marca Luís Onofre só ter feito a primeira apresentação ao mercado em 1999, na ModaCalzado, em Barcelona, a ligação do empresário à indústria do calçado é bem mais antiga. Representa a terceira geração da empresa Conceição Rosa Pereira, fundada em Oliveira de Azeméis, e o lançamento em nome próprio foi feito ao mesmo tempo em que colocou todas as apostas no segmento de luxo do calçado feminino. Mulheres como Michelle Obama, Paris Hilton, Naomi Watts, Letizia Ortiz, Penélope Cruz ou as portuguesas Sara Sampaio e Daniela Ruah engrossam o nome das que já usaram sapatos Luís Onofre. Só sete por certo da produção de Onofre fica em mercado nacional. Entre os principais mercados de exportação estão, na Europa, a Espanha, Holanda, Alemanha, Bélgica, Sul de França, e também países como Angola, Dubai e Rússia, ou outros mais improváveis como a Nigeria e a Mongólia. O ano de 2014 foi, talvez, um dos mais importantes para a notoriedade da sua marca, com a abertura da primeira loja em Portugal, em plena Avenida da Liberdade, e por ter sido o ano em que repetiu prémios de design, foi eleito o homem do ano pela revista GQ e acabou condecorado pelo presidente da República. O grupo empresarial Pedreira, que tem Sérgio Cunha como presidente, factura cerca de 50 milhões de euros e tem na Nobrand a marca própria de maior notoriedade. Fundada em 1988, a marca aposta no target dos citadinos, modernos e irreverentes, mas o calçado é usado por “ jovens dos 17 aos 75 anos”, como refere Sérgio Cunha. Com mais de 1300 pontos de venda em todo o mundo, sendo a presença feita maioritariamente em lojas de distribuição multimarca, a primeira loja em nome próprio foi aberta há menos de dois anos, em Medellin, na Colômbia. Sinal dos tempos, e que novos mercados se começaram a abrir a sério a esta marca, que teve sempre os maiores casos de sucesso dentro do território europeu. A Nobrand é, por exemplo, a marca portuguesa que mais vende na Alemanha. Com cerca de 120 funcionários, e uma capacidade produtiva de perto de 2500 pares de sapatos por dia, a fábrica da No Brand também mereceu a visita do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, que escolheu um par de sapatos desenvolvido com o artista plástico Luio Onassis para ser exposto no Museu da Presidência.
REFERÊNCIAS:
Partidos PSD
Artesãos e designers: uma história de amor em Milão
Empresa de design de produto, premiada com peças das marcas Munna e Ginger and Jagger, organizou um evento de promoção de design português na Semana de Milão (...)

Artesãos e designers: uma história de amor em Milão
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Empresa de design de produto, premiada com peças das marcas Munna e Ginger and Jagger, organizou um evento de promoção de design português na Semana de Milão
TEXTO: Quem se interessa pela temática do design já sabe: todos os caminhos do mundo vão dar a Milão durante as primeiras semanas de Abril. Na mesma semana em que decorre o Salone del Mobile, nas gigantescas naves que acolhem o Parque de Exposições de Rho-Milão, o centro da cidade deixa-se invadir por eventos, exposições, palestras, espectáculos, experiências – é o “Fuorisalone”, considerado o mais importante evento de design no mundo. “É a semana em que todas as pessoas da área do design se concentram, e estão com a mente preparada para procurar e receber informação”, explica Paula Sousa, fundadora das marcas portuguesas de design de produto Munna, criada há oito anos, e Ginger & Jagger, que apareceu há quatro anos. Foi a essa multidão interessada que Paula Sousa quis dar a conhecer “uma história de amor”. Não é uma história de amor qualquer, nem sequer uma história ficcionada, apesar de ter recorrido à ficção e à criatividade de dois jovens realizadores, para a contar em dois curtos filmes. O que Paula Sousa quis levar ao coração do Milão, e à capital do mundo do design, foi a história de amor sobre a qual construiu a sua profissão e o seu negócio: a relação profícua e mutuamente vencedora entre o design e o ofício. Ou, dizendo de outra forma, “Love Between Design & Craft”, o nome do evento com curadoria das duas marcas que teve lugar no Palazzo Durini, no centro histórico da cidade de Milão, a escassos metros da mítica praça do Duomo. O pátio central do Palazzo - um edifício histórico ainda residência de habitantes com ligações nobiliárquicas - e duas das suas salas laterais acolheram uma exposição de peças de mobiliário das duas marcas, a estreia de dois filmes (Device of Love, de André Tentúgal, para Munna; e Grounded Love, de João Sousa, para Ginger & Jagger) e um cocktail e festa privada a que ocorreram centenas de pessoas. O evento foi organizado com a ajuda da consultora cultural Joana Fins Faria. O resultado foi casa cheia e rostos satisfeitos. A concorrência era muita: o eventro foi planeado para uma sexta feira, e na cidade multiplicavam-se os eventos de entrada livre e por convite. “O que mais nos impressionou na proposta destas marcas portuguesas – e que acontece pela primeira vez - foi a forma como cuidaram os detalhes destas exposições, e nos vieram aqui mostrar como o artesão, o trabalho manual, assume um papel tao relevante no design contemporâneo”, explica Alessia del Corona Borgia, responsável pelo desenvolvimento estratégico do “Cinque Vie”, um dos dez “distritos” que asseguram a programação do “Fuorisalone”. A história de amor que foi trabalhada enquanto conceito neste evento é, também, um negócio que vai permitir Paula Sousa manter a estimativa de fechar o ano de 2017 com um volume de negócios de três milhões de euros. Paula Sousa desenha peças de mobiliário (estofos, com a marca Munna, e toda a outra gama de mobiliário e iluminação levam a assinatura da marca Ginger & Jagger). E entrega a sua produção, com a curadoria de uma equipa que hoje em dia já integra quatro designers, a artesãos com oficinas no Norte do país. “Trabalhava com muitos artesãos para a Munna e foi percebendo que havia ofícios a desaparecer. Já não falo só dos marceneiros, mas da serralharia, que em Portugal é muito conotada com a construção civil, com as coisas brutas, mas que também é um ofício, uma arte”, argumenta Paula Sousa. A marca Ginger & Jagger cria peças de design contemporâneo inspiradas nas formas da natureza. Um tronco, uma roseira, uma ostra, tudo pode servir de inspiração. Os pés da consola “Primitive” parecem troncos de madeira, entrelaçados. “Mas são peças de latão fundido, feitos a partir de um molde numa oficina de um serralheiro. É uma forma poética de prestar um tributo à natureza, dizer-lhe o quão bonita ela é”, explica Paula Sousa. Do ponto de vista do negocio, o arranque desta marca foi muito importante para a empresa de Paula Sousa, por permitir completar a sua presença nos stands das feiras internacionais com outras peças que não os estofos, que são exclusivos da marca Munna. “A Munna é a marca que nos dá mais volume de vendas, e das quais vendemos mais unidades. Mas é a Ginger que pesa mais no volume de facturação da empresa”, esclarece a empresária. Pegando no exemplo do produto que mais vende em cada marca, percebe-se bem esta diferença. Na marca Ginger & Jagger a estrela é o aplique de parede “Pearl”. É um candeeiro a fazer lembrar uma ostra, feito a partir de uma pedra de mármore única, que tem de ser escavada manualmente – “e só conhecemos dois artesãos em quem temos confiança e reconhecemos capacidade para o conseguir fazer”, diz Maria Bruno Néo, diretora da equipa de designers da empresa - e incorpora depois uma componente em latão que simula uma pérola. Demorou mais de um ano a desenvolver, demora algumas semanas a executar e tem o preço de venda de 3690 euros. A cadeira Corset, da marca Munna, é feita manualmente, passando por vários marceneiros e estofadores, e custa 1140. Mereceu, até agora, umas das encomendas mais expressivas da marca: 600 cadeiras para decorar um cruzeiro de luxo que circula num rio alemão. “O facto de estarmos a falar sempre em produção manual, não quer dizer que não se possa produzir em quantidade”, insiste em sublinhar Paula Sousa. Às vezes, o que parece ser óbvio merece mesmo ser sublinhado. E se é obvio que os artesãos que trabalham para as marcas Munna e Ginger &Jagger são peças fundamentais no sucesso da empresa, merece ser sublinhado que foram eles que engrossaram a comitiva de convidados da empresa a participar no evento que animou o Palazzo Durini. Quando Paula Sousa desafiou Manuel Baptista, um ourives que assegura a segunda geração à frente de uma oficina familiar em Gondomar, teve como resposta um ponto de interrogação: “Eu faço jóias, não faço móveis”. Paula Sousa convenceu-o de que os móveis também são jóias, e hoje Baptista já precisa de empregar mais seis artesãos para trabalhar consigo e dar conta das encomendas. O candeiro “Banana”, cuja versão de pé foi lançada em Janeiro no salão “Maison et Objet”, em Paris, custa 4100 euros. A versão de suspensão, lançada neste Salone del Mobile, em Milão, custa 6. 290 euros. Cada uma das folhas destes bananas é cinzelada à mão e demora três a quatro dias a executar. “Eu costumo dizer que já não tenho uma equipa, mas sim que tenho uma selecção”, diz Manuel Baptista, entusiasmado, referindo-se aos artesãos que ajudou a formar para integrar a sua oficina. Sobre o que sente ao ver as suas peças fora do ambiente da oficina, expostas num palácio setecentista tão bonito? “Fico emocionado”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A jornalista viajou a convite da Urban MintOs números de que se faz a semana do design de Milão e o Salone del Mobile são sempre avassaladores: 370 mil visitantes, 2000 expositores, só no gigantesco parque de exposições onde decorre a feira; e centenas de exposições e eventos espalhados pelos oito bairros diferentes da cidade - os chamados Design District - em que se busca envolver a população residente, e levar os benefícios de toda esta programação às várias zonas da cidade. Para além de todos os números massivos, existe ainda o Salão Satélite, onde todos os anos, pequenos ateliês, e alguns projectos universitários têm espaço para mostrar a sua linha e a sua arte. Este ano, o Salão Satélite contou com a presença de um único português, André Teoman. Com ateliê próprio em Viana do Castelo, depois de ter trabalhado para outras marcas, como a Menina Design, Teoman disse ter noção que é “um pequeno peixe” num oceano cheio de “baleias gigantes”. O Salão Satélite, organizado desde 2010, constituiu, mais do que uma feira de negócios, uma oportunidade de criação de redes de contactos. Há prémios pecuniários para os que assinarem as três peças eleitas pelo júri. Mas Teoman sabia ser difícil ser eleito, já que escolheu não levar peças de mobiliário. Quis antes levar a sua visão pessoal, por vezes transmitida de forma provocatória: o design is “not for sale".
REFERÊNCIAS:
A tribo de Cyril
Esqueçam as mensagens de texto nos telemóveis, o vídeo vai ser o nosso principal meio de comunicação. Cyril Paglino, que foi vice-campeão mundial de breakdance, criou Tribe para a geração que está “sempre ligada”. Rapidamente percebeu que ser divertido é muito mais viral do que ser útil. (...)

A tribo de Cyril
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Esqueçam as mensagens de texto nos telemóveis, o vídeo vai ser o nosso principal meio de comunicação. Cyril Paglino, que foi vice-campeão mundial de breakdance, criou Tribe para a geração que está “sempre ligada”. Rapidamente percebeu que ser divertido é muito mais viral do que ser útil.
TEXTO: Passarem o dia a lutar com o telemóvel com falta de paciência para corrigirem mensagens de texto que escreviam em teclados minúsculos levou o francês Cyril Paglino e um grupo de amigos, entre os quais o programador português Tiago Duarte, a criarem a app Tribe durante uma temporada numa casa que alugaram, em Agosto de 2015, em Saint-Tropez, no Sul de França. Foi a nostalgia daquela “magia pura” que sentiam na adolescência quando usavam o AIM ou o MSN Messenger para contactar com os amigos em mensagens escritas em tempo real que os levou a criar uma aplicação idêntica mas mais adequada aos tempos de wi-fi e banda larga: Tribe usa o vídeo em vez de sms. Um mês depois dessas férias já estavam em São Francisco, nos Estados Unidos, com um primeiro protótipo de Tribe. Lançaram essa versão na Califórnia, conseguiram dinheiro de um investidor americano (a Sequoia), recrutaram mais pessoas e continuaram a trabalhar. Actualmente são uma equipa de quinze rapazes e raparigas de diversas nacionalidades — franceses, americanos, canadianos iraquianos e portugueses — e trabalham juntos na casa onde vivem. “O meu sócio-fundador, Tiago Duarte, é do Porto e vivia em França. Gere a equipa de engenheiros informáticos comigo. Eu não programo. Tiago tem competências técnicas que não tenho. Quando o convidei para fazer parte deste projecto, estava em Itália, abandonou o emprego e começámos a trabalhar na Tribe”, conta Cyril Paglino ao P2 na suite do Grand Amour, na Rue de la Fidélité, em Paris, o hotel decorado pelo designer luso-descendente André Saraiva. Quando Cyril quer explicar a alguém o que é a Tribe, compara-a com um bar onde as pessoas vão aparecendo. “É como ter uma sala de estar da Internet no nosso telemóvel. ”A Tribe começou por ser uma app de mensagens em vídeo, em que as mensagens escritas eram substituídas por pequenos vídeos, mas entretanto mudou. Manteve o mesmo nome e design mas passou a dar primazia ao live, permitindo juntar no ecrã do telemóvel até oito pessoas numa videochamada em tempo real. Tal como o Skype, da Microsoft, ou o FaceTime, da Apple, a Tribe serve para se comunicar em vídeo, mas, assegura o seu criador, é “mais divertida”, mais “fácil de usar” e o vídeo é “menos pesado” do que o do Messenger, do WhatsApp ou do Snapchat. “O nosso objectivo é que Tribe venha a ser uma espécie de Skype (que desde que foi comprado pela Microsoft nunca mais evoluiu) mas tenha um ar 2017, seja mais actual, mais bem desenhado e direccionado para os mais jovens”, diz o CEO da Tribe. A-team ??Uma publicação partilhada por Cyril Paglino (@cyrilpaglino1) a Out 31, 2016 às 8:22 PDTEsta não era a primeira aplicação que Tiago Duarte e Cyril Paglino (juntos na fotografia da direita, em cima) criaram em conjunto mas foi a única em que a Sequoia investiu 3 milhões de dólares. “Foram eles que me contactaram e o negócio fez-se em quatro dias. Foi muito rápido porque perceberam que o que fazíamos neste pequeno segmento se poderia tornar interessante”, conta Cyril que acredita que Tribe é uma boa marca, com uma equipa competente, por vezes brilhante, num mercado como o do vídeo que está em plena expansão. “Quem tem entre 12 e 20 anos só comunica através de vídeo, usando-o quer quando estão longe, no estrangeiro, quer em casa, enquanto fazem os deveres da escola. É uma geração que já está live o tempo todo”, explica Cyril. “Há uma espécie de sentimento de ubiquidade, a capacidade de uma mesma pessoa se duplicar pelo mundo inteiro. Por exemplo, estou aqui em Paris a falar consigo mas ao mesmo tempo, de meia em meia hora, faço videochamadas para variadíssimas pessoas e não tenho a impressão de que estão a muitos quilómetros de distância. ”Quando regressa a França, Cyril abraça a mãe depois de alguns meses de afastamento mas tem a sensação de que esteve com ela ontem. “É paradoxal. . . tudo porque falei com ela através de videochamada, vi-a sorrir com o seu novo corte de cabelo e a sua camisa nova. ”Estamos em Paris porque Cyril Paglino foi nomeado “embaixador” da marca americana de vestuário que nasceu em São Francisco, a Dockers, e ficou conhecida pelo estilo descontraído das suas calças “chinos”. Este empreendedor francês que abandonou o liceu aos 15 anos para prosseguir uma carreira de dançarino profissional de breakdance — foi vice-campeão mundial aos 19 anos, era patrocinado pela Red Bull e pela Nike — é a imagem da campanha para a colecção de homem desta Primavera/Verão, cujas peças têm uma silhueta mais justa ao corpo, são mais skinny — todas as calças têm strecht horizontal, o que dá uma maior flexibilidade, e cores muito pop. Nestes últimos dez anos, Cyril foi abordado por outras marcas para fazer publicidade aos seus produtos, fê-lo três ou quatro vezes. “Não é esse o meu trabalho, não sou uma agência, nem actor, há pessoas que o fazem e são dotadas para isso, não é o meu caso”, diz, apesar de aos 19 anos ter entrado no Secret Story, um reality show francês. Retirou-se dos concursos mundiais de breakdance aos 21 anos e criou uma startup. Lançou uma aplicação de dating ou de encontros, que “foi um flop”: “Era mal feita, eu era muito inexperiente, era a minha primeira sociedade e perdi dinheiro. Acontece. ” A segunda investida no mercado das startups, com uma agência de talentos digital para celebridades francesas, deu-lhe dinheiro em 2014 quando a vendeu e permitiu-lhe apostar noutros projectos sozinho. Antes de Tribe, Cyril fez uma outra aplicação com Tiago. “Chamava-se Pleek. Há uns quatro anos permitia a partilha de fotografias entre jovens de 12, 13 anos. Era um conceito parecido com o do Snapchat e percebemos que não íamos conseguir estar no mesmo campeonato. Ao fim de seis meses abandonámos a ideia”, recorda. “O Snapchat é hoje mais uma aplicação de broadcast do que outra coisa. Uma aplicação onde se podem postar histórias que têm o formato vídeo e que uso se quero partilhar o meu dia, durante 24 horas, com centenas de amigos. Transformou-se numa plataforma pública”, ao contrário de Tribe, que se concentra nos 50 amigos mais próximos de cada utilizador, aqueles com quem discutimos quotidianamente. “As pessoas com quem falo, duas, três, quatro vezes por dia. Não quero ter uma plataforma para postar um conteúdo que não vai ter resposta. Quero uma que me permita interagir com eles. ”Numa versão anterior de Tribe, que tinha alguns milhões de signatários nas aplicações para Android e iOS, Cyril e equipa trabalharam com aquilo que chamavam “augmented messaging” com a ajuda de palavras mágicas. “As Magic Words é um conceito que inventámos e registámos, em colaboração com o Google. Quando enviávamos uma mensagem de vídeo para alguém e dizíamos: ‘Olá, Celine, vamos amanhã sair às 19h? Vamos jantar ao Costes?”, o que era dito no vídeo era transposto para legendas. A aplicação captava algumas palavras-chave dessas frases, uma marca e um lugar, e propunha um endereço do restaurante e reservava um Uber. Tudo isso acontecia no vídeo, havia um conceito de machine learning e de inteligência artificial que ‘compreendia’ o que cada humano dizia, para propor um serviço no vídeo”, explica o empreendedor. Mas fizeram uma avaliação daquela que foi considerada uma das melhores apps de 2016 pela Time e por outras publicações como a TechCrunch ou a Forbes e estão numa fase de mudar o que fizeram antes. “Infelizmente, tenho essa impressão, o conceito de Magic Words era demasiado vanguardista para o mercado o aproveitar. Só em São Francisco, onde os hábitos e os usos tecnológicos estão mais desenvolvidos, é que os utilizadores recorriam a ele. Era demasiado geek para aquilo que hoje em dia o consumidor médio utiliza”, lamenta Cyril. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Por outro lado é divertido ver que estávamos à frente no tempo. Em 15 meses demo-nos conta de que desde o início nos preocupávamos muito com a utilidade do produto, com o ganhar-se tempo e a produtividade. O que vemos é que as pessoas querem principalmente divertir-se. Os produtos mais virais são inúteis mas muito divertidos. Quando nos divertimos com um produto temos empatia com ele, partilhamo-lo mais facilmente do que um muito utilitário, como um calendário muito inteligente que nos ajuda a organizar a nossa vida. É muito inteligente mas não é divertido e necessitamos de algum tempo para perceber como funciona. ”E foi assim que a Tribe mudou de rumo e se tornou mais mainstream. O PÚBLICO viajou a convite da Dockers
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola ajuda homem espécie corpo deveres
A moda vai nua
Algures no coração do sistema, um agente provocador dispôs-se acabar de vez com o desfile, antes que a gloriosa história da moda se espalhe definitivamente ao comprido numa passerelle. Chama-se Olivier Saillard e estreia esta sexta-feira no Porto Couture Essentielle. (...)

A moda vai nua
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Algures no coração do sistema, um agente provocador dispôs-se acabar de vez com o desfile, antes que a gloriosa história da moda se espalhe definitivamente ao comprido numa passerelle. Chama-se Olivier Saillard e estreia esta sexta-feira no Porto Couture Essentielle.
TEXTO: Blusão de cabedal com estofo para aguentar mais dez ou 20 Invernos, calças de ganga com bruta dobra lá em baixo, junto às botas preparadas para a chuva desgovernada dos últimos dias, Olivier Saillard tem as mãos na cauda de um vestido preto quando o encontramos numa galeria do Museu Bourdelle a poucos dias de ali inaugurar Balenciaga: L’Oeuvre au Noir. É só mais um corpo esculpido na floresta de corpos esculpidos — uns pela escultura, outros pela alta costura — que será a sua segunda exposição neste discreto museu de Paris, a uma galáxia de distância do tumulto à porta do Louvre ou debaixo da Torre Eiffel, onde a esta mesma hora da manhã se formam filas cada dia mais gigantescas e mais policiadas: “Quando tiramos a moda do museu de moda, a condensação diminui e tudo se vê melhor: as pessoas falam mais da obra e menos da moda. Este ambiente sinaliza imediatamente que uma peça de vestuário está muito próxima da escultura (mais do que da pintura, ou do que da fotografia): é preciso andar à volta dela, as costas de uma peça de vestuário são bonitas, são interessantes, têm técnica. ”Não é por causa desta exposição, nem sequer por causa do singular trabalho (“erudito e iconoclasta”, resume a L’Express) como historiador e curador que o levou em 2010 à direcção do Palais Galliera — Museu de Moda da Cidade de Paris, que andamos à volta do seu corpo alto e estreito esculpido por um blusão de cabedal e por umas calças Levi’s (falaremos deles daqui a minutos, a propósito, quando nos sentarmos para um café). Olivier Saillard tem uma vida dupla no território não exactamente inimigo mas ainda assim estrangeiro das artes performativas, e a convite de Tiago Guedes, o director do Teatro Municipal do Porto, fará a estreia mundial da sua nova performance de moda, género que praticamente inventou, no Salão Árabe do Palácio da Bolsa. Couture Essentielle (sexta e sábado no Porto, de 21 a 23 no Centre National de la Danse, em Paris) retoma a sua colaboração com quatro corpos que fazem parte do património iconográfico da segunda metade do século XX, as ex-modelos Christine Bergstrom, Axelle Doué, Claudia Huidobro e Anne Rohart, mas sobretudo retoma a sua metódica campanha de denúncia do desfile enquanto dispositivo absolutamente esgotado onde já não se exibe nada a não ser a morte cerebral de uma indústria submetida à “histeria” das redes sociais”. Sim, temos aqui o D. Quixote: um director de museu que no mundo ideal abriria as portas apenas a um visitante por dia e para o inferno com os números de público (outra histeria); um encenador que se habituou a arriscar a pele a cada nova performance (“São a minha segunda casa: perco dinheiro com elas, mas dão-me imenso prazer, reinventaram a minha vida”); um activista no olho do furacão da mais capitalista das indústrias capitalistas. “Mas um activista não muito ouvido, parece-me. O grande público acompanha as minhas performances, o público especializado acompanha as minhas performances. E a seguir tudo continua igual. ”É uma batalha perdida a que se dedica há vários anos — entretanto, passou das pequenas soirées privadas, totalmente off, com que durante a primeira década dos anos 2000 se tornou uma espécie de comentador residente, mas nada alinhado, da Semana da Moda de Paris, a um dos mais cobiçados patamares do circuito europeu das artes performativas, o Festival de Outono, que definitivamente fez dele um autor. Não são menos subversivas do que os seus primeiros serões activistas, as três performances com Tilda Swinton que o Festival de Outono lhe encomendou e que acabaram compiladas num volume luxuoso, Impossible Wardrobes (Rizzoli, 2015): na primeira, The Impossible Wardrobe (2012), Olivier Saillard depositou-lhe nos braços, “como belas adormecidas”, algumas das mais valiosas peças saídas das reservas do Palais Galliera, incluindo um uniforme de gala de Napoleão Bonaparte e uma estola de arminho de Sarah Bernhardt; na segunda, Eternity Dress (2013), produzia à frente dos espectadores um vestido à medida da figura esfíngica da actriz, resgatando do esquecimento saberes artesanais ameaçados de extinção num mundo de fast fashion; na última, Vestiaire Obligatoire (2014), pô-la a explorar livremente, até à última prega, até ao último bolso, as roupas e os acessórios deixados pelos espectadores no bengaleiro. É uma das suas fixações, dirá ao Ípsilon: “As pessoas cultivam uma verdadeira relação com as suas peças de roupa, uma relação bem mais íntima do que a moda quer dizer. Disso ninguém se ocupa: é um território infinito e não há um costureiro a cuidar dele. Justamente, o retorno que tenho destas performances é que as pessoas se sentem ao mesmo tempo indignadas com o estado do mundo, de que a moda é um dos arquétipos mais extremos, e confortadas com o grau de intimidade que ela lhes significa. ”Vem a propósito do blusão de cabedal, a conversa favorita de Olivier Saillard: “Nem sei há quantos anos o tenho, mas não me imagino a deixar de o usar. Mesmo as pessoas que compram muita roupa têm dificuldade em desprender-se de certas peças. Só que a indústria não quer admitir que as pessoas normais não compram roupa todos os dias, que há peças que guardamos para sempre. Há a máquina comercial por trás e parece que se exultarmos a ideia de as pessoas se ligarem ao que têm deixa de ser possível vender — mentira, mas enfim, este síndroma da novidade precipitou um enorme desamor na indústria…”. As pessoas normais que não se desprendem dos seus blusões de cabedal (e que nunca comprarão umas calças de ganga Prada “a 3600 euros” enquanto for possível encontrar “na H&M umas a 20 que servem perfeitamente”) é outro assunto que ele domina. Filho mais novo (o sexto) de pais taxistas, cresceu no fim do mundo, em Pontarlier, uma pequena cidade da Borgonha, colada à fronteira suíça e infamemente conhecida como “a pequena Sibéria”. Não teve um quarto só dele mas teve um sótão, onde passou anos e anos entrincheirado nas roupas velhas dos oito elementos da prole que a mãe ali empilhava para irem morrer longe (“como numa instalação de Boltanski”). Daí até Paris foi um salto quântico, embora haja uma apreciável coincidência entre o miúdo que aos 12 anos produziu sozinho a sua revista de moda, Le Grand Couturier, o rapaz de 18 que quis cumprir o seu serviço cívico como objector de consciência no Museu da Moda e do Têxtil de Paris, um anexo do grande Museu das Artes Decorativas, e o adulto que viria a ser director do Museu da Moda de Marselha (1995-2000), conservador responsável pela programação de moda das mesmas Artes Decorativas por onde tinha passado como voluntário, e director do Palais Galliera. Hoje, 40 anos depois dessas experiências no sótão, diz que se divide “mal” entre a sua dupla vocação de historiador-curador-director de museu e artista-encenador, embora as operações de organizar uma exposição e imaginar uma performance não sejam “assim tão diferentes”. Tanto em Models Never Talk (2014), a sua primeira produção com as quatro modelos que estarão no Porto (a que então se juntavam Charlotte Flossaut, Amalia Vairelli e Violeta Sanchez) como em Couture Essentielle, trata-se de activar a história da moda através de associações mais ou menos inusitadas, como nas várias exposições que foi produzindo. “A diferença é que o suporte são mulheres vivas em vez de manequins, paredes ou pedestais, o que é muito mais encorajador”, diz. Essas mulheres vivas são quatro encarnações da história da moda, do seu património de carne e osso; podiam, deviam, estar num museu, ri-se, “se não falassem demasiado”: “A Claudia foi a musa de Jean-Paul Gaultier; a Axelle foi a musa de Claude Montana e de Thierry Mugler, mas trabalhou com todos os grandes, desde a Madame Grès; a Anne Rohart trabalhou imenso com a Sonia Rykiel e fez fotografias míticas para a Dominique Issermann; a Christine foi o braço direito do Jean-Paul Gaultier no estúdio, uma prática que se perdeu e que nenhuma modelo tem actualmente”. É com elas que Olivier Saillard pretende aventurar-se no lugar do crime, o dispositivo em que vê concentradas todas as insuficiências e todas as impotências da indústria da moda: “Em todas as performances anteriores tentámos contornar o espaço do desfile para fazer outras coisas, para ir aos interditos. Agora vamos fazer um verdadeiro desfile de moda, ou a fantasia de um desfile de moda, porque as peças que vamos mostrar não se aguentam sobre o corpo se não as segurarmos com as mãos. Trabalharemos sobre os caracteres mais efémeros de uma peça de roupa, mas seguindo o protocolo de encenação de um desfile. ”Seguindo-o para o sabotar, claro, antes que a moda se estampe definitivamente ao comprido num dos 500 desfiles (perfazendo um impressionante total de 13. 800 coordenados) que a cada estação se realizam só nas semanas da moda de Paris, Londres, Milão e Nova Iorque: são números reais, Olivier Saillard pediu ao seu assistente para os contabilizar na manhã em que o encontramos, e agora ei-lo à nossa frente em estado de choque. “Nos anos 50, os desfiles duravam duas horas; hoje duram sete minutos, são desfiles iPad. Vês os fotógrafos a chegarem, depois as estrelas, toda a gente se fotografa alarvemente, a coisa arrasta-se por uma boa hora e não é de todo interessante, à parte esse teatro um pouco estúpido e excludente… e de repente, em sete minutos, acabou. As pessoas já nem sequer aplaudem: têm as mãos ocupadas com os seus telemóveis. ” É, diz, “um protocolo à beira de se tornar patético”, e a inércia incomoda-o: “Uma casa com poder poderia decidir fazer um desfile de 20 minutos, não seria um escândalo. Mas o que mais me surpreende é que nos últimos 15 anos — desde as últimas tentativas de Martin Margiela, Hussein Chalayan, Viktor&Rolf… — não houve um jovem criador a querer reinventar o dispositivo, a querer partir o que quer que seja. Toda a gente é muito dócil com o sistema. ”Não há violência gratuita nas palavras nem nos actos de Olivier Saillard: “Falo de tudo isto porque o que estamos a fazer põe a nu, espero, o carácter aberrante deste mundo viciado num excesso de abundância que não serve a criação. Nos grandes criadores — Comme des Garçons, Yohji Yamamoto, Azzedine Alaïa… — nunca é o dinheiro que está no coração da motivação. Interessa-me mostrar um estado da moda que não tenha nada a ver com a indústria nem com o dinheiro; um estado que corresponda a zero economia. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Couture Essentielle será esse grau zero: quatro modelos no fim da sua própria história enquanto corpos de moda, alguns pedaços de tecido, não muito texto, bastante silêncio. “Quando comecei a fazer as minhas performances, tinha muito mais na cabeça o Martin Margiela do que qualquer coreógrafo. Ele fazia desaparecer toda a comunicação para fazer aparecer a roupa, eu quero fazer desaparecer a roupa para fazer aparecer o pensamento. ” É dessa história, uma história da moda, que Olivier Saillard descende, não das artes visuais ou performativas. Claro que lhe interessam, responde-nos, “todos os artistas que trabalharam sobre o vestuário”, como Christian Boltanski nas funéreas esculturas em que “evidencia as formas de desaparecimento de uma peça de roupa com incrível eloquência”, Jérôme Bel em Shirtologie (1997) ou Trisha Brown em Floor of the Forest (1970); mas sempre teve “o cuidado” de não inscrever o seu trabalho nessas disciplinas: “Não quero que isto se torne dança nem teatro, não quero que as modelos façam outra coisa que não o seu papel de modelos; quero que isto permaneça dentro do território da moda, que é verdadeiramente aquilo que eu amo, ou pelo menos no território do vestuário e da sua memória. ”Também vem daí o seu fétiche pelas “modelos envelhecidas” e pela memória que os seus corpos encerram, mais do que por actrizes — “à parte a Tilda Swinton e a Charlotte Rampling [juntou-as em Sur-Exposition (2016)], ou a Isabelle Huppert”, com quem gostaria de trabalhar, a partir de vestidos da colecção permanente do Palais Galliera, numa visita encenada à memória das míticas Soeurs Callot, de que é descendente directa. “Acho que fazemos o nosso trabalho de museu quando fazemos estas coisas. Mais do que quando mostramos as peças em manequins por trás de vitrinas”, sublinha. O seu museu ideal, aliás, é parecido com o Museu Efémero da Moda que vai inaugurar em Julho no Palácio Pitti, em Florença, onde as peças estarão expostas com o mínimo de aparato (“sobre as costas de uma cadeira, espalhadas pelo chão, penduradas num cabide…”), o mesmo mínimo aparato que levaria para um desfile convencional, se o convidassem. “Adoraria fazer, no final de uma semana da moda, um desfile com todas as modelos que tivessem desfilado, mas nas suas roupas normais, como se passassem na rua, sem maquilhagem, sem penteados. Nalguma altura terei de defrontar o inimigo no seu próprio terreno. ”O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime morte violência filho carne género espécie mulheres corpo extinção desaparecimento
A biblioteca de Mafra está congelada e isso é bom
Em Mafra, D. João V não se preocupou em poupar. Aquela que é uma das mais importantes bibliotecas históricas do mundo é prova disso. O que é que se guarda nas suas estantes? De que é que tratam os livros proibidos pela Inquisição? E porque é que devemos olhar para ela como uma bolha no tempo? (...)

A biblioteca de Mafra está congelada e isso é bom
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.7
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Mafra, D. João V não se preocupou em poupar. Aquela que é uma das mais importantes bibliotecas históricas do mundo é prova disso. O que é que se guarda nas suas estantes? De que é que tratam os livros proibidos pela Inquisição? E porque é que devemos olhar para ela como uma bolha no tempo?
TEXTO: Quem ali entra não pode deixar de ficar impressionado com o que vê. A sala é enorme e as paredes estão cobertas por dois andares de estantes carregadas de livros cuidadosamente arrumados, com um varandim de ambos os lados e no topo. Ao todo são cerca de 30 mil volumes que vão do século XV ao século XIX, a maioria com encadernações em pele e inscrições a dourado, que cobrem todas as áreas do conhecimento, da medicina à religião, da história à arquitectura e à poesia, passando pela astronomia, a cosmologia, a literatura de viagens, a biologia e o esoterismo. No topo sul está a magnífica colecção de Bíblias, no oposto as obras das chamadas ciências puras. Cada coisa no seu lugar. Olhando para o chão de várias cores, brilhante de tão polido, não é de estranhar que os príncipes D. Carlos e D. Afonso aproveitassem para ali andar de patins quando a mãe, Maria Pia de Sabóia, entrava naquela sala. Diz-se até, conta a bibliotecária, que o mais velho dos filhos de D. Luís I chegou a ser apanhado a ler um volume sobre civilizações clássicas com gravuras de mulheres seminuas. “Se foi castigado ou não, não sabemos porque não há registo”, brinca Teresa Amaral. Tida como uma das bibliotecas históricas mais importantes (e cenográficas) do mundo, a chamada Casa da Livraria de Mafra associa-se aos festejos dos 300 anos do lançamento da primeira pedra da basílica deste palácio-convento que D. João V (1689-1750) mandou construir com uma série de visitas guiadas e conferências que já começou e se prolonga até ao fim do ano. A ideia, explica o director do monumento que quer ser património da humanidade, é convidar as pessoas a visitarem este espaço que muitas não conhecem, protegido por uma colónia de morcegos residente que come as traças e outros insectos responsáveis pela destruição do papel e da madeira das estantes rococó, e, ao mesmo tempo, lembrar aos investigadores que há ainda muita coisa que não sabemos sobre este acervo que permite, como poucos, estudar uma época. “A biblioteca de Mafra é verdadeiramente uma encomenda joanina, muito mais do que a de Coimbra”, diz Mário Pereira, o director. “Coimbra tem estantes do tempo do rei, mas recebe livros ao longo de séculos porque está associada à universidade. A biblioteca de Mafra é como uma bolha no tempo, está circunscrita, congelada. ”A bibliotecária reconhece que não se sabe ainda quantos volumes teria na sua origem, mas o que é certo que, na década de 1750, 80% dos que hoje vemos já lá estava. Os 30 mil volumes– ninguém se atreve a contabilizar as obras que ali estão guardadas, porque um volume pode chegar a ter 100 lá dentro – chegaram praticamente todos num intervalo de 30 anos. O facto de ter sido construída “quase de um fôlego” dá-lhe uma “singularidade extraordinária” e permite perceber de que forma se segmentava o conhecimento na primeira metade do século XVIII, que áreas se privilegiavam e o que era, já na altura, considerado valioso do ponto de vista bibliográfico, defende Tiago Miranda, investigador da Universidade de Évora que está a estudar as marcas que apresentam os livros da biblioteca do palácio para perceber de onde vieram e assim traçar um retrato mais preciso deste acervo mandado reunir pelo monarca. “O facto de não encontrarmos no convento documentos sobre a constituição da biblioteca diz-nos que, provavelmente, os cérebros que lhe deram origem não estavam aqui”, acrescenta, explicando que a casa da livraria é um subproduto da grande biblioteca dos oratorianos [D. João V, que não tinha um confessor jesuíta como seria de esperar, aposta muito na Congregação do Oratório, grande concorrente da Companhia de Jesus e, tal como ela, especialmente vocacionada para o ensino] que haveria de dar origem à do Palácio das Necessidades. Muitos dos volumes de Mafra têm marcas de uso – pingos de cera, sublinhados, notas à margem – mas outros, diz a bibliotecária, parecem não ter sido sequer abertos. “Nas bibliotecas da Ajuda e de Coimbra os livros são muito manuseados, mas aqui não”, concorda Tiago Miranda, falando em seguida de uma das preciosidades da casa, o Erário Mineral, um dos primeiros tratados de medicina escritos em língua portuguesa, publicado pela primeira vez em Lisboa em 1735. Esta obra resultante das experiências médicas de Luís Gomes Ferreira, que tinha uma profissão que hoje parece, no mínimo, curiosa, a de cirurgião-barbeiro, na capitania de Minas Gerais, inclui um importante inventário dos medicamentos usados na época, muitos deles de origem indígena, e um relato detalhado das terríveis condições em que viviam os escravos. “Este é um livro raríssimo e Mafra tem dois exemplares. Um deles parece que saiu ontem da prensa, é fantástico. ”Explica Teresa Amaral que Mafra se inscreve num movimento europeu de constituição de bibliotecas com directrizes muito específicas inscritas em documentos que dizem que temas são imprescindíveis e que autores de referência se devem comprar. “O rei manda cartas a vários dos seus embaixadores para se informar como estão a ser feitas bibliotecas noutros países e depois ordena que se compre o que de melhor há nos grandes mercados livreiros da época, em França e na Holanda, países onde são leiloadas bibliotecas inteiras com fundos importantes e onde os negociantes têm acesso a verdadeiras raridades. ” Seja no domínio das edições, seja no da ourivesaria, da escultura ou da arquitectura, D. João V é exigente e vê as encomendas internacionais como uma espécie de recurso diplomático, como um instrumento de promoção de Portugal perante outras cortes europeias, com as quais parece estar sempre disposto a competir. Mafra faz, também, parte de um conjunto de bibliotecas em que D. João V investe e que inclui, além da de Coimbra, as dos palácios das Necessidades e da Ribeira, esta última, com uns estimados 60 mil volumes, desaparecida com o terramoto de 1755. Não se conhecem até hoje, diz Tiago Miranda, os planos do monarca para esta rede, embora os acervos de Mafra e das Necessidades, por exemplo, tenham muito em comum e seja evidente o cuidado que houve nas compras feitas. “Muitos dos livros de Mafra já são de colecção desde o século XVI”, acrescenta este investigador que é hoje capaz de identificar alguns dos seus anteriores donos, destacando entre eles duas importantes figuras da corte de Luís XIV, o poderoso Jean-Baptiste Colbert, o ministro de Estado, e Nicolas Fouquet, o nobre a quem o rei sol entregou a pasta das Finanças. “As bibliotecas em D. João V não são só uma questão de saber, mas de prestígio, de poder até. ”Os livros de Mafra estão referenciados em dois catálogos, um de 1755, feito por Frei Manuel de Cristo, e outro de 1819, de Frei João de Santa Anna, obra colossal de 12 mil páginas dividida em oito grossos tomos com a descrição dos 30 mil volumes que compõem esta biblioteca régia, que recebe fundos do convento e que serve, também, os que frequentam os Reais Estudos que ali passam a funcionar na década de 1730. O acervo, que até aí estava separado em duas salas, só chegou ao seu lugar definitivo em finais dos anos 1770, diz a bibliotecária, elogiando o trabalho de João de Santa Anna: “É incrível a precisão deste catálogo – ele diz-nos em que estante está cada volume, a ‘casinha’ que ocupa nessa estante e a posição que tem dentro dessa ‘casinha’. Nem sempre se acham os livros porque podem ter sido levados ou simplesmente estar mal arrumados, mas na maioria das vezes estão onde Frei João de Santa Anna diz que estão. ”E entre os tesouros deste catálogo estão, por exemplo, um livro de 1599 do naturalista italiano Ulisse Aldrovandi (1522-1605), um dos primeiros a descrever o tucano; a obra Hesperi et phosphori nova phaenomena (1728), de Francesco Bianchini (1662-1729), astrónomo e filósofo italiano de quem D. João V era mecenas; uma primeira edição das obras completas do dramaturgo português Gil Vicente (c. 1545-c. 1536), de 1562; um importante núcleo de Livros de Horas de origem francesa, em pergaminho, assinalando a transição do manuscrito para o livro impresso; um volume com as obras de Francesco Petrarca (1304-1374) que muito encantava o escritor Vasco Graça Moura, que tanto traduziu este poeta italiano; uma edição do século XVI das teorias do filósofo grego Aristóteles (384 a. C. -322 a. C) e aquela que é considerada a primeira enciclopédia (de Diderot e D’Alembert), embora incompleta. Mas há também “raríssimos” tratados de arquitectura, uma curiosa gramática sino-latina, partituras de compositores como Marcos Portugal e João José Baldi, especialmente criadas para o conjunto de seis órgãos da basílica, único no mundo, e uma colecção significativa de incunábulos (obras impressas até 1500) em que se destaca, por exemplo, a chamada Crónica de Nuremberga (1493), do humanista e cartógrafo Hartmann Schedel (1440-1514), um dos primeiros livros impressos da história e um dos maiores volumes ilustrados da época. A Bíblia Complutense (1520), a primeira edição poliglota impressa (aramaico, hebraico, grego, latim), é a obra que a bibliotecária Teresa Amaral destaca. “Está dividida em seis volumes e a maioria das bibliotecas que a tem, e são poucas, só tem os cinco primeiros. Nós temos também o último. É uma obra importantíssima no Renascimento. ” O director do monumento concorda, mas prefere chamar a atenção para coisas menos conhecidas, como La galerie agréable du monde, obra em 66 volumes impressa na Holanda a partir de 1690 (até 1730) e composta por grandes estampas. “Mostra o mundo e os seus povos, começando com o mapa de cada região com os locais mais importantes, como as cidades e as fortificações, e passando também pela representação dos trajes tradicionais. . . É muito curiosa”, diz Mário Pereira, apontando para uma estante onde estão arrumados volumes de cultura clássica, com destaque para os livros de escultura e os tratados de arquitectura. “Ainda há aqui muita coisa por descobrir, certamente muitas surpresas. Esta é a menos estudada das biblioteca joaninas. "A biblioteca de Mafra mantém ainda hoje a mesma organização que tinha no século XVIII. São 85 estantes no piso superior e 54 no inferior. Nas número 49, 50 e 51, no primeiro andar e com “Miscelânia vária” escrito no local habitualmente ocupado pelo tema, estão os chamados livros proibidos, cerca de 800 volumes, embora haja obras condenadas pelo Índex (lista de livros cuja circulação tinha de ser controlada pela Inquisição) espalhados por toda a biblioteca, garante Teresa Amaral. “Os livros proibidos são comuns a todas as grandes bibliotecas da época e ter autorização papal para os incluir nas colecções era um sinónimo de grande prestígio”, explica, referindo-se à bula de Bento XIV, de 1754, que institui a biblioteca e a autoriza a ter estes volumes. São de áreas tão diversas como a cosmologia, a astronomia, a astrologia, a alquimia, mas também há os chamados “heréticos ou de controvérsia”, os de ciência política e os que abordam temas relacionados com a organização social e o absolutismo, continua Amaral. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Entre os proibidos mais importantes estão, por exemplo, uma raríssima edição do Corão; Metoposcopia, um manual que pretende ensinar a ler a personalidade de cada um a partir das marcas e linhas do seu rosto; e obras de nomes como Martinho Lutero, teólogo alemão e figura central da Reforma Protestante, e Cornelius Aggripa, intelectual do Renascimento ligado à magia e ao esoterismo que haveria de se transformar numa das grandes referências da alquimia. São, na sua maioria, volumes de altíssima qualidade produzidos nos séculos XVI e XVII, explica o director do palácio, falando de obras do humanista francês Michel de Montaigne (1533-1592) e de Gil Vicente. Os livros, detalha a bibliotecária, estavam sujeitos a um sistema de proibição que incluía várias “classes”, que podiam impedir a leitura de toda a obra de determinado autor ou limitar-se a vedar o acesso a uma frase dentro de um texto. Giordano Bruno, filósofo e teólogo italiano condenado à fogueira pela Inquisição, acusado de heresia por defender, entre outras coisas, que a Terra girava à volta do sol, está entre os que ocupam as estantes 40 a 51. “Pensar que em Mafra, em meados do século XVIII, todo este pensamento está aqui é incrível. E pensar que tudo isto sobreviveu à extinção das ordens religiosas, às Invasões Francesas e à República também é”, conclui o director.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura ajuda social espécie mulheres extinção
A arquitectura alegre
A primeira retrospectiva dedicada a Victor Palla e a Bento d’Almeida mostra que eles são muito mais dos que os arquitectos dos snack-bares. Ou a história de como dois netos salvam parte da memória da arquitectura moderna portuguesa. (...)

A arquitectura alegre
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: A primeira retrospectiva dedicada a Victor Palla e a Bento d’Almeida mostra que eles são muito mais dos que os arquitectos dos snack-bares. Ou a história de como dois netos salvam parte da memória da arquitectura moderna portuguesa.
TEXTO: A cabeça de uma criança loira espreita num canto da fotografia a preto e branco. Na composição da imagem, a cabeça foi empurrada por uma grande curva e o pormenor humano vem sublinhar a força da forma abstracta. Na fotografia ao lado, a cabeça passou para o interior da forma helicoidal e só quando a câmara se afasta é que percebemos que se trata de um edifício e não de uma escultura. O comissário da exposição dedicada aos arquitectos Victor Palla (1922-2006) e Bento d’Almeida (1918-1997) hesita em identificar a criança cujo rosto quase não se vê nesta fotografia, em que é impossível não nos determos. É uma das três filhas do arquitecto Victor Palla, mas neste caso é também a sua mãe, uma vez que a exposição que abriu na semana passada no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, é comissariada por dois dos netos desta dupla de arquitectos já desaparecidos. Patrícia Bento d’Almeida e João Palla Martins são a terceira geração de arquitectos nas respectivas famílias e dedicaram parte da sua vida profissional a investigar os avôs. “Victor Palla tem uma série de fotografias belíssimas com as filhas nesta casa. Utiliza a sua arquitectura como cenário e as suas filhas como modelos. ” João Palla Martins explica que estas não são fotografia de arquitectura, mas antes um ensaio fotográfico. Talvez pertençam mais a uma das muitas outras vidas de Victor Palla, a de fotógrafo, que partilhou com a profissão de arquitecto, designer gráfico, pintor, editor, tradutor. . . As fotografias, inéditas em Portugal, já foram mostradas em 2000 na exposição A Casa, no Centro Cultural da Gulbenkian, em Paris, e o neto lembra que era o próprio Victor Palla — autor de um dos mais importantes livros de fotografia do século XX português (Lisboa, Cidade Triste e Alegre, com Costa Martins) — que dizia que não fazia fotografia de arquitectura. O que vemos do cenário da casa é a expressão plástica de um zoom sobre a rampa de uma casa, elemento primordial na percepção do espaço moderno, segundo o arquitecto franco-suíço Le Corbusier. Aqui, Victor Palla, como acontece com muitos arquitectos, usou a casa que construiu para a sua família para explorar uma arquitectura mais experimental e que seria com certeza mais difícil de convencer os seus clientes a fazer. A casa no Bairro do Restelo (1948-50), sublinha João Palla Martins, mostra vários dos pontos da arquitectura moderna defendidos pelo mestre franco-suíço, já vinte anos depois da publicação do seu manifesto Les cinq points d’une achitecture nouvelle: um edifício sobre pilotis com jardim por baixo, uma cobertura plana e a planta livre. “É moderna. MODERNA. O Laginha gostou muito e diz que aprova”, escreve Victor Palla a Bento d’Almeida numa carta sem data mostrada na exposição. Ao lado, noutra carta da mesma altura apontada pela comissária, Victor Palla está radiante, porque é finalmente arquitecto — o n. º 91 licenciou-se em Fevereiro de 1948. Assina várias vezes numa das folhas, juntando o número à rubrica, e interpela o colega de atelier a despachar-se: “Vai treinando [a assinatura] Joaquim. ” Bento d’Almeida tornar-se-ia o arquitecto n. º 142 três anos depois. Ainda sem diplomas, como conta Patrícia Bento d’Almeida no catálogo, o primeiro atelier conjunto, criado em 1946, instala-se na Rua Coelho da Rocha, n. º 69, num dos estúdios projectados por Cristino da Silva. Convivem com arquitectos, pintores e escultores, como Cottinelli Telmo ou Leopoldo de Almeida, num espaço em Campo de Ourique onde ainda hoje a artista plástica Helena Almeida (filha de Leopoldo) tem o seu atelier. No CCB, podemos ver uma divertida foto tirada na Coelho da Rocha, onde estão os dois jovens arquitectos entre um grupo reunido à volta de um estirador, enquanto alguém é surpreendido a sair de debaixo da mesa. Há, evidentemente, a encenação de uma prática, entre descontracção e alegria. Os dois jovens tinham começado o curso de Arquitectura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, mas só se conheceram no Porto, para onde pediram transferência para fugir ao ensino académico de Lisboa. Carlos Ramos, director da Escola do Porto — que será uma referência da arquitectura portuguesa à volta de nomes como Fernando Távora, da mesma geração de Bento d’Almeida e Victor Palla —, ajudou-os a arrancar a vida profissional, assinando conjuntamente um projecto de uma loja na Rua Augusta para o processo poder entrar na Câmara de Lisboa. Os primeiros anos também os encontram a criar a imagem não de um atelier com dois arquitectos mas constituído por uma dupla, sublinha o catálogo, que tanto assinava Victor Palla e Bento d’Almeida como Bento d’Almeida e Victor Palla. Essa dupla emerge “não só na frequente troca de correspondência mas também no grafismo criado para a imagem corporativa do atelier e na série de fotografias que foram tirando um ao outro”. Na exposição, estas imagens são identificadas como “retratos recíprocos”, e a comissária aponta ainda os cartões de boas-festas, com um grafismo inovador e cheio de humor. Desenham Boas Frestas (sic) ao lado de uma janela composta por um conjunto de frestas ou desejam um Bom Ano num cartão só com texto: “Arquitectos c. algum conhecimento oferecem-se p. desejar um feliz 1965. Resp. à Rua Conde Redondo, 4. º E, ao n. º 64”. Talvez 1965 tenha sido tão feliz como 1966, ano em que desenham a sua obra mais famosa entre mais de 700 projectos, o snack-bar Galeto, na Avenida da República, em Lisboa. A aventura dos snack-bares tinha começado logo no início da vida do atelier com o Términus (1949-50), na Rua 1. º de Dezembro, cujo proprietário quis fazer algo igual ao que tinha visto numa viagem a Londres. Chamaram-lhe Bar-Expresso Términus e seria preciso esperar pelo Pique-Nique (1952-55) no Rossio para a palavra “snack-bar” entrar no vocabulário. Mas em 1962, dez anos depois, os dois arquitectos ainda tentavam explicar numa memória descritiva para a Câmara de Lisboa, diz João Palla Martins na visita à exposição com a imprensa, o que era um snack-bar: “Um restaurante do tipo ‘snack-bar’ — isto é, com refeições rápidas servidas a um balcão. ”Se o balcão do Términus era um simples “U”, já para o Pique-Nique fizeram desenhos mais “ousados”, escreve a comissária, “obrigando a um estudo pormenorizado das contorções e inflexões”. No mesmo catálogo, o historiador da arquitectura e do design João Paulo Martins, num artigo intitulado Pique-Nique, Tique-Taque, Pam-Pam, bossa nova na cidade, chama a atenção para o cuidado em escolher palavras onomatopaicas para os nomes destes estabelecimentos comerciais que reconfiguravam a restauração urbana e apontavam para uma vontade de introduzir uma vida moderna mais cosmopolita no Portugal do pós-guerra, em que “o imaginário norte-americano assumia uma importância crescente”. Uma certa “volúpia fonética, rítmica, de relativa abstracção”, ao lado de outros nomes, como Tarantela ou Carrossel, que evocam a ideia de movimento ou mesmo de festa. “Eles eram absolutamente militantes do Movimento Moderno. Há essa vontade, seja ao querer viver numa casa sobre pilotis ligada por uma rampa, seja ao propor sentar uma senhora a um balcão de um snack-bar, porque uma senhora não se senta ao lado de um estranho”, explica Patrícia Bento d’Almeida ao Ípsilon. Se um dos snack-bares ainda previu um elevador para levar as mulheres para uma zona mais recatada, o sucesso deste tipo de estabelecimentos, que multiplicava a oportunidade de encontros com desconhecidos, entre sexos e classes sociais diferentes, fez desaparecer esse pudor, e o Pique-Nique, com o seu balcão em ziguezague, é o exemplo do snack-bar visto como “uma verdadeira máquina de seduzir”. Desse pacote de sedução faz parte o empenho dos arquitectos em fazer um projecto total, já que a quase inexistência de design moderno em Portugal levou Victor Palla e Bento de d’Almeida a desenhar praticamente tudo, do mobiliário aos menus e sacos, o que é possível devido à escala relativamente modesta das intervenções. Os dois arquitectos estão presentes em todas as escalas e áreas criativas, nota João Paulo Martins: “Ao longo da sua carreira, ensaiam diferentes princípios de ordem geométrica, sem se deixarem aprisionar em receitas: da estrita ortogonalidade às linhas quebradas, arbitrárias e livres, definindo ângulos agudos, obtusos, ziguezagues; grelhas geradoras de triângulos e hexágonos (casa Quinhones-Levy, 1966-70; Touring Clube de Portugal [Aldeia das Açoteias], 1968); sequências de células desfasadas (loja Costa & Conde, 1972-73); curvas ondulantes, arcos, círculos, elipses (loja Monteiro & Jorge, 1968-69; edifício da Sociedade Farmacêutica Lusitana, 1968-72). ”Para construírem o Galeto (1966-68), conta Patrícia Bento d’Almeida, o seu avô foi com um dos proprietários, Arlindo Gonçalo, a 11 países para estudarem este tipo de estabelecimento. Na inauguração, representantes do Governo de Oliveira Salazar misturaram-se com o público, onde também pontuavam arquitectos e artistas plásticos, antecipando uma clientela que saía do Cinema Monumental e podia frequentar a cafetaria, o snack-bar, o restaurante ou o take-away. Tal como escreveu na revista Arquitectura António Sena da Silva quando o Pique-Nique abriu mais de uma década antes, este snack-bar tinha “uma clientela de formação cinematográfica”. Quando desenham a Confeitaria Cunha no Porto (1970-73), já perto do fim do atelier e com a participação do então jovem arquitecto João Bento d’Almeida, pai da comissária, não sabiam que seria o último dos snack-bares, depois de mais de trinta projectos deste tipo. “Foi experimentado um sistema compartimentado de mesas e bancos fixos que nos remete para os diners americanos”, escreve Patrícia Bento d’Almeida, chamando a atenção do Ípsilon durante a visita à exposição para as fotos de Arménio Teixeira que pretendem evidenciar a necessidade de conservar este património moderno. A casa para a família Palla no Restelo, que foi demolida em 2006, terá sido provavelmente das primeiras moradias integralmente modernas a serem construídas em Lisboa. É neste novo bairro lisboeta, com um plano do urbanista João Faria da Costa, que os dois arquitectos constroem a maioria das suas moradias. Cerca de meia centena, contabilizaram agora os comissários. Victor Palla e Bento d’Almeida correm a apresentar-se a potenciais clientes, sempre que há vendas de terrenos em hasta pública na encosta da Ajuda, como era conhecido no início do plano o Bairro do Restelo. Outra das fotografias significativas da exposição, desta vez feita por Horácio Novais, é a que apanha o contraste entre a linguagem moderna da moradia feita para Carlos Alberto Teixeira da Silva (1949-51) e a das dos seus vizinhos na Praça de Goa, também no Restelo, num estilo Português Suave ao gosto do regime. “A foto é incrível porque revela que a casa é um volume paralelepipédico que aterra na Praça de Goa ao lado destas casinhas com telhados, beirados e janelas contidas. Eles vão trabalhá-lo plasticamente, retirando matéria de um lado e pondo-a noutro. ” Um jogo, de cheios e vazios, que articula uma parede rebocada e pintada de branco com outra coberta de azulejos. Feita para um comandante da Marinha, “a casa vem buscar a família e o cliente ao passeio, que entram através de uma ponte-passadiço”, explica a comissária. “É a mais purista”, “a menos expressionista” de todos as moradias, ouve-se o crítico e arquitecto Manuel Graça Dias dizer no Magazine de Artes Visuais, programa da RTP sobre os arquitectos incluído na exposição do CCB. Um dos projectos preferidos de Patrícia Bento d’Almeida é a Escola Primária do Vale Escuro (1953-56), um dos exemplos das infra-estruturas que se constroem no pós-guerra em consequência do crescimento populacional e do I Primeiro Plano de Fomento. Depois de ter citado a dificuldade que já foi escolher os projectos que cabiam no espaço do CCB, a comissária destaca a maneira como os dois arquitectos levam a que a arquitectura chegue também às crianças: “Defendem que é possível experienciar uma arquitectura moderna logo desde cedo e preocupam-se com a escala da criança. ” Destaca a forma como usam o embasamento, desaterrando em parte os pilares estruturais, para fazer um recreio coberto. A maneira como vão articular o programa, à volta da repetição do módulo da sala de aula, dando uma continuidade nas fachadas, “é de uma modernidade ímpar”, onde voltam a convidar vários artistas plásticos para trabalhar com eles. Se a dupla se envolve desde cedo no diálogo com os seus pares, uma vez que dois anos após fundarem o atelier, em 1948, são responsáveis pela renovação gráfica e editorial de sete números do periódico Arquitectura, revista de arte e construção (onde Victor Palla reflectiu, por exemplo, sobre o lugar do artista plástico na arquitectura), os dois arquitectos também se preocuparam em levar a disciplina até outras classes sociais, para lá da clientela burguesa do Restelo. Em 1952, através da Eva, uma revista feminina dedicada à mulher e ao lar, passam a ter nas mãos os projectos e a construção de uma moradia que todos os anos são sorteados na altura do Natal. Foram 17 casas em todo o país até 1971, numa sucessão que é, segundo os comissários, uma espécie de evolução da arquitectura e do espaço doméstico portugueses durante quase duas décadas do século XX: “Cada casa, diferente da apresentada no ano anterior, e entre 1957 e 1963 com a possibilidade de escolha entre um de dois projectos, veio revelar um pouco da nossa história da arquitectura, exibindo primeiramente elementos da modernidade, sobretudo na vertente da moderna arquitectura brasileira, e numa fase de revisão crítica do movimento moderno, o retorno a uma arquitectura mais vernacular. ”É a influência do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, com os ensinamentos da arquitectura local e tradicional, que se vê igualmente no projecto que aparece logo a seguir na exposição, a Casa Quinhones-Levy, na Praia Grande, onde sobre a planta organizada à volta de hexágonos se usam materiais típicos daquela região. Numa resposta ao estilo Português Suave que o regime de Salazar apadrinhava contra o Movimento Moderno, segundo uma ideia de Francisco Keil do Amaral, várias equipas de arquitectos tinham ido para o terreno durante cinco anos, entre 1955 e 1960, para mostrar que havia muitas arquitecturas tradicionais. Esse olhar das gerações mais novas sobre o que se construía em território nacional, mudou o futuro da arquitectura portuguesa, de uma forma que ficou bem expressa no trabalho de Fernando Távora e, depois, de Álvaro Siza. Em 1974, no ano da revolução de Abril, quando Victor Palla deixa de fazer arquitectura e Joaquim Bento d’Almeida passa a trabalhar com os filhos José e João, os dois põem fim à sociedade com mais de 25 anos. Mas a cumplicidade continua — os comissários contam que os dois nunca se zangaram — com o projecto da Galeria Prisma 73, a que se junta um dos filhos, Rogério de Freitas, e Manuel Costa Martins, o da Lisboa, Cidade Triste e Alegre. Um dos grandes contributos do catálogo é a elaboração de uma lista geral de projectos a partir dos 283 rolos de desenhos originais salvos por João Bento d’Almeida quando o atelier foi encerrado. Com pesquisas em arquivos públicos e privados e a partir de uma primeira lista muito vaga do atelier, identificaram e publicam agora mais de 360 projectos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dois mestrados e dois doutoramentos depois, o ciclo de investigação fecha-se, após 17 anos, com esta primeira exposição retrospectiva de grande dimensão, que se pretende principalmente didáctica. Os netos querem dizer que “há todo este material que nunca foi mostrado” e que a partir daqui é possível fazer muito mais. Quando começaram a cruzar-se com as demolições, conseguiram recolher algum mobiliário que é possível descobrir na exposição, como a vitrina do Cabeleireiro Bruna, ao lado de outro que só sobreviveu através dos desenhos. É o caso de um espelho portátil para a loja Monteiro & Jorge em que vemos que o cuidado vai até ao pormenor de detalharem um botão em nogueira para cobrir um parafuso. Apesar de esta ser “uma arquitectura de outro tempo”, como titula a exposição do CCB, nenhuma das obras de Victor Palla e Bento d’Almeida está classificada ou em vias de classificação, informa a Direcção-Geral do Património Cultural.
REFERÊNCIAS:
Cannes 70: onde baterá o coração do júri de Pedro Almodóvar?
A edição 2017 ficará este domingo para a História quando for anunciado o palmarés. Entretanto, diz-se que120 Battements par Minute, de Robin Campillo, será o favorito. A crítica já o elegeu como melhor filme em competição – e premiou também Fábrica de Nada, do português Pedro Pinho. (...)

Cannes 70: onde baterá o coração do júri de Pedro Almodóvar?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: A edição 2017 ficará este domingo para a História quando for anunciado o palmarés. Entretanto, diz-se que120 Battements par Minute, de Robin Campillo, será o favorito. A crítica já o elegeu como melhor filme em competição – e premiou também Fábrica de Nada, do português Pedro Pinho.
TEXTO: Em momento de crise social, política e moral, 120 Battements par Minute, de Robin Campillo, faz com a perda e com a dúvida uma proposta incandescente de inquietação para um colectivo. Isto aconteceu na competição da 70. ª edição de Cannes, foi o seu filme mais comovente e comovido: memória dos anos 90 dos combates do Act Up de Paris, ramo da organização internacional de luta contra a sida, quando, depois do silêncio dos anos 80, o activismo se forjou de forma eufórica e trágica porque as pessoas combatiam em público com as suas vidas privadas. 120 Battements par Minute quererá dizer que as causas desapareceram, dar o corpo não é mais possível. Uns metros à frente, saindo do perímetro da selecção oficial e entrando no território da Quinzena dos Realizadores, Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, fazia a sua proposta de pensamento – agora que nem à esquerda nem à direita se consegue ler o mundo. Uma fábrica a fechar, nada para fazer, vamos cantar e dançar e fazer filmes? Fábrica de Nada questiona(-se), dá e tira, constrói e destrói – mas alguém tem de acreditar, o filme não inventaria assim, ao longo de três horas, a sua forma de autogestão. A memória faz o seu trabalho a partir da crise – a força destes filmes é não excluírem a perda, absorverem a crise, viverem-na. Houve uma estranha e belíssima sintonia entre dois objectos que estiveram em extremos opostos (de muitas maneiras) da Croisette, e que significativamente se encontraram nos prémios atribuídos já este sábado pelo júri da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI). Entretanto, um cartaz enorme, virado decididamente para o grande ecrã que é a sala Lumière, anunciou a estreia de um filme da competição, no final de Junho, no pequeno ecrã, num tablet – Okja, de Bong Joon-ho, produção Netflix. Não voltará a ser possível competir aqui sem que a estreia em sala esteja garantida, mas não é isso que impede que um modelo esteja a ser desafiado e que isso provoque crise. Twin Peaks, série de David Lynch (os dois primeiros episódios), e as seis horas de Top of the Lake: China Girl, de Jane Campion, fizeram figura de acontecimento paralelo – desafiando o espectáculo do centro. A competição, essa, foi revelando o seu verdadeiro rosto, aquele que se mostra para além dos dois ou três objectos que foram mais fulgurantes: uma colheita em dificuldades, sem filmes que poderiam ser salvíficos para a narrativa do concurso mas que não estavam prontos e com filmes que fazem figura de segunda ou terceira escolha nas obras dos seus realizadores. Tudo a terminar em apoteose com o grande vazio que é You Were Never Really Here, de Lynne Ramsay. Joaquin Phoenix, como veterano do Iraque que procura a filha de um senador desaparecido, para a salvar de uma rede de prostituição, vai fazendo, a golpes de martelo, um percurso que na nossa memória é o de outro veterano (do Vietname) e outro brutal justiceiro da cidade corrupta, o Travis Bickle de Taxi Driver –, o que não é nada bom para o filme da britânica, parece um remake que se disfarça, que se esconde. A versão vista em Cannes não é a definitiva (em termos de duração, por exemplo), mas não se vê como é que se poderá afastar significativamente da catástrofe, da autocondescendência (deve ser por isso que já o vimos comparado ao Inherent Vice, de Paul Thomas Anderson, com o mesmo Phoenix) e da mistificação – sim, porque como aconteceu no ano passado com O Demónio de Néon, de Nicolas Winding Refn, Ramsay entrega um objecto que pode pretender reclamar para si a proximidade, antes de mais, “ao mundo da arte”. Cannes, 70. ª edição, ficará este domingo para a História quando o júri presidido por Pedro Almodóvar anunciar os prémios. Por enquanto, diz-se: que Almodóvar poderá ter empatia com o filme de Campillo, haverá testemunhos de lágrimas do presidente depois da sessão; que In the Fade, de Fatih Akin, agarrou o júri – sendo um filme completamente televisivo na forma de se colar emocionalmente ao caso da vida de uma mulher que fica sem o marido e o filho, vítimas do terrorismo; que The Square, do sueco Ruben Ostlund, tem argumentos para agradar a outra voz forte do júri, o cineasta italiano Paolo Sorrentino – é menos interessante do que Force Majeure (2014) porque se interessa sobretudo pelas superfícies, e é mais manhoso (já disseram que é o crowd pleaser deste ano, como, no ano passado, Toni Erdmann, de Maren Ade, que está no júri também); que a estrela inglesa Robert Pattinson pode ter o prémio de interpretação por ter conseguido desaparecer na personagem de um criminoso nova-iorquino em Good Time, regresso ao caos expressivo que é o cinema dos irmaos Safdie; que Michael Haneke não terá a sua terceira Palma de Ouro com Happy End – quem esperava um “filme choque” ficou frustrado: Haneke obriga o espectador a procurar o filme, que não se dá a conhecer pela retórica habitual, mas por isso mesmo, por ser tão subterrâneo e inquietante a falar da solidão, do egoísmo, e da ausência de empatia colectiva, foi outro dos grandes filmes a falar da nossa maneira de viver.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha filho mulher social prostituição corpo
Na música ou nas artes: o rasto de David Lynch está por todo o lado
O imaginário do realizador tornou-se ubíquo, influenciando a música, a arte e culturas contemporâneas — como o regresso de Twin Peaks volta a lembrar. (...)

Na música ou nas artes: o rasto de David Lynch está por todo o lado
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: O imaginário do realizador tornou-se ubíquo, influenciando a música, a arte e culturas contemporâneas — como o regresso de Twin Peaks volta a lembrar.
TEXTO: Antes de ganhar fama como realizador de cinema e séries de TV, David Lynch queria ser artista plástico. Pintar era a sua paixão, embora sempre tenha assumido que os seus filmes respiravam as mais diversas influências – da pintura de Francis Bacon às fotos de William Eggleston e Joel-Peter Witkin, ou a arquitectura de Frank Lloyd Wright Jr. Não surpreende que, nos últimos anos, depois de ter parado de filmar, desiludido com a indústria do cinema, se tenha dedicado à pintura, à música ou à meditação. Agora regressa com Twin Peaks, numa altura em que nunca foi tão nítido que a sua influência se entende por quase todos os territórios criativos, da música às artes visuais, da arquitectura à moda (Raf Simons, Comme des Garçons, Kenzo). E isso sucede porque mais do que uma técnica, um modelo ou um tipo de narrativa, aquilo que ele expressa é mais intangível e evocativo. Não é difícil ouvirmos uma canção e imaginarmos de imediato uma pequena vila como Twin Peaks, onde os segredos mais íntimos acabam por se manifestar no exterior. Da mesma forma que é vulgar olharmos para um quadro, uma instalação ou uma fotografia e vislumbrarmos o imaginário de Lynch. Basta pensarmos nas fotografias de Gregory Crewdson, que trabalha muito a partir da matéria dos sonhos, com ênfase na atmosfera, nos cenários, na composição da luz e nos dramas dos personagens. São simultaneamente figuras alienadas e isoladas aquelas que vemos, colocadas em situações de uma familiaridade terrífica, captando momentos liminares, um antes e um depois não se sabe bem do quê, espécie de cessação do ritmo quotidiano, criando mistério e uma sensação de incompletude. É o lado sombrio do sonho americano que nos é devolvido, com a paisagem ostensivamente idílica utilizada como metáfora de neuroses. Tal como as personagens de Lynch, também nas fotos de Crewdson, vislumbramos figuras enredadas na paisagem, descendo à profundeza de si próprios, fazendo surgir o desconforme e o inexplicável, em imagens saturadas de cor. As suas fotografias são histórias condensadas onde o enigmático irrompe na normalidade. Às vezes parece repetir-se, mas a verdade é que as suas imagens são imediatamente identificáveis e causadoras de perplexidade. Não é isso que dizemos continuadamente acerca de David Lynch?Mas, precisamente porque é de todas as artes a mais imaterial, é na música que muitos dos traços que associamos a Lynch mais se têm disseminado. Ele que ao longo dos últimos anos lançou dois álbuns (Crazy Clow Time e The Big Dream) e envolveu-se em vários projectos colaborativos – com o pianista Marek Zebrowski (Inland Empire), com o músico John Neff no projecto Bluebob, ou com Danger Mouse e Sparklehorse na obra Dark Night Of The Soul – nunca escondeu que a música tinha uma função primordial na sua arte. Nestes últimos anos, para além desses trabalhos, produziu ainda a cantora Chrysta Bell e apadrinhou vários nomes das novas gerações, como as Au Revoir Simone ou a sueca Lykke Li), não escondendo também que Twin Peaks nunca poderia ser dissociado da excelente banda-sonora de Angelo Badalamenti e da canção do genérico – Falling de Julee Cruise. Para o regresso de Twin Peaks a aposta musical parece ser Johnny Jewel, líder dos Chromatics ou Glass Candy, responsável pela editora Italians Do It Better e autor de várias bandas-sonoras. Não espanta que assim seja. A sua música parece ser feita para escutar quando a noite se abate melancolicamente na cidade, projectando néones, vozes aveludadas e lábios excessivamente pintados. Mas mesmo que Lynch nunca tivesse feito música, ou que não tivesse trabalhado de forma próxima com uma série de figuras, a sua influência far-se-ia sentir na mesma. O seu nome tornou-se mesmo adjectivo para muitos melómanos. Por música “lynchiana” entende-se um tipo de sonoridade voluptuosa, com um imaginário onde a realidade mais mundana pode combinar na perfeição com a mais macabra, qualquer coisa de dimensão mental, uma atmosfera de pesadelo ou de romantismo impossível, nunca definidas de maneira exacta. O arquétipo tanto pode ser verificável em canções de vozes femininas como Anna Calvi, Lana Del Rey ou Bat For Lashes, ou em inúmeros exemplos da música dos últimos anos (de Perfume Genius a Arca, de Khonnor a Salem), passando pelos suecos The Knife, Fever Ray ou Iammiwhoami, que operam algures numa zona recorrente em Lynch: os corpos transformados, as criaturas bizarras, a beleza do grotesco ou o confronto entre o consciente e o inconsciente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas não é evidentemente de hoje o alcance e influência de séries como Twin Peaks ou de filmes como Eraserhead, Blue Velvet ou Mulholland Drive nas representações, nas imagens e em muitos sons da música popular – que o digam grupos como os Bauhaus ou Pixies nos anos 1980. Mas foi na última década que aquela sofisticação excessiva, a estranheza normal e as alusões sonoras dos anos 1950 (quem não se lembra de Blue Velvet de Bobby Vinton?) entraram decisivamente no corpo da música e no imaginário da arte e da cultura contemporânea. David Lynch tornou-se ubíquo, está em todo o lado, convidando-nos a mergulhar no seu mundo que é, afinal, o nosso também.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura espécie corpo cantora abate
Um filho pródigo levou o cheiro da rua à prisão
Há meses que, atrás das paredes de Santa Cruz do Bispo, reclusos ensaiam ao lado de actores e músicos profissionais. Já não há muros entre eles. Nesta quinta e sexta-feira, vêm cá fora tentar derrubar outros mais, com O Filho Pródigo. (...)

Um filho pródigo levou o cheiro da rua à prisão
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há meses que, atrás das paredes de Santa Cruz do Bispo, reclusos ensaiam ao lado de actores e músicos profissionais. Já não há muros entre eles. Nesta quinta e sexta-feira, vêm cá fora tentar derrubar outros mais, com O Filho Pródigo.
TEXTO: Num antigo armazém de pedra, despido de qualquer artifício de cenografia, os actores do mundo de cá de fora e os actores das duas prisões de Santa Cruz do Bispo não se distinguem. Num palco que pouco eleva o olhar, cabem mesas rodeadas de cadeiras, um balcão de bebidas, guitarras e rua. Também lá cabem dois filhos e dois pais, que pisam o mesmo palco, mas hemisférios diferentes. Um filho que foi embora, um pai que o quer esquecer, uma mãe que não deixa de o relembrar e um irmão condenado a preencher o vazio que o outro deixou para trás. É dessa gente que se faz uma estória de dolorosos desencontros. E de perdão. “Eles estão ávidos disso. Embora não o digam, eles estão ávidos de que as pessoas os perdoem, os aceitem”, conta a Luísa Pinto sobre os reclusos que com quem tem trabalhado nos últimos anos. A encenadora já levou a palco duas peças protagonizadas por reclusos das prisões de Santa Cruz do Bispo. Na primeira, escrita e interpretada só por mulheres, colocava sob os holofotes a violência de intimidade nas prisões. Na segunda, trouxe para o mesmo palco reclusos e actores profissionais. Desta vez, foi mais além. Movida pelo trabalho de investigação da sua tese de doutoramento, Luisa levou à cena reclusos inimputáveis, pessoas “com questões cognitivas muito abaladas” com as quais nunca tinha trabalhado. É com estes cinco homens, três reclusas e sete actores e músicos profissionais que se faz O Filho Pródigo, um texto de Helder Wasterlain e João Maria André, que vai ser apresentado hoje e amanhã, pelas 21h30, no MIRA, em Campanhã. Na obra que dá uma reviravolta à parábola bíblica homónima, eleva-se uma personagem: a mãe. “[Os reclusos] falam permanentemente da mãe, mesmo que tenham tido a pior das relações com ela. Em muitos casos, os laços familiares foram rompidos. E este texto devolve-lhes isso. Dá-lhes a possibilidade de se perdoarem a si próprios e de levarem as famílias, que vêm assistir, a perdoá-los”, explica a autora do projecto. É o público portuense o primeiro a pôr os olhos na peça, mesmo antes das prisões. Não foi uma opção tomada à toa. “Como primeiro impacto era importante que [a peça] fosse tratada como um objecto artístico como qualquer outro, sujeito a críticas, [às pessoas] gostarem ou não gostarem. Somos todos iguais, somos todos artistas”. A proximidade é a palavra-chave. Aproximar os de lá de dentro aos de cá de fora. Reinserir e devolver a dignidade. Luísa quis fazer tudo isso através da arte: “Quis perceber, até que ponto o teatro consegue transformar as pessoas e a sociedade. Porque o estigma do ex-recluso é terrível. Todos temos medo, todos nós temos preconceito”. A desconstrução do estigma começou há cinco meses, do lado de lá das paredes dos estabelecimentos prisionais de Santa Cruz do Bispo. “Os primeiros dias custaram. Ficamos tão presos quanto eles”, conta Luísa, que acompanhou a aprendizagem e a evolução dos reclusos. O casting foi como qualquer outro. “Não queria ter o tratamento de ‘coitadinhos, são reclusos’. Fiz o casting como fiz aos actores profissionais e escolhi os que melhor iam ao encontro do perfil das personagens”, explica. João Melo, actor profissional e protagonista da peça, também esteve lá: “A realidade é dura e as organizações e as logísticas são difíceis. Mas eles foram entrando, ganhando gosto e vontade, quando se aperceberam que isto ia mesmo ser possível”. Com o projecto, também João apagou carimbos: “O teatro dá essa hipótese de nos fazer evadir da nossa realidade e experimentar outras. É um espaço neutro, onde todos são iguais. [Com a experiência] pude ver o lado humano dos reclusos, como eles se queriam agarrar a isto”. E agarraram-se bem. Agarraram-se a um espaço de liberdade, criado dentro de um espaço de reclusão. “A arte é o que salva a humanidade de todos nós. É o que nos faz correr. E acho que é o que acontece com eles. O facto de se testarem e de se conseguirem concretizar. Alguns, no início, tinham dificuldade em dizer o nome, por terem questões cognitivas muito abaladas”, conta Luísa. Agora, em cima do palco, o medo, o nervosismo e a vergonha fogem para longe. Conseguem declamar “um grande bife de texto”, entrar a tempo, ter uma relação de contracena. Mas, mesmo fora do guião, há falas que marcam. Foi entre as paredes onde os reclusos vivem, que Luísa diz ter recebido “os piropos mais bonitos”. Após ter faltado a um ensaio, por ter apanhado uma gripe, disseram-lhe: “Não me faças mais isto, porque quando vocês estão aqui sinto-me vivo”. Uma outra deixa deixou Luísa sem palavras: “Vocês trazem-me o cheiro da rua”. Em cena, Veríssimo Rosário é o irmão do filho pródigo. Hoje, depois de muitos anos, volta a pisar um palco. Já tinha representado em jovem, mas nada desta dimensão. “É uma grande oportunidade que deram aos reclusos, de começarem a praticar uma arte, poderem sair dos quatro muros e desenvolverem mais a personalidade”, explica. Não esconde a felicidade em ter sido um dos escolhidos. “É um projecto que não vou esquecer tão cedo, não vou. A não ser que a velhice me obrigue”, diz Veríssimo, sorrindo. Mas nem só de falas se faz a O Filho Pródigo. A música que, por vezes, se levanta, não é pano de fundo. Os fados que transbordam as paredes do MIRA não se ouvem no rádio. Foram escritos há um ano, por Adriana Maurício, uma das reclusas. Hoje, chegam pela primeira vez aos ouvidos do público, já com as guitarras dos músicos Eduardo Silva e Rui David. “O fado que ela canta, a forma como ela canta… Está ali a vida. Está ali a alma de uma fadista, de alguém que vive em desafio com o destino”, afirma João Melo. Também não é esta a primeira actuação de Adriana. Diz que já fez “algumas brincadeiras” e que se sente bem frente-a-frente ao público. “Faz-me sentir que faço parte de algo”, conta. Já há muitos anos que queria investir numa carreira musical, mas o destino, que a “virou do avesso”, não a deixou. Agora, que teve esta oportunidade, não quer parar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os apoios à iniciativa chegaram de vários lados. Da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, do Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, da Santa Casa da Misericórdia do Porto e do Mira-Artes Performativas. Mas estes são apoios pontuais porque são muitos os projectos que se iniciam e poucos os que continuam. Depois das cortinas descerem, para Adriana fica o agridoce. “Nós somos capazes de ainda mais e melhor”. Texto editado por Ana Fernandes
REFERÊNCIAS:
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