A senhora extraterrestre
A partir de um conto de Neil Gaiman, John Cameron Mitchell assina um improvável mas encantador manifesto punk-sci-fi sobre o primeiro amor. (...)

A senhora extraterrestre
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: A partir de um conto de Neil Gaiman, John Cameron Mitchell assina um improvável mas encantador manifesto punk-sci-fi sobre o primeiro amor.
TEXTO: No papel, isto não devia resultar: uma comédia romântica de ficção científica musical, ambientada na Londres da explosão punk de finais dos anos 1970, sobre o romance entre um liceal suburbano encavacado e uma extraterrestre que só tem 48 horas na Terra. É areia a mais para um só filme, mesmo inspirado por um pequeno conto (vagamente autobiográfico) do escritor Neil Gaiman. Realização:John Cameron Mitchell Actor(es):Elle Fanning, Nicole Kidman, Ruth Wilson, Stephen Campbell Moore, Alice SandersMas eis que entram em cena as capacidades de John Cameron Mitchell, o criador do musical de culto Hedwig and the Angry Inch e um dos mais interessantes e subvalorizados cineastas queer americanos. Mitchell toma as rédeas do caos para dele fazer uma festa surreal e vale-tudo: krautrock celestial (composto por Nico Muhly e pelos Matmos), figurinos psicadélico-fetichistas de Sandy Powell, referências à ficção científica lisérgica e apocalíptica dos seventies e uma nostalgia mal disfarçada de um tempo em que se podiam sonhar outros futuros. Com uma mão atrás das costas, faz tudo aquilo a que Gregg Araki não consegue chegar nas suas experiências mais desvairadas: acontece que, por trás de todo o fogo de artifício visual e musical, existem personagens sólidas e actores à vontade. Tanto Elle Fanning (a miúda literalmente do outro mundo) como Alex Sharp (o aspirante a punk) são excelentes a ancorar a fantasia em emoções reconhecíveis. Isso é importante porque Como Falar com Raparigas em Festas é um filme sobre o primeiro amor, o primeiro beijo, e o processo de descoberta de si próprio que isso coloca em marcha — só que o transfigura como uma experiência literalmente alienígena. Bate certo com o percurso do cinema de Mitchell, a partir da adaptação cinematográfica de Hedwig que dirigiu em 2001 e depois nos injustamente desconhecidos Shortbus (2006) e O Outro Lado do Coração (2010): um movimento de acolhimento e aceitação do outsider, da diferença, venha de onde vier. O que Como Falar com Raparigas em Festas diz é que, afinal, outsiders somos todos — o adolescente que cola fanzines para fugir ao cinzentismo do bloco brutalista de apartamentos onde vive com a mãe solteira; a miúda que quer fugir às restrições impostas pela “família”; os turistas extraterrestres que procuram manter viva uma centelha cuja natureza lhes escapa; a matriarca punk (Nicole Kidman) que não percebe como foi acabar em Croydon a ser manager de tarados. Estamos todos à procura de um lugar no mundo que seja só nosso, e que não seja igual aos outros. John Cameron Mitchell conta-o num filme que não é igual aos outros. Felizmente.
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Palavras-chave adolescente
Michelle Wolf, a “mulher forte” dos domingos no Netflix
Depois do jantar dos correspondentes da Casa Branca, a comediante estreia The Break with Michelle Wolf. (...)

Michelle Wolf, a “mulher forte” dos domingos no Netflix
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.433
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois do jantar dos correspondentes da Casa Branca, a comediante estreia The Break with Michelle Wolf.
TEXTO: Michelle Wolf tem uma língua tão afiada como as cordas vocais – ela é a primeira a avisar que tem uma voz “estridente”. E nas últimas semanas tem avisado que quem não gostou da sua prestação no jantar dos correspondentes da Casa Branca também não vai gostar de The Break with Michelle Wolf. A comediante norte-americana estreia este domingo um novo programa no Netflix, que não é bem um talk show mas também é em parte uma conversa apresentada por um humorista num horário nocturno. No jantar que homenageia a liberdade de imprensa e os jornalistas que acompanham a Casa Branca, Michelle Wolf fez o que era suposto – atirou-se de forma sarcástica ao Presidente dos EUA, à imprensa dos EUA e aos funcionários do Governo dos EUA. Num ambiente que Donald Trump insistiu em pincelar com constantes referências a “fake news” e com algumas hipérboles sem fundamento sobre as suas próprias façanhas, a certa altura Wolf fez uma piada sobre a sua porta-voz, Sarah Huckabee Sanders, e a sua relação liberal com a verdade. “Na verdade, eu gosto bastante da Sarah. Ela é cheia de recursos. Ela queima os factos, e depois usa as cinzas para criar um olho esfumado perfeito. ”A reacção, mesmo dos detractores desta Casa Branca, foi muito focada no facto de ter feito comentários sobre o aspecto de Sanders, mostrando por um lado que a sua piada pode não ter sido suficientemente afinada (ou que alguns podem ter confundido a palavra “facts” com “fat” – ou “gorda”), mas também que não acertou bem na sintonia do tema mulheres. Desde Outubro de 2017 e em pleno momento #MeToo, mas também nos últimos anos em que as noções de politicamente correcto e progressão de direitos humanos se embrulham em debates vários, The Break with Michelle Wolf promoveu-se em vésperas da sua estreia com uma paródia a uma reacção ao momento cultural – há meses, o Netflix criou uma categoria onde agregou os filmes com “mulheres fortes como protagonistas”. Michelle Wolf, “mulher forte” deste domingo no Netflix, surge em Featuring a Strong Female Lead: The Movie como Cassandra Flex, uma mulher com nome de baptismo de ecos mitológicos que nunca sua, só ganha, que nunca dorme, só ganha. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O talk show, e sobretudo o formato talk show nocturno norte-americano, é um formato tranquilizador – por mais personalização, sketches e mudanças que os seus apresentadores tragam, a identidade do apresentador raramente se sobrepõe ao seu molde. Ajeita-se, ganha umas cores. A sequência de introdução com humor-conversa-número final de um talk show made in América é mais familiar ao público português do que o programa semanal de variedades que será The Break with Michelle Wolf. Mas se The Break vai inscrever-se numa tradição tipo Saturday Night Live (e a televisão portuguesa tem a sua própria tradição de variedades), também puxará à vizinhança do bloco de talk shows generalistas americanos da SIC Radical, de Filomena Cautela no 5 para a Meia-Noite ou a edição global do Daily Show na RTP. Wolf já trabalhou no Daily Show e escreveu e actuou no talk show Late Night With Seth Meyers e vai misturar sketches e números de comédia com conversas com convidados. Semanalmente, aos domingos, o programa vai tentar não ter muito Trump nem muita política, disse Wolf ao USA Today.
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Entidades EUA
A primeira temporada de Lorenzo Viotti na Gulbenkian
Um novo maestro marca a programação da temporada 2018/19 da Gulbenkian, que prossegue a mesma linha dos últimos anos do Serviço de Música da fundação. Com muitos grandes nomes, e mantendo o convite a novos públicos. (...)

A primeira temporada de Lorenzo Viotti na Gulbenkian
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um novo maestro marca a programação da temporada 2018/19 da Gulbenkian, que prossegue a mesma linha dos últimos anos do Serviço de Música da fundação. Com muitos grandes nomes, e mantendo o convite a novos públicos.
TEXTO: A temporada musical de 2018/19 da Fundação Calouste Gulbenkian vai ser marcada pela presença de um novo maestro titular da Orquestra Gulbenkian, tal como foi anunciado em Outubro do ano passado: ele é Lorenzo Viotti, um jovem maestro franco-suíço que ainda não teve ocasião de mostrar quais as suas ideias, opções e formas de trabalhar como maestro titular. E que, por motivo de doença, não pôde deslocar-se a Portugal para a apresentação da temporada, esta sexta-feira, ao lado do director do Serviço de Música da fundação, Risto Nieminem. A inclusão no programa de cinco concertos dirigidos por Viotti foi, de resto, uma das novidades destacadas na programação. Sendo um apaixonado da ópera, é natural que se aguarde com curiosidade saber como o novo maestro pegará na ópera Romeu e Julieta de Gounod, que se realizará em Março de 2019, em versão de concerto, com a soprano Vannina Santoni e o tenor Georgy Vasiliev nos papéis principais. Para além disso, dirigirá dois concertos mais “tradicionais” com o Coro e a Orquestra Gulbenkian, em Outubro e Novembro, com Mahler (1. ª Sinfonia), Brahms e Mozart. E um Requiem de Mozart no Mosteiro dos Jerónimos (em Julho de 2019). Um espectáculo um pouco diferente será certamente o concerto encenado com música em diálogo com poemas da Ode Marítima de Álvaro de Campos, com João Grosso como recitante (em Novembro). Mas não é só Viotti que é novidade nesta programação, no que diz respeito a maestros. A equipa conta agora com Giancarlo Guerrero, maestro convidado principal, Leonardo García Alarcón, maestro associado, e Nuno Coelho, maestro convidado. E Joana Carneiro continua a dirigir artisticamente a Orquestra Estágio Gulbenkian, enquanto Michel Corboz e Jorge Matta mantêm-se, respectivamente, como maestro titular e maestro adjunto do Coro. A programação da temporada inclui três temas ou pequenos “ciclos”, que surgem como formas de arrumar um pouco ideias diversas de programação: são eles Música no Tempo, Ibéria e Música no Feminino, propondo concertos que põem lado a lado música mais antiga e mais recente, concertos de música ibérica e ainda um conjunto de espectáculos de mulheres intérpretes da música clássica ou da música popular (neste caso integrando o ciclo de músicas do mundo): em Janeiro de 2019, poderemos ouvir a maliana Rokia Traoré, as irmãs iranianas Mahsa e Marjan Vahdat, a fadista Aldina Duarte, a maestrina Tianyi Lu, a violinista Carolin Widmann e ainda a pianista Joana Gama. Mas são ainda os “grandes intérpretes” da música clássica que fazem um dos eixos fundamentais da programação, desde logo com a abertura da temporada, a 7 de Setembro, com o maestro Gustavo Dudamel dirigindo a Mahler Chamber Orchestra, num concerto em que tocarão a 3. ª Sinfonia de Schubert e a 4. ª Sinfonia de Mahler. Ao longo da temporada, propõem-se depois concertos e recitais de intérpretes de renome, com um peso muito significativo de pianistas e violinistas, mas também com o regresso do contratenor Franco Fagioli, em Outubro, para participar na ópera Serse, de Händel, em versão de concerto. No violino, há nomes que são também “valores seguros”: entre eles, Michael Baremboim, que vem tocar três 'bês' maiúsculos: Bach, Bartók e Boulez. No piano, idem aspas. Na impossibilidade de referi-los a todos, destaquemos o concerto de Marta Argerich e Stephen Kovacevich (em Março) e o regresso de Sokolov (em Maio). Ainda em Maio, oportunidade para ouvir outra estrela consagrada do piano: Murray Perahia. E Thomas Adès, que vem desta vez não como compositor, nem como maestro, mas para fazer um recital pianístico. Atenção a alguns concertos que podem passar despercebidos no meio de tantas estrelas: por exemplo, em Março, a Gustav Mahler Jugendorchester tocando Berg e Mahler (os Rückert-lieder) com Elena Zhidkova, uma meio-soprano na ribalta. E alguns jovens intérpretes, como o Sergey Khachatryan, que vem tocar violino num dos concertos dirigidos pelo maestro titular. A programação da temporada 2018/19 parece prosseguir, no essencial, os caminhos delineados antes pelo director do serviço de música da Fundação, Risto Nieminen. Isto apesar de algumas novidades: entre elas, a realização de um Concerto de Ano Novo, com valsas de Strauss e não só. Antes disso, no Natal, a Gulbenkian realizará um concerto “para toda a família”, cruzando repertório clássico e popular num concerto intitulado Big Silent Night Music. Pela primeira vez, a Fundação Gulbenkian acolherá no seu espaço, em Março, os Aga Khan Music Awards, com entregas de prémios, conferências e vários concertos. Outra novidade da temporada é a realização de uma oficina-concerto para famílias a partir da ópera A Flauta Mágica, de Mozart, uma iniciativa com o apoio da rede ENOA e do Programa Europa Criativa da União Europeia, que se realizará em Dezembro. Várias outras actividades, aliás, convocam a participação do público ou apontam para tentativas de renovação e crescimento de públicos, como os Concertos de Domingo, a preços mais acessíveis, que se irão manter, ou projectos como os concertos participativos, que se realizam desde 2014: este ano, o Coro Participativo estará ao lado do Coro e Orquestra Gulbenkian para interpretar o Requiem de Mozart, dirigido por Nuno Coelho, num concerto que se realiza em Setembro, perto do início da temporada. Alguns concertos com um cunho marcadamente “popular” (e que têm tido grande afluência) são os que se continuarão a fazer com música tocada ao vivo, a acompanhar obras populares do cinema. Este ano, há Amadeus, de Miloš Forman; Star Wars: Uma Nova Esperança, de George Lucas; e Tempos Modernos, de Charles Chaplin. A Orquestra Gulbenkian apresenta ainda, em Setembro, um concerto ao ar livre com bandas sonoras de filmes com temas escolhidos pelo público, que é convidado, previamente, a votar nas suas músicas preferidas. Este espectáculo tem lugar no Vale do Silêncio, no âmbito do festival Lisboa na Rua, e terá a direcção de Joana Carneiro. A temporada da Gulbenkian dá algum peso à sua produção operática, apostando sobretudo em óperas em versão de concerto (Händel, Gounod e ainda Madama Butterfly, de Puccini, com a soprano Melody Moore) e na continuidade das transmissões directas da Ópera do Metropolitan (a que se somam algumas transmissões em diferido). Em Abril, uma ópera contemporânea com música de Frederik Neyrinck, encenada pelo Atelier Bildraum, apresentada na Sala Polivalente da Coleção Moderna: Icon – uma ópera do século XXI. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Têm grande peso na temporada o Coro e a Orquestra Gulbenkian, inclusive em alguns concertos corais estruturantes: um Requiem de Verdi em Novembro, e La Passione, uma leitura encenada da Paixão segundo São Mateus, de Bach, concebida por Romeo Castellucci, que acontece no Centro Cultural de Belém, para além de outros concertos corais no Panteão Nacional e na Igreja de São Roque. O Festival Jovens Músicos, realizado em parceria com a Antena 2/RTP, realiza-se mais uma vez na Gulbenkian, logo no início da temporada, durantes três dias. E a residência da Orquestra Juvenil Gustav Mahler, incluindo quatro concertos, voltará a fazer-se na Páscoa. À procura de público novo, embora mantendo os eixos fundamentais: Coro e Orquestra, grandes intérpretes, um pé na música popular e outro na ópera. Com um repertório assente na tradição clássica e romântica, com alguma música antiga, vários intérpretes de música moderna do século XX e menos obras da actualidade. Ou seja: uma temporada com uma novidade de peso (dada a relevância da Orquestra Gulbenkian), que é ter um novo maestro titular, mas que continua caminhos já começados. Ou, dito de outra forma, uma abertura e renovação cautelosas, com base em valores seguros.
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Há fado nas canções de Mariza
Na senda de uma Maria da Fé, Mariza consolida-se no seu novo disco homónimo como intérprete de um repertório de perfil ligeiro ou mesmo pop — nem sempre com fogo lá dentro. (...)

Há fado nas canções de Mariza
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na senda de uma Maria da Fé, Mariza consolida-se no seu novo disco homónimo como intérprete de um repertório de perfil ligeiro ou mesmo pop — nem sempre com fogo lá dentro.
TEXTO: Em 1965, numa altura em que cantava na Tipóia, Maria da Fé foi abordada pelo divulgador de jazz José Duarte para gravar um EP que havia de tornar-se um marco na música popular portuguesa. Com o próprio na bateria, José Fontes Rocha na guitarra portuguesa e Carlos Menezes na guitarra eléctrica, a fadista daria voz a três temas do reportório do fado tradicional nesse disco que, de forma bastante explícita quanto à sua intenção artística, seria baptizado Pop Fado. Autoria:Mariza Warner MusicMuitos anos antes de Ana Moura e Mariza arriscarem acrescentar bateria, percussões ou guitarra eléctrica aos seus discos já Maria da Fé se aventurava — debaixo de fogo dos sectores mais conservadores do meio fadista — por linguagens que dotavam o fado de um vocabulário mais universal. Claro que tudo aquilo que equivalia a heresia nessa altura em que Maria da Fé ou Amália estilhaçavam as regras mais apertadas do género não encontraria de todo a mesma resistência passadas quatro décadas — apesar de a matriz pop seguida por Ana Moura e Mariza ainda causar urticária a umas quantas almas que defendem o fado como música intocável e imutável. Não escapa, por isso, o simbolismo evidente no dueto que Mariza escolhe para o seu álbum homónimo, partilhando Fado errado com Maria da Fé (sua madrinha profissional, ao oferecer-lhe o primeiro contrato na casa de fados Sr. Vinho). A grande diferença é que Maria da Fé não se deixou definir por esse atrevimento; enquanto nos casos das duas fadistas mais novas a sua aproximação a essa linguagem tornou-se uma forma de afirmar um estilo pessoal e de assumir que a sua música, com inegáveis fundações no fado, deixou de se submeter à tradição como forma de vida. Mariza é o terceiro álbum que a cantora portuguesa grava com o produtor espanhol Javier Limón, relação com dez anos que teve um único momento de interrupção para o registo de Fado Tradicional (2010). Foi Limón que ajudou a desenvolver e estabelecer esta sua natureza de cantora supra-fado, desde que iniciaram a colaboração em Terra (2008). Mariza é uma continuação lógica de Mundo (2015), um disco irmão na consolidação do seu lugar de intérprete de canções de perfil ligeiro ou pop, em que o fado é frequentemente uma sombra ou pouco mais do que uma insinuação. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nada de errado nisso. É uma opção como qualquer outra. Acontece que, nesse domínio mais ligeiro que Mariza assume sem hesitações, e que cumpre com reconhecido esmero, faltam temas memoráveis e que rompam com uma sensação de confortável normalidade. Basta atentar no arranque do álbum, com Quem me dera, Amor perfeito, Oração ou Sou (rochedo) para perceber que esta navegação entre pop, música brasileira e fado se cumpre sem acidentes mas também sem surpresas. Algo que, felizmente, é contrariado pela sequência seguinte: É mentira, ironicamente, faz-lhe assomar muito mais verdade à voz, embalada por um mais criativo fundo de fragor tradicional; Semente viva, com violoncelo de Jacques Morelenbaum, ganha outra espessura; e Por tanto te amar, em tom de balada, permite encontrar Mariza num dos seus mais sóbrios registos de sempre, cantando num sopro de voz que procura uma real intimidade com o ouvinte. A caminho do final do disco, um outro momento de excepção em Oi minha mãe (de Custídio Castelo), em que Mariza envelhece uns quantos anos — o que só lhe fica bem —, e deixa baixar em si um fado que é também morna e samba, atrevendo-se a romper com o terreno mais seguro e redondo que Javier Limón imprime à maior parte do disco. Talvez a avisar-nos de que este é, em definitivo, o seu novo lugar, Mariza canta nesse tema: “Sou da terra das canções”. Ou seja, desse espaço alargado e sem especial cedência às tradições. Mas era bom que, à semelhança do que acontece neste momento, embarcasse com maior regularidade em canções que trazem algum fogo lá dentro. Como continuam a trazer na voz fulgurante de Maria da Fé.
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Entidades OI
A mulher invisível
Uma via sacra por uma Rússia moderna mas também eterna, percorrida por uma mulher que ninguém quer ver. (...)

A mulher invisível
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma via sacra por uma Rússia moderna mas também eterna, percorrida por uma mulher que ninguém quer ver.
TEXTO: “Há mais alguém que me possa ajudar?”, pergunta ela já perto do fim do calvário. “Deus nosso senhor”, vem a resposta, e não sabemos se a afirmação é irónica ou apenas desesperada. Pode até dar-se o caso das duas coisas — é essa a sensação com que saímos de quase duas horas e meia de projecção onde Sergei Loznitsa nos encafua no pesadelo de uma sociedade desintegrada, regida pelo caos e pela lei do mais forte. Realização: Sergey Loznitsa Actor(es): Vasilina Makovtseva, Liya Akhedzhakova, Valeriu AndriutãSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A sociedade é a Rússia moderna, e Uma Mulher Doce faz dobradinha com A Minha Alegria (2010), a primeira longa de ficção do bielorusso, que já nos mergulhava numa viagem sem regresso à escuridão da alma russa. Falámos de calvário e não é acaso, há nesta história qualquer coisa de via sacra em direcção à aniquilação, de última batalha contra as forças do mal. Foi por aí que nos lembrámos do Leviatã de Andrei Zvyagintsev (2014), outro retrato impiedoso da corrupção que engole um homem honesto. Aqui é uma mulher, que ao receber devolvido um pacote que enviou ao marido na prisão decide ir à Sibéria saber notícias. Tal como o camionista de A Minha Alegria, tal como o Kolya de Leviatã, também esta “mulher doce” será um carneiro sacrificial atirado aos lobos, à medida que se vê cada vez mais atolada na desintegração das regras sociais. Ela é a mulher invisível, vista pelos outros como vítima, prostituta, inimiga, idiota útil, mas nunca como aquilo que é — uma mulher que apenas quer respostas mas cujas perguntas ninguém ouve. Vasilina Makovtseva, de presença masoquistamente crística, é sempre o ponto de referência nos “quadros vivos” por onde Loznitsa a faz passar com o seu formalismo permanentemente atento ao pormenor, fotografados com um requinte quase pictural pelo cúmplice de sempre Oleg Mutu. Continuamos a preferir o Loznitsa documentarista, mesmo que reencontremos em Uma Mulher Doce o olhar desapaixonado, de um desespero quase niilista, do observador desencantado do mundo em que vive; a alegoria como a pratica aqui, a meio caminho entre a sátira picaresca e o simbolismo grotesco, torna-se cansativa numa duração tão longa. Mas há flashes extraordinários pelo meio, e sobretudo aquele espantoso plano final da estação de comboios que se encarrega de relançar o tom do filme: talvez nem mesmo Deus nosso senhor consiga ajudar a mulher doce.
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A$AP, queremos mais ovnis no Nos Primavera Sound
A$AP Rocky reuniu consensos, mas o sol e o rock ganharam ao hip-hop que encabeçou o cartaz neste segundo dia do festival, que terá tido uma das maiores afluências de público de sempre. (...)

A$AP, queremos mais ovnis no Nos Primavera Sound
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.45
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: A$AP Rocky reuniu consensos, mas o sol e o rock ganharam ao hip-hop que encabeçou o cartaz neste segundo dia do festival, que terá tido uma das maiores afluências de público de sempre.
TEXTO: Cinco minutos passados desde que a música de A$AP Rocky começou a tocar e o rapper ainda não apareceu em palco. Lá em cima, no centro, está a cabeça de um crash test dummy que ocupa grande parte do cenário. É para lá que a plateia olha em suspenso. Entra, não entra, será assim até ao final? Não é por isso que o delírio deixa de se espalhar por toda a frente do Palco Nos, já a rebentar pelas costuras. Passam mais cinco minutos e finalmente entra. Por detrás das chamas do espectáculo de fogo montado em palco, surge o norte-americano pronto para assinar aquele que foi o concerto grande da segunda ronda do Primavera, marcado por uma noite de hip-hop com concorrência desnivelada e uma tarde de surpresas na ala mais dura do rock. Uma tarde que começa com o sol a destapar-se das nuvens para espreitar e ouvir o psicadelismo dos portugueses Solar Corona e Black Bombaim que evocaram o astro-rei, que apareceu encantado pelo fuzz e pela distorção. Dizia a meteorologia que ia chover. Não podia estar mais errada. Corroborando a célebre ideia de que “prognósticos só no final do jogo”, o céu quase limpo veio substituir a chuva anunciada que nem por momentos decidiu aparecer. Quem apareceu foi o público e em número elevado. Diz-nos a organização que a contabilidade só será feita no final dos três dias, mas é seguro que terá sido um dos dias mais concorridos de sempre. Neste sábado, com lotação esgotada para receber Nick Cave & the Bad Seeds, o cenário não será muito diferente. Se na quinta-feira as estrelas foram Lorde, Father John Misty e Tyler, The Creator, na segunda ronda as escolhas não são tão óbvias, à excepção de Rocky, que não deixou margem para incertezas. Esperava-se que durante a tarde as veteranas The Breeders arrastassem para a frente do palco Nos uma fatia grande da audiência. Confirmada essa expectativa, faltou o resto. As irmãs Kim e Kelly Deal esbanjam simpatia, mas não chega. Pausas constantes e quebras para ajustarem falhas técnicas que teimavam em se suceder umas atrás das outras tornaram-se pedras na engrenagem ferrugenta de uma máquina com anos suficientes para estar oleada. Recordou-se o lado mais ingénuo do rock alternativo dos 1990, mas não mais do que isso. A banda da baixista de Pixies tem e terá o seu nome gravado no panorama musical dessa década de onde nunca chegou a sair. Isto é o que revela o pouco entusiasmo do público, que só reagiu mais efusivamente na altura em que o single Cannonball, do álbum de 1993 Last Splash, foi tocado e quando fizeram uma versão contrafeita de Gigantic, da banda original de Kim. Não as terá ajudado terem tocado após Zeal & Ardor, um ovni suíço-americano que uma hora antes aterrara no palco do lado para 50 minutos depois voltar a levantar voo, deixando saudades. Quem disse que nada mais há para fazer num estilo mais do que saturado como o black metal? Não será fácil, é um facto. Só se alguém se lembrar de o mesclar com blues ou spiritual. Qual mistura improvável de dois mundos que jamais se tocariam, a banda liderada por Manuel Gagneux derruba qualquer preconceito e alinha nesse desafio. Dirão os puristas do som das trevas cuja segunda vaga tem casa na Escandinávia que é uma heresia. Os tradicionalistas do blues e do spiritual dirão que é barulho a mais. No meio estará quem ache que estes dois mundos opostos casam na perfeição. Vozes quentes e acordes "abluesados" entrelaçam-se com riffs gélidos e com os gritados vociferados pelo vocalista/guitarrista, ajudado por um coro de duas vozes, sem que pareça forçado. É inusitado e arriscado, mas essa audácia compensa e vale pela lufada de ar fresco que traz a um género – black metal –, que para um determinado sector de fãs, para funcionar, tem de se manter cristalizado no tempo e preso ao molde talhado na Noruega, nos finais da década de 1980. Na linha das surpresas, mas não tanto pela originalidade, estiveram os britânicos IDLES. Surpreenderam pela atitude e por, apenas com dois álbuns lançados nos últimos dois anos, conseguirem agarrar a oportunidade de tocar no Palco Nos como se fossem fechar aquele dia. Chamam-lhe pós-punk, mas nós achamos que o prefixo não está lá a fazer nada. Há outras sonoridades onde vão beber, mas punk é atitude. Riffs de guitarra frenéticos e uma bateria com tarola nervosa servem de rede para um vocalista que se atira ao público como se o ano de 1977 nunca tivesse existido. Mais tarde, aquele palco fecharia com o hip-hop de Vince Staples e A$AP Rocky, em dia também marcado pelas actuações, noutros pontos do recinto, de Fever Ray, Amen Dunes, Unknown Mortal Orchestra, Superorganism ou Ibeyi. Antes disso acontecer, os Grizzly Bear tinham já assegurado que o indie rock imersivo a resvalar para o psicadélico e experimental que praticam não sairia manchado. Há delay, distorção e algum noise à mistura atirado do palco Seat para uma plateia que enchia aquela área do recinto e as bancadas montadas nas laterais. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Da comitiva hip-hop agendada para a segunda noite, Vince Staples tinha a tarefa árdua de superar a actuação de Tyler, The Creator, na noite anterior, e de tocar antes de A$AP Rocky. Só ele e o palco, muitas das vezes parecia também sozinho frente a uma multidão que em certos momentos não lhe dava mais do que gelo. Em palco falta-lhe maturidade, segurança e atitude. O flow do rapper é banal e quase infantil. Este segundo aspecto poderia conferir-lhe algum carisma se soubesse transformá-lo numa vantagem. Em Março, após críticas de vários fãs (ou não) que apontam para a falta de capacidade do rapper para enfrentar um palco, lançou uma campanha de crowdfunding para angariar dois milhões de dólares para desaparecer de vez do cenário musical. Ficamos divididos entre qual das duas hipóteses representa maior desperdício de fundos: pagar um bilhete ou antecipar-lhe a reforma?Já a Rocky, da casa A$AP, abrigo de outros rappers, não falta confiança. Balanço, batidas graves, ora macabras e agressivas, ora mais ambientais e contemplativas, arrancou a actuação mais segura e consistente daquele palco. Com o público na mão do início ao fim debitou, rimas num flow e num tom com selo próprios, provando nalguns temas que também sabe cantar. Vestia uma t-shirt dos Def Leppard, longe da sonoridade que faz, mas rock o suficiente como a sua postura. Da mesma equipa, A$AP Ferg apareceu num dos temas para o ajudar, pouco antes de terminar. Um dos dois últimos foi Fucking problems, que versa sobre a sua predisposição para relacionamentos com mulheres problemáticas e da necessidade que tem de manter com elas um contacto próximo: “I love bad bitches that's my fuckin' problem. And yeah I like to fuck I got a fuckin' problem. If findin' somebody real is your fuckin' problem. Bring ya girls to the crib maybe we can solve it”. Salta-se e canta-se o refrão com entusiasmo, homens e mulheres, aparentemente, sem qualquer problema.
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Palavras-chave homens género mulheres infantil
É agora que começamos a conhecer Isaura
Depois da vitória no Festival da Canção com O jardim, chega o álbum de estreia de Isaura. Human apresenta-nos uma autora pop, com um fraquinho pelos anos 80 e que importa não perder. (...)

É agora que começamos a conhecer Isaura
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois da vitória no Festival da Canção com O jardim, chega o álbum de estreia de Isaura. Human apresenta-nos uma autora pop, com um fraquinho pelos anos 80 e que importa não perder.
TEXTO: Human é um álbum dividido ao meio. Quando chega a The Crossover – Intermission deixa para trás um registo mais pop e vívido, deixando-se escorregar para tons mais sombrios, dominados por sintetizadores saturados e batidas de um hip-hop esfacelado. Há uma razão bem prosaica para esta cisão, longe de qualquer intenção conceptual. Isaura estava ocupada a versejar rimas de alcance universal, tendo como alvos a gestão do tempo, as prioridades que cada um decide privilegiar na sua vida, sem querer entrar por “temáticas muito grandes e complexas”, ao mesmo tempo que rabiscava letras sobre a insegurança que sentia ao meter as mãos na gravação do seu álbum de estreia. Essa insegurança, no entanto, motivava recados de encorajamento em causa própria (como em Don’t give up e High away, responsáveis pelo excelente arranque do disco), embalados com um tratamento sonoro que é revelador da firmeza com que atacava essas fraquezas. Autoria:Isaura Universal MusicSó que a meio da composição de Human a vida de Isaura seria abalada com violência. A morte da sua avó deixá-la-ia “devastada, destroçada”, sem vontade de trabalhar em música alguma. “E então percebi que tinha duas opções”, conta ao Ípsilon. “Ou começava tudo outra vez, e nem sabia se tinha forças para isso; ou assumia que o álbum não ia ser aquilo que tinha imaginado. Uma vez que aquilo que faço na música é sempre tão biográfico e tão verdadeiro decidi que a história era esta. ” A segunda metade do álbum é, por isso, Isaura a lidar com a perda e a reconhecer que “quase nada é aquilo que planeamos”, acolhendo os acidentes e as limitações como parte inteira do percurso. Daí o título Human, assunção plena de uma sucessão de fraquezas e imperfeições. Tinha já sido esta perda a originar O jardim, a canção com que Isaura se apresentou a um público mais alargado – depois de passagens por Ídolos e Operação Triunfo – enquanto autora, graças à participação e posterior vitória no Festival da Canção. O universo sonoro do seu álbum de estreia não rompe radicalmente com esse tema. Se esquecermos que aqui não há rasto da intérprete Cláudia Pascoal, “a grande diferença é a língua”, sugere a cantora/compositora acerca deste punhado de canções vocalizado em inglês. “Ainda que no Jardim tenha posto uma guitarra acústica e um piano mais aberto – e isso muda bastante as coisas. ”Só que aquilo que O jardim não revela com a mesma assertividade é a aproximação de Isaura a uma pop electrónica na linha daquilo que faz, por exemplo, Jessie Ware, ou até das canções descarnadas e delicadas dos XX. Há nestes nomes – a que Isaura junta ainda Haim, The Aces ou Khalid – a herança clara de um recurso a guitarras e/ou sintetizadores e a um catálogo melódico patenteados na década de 80. Nascida em 1989, Isaura cresceu nos anos marcados pela explosão dos Nirvana e do trip-hop, mas diz-se atraída pela “reinvenção dos anos 80” surgida a reboque de um movimento revivalista. O primeiro indício desse apego por um tempo anterior ao seu nascimento, admite a cantora, foi a sua pronta adesão ainda em adolescente à mixtape caseira. Mas em que, ao invés do áudio, era nas cassetes VHS que ela e a prima trocavam as músicas de que gostavam e se evangelizavam mutuamente. “Essa cultura da cassete está muito presente em mim”, reconhece. “Acho que é também por isso que nas minhas canções gosto do lo-fi, gosto de certos sons sujos que me trazem uma nostalgia e um prazer quaisquer que me parece virem daí. ”Foi o lastro dessa sonoridade que Isaura quis colocar no início de Human, ligando este seu presente à edição do EP Serendipity pelas NOS Discos há três anos. Foi com Serendipity que começou a ter certeza do caminho pessoal que queria percorrer. Após uma paragem auto-imposta de um ano em 2011, durante a qual quase não cantou por estar ainda a digerir uma experiência “emocionalmente muito forte” – a ligeireza das críticas nas redes sociais por alturas da participação na Operação Triunfo começava já então a deixar marcas – fez uma primeira tentativa de gravar as suas canções em estúdio. E serviu para lhe mostrar que precisava de paciência até descobrir que sonoridade queria imprimir nas suas canções. Essa primeira visita ao estúdio foi, por isso, enfiada de pronto na gaveta. “Era só mais uma canção, não estava a fazer nada de diferente”, resume. Só quando foi apresentada aos produtores Raez e Cut Slack para gravar Useless a revelação se deu por inteiro e percebeu que as canções podiam não apenas ser da sua autoria mas definir um espaço seu. Aquilo que ouvimos em Human é uma sonoridade que faria de Isaura uma artista pop a raiar o mainstream nos mercaodos anglo-saxónicos. Por aqui, no entanto, a cantora acredita que o seu lugar é de “artista de nicho”, está presa num limbo, entalada entre a pop e a música dita alternativa. E não é apenas uma questão de escala, de nos Estados Unidos ou em Inglaterra esse nicho poder ter uma dimensão ‘gulliveriana’. É também uma questão da natureza da pop local – e, acrescente-se, da língua em que canta. É indesmentível, ainda assim, que a sua presença na multinacional Universal a faz sentir mais próxima de músicos com quem partilha temas como Diogo Piçarra e a leva a dizer-se “mais atenta ao que se passa no mainstream”. “Acho que é um bom desafio para mim tentar perceber em que zona do mainstream é que consigo viver bem e com qual zona me identifico. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Human é também um álbum de prospecção, de garimpa. Embora partilhando créditos com Cut Slack, Karetus, Diogo Piçarra, Pedro, Lhast e Fred Ferreira, Isaura assume a título individual a produção de vários temas, resultado de uma aprendizagem que tem por fim não apenas controlar melhor o processo criativo mas também falar a mesma linguagem que os seus convidados, de forma a encurtar a distância entre aquilo que imagina – “e que vem de tanta coisa da nossa educação, dos nossos sentimentos, da nossa sensibilidade”, diz – e aquilo que consegue pôr em prática, dentro das barreiras que ergue para delimitar a sua identidade musical. É essa identidade que começamos a entrever em Human. Da vocação pop límpida e clarividente da primeira metade do disco – e que anuncia uma autora, em temas como Closer, a manter seriamente debaixo de olho –, ao interesse pela elasticidade do formato canção que toma conta da segunda parte – ainda a descobrir possibilidades, mas com talento suficiente para não se deixar abater pelo risco. Human é o disco em que começamos a conhecer Isaura. E que nos oferece a certeza de que tem muito por onde crescer.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte violência cultura educação adolescente cantora
Uma bienal em freejazz
Freespace, o tema geral da Bienal de Veneza, evoca generosidade e optimismo mais do que circunscreve uma curadoria precisa. Daí a sensação de uma bienal em freejazz. Prevalecente é o entendimento antagónico da arquitectura como discurso, a norte, e como forma, a sul. A representação britânica deu-se ao luxo de abandonar o edifício pavilhonar e criar uma “plataforma” no terraço. (...)

Uma bienal em freejazz
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Freespace, o tema geral da Bienal de Veneza, evoca generosidade e optimismo mais do que circunscreve uma curadoria precisa. Daí a sensação de uma bienal em freejazz. Prevalecente é o entendimento antagónico da arquitectura como discurso, a norte, e como forma, a sul. A representação britânica deu-se ao luxo de abandonar o edifício pavilhonar e criar uma “plataforma” no terraço.
TEXTO: A primeira peça que vi na edição de 2018 da Bienal de Veneza foi a professora de Princeton Beatriz Colomina deitada numa cama recriando o famoso Bed In que John Lennon e Yoko Ono realizaram no Hilton de Amesterdão, Room 902, em 1969, para promover a paz. Com os icónicos cartazes “hair peace” e “bed peace” afixados na janela, Colomina conversava com os vários Johns e Yokos que se iam deitando na cama. O pavilhão holandês, com a curadoria de Marina Otero Verzier, chama-se Work, Body, Leisure e resume-se a uma sala de cacifos cor de laranja que ao abrirem-se dão lugar a pequenas imagens ou a salas ocupadas por instalações. Os projectos revelados referem-se às transformações do corpo geradas pela robotização, tema recorrente na arquitectura, aqui recolocado à maneira de um Yellow Submarine de cacifos. O segundo momento que retive foi a capela projectada por Eduardo de Souto de Moura, no Pavilhão do Vaticano, na Ilha de San Giorgio Maggiore. Podemos dizer que a paz liga estes dois momentos. Mas são dois pólos absolutos da arquitectura que se pode visitar em Veneza, e isso impressiona. O remake do activismo sixties, abrindo um cacifo laranja, e a construção pesada e pétrea, com mármore de Vicenza, são experiências de um passado radicalizado, recente e longínquo, que significam dois mundos da arquitectura: o do discurso e o da forma. Na reencenação do Bed In, a mãe de todos os activismos, estamos perante a dissolução da arquitectura em discurso; na capela-túmulo de Souto de Moura é “uma arquitectura para os museus”, um conceito de Aldo Rossi, que emerge. Quando uma das juntas das pedras do altar se transforma na linha vertical da cruz cristã, Souto de Moura ganha o Leão de Ouro. (Que foi atribuído à Herdade do Barrocal, abreviadamente exposta no Arsenale). Sem precisar de discurso ou evocando o indizível: a morte, o transcendente. Aquilo que melhor é revelado pela forma, dirão os artistas. Este cisma define um entendimento antagónico da arquitectura no norte e no sul da europa, ou entre a cultura anglo-saxónica e a latina. Em qualquer caso, Peter Cook, figura lendária dos Archigram, vestido à Tom Wolfe – “visto-me sempre assim”, diz-nos – considera que se trata de uma Bienal de há 30 anos, com as curadoras irlandesas, Yvonne Farrell and Shelley McNamara, a esforçarem-se por agradar ao sul. O que talvez explique o Leão de Ouro de carreira atribuído a Kenneth Frampton, de origem inglesa, trabalho na América, mas reconhecido como historiador de uma “resistência” que é vista como empenho do sul. Nesse sentido de um certo arcaísmo, o Pavilhão Central nos Giardini é multiplicado em várias curadorias que visam reintroduzir, não tanto temas de há 30 anos, mas várias faces antigas da profissão, clássicas, académicas, de “representação honesta”, da produção física da arquitectura. Um sucesso garantido é o mezanino com várias maquetes de Peter Zumthor, cada uma experimentando materiais diferentes; e é comovente encontrarmos desenhos de Álvaro Siza e Paulo Providência na sala com curadoria de Elizabeth Hatz, Line, Light, Locus, uma homenagem ao desenho como expressão anterior à escrita. Numa apreciação rápida, dir-se-ia que o tema proposto pelo duo de curadoras para a Bienal, Freespace/Espaço Livre, funciona mais como um mote que pretende evocar optimismo e generosidade, do que como uma solução disciplinar para os problemas da arquitectura. É algo light, não tem a densidade de outras curadorias anteriores. Por isso temos a sensação de um certo freejazz curatorial ao percorrermos brevemente os espaços expositivos. Mas isso não é necessariamente negativo. A inauguração do Pavilhão do Vaticano, dez capelas efémeras, ou talvez não, erguidas num jardim extraordinário, foi o momento determinante da abertura do evento. Talvez se possa estabelecer uma relação com a festa que abre A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino (de 2013), embora em ambiente bucólico, sem álcool, nem drogas, nem prostitutas, nem música disco (talvez a maior falha). Mas o efeito cinematográfico do desfile interminável da beleza italiana intermediado por arquitectos internacionais, liderados pelo Cardeal Ravasi e pelo curador Francesco Dal Co, perdidos num bosque de arquitecturas de autor é difícil de superar. A peça de Souto de Moura, como dizia, toca num bem precioso no nosso tempo: a autenticidade. Mas, mesmo ao lado, a capela de Carla Juaçaba é afinal a única peça verdadeiramente freespace: uma estrutura aberta com uma cruz ao alto e uma no chão, em aço inox, que serve de banco, apoiada em sete peças de betão armado. Com uma peça engenhosa e elogiada, a arquitecta do Rio de Janeiro contrastava com a presença hegemónica dos arquitectos de São Paulo no eficaz Pavilhão do Brasil (Walls of Air/Muros de Ar) e com a apresentação contida, na Cordoaria do Arsenale, do GrupoSP. O mais emblemático e discutível pavilhão nacional da 16ª Exposição Internacional de Arquitectura – Bienal de Veneza é o britânico, que obteve uma menção honrosa. Chama-se Island e tem a curadoria de Caruso St. John Architects e Marcus Taylor. O pavilhão existente, desenhado por Edwin Alfred Rickards em 1909, é deixado vazio, e uma estrutura em andaimes constrói uma escadaria que dá acesso a um terraço panorâmico. Não sendo exactamente original – em 2006, o pavilhão francês propunha através de uma estrutura em andaimes a ocupação do edifício, e não a exposição de conteúdos (EXYZT, Metavilla) – a representação britânica prefere uma “plataforma” a um edifício, abrindo languidamente sobre a paisagem veneziana. Porque será? O British Council que é responsável pelo pavilhão e os curadores propõem um extenso programa de debates sobre os temas do dia: “reconstrução”, “isolamento”, “colonialismo”. Mas é o Brexit que surge como irresistivelmente contaminando Island, a “plataforma” e a vista. Todos os dias será servido chá às 16h. Nota: O crítico do PÚBLICO foi um dos convidados pela DGArtes para participar no concurso para a curadoria do Pavilhão de Portugal, abstendo-se, por isso, de escrever sobre a representação oficial portuguesa em VenezaSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
O fado de Duarte não é novo, mas é só dele
Após um disco dedicado ao luto de uma relação, sedimenta o seu fado muito pessoal em Só a Cantar, álbum em que reflecte a reconstrução em cima das ruínas e o fado dos dias de hoje. (...)

O fado de Duarte não é novo, mas é só dele
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.03
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Após um disco dedicado ao luto de uma relação, sedimenta o seu fado muito pessoal em Só a Cantar, álbum em que reflecte a reconstrução em cima das ruínas e o fado dos dias de hoje.
TEXTO: Duarte não é uma popstar. É ele quem o diz ao público da Ópera Comédie de Montpellier, após a fortíssima ovação com que é brindado no final do espectáculo do passado fim-de-semana na cidade francesa. Em vez de abandonar o palco e fingir-se a caminho dos bastidores à espera que a sala manifeste a sua vontade em não parar por ali, dá umas tréguas aos músicos (exemplares Pedro Amendoeira na guitarra portuguesa e João Filipe na viola de fado) e atira-se armado apenas com a voz ao tema popular Vou-me embora, vou partir. É o primeiro momento de sublimação da intimidade que Duarte constrói muito conscientemente em crescendo, conquistando a sala sem pressa de a ter logo na mão. Autoria:Duarte Alain Vachier Music EditionsÉ um vagar de quem não está disposto a meter-se por atalhos para alcançar a popularidade; nem embarca em fórmulas com menos arestas e mais fáceis de servir uma vasta audiência internacional sempre que o fado se deita na cama com a linguagem da pop. Duarte não é uma popstar, avisa. E, por isso, tende a identificar-se com os mais antigos no fado e não tanto com os fadistas e os músicos da sua geração. Nos fados, nos bastidores dos fados, são as histórias passadas de boca em boca que ajudam a perceber a essência desta música e a clarificar o lugar de cada um em relação à tradição que o precede. Para Duarte, psicólogo de profissão, o crescimento de um fadista não é muito diferente da construção de qualquer homem ou mulher que se define nas escolhas, nas relações sociais e na postura perante os outros que decide adoptar. Aquilo que foi percebendo nas suas conversas com Maria da Fé, Carlos do Carmo, José Mário Branco ou Aldina Duarte é que o caminho pessoal de cada fadista ou cada músico leva o seu tempo; por outro lado, quando se opta “por ser uma coisa muito do imediato, se calhar até é bom, mas depois desaparece porque não tem sustento”, afirma ao Ípsilon. “Eles diziam-me que este é o caminho mais difícil, mas se calhar é aquele em que temos mais a certeza de que aquilo que fazemos somos nós e não os outros. ”É esse imediatismo que está na mira de versos como aqueles com que arranca Que fado é esse afinal?, tema incluído no seu último álbum, com música de José Mário Branco: “Convém que seja moderno / ritmado sem critério / e fácil de consumir / Que não deixe de imitar / as modas que estão a dar / que não ouse resistir”. E continua: “Convém que não seja triste / que se venda, que se lixe / o valor do seu passado / Que se sirva ao desbarato / como um hambúrguer no prato / produto pré-fabricado. ” Duarte recusa, por isso, um percurso de fados prontos a servir, não querendo rodear-se de instrumentações que vão além da guitarra portuguesa, da viola de fado e do ocasional baixo, nem se mostrando interessado em privilegiar um fado que domestique a sua carga trágica ou dramática. Aquilo que lhe interessa, frisa, é respeitar uma tradição que, na origem, “era mutável”. Ou seja, ao partir de fados tradicionais, Duarte quer respeitar aquilo que faziam Amália Rodrigues, Berta Cardoso, Lucília do Carmo, Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Maria Teresa de Noronha, Carlos do Carmo ou qualquer outro dos grandes intérpretes do género: cantar as suas letras, criar o seu próprio reportório, a partir de uma matriz comum. Daí que não siga também o caminho de se abastecer de uma ementa de clássicos, já bastamente reconhecidos para que qualquer ouvinte de fado – ainda que pouco assíduo – possa relacionar-se sem atrito com aquilo que lhe é proposto. Cantar o reportório já testado e validado popularmente, afirma, “não seria diferente de quem serve hambúrgueres ou galos de Barcelos todos os dias, um souvenir que o turista leva consigo”. Seria fado a raiar o industrial. A única excepção a esta regra no excelente concerto de Montpellier é, já em encore, Estranha forma de vida, tema maior da cartilha amaliana que leva a plateia ao rubro. Acontece logo a seguir a Vou-me embora, vou partir, esse momento em que a voz do fadista se deixa invadir pelos requebros do canto à alentejana, as suas origens – declaradas logo no início do concerto, quando os músicos entram em palco ao som de um canto de trabalho recolhido por Michel Giacometti no Alentejo. Mesmo na casa de fados, no Sr. Vinho onde canta há 14 anos, Duarte privilegia os seus próprios fados e não cede à tentação de recorrer a um best of de fados clássicos que relatam, na verdade, outras vidas. É também isso que verbaliza noutro dos temas do novo Só a Cantar: “Não são fados são covers / imitações desalmadas / reproduções do destino / tantas vezes tão cantadas / Esses que tentam viver / aquilo que outros viveram / acabam por se perder / no tanto que não fizeram”. Que fado é este afinal? e Covers são criações em que Duarte diz estar a assumir não uma postura crítica, mas a propor uma reflexão (que não é novidade). “É uma coisa que sempre se fez – o fado a pensar-se a si mesmo”, responde. “Acho que é importante pensarmos o que estamos a fazer com isto, da mesma forma que nos questionamos a nós próprios vida fora. ”E nem só de fados fala Covers (que segue a deixa do Fado Pechincha original), acrescenta. Essa descaracterização que retrata, essa perda de contacto com uma linguagem que foi elevada a património da Unesco mas que corre o risco de se tornar caricatural, essa adequação ao gosto do visitante médio encontra, sem grande esforço, um espelho na própria cidade de Lisboa. Lisboa enquanto montra cuidada para agradar ao visitante, propensa aos despejos dos seus habitantes para arranjar espaço para dar dormida a mais uns quantos turistas, vendedora de falsas tradições como os pastéis de bacalhau com queijo da serra, lugar de profusão de casas de fados ao desbarato que enganam o espectador pontual mais desavisado. Em Covers, Duarte canta ainda versos que dão conta da “vampiragem pós-moderna / da Lisboa dos turistas”, mas na noite do Sr. Vinho em que o Ípsilon o encontra na casa de fados, as palavras rapidamente se alteram para “Lisboa dos turistas” se converter em “telemóveis e turistas”. É uma resposta do momento, com o fadista agastado com um cliente que tenta enganar o seu pedido para que a sua actuação não seja filmada. “Para mim aquela casa sempre foi um espaço que oferece uma exposição e uma intimidade muito grandes entre quem está a tocar, a cantar e a escutar”, comenta passado um par de dias. “E faz-me impressão que estejamos a dar alguma coisa às pessoas enquanto elas estão de telemóvel à frente da cara, mais preocupadas em gravar do que em ouvir-nos. ” Nessas ocasiões, serve-se do inglês para lhes dizer: “se estás a filmar isto, é porque não estás a viver. ”Na imponente sala da Ópera Comédie de Montpellier, com mais de 600 pessoas a preencher plateia e camarotes, não é necessário sacar de tais advertências. Há um silêncio solene, condizente com o espaço, a respeitar cada um dos 20 temas do concerto. Mas, ainda assim, Duarte termina tentando reproduzir o ambiente intimista da casa de fados naquele espaço inaugurado em 1888 (depois de três incêndios terem insistido em destruir o teatro nos 130 anos anteriores). E é então que chama os músicos, tomam as posições combinadas durante o rápido soundcheck – o tempo necessário para encontrar conforto em palco e não acentuar os nervos que o espaço desperta – na boca de cena e o fadista salta para a plateia, onde larga as palavras sem artifícios. Ganha-se em ataque e verdade aquilo que se perde em definição. Mas é indesmentível que sem a artificialidade dos sistemas de som o fado é mais fado. Torna-se mais próximo e rente à carne. O público, sem grandes explicações, sabe-o de imediato. Duarte precisa de conceitos para neles alicerçar a construção de cada álbum. “Plataformas de construção”, como lhes chama, assentes em fados tradicionais – desta vez, a correspondência entre letras e composições teve a ajuda de Aldina Duarte, com quem partilha algumas noites no Sr. Vinho, com resultados soberbos em Sobretudo cinzento ou Mordi a tua mão. Depois de em Sem Dor nem Piedade (2015) ter criado um disco para cumprir o luto de uma relação, em Só a Cantar quis pensar como se avança “depois das ruínas” deixadas pelo disco anterior. “Um pouco como as cidades”, comenta, “como podemos aproveitar as ruínas que ficaram e depois desenvolvermos uma nova cidade em torno disso, um pouco como Évora e Roma. ” Aqui, estar só não é sinónimo de solidão; é sobretudo o reconhecimento de que há escolhas, crescimentos e reconstruções que exigem acção individual. A ligação entre os dois álbuns estabelece-se sem dificuldade através de Vai de roda. É uma autoria de Duarte com intenso travo alentejano, que aparecia no álbum anterior num registo mais despido e melancólico, só para voz e percussão, recriado desta vez com a habitual instrumentação do fado. É um dos temas de rasgo popular – a par de Maria da Rocha ou da canção Rapariga da estação – em que o cantor se permite fugir ao fado e que justifica a presença de João Gil no lugar de produtor, arregimentado quase por acidente, quando Duarte avançava já para estúdio e descobriu no ex-Trovante a presença certa para garantir “uma lente exterior ao disco”. Vai de roda salta do alinhamento de Montpellier à última hora. No alinhamento de Duarte é possível ainda ler a sua escolha como tema final, mas é trocado no momento quando se sobrepõe a vontade de manter um registo mais tradicionalmente fadista para fechar o concerto. Contornando a menor fluência em francês, os temas são apresentados com recurso a uma cábula, em que o cantor se permite introduzir algum humor como ao apresentar Rimbaud, esse “poeta maldito” que é nome de música do seu reportório mas que, comenta em palco, não justificaria tanto o epíteto de “maldito” quanto governantes como Trump ou Putin. Duarte, crente de que em cada fado deve viver uma história, vai distribuindo ao longo da noite pistas básicas para a compreensão do que se passa nos versos e nas entrelinhas. Rimbaud fala de “estrelas cadentes”, de figuras que povoam as vidas alheias e desaparecem consumidos por uma qualquer vertigem, numa sedução do fadista por aquilo que foge à rotina dos dias que se parecem uns com os outros. Em Dizer, por outro lado, comenta as vozes que gritam nos teclados das redes sociais e que comentam tudo o que diz respeito aos outros com a ligeireza de quem nem sabe daquilo que fala. “São preocupações com a linguagem do meu tempo”, diz Duarte, consciente de que esta é uma marca inequívoca do seu fado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Essa característica tem levado cada vez mais fadistas a procurarem-no, pedindo-lhe letras que possam ajudar a construir os seus reportórios. É algo que Duarte vai tentando encaixar numa agenda carregada, com a psicologia a exigir uma dedicação (garante também de liberdade artística) que o fado disputa aos fins-de-semana, entre as noites no Sr. Vinho e os concertos no estrangeiro (sobretudo em França, onde trabalha com um agente local e a sua reputação construída em palco começa a atingir uma dimensão considerável). Por onde quer que passe, Duarte vai mostrando que ainda há fado feito sem piano, percussão ou bateria, ao mesmo tempo que não se cansa de repetir que este seu fado não é novo. Mas é único, ainda que povoado por dúvidas, porque é o seu. É quanto basta. O Ípsilon viajou a convite de Alain Vachier Management
REFERÊNCIAS:
Entidades UNESCO
A herança de 1968: uma leitura crítica
Definir 68 como o embate entre uma vanguarda política e culturalmente criativa e um conservadorismo político e societal partilhado à direita e à esquerda, por burgueses e operários, é uma leitura tão intrinsecamente burguesa e liberal que ninguém nos 68 se atreveria a assumi-la. (...)

A herança de 1968: uma leitura crítica
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Definir 68 como o embate entre uma vanguarda política e culturalmente criativa e um conservadorismo político e societal partilhado à direita e à esquerda, por burgueses e operários, é uma leitura tão intrinsecamente burguesa e liberal que ninguém nos 68 se atreveria a assumi-la.
TEXTO: Mais do que um movimento global, 1968 (isto é, o final dos anos 60) foi feito de 68 tão diversos quanto a contestação à guerra norte-americana no Vietname, a luta pelos direitos cívicos nos EUA, as grandes mobilizações operárias em França (as maiores do séc. XX) e em Itália, a crise do socialismo real na Checoslováquia, a dissidência política e cultural do catolicismo progressista ou os grandes movimentos estudantis um pouco por todo o Ocidente (Portugal incluído), entre os quais os mexicanos não ficaram atrás dos franceses. O que me parece revelador é que, quando nos lembramos de 68, é do 68 estudantil (e especialmente do francês) que falamos. E há razões para isso, sociais, antes de mais: é que quem protagonizou o 68 estudantil teve desde então, por óbvios motivos sociais, de classe, incomparavelmente mais voz (e, portanto, mais poder para escrever a história) do que quaisquer outros herdeiros de 68. A tese mais comum sobre 68 (que aqui usarei para referir os movimentos de finais dos anos 60) é a da vitória cultural mas derrota política. Advirta-se desde já que esta é a tese central do discurso autorreferencial dos protagonistas do 68 estudantil e espelha a evolução individual de muitos dos seus antigos ativistas, para os quais, dos primeiros a celebrar o “fim das ideologias” nos anos 1980 (depois de, em 1968, terem sido os campeões delas), as únicas revoluções positivas são as culturais. Como em tudo, a leitura do passado faz-se sempre a partir dos valores do presente, pelo que uma boa parte do que se celebra hoje de 68 (e do estudantil em particular) é constituído sobretudo por pontos de chegada de um processo que, mesmo que se tenha iniciado em 1968, dificilmente se pode dizer que tenha sido desejado há 50 anos. Definir 68 como o embate entre uma vanguarda política e culturalmente criativa e um conservadorismo político e societal partilhado à direita e à esquerda, por burgueses e operários, é uma leitura tão intrinsecamente burguesa e liberal que ninguém nos 68 se atreveria a assumi-la. Sobre 68, como sobre todos os ciclos que nos parecem representar mudanças revolucionárias, há que perguntar se foi o início ou o ponto de chegada da mudança global a que se o associa. Quando há 50 anos os estudantes universitários parisienses se propuseram encontrar “a praia debaixo dos paralelepípedos da rua” e se lançaram contra a polícia de choque nas ruas do Quartier Latin, a sociedade francesa acumulava 20 anos de mudanças que estavam a alterar substancialmente os padrões autoritários e desigualitários que pautavam as relações sociais no conjunto do mundo capitalista industrializado, que permitiram aos jovens da década de 60, com um modelo de sociabilidade próprio que lhes permitiu atuar (ou assim eles próprios imaginaram), ser ator político autónomo. A socialização da economia que acompanha a reconstrução da devastada Europa centro-oriental (os novos países socialistas), a criação do Estado de bem-estar nas economias capitalistas, apontando para uma (sempre incompleta) democratização da Educação, da Saúde e da Segurança Social, permitiram a muitos dos jovens nascidos depois de 1945 estudar mais tempo do que no passado, adiando a sua submissão à exploração e ao autoritarismo nas relações laborais (então ainda naturalizados, como hoje se volta a querer que o sejam). Esta nova condição social da juventude criou um evidente fosso cultural que deu origem do generation gap que tanto se discutiu a partir dos anos 50, que ajuda a entender o vigor da contestação antimilitarista que opôs os jovens, mais do que quaisquer outros segmentos da sociedade, a todas as guerras posteriores a 1945 (Indochina, Coreia, Vietname, Argélia e as demais guerras coloniais) e à própria conscrição militar a que continuariam submetidos até finais do século. Que a centralidade da contestação estudantil tenha permitido aos jovens tornar-se os atores mais visíveis da crítica aos sistemas sociais e políticos dos dois blocos da Guerra Fria terá resultado muito mais da experiência (material e biograficamente mais longa) de não submissão a aparelhos autoritários, como a fábrica e o quartel, do que da maioria dos fatores de tipo cultural ou mais estritamente político que costumam ser invocados para explicar 68. No mesmo sentido, o crescente assalariamento das mulheres e a escolarização generalizada, delas e dos seus filhos, o avanço dos cuidados de saúde pública que fizeram com que o Estado assumisse uma parte essencial do cuidado dos mais velhos foram decisivos na crise da visão sexista que via (e vê) as mulheres como cuidadoras, um estatuto (e uma identidade) que a moral social maioritária sempre presumiu fazer parte de uma natureza feminina. É nessa nova condição material e social das mulheres e na consolidação do movimento feminista como sujeito político e cultural próprio, que lhes foi possível ganhar a batalha do divórcio, da contraceção e do aborto, nos anos 1950/60 nos países socialistas antes ainda de 68, na maioria dos países capitalistas ricos apenas nos anos 1970/80, aqui tornando-se uma das consequências de 68. Já a reivindicação fundadora do 68 estudantil — a democratização do acesso à e da gestão da universidade, o ataque ao autoritarismo escolar e à pedagogia elitista — teve um evidente sucesso nos 30 anos que se seguiram a 1968, e um retrocesso muito marcado nos últimos 20 anos. É paradigmático que tenha sido um antigo dirigente estudantil de 1969 (Mariano Gago) a desdemocratizar legalmente, em 2007, a gestão universitária em Portugal, ou que Cohn-Bendit aplauda hoje a reforma universitária elitista de Macron e se dessolidarize dos estudantes que, como ele em 1968, têm vindo a ser expulsos à bastonada de faculdades que ocupa(va)m. A juventude estudantil e trabalhadora dos anos 1960 e 70, bem como as suas novas práticas culturais que lhe deram uma identidade geracional distintiva não são, portanto, simples produtos históricos de uma geração que se descreve hoje, 50 anos depois, como generosa e entregada, como se tivesse descoberto sozinha (ou, pelo menos, contra a vontade de todos os poderes, mas também contra todas as oposições organizadas) a perversão intrínseca do autoritarismo, mesmo quando ele, em muitos lugares, se descrevia como socialista ou comunista; da guerra, mesmo que feita em nome do Mundo Livre; do capitalismo, por mais que ele se disfarçasse de democracia social; ou do colonialismo, por mais que ele se quisesse passar por esforço civilizador. Os 68 mais radicais (o francês, o italiano, os latino-americanos), estão, contudo, longe desse caráter libertário que se tem considerado ser o seu espírito, e muito mais próximos de Mao e do Che. É que com os vários 68 ocorre o que raramente ocorre com a memória dos processos históricos de mudança radical: ser hoje reivindicado, simultaneamente, à esquerda e à direita. Por motivos muito diferentes, e apenas por segmentos de cada uma das duas, mas, ainda assim, pelas duas. O mais interessante é que aqueles que militantemente abandonaram os valores de que os 68 radicais se reivindicavam os reinterpretem agora sob a mesma luz liberal e antirrevolucionária, mais cultural que política, libertária porque anticomunista (e não tanto anticonservadora e anticapitalista), que iluminou o percurso político de quem transitou, logo nos anos 1970 e 80, para o lado neoliberal, neocapitalista e ocidentocêntrico da vida. Por outras palavras, os que querem procurar uma estranha coerência entre Mao e Bernard-Henri Lévy, entre autonomia operária e Berlusconi. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os 68 abriram o caminho a uma corrente de pensamento sociológico e histórico (Alain Touraine, Charles Tilly, . . . ) que procurou a definição dos “novos movimentos sociais” em sociedades pós-industriais, ou que, de alguma maneira, se imaginam como pós-produtivas. Neste novo contexto, “velhos movimentos” como o operário (e a própria luta de classes) teriam perdido a sua centralidade nos conflitos sociais e, pelo contrário, neles teriam ganho espaço “novos movimentos” mais centrados na identidade dos sujeitos que na sua própria natureza instrumental para obter determinados resultados. Neste sentido, os 68 (a identidade social dos seus atores e as modalidades de expressão dos seus valores) são coerentes com sociedades nas quais as identidades de classe tendem a diluir-se. É por se imaginar superadas as identidades de classe que se valoriza o protagonismo juvenil/estudantil, justificado com os mesmos argumentos com que a nova fase da hegemonia burguesa se afirmava: o que agora distinguia os grupos sociais não era mais a sua posição na estrutura produtiva, mas sim a sua qualificação. Na sua batalha por emancipar os operários da “burocracia” sindical e partidária dos comunistas, a abordagem que os “novos movimentos” fizeram então do mundo do trabalho estava em grande medida contaminada por muito do paternalismo que 68 denunciava na sociedade burguesa. Foi essa a acusação que o sempre herético Pasolini fez aos estudantes que, em Valle Giulia (Roma), se confrontaram com a polícia, naquele que teria sido “um fragmento de luta de classes: e nela, vocês (ainda que do lado certo) eram os ricos”, usando da “prerrogativa pequeno--burguesa” de “saberem ser prepotentes, chantagistas, seguros e descarados”. Pasolini enfrentava-se aos estudantes “filhos da burguesia” a quem os media “lambem o cu [sic]” porque “vocês são filhos deles, a esperança deles, o futuro deles: quando vos criticam, eles não se preparam seguramente para uma luta de classes contra vocês!” “Ignorando (para grande satisfação do Times e do Tempo)” a tradição revolucionária europeia, “com moralismo provinciano, vocês sentem-se ‘mais à esquerda’” (Pier Paolo Pasolini, Il Pci ai giovani, 1968). No final dos anos 60, os “novos movimentos” foram politicamente derrotados em França, por De Gaulle, nos EUA, por Nixon, na RFA por um SPD que, sucedendo à CDU, geriu com mão de ferro o Estado policial dos anos 70, no México, na Checoslováquia. . . Onde se conseguira fragilizar seriamente a hegemonia política (França, Itália), foram os “velhos movimentos” como o sindical a obter grandes vitórias no campo laboral e salarial, depois de greves como não se viam desde o pós-I Guerra Mundial. Pelo contrário, a radicalização da nova esquerda armada que se formou, em grande medida, no seio dos 68, quer nos países de capitalismo consolidado, quer em vários latino-americanos (ainda que aqui o processo da sua emergência fosse anterior a 1968), isolou-a das massas, reforçou e legitimou a capacidade repressiva do Estado e da classe dominante, contribuiu para a vulgata do horror da revolução que nela vê sangue e totalitarismo entre os mesmos que não os conseguem ver na dominação capitalista ou neoimperial. Ao retomar a bandeira da legitimidade da violência política e ao concentrar a sua crítica (simultaneamente neolibertária e maoísta) ao funcionamento do movimento sindical de classe e aos partidos comunistas dos países capitalistas, o 68 armado veio acrescentar mais divisão nas esquerdas revolucionárias que ajudaram a acelerar a liberalização da social-democracia e a emergência do reformismo eurocomunista.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE