As memórias de Carmen Dolores no lugar a que pertencem
A partir de um livro de memórias, Diogo Infante leva para palco a vida de Carmen Dolores. Carmen pode ser visto até 29 de Julho, no Teatro da Trindade, na sala que a partir desta quinta-feira passa a ter por designação o nome da actriz. (...)

As memórias de Carmen Dolores no lugar a que pertencem
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: A partir de um livro de memórias, Diogo Infante leva para palco a vida de Carmen Dolores. Carmen pode ser visto até 29 de Julho, no Teatro da Trindade, na sala que a partir desta quinta-feira passa a ter por designação o nome da actriz.
TEXTO: Mal pousou Vozes Dentro de Mim, livro de memórias que a actriz Carmen Dolores lançou há um ano, Diogo Infante teve “esse vislumbre” de que no interior daquelas páginas havia um espectáculo à espera de reclamar existência em palco. Quando, pouco depois, o actor, encenador e actual director do Teatro da Trindade cumpriu com a promessa de visitar a actriz, aproveitou a ocasião e pediu a sua bênção para criar uma dramaturgia em torno não apenas daquele tomo editado pela Sextante, mas das suas memórias num sentido mais amplo. Carmen, espectáculo que integra o Festival de Almada entre 12 e 15 de Julho – mas que depois prossegue a sua carreira no Trindade, em Lisboa, até dia 29 – é um monólogo que passeia pelas memórias teatrais de Carmen Dolores, sem obedecer a qualquer regra cronológica. As Vozes Dentro de Mim – as personagens, portanto – sobem ao palco como um sussurro, uma evocação em fundo de uma carreira de quase 70 anos, mas que nunca se sobrepõem ao arco narrativo e emocional que Diogo Infante desenhou em estreita colaboração com a actriz homenageada. Aquilo que prevalece é, a cada instante, a história de alguém que dedicou a sua vida ao teatro e não um retrato traçado a partir das muitas mulheres a quem emprestou o corpo. Esta humanização da actriz conta-nos, por exemplo, o impacto que teve para si assistir num camarote de 1. ª ordem a Frei Luís de Sousa, com Palmira Bastos, a importância da rádio no lançamento da sua carreira, a sua relutância em aceitar o papel no cinema que lhe foi oferecido por António Lopes Ribeiro (em Amor de Perdição), a sua relutância posterior em se juntar ao elenco do Teatro da Trindade ou o conselho de Lopes Ribeiro para que não enveredasse pelo Conservatório, sob pena de poder desbaratar o seu jeito natural. No fundo, Carmen assenta sobre “uma manta de retalhos composta por memórias de muitas naturezas diversas, desde a intimidade familiar ao lado profissional”. Graças à cumplicidade entre Diogo Infante e Carmen Dolores, todo o processo de construção do espectáculo contou com a participação da visada, tendo a actriz proposto algumas alterações à proposta de texto que ele lhe apresentara, algo que, no entendimento do encenador, “valida este acto de amor, esta entrega e esta homenagem que lhe queremos prestar”. “E torna tudo ainda mais rico, porque a Carmen não se limitou a estar presente como um ser passivo. Ela é uma autora viva que está aqui connosco, ela é a personagem. Ao mesmo tempo, deu-nos muita liberdade, concedeu-nos a possibilidade de nos afastarmos e não ficarmos demasiado presos a ela – o que podia ser uma limitação, por ser uma referência tão presente e tão próxima. ”Tanto assim que Carmen Dolores enviou como recado (via Diogo Infante) para Natália Luiza, a actriz que veste a sua vida em palco, a seguinte mensagem: “Diz à Natália que ela podia não me conhecer. ” Essa simples generosidade de Carmen Dolores, de entregar o seu percurso artístico em mãos alheias, funcionaria como elemento libertador. “De repente”, conta o encenador, “a teatralidade passou também por podermos reinventar a realidade. Foi isso que fizemos, usando a nossa sensibilidade como filtro. ” Sem esquecer, no entanto, que não queriam nem deviam afastar-se “do espírito de Carmen”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O palco por onde Natália Luiza vai desfiando as memórias de Carmen Dolores – que evocam, por exemplo, a “pretensa rivalidade” que manteria com Eunice Muñoz ou os anos em que viveu em Paris – está recheado de “objectos que estavam cheios de pó e tapados com mantas, restos de cenários e de figurinos” que Diogo Infante foi descobrir no sótão do Teatro da Trindade. São outras peças da memória de um teatro onde Carmen Dolores actuou durante vários anos – algo que estará também documentado numa exposição que ocupa o foyer e as galerias, em redor da sala que doravante passa a ter por designação oficial o nome da actriz, num transbordar da cena para o restante espaço teatral –, outra forma de reactivar a história daquele lugar. Num certo sentido, Carmen repõe uma certa verdade sem a qual as memórias da actriz poderiam ficar incompletas. Sendo certo que é na palavra escrita que estas visitas ao passado ficam habitualmente fixadas, no caso de Carmen Dolores seria estranho que essas palavras não fossem, depois, ditas em voz alta no palco. Ela que, através de Natália Luiza, não quer deixar fugir as palavras, trata-as com um respeito e uma delicadeza raras. De certa forma, o mesmo respeito e a mesma delicadeza que se sente em cada segundo desta Carmen que Diogo Infante mostra no Trindade, numa homenagem que é também um agradecimento e um reconhecimento público do encenador por uma das “pessoas referenciais” da sua vida. Em cima do palco, claro, mas também fora dele. Porque, aos 94 anos, Carmen Dolores é uma mulher cuja clareza de espírito, garante, o inspira e responsabiliza.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher mulheres corpo
Este país não é para novos
Uma sociedade democrática madura tem obrigação de dar aos jovens o protagonismo do seu próprio futuro. (...)

Este país não é para novos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2018-05-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma sociedade democrática madura tem obrigação de dar aos jovens o protagonismo do seu próprio futuro.
TEXTO: António Costa comprometeu-se, no congresso do PS do passado fim-de-semana, a promover políticas no âmbito da habitação, educação e mercado laboral especialmente dirigidas aos jovens, tendo desafiado a concertação social a participar num “grande acordo para as novas gerações”. Paradoxalmente, a nova direcção do PS foi celebrada na comunicação social como “renovada e rejuvenescida” por ter diversos novos membros com menos de 50 anos. Num relatório recente da OCDE, publicado em Abril, intitulado Youth Stocktaking Report, que podemos traduzir livremente por “Relatório de Inventário da Juventude”, é referido que as políticas dirigidas aos jovens definem normalmente como idade limite os 25 ou 29 anos. Como é bom de ver, chegada aos 50 anos, já passaram pelo menos 20 anos desde que uma pessoa deixou de ser “jovem”. A tarefa de Costa é Hercúlea, como os números que cito abaixo, constantes no relatório da OCDE acabado de sair, ilustram. Este Portugal não é para os novos. 1. A taxa de desemprego em Portugal entre os menores de 25 anos é de 23, 9%, três vezes maior do que a do grupo etário seguinte, entre os 26 e os 55 anos. De entre os jovens que têm emprego, cerca de dois terços têm contratos temporários. Por esta razão, mas não só, as mulheres têm o primeiro filho por volta dos 30 anos, quando já não são “jovens”. 2. A par da exclusão da economia, os jovens estão alienados do sistema político. Apenas 44% dos indivíduos entre os 15 e os 29 anos respondem “sim” à pergunta “Tem confiança no governo nacional do seu país?”. Há pior: na vizinha Espanha, apenas 27% dos jovens têm confiança no governo, e na Grécia 12%. Mas na Suíça, no Luxemburgo e na Noruega, os campeões da confiança juvenil, este número ultrapassa os dois terços. O panorama é igualmente pessimista quando olhamos para o interesse na política: 40% dos jovens não estão interessados na política e, consequentemente, a abstenção entre os jovens é mais elevada do que na restante população. 3. É possível que a confiança e interesse dos jovens aumentassem a confiança se a sua geração estivesse mais bem representada nas instituições de poder. Acontece que menos de 25% dos deputados têm menos de 40 anos, e apenas 2% têm menos de 30. Podemos pensar que os menores de 30 anos são demasiado imaturos para assumir cargos políticos no coração da democracia representativa, mas na Suécia, por exemplo, há 12, 3% dos deputados nesse intervalo de idades. A idade média dos membros do governo reportada no estudo da OCDE é de 55 anos, dez anos acima da média da Islândia e Noruega, os países com governos mais jovens. Na administração pública há apenas 11% de funcionários abaixo dos 34 anos; é mais um indicador onde Portugal se destaca pela negativa; apenas a Polónia, Grécia, Itália e Espanha têm uma administração pública mais envelhecida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. 4. Apesar de Portugal ter sido o primeiro país a ter um Orçamento Participativo Jovem, em 2017, ainda tem um longo caminho a percorrer nas políticas públicas de apoio à juventude. A OCDE preconiza uma abordagem transversal que envolva diferentes áreas de política, que vão do desporto, ao emprego, saúde ou habitação; em Portugal, o Plano Nacional da Juventude cumpre esta função. No entanto, este plano não tem metas quantificadas e não é sujeito a avaliações periódicas de metas, contrariamente ao que acontece na maioria dos países da OCDE. Há países que vão longe na cultura de avaliar políticas públicas. Na região belga da Flandres, todas as iniciativas legislativas susceptíveis de influenciar os interesses dos menores de 25 anos têm obrigatoriamente de ser acompanhadas por um “relatório de impacto nas crianças e jovens”. No Canadá, o impacto da legislação é calculado para diferentes grupos da população, definidos com base na idade, género, etnia e nível de educação. 5. No seguimento da publicação do Youth Stocktaking Report, a OCDE promove entre 18 de Maio e 18 de Julho uma consulta pública para avaliar a percepção dos cidadãos acerca da importância de ter um governo e administração pública “amigos da juventude”. Está aberto a qualquer pessoa e demora menos de cinco minutos a preencher, aqui: https://survey2018. oecd. orgA moção de António Costa termina com a frase “Esta é a visão da Geração 20/30”. Mas com a alienação económica, social e política das novas gerações, há um risco de que seja a visão das gerações mais velhas para a geração 20/30. Uma sociedade democrática madura tem obrigação de dar aos jovens o protagonismo do seu próprio futuro.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
O nascimento imperfeito de uma mãe
Sofia Anjos é cronista do PÚBLICO online desde 2013. Por causa da rubrica Mães Há Muitas, que assina quinzenalmente no site PÚBLICO Life&Style, a directora de contas numa agência de comunicação tem agora dois filhos: a Laura e o livro Difícil é Parir a Mãe (Clube do Autor). Perguntámos-lhe o que mudou na sua vida. Eis a sua resposta. (...)

O nascimento imperfeito de uma mãe
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sofia Anjos é cronista do PÚBLICO online desde 2013. Por causa da rubrica Mães Há Muitas, que assina quinzenalmente no site PÚBLICO Life&Style, a directora de contas numa agência de comunicação tem agora dois filhos: a Laura e o livro Difícil é Parir a Mãe (Clube do Autor). Perguntámos-lhe o que mudou na sua vida. Eis a sua resposta.
TEXTO: Nos últimos dois anos tive uma filha e escrevi um livro. Escusado será dizer que, aos amigos, pouco os vi. Ser mãe foi planeado. Publicar um livro foi um acaso. Quase me senti mãe de gémeos falsos, claro. Como se vivesse numa época em que só descobrimos o milagre da vida, a duplicar, na sala de partos. Pois a escrita foi algo que pari, distraidamente, no dia em que a minha filha nasceu. Foi a 8 de maio de 2013, dia a que cheguei sem qualquer curso de preparação pré-parto e muito menos de escrita. Ambos os meus filhos nasceram e encontram-se bem. A Laura está no auge dos seus teimosos dois anos e o livro — chamo-lhe “livrinho” por ser mais pequenino — engordou até às 288 páginas. Mas ontem o telefone tocou e uma voz forte quis saber: “Agora que publicaste um livro, o que é que mudou na tua vida?” E eu, sem me conter: “Nada. ” Resposta que ficou perdida entre a afirmação e a interrogação, já que me desviei a pensar por que terão as pessoas esta tendência a perguntar mais, gostar mais, reparar mais nos filhos caçulas? Quando são os mais velhos, primogénitos, que nos viram a vida do avesso. A Laura é que mudou tudo. E o tudo, no meu mundo, sou eu. Eu não sou escritora. Eu não sou jornalista. Nem tenho sequer um blogue, como aqui há dias ouvi comentar: “Sabe que a Sofia é blogger?” Bem, o mais próximo que tive de um blogue foi um diário que escrevi em miúda; e no mês passado um cliente ofereceu-me produtos da sua marca, sem que eu tenha de a mencionar, pois não sou um suporte publicitário. E ainda sobre não ser: não sou mãe a tempo inteiro, oficialmente. Daquelas mães que escolhem ficar em casa a criar os filhos e que, admito, do alto dos meus 40 anos, já estive mais longe de invejar. Também não pertenço a qualquer clube de mamãs, não navego por páginas de roupinhas para crianças com frou-frous, não partilho dicas de como fazer assim e assado com os filhos alheios. E é com alguma pena que nunca serei mãe de uma família numerosa. As minhas credenciais maternais resumem-se a uma filha, um instinto e a olhar por ambos dia e noite. Um currículo banal, igual ao de tantas mães. O desafio das crónicas passa por expor a vivência diária, a rotina, as peripécias e queixumes maternais com algum humor— Então, Sofia, quer escrever uma coluna sobre maternidade?— Quero. Mas não tenho experiência no assunto, têm a certeza?“Ser mãe é a tropa das mulheres” foi a primeira crónica publicada em Agosto de 2013 no Público Online, Life&Style: 69. 269 leitores que, garanto, não são o número de amigos que tenho no Facebook. Palavras que me saíram das entranhas, curiosamente, após completar três meses como mãe, em jeito de final de recruta. Com este texto, nasceu a coluna Mães Há Muitas, onde, semanalmente, escrevinho sob o ponto de vista da mãe que sou, acerca daquilo que vejo, leio e sinto sobre a maternidade. A minha editora adora os textos mas o marido dela detesta, confessou-me. E a redacção do jornal igualmente dividida. Os leitores, muitos, dizem-me: “O que me ri!” ou “Você não devia ter útero”. Mas tenho sim, útero, e também me cresceram tomates desde que fui mãe. São coisas íntimas da metamorfose maternal: leite a sair das mamas, pés que crescem um tamanho, coração que engorda. Assim que comecei a escrever, espantei-me. Desconhecia o quanto as pessoas comentam as coisas que os jornalistas, cronistas, especialistas escrevem. Depois ofendi-me um bocadinho com a liberdade de expressão, bem, com a utilização de calão, por parte de perfeitos desconhecidos para comigo. Mas agora, hoje mesmo, leio os comentários às crónicas com gosto e, sim, divirto-me. Há quem se identifique e quem, não se revendo, também se divirta durante dois minutos. Isso é bom. E também não ignoro os malcriados, embora pudesse, aqui, fingir que sim: “Alguém dê um Prozac a esta senhora”, “Coitada, esperou até aos 38 anos para ter filhos”, “Só pode ser uma frustrada, ressabiada, mal-amada”. Já isto, não é bom, nem bonito mas é gratuito. Mas a cereja em cima do bolo foi para a Marinela, uma senhora que a propósito da crónica “As mães não se medem às mamadas” afirmava: “Era tirar-lhes os filhos!” — referindo-se às mulheres que optam por não amamentar. Foi apupada virtualmente e, logo depois, prontamente se rectificou e enterrou: “Falei de irresponsabilidade na opção de engravidarem! Já é razão mais que basta para ver os filhos retirados às mães. Até pelo tempo que elas não têm por via dum qualquer emprego onde o tempo de permanência é manifestamente insuficiente para a criança. ” Bem, sempre que fico a trabalhar até mais tarde, regresso pela A5 com o pé no acelerador com medo de chegar a casa e ver a Marinela com a minha filha ao colo pronta para ma levar. Porque a Marinela é o pesadelo de todas as mães. Ironicamente, o sucesso das crónicas resulta, em parte, destes comentários que me chegam há dois anos e que revelam mentalidades para as quais ainda é crime não querer ser mãe, ou sê-lo e optar por não amamentar, deixar o bebé chorar, queixar-se de cansaço, chegar tarde a casa. “Então, que não fosse mãe!” — é a frase mais repetida. Será representativo da mentalidade nacional?Do quão bom é ser mãe, como cuidar de um bebé, que desafios ultrapassar é algo que está falado e escrito, seriamente, em anos e anos de testemunhos e literatura. O desafio das crónicas passa por expor a vivência diária, a rotina, as peripécias e queixumes maternais com algum humor. Assuntos com que se brinca pouco, pois as pessoas estão muito comprometidas com uma imagem imaculada. Mãe é santa, boazinha, terna, voluntariosa, a melhor pessoa do mundo de cada pessoa. Mãe confessa-se ao padre e ninguém, verdade seja dita, quer saber dos seus pecados. — Oh! Mais uma a dizer que a maternidade é uma chatice!Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não está na moda afirmar que ser mãe é difícil. Não é moderno olhar para a maternidade como um fardo. Não apareceram, nos meios de comunicação, centenas de mães a queixarem-se da vida. E sim, há meia dúzia de sites, blogues ou artigos, em Portugal, que focam este ângulo mais cinzento. Mas são ainda muito poucos quando comparados com os restantes que perfazem uma enorme mancha cor-de-rosa e que se levam demasiado a sério. Falta humor, leveza, descontracção na maternidade. Difícil É Parir a Mãe é um livro que reúne muitos dos textos que fui partilhando e que o Clube do Autor me desafiou a publicar. O título é para mim a afirmação do nascimento imperfeito de qualquer mãe. Escolhi partilhar a minha experiência que, a brincar a brincar, também é séria. Disse-me uma tia psicanalista (sim, uma tia é um parente mas ainda confio na palavra da família): “Querida, os teus textos são muito úteis para debater lá nos cursos com os formandos. ” E eu a pensar que sou virgem no que respeita a deitar-me no divã, Tizinha. Então fui escrevendo assim, sem consulta nem nada. Às tantas da noite, quando sobram horas para escrever, lá me vou lembrando dos formandos: estudantes e jovens psicólogos, enfermeiros, técnicos de terapia familiar. E chego a pensar: se estes textos me levam as lágrimas e me perduram as alegrias, talvez suceda o mesmo com mais duas ou duzentas mães, ambos são números bonitos. O que o livro mudou? Diria que me impede de mudar esta parte da minha história.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime filha criança medo mulheres
200 anos depois, eles ainda são os Guimaraens
Fundaram uma das firmas mais consagradas do vinho do Porto, tornaram-se ingleses, regressaram às origens e já falam português sem sotaque. (...)

200 anos depois, eles ainda são os Guimaraens
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fundaram uma das firmas mais consagradas do vinho do Porto, tornaram-se ingleses, regressaram às origens e já falam português sem sotaque.
TEXTO: Descendentes de um liberal que emigrou para Londres em 1822, os Guimaraens fundaram uma das firmas mais consagradas do vinho do Porto, tornaram-se ingleses, regressaram às origens e já falam português sem sotaque. No dia 8 de Abril de 1815, um escrivão da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro registou numa caligrafia burilada com os salamaleques da época a compra de 32 pipas de vinho do Porto pelo negociante João dos Santos Fonseca. A transacção estaria condenada a perder-se nesse imenso labirinto burocrático que guardou na memória o destino de milhões de pipas de vinho se não contasse o primeiro capítulo de uma saga familiar que por estes dias comemora dois séculos. Uma saga que combina jeito para o comércio, paixão pelo vinho e testemunha a ligação entre o Porto e a Inglaterra que se desenvolveu nos últimos 300 anos sob os auspícios do Port Wine. Debbie, David e Christoph, a sexta geração dos Fonseca Guimaraens, são os rostos contemporâneos desse longo passado. Donos de uma parte da empresa que preserva o nome do patriarca, Manoel Pedro Guimaraens, conservam a nacionalidade (e a fisionomia) inglesa, apesar do nome de origem portuguesa com a grafia oitocentista. Lusos por simpatia mas britânicos por devoção, andaram cá e lá, entre Vila Nova de Gaia e Londres. Até há poucos anos, fizeram parte dessa comunidade fechada dos ingleses do Porto, que casavam entre si, que se reuniam em saraus no Clube Inglês e discutiam em inglês os negócios nos lendários almoços de quarta-feira na Feitoria Britânica. Hoje, os mais novos já falam português sem sotaque. A cola que guardou esta família na memória é a sua capacidade de criar vinhos do Porto Vintage que alimentaram a devoção de várias gerações. “Tenho um enorme orgulho nessa herança e sinto uma enorme responsabilidade por a continuar”, reconhece David Guimaraens, 49 anos, o herdeiro da mais longa linhagem de enólogos da história do vinho do Porto — e provavelmente de qualquer vinho mundial; os Fonseca Guimaraens vigiam as vindimas e fazem os lotes de Porto desde 1860. “Nós olhamos para o passado da nossa família como uma corrida de estafetas, onde o testemunho passa de geração em geração”, nota Magdalena Gorrell Guimaraens, mãe de David. Manoel Pedro Guimaraens entrou na sociedade de João Santos Fonseca em 1820. Nascera em 1795 em São Romão de Ucha, Barcelos, no seio de uma família de proprietários rurais cuja origem remonta a 1258. Provavelmente estudou no seminário de Braga e foi cedo trabalhar para o Porto, onde se tornou defensor da causa liberal que, nessa época, ganhava lastro no seio da burguesia. O seu nome de nascimento era Manoel José Gonçalves Salgueiro e se numa determinada fase da sua vida teve de mudar de identidade foi muito provavelmente para evitar represálias políticas. Na Fonseca e Monteiro (era esta a designação da sociedade em 1820), a vulnerabilidade de Manoel Pedro às pressões absolutistas tornou-se um problema e uma oportunidade. Seguindo o destino de muitos outros resistentes, teve de se exilar. Mas levou consigo o encargo de abrir uma agência da empresa em Londres. Em 1822, com 27 anos, Manoel Pedro parte numa viagem paga pela firma. O negócio prosperou e passados poucos anos torna-se um exímio intérprete dos rituais da burguesia dos negócios londrina. Veste-se nos melhores alfaiates, colecciona arte, reúne uma vasta biblioteca, inscreve-se na Royal Botanical Society, onde desenvolveu o hábito de cultivar pelargónios (plantas da família dos gerânios e das sardinheiras). Em 1834, casou com Georgiana Francis Pearson, filha de um advogado. Entre os negócios, continua a acompanhar a evolução da política portuguesa. Assinava o Times, o Portuguez e o Portugal Ilustrated e correspondia-se com Almeida Garrett e com Fernandes Tomás, o fundador do Sinédrio, a associação secreta criada em 1818 para combater o domínio britânico em Portugal, exigir o regresso do rei D. João VI do Brasil e a instauração de uma monarquia constitucional. Amigos no Porto ou correligionários em Bruxelas ou em Paris escreviam-lhe dando conta dos avanços das tropas miguelistas ou dos projectos do duque de Saldanha e de D. Pedro. Na viragem para a segunda metade do século XIX, a Fonseca começa a viver em dois andamentos. Os negócios em Londres corriam bem, mas a cabeça da empresa no Porto acumulava prejuízos. Manoel Pedro Guimaraens era já o principal activo da marca e, num gesto premonitório, o seu patrono e sócio, João dos Santos Fonseca, faz-lhe um pedido estranho: “Ele queria que o seu nome continuasse a fazer parte da marca, acontecesse o que acontecesse”, nota Madgalena Gorrel Guimaraens. Manoel Pedro acede ao pedido de forma indelével: chama ao seu primeiro filho Manoel Fonseca Guimaraens. Em 1847, a firma do Porto entra em falência, mas Manoel Pedro consegue manter os negócios com a marca Fonseca. Os seus vinhos começavam a disputar o prestígio das criações dos grandes comerciantes britânicos, como a Cockburn’s ou a Sandeman. O vintage de 1847 foi muitas vezes considerado o melhor da primeira metade do século XIX. Em 1851, a Fonseca Guimaraens consegue mais um grande vintage. Embalado com este sucesso, os Guimaraens compram o que restava da empresa em 1863 por 225 mil réis. Manoel Pedro já não teve tempo de vida para assistir a esta evolução. Morreu em 1858, um ano depois de o seu filho Manoel Fonseca ter entrado na companhia. Por essa altura, junta-se-lhe o irmão Pedro Gonçalves Guimaraens, que é enviado para o Porto para supervisionar a produção de vinho. O sucesso da dupla é imediato. O vintage de 1863 atingiu preços elevados em Londres e o de 1868 foi assim considerado por Warner Allen, o mais influente crítico de vinhos da primeira metade do século XX, em 1931: “Um dos maiores, mais escuros e mais cheios de sabor vinhos secos que eu já provei. ”Após a morte de Manoel Fonseca, o seu filho, Charles Bruce, vendeu as suas quotas ao tio e aos primos. “Ele não gostava do negócio”, explica o neto, David. Passaria mais de meio século até que os seus descendentes regressassem à empresa. Neste compasso de espera, são os filhos de Pedro Gonçalves Guimaraens que assumem o controlo. Por meios próprios ou pela conveniência das alianças matrimoniais. Em Dezembro de 1867, Pedro casa com Helen Florence Fladgate, filha de John Anderson Fladgate, sócio da Taylor Fladgate & Yeatman e um dos homens mais poderosos do negócio nesse tempo — era o Barão da Roêda. Nas primeiras décadas do século XX, a Fonseca diversifica os seus mercados. Exporta para vários países da Europa, incluindo a Rússia czarista, e chega a mesas e bares tão distantes como os de Rangum, Singapura, Yokohama ou Xangai. As vendas para a China apresentavam o vinho do Porto como um produto que dispunha ao mesmo tempo de propriedades calmantes e estimulantes. Apesar do sucesso, a empresa não consegue reunir músculo suficiente para resistir à Grande Depressão. Em 1932, o Estado Novo limita as exportações de vinho a um terço das quantidades armazenadas, o que exige elevados investimentos na aquisição de stocks para se poder atingir a quantidade do que se pretende exportar. A II Guerra Mundial agrava o cenário. O comércio fica paralisado. Em 1943, a Fonseca tem de recorrer a empréstimos dos familiares. A produção de vinhos notáveis como o 1945 ou o 1948 não afasta os problemas. Sem possibilidades de resistir, a Fonseca Guimaraens é vendida ao seu principal credor, a Taylor’s, dominada pela família Yeatman. A ligação da família à empresa, porém, ficaria garantida por Dorothy Guimaraens, que, cumprindo a velha paixão familiar, se conserva à frente da sala de provas. Protagonizava o caso raro de uma mulher num mundo misógino — só muito recentemente foi permitida a presença de mulheres nos almoços da Feitoria Inglesa do Porto. Dorothy foi autora do notável vintage de 1955. O mundo do vinho do Porto entrara na letargia. O regresso à animação anterior à guerra tardava. O dono da Taylor’s e da Fonseca, Dick Yeatman, era conhecido por gostar mais de vinho do que do negócio. Vendo-se sem descendentes, Dick tenta atrair uma nova geração à empresa. Convence Bruce Duncan Guimaraens, bisneto de Manoel Fonseca, a assumir a pasta da enologia e Huyshe Bower da parte comercial. Bruce, acabado de chegar do serviço militar no Gana, entra na empresa em 1956 e aprende as artes do vinho com a tia Dorothy. Corpulento, desajeitado, voz tonitruante e dono de um humor sarcástico, Bruce tornou-se uma imagem de marca do vinho do Porto da segunda metade do século XX. Alguns dos seus vintage, como o 1963 ou o 1977, são lendários. A competência de Bruce e de Huyshe Bower leva o velho Dick Yeatman a oferecer-lhes uma quota na empresa. Da forma mais imprevista, os Guimaraens voltam a ser donos (ainda que em parte) da “sua” empresa. Dick Yeatman morre em 1966 e no ano seguinte a sua mulher entrega a Taylor’s a Alistair Robertson, seu sobrinho. Alistair nascera no Porto, descendente de uma família inglesa com ligações antigas ao vinho do Porto. A nova equipa multiplica as vendas dez vezes desde 1967, inaugura o sucesso dos LBV (late bottled vintage) modernos, lança o Fonseca Bin 27, uma das marcas que mais vendem no sector, e transforma o grupo Taylor’s (hoje Fladgate Partnership) num dos principais produtores de vinho do Porto. Alistair deixou a produção entregue a um Guimaraens e diz que na sua gestão não há preferências entre as duas mais valiosas marcas empresariais (a Taylor’s e a Fonseca): “É como ter filhos. Cada um pode ter um carácter diferente, mas não quer dizer que tenhamos de gostar mais de um ou de outro. ”Nos anos de 1990, uma nova geração chega à firma. Adrian Bridge, casado com Natasha, filha de Alistair, fora oficial do exército e trabalhara na banca de investimentos antes de assumir a gestão da empresa. No seu mandato, o grupo Taylor’s cresce ainda mais depressa. Quintas como a belíssima Eira Velha são compradas, empresas gigantes como a Croft ou negócios gourmet como a Wiese & Krohn, firma famosa pelos seus Porto colheita, são adquiridos. Adrian é um gestor puro e duro. Não desistiu do negócio do vinho, mas complementou-o com uma forte aposta no turismo. O Yeatman, o luxuoso hotel de Gaia, é uma aposta com a sua assinatura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. David Guimaraens, filho de Bruce, entra na empresa em 1990, após terminar os estudos em Enologia na Austrália. É o primeiro Guimaraens a falar um português perfeito. Estudioso, obcecado com a qualidade, David estreou-se na produção dos vinhos da Taylor’s e da Fonseca em 1994 e logo aí obteve duas pontuações de 100 pontos em 100 na revista norte-americana Wine Spectator — na sua história, a Fonseca produziu quatro vinhos com 100 pontos, sendo superada no capítulo dos “vinhos perfeitos” apenas por três châteaux de Bordéus (Latour, Pétrus e Yquem). Ao contrário dos enólogos da sua geração, David insiste que é um “crime” usar uvas do Douro na produção de vinho de mesa, que a sua excelência requer a majestade do vinho do Porto. Para ele, a criação dos Taylor’s ou dos Fonseca resulta apenas da aplicação de um saber depurado em décadas de experiência. “O meu pai deixou-me uma herança: o saber respeitar as uvas. Os grandes Porto são antes de mais um testemunho de respeito pela matéria-prima. ” E é esse respeito que, muito mais do que a pequena quota de que dispõem na empresa (objecto de segredo), torna o papel dos Guimaraens na Fonseca e na Taylor’s indispensável. Passados 200 anos, esta família de britânicos continua a viver e a respirar vinho. Se David é enólogo, Christophe vende produtos de enologia e Debby trabalha na exportação de rolhas para espumantes. “A nossa história está nos vinhos que fomos fazendo lá para trás”, nota David. Num jantar comemorativo na Feitoria Inglesa, provou-se um 1963 e o que se pode dizer é que essa é uma excelente história.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime morte homens guerra filha filho mulher comunidade mulheres
Maria do Céu Guerra: Deseja-se mulher. E actriz
Pertence à categoria “grande senhora do teatro português”. É bem provável que deteste a pompa do título. Sabe que pertence ali. A grande senhora do teatro português é Rosa, a protagonista luminosa de Os Gatos Não Têm Vertigens, o mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos (...)

Maria do Céu Guerra: Deseja-se mulher. E actriz
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pertence à categoria “grande senhora do teatro português”. É bem provável que deteste a pompa do título. Sabe que pertence ali. A grande senhora do teatro português é Rosa, a protagonista luminosa de Os Gatos Não Têm Vertigens, o mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos
TEXTO: Uma vida chega? Não! Talvez o teatro seja, para começar, e para acabar, um exercício para iludir o medo de morrer. O medo de não se poder ser alegre e leve e voraz e tudo aquilo que se pode ser pelo facto de se ser. Portanto, o teatro é uma expressão de vida, uma vida representada que é vida. Vidas para viver com sofreguidão. No teatro e no cinema. Maria do Céu Guerra viveu — foi — a Rosa, pela mão de António-Pedro VasconcelosEsse é o pretexto para estarmos ali, naquela segunda-feira à tarde, com a luz a trespassar as cortinas vermelhas d’A Barraca. Há um encanto no teatro inundado pelo dia, muito diferente daquele que tem quando as luzes se acendem e se abre o espaço para as vidas inventadas. Como néones apagados, que tornam a vida menos fosforescente e mais nítida. Esse é o nosso território. Onde fomos nós, sentadas numa mesa do canto, resguardadas do calor? À essência do teatro, ao núcleo que a palavra representa, à metodologia, à vida como ela era no fascismo, à pessoa que ela era quando foi preciso defender um projecto, uma companhia. Ao começo e ao fim do mundo. Era para ter sido escritora. Visto retrospectivamente o seu percurso, parece óbvio que ia ser actriz. Há momentos em que o olhar surpreende por ser alegre. Como é que eu ataco uma personagem? Cada actor ataca uma personagem de uma maneira diferente. Em primeiro lugar, tenho uma certa avidez. [pequeno riso] E leio a história umas poucas de vezes, como quem devora. E tenho a certeza de que não estou a perceber tudo. Mas aflita para ter uma primeira impressão. É uma primeira visualização. Dá o contexto em que se move. É uma coisa que vou aperfeiçoando com mais leituras e sobretudo com a conversa com o director, seja de cinema seja de teatro. Procuro perceber em que é que eu, Maria do Céu, sou verdadeiramente diferente daquela personagem. Porque me convenci há muitos anos, e ainda estou convencida disso, que se não trabalhar a diferenciação, rapidamente estou a repetir-me. Nesta idade, ainda mais. As personagens não são muitas e por vezes repetem-se. Depois continuo a trabalhar, a criar. E depois deixo-me imbuir pelo que me trouxe ao teatro, ao cinema, à arte de representação: durante algum tempo, tentar viver em cena como aquela pessoa. Sem sentir que estou a representar. Exactamente. Isso parte de uma concentração prévia sobre aquela figura. Sei que representar é sempre uma construção. Tenho cuidado. . . É, para que não seja muito visível que é uma construção. E é por aí que eu vou. Temos de ter a noção de que há muitas zonas de sombra no nosso trabalho e em quem somos. Nunca chegamos a saber exactamente o que é que um director quer de nós. Nunca chegamos a saber realmente se conseguimos chegar lá. Se ultrapassamos a expectativa que nós próprios tínhamos. Se as escolhas que fizemos são as acertadas. Vivemos com essa incerteza — essa incerteza pode ser interessante. Pois. Cada vez tenho menos [certezas] e gosto mais de não as ter. Por exemplo, a Rosa, personagem do filme do António-Pedro Vasconcelos, é uma mulher segura. Tem princípios firmes que em nada abalaram a sua ternura, a disponibilidade para os outros. Percebi, neste questionamento, que sou muito mais incerta do que ela. E a segurança não é para mim um valor como é para ela. Para mim, é melhor ser sempre aluna, estar sempre a aprender. Voltar ao ponto zero. Ouvir os outros como se fosse a primeira vez. Não é com tudo. [riso] Mas é guardar isso como um grande valor. E não estar distraída. E sempre que uma pessoa disser uma coisa que me abana, dar atenção a isso. A Rosa é tranquila. Eu sou insegura. E sou tímida. Digo sem estar a fazer género. Não tenho a certeza de que aquilo que sei chegue. De que o que gosto seja o melhor. E levanto muitas questões. Isto é insegurança. Mas é uma insegurança com que me habituei a viver e que transformei num valor. Porquê? À medida que a vida avança, fui percebendo que não é possível dar nada por certo. O incerto é mais certo [riso], não é? É o que sinto. Embora, às vezes, me atrapalhe um bocadinho. Não é bem desapontar. No princípio, quando era miúda, tinha medo da opinião dos outros. Tinha sobretudo medo de ser mal entendida. De ser entendida como uma pessoa superficial. As meninas que iam para o teatro eram tontinhas. . . Importava muito. Eu sentia que não tinha um desafio intelectual com pessoas do meio [teatral]. E, na minha universidade, as pessoas de sempre iam aprendendo mais, ganhando saberes, apetências, caminhos que se separavam do meu. Tinha medo que a minha evolução ficasse por ali. Quando cheguei ao teatro dizia-se: “Estás a querer trabalhar para o público ou para a crítica?” Era muito frequente, nos meios teatrais, especialmente as mulheres, dizerem: “A Ângela Pinto foi a maior actriz portuguesa e mal sabia ler. ” Eu não queria ser a Ângela Pinto. Houve pessoas que me marcaram bastante na juventude. A Carmen Dolores. Era uma actriz que tinha biblioteca. Das poucas que tinham biblioteca. E que emprestavam livros. Depois conheci outras pessoas assim. A Glicínia Quartin. O Augusto Figueiredo, que gostava de ler Dostoiévski. Eu tinha medo que não fosse possível ser assim. Eu tinha medo que fosse obrigatório ser tão instintivo como inculto. Sim. Depois percebi que não, que não devia ser instintiva e inculta. Como é que começámos?Sei que representar é sempre uma construção. Tenho cuidado. . . É o livro do David Copperfield. Tive a possibilidade de ter escolha, desde o princípio. O princípio é quando saio do conforto da minha casa e entro para a universidade e entro para a Casa da Comédia e entro para o Teatro Experimental de Cascais. Esses primeiros anos, em que começo a dizer poesia, a dar-me com pessoas como a Natália Correia, o dr. Fernando Amado, o Almada [Negreiros]. Pessoas mais velhas que nos ajudavam a crescer, a nós, uma série de miúdos ansiosos por perceber alguma coisa do que era a vida e do que era a arte. Vim de Cascais, foi lá que me criei. Foi lá que comecei a ler, a gostar de escrever. A minha mãe. Era jornalista. Chamava-se Maria Carlota Álvares da Guerra. Era. Era uma sucessão de Carlotas. A minha avó era neta de uns conservadores que achavam que a Carlota Joaquina era o máximo [riso]. Uma tia da minha mãe era Ernestina. Da parte do meu avô, tenho uma tia Maria das Dores. Eram católicos, sim. Era um construir em casa o céu. Bom, a minha mãe deu-nos livros para ler. Era uma pessoa divertida, fazia teatro. Tínhamos uma sala grande. Nunca chegámos a representar nada, mas líamos peças, fazíamos cenas. D’ O Pequeno Eyolf do Ibsen a peças do Ramada Curto, muitas coisas foram feitas, entre amigos. Tudo misturado, os velhos e os novos. Nós, pequenitos, o meu irmão e eu, participávamos sempre. Era outro tempo. O mundo mudou tanto nos últimos 50 anos. . . mudou 15 séculos!Dizíamos. A minha mãe dizia muito bem, o meu irmão também. Depois começou a trabalhar. Foi locutora da Rádio Renascença, do Rádio Clube Português. Nós começámos a ir a Lisboa ter com ela. E depois a ir para a universidade. Saíamos todos juntos e encontrávamo-nos na Brasileira. Aquele mundo passou a ser um mundo natural em nós. Tanto que quando fui para a Casa da Comédia já conhecia o Almada da Brasileira. Eu era dali. Não sei se se chamam intelectuais. Com alguma escolha, com algum critério, com algum bom gosto, sim. Os meus maiores amigos desse tempo eram o Diogo Ary dos Santos, o irmão do Zé Carlos, a Zita Duarte. Gente que veio a distribuir-se pelas pequenas companhias que havia. A minha estreia foi na faculdade, com uma peça do [Correia] Garção, Assembleia ou Partida. Não me lembro bem se foi com o Almada se foi na faculdade. Trabalhei as duas coisas ao mesmo tempo. Não sei qual é que se apresentou primeiro ao público. Isto foi tudo entre 1963 e 64. Quem me puxou, quase que empurrou para ir para a Casa da Comédia, foi a Laura Soveral. Era aproximadamente dez anos mais velha do que eu. Tinha o prestígio de ser uma mulher lindíssima, muito inteligente, que adorava teatro e cinema. Eu estava na faculdade e gostava de estar no grupo de teatro. Diziam-me: “Vai para a Casa da Comédia, desenvolve isso. ” Fui a medo. A mim? Não sei. Era talvez o que o Almada dizia, o que acabou por ser flagrante em mim: a simpatia. No sentido mais lato. Eu era uma pessoa com quem era agradável falar, rir, estar. E o público tinha por mim esses mesmos sentimentos. Sem destrinçar se isso era qualidade artística ou um dote pessoal. O Almada escreveu na peça Deseja-se Mulher: “À simpatiquíssima mulher de vermelho. ”Já passou tanto tempo. Nós somos nós e o que os outros dizem que nós somos. Depois passou um longo tempo em que já não era tão simpática. Em que estava muito preocupada com o que estava a fazer. Era mais combativa. Foi a partir do momento em que criei esta companhia. Deixei de ter essa leveza. Concordo muito com o Italo Calvino quando ele diz que a leveza é uma das indispensáveis palavras para o milénio (ele escreveu antes de 2000). Tenho trabalhado outra vez a minha leveza, desde que percebi que quer me zangasse muito quer me zangasse pouco as transformações (na vida desta companhia, ou na minha) não iam por aí [pela zanga]. Não valia a pena esgrimir [argumentos] de uma forma tão aguerrida, tão voraz como eu julguei que era indispensável fazer. A Barraca, em que trabalho há 38 anos, teve uns primeiros dez anos com alguns problemas, como todos, mas com uma grande aceitação da crítica e do público. Depois, quando se percebeu que havia algumas ambições relativamente à transformação daquele grupinho da Rua Alexandre Herculano numa coisa mais séria, com um discurso próprio e determinado, quando foi preciso defender a companhia, perdi a frescura. Perdi quase a paciência. E foram 20 anos de uma dureza sem nome. Eu tinha percebido, com certeza absoluta, que queria fazer um teatro que não era o teatro que se fazia em todo o lado. Posso dizer uma coisa que parece cultural mas não é?Quando os espanhóis saíram de Portugal, em 1640, deixaram uma herança de teatro espanhol. Que ia do péssimo ao genial, do teatro dos pátios (a maior parte, não prestava para nada) ao Calderón [de la Barca], ao Tirso de Molina, ao Lope de Vega. Quando chegaram os iluministas, e a inteligência tentou mudar o paradigma do teatro, a primeira coisa que fizeram foi perseguir o teatro espanhol. Porque era uma herança de ocupação e de concessão ao gosto do público. Defenderam o neoclássico, o arcádico. Importaram o teatro francês, a ópera italiana. Compraram peças a Molière, a Goldini, óperas ao [libretista] Metastasio. Mas o teatro português perdeu alguma coisa muito importante ao mandar embora o teatro espanhol. Virou as costas ao Século de Ouro. Havia o medo de que o povo gostasse, que ficasse uma coisa popular. Há uma distância enorme entre Lope de Vega e Reis Quita. Boa literatura não é bom teatro. Quem é que decide o que é bom e o que não é?Alguém como Peter Brook diz-nos que o inimigo do teatro é o aborrecimento. Esse equilíbrio entre fazer uma coisa que tenha um sentido elevado (como se dizia nessa altura) e fazer uma coisa que não aborreça, e que faça rir e que faça chorar, que é muito do que se pede ao teatro, e ao espectáculo, é muito difícil. Esse conflito, A Barraca tomou-o sempre pelo lado popular. É. Não vamos abraçar paradigmas que sejam maçadores e que fechem esta companhia num universo de que não queremos fazer parte. Foi uma batalha muito, muito difícil. Não, não. Era o meu instrumento para não me sentir envergonhada perante mim por estar a fazer o que estava a fazer. Era o meu instrumento para fazer teatro. Não era uma coisa proselitista. Quando falo de fazer um teatro que eu gostava de fazer, há nisso um desejo de transformação. Das consciências das pessoas, da vida das pessoas. A cultura, o teatro é uma maneira de ir transformando o gosto, a sociedade. Mas sei que posso fazer muito pouco. Então, porque é que vale a pena? Porque é só assim que me sinto bem, feliz, que acredito no que estou a fazer. O teatro é essencialmente isso: vejam aqui uma história, completa (e na vida real não têm hipótese de ver uma história inteira, só fragmentada), que vos dá uma outra dimensão da vida que estão a viver. Não damos soluções. O conselho é o pior que o teatro pode fazer. Mas podemos expor a vida, a transformação da vida, os conflitos, as lutas mais profundas e mais superficiais dos séculos, na sua mais luminosa demonstração. Nunca tinha pensado nisso antes de ler essa frase. E nunca me tinha posto na posição de ser o herói da minha vida. Ao longo dos anos, depois de o público me dar um lugar na arte que escolhi, é que comecei a questionar-me se estava a ser a actriz que queria ser. Isso foi complicado. Nesses anos em que me tornei dura, rebarbativa, menos simpática, porque estava realmente a lutar, porque me estava a ser tirado um espaço físico, artístico, moral para fazer o teatro que eu queria fazer, fui. . . não direi moralista, mas autoritária, dogmática. Não é politicamente. É na vida. Mutilei-me, às vezes. Mutilei a vontade do público. Perdi anos muito interessantes em que podia ter feito um repertório diferente, o de uma mulher na maturidade. Andei a fazer coisas que eram o teatro que A Barraca devia fazer. Tive. Tive pena de não ter feito um repertório que as actrizes gostam de fazer. Os Tennessee Williams. . . Mas olhava para A Barraca e achava que esses sonhos — egoístas — não cabiam neste projecto. Mas cabiam. Fui-me libertando desse peso, do peso da afirmação de um projecto transformador, instigador. Aquele mundo passou a ser um mundo natural em nós. Tanto que quando fui para a Casa da Comédia já conhecia o Almada da Brasileira. Eu era dalExactamente. Eu não tinha percebido que podia ser as duas coisas. Eu tinha 13 ou 14 anos quando foi a eleição do Humberto Delgado. O meu pai foi apoiante do Delgado, fez com ele a campanha. Não. Passou a sê-lo. Era um funcionário do Ministério do Ultramar, um homem com um grande anseio de liberdade. Depois do apoio à candidatura de Delgado, perdeu o emprego. Exilou-se na Bélgica. Quando vinha cá, era preso. Teve o resto da vida massacrado e não conseguiu reorganizar-se. Fui ao Aljube. E depois a Caxias. Esteve preso quatro vezes. Quando saiu de Caxias, a tensão arterial estava muito, muito baixa. Esteve mal. Os meus pais estavam separados. Mas a minha mãe, se sabia que estava preso, mobilizava-nos para o apoiarmos. Quando saiu, ainda nos anos 60, fazia parte daquele grupo de pessoas que iam para a Argélia, vinham da Argélia. . . nunca percebi muito bem esse projecto, mas sei que se empenhou nele. Portanto, para mim, foi fácil perceber o que era o fascismo. Não era preciso. Era fácil perceber. O meu irmão andava no colégio Portugal, na Parede, cujo director também era um antifascista. Eu, na faculdade, andei à volta da associação. Entrei em 1963, estava a faculdade numa convulsão [na sequência das lutas de 62]. Então, aquilo foi como respirar. Fiz, enquanto estava na faculdade. Já no teatro, vieram as eleições de 69, colaborei nas eleições de 69. Distribuía papéis, ia trabalhando o meu sentido de liberdade e os porquês desse sentido. Nunca estive enquadrada em nenhum partido (o meu irmão, sim). Tinha as opções todas feitas. Escrever. Basicamente, escrever. Havia uma colecção pequenina, a Best-Seller, que resolveu publicar um livro de poesia meu. O David Mourão Ferreira foi meu professor. E o Urbano [Tavares Rodrigues] e o [Lindley] Cintra e o [Vitorino] Nemésio. Tenho livros de poesia do David Mourão Ferreira autografados. No primeiro ano, achava que ia ser escritora, no segundo achava que ia ser escritora e actriz, e no terceiro achava que ia ser actriz. Olho para aquilo e penso: “É a história da minha vida. ”Em três dedicatórias. É. Senti no teatro que era muito mais certa a comunicação que estava a ter com palavras de outros, e com o meu investimento emocional, com o que eu dava e valorizava o texto. Afinal, não precisava de escrever. Se calhar, não tinha nada para dizer. Havia um grupo de que gostava muito, a Beat Generation. O Kerouac, o Ginsberg, o Carver. Sim. Esse grupo correspondia muito à minha sensibilidade e maneira de ser. Fui percebendo que a minha necessidade de comunicação se cumpria melhor a interpretar do que a escrever. Dava-me mais prazer fazer um recital de Cocteau do que escrever as minhas coisas. Frequentava os grupos da Natália Correia. Quem começou [a frequentar esse meio] até foi o meu irmão. Eu estava mais resguardada [riso]. Não me deixavam andar por onde eu queria. Era menina. A minha avó foi a pessoa com quem cresci, com quem aprendi a boa educação. A minha mãe vivia connosco, mas a figura maternal era a figura da avó. Tive uma mãe que foi mãe com 20 anos. Era mais próxima da minha mãe como irmã do que como filha. Só quando comecei a ser mais velha é que a reconheci como mãe. Ainda que a minha educação tenha sido tutelada pela minha mãe em termos de gostos, em termos de cultura. A década de 60 foi de ruptura, de liberdade. Os valores começaram a ser outros. Antes. As raparigas de Letras fizeram o seu 68 em 64, em 65. O que se estava a passar era muito forte. As greves de 62. As lutas de 65. A luta antifascista fez com que as raparigas e os rapazes se aproximassem. Houve uma ruptura com a separação dos géneros. Agora, eu tinha vagamente a dúvida se isso estava bem. E se a transgressão era um erro. Isso acompanhou-me durante os quatro, cinco primeiros anos de teatro. As eleições de 69 ajudaram-me a perder essa coisa do: “Isto será bem, ou é só indisciplina, galderice?”Sim. Vamos voltar à educação do antes do 25 de Abril: politicamente, eu sabia que não era como Salazar e a ditadura queriam, que não era como Hitler quis. E fui-me informando, fui sabendo. Mas do ponto de vista do comportamento tinha algumas dúvidas se não era tudo mais tranquilo e feliz dentro dos padrões que estávamos a ultrapassar. Pois, [pergunta] se a família não é uma estrutura repressora? Cada um sente a sua liberdade e o seu anseio de liberdade à sua maneira, e a família quase sempre cerceia essa liberdade. É muito difícil encontrar essa harmonia. A família é uma estrutura de defesa, dificilmente abre brechas na fortaleza que é. E a liberdade abre sempre brechas. E torna essa fortaleza numa estrutura mais frágil. Sim. Eles estão a pôr as primeiras pedras, e aquele terreno é tão deserto. . . Ela não tem ninguém em quem possa confiar, ele não tem ninguém, mesmo. E aquilo está tudo a nascer, aquela confiança está toda a nascer. Não. Mas na primeira fase do meu primeiro casamento era isso que desejava. Era o tal sonho da minha avó [riso]. O que me apetecia era levar o mais longe possível a minha liberdade, a minha vontade de fazer. . . mas com uma casa, um marido, filhos sólidos, um emprego. Foi por pouco tempo, cinco anos, que desejei muito isso. É, muito. Tenho. Tive sempre um conflito muito grande com a idade. Está mal feito, mal pensado! Devíamos chegar à maturidade, ficar assim, e quando já tivesse passado o tempo, desaparecíamos. O envelhecimento, a doença, a dor são coisas muito más. Se não houver mazelas, não faz mal nenhum. O pior é a perda de energia, de vontade, de curiosidade. Desde sempre tive horror à velhice. É uma cavalgada inexorável para a morte. E a malta anda aqui a apagar velas e a cantar os parabéns, muito contentes, e não percebe que está a ir para velha [riso]. Custa-me sobretudo a ideia de morrer. Tenho imensa pena. Tenho quase a certeza que na base de eu querer ser actriz está achar que viver uma vida é pouco. Durante dois meses estou ali a viver outras coisas, a aprender outras coisas. Aquela vida é mais real para mim, mais desafiante, mais interessante do que a minha. Porque ilude o medo de ter só esta vida. É muito injusto, há muita coisa à nossa volta que nos desafia e que podíamos experimentar. Leveza. Passei a dar mais valor à leveza e a fugir a tudo aquilo que ma possa tirar. Outra palavra de que gosto muito é “alegria”. A alegria está perto da santidade. (Sou agnóstica desde os 13 anos, as pessoas riem-se quando digo isto. . . ) Não se pode ser alegre no mal. Só se consegue ser alegre no bem. Fujo a sete pés de qualquer coisa que me tire a leveza e a alegria. Só quero isso. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nesses anos em que me tornei dura, rebarbativa, menos simpática, porque estava realmente a lutar, porque me estava a ser tirado um espaço físico, artístico, moral para fazer o teatro que eu queria fazeO pior é a perda de energia, de vontade, de curiosidade. Desde sempre tive horror à velhice. É uma cavalgada inexorável para a morte
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra filha cultura concentração educação mulher homem doença medo género mulheres casamento
Fact Checking de Passos Coelho: A prova da ficção dos factos
Na política, verdade e mentira deixaram de ser opostas. Não faz diferença. Paciência. Mas a rubrica Campanhas de Ficção procura a verdade, principalmente se ela nos engana. (...)

Fact Checking de Passos Coelho: A prova da ficção dos factos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na política, verdade e mentira deixaram de ser opostas. Não faz diferença. Paciência. Mas a rubrica Campanhas de Ficção procura a verdade, principalmente se ela nos engana.
TEXTO: PUB A frase IPUB “Eu não sou um homem perfeito. ” Passos Coelho, Março de 2015, algures na Península Ibérica, Europa, Planeta Terra, Sistema Solar. O contextoIsto foi dito, salvo erro, na altura em que o cidadão Passos Coelho soube, com espanto e amargura, que o actual primeiro-ministro tinha passado vários anos sem pagar as contribuições da Segurança Social. A essa informação inesperada juntou-se o aviso de que o jornal PÚBLICO descobrira o assunto e o ia divulgar. Só teve tempo de se calçar e correr para uma fila da Segurança Social às seis da manhã, como milhares de portugueses desempregados. Mas, em vez de pedir para lhe darem dinheiro para viver, teve de suplicar para o deixarem pagar a dívida, sobrevivendo na política. Os factosPela segunda vez na vida, Passos Coelho admitia uma falha do seu intrínseco valor humano. Ele não é perfeito. Foi igual ao choque do dia em que Filipe la Féria o chumbou num casting de musical romântico. Mas a nota da sinceridade na imperfeição saiu-lhe afinada. Desde então, é perfeito outra vez, até enjoa tanta perfeição condensada num só homem neste mundo conturbado. A frase liga-se, como se sabe, à sua irmã gémea: “Não me lembro. ” Quando Passos não sabia se a Tecnoforma lhe pagava ou não dinheiro todas os meses, não declarado, que acumulava com um trabalho em “regime de exclusividade” como deputado da nação. Em resumoDesde este “minuto de imperfeição”, Passos fala sem problemas sobre simplicidades como plafonamento vertical e horizontal da Segurança Social. E esta semana, no “debate decisivo” nas rádios, conseguiu entalar António Costa sobre mil milhões nos cortes das prestações sociais, se seria nas mínimas, nas máximas, e nos regimes contributivos, e não sei que mais, ah, e na “condição de recursos”, é isso mesmo, a condição de recursos, uma coisa que — vão-nos desculpar porque nós é que somos verdadeiramente imperfeitos — não entendemos patavina. A frase II“É muito importante que as mulheres que desejam ter mais filhos sintam que a sociedade lhes reconhece também essa vontade de ajudar o país a crescer sustentadamente. E em segundo lugar porque assim sabemos exactamente quantos filhos é que estamos a reconhecer… no futuro. Quantos filhos é que estamos a reconhecer no futuro. ” Passos Coelho, esta semana num comício cheio de mulheres, pelo menos parecia. O contextoPassos Coelho, como todos os chefes da direita portuguesa antes dele, teve o seu momento Axe: fazer de desodorizante que potencia a conquista todo o ano. Houve Santana Lopes e o seu gosto por “colinho de mulher”, por exemplo. Agora, e de um ponto de vista diferente, veio Paulo Portas defender que as mulheres é que “sabem organizar a casa e pagar as contas a dias certos” porque os homens não sabem fazer nada. Isto é, os homens são todos socialistas. Depois destas homenagens à emancipação da mulher portuguesa, Passos Coelho resolveu marcar, para memória futura, que na sua opinião também a mulher portuguesa só se sustentará na cama com um homem se, no acto da entrega, deitar dinheiro ao fisco. É o isco da “majoração das mulheres com filhos”. Quanto ao reconhecimento parental, se ela quiser mesmo saber quem foi o benfeitor (ou o valdevinos, na versão Portas) que a engravidou, a mulher deverá pagar sempre taxa moderadora. Mas isso não ficou esclarecido e é pena. Os factosIsto aconteceu, pelo menos os factos assim o indiciam, depois de um jantar de carne assada e muito vinho lá na província. O que se espera ainda das mulheres, quando a campanha começar a sério, é o que falta dizer. Mas a gente vai ver tudo na televisão, com bolinha vermelha. Em resumoNão se esqueçam: “É muito importante que as mulheres que desejam ter mais filhos sintam que a sociedade lhes reconhece também essa vontade de ajudar o país a crescer sustentadamente. E em segundo lugar porque assim sabemos exactamente quantos filhos é que estamos a reconhecer… no futuro. Quantos filhos é que estamos a reconhecer no futuro. ” Os eleitores não podem esquecer o único ponto do programa da coligação PàF, Portugal à Frente, que se encontra totalmente esclarecido. A frase III“Eu não sou mentiroso. ” Frase dita no “debate decisivo” entre Passos Coelho e António CostaO contextoNão nos lembramos. Os factosTambém não nos lembramos. Em resumoEstávamos a mentir, claro que nos lembramos. A frase foi dita, mas por António Costa. O que só prova a habilidade política de Passos Coelho, que nunca diria tamanha alarvidade no actual momento. Ele é mentiroso mas não é maluco. A frase IV“Queremos colocar as desigualdades sociais e económicas no topo da agenda política nos próximos anos. ” Passos Coelho na “Universidade de Verão do PSD”, em Castelo de Vide, fim de Agosto. O contexto‘Tá bem, abelha. Os factos“A resolução do BES não vai ter custos para os contribuintes portugueses. ”Em resumo“Eu não vou cortar o 13. º mês, isso é um disparate. ”A frase V“Isto está um bocado salgado. ”O contextoRestaurante Comilão, poiso habitual de Passos Coelho. Os factosO dono do restaurante estava com a mão pesada para o sal nesse dia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. PUB
REFERÊNCIAS:
Paulo Pacheco, o filho do escritor, o filho leitor
A entrevista ao filho do Luiz Pacheco é sobre o Luiz Pacheco. Estão à espera da grande figuraça, das pachecadas? Há disso. Anabela Mota Ribeiro conversa com Paulo Pacheco. (...)

Paulo Pacheco, o filho do escritor, o filho leitor
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A entrevista ao filho do Luiz Pacheco é sobre o Luiz Pacheco. Estão à espera da grande figuraça, das pachecadas? Há disso. Anabela Mota Ribeiro conversa com Paulo Pacheco.
TEXTO: Paulo Pacheco nasceu em 1963. Formou-se em História, trabalha na Câmara de Palmela desde 1987 (actualmente é director de departamento, das áreas financeiras e dos recursos humanos). É casado, tem dois filhos (um de 23 anos, outro de 19). Toda a gente lhe pergunta como é que não saiu maluco. É filho de Luiz Pacheco, é a vez em que Luiz Pacheco se encheu de brio e decidiu que ia educar uma criança. É um homem estável que fala do pai com amor e admiração, e uma réstia de zanga, uma réstia. Encontrámo-nos para evocar o Luiz Pacheco. O Pacheco pai, o Pacheco artista (e aqui se engloba a escrita, a edição, a tradução, a crítica), a figura apetitosa para os jornalistas e para os leitores (“apetitosa” é uma palavra de Paulo). Além da figura apetitosa que fazia manguitos para a fotografia, havia o escritor cru e valente, textos onde se lê a vida sem biombos. O Libertino, o Comunidade, o Teodolito. . . Pacheco era uma espécie de urro que vinha de dentro da vida, coisa indómita e inclassificável, uma provocação ao sistema. A rua com o seu nome fica num bairro popular de Lisboa, em Marvila. O Crocodilo Que Voa, um conjunto de entrevistas organizado pelo seu biógrafo, João Pedro George, foi agora reeditado. A biografia recomenda-se: Puta Que os Pariu. Sobre Paulo Pacheco, o “Paulocas”: o pai dizia dele que era um factótum. Um faz-tudo. Separámo-nos todos. A minha mãe fica com o meu irmão mais novo, que vai depois viver com os meus avós. E depois casa e tem outros filhos, faz a vida dela. Eu venho para a casa da minha primeira família de acolhimento. Quando o meu pai saiu da prisão, foi-me buscar. Vivi com ele durante uns períodos em quartos, em Lisboa. Até que é preso outra vez. Fui viver com o poeta Fernando Saldanha da Gama, seis ou sete meses. Voltei porque o meu pai saiu e me foi buscar. Depois foi preso outra vez. Ele soube que aquela aventura em Massamá foi uma coisa muito complicada. Acabei aos 12 com uma tuberculose por subalimentação e uma hepatite C. Aquilo era uma javardice. Brinco com esta história das Caldas da Rainha, mas podia ter ficado na rua. Levou três ou quatro dias a lembrar-se de onde é que eu estava. Não falávamos das coisas do passado. Falávamos de literatura, da vida dele. E fui ajudando a produzir livros. A fazer a paginação disto, a revisão daquilo. Coisas que eram cumplicidades nossas e tarefas nossas. Há uma dimensão positiva, o da pessoa que, correndo todos os riscos, com todo o desassombro, e muitas vezes acertando, diz o que pensou maduramente. Há também uma dimensão mais maldizente, da busca do conflito inútil. Dizia: 'Preciso destas guerras. 'Há sempre uma insanidade ali metida. Aceite, tratada. É o primeiro da geração dele a reconhecer que o álcool é um problema. Só muito perto dos 80 é que se sentiu livre. O sexo é central porque é um acto de revolta e de contestação ao regime — pela cultura. Não se pode fazer uma contestação pela política, porque se tem cagufaSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A coisa podia ter corrido pior. Houve três coisas que me agarraram. Uma, sempre soube a verdade. Sei quem é a minha mãe, sei que as famílias com quem vivi não eram a minha família biológica. Segunda, nunca fui rejeitado.
REFERÊNCIAS:
Jacques Des Los Euros: O pai da meia União
Com 90 anos feitos esta semana, Jacques Delors enganou-se nos filhos que queria dar à Europa. Em vez de um euro, deram-lhe um erro; em vez de um acordo Schengen, saiu-lhe um Schäuble; e quando pediu a coesão económica, deram-lhe um Coelho tecnofórmico. Vai chamar pai a outro, União Europeia. (...)

Jacques Des Los Euros: O pai da meia União
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.16
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Com 90 anos feitos esta semana, Jacques Delors enganou-se nos filhos que queria dar à Europa. Em vez de um euro, deram-lhe um erro; em vez de um acordo Schengen, saiu-lhe um Schäuble; e quando pediu a coesão económica, deram-lhe um Coelho tecnofórmico. Vai chamar pai a outro, União Europeia.
TEXTO: O euro protegia-nos até das nossas asneiras. É este o defeito de construção que temos de reparar hoje”, disse à Euronews o velho político, há meses. É uma frase a que podemos chamar, em bom passos-coelhês, uma meia verdade e um meio mal-entendido, senhor Jacques Delors. Porque já não há nada para reparar depois do que se passou entretanto em Bruxelas, Berlim e Atenas: está tudo partido. Não resta nem metade do “sonho europeu” que o senhor inculcou de maneira deveras inconsciente na nossa cabeça. Terá de acrescentar que a moeda euro, por defeito à nascença, agora só consegue escolher, nas eleições, os primeiros-ministros e presidentes da República mais preocupados com o seu quintal do que com o seu continente. E quando inesperadamente um povo escolhe outra hipótese de pensar a “Europa da coesão e da solidariedade”, que afinal trouxe enormes desigualdades, corrupções e desequilíbrios, enterra-se o grego no quintal. Meio vivo, meio morto e com “uma faca ao pescoço”, como disse o outro. Em língua coelhesa, Jacques Delors, o decano dos cidadãos europeus, o mais ilustre unionista desde Jean Monnet e Robert Schuman, acreditou em “contos de crianças”. Não adivinhou que os países europeus, que teriam o objectivo nobre de acabar com as seculares guerras entre si, afinal se iriam revelar, em 2015, meninos e meninas egoístas que só pensam em dinheiro e em ficar com o brinquedo e com o lanche. Como diz, empoleirado num muro, o ovo gigante do conto de crianças Alice no País das Maravilhas (Alice in Wunder Deutchland, na tradução alemã), o que interessa não é saber se uma coisa se pode ou não dizer. O que interessa é saber quem manda. Jacques Delors (Paris, 20 de Julho de 1925), último exemplar da comatosa Alma da União Europeia. Portador da Medalha de Honra da União Europeia. Senhor de idade que, hoje em dia, é visto a resmungar contra os medíocres que se lhe seguiram em Bruxelas e Estrasburgo. Às vezes, pega na bengala e pensa se não deveria utilizá-la nas costas de alguém. Coça a cabeleira branca e admite que teve algumas culpas. Por exemplo, no “dossier Delors” por si escrito, mesmo antes da inauguração do euro, pedia que a Grécia tivesse um período de cinco anos de adaptação antes de entrar em pleno na moeda única. ’Tá bem, abelha. Mas ele próprio, o nonagenário Delors, acreditou que uma coisa tão esquisita (afinal de contas era uma moeda com fundo poético, inventada por idealistas) funcionaria para sempre, irreversível nos mercados e nas maturidades e nas tecnoformas deste mundo. Afinal, parece que o euro é tão “irrevogável” como o é o parceiro do outro. Quando Jacques Delors saiu do poder, nunca mais ninguém lhe ligou nenhuma. François Hollande lembra-se às vezes de que se esqueceu dele e faz de conta que é seu discípulo. Fez isto, por exemplo, no 90. º aniversário. Mas passa-lhe depressa, entretanto começam as comparações entre a dimensão política dos dois homens e o Presidente de França foge na motoreta dos affaires amorosos antes que se queime. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Delors ficará para a história como o homem que dignificou e honrou o papel de presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995. Sim, houve um tempo em que era um cargo com prestígio. Várias enciclopédias do futuro poderão referir — na suas entradas sobre a defunta União Europeia, (já morta e enterrada) — o nome de Jacques Delors como “aquele que não foi nenhum Durão Barroso”. Autodidacta em vários ramos do conhecimento, ganhou destaque como ministro das Finanças francês, entre 1981 e 1984. Já como presidente da Comissão Europeia, da então CEE (Comunidade Económica Europeia), apoiou e conduziu o processo de adesão de Portugal e de Espanha, em 1986. Três anos depois, desde a primeira hora da queda do muro de Berlim, esteve ao lado dos alemães na reunificação do país (a RFA e a RDA, nesta última república socialista nascera uma anafada futura chanceler). Foi uma altura curiosa em que, para bem dos alemães e, pensava-se, para bem de todos, Delors teve de mandar às urtigas uma série de “regras invioláveis”, coisa que agora parece ser impossível aos alemães, nein, nein, nein. Mas isso era no tempo em que os políticos alemães pareciam gente pacífica, ainda não se tinham revelado vilões do 007 (a anafada chanceler Merkel e o seu Schäuble zangado em cadeira de rodas). Por falar nisso, quando ao retirado Delors lhe apetece ver um filme de terror, para repousar da insuportável realidade contemporânea, hesita entre os filmes Frankenstein, O Massacre do Texas e uma cópia da gravação da assinatura da reunificação alemã, com Helmut Kohl de caneta na mão e, atrás, com um sorriso enigmático, Schäuble e Merkel. Estes dois já estavam a ver a coisa como ia ser, quando se prometia um futuro de paz e prosperidade para os alemães (e até para os indigentes e preguiçosos povos do Sul). Helmut Kohl, outro leão enganado pela história, suspira Delors enquanto ouve Beethoven. Delors também é o autor do famoso Erasmus, também conhecido como “Orgasmus”, programa de intercâmbio de estudantes pela Europa. Mas Pedro Passos Coelho, agora tão activo em Bruxelas a boicotar reestruturações gregas em cima das eleições portuguesas, não precisou de sair do país para intercambiar belos fundos europeus para aeródromos sem aviões. Também o tecnofórmico deve muito a Delors e ao seu sonho. E por estas e por outras é que a Europa está meio falida. Ou isto é meia verdade, ou meio mal-entendido, ou um completo descaramento.
REFERÊNCIAS:
A lutar para que a luta não pare
Menos sal, menos açúcar, menos gordura. À primeira-dama faltam menos de dois anos para mostrar resultados do programa contra a obesidade. Com apoio do Congresso e a introdução de nova legislação para regrar a forma como os americanos comem, o índice de obesidade infantil desceu, mas uma em cada três crianças ainda tem excesso de peso. (...)

A lutar para que a luta não pare
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Menos sal, menos açúcar, menos gordura. À primeira-dama faltam menos de dois anos para mostrar resultados do programa contra a obesidade. Com apoio do Congresso e a introdução de nova legislação para regrar a forma como os americanos comem, o índice de obesidade infantil desceu, mas uma em cada três crianças ainda tem excesso de peso.
TEXTO: Cinco anos depois de lançar o seu Let’s Move (Toca a Mexer), a disponibilidade de Michelle Obama para “fazer figuras tristes” é ainda a parte mais visível da sua campanha contra a obesidade infantil. Dançando com um nabo, com o Big Bird ou com Jimmy Fallon. Mas nos bastidores Michelle Obama desenvolveu parcerias com grandes empresas para reduzir o sal, açúcar e gorduras dos alimentos. É a primeira primeira-dama com uma rede de relações empresariais deste tipo, e isso tem-na ajudado a contornar as resistências do Congresso, dominado pelos republicanos, às políticas de saúde da Administração. Em alguns casos, os seus aliados partilham as suas posições, mas no mínimo vêem vantagem em associar-se publicamente à sua campanha para uma alimentação saudável. As manobras de Michelle Obama são controversas — até que ponto é que uma primeira-dama pode emprestar o seu estatuto e visibilidade a empresas comerciais? — mas também estratégicas. Espera, e os seus assessores também, que com isso consiga resultados duradouros. O Congresso tem alguma influência na forma como os americanos comem. Mas os comerciantes de alimentos — incluindo a Wal-Mart, o maior de todos, com 206 mil milhões de dólares em vendas no sector alimentar durante o ano passado, e um dos principais parceiros de Michelle Obama — têm certamente ainda mais e respondem mais rapidamente à procura do consumidor. Tal como o Presidente, Michelle Obama tem menos de dois anos para garantir os avanços que fez e o seu legado como primeira-dama, que vai muito além da influência na moda ou das visualizações no YouTube. Os níveis de obesidade nas crianças entre os dois e os cinco anos diminuíram enre 2003 e 2012, de acordo com o Centro de Prevenção e Controlo de Doenças, e alguns estados comunicaram recentemente ter feito avanços contra a obesidade em crianças desfavorecidas. Mas em 20 anos isto não mudou: uma em cada três crianças americanas tem excesso de peso ou são obesas, uma crise de saúde pública com potencial para afectar toda uma geração e custar biliões de dólares em tratamentos médicos. Para combater isso, Obama tem defendido mudanças rápidas, algumas transpostas para legislação e outras impostas por poderes federais, com foco na responsabilidade pessoal, mas também na assistência à população mais pobre. As cadeias de restaurantes, os cinemas e as pizzarias de vendas para fora estão obrigadas a listar as calorias nos seus menus até ao final do ano. A Food and Drug Administration [que regulamenta a venda de alimentos e medicamentos nos EUA] está a finalizar a actualização mais abrangente até agora na rotulagem de produtos nutricionais. A alteração que provocou mais reacções foi também aquela que passou em 2010 a lei federal, aprovada com apoio bipartidário. O programa de almoço escolar, que fornece refeições grátis a preços reduzidos a mais de 21 milhões de crianças com poucos rendimentos, obriga agora a que se inclua mais fruta, legumes, cereais e proteínas e lacticínios com pouca gordura. Alguns comentadores conservadores, deputados e pessoal auxiliar das cantinas acusaram as novas directivas de estarem a impor a mesma dieta a todas as crianças e a fazer aumentar o desperdício alimentar. Os alunos têm colocado fotografias dos almoços que não gostam nas redes sociais, com a hastag #ThanksMichelleObama. O Congresso recuou em algumas mudanças introduzidas nos almoços escolares e no programa federal que garante cuidados nutritivos suplementares a mulheres com rendimentos baixos e aos seus filhos com idades inferiores a cinco anos. O próximo Congresso ou inquilino na Casa Branca poderá facilmente desfazer o resto. Michelle Obama soube desde logo que teria de enfrentar uma oposição política no confronto contra a obesidade infantil, afirmaram os assessores da Casa Branca, e insistiu que o seu gabinete trabalhasse com base em medidas que pudessem continuar em prática quando ela deixasse de ser primeira-dama. Ao manter os seus críticos concentrados na tarefa de ajudar as crianças e envolver a indústria alimentar e os promotores da saúde pública, Obama descobriu rapidamente que é pouco aquilo que os une numa questão tão fundamental para a vida dos americanos como a alimentação. “Isto é do mais controverso que existe. Não ficámos de todo surpreendidos pelas más reacções”, afirma Sam Kass, amigo próximo dos Obama que trabalhou como seu chef pessoal quando ainda viviam em Chicago e que se tornou o principal assessor da Administração para a política de alimentação e director executivo da campanha Let’s Move. Diz que a sua patroa estava determinada a trabalhar com a indústria alimentar — apesar dos riscos e das complicações — porque eles “desempenham um papel gigantesco”. “Obviamente, são eles que alimentam toda a gente”, declara Kass durante uma entrevista antes de se demitir, há cinco meses. “É um conjunto de questões complicadas e não há apenas uma razão para termos chegado ao ponto a que chegámos, tal como não há apenas uma estratégia para resolver isto. ”Com a aprovação de Obama, que não quis ser entrevistada para este artigo, Kass negociou com a Wal-Mart, o maior retalhista do mundo, um plano para cortar o sal, açúcar e gordura das suas linhas de produtos. A primeira-dama elogiou publicamente os centros de tempos livres com fins lucrativos por seguirem as directivas para uma melhor alimentação nos seus programas pós-horário escolar. Conseguiu acordos para que dessem legumes às crianças. Incentivou os americanos a beberem mais água, como parte de uma iniciativa conjunta com a American Beverage Association, que queriam aumentar as vendas da água engarrafada quando os lucros dos refrigerantes caíram. Estes esforços — desenvolvidos fora da Casa Branca com o grupo sem fins lucrativos Partnership for a Healthier America (Parceria para uma América Saudável) — obtiveram resultados modestos. E os encontros de Michelle Obama com presidentes de empresas levantaram questões entre os peritos em saúde sobre se ela não estaria a dar cobertura a uma indústria que não acompanha o ritmo e anda a arrastar os pés. Os encontros de Michelle Obama com presidentes de empresas levantaram questões entre os peritos em saúde sobre se ela não estaria a dar cobertura a uma indústria que não acompanha o ritmo e anda a arrastar os pésQuando a primeira-dama aparece nos eventos do Let’s Move com um porta-voz dos refrigerantes como LeBron James e a Byoncé [que aparece em anúncios da Pepsi], está a apoiar implicitamente os produtos que são responsáveis pela epidemia da obesidade, acusam alguns defensores da saúde pública. “A Byoncé colocou o Let’s Move num confrangedor conflito de interesses”, escreveu Marion Nestle, professora de Nutrição e de Saúde Pública da Universidade de Nova Iorque, no seu blogue Food Politics, depois de um evento. Margo Wootan, directora da política de nutrição do Center for Science in the Public Interest, uma das principais organizações de defesa da saúde, afirmou que é politicamente impensável esperar que a primeira-dama denuncie publicamente uma grande empresa alimentar — e adiantou que aprecia os esforços de Obama em trabalhar com essas empresas em privado sobre as formas de melhorar a comida que processam. “Ela é uma celebridade e tem estatuto. É uma cenoura para que as empresas queiram melhorar. . . Eu tenho imensos paus”, comentou Wootan, cuja organização ameaçou repetidamente processar as empresas alimentares devido às suas práticas de marketing. “Eu não tenho muitas cenouras. A cenoura dela e o meu pau funcionam muito bem juntos. ”Nestle afirma que ter tirado a junk food das máquinas de venda nas escolas e levar mais informações nutricionais para os menus e rótulos “são conquistas enormes a todos os níveis e deve acabar com qualquer ambiguidade sobre se o Let’s Move foi eficaz. Foi”. As parcerias encaixam na abordagem mais alargada de Obama à política alimentar, que inclui a participação das empresas que ganham dinheiro com a junk food. “Um Twinkie [bolo indusrial] não é um cigarro”, disse a um entrevistador quando lançou a campanha Let’s Move, em 2010. “O que os pais precisam é apenas de informação sobre o que contém um Twinkie e quantos podemos comer. Não é que não possamos comer um Twinkie. ”Pamela Bailey, presidente da Grocery Manufacturers Association, afirma que Obama tem sido uma pessoa com quem a indústria consegue trabalhar, em parte por ocupar uma posição intermédia. “Ela não está a tentar ser uma polícia da comida. Ela une as pessoas”, comenta Bailey. “O seu papel e interesse neste tema acelerou o nosso trabalho. ”A sua primeira aliança com o sector foi o plano de 2010 com a indústria de alimentos e bebidas para reduzir 1, 5 biliões de calorias na comida vendida nos Estados Unidos até ao final de 2015, através de produtos menos calóricos, alteração de receitas e redução das doses. Michelle Obama apareceu ao lado do dono da Kellogg’s, fabricante de cereais, e clamou vitória contra a obesidade infantil através de um “acordo por parte do sector privado para melhorar os valores nutricionais dos alimentos que pomos à mesa ou que comemos a correr”. Ao juntar-se à Parceria para uma América Saudável, que trabalha com Michelle Obama, a Healthy Weight Commitment Foundation — uma grande aliança da indústria alimentar — marcou pontos políticos fazendo simplesmente o que já tinha planeado fazer: reformular produtos e criar embalagens mais pequenas para os consumidores que procuram os seus produtos. No ano passado, as empresas anunciaram que atingiram o seu objectivo e reduziram 6, 4 biliões de calorias nas suas vendas, quatro vezes aquelas que tinham prometido e antes do prazo estipulado. Também no ano passado, a procura de produtos orgânicos fez subir 10% as vendas em relação ao ano anterior, perfazendo 36 mil milhões de dólares, de acordo com a Organic Trade Association. “Se quisermos ser cépticos, a indústria apenas analisou o caminho que o mercado estava a tomar e depois prometeu aquele resultado tentando ganhar pontos com isso”, afirma Kelly Brownell, especialista em obesidade na Sanford School of Public Policy, da Duke University, e consultora na Casa Branca. “Se formos menos cépticos, diremos que a indústria está a fazer um verdadeiro esforço para melhorar os seus produtos. ”Jeff Stier, do National Center for Public Policy Research, conservador, começou por pensar que a primeira-dama estava a assumir uma posição intermédia na política alimentar, mas agora afirma que a campanha ficou “desnorteada” e que caminha para um Estado protector (nanny state). “Talvez os americanos não apoiem uma forte campanha do Governo a dizer-nos o que devemos comer”, declara Stier. Para Michelle Obama, a sua função é apoiar a Administração do marido — o que significa tentar ter alguma influência ao mesmo tempo que se evitam os riscos políticos. O seu enorme valor para a Casa Branca não se fica apenas pelo rosto charmoso; as questões da alimentação e do exercício físico tornaram-se centrais. Faz exercício pelo menos cinco dias por semana, escapulindo-se da Casa Branca para as aulas no Solidcore e no SoulCycle. Toda a família só come sobremesas ao fim-de-semana e exibe ramos de cenouras durante os almoços com grupos de miúdos. Quando fez um vídeo a dançar com um nabo ao som do hit Turn Down for What, ninguém estava à espera, mas ao mesmo tempo pareceu uma coisa autenticamente sua. O vídeo foi visto mais de 44 milhões de vezes desde que foi publicado no início de Outubro. Obama disse: “Estou disposta a fazer uma figura completamente triste para estes miúdos se mexerem. ”Por duas vezes foi ao talk show de Jimmy Fallon fazer a “dança das mães”, abanando o rabo juntamente com o anfitrião, com ele vestido como uma mãe. Atravessou a Casa Branca dentro de um saco de batatas para uma corrida e convidou o programa Biggest Loser [em Portugal, teve o nome Peso Pesado, reality show sobre perda de peso] para um exercício em grupo na mansão. Sentou-se ao lado dos dois Marretas — Rosita e Elmo — numa conferência de imprensa e falou-lhes do acordo feito com a Rua Sésamo para que os produtores de frutos e vegetais pudessem usar as personagens da série nos seus produtos destinados a crianças. A visão a longo prazo da história tem o seu modo próprio de avaliar as causas das mulheres que estiveram em funções ao lado dos seus maridos presidentes. A Highway Beautification Act que Lady Bird Johnson ajudou a aprovar é agora vista como um dos pilares fundadores da conservação do espaço público. Betty Ford ajudou a quebrar o tabu da discussão sobre o cancro da mama. Laura Bush criou festivais literários no Texas e em Washington, que todos os anos continuam a atrair milhares de visitas. Não há dados analíticos fiáveis para determinar o poder do púlpito em tempo real, nem tão-pouco para contar o número de crianças em idade pré-escolar que depois de verem Michelle Obama na televisão se convencem a comer espinafres, ou dos pais que por a verem na capa da Cooking Light começam a preparar refeições melhores. Também é difícil estabelecer conclusões científicas sobre a queda de níveis de obesidade e das calorias ingeridas. No caso de Obama, a sua relação próxima com o titã da venda de produtos alimentares Wal-Mart poderá levar às maiores mudanças conseguidas pelo Let’s Move: comida embalada mais saudável a ser vendida aos consumidores. Wal-Mart foi das primeiras empresas a contactar o gabinete da primeira-dama. A relação foi evoluindo lentamente ao longo dos meses de conversações enre Kass e Leslie Dach, que era então o vice-presidente executivo da companhia responsável pela comunicação. Mas os alicerces para essa relação foram erguidos nos anos antes de Michelle Obama se ter encarregue da obesidade infantil. A sua posição na gerência da TreeHouse Foods, um fornecedor fundamental dos produtos de marca branca da Wal-Mart, permitiu-lhe tornar-se íntima do negócio e tornaram-na uma figura do Partido Democrata com quem uma empresa como a Wal-Mart, cujos proprietários são grandes financiadores republicanos, poderia trabalhar. Obama demitiu-se da TreeHouse em 2007. Enquanto Obama tentava adaptar-se ao seu papel de primeira-dama, em 2009, e desenvolvia o seu projecto Let’s Move, a Wal-Mart passou esse período a inquirir os seus clientes sobre alimentação saudável e a organizar grupos de auscultação com clientes a quem chamavam “mães Wal-Mart”. Essas mulheres referiram que fazer compras de produtos saudáveis era um exercício frustrante e dispendioso, recorda Jack Sinclair, antigo vice-presidente do departamento de mercearias da Wal-Mart Estados Unidos. Na Primavera desse ano, a empresa reuniu uma dezena de defensores de alimentação saudável e nutricionistas em Nova Iorque para debater o que poderia fazer de forma a tornar a comida que vendiam mais saudável. Antes de assumir funções no departamento de comunicação da Wal-Mart, Dach tinha sido um estratega da campanha democrata, e via Michelle Obama como alguém que a Wal-Mart deveria seduzir. A empresa chegou à Casa Branca com um conjunto de objectivos, incluindo a abertura de lojas em zonas rurais e bairros urbanos onde não havia grandes lojas e adicionar um rótulo “faz-lhe bem” para que os clientes pudessem identificar facilmente quais os produtos de marca branca que eram mais nutritivos. O rótulo foi colocado em legumes frescos e congelados, leite branco meio gordo e magro, iogurte e alimentos com cereais 100% integrais. Os nutricionistas fizeram boas críticas ao rigor, mas criticaram duramente a inclusão de sumos de fruta 100% naturais. A ideia que mais entusiasmou o gabinete de Michelle Obama foi a garantia dada pela empresa de que iria reduzir a quantidade de açúcar, sal e gordura na comida que vendia. Dach e Kass andaram durante meses a discutir os limites de sal e açúcar, ao mesmo tempo que debatiam formas de a empresa levar os fornecedores a baixar os preços dos cereais integrais, frutas e legumes. Finalmente acordaram no objectivo de eliminar as gorduras trans [feitas a partir de gorduras vegetais para uso na indústria alimentícia], reduzir o açúcar em 10% e o sal em 25%, por comparação aos artigos armazenados em 2008. O novo objectivo aplicava-se a 67 categorias alimentares da loja, incluindo iogurte, cereais, refeições empacotadas, tortilhas, ketchup e molho de massa. Estas mudanças têm o potencial de provocar reverberações em toda a indústria do sector devido à escala gigantesca da empresa. A decisão da Wal-Mart de aumentar os seus cerca de 500 mil funcionários desencadeou uma corrida ao aumento do salário mínimo noutras cadeias de retalho. A sua oposição à lei da liberdade religiosa do Indiana, veiculada directamente pelo director executivo ao governador do estado, ajudou a levar à revisão da lei. Quando a Wal-Mart pediu aos seus fornecedores para fabricarem tortilhas com menos sal, eles ajustaram as receitas. A equipa de Michelle Obama viu aqui um possível efeito de ricochete: se os fornecedores estavam a fazer tortilhas com menos sal para a Wal-Mart, não iriam fazer outras, separadas, mais salgadas, para outros supermercados. O mesmo aconteceu quando a empresa exigiu menos água nos detergentes líquidos. As embalagens da Wal-Mart ficaram mais pequenas — tais como as de todos os outros. “Tirar açúcar do iogurte foi muito fácil para nós”, diz Sinclair. “Acho que os fabricantes colocavam mais do que pensavam que estavam a colocar. ”Enquanto continuam as celebrações do quinto aniversário do Let’s Move, a Administração tentará precaver-se contra os desafios que a lei sobre alimentação infantil, que está por trás da campanha antiobesidade da primeira-dama, irá enfrentarMas atingir o objectivo do sal é mais difícil. O pão que agora vende tem menos 16% de sal, segundo a empresa. As tortilhas têm menos 9% de sódio. Mas as variedade baixas em sódio de alguns produtos, como sopas, têm sido um falhanço nas caixas registadoras. Menos de 6% dos produtos que vendem contêm gorduras trans. Para celebrar a mudança, a primeira-dama organizou mais um evento com a Wal-Mart, dando uma volta na loja de Springfield (no Missouri) com algumas mulheres que são clientes habituais. Nos próximos dois anos, Michelle Obama terá de continuar a envolver-se na política alimentar de forma a preservar os avanços feitos. Enquanto continuam as celebrações do quinto aniversário do Let’s Move, a Administração tentará precaver-se contra os desafios que a lei sobre alimentação infantil, que está por trás da campanha antiobesidade da primeira-dama, irá enfrentar. A Casa Branca prevê que o Congresso, a indústria alimentar e a School Nutrition Association voltem à carga contra os padrões das refeições escolares, que os opositores dizem ser demasiado caras e que afastam os miúdos do programa de alimentação escolar, levando a mais desperdício alimentar. Michelle Obama tem tomado medidas para garantir que o seu trabalho não se perde. Os lucros do seu livro sobre jardinagem de 2012, American Grown, foram para a National Park Foundation, sem fins lucrativos, que utiliza as verbas para financiar o programa de jardinagem e alimentação saudável da Casa Branca. A Partnership for a Healthier America continuará a funcionar mesmo quando o Presidente Obama deixar o cargo. A Robert Wood Johnson Foundation comprometeu-se recentemente a canalizar 500 milhões de dólares (425 milhões de euros) para a luta contra a obesidade infantil. Nos últimos meses, a primeira-dama garantiu que iria continuar. “Todos sabemos que, por cada pessoa no país que saiu em defesa desta questão, existem várias simplesmente à espera que nos fartemos”, disse num evento do Let’s Move em Fevereiro. “Estão só à espera que nós declaremos vitória e nos desviemos para outro assunto. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foi ao mesmo tempo o reconhecimento de que o seu legado não está ainda seguro e um aviso de que não se irá embora até que ele esteja. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Rua da Madalena, Lisboa: Viver e morrer na Rua da Madalena
Pelo relato jornalístico de um incêndio no qual morreram 14 pessoas, entramos nas vidas de quem habitava um prédio popular na Lisboa de 1907. (...)

Rua da Madalena, Lisboa: Viver e morrer na Rua da Madalena
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pelo relato jornalístico de um incêndio no qual morreram 14 pessoas, entramos nas vidas de quem habitava um prédio popular na Lisboa de 1907.
TEXTO: Não sei quem vive no prédio que vai do n. º 233 ao n. º 243 da Rua Madalena. Mas não se preocupem os eventuais moradores, não vou bater-lhes à porta. O facto é que ignoro quem lá vive hoje, mas sinto que conheço intimamente quem lá vivia no início do século XX. Vem tudo isto a propósito de uma reportagem. Estava a folhear o livro Repórteres e Reportagens de Primeira Página, de Jacinto Baptista e António Valdemar, e encontrei o relato de “O Incêndio da Madalena”, um texto de 1907 assinado por Eduardo Fernandes (1870-1945), famoso chefe do serviço de reportagem do jornal O Século, mais conhecido pelo pseudónimo de Esculápio. Na reprodução da primeira página do jornal do dia 13 de Abril daquele ano lá aparece o prédio semelhante a muitos outros de Lisboa e aparentemente igual ao que hoje lá continua, com excepção das escadas dos bombeiros encostadas à fachada e do chão pejado dos destroços do fogo. Começa assim a descrição: “Pelas 2 e 10 da madrugada de hoje, irrompeu um incêndio, com extraordinária violência, no armazém de sedas do sr. António Fernandez, instalado no primeiro andar esquerdo do prédio da rua da Madalena, que faz esquina para a rua de Santa Justa, prédio de boa aparência, de seis janelas de frente, importantes estabelecimentos nas lojas. ”O mais terrível, quando o repórter chegou ao local, era “o espectáculo dos pobres locatários, assomados às janelas, implorando socorro em altos brados, homens, mulheres e crianças, num desespero único”. Com as escadas em chamas, ninguém conseguia já sair. Duas raparigas acabaram por se atirar das janelas, morrendo na queda, que é descrita por Esculápio ao melhor estilo da época: “A mais nova cai sobre o candeeiro, que se parte ao embate e vem estatelar-se morta sobre as pedras. A segunda deixa a massa encefálica na rua, o crânio horrivelmente fracturado, a carne em estilhas. Um horror!”O jornalista regista com extraordinário rigor o nome de todos os intervenientes e descreve a tragédia ao segundo e, mesmo assim, desculpa-se: “Compreende o leitor que, às 5 da manhã, de afogadilho, com o coração ainda a gotejar de mágoa de tão horroroso espectáculo, quase escrevendo com lágrimas, impossível seja pôr-lhe ante os olhos uma notícia muito exacta e pormenorizada do ocorrido. ”Imagine-se se assim não fosse. É que logo no parágrafo seguinte somos informados de que “o prédio incendiado tem, para a rua da Madalena, os nº 233 a 234. Nos nº 233 a 235 está a sucursal da Estrela de Prata, dos srs. Serra & Lima, armazém de iscas e café. O número 237 é a porta da escada. Os números 239, 241 e 243 estão ocupados pela antiga sapataria Baiões, do sr. Domingos Nunes da Silva”. E por ali subimos, andar a andar, do armazém de sedas onde deflagrou o incêndio ao “consultório médico do sr. dr. Paiva Curado”, virando para a rua de Santa Justa onde encontramos um café e um carvoeiro e venda de vinhos, uma conjugação de negócios típica da Lisboa daquele tempo. Havia ainda “uma hospedaria muito conhecida” na cidade. Sabemos assim, por exemplo, que “na sobreloja, do lado das escadinhas de Santa Justa, funcionava uma casa de toleradas [prostitutas]” da qual “todas as mulheres saíram para a rua em trajes menores lastimando-se depois na rua e chorando, em altos gritos, por terem deixado em casa todos os seus modestos haveres e os próprios vestidos de uso”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nos dias seguintes, Esculápio prossegue as suas reportagens. E a cada uma a vida daquele prédio se vai desenhando aos nossos olhos com mais pormenores. Ali estavam os escritórios da Sociedade Mercantil dos Empresários de Açougues, “que há pouco arrecadou o fornecimento de carnes à cidade”; noutro andar vivia o “sr. G. A. Patten Sá Vianna, cavalheiro e proprietário de louça fina da Rua da Prata”, que era vizinho de outros comerciantes, um “com loja de algibebe” (roupa feita), outro com “loja de ferragens”, outro ainda “com loja de mercador e alfaiate”. Da detalhada lista dos habitantes constam também várias “criadas” que vivem com as famílias, e hóspedes, como um francês e professor de nome Luís Filipe Franc, e Salomão Banon, “israelita e curandeiro […] que morreu no fogo, bem como a sua esposa Aloh, um filho de 3 anos e outro de ano e meio, ainda não baptizado”. A tragédia foi grande. Morreram 14 pessoas. Mas o que é mais interessante quando lemos hoje o relato de Eduardo Fernandes é que o drama de um incêndio pode, num texto jornalístico, transformar-se num retrato da Lisboa popular em 1907 e da vida de um prédio, de quem nele vivia — e de quem nele morreu nessa terrível noite em que “o clarão do incêndio inundava de luz a cidade e tornava incandescentes os prédios e as ameias do castelo”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens violência filho carne mulheres morta