Belém, Lisboa: Endireitem as costas dos vossos assentos
Foi de Belém que num dia de 1922 partiram Gago Coutinho e Sacadura Cabral num pequeno hidroavião. Cabeças entre as nuvens e olhos postos no Brasil. Só tinham de conseguir passar o oceano. (...)

Belém, Lisboa: Endireitem as costas dos vossos assentos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi de Belém que num dia de 1922 partiram Gago Coutinho e Sacadura Cabral num pequeno hidroavião. Cabeças entre as nuvens e olhos postos no Brasil. Só tinham de conseguir passar o oceano.
TEXTO: Da próxima vez que entrar num aeroporto vou pensar neles. Vou pensar neles quando passar pela segurança, mostrando malas, abrindo estojos de produtos de higiene, ligando computadores para provar que não vão explodir. Vou pensar neles quando ouvir as recomendações de segurança, endireite as costas da cadeira e a mesa à sua frente, o colete insufla-se assim, as saídas de emergência estão indicadas por luzes no chão, ponha a sua máscara de oxigénio antes de ajudar a criança ao seu lado. Vou pensar neles quando me perguntarem se quero peixe ou carne ou se prefiro sumo ou vinho. Gago Coutinho e Sacadura Cabral partiram de Lisboa — mais exactamente de Belém — no dia 30 de Março de 1922. Entraram os dois no avião que tinha sido criado especialmente para a viagem, um hidroavião monomotor Fairey F III-D, com um motor Rolls-Royce e o nome Lusitânia. Sacadura Cabral era o piloto, Gago Coutinho o navegador e levava consigo um horizonte artificial adaptado a um sextante — um instrumento de navegação que ele próprio criara. Tinham um destino: o Brasil. Seria a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. Paro junto à Torre de Belém para olhar a réplica do pequeno avião junto ao Tejo. Uma hélice, dois pares de asas, uma estrutura frágil, um interior com espaço apenas para os dois tripulantes, de cabecinhas de fora, protegidas com uns simples capacetes e uns óculos, como se fossem dar uma volta de moto. Há várias imagens de Coutinho e Cabral preparando a viagem. Numa delas, discutem calmamente o trajecto, fazendo medições com réguas sobre mapas. Noutra, sobem para o hidroavião, que é retirado de um hangar por um grupo de homens, experimentando os respectivos lugares. Separava-os do Brasil todo um oceano e um número de horas de voo que, somadas, totalizariam três dias no ar, mas nada disso parecia assustá-los. A primeira etapa da viagem levou-os até Las Palmas, nas Canárias. Daí partiram, a 5 de Abril, para a ilha de São Vicente, Cabo Verde onde ficaram por 12 dias, largando depois da ilha de Santiago com destino ao Brasil. Já com os rochedos do arquipélago de São Pedro e São Paulo à vista, o Lusitânia perde um dos flutuadores e afunda-se, mas Gago Coutinho e Sacadura Cabral são auxiliados pelo cruzador República, da Marinha Portuguesa, que os leva a Fernando de Noronha. Os dois homens eram já, por essa altura, heróis em Portugal e no Brasil e tinham decidido não desistir da viagem, pelo que o Governo português lhes envia um segundo hidroavião, que é levado até Fernando de Noronha pelo paquete brasileiro Bagé, a bordo do qual seguem vários jornalistas portugueses (O Século, Diário de Notícias, Diário de Lisboa, A Imprensa da Manhã, O Comércio do Porto e O Dia), um fotógrafo e uma equipa de imagens da Invicta Film dirigida pelo realizador Henrique Alegria. Vale a pena ver nesse filme (disponível na Internet) as imagens dos jornalistas, descontraídos, a escrevinhar as suas notas de reportagem, sentados no navio. E, em pose sorridente, a “formosíssima rapariga que viaja connosco, a mesma linda rapariga brasileira que tanto impressionou os que ficaram [em Lisboa]”, nas palavras do jornalista Tomás Ribeiro Colaço. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O novo hidroavião recebeu o nome de Pátria e nele partiram de Fernando de Noronha. Mas rapidamente sofreram um problema no motor que os obrigou a fazer uma amaragem de emergência. Durante nove horas esperaram ajuda no mar, até que um cargueiro inglês os socorreu. Novamente em Fernando de Noronha, esperaram o terceiro avião, o Santa Cruz — é isto que explica que a réplica que se vê em Belém tenha um nome diferente do verdadeiro avião, que se pode ver no Museu da Marinha, em Lisboa. Foi o Santa Cruz que levou finalmente os dois homens até à recepção apoteótica em várias cidades brasileiras, culminando no Rio de Janeiro. Isto é o que a história nos conta. É possível encontrar imagens de Gago Coutinho e Sacadura Cabral em Belém, antes da partida, e, consagrados heróis, nas chegadas. Mas só eles sabem como foram aquelas horas no ar, sobrevoando o oceano, encaixados num espaço mínimo e com a cabeça de fora, entre as nuvens, calculando distâncias e atentos ao som do motor único que os mantinha no ar. Sem hospedeiras simpáticas a fazer avisos de segurança e sem sequer poderem escolher se queriam chá ou café.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens ajuda carne criança rapariga
Há vida no arquivo
A colecção tem o tempo da vida de Pacheco Pereira. Política, sindicalismo, história, literatura, ciência, religião, cultura. Nada é rejeitado à partida naquele que é um dos mais completos e originais espólios sobre a História de Portugal nos últimos 200 anos. (...)

Há vida no arquivo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A colecção tem o tempo da vida de Pacheco Pereira. Política, sindicalismo, história, literatura, ciência, religião, cultura. Nada é rejeitado à partida naquele que é um dos mais completos e originais espólios sobre a História de Portugal nos últimos 200 anos.
TEXTO: Diz ela: “Alfredo mandas-me dizer que daquim a pouco já sabes falar francez. Que rabiada tenho eu depois estares a falar, uma ligua que eu não compriendo, nam para traz nem para a frente, podes depois estares, a falar mal de mim que eu não te comprienda fazes muito bem a aprenderes de tudo, se eu estivesse no teu lugar também faria o mesmo no caso que podesse. Mandas-me perguntar se eu já sei Bordar muito agora tenho nove lições, a professora está muito contente comigo, diz que não sou das piores que tem menos enteligencia, vamos a outro assunto. ”Diz ele: Desculpa eu ter demorado um pouco nas minhas notícias. Tencionava escrever-te na 2 feira á noite quando viesse da lição mas os meus colegas de pensão foram-me esperar para me convidarem para irmos ao cinema, eu disse-lhes que tinha que fazer, e então eles ficaram aborrecidos, mas para não lhes fazer a desfeita lá resolvi ir também, foram dois filmes muito bons ‘O pão nosso de cada dia’ e ‘As mil mentiras’, também já havia alguns dias que não ia ao cinema. ”Ela está em Setúbal e ele, pela altura desses escritos, está em Lisboa. Namoram por carta e ao longo dos anos, mesmo já casados, continuam a relacionar-se muito através de correspondência. Ela trata-o sobretudo por meu “querido amorzinho”, ele quase sempre por “minha querida Lurdinhas”. O humor do momento e a fase da relação determinam o modo mais ou menos carinhoso dos nomes que atribuem um ao outro nas cartas que se escrevem entre 1934 e 1943. “São mais de 600 cartas que foram encontradas num armazém. Seriam lixo se eu não as tivesse recolhido”, diz Pacheco Pereira, que sublinha o interesse daquela correspondência mantida entre um casal para perceber muito do quotidiano do país. Foi feita uma selecção, preservados os nomes verdadeiros de pessoas que poderiam ser ainda reconhecíveis, mantido o tom e os erros de português e publicadas num volume a que foi dado o título Amorzinho. Sai em simultâneo com outro livro, Autocolantes do PPD. Os dois marcam o arranque de uma nova colecção da Tinta-da-China feita a partir do espólio de Pacheco Pereira e baptizada “Ephemera”, o nome do blogue que disponibiliza parte do arquivo do historiador, ex-deputado, comentador da SIC, colunista do PÚBLICO e da Sábado. A escolha de dois títulos tão diferentes para iniciar esta colecção pretende alertar para a diversidade do espólio de que ela se irá alimentar. “Há aqui de tudo, as coisas institucionais e aquilo que normalmente os arquivos institucionais não querem. Recolho tudo o que tenha que ver com a vida dos portugueses nos últimos 200 anos, principalmente na sua vertente política, sindical, cultural, religiosa. Há, por exemplo, coisas interessantes sobre as primeiras peregrinações a Fátima. Não era suposto que cartas como estas estivessem nesta colecção. Estão porque, à partida, não rejeito nada”, refere Pacheco Pereira sobre o seu modo de gerir um espólio que se tornou tão vasto quanto imprevisível nos conteúdos e que cresce como um organismo vivo pela casa da Marmeleira, uma aldeia no concelho de Rio Maior, para onde se mudou há cerca de 15 anos. Foi ali que encontrou um espaço “a preço comportável” para guardar uma colecção que começou desde que se lembra “de existir”: “O meu pai já tinha um número considerável de livros e publicações. Eu continuei. ”Actualmente, e numa linha recta imaginária, são cinco quilómetros de prateleira para guardar cerca de 200 mil livros e o correspondente às cerca de 13 mil pastas divididas em 8800 categorias que compõem o arquivo do blogue Ephemera. É o núcleo, a que se acrescenta a parte museológica composta por objectos relacionados com a actividade política e sindical: cartazes, guarda-chuvas, pins, esferográficas, chapéus, panfletos, isqueiros. Há ainda uma colecção de música e de filmes. “É um arquivo privado que depende muito de ofertas. Há entrada contínua de materiais. Todas as semanas a estante cresce um metro e meio”, continua Pacheco Pereira, 66 anos, sobre o que chama “a minha vida”, que já ultrapassou em muito a casa inicial e se alargou a um armazém, uma antiga garagem e a um edifício que já foi escola, posto de GNR e Junta de Freguesia logo a seguir ao 25 de Abril. É o mais recente acrescento ao que começa a ser um intrincado encadear de pátios e corredores, escadas e pequenos jardins que ligam salas repletas de livros, jornais, dossiers, caixas e caixotes numa ordem controlada onde se notam as chegadas mais recentes. “Isto é uma máquina de produção”, refere sobre o sistema que montou e lhe facilita o trabalho que gere em absoluto. “Não entra aqui nada que não passe por mim. Tenho uma gestão autoritária deste espaço”, ri , referindo, no entanto. uma espécie de rede de voluntários, cerca de 150 em todo o país, que recolhem material que ele trata, digitaliza e arruma. Passa pouco das três da tarde. O sino da igreja é uma marca temporal permanente. O céu está carregado, mas avistam-se quilómetros a partir da espécie de promontório em que está assente a casa, num dos pontos mais altos da aldeia. “É uma terra com tradição republicana”, comenta, enquanto faz o percurso entre o coreto, no largo principal, e a porta de entrada para o lugar onde escolheu viver desde que deixou o Porto. Há aqui de tudo, as coisas institucionais e aquilo que normalmente os arquivos institucionais não queremÉ 5 de Outubro, seria um feriado celebrado por ali, mas é também o dia seguinte às eleições legislativas. Vai chegar novo material. “Hoje estamos a recolher o que as sedes de campanha estão a deitar fora”, e o tempo destas frases é o que demora a chegar a um núcleo de casas brancas com portas e janelas vermelhas onde Pacheco Pereira passa grande parte do seu tempo. Na sala principal da casa, forrada com os livros que quer por perto — entre eles, raridades como uma edição original de Descartes —, estão, sobre uma mesa junto ao sofá, as mais recentes entradas. “É a colheita do último mês e meio”, conta, “um grande e importante arquivo, clássico, tradicional, da correspondência do Henrique Galvão quando esteve na Venezuela, toda a fase preparatória do assalto ao Santa Maria”. Debaixo, retira uma pasta. “São os papéis de um dos fundadores da Pide, um militar salazarista, e foram-me oferecidos pelo neto. Junto, veio documentação muito interessante sobre o momento inicial da Pide, sobre as relações entre a polícia portuguesa e a polícia italiana e polaca. Não esperava encontrar isso aqui, tem a ver com a tal imprevisibilidade”, comenta. Sobre a mesa está ainda um envelope com materiais da última campanha eleitoral e uma T-shirt. Abre-a, nela pode ler-se Mostra de Edições Subversivas. “É de um evento anarquista. ”A colecção de Pacheco Pereira é conhecida. Sobre ela muito tem sido escrito. Sabe-se da riqueza e diversidade do arquivo, há muitos investigadores que o procuram para documentar investigação — de Portugal, mas também do resto da Europa, Estados Unidos ou Brasil —, há milhares de visitas diárias e regulares ao Ephemera. É o lado mais visível do espólio que surpreende pelo que se poderia chamar “faceta coca-bichinhos” e que irá reflectir-se nos próximos livros a publicar na Tinta-da-China. “Ninguém faz este tipo de recolha, pelo menos em Portugal não fazem e, na Europa, acho que só o British Museum. Há muita coisa que se perde para sempre. Está aqui material que sobrou das últimas manifestações. Se quiser fazer uma história da crise e das reacções à crise, não é difícil perceber que só há coisas aqui. Outro exemplo: calculo que nas últimas autárquicas tenham sido produzidos no país mais de cem mil espécies diferentes de artefactos. Isto contabiliza os panfletos das freguesias, os outdoors, os cartazes, os brindes. Consegui com os voluntários recolher quase 35 mil. Quando há eleições, há uma procura, as pessoas vêm ver o que estava nesses programas. ”A biblioteca de Pacheco Pereira é apontada como de referência em relação à história recente do país. “Sim, é um arquivo diferente, colecciona objectos, mas contém arquivos específicos que mudaram a história de Portugal”, nota. Exemplos? “O de Sá Carneiro, que é um arquivo grande, com documentação fundamental que muda muitos aspectos da história portuguesa. O Sá Carneiro não o guardou no partido, escondeu-o em casa da Conceição Monteiro [secretária particular de Francisco Sá Carneiro] e tem tudo o que ele considerava relevante na sua vida política desde antes do 25 de Abril. Por aí pode-se saber que houve uma tentativa para que o Spínola concorresse à Presidência da República antes do 25 de Abril; pode-se ver como eram as relações com os EUA; decisões importantes da AD, as cunhas para os deputados. Dá uma dimensão muito importante sobre a origem do PPD, com a primeira carta que alguém mandou de Trancoso… Permite fazer um retrato social da génese de um partido novo. O mesmo tipo de materiais existe em relação a muitas organizações de extrema-esquerda. Praticamente todos os partidos portugueses têm aqui grandes arquivos. Muitos são oferecidos, como o do MES e o de Sá Carneiro. ” Compra ocasionalmente, em Portugal e fora, sobretudo para completar colecções existentes, como a da extrema-direita. “Pode encontrar aqui tanto o pin da Wolkswagen original, como documentação sobre os fascistas condenados à morte que fugiram da Roménia para Espanha. E há muito material clandestino nos seus próprios países, como jornais nazis da Alemanha. Há também uma colecção maçónica. Essas colecções, de um modo geral, são mantidas integralmente. No caso desta colecção da extrema-direita, havia centenas de títulos de periódicos. Foram digitalizados e entraram no arquivo geral de periódicos. Podem ser consulados no blogue por ordem alfabética. ”Garante que não se perde no que pode parecer uma vertigem de informação quando tratada por uma única pessoa. “Sei de cor onde está cada livro”, diz enquanto atravessa um corredor estreito, preenchido de um lado e do outro com lombadas até ao tecto. Passa pela sala de ciências, com uma colecção de Química que iniciou quando foi aluno de ciências, mais especificamente de Astrofísica. Está lá, por exemplo, o primeiro estudo sobre radioactividade, de Ernest Rutherford, de 1913. Folheia-o. Chega-se a uma a mesa onde falta continuar a dividir documentação. Fecha-se a porta, percorre-se mais um pátio. Outra sala. “Aqui estão 25 mil entradas”, diz numa sala em penumbra, temperatura e humidade controladas com a ajuda de um desumidificador. “Na organização do arquivo, copio o modelo indicado no jornal O Jornal, pela Maria João Múrias. Foi aí que vi pela primeira vez esta forma de organização e é o exemplo dela que eu sigo. Quando leio um artigo, marco uma palavra-chave, é metido numa pasta e colocado aqui por ordem alfabética. ” Consegue ler-se “KJB”, “Eleições”, “Júdice”…É um método que o próprio testa enquanto investigador e consumidor das bases de dados que ele mesmo gere. A gestão de todo o arquivo começou com fichas, substituiu-as pela informática pela facilidade com que se estrutura a informação. “A Pide usava um método arcaico de investigação. Mandava um agente — mão-de-obra barata — copiar 50 processos. Depois de copiados, havia uma nota anexada. Mais nada. Eu, usando materiais da Pide, tratando-os em computador, descobri imensas coisas que eles poderiam ter descoberto se tratassem a informação. O computador é um grande agregador e muito útil com a utilização de bases de dados modernas, relacionais. Eu não conseguia fazer a biografia do Cunhal se não fosse isso. Em cada volume lido com milhares de dados diferentes, muitos de fontes directas, uso intensivamente bases de dados que construo há muitos anos. A partir de certa altura, deixo de saber o que lá está, mas ao trabalhar com elas descubro o que não sabia que estava. ”Terminou agora o quarto volume da biografia de Álvaro Cunhal, que está a publicar com a Temas & Debates. Deverá sair antes do Natal e refere-se aos oito anos entre a fuga de Peniche até à queda de Salazar. “Termina em Paris quando Jorge Sampaio sai de uma reunião com o Cunhal e com outras pessoas. Sampaio não sabia onde estava. O PC transportou-o em carros com janelas fechadas. Quando sai do carro, compra o Le Monde e vê a notícia: Salazar tinha caído da cadeira. ” Pacheco Pereira faz a síntese. “É interessante, porque o Cunhal nessa reunião já devia saber da notícia. Depois é o momento dramático que se sabe, o início do Marcelismo, que é uma diferença muito substancial do ponto de vista histórico. ”No grosso desses anos, entre 1960 e 68, Cunhal está fora de Portugal. “É um retrato do Cunhal como dirigente comunista internacional. ” Na construção do livro, conta que as fontes foram um problema. “No PCP, permanecem fechadas. É possível reconstituir os factos porque os outros partidos comunistas com que ele tinha relações estão abertos. A data de saída dele de Portugal é sempre omissa nos papéis. Sabe-se que em Setembro está em Moscovo. Pude datar porque escreve de Paris uma carta ao Partido Comunista Francês queixando-se de que não tinha sido recebido pelo Maurice Thorez [secretário-geral do PCF até 1964] e pelo Jacques Duclos [que organizou a resistência do PCF ao nazismo durante a II Guerra Mundial]. É tudo feito de fragmentos que estão nas bases de dados que vou construindo à medida que os documentos vão entrando. Isto é uma espécie de sistema Taylor, é uma cadeia de produção. ”Parte do que começa a ser agora publicado vem desta máquina. As cartas de amor que compõem o volume Amorzinho tinham um valor por si mesmas, para entender costumes, relações sociais e pessoais. Os autocolantes do PSD pretendem ser uma obra de referência. “O objectivo é usar alguns destes fundos que podem ser publicados em livro e ser estudados pela sua qualidade gráfica, por serem uma raridade ou mesmo únicos”, salienta Pacheco Pereira. “É o primeiro catálogo de autocolantes que existe em Portugal e a ideia era que fosse feito como um catálogo de selos. Isso significa numerá-los, o que vai permitir aos coleccionadores perceber o que falta. Permite estudar o grafismo ou o significado político das palavras de ordem”, adianta, referindo que o seu espólio deve conter cerca de 20 mil autocolantes diferentes. Pode encontrar aqui tanto o pin da Wolkswagen original, como documentação sobre os fascistas condenados à morte que fugiram da Roménia para EspanhaSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ainda este ano haverá um terceiro título: “Uma colecção de fotografias estenopeicas feitas pelo António Campos Leal que captam o efeito da luz a passar sobre os livros e foram pensadas para este Ano Internacional da Luz. ” Para 2016, planeia publicar um catálogo com a propaganda anti-Frelimo nos últimos anos da guerra colonial. “Tem não só cartazes como panfletos em várias línguas, inclusive árabe”, salienta, numa pausa que pretende ser capaz de traduzir as possibilidades deste arquivo. Também no próximo ano, pode haver novidades em relação ao arquivo de Vítor Crespo, o ex-presidente da Assembleia da República e ex-ministro da Educação. Todo o espólio, incluindo mobília, está na Marmeleira. Há ainda a ideia de fazer uma história oral do mais recente edifício que foi comprado por Pacheco Pereira para a biblioteca e que acabou este ano de ser recuperado. Pode haver mais correspondência amorosa. Há mais duas colecções por tratar. E está previsto um volume que pode surpreender, “uma série de fotografias tiradas por uma espécie de mestre-de-cerimónias do S. Carlos, que recebia os artistas, ia buscá-los ao avião, levava-os a visitar Lisboa e fotografava-os. Há fotos desde o Stravinsky à Maria Callas, de toda uma elite que visitou o S. Carlos nos anos 50 e 60. Este volume combina o legado de outra pessoa, um melómano, também fiel ao S. Carlos, que tomava notas durante os espectáculos. ‘Dizia coisas como: houve uma fífia da cantora não sei quantas no terceiro acorde; as pessoas tossiram muito. ’ Quando se juntam as duas coisas, temos um livro muito interessante sobre o ambiente musical nesses anos. ”A conversa acaba como começou, com Maria de Lurdes e Alfredo. “Só a partir dali é possível partir para um retrato muito abrangente do Portugal de Salazar. Basta querer seguir as pistas. ” É o coleccionador que fala. Poderia começar uma colecção por aí, seguir para a política, os movimentos clandestinos, Cunhal… Ter tudo outra vez. “Já viu, teria ido para o lixo!”
REFERÊNCIAS:
O craque da crónica brasileira
Joaquim Ferreira dos Santos diz que “o Rio não entende o Rio, acha que isso aqui é só sal, sol e Sul”. (...)

O craque da crónica brasileira
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Joaquim Ferreira dos Santos diz que “o Rio não entende o Rio, acha que isso aqui é só sal, sol e Sul”.
TEXTO: Joaquim Ferreira dos Santos tem o pé na rua. Costuma dizer que “ganha a vida descrevendo o que vê de mais interessante nas calçadas”. É um andarilho, um contador de histórias e o seu reportório é o Rio de Janeiro, cidade onde vive, fundada há 450 anos e dos quais o repórter conhece os últimos 64. É um carioca de gema com um nome bem português. E mora na Rua Vinicius de Moraes, em Ipanema — a antiga Rua Montenegro, famosa porque foi ali, há 50 e tal anos, num botequim lá na esquina, que Tom Jobim e Vinicius de Moraes viram passar uma garota chamada Heloísa, aquela “que vem e que passa no doce balanço a caminho do mar”, e fizeram a canção Garota de Ipanema. Quando se sobe até à cobertura onde o escritor vive, há um letreiro na porta onde se lê que a Confraria do Garoto, a mais carioca das entidades, lhe conferiu o título de Cavaleiro dos Eméritos Cariocas da Gema em 2005. Mais uma prova que estamos perante um especialista em carioquice, um craque da crónica brasileira que assina todas as segundas-feiras uma coluna nas páginas do jornal O Globo, onde também manteve durante anos a rubrica de pequenas notícias Gente Boa. É ainda apresentador da rádio Batuta, a rádio na Internet do Instituto Moreira Salles, onde tem feito uma série de especiais, como Rio 450 — Crônicas Musicais. Criada em 1974, a Confraria do Garoto tem como objectivo preservar a cultura, as tradições e a irreverência carioca e promover todas as sextas-feiras 13, dias de azar, uma grande festa onde se juntam as personagens mais díspares. “O Rio de Janeiro é essa convivência de opostos, de vários níveis sociais, muito por causa da praia, da proximidade dos morros, do culto ao samba. E dessas manifestações de cultura popular, de que a cidade gosta porque reconhece, sem preconceito, valor nelas”, explica Joaquim Ferreira dos Santos à Revista 2. Está a referir-se, por exemplo, ao baile funk no viaduto de Madureira (onde vai às vezes) e a certos botequins à moda antiga que ainda resistem abertos na cidade. “Essa mistura, o jornalismo me deu. Você frequenta diversos salões como se todos fossem iguais. Ter a percepção de que ir no botequim na Zona Norte é a mesma coisa que ir no Copacabana Palace ou na cobertura do escritor Rubem Braga. ”Joaquim recorda-se daquele dia em que as suas filhas, ainda pequenas, foram almoçar com ele no restaurante Bar Brasil, na Lapa. “É um restaurante típico, toalha de papel, azulejo, aquela informalidade carioca mas com uma comida óptima. Fomos com uma amiga delas e, quando saímos, percebi que estavam ‘putas’ comigo porque sempre que saíam com o pai dessa amiga iam no Antiquarius [um restaurante português chique do Rio]. Estavam julgando, essa coisa de garoto, pela aparência do restaurante. Hoje lembram essa história e riem. ”Apesar de conhecer Copacabana de muitos Carnavais, Joaquim tem no seu guarda-roupa um boné de Portugal. A explicação? O seu pai era português. A sua mãe, uma brasileira, filha de portugueses. E todos os seus avós nasceram em Portugal. “Era um garoto do subúrbio do Rio e a história da minha família é essa: são comerciantes portugueses que vêm de Portugal, geralmente de Trás-os-Montes, gente pobre sem muitas condições. Os pais da minha mãe eram do Porto. Estavam no comércio de ‘secos e molhados’. Você conhece a expressão: ‘secos e molhados’? ‘Secos e molhados’ quer dizer armazém, mercearia, com uma parte dos secos — arroz, feijão, essas coisas — e outra dos molhados — a parte de bebidas. Minha família tinha esses armazéns na Zona Norte do Rio. Nasci e cresci em Vila da Penha, um subúrbio do Rio na Zona Norte perto de Madureira, Irajá”, conta. E de que comida se trata? “Comida popular que tem fartura de gordura e não tem um aparente requinte. É voltada para o prazer, para o gosto. Não é uma comida para se comer em culto aos bons modos, é para se comer para satisfação, para ficar pleno, farto. É um tipo de comida popular, barata e que foi desaparecendo. ”Não só desapareceu por completo da casa das pessoas — ninguém faz mais esse tipo de comida em casa porque é uma comida que engorda e pode trazer problemas de colesterol —, como dos restaurantes. “Não ficou ligada à sofisticação. As pessoas vão aos restaurantes também para colar esse requisito de sofisticação nelas e esses restaurantes vão fechando. ”Os estabelecimentos a que Joaquim se refere, e que entretanto fecharam, eram todos no centro do Rio de Janeiro. Lembra, por exemplo, o Penafiel, um restaurante de comida portuguesa. O Ficha, um restaurante de comida alemã. A Lisboeta, no Campo de Santana, onde havia isca de fígado. “Eu adorava isca de fígado, [hoje] você não encontra um restaurante que venda”, lamenta. No entanto, talvez o leitor ainda encontre o prato no tradicional La Fiorentina, no Leme. Isto porque o dono fez uma homenagem ao cronista e incluiu fígado na ementa. Joaquim Ferreira dos Santos aceitou a homenagem mas colocou como condição escolher o prato. Disse ao dono: “‘Você me homenageia, coloca esse prato e fica à vontade de se não der certo você tirar do cardápio. Porque gosto de comer isso e não tem mais em restaurante nenhum. ’ Então está lá: é um bife de fígado acebolado com jiló [legume conhecido pelo seu gosto amargo]. Ele diz que faz sucesso, de vez em quando vou lá ‘checar’ e está lá. ”Por isso na crónica “O morro da Jules Rimet” publicada n’ O Globo, a 30 de Junho de 2014, escrevia: “O Morro do Pinto é um daqueles paraísos que o carioca desperdiça diariamente, preguiçoso de sair do seu quarteirão e descobrir que a cidade é maravilhosa não só por causa das curvas do Aterro, das curvas das garotas e das curvas das pedrinhas no calçadão. O Rio não entende o Rio, acha que isso aqui é só sal, sol e Sul. Faz a curva no fim do calçadão do Leblon e volta para casa, crente que viu tudo o que interessa. Troto ladeira acima do Morro do Pinto, vizinho do Morro da Conceição e da Providência, feliz como cabrito que foge do zôo congestionado das calçadas da Zona Sul. (…) Os mais viajados vão achar que estão subindo as ladeiras da Alfama, o bairro de Lisboa — e há bandeiras de Portugal nas janelas, memória evidente de que antes de Getúlio, antes do Escurinho, o Morro do Pinto foi ocupado pelos portugueses no século XVIII. Eu, com menos milhagens, acho que estou de volta ao subúrbio, a uma foto do Malta ou a um maxixe do Sinhô. ‘Isso aqui é o melhor lugar do Rio para se criar marreco’ — diz um morador, numa tradução ao carioquês de que ali há paz. ”Afirma que a cidade onde vive não é só o Calçadão: não é ir-se do Arpoador até ao Leblon, voltar atrás e achar-se que a cidade está vista. A sua cidade é mais ampla, com coisas mais interessantes, bonitas e até folclóricas. “Nesses lugares descobre-se o que se quiser descobrir. Por exemplo, Ernesto Nazareth nasceu nas fraldas do Morro do Pinto. Era um pianista, talvez o primeiro nome da Música Popular Brasileira. Já ali, em 1870, está tocando piano. Mas um piano sincopado com balanço, uma coisa já misturada com a cultura negra. Então começa a surgir uma música brasileira de choros e de lá, lá, lá…”, cantarola. Andar pela cidade é também um truque de cronista. “Como a conheço bem, sou capaz de me colocar em cada esquina. De a impregnar com um valor de memória. Através daquela esquina, sei de uma história que ou aconteceu comigo ou aconteceu com outra pessoa, e vou preenchendo isso no texto. Aí vem embutido outro truque que é o ‘palavra-puxa-palavra’ do Rubem Braga. Você acaba de ler uma crónica do Rubem Braga e sobre o que é que ele escreveu? Não tem nada ali de factual, como aquela crónica célebre do nadador…”Refere-se àquela crónica “Homem no mar”, que integrou no livro As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, com organização e introdução sua, editado pela Objetiva. Lembra que Braga começa essa crónica dizendo que da sua varanda vê, entre árvores e telhados, o mar e que ao longe percebe um movimento num ponto do mar. “É o nadador passando em Ipanema e ele está olhando da sua cobertura. Só isso. Só que Rubem vai puxando, vai botando uma palavra, depois outra, e, de repente, está pronto e com sabor, com gosto, com papo. As boas palavras vão-se associando, pegando carona, e temos uma crónica que tem esse espírito de leveza, de descompromisso, de conversa, sem discurso. ”“Ser cronista é isso”, acrescenta, “tentar dar a essa esquina um sentido maior. É a esquina dele mas sem o umbigo dele. É fazer com que você reconheça essa esquina em qualquer lugar, que a crónica faça sentido a uma pessoa de Lisboa. Muitas vezes quem escreve crónicas confunde as coisas. Fala do umbigo, do acontecimento em torno da sua vidinha mas é só uma viagem narcísica. De maneira que não interessa a ninguém, interessa no máximo ao diário dessa pessoa. Mas uma crónica do Rubem Braga é universal. ”Em 2013, Joaquim Ferreira dos Santos fez a curadoria da exposição Rubem Braga — O Fazendeiro do Ar no Museu da Língua Portuguesa, em S. Paulo. Por causa dessa curadoria, Joaquim passou algum tempo na famosa penthouse do escritor onde a família ainda mora. “Ia para mexer nas coisas, em documentos e fotos. Ele fotografava mulheres com Rolleiflex e era um bom fotógrafo. Essa cobertura é mitológica porque era de porta aberta, os amigos chegavam, ficavam bebendo. Rubem Braga deitava na rede, dormia e as pessoas ficavam. Era uma referência de ponto de encontro literário na cidade. ”No entanto, Joaquim nunca escreveu a biografia do autor de Ai de ti, Copacabana. Mas é o autor de várias biografias como Um Homem Chamado Maria (ed. Objetiva) sobre a vida do compositor de samba-canção Antônio Maria ou Leila Diniz — Uma Revolução na Praia (ed. Companhia das Letras) sobre a actriz brasileira que nos anos 1970 se deixou fotografar grávida na praia de biquíni e “o país nunca mais foi o mesmo”. Agora está a trabalhar na biografia do jornalista e colunista Zózimo Barrozo do Amaral (1941-1997) que noutros tempos teve nos jornais uma coluna parecida com a sua Gente Boa. A determinada altura pediram-lhe que escrevesse um livro sobre Aída Curi, uma jovem que em 1958 sofreu uma tentativa de violação sexual. “Ela foi levada para o alto de um edifício em Copacabana, houve essa tentativa de curra de três camaradas, e é jogada ou cai lá de cima”, explica. Recusou-se a fazê-lo porque na época trabalhava num jornal popular e achou que poderia ficar estigmatizado por se tratar de um assunto de polícia e de crime. Mas ao analisar o projecto percebeu que aquele era o único acontecimento “ruim” de 1958. “O resto era só felicidade: a bossa-nova, o Brasil campeão do mundo. Era o ano de um Brasil antigo se despedindo e de um Brasil moderno se apresentando. O ano em que a chanchada, a comédia popular brasileira, ainda está em cartaz com muitos títulos mas em que o cinema novo, com Nelson Pereira, já começa. O ano em que o teatro de revista, onde as vedetes se apresentavam, ainda estava fazendo sucesso mas também o ano em que José Celso estreia o Teatro Oficina. Um Brasil cordial, um Brasil que está se transformando mas sem conflito, sem ruptura, vai passando. Um Brasil rural mas também um Brasil que lança o primeiro carro produzido totalmente no país. ”Também a Miss Brasil desse ano, Adalgisa, foi diferente. “Era uma mulher que em vez de passar Pancake nas pernas para tirar as estrias e marcas — era como se fosse um pó de arroz para se ficar com pernas de porcelana — passou óleo Johnson. Ficou sensual, era o contrário da Miss tradicional. ” Assim nasceu o seu livro mais famoso: Feliz 1958 — O Ano Que não Devia Acabar que entrou no top dos livros mais vendidos de não ficção da Veja. “Um livro sobre um ano que não devia ter terminado, devia ter continuado porque seria o Brasil dos sonhos se não houvesse o golpe de 1964. O livro é um perfil de 1958, o ano que deu. ”Agora quer fazer uma exposição a partir do livro Minhas Amigas — Retratos Afectivos (ed. Objetiva), onde conta histórias de amigas que “chutam o balde”, são cheias de novidades mas precisam de um homem que lhes mate as baratas na sala. “É curioso saber o que é que um cara que passou a vida escrevendo faz fotografando, essa curiosidade mobiliza as pessoas e me dá umas paredes para expor pela cidade. ”Assim Joaquim Ferreira dos Santos junta à cidade outro dos seus temas preferidos: a mulher brasileira — outro dos seus livros de crónicas chama-se O Que as Mulheres Procuram na Bolsa (ed. Record), porque sabe que quando elas começam a procurar coisas dentro das bolsas enormes não estão a procurar as chaves. Numa das suas mais recentes crónicas, “Morro da Babilônia”, publicada n ‘O Globo a 23 de Março, num instante faz o retrato de uma das actrizes da telenovela Babilônia, Camila Pitanga, e do local onde a série da Rede Globo, que passa actualmente em Portugal na SIC, está a ser rodada. Começa assim: “Camila Pitanga na garupa da moto, um espetáculo que não vai ao ar nem depois nem antes do ‘Jornal Nacional’. Ela tem cruzado por aqui sem tirar qualquer onda, porque de ondulada já lhe basta a cabeleira que vai ao vento. Camila pega a Ladeira Ary Barroso, passa pela casa do próprio, reformada recentemente com uma arquitetura contemporânea, no meio da mata. Adiante tem o Bar Point da Amizade, onde está tocando Te ensinei certim, da Ludmilla. Na esquina, na quadra da Fapec, Camila poderia pegar à direita. Ir para o Morro do Chapéu Mangueira, onde brilha a casa de sua madrasta, a senadora Benedita. Hoje não. Camila dobra à esquerda. Vai gravar uma cena no Morro da Babilônia. Esse é o morro do momento, o real, aquele que na ficção deu nome à novela. Em 1959 serviu de cenário para Orfeu Negro, Oscar de filme estrangeiro para o diretor francês Marcel Camus. Depois foi documentário de Eduardo Coutinho. É um morro da Zona Sul. Tia Ciata não esteve aqui. O ídolo é Junior Negão, do beach soccer, ex-morador. Um morro que não dá samba, mas seu nome sugestivo inspira outras artes. Ele fica escondido no Leme, atrás da muralha de edifícios da Avenida Atlântica, atrás ainda dos paredões de outros tantos das ruas Gustavo Sampaio e General Ribeiro da Costa. Não adianta procurar no Google Maps. Diz que é na Urca. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quando os leitores lhe dizem: “Gosto muito de ler as suas crónicas porque dá uma sensação que escreveu com facilidade”, não sabem o tempo que demorou a conseguir essa impressão. Diz que a crónica é isso também: uma falsa facilidade. “A esperança do cronista é estabelecer uma conversa. Não é um lugar de exercícios de estilo, de vanguardas, você quer é conversar com as pessoas. Era isso que Fernando Sabino fazia através dos diálogos, que Rubem Braga fazia através das referências da natureza e poéticas e que Paulo Mendes Campos fazia numa aproximação mais literária. O Drummond era um cronista mais quotidiano, escrevia sobre Copacabana, sobre as mulheres. Essa é a graça da crónica, escrever-se sobre coisas próximas, que você reconheça. Não sou capaz de me sentar sem assunto e escrever um livro. As minhas crónicas têm por base a reportagem, são histórias que conheço tratadas de um jeito mais literário. ” São histórias que dão à sua esquina um sentido maior.
REFERÊNCIAS:
Palácio da Bolsa, Porto: O que lá vai dentro
Era uma vez um convento que ardeu e em cujos terrenos os comerciantes do Porto decidiram erguer um palácio. Local de visita obrigatória, a menos que nos esqueçamos de o mostrar… (...)

Palácio da Bolsa, Porto: O que lá vai dentro
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Era uma vez um convento que ardeu e em cujos terrenos os comerciantes do Porto decidiram erguer um palácio. Local de visita obrigatória, a menos que nos esqueçamos de o mostrar…
TEXTO: Um velho grupo de amigos veio ao Porto e eu tirei um dia para os acompanhar numa visita guiada pela cidade. Foi só um dia, um belo dia de sol, mas não demasiado quente, perfeito para passear, mas não deixou de ser apenas um dia, o que, é claro, é muito pouco. Quando eles partiram comecei a lamentar-me pelos sítios todos onde os devia ter levado e que ficaram por conhecer. Dou por mim a pensar, por exemplo, porque não os fiz entrar no Palácio da Bolsa, apesar de lá termos passado à porta mais do que uma vez. O Palácio da Bolsa, casa da Associação Comercial do Porto, é daqueles edifícios que dificilmente qualquer turista minimamente informado deixará de visitar. Pode parecer algo austero por fora, mais um prédio bonitinho, com cara neoclássica, como tantos outros na cidade, mas por dentro é uma beleza. Quem olha para ele da Praça do Infante, não imagina o que lá vai dentro. E o que lá vai é o resultado de um trabalho longo e minucioso, fruto das vontades e imaginação de vários homens, que projectaram um interior ora leve e luminoso, ora sumptuoso e acolhedor. E pensar que tudo começou com um incêndio…A primeira pedra do Palácio da Bolsa foi colocada a 6 de Outubro de 1842. Anos antes, os mercadores portuenses reuniam-se na Bolsa do Comércio do Cidade, na Rua do Infante (numa casa que ainda existe assinalada com um brasão real e que tinha uma passagem interior de ligação à Casa do Infante, que funcionava, na altura, como Alfândega), mas o espaço fechara portas e os mercadores viram-se obrigados a fazer os seus negócios na rua, ou assim reza a lenda. Quando, a 24 de Julho de 1832, em pleno Cerco do Porto, um incêndio devora quase todo o convento de S. Francisco, deixando como única sobrevivente a igreja, os comerciantes pedem à rainha D. Maria II que lhes ceda os terrenos com as ruínas do convento. A 19 de Junho de 1842, a doação é concretizada, mas a rainha faz mais — para ajudar a custear a obra, D. Maria II ordena que a Associação Comercial do Porto receba, durante dez anos, uma receita extraordinária sobre os produtos que passassem pela Alfândega da cidade. Os homens de negócios não esperaram muito para pôr a andar os trabalhos e menos de quatro meses depois o edifício avançava, ainda que fossem precisos 70 anos para que ficasse concluído. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hoje, o Palácio da Bolsa é dos espaços mais visitados do Porto. No ano passado recebeu mais de 250 mil curiosos, que foram guiados pelas várias salas abertas do edifício. Devem ter erguido as cabeças para apreciar a cúpula de ferro e vidro, da autoria do arquitecto Tomás Soller, que paira sobre o Pátio das Nações, acima dos 20 brasões representando países com os quais eram mantidas relações de amizade e comércio. Provavelmente admiraram-se quando lhes disseram que toda aquela madeira que forra as paredes da Sala das Assembleias Gerais não passa, afinal, de gesso. Podem ter sentido alguma emoção ao depararem-se com a pequena sala de trabalho onde Gustavo Eiffel projectou as várias pontes que iria criar no país. E, de certeza, que se encantaram com o Salão Árabe, tentando perceber onde está a imperfeição inscrita numa sala que, para todos os efeitos, parece perfeita. A obra, que passou pelas mãos de seis arquitectos principais, iniciando-se com Joaquim da Costa Lima Júnior e terminando com José Marques da Silva, pede atenção e trabalho, e não é raro encontrar por ali especialistas a reabilitar estuques e gessos a fazer de madeira, dando retoques no dourado ou limpando vidros. Assim como não é raro que o Pátio das Nações ou o Salão Árabe se encham de convidados, que o Porto quer impressionar, mostrando-lhes o que de mais luxuoso tem por cá. Amigos que já foram para casa: para a próxima, não deixem que vos mostre a cidade sem os levar ao Palácio da Bolsa. O melhor, se calhar, era marcarem já uma segunda visita, para tratarmos do assunto.
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Palavras-chave homens rainha
O sem-abrigo com um diploma de Harvard
Guarda os seus pertences em sacos de plástico. Vagueia pelas ruas de Washington. Mas Alfred Postell é, muito provavelmente, o sem-abrigo mais qualificado da cidade. Tem diplomas, prémios e certificados suficientes para encher um armário. O que lhe aconteceu? (...)

O sem-abrigo com um diploma de Harvard
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Guarda os seus pertences em sacos de plástico. Vagueia pelas ruas de Washington. Mas Alfred Postell é, muito provavelmente, o sem-abrigo mais qualificado da cidade. Tem diplomas, prémios e certificados suficientes para encher um armário. O que lhe aconteceu?
TEXTO: O juiz pousou o olhar no sem-abrigo acusado de dormir em frente a um edifício de escritórios na Baixa de Washington. Era um sábado à tarde do início de Abril e no Tribunal de Instância Superior, diante do juiz Thomas Motley, estava Alfred Postell, diagnosticado com uma esquizofrenia. Postell tinha o cabelo um pouco comprido e grisalho. A barriga saía-lhe das calças. A barba estava desalinhada. “Tem o direito de permanecer em silêncio”, disse-lhe um oficial, de acordo com a transcrição da acusação. “Qualquer coisa que diga, sem ser ao seu advogado, pode ser usada contra si. ”“Eu sou advogado”, respondeu Postell. Motley ignorou aquela declaração bizarra, pesando se Postell, acusado de invasão de propriedade, apresentaria risco de fuga. “Tenho de voltar [à barra]”, protestou Postell, oferecendo uma explicação: “Passei o exame na Catholic University, fui admitido no Constitution Hall. Prestei juramento como advogado no Constitution Hall em 1979; licenciei-me em Harvard em 1979. ”Isto já chamava a atenção de Motley. Também ele se licenciara na Faculdade de Direito de Harvard em 1979. “Sr. Postell, eu também”, disse-lhe Motley. “Eu lembro-me de si. ”Este sem-abrigo — que guarda os seus pertences em sacos de plástico brancos, vagueia por um cruzamento da Baixa e às vezes dorme numa igreja — estudou juntamente com o chefe do Tribunal Supremo, John G. Roberts, e o antigo senador do Wisconsin Russ Feingold. Todos eles se licenciaram em Harvard em 1979. Motley (que não quis ser entrevistado para este artigo) fez uma breve pausa antes de concluir: “Não tenho qualquer escolha neste caso. ” Ordenou que o antigo colega fosse para a prisão até que as acusações contra ele estivessem resolvidas. Numa cidade com milhares de sem-abrigo, é possível que Postell seja o mais qualificado deles todos. Diplomas, prémios e certificados enchem um armário no apartamento da sua mãe, como artefactos enterrados de uma vida perdida. Tem três licenciaturas: Contabilidade, Economia e Direito. Numa noite de Verão, senta-se dentro de um McDonald’s, com uma toalha branca enrolada na cabeça como um turbante. Ouvi-lo falar da sua vida é como irromper num sonho. Ao princípio tudo parece normal. Mas rapidamente as coisas entram no caos. A cronologia vem aos soluços. Pensamentos incongruentes colidem uns com os outros. “Charleston”, diz ele, “eu tinha propriedades lá, na cidade. Os campos de algodão ficavam fora dos limites da cidade. Os campos de algodão: ficavam fora dos limites da cidade. Apanhei algodão uma única vez na minha vida. Mas os campos de algodão ficavam para lá dos limites da cidade. Eu vivia dentro da cidade. Tínhamos propriedades lá. Herdámos a propriedade. Pouco depois, conduzi até San Diego, Califórnia. Estava apaixonado por uma rapariga. ”Todas estas frases remetiam para o mesmo ponto. Ancoravam Postell nas águas turbulentas da esquizofrenia. Postell, dizia ele a si próprio e aos outros, tinha estudos. Trabalhava duramente. Saía-se bem. Nasceu em 1948, único filho de uma mãe costureira e pai instalador de toldos. Cresceu a saber o que significa a privação. Era um rapaz normal, diz a mãe, Ruth Priest, mas sempre focado e motivado. Queria mais do que os pais tinham. Por isso, depois de terminar o liceu, juntou um emprego a um curso no Strayer College. Os êxitos levavam a êxitos. Passou no exame e conseguiu trabalho como gestor de auditorias numa empresa de contabilidade, a Lucas and Tucker, onde diz que recebia um salário anual de 50 mil dólares (42 mil euros), o que na altura era muito dinheiro. Mas não ficou por ali. Foi para a University of Maryland tirar o curso de Economia. E, ainda antes de se licenciar, apresentou uma candidatura a Harvard — e foi aceite. “Parecia que a cada dois anos eu ficava a saber que tinhas subido mais um patamar”, escreveu E. Burns McLindon, um gestor importante de Bethesda, no Maryland, que foi professor de Postell em Strayer, numa carta que ele emoldurou. Foi em Strayer que recebeu o Prémio Aluno de Excelência. “O teu caso”, escreveu McLindon, que morreu em 2012, “serve de verdadeiro exemplo aos nossos jovens de hoje para que encontrem dentro deles determinação e ambição para ter sucesso”. Folhear o livro online do ano de 1979 da Harvard Law School é um exercício semelhante a ver “Antes de eles serem famosos”. Lá está John Roberts com uma massa de cabelo. Lá está o sorridente Ray Anderson, que se tornou vice-presidente executivo das operações de futebol da NFL (Liga Nacional). Lá está Thomas Motley, 24 anos, activo na Associação de Estudantes Negros, de fato e gravata. E lá está Alfred Postell. Tem 31 anos, mais velho do que a maioria, usa um bigode bem cuidado e tem já entradas no cabelo. Tem o olhar de um homem bem sucedido na vida. E que espera ainda muito mais. O colega Marvin Bagwell, vários anos mais novo, lembra-se dele a chegar às aulas de sobretudo e laço enquanto os outros se arrastavam, de olhos sonolentos. “Havia nele uma dignidade muito discreta”, diz Bagwell, agora vice-presidente de uma grande empresa de seguros. “Era brilhante e conseguia fazer perguntas introspectivas que iam ao âmago da questão. ”O mesmo sentimento foi expresso por outros cinco colegas. “Trabalhava com muito afinco e era extremamente disciplinado”, comenta Piper Kent-Marshall, há muito conselheiro da Wells Fargo. E vestia-se imaculadamente e cheio de aprumo. “Não me espantaria se alguém me dissesse que fazia manicure”, comentou outro colega de turma. Por isso, os licenciados de Harvard ficaram tão surpreendidos quando souberam do seu destino. Como é que este homem — tão articulado, tão elegante — acaba numa existência invisível nas franjas da capital do país?“É uma história incrivelmente trágica e triste”, diz Kent-Marshall, “porque na Faculdade de Direito ele era um dos melhores alunos e um homem muito, muito, muito inteligente e charmoso”. Se houver pistas para o que terá precipitado a queda de Postell na esquizofrenia, estão enterradas nos anos após a licenciatura, quando voltou a Columbia. Havia nele uma dignidade muito discreta. Era brilhante e conseguia fazer perguntas introspectivas que iam ao âmago da questão. ”Aceitou um emprego num escritório que era então conhecido como Shaw Pittman Potts & Trowbridge, um escritório respeitado que no ano anterior tentara sem sucesso recrutar a futura juíza do Tribunal Supremo Sonia Sotomayor. Naqueles anos, a empresa estava a expandir-se muito rapidamente. Quando Postell chegou, segundo duas pessoas que trabalhavam lá na altura, ele era o único advogado negro do escritório. Devido à sua formação em Contabilidade, foi colocado na equipa fiscal e rapidamente conheceu um jovem advogado chamado Frederick Klein. Foram contratados com um ano de diferença. Ambos ganhavam 35 mil dólares. Klein ficou impressionado com a forma como Postell se vestia. “Era muito urbano”, diz Klein, que agora está no DLA Piper Global Law Firm. Era culto, atencioso, discreto. Postell era tão discreto que, na verdade, vários advogados que trabalharam na Shaw Pittman não se lembravam de nada acerca dele. Klein e outros dois que se recordavam não conseguiram, ou não quiseram, dizer porque é que poucos anos depois de o ter contratado a empresa o deixou partir. “Não fico muito confortável por estar a falar nisto”, comentou por email Martin Krall, que chegou a ser sócio da Shaw Pittman. “Já foi há muito tempo, já não sou sócio há mais de 20 anos e não tenho acesso aos arquivos do pessoal, se é que ainda existem. ”Talvez o facto de poucos se lembrarem do que aconteceu a Postell seja aquilo que trai a sua doença. A esquizofrenia assusta. Algumas pessoas, especialmente as bem sucedidas como ele, conseguem esconder os sintomas durante meses. Enquanto a vítima se retira da vida social e do trabalho, mergulhando no isolamento, familiares, amigos e colegas podem nem sequer dar por nada. E depois há um corte. Os psicólogos referem-se a este momento como “surto psicótico” ou “primeiro surto”. É quando se quebra a ligação com a realidade que a vida se divide nestas duas categorias distintas: antes e depois. “Infelizmente, o declínio rápido não é invulgar”, afirma Richard Bebout, director do Green Door, um centro de saúde mental que trabalha com sem-abrigo. “Conheço pessoas que tiraram Medicina, fizeram a faculdade e licenciaram-se com as melhores notas e, de repente, vêm-se abaixo. É como a história de John Nash em Uma Mente Brilhante. ”A velocidade com que acontece pode deixar as famílias sedentas de respostas. “Ele tinha todas aquelas coisas chiques, um bom barco que costumava velejar por todo o lado”, diz uma familiar, LaTonya Sellers Postell. “Estava a viver uma vida de ricos. E, de repente, foi-se abaixo. Ninguém sabe exactamente o que aconteceu. . . Perdeu todos os seus bens materiais. É de loucos. Absolutamente de loucos. ”Nem a sua mãe, de 85 anos, consegue explicar o que aconteceu. Um dia, uma escuridão abateu-se sobre o filho, diz Priest. Não parava de dizer que ia ser preso. Achava que a polícia estava atrás dele. E a seguir teve uma má separação da mulher que amava. Pouco tempo depois, teve o seu surto psicótico. “Eu tinha medo”, conta a mãe. “Ele corria lá para baixo e eu perguntava: ‘O que se passa? O que se passa?’ E tentava abaná-lo um bocado para o trazer de volta. E ele começava a chorar. . . E desde então foi por aí abaixo, abaixo, abaixo. ”Quando achou que já não conseguia tratar dele, a mãe foi procurar uma pastora evangélica local, Marie Carter, que o acolheu em casa, em meados dos anos 1980. A sua filha, agora com 60 anos, achou que Postell ficaria lá por algumas semanas ou meses. Mas ele ficou décadas, passando dias inteiros à frente da televisão ou vagueando por um parque próximo, a ver as pessoas passar. É estranho, como 30 anos passam depressa. A única marca que Postell deixou no registo público durante esse período foi em forma de acusações criminais. Foi acusado de roubo em 1989 pelo tribunal de Ocean City. Também teve outras acusações menores na década de 1990. Mas, para além disso, foi um fantasma. “Entras numa empresa, tens prestígio”, diz Postell. “E quando perdes essa posição é como um suicídio. É o fim. É a atrofia. Ou, como diz um contabilista, é para se tornar obsoleto. Sabes o que isso quer dizer? Obsolescência. Para além da tua vida útil. Eu estava para lá da minha vida útil. ”Postell ficou à deriva. Todos os dias passava pelas mesmas montras. Uma delas era a loja de café Avondale — até ser barrado pelo dono, levando à sua detenção em Abril de 2014. Postell acabou por ir parar ao Brawner Building, na Baixa. A polícia prendeu-o lá por duas vezes, acusando-o de invasão de propriedade privada. Alegações que, ao fim de 30 anos, levarão Postell a encontrar-se novamente com Thomas Motley. Depois de se licenciar em Harvard, Motley foi trabalhar para a Steptoe & Johnson, um importante escritório de advogados em Washington. Depois, tornou-se delegado federal do Ministério Público, até ser nomeado pelo Presidente Bill Clinton. No dia em que Motley ficou frente a Postell, o sem-abrigo não o reconheceu. Tinham passado demasiados anos. Mas diria mais tarde que se lembrava de Motley nas aulas. (Mas não se lembra do presidente do Supremo, Roberts. )Em Junho, foi ilibado de umas das acusações de entrada ilegal. Outra foi retirada. E assim passa novamente a maioria dos dias no edifício Brawner, perto da Farragut Square. Rhett Rayos, o gerente do edifício, diz ter esperança de que Postell “receba o apoio e serviços que precisa”. E há esperança. A equipa de saúde mental da Green Door começou a trabalhar com ele, tal como a Pathways to Housing, outra organização que ajuda sem-abrigo. A mãe tentou juntar algum dinheiro para o tirar da rua. Mas nada disso parece interessá-lo quando numa manhã recente está sentado sozinho à porta do Brawning Building. Tem espalhados jornais aos pés. Agarra num. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “O jornal usou o termo ‘troglodita’”, diz. “Troglodita: Homem das grutas. ”Depois, perde-se nas suas memórias. “Vivi num prédio de apartamentos na Presidential Towers. Poderia ser considerado um homem das grutas. Tinha varanda. Uma varanda no último andar. Um apartamento no último andar das Presidential Towers. Podia ser considerado um homem das cavernas. ”Exclusivo PÚBLICO / The Washington Post
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Aljube, Lisboa: Homens fechados em gavetas
O telefone ainda toca no corredor das celas de isolamento da prisão do Aljube, pela qual passaram milhares de presos políticos durante o Estado Novo. (...)

Aljube, Lisboa: Homens fechados em gavetas
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O telefone ainda toca no corredor das celas de isolamento da prisão do Aljube, pela qual passaram milhares de presos políticos durante o Estado Novo.
TEXTO: Avanço sozinha pelo corredor silencioso e, de repente, o coração salta-me no peito. Um telefone pendurado na parede começou a tocar. Olho em redor. Não há ninguém. É um toque roufenho, meio abafado, um som vindo de outros tempos, quando os telefones tocavam assim. Vejo uma pequena mesa de madeira com um tampo de vidro debaixo do qual está uma página de um velho jornal desportivo, boletins antigos do totobola e fichas de registos. Encostada à mesa, uma cadeira. Dou mais um passo. Estou em frente a um corredor. À direita, as janelas dão para o edifício da Sé de Lisboa, do outro lado da rua. À esquerda, uma sucessão de portas cinzentas. Esta é a réplica do corredor dos curros — as celas de isolamento — da antiga prisão do Aljube, pela qual passaram milhares de presos políticos no período do Estado Novo. A mesa de madeira é a do guarda e o telefone é igual ao que tocava para avisar que um prisioneiro ia ser levado para as sessões de interrogatório e tortura, que aconteciam normalmente na sede da PIDE, a polícia política do Estado Novo, na Rua António Maria Cardoso. Aproximo-me da primeira porta, que está entreaberta. Tenho novo sobressalto. Depois de um espaço pequeno, uma espécie de hall estreito, há uma segunda porta, e atrás dessa, de cabeça encostada às grades, está a figura de um homem. No segundo curro, um ecrã transmite um excerto de uma entrevista a Álvaro Cunhal na qual o dirigente comunista recorda o que eram as condições de detenção no Aljube e como se resistia, ou não, a estas células de isolamento e à tortura. Terceira porta, uma cela vazia. Paredes nuas, tecto alto e mais nada. Na quarta cela há um catre, onde o preso se deitava ou sentava — eram catres basculantes, seguros à parede por dobradiças e que quando estavam para baixo não deixavam mais do que 15 centímetros até à parede oposta. Nestes espaços, também conhecidos como “gavetas”, cabe apenas um homem deitado. Aí passavam os dias, numa semi-obscuridade ou numa total escuridão se os guardas decidiam fechar o postigo de 15 por 20 centímetros através do qual entrava algum ar e (pouca) luz. Para ir à casa-de-banho era preciso chamar o guarda e esperar que este se dispusesse a acompanhar o preso — ficando sempre a porta aberta. “Uma angustiosa sensação de asfixia e desespero” — foi assim que Arlindo Vicente, antigo candidato à Presidência pela Oposição Democrática, descreveu o que se sentia sentado na escuridão de uma destas “gavetas”, onde o preso não podia ter nada. As horas passavam desesperantemente iguais e escuras, sem um papel e um lápis ou um livro. Silêncio, escuridão, isolamento, quatro paredes, um metro por dois de espaço vital, com sorte dois passos para cada lado se o catre estivesse levantado — restavam apenas as estratégias que cada um inventava para ir aguentando, um dia de cada vez. E, no meio disto, de vez em quando, a campainha rouca do telefone na parede a chamar o próximo. Podemos tentar imaginar. O toque a ecoar em cada cela, o baque e o frio na barriga, o som da cadeira de madeira do guarda a arrastar no chão de pedra enquanto ele se levantava para atender. Num cartaz ao lado do telefone, há uma descrição desse momento: “O carcereiro levantava-se e, ao percorrer o corredor, fazia tilintar o enorme molho de chaves que trazia à cintura ou na mão, abria e fechava postigos, muitas vezes repetindo esse percurso até se deter numa cela e anunciar, depois de escancarar a porta de madeira, ‘prepare-se para ir à polícia!’”. O Aljube, nome que vem do tempo dos muçulmanos, tem uma história antiga, muito anterior ao Estado Novo, mas funcionou sempre como prisão, primeiro para presos do foro eclesiástico (até 1820), depois para mulheres acusadas de delitos comuns (até 1920) e finalmente para presos políticos do Estado Novo (de 1928 até 1965). Quando, no Verão de 1965, o Aljube encerrou — na sequência de muitos protestos e da constatação da própria PIDE de que a prisão não tinha condições de segurança e higiene — o andar dos curros foi totalmente destruído. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Hoje está instalado no Aljube o Museu da Resistência e Liberdade, que inaugurou a 25 de Abril deste ano. E, para que nunca mais ninguém esqueça ou possa dizer que não sabia, o velho telefone rouco pendurado na parede continua a tocar.
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Como Crato mudou (quase) tudo o que podia mudar
Os últimos quatro anos foram conturbados para alunos e professores. A Revista 2 fez a radiografia do que mudou na Educação com o ministro Nuno Crato. (...)

Como Crato mudou (quase) tudo o que podia mudar
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os últimos quatro anos foram conturbados para alunos e professores. A Revista 2 fez a radiografia do que mudou na Educação com o ministro Nuno Crato.
TEXTO: Nuno Crato cumpriu a tradição. Como muitos dos seus predecessores, mudou quase tudo o que podia mudar. Com uma excepção: o ensino superior, onde as reformas anunciadas (financiamento das instituições e reorganização da rede) não saíram do papel. Já no básico e secundário, em nome de “uma maior exigência”, extinguiu as disciplinas mais viradas para a cidadania e reforçou as horas de aulas das outras, mudou programas, mesmo aqueles que tinham entrado em vigor escassos anos antes, estabeleceu novas metas curriculares e restringiu as condições de acesso à profissão docente. Houve aplausos, mas que rapidamente foram afogados numa chuva constante de críticas, nomeadamente da parte dos professores. Agora que o seu mandato de quatro anos está a chegar ao fim, há pais e docentes que assumem estar “assustados” com o que tudo isto poderá fazer aos alunos e com as consequências “da construção de uma sociedade a preto e branco”. Foi uma espécie de regresso ao tempo dos avós. Em Maio de 2013, pela primeira vez em décadas, os alunos do 4. º ano apresentaram-se nas escolas para fazer exame às disciplinas de Português e Matemática. Embora não sendo eliminatórias, as provas passaram a contar para a nota final e, portanto, também para a sua aprovação. Chegaram nervosos, muitos já previamente carregados de horas de explicações, como os seus colegas mais velhos. Tem sido assim desde então. Conforme prometera, o ministro Nuno Crato decidiu alargar aos alunos mais novos, do 4. º e 6. º ano (que se estrearam nas provas em 2012), a exigência de serem avaliados por via de exames nacionais e não só pelos seus professores. Algo que o socialista Marçal Grilo já fizera para o ensino secundário, em 1996, e o social-democrata David Justino para o 9. º ano, em 2002. Crato justificou a medida não só com a sua recorrente defesa de uma “maior exigência”, como também por ser uma oportunidade de se detectarem precocemente fragilidades nas aprendizagens e se poder intervir mais cedo para as colmatar. A coligação PSD-CDS garante que estas provas serão para manter, caso volte a ser governo. O PS, por seu lado, afirma apenas que se “compromete a reavaliar a realização de exames nos primeiros anos de escolaridade”, embora assinale que esta é uma “prática rara nos países com os quais Portugal se compara e é sistematicamente criticada pelas organizações internacionais”. “Extremamente redutora” é como o director da escola secundária Camões, em Lisboa, João Jaime, classifica a realização de exames neste níveis de ensino, “porque, dando-se ênfase a este tipo de avaliação, pressupõe-se uma prática escolar que abdica do trabalho de exploração e em que não se desenvolve o gosto da descoberta”. O director do agrupamento de escolas de Carcavelos, Adelino Calado, confirma: “A introdução dos exames no 4. º e 6. º ano apenas teve o condão de produzir estratégias de ensino/aprendizagem que visam essencialmente o ‘resultado na prova’, em vez de promoverem aprendizagens significativas e estruturantes. ”O investigador da Universidade do Minho José Pacheco considera que os resultados dos exames “não podem ser ignorados”, mas alerta que “a qualidade das aprendizagens nem sempre é compatível com uma escola centrada exclusivamente nos testes e, de forma mais genérica, nos números”. “A escola dos números é a excelência da política educativa de Nuno Crato”, comenta. O próprio presidente do Instituto de Avaliação Educativa, o organismo responsável pela elaboração e classificação dos exames, admitiu, em entrevista recente ao PÚBLICO, que os exames não se têm traduzido de facto numa melhoria das aprendizagens. Porque a terminologia também pesa, o Ministério da Educação e Ciência optou por apresentar os exames do 4. º e 6. º ano como provas finais de ciclo. Na prática, os alunos estão em escolas que se têm vindo a transformar cada vez mais em “centros de treino” para exames. “Não entendo porque [as escolas] fazem isso. Estão sempre a falar do que vem e do que pode vir no exame. Parece que tudo é feito para nos pressionar”, comentou, a propósito, um aluno do 9. º ano do Funchal, que o PÚBLICO acompanhou durante os exames de Junho. Já Ramiro Marques, professor do ensino superior, que foi nomeado pelo Governo para o Conselho Nacional de Educação, defende que a realização de exames pelos alunos mais novos “marca o reforço de uma cultura pedagógica mais exigente, responsabiliza mais os professores, introduz mais competição entre escolas, proporciona mais informação aos pais no acto de escolha da escola e torna os alunos mais resilientes”. Isabel Le Guê, directora da escola secundária Rainha D. Amélia, em Lisboa, considera que os exames do 4. º e 6. º ano, “sobretudo enquanto medida que visa aferir e avaliar o sistema educativo e a qualidade das aprendizagens dos alunos, terão certamente um impacto duradouro no sistema educativo”. Só que também “poderá levar a um possível aumento das taxas de retenção”, alerta o director do Camões. Os últimos dados sobre as percentagens de chumbos (taxas de retenção) por ano de escolaridade, publicados pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, dão conta que tal já aconteceu no 6. º ano. Em 2012, primeiro ano de realização dos exames, foi de 12, 7%, quando no princípio da década estava em 12, 4%. E em 2013 subiu para 14, 7%. A “obsessão” pelos resultados nos exames poderá acentuar-se ainda mais com os novos critérios para a concessão de créditos horários às escolas, que se traduzem em mais recursos humanos, alerta Fernando Nabais, professor de Português e Latim. Desde 2012, entre estes critérios figuram a melhoria nos resultados dos exames e a redução da diferença entre as notas dos alunos nestas provas e aquelas que lhes são dadas pelos seus professores. Para Nabais, a atribuição destes créditos às escolas com melhores resultados é “uma medida típica da gestão puramente empresarial”, que reflecte a “mentalidade economicista”, que, segundo ele, subjaz à política de Nuno Crato, do mesmo modo que já tinha presidido às políticas das duas ministras que o antecederam, frisa. Mas com Nuno Crato as escolas e as famílias passaram, por outro lado, a ter mais e melhor informação estatística sobre o sistema educativo, através do portal Infoescolas, lançado em 2014, e também sobre o percurso individual de cada aluno, o que permite, por exemplo, identificar quais os estabelecimentos que conseguem que os alunos tenham melhores resultados no final do secundário do que aqueles que obtiveram no fim do 3. º ciclo ou o inverso. “Sei que é uma questão que não gera consensos, mas não tenho dúvidas das vantagens da divulgação pública de dados concretos e sérios que traduzam, ainda que em parte apenas, o trabalho que se faz nas escolas”, afirma a directora da secundária Rainha D. Amélia. Já o responsável pelo Camões, embora não negando a importância das estatísticas, alerta que “o uso exclusivo dos números descontextualiza a realidade individual de cada escola”. A socióloga Maria Álvares é lapidar na apreciação que faz sobre a reforma curricular aprovada por Nuno Crato em 2012, um ano depois de chegar ao poder, que extinguiu as disciplinas de Formação Cívica, Estudo Acompanhado e Área de Projecto. “Com esta alteração, pela primeira vez na história da escola pública democrática, o ensino básico perde o seu carácter de preparação integral para o exercício pleno da cidadania”, afirma a investigadora do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. A sua extinção a favor de um maior reforço da carga horária das disciplinas apresentadas como “estruturantes, como Português e Matemática, foi uma das primeiras grandes mudanças introduzidas por Crato e que a coligação PSD-CDS afirma que manterá, caso venha a ser de novo governo após as eleições de Outubro, adiantando em respostas à Revista 2 “que a OCDE elogiou o reforço das disciplinas estruturantes e esta revisão curricular”. Por seu turno, o PS diz que rejeita “a redução do currículo que tem ocorrido nos últimos anos” e que pretende “garantir que todas as crianças e jovens concluam os primeiros nove anos de escolaridade com uma educação que esteja alicerçada numa ampla variedade de aprendizagens”, incluindo o domínio das artes e da cidadania. Para Isabel Le Guê, directora da escola secundária rainha D. Amélia, em Lisboa, “a centralização nas alegadas disciplinas-base” teve como consequência “um certo esvaziamento dos saberes e da (re)conhecida importância da sensibilidade estética, artística e cultural”. Sem subestimar a importância daquelas disciplinas, Le Guê afirma também não ter dúvidas “em refutar essa visão redutora do que deve ser o processo de ensino-aprendizagem” e em evocar o seu receio face às consequências desta opção — “a construção de uma sociedade a preto e branco”. Jorge Ferraz, da associação de pais do agrupamento de Escolas Baixa-Chiado, aponta no mesmo sentido. “Como pai e professor, sinto-me, mais do que preocupado, assustado. Não só com a visão do conhecimento como mero factor de competição, mas também porque se trata de uma formação ideológica que se esconde sob a aparente neutralidade da quantificação”, desabafa. Um retrato da escola de hoje apresentado por este pai: “Os alunos têm aulas a mais, matérias a mais, treinam-se para um teste e, passada essa etapa, já nem se lembram do que estudaram. Falta-lhes tempo para compreender. E os professores vivem obcecados com cumprimento de metas como se de descritores ou listas de verificações de inspecções sanitárias se tratasse. ”Ramiro Marques, professor do ensino superior e membro do Conselho Nacional de Educação, tem uma visão diametralmente oposta. Diz que as alterações curriculares introduzidas por Crato “simplificam e tornam mais transparente o que se ensina em cada ano de escolaridade, facilitam a definição de objectivos e o processo de planificação e avaliação de ensino e permitem uma mais eficaz prestação e contas”. Um dos exemplos mais conhecidos relativos às novas metas curriculares, aprovadas a partir de 2012, diz respeito à velocidade de leitura que deve ser alcançada pelos alunos do 1. º ciclo. Aos sete anos, por exemplo, um aluno deve conseguir ler “90 palavras por minuto”. As metas curriculares estabelecem o que os alunos devem saber no final de cada ano de escolaridade, definindo para o efeito uma série de objectivos e descritores de desempenho. A definição de metas curriculares não foi uma novidade de Crato. A sua predecessora no cargo, Isabel Alçada, já as tinha introduzido, embora sob o nome de metas de aprendizagem e com um carácter muito menos exaustivo. Foram aprovadas em 2010 e alteradas dois anos depois pelo actual ministro da Educação. Na sequência das metas, Crato aprovou depois novos programas para as disciplinas do básico (e três do secundário), mesmo para aquelas, como Português e Matemática, que tinham documentos orientadores aprovados escassos anos antes, mas sobre os quais o ministro nunca escondeu as suas divergências. Fernando Nabais, professor de Português e Latim, diz que “ainda é cedo para avaliar” quais os impactos da revisão curricular, embora destaque como positivo o facto de na disciplina de Português se ter recuperado “a importância da Literatura e da História de Literatura, o que poderá permitir que todos os alunos voltem a ter acesso a uma herança cultural cujo conhecimento é fundamental para a formação de qualquer cidadão”. Jaime Carvalho e Silva, dirigente da Associação de Professores de Matemática, traça outro quadro. “No que diz respeito à Matemática, há uma desmotivação crescente de professores e alunos, com uma disciplina que regressou aos anos 60-80 do século passado, com uma abstracção precoce e exagerada, que tão mau resultado deu na altura”, aponta. Prevê que este caminho levará a “um grande abandono da disciplina de Matemática A no secundário por parte dos alunos e por isso defende que só existe “uma resposta possível: repor imediatamente os programas” que estavam em vigor antes de Crato. Também Adelino Calado, director do agrupamento de escolas de Carcavelos, não acredita que todas estas mudanças “se mantenham por muito tempo”: “Não se tendo avaliado o sistema, no seu todo, de forma sistemática, qualquer ‘reforma’ peca por falta de credibilidade. ”Da parte da coligação PSD-CDS a resposta é taxativa: “Rasgar esse trabalho seria irresponsável, até porque forçaria novas mudanças e constituiria um factor de desestabilização para os alunos e professores. ” O PS critica a “instabilidade” que foi criada nas escolas por estas medidas — que “contrariam orientações internacionais” para que haja estabilidade de programas —, mas nada adianta sobre se vai de novo mudar o que foi mudado por Crato. “É fundamental assegurar uma maior estabilidade nas escolas, também nesta área, e criar condições para que estas possam gerir o currículo nacional de forma flexível e contextualizada”, frisa aquele partido na resposta enviada à Revista 2. Para Nuno Domingues, professor contratado há 11 anos, a revisão curricular “foi o exercício mais bem conseguido da governação de Nuno Crato no que à redução de professores diz respeito. Um verdadeiro exercício de engenharia que levou à perda de componente lectiva de muitos professores do quadro [os chamados ‘horários zero’] e ao desemprego milhares de contratados”. Em 2009-2010, estavam nas escolas cerca de 34 mil docentes a contrato, um número que desceu para perto de 15 mil em 2013-2014. Com base no postulado de “não se pode ensinar bem o que não se sabe bem”, Nuno Crato promoveu várias medidas com que pretendeu melhorar a qualificação dos professores. Nas escolas e no meio académico, contudo, há quem acredite que a intenção do ministro era outra: a de limitar o acesso à profissão docente. Crato mexeu em muita coisa neste campo: fez aumentar a duração dos cursos de Educação Básica destinados aos futuros professores; alterou a forma de acesso a esses cursos e os estudantes já sabem que, se quiserem candidatar-se à licenciatura em Educação Básica em 2017-2018, não poderão descurar Português e Matemática, que passam a ser exigidos como provas de ingresso. Esta alteração mereceu críticas como a do presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos, Joaquim Mourato, que a considerou “incompreensível”, principalmente por ser generalizada a pessoas que nunca leccionarão Matemática. Mas também há simpatia pela medida de Crato. Ramiro Marques, professor da Escola Superior de Educação de Santarém e membro do Conselho Nacional de Educação, advoga que era preciso evitar que continuassem a aceder “à profissão pessoas com graves e profundas lacunas em áreas fundamentais do conhecimento e, principalmente, a Matemática”. Também José Pacheco, especialista em Educação da Universidade do Minho, apoia a decisão de Crato, acentuando, como o ministro, que Matemática e Português são “disciplinas nucleares para os alunos e, portanto, também para os professores”. Do que nenhum tem dúvidas é que isso fará baixar o número de candidatos a professores. De resto, face às maiores dificuldades de acesso à profissão, os futuros professores, que na visão de Crato sairão mais qualificados, não conseguirão, porém, dar aulas tão cedo. O ministro não conseguiu intervir junto daqueles que já estavam no sistema, por muito que não tenha escondido que lhe agradaria fazê-lo. Chegou a comentar, a propósito, que não podia levar os professores do quadro a exame. Nessa altura, ainda estava convencido de que poderia seleccionar os melhores de entre os “contratados”, como são conhecidos os docentes aos quais, durante décadas, o Estado recorreu de forma sistemática. Neste caso, Crato acreditou que bastar-lhe-ia ressuscitar uma intenção do Governo PS e aplicar a Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades para Professores (PACC) que estava prevista desde 2007 no Estatuto da Carreira Docente. E, simultaneamente, exigir a aprovação a quem quisesse candidatar-se a dar aulas — um universo que na altura rondava os 45 mil professores. O que conseguiu é, no entanto, muito diferente do que concebeu. A primeira edição da prova foi aplicada a apenas 10. 220 professores, porque, nas vésperas da sua realização, o ministro cedeu aos protestos e dispensou os docentes com cinco ou mais anos de serviço e a qualificação mínima de Bom — ou seja, na prática, a maior parte dos que efectivamente chegam, anualmente, às salas de aula. Por outro lado, o modelo de prova também não convenceu. Foi criticado por investigadores, como José Pacheco e Ramiro Marques, e, para cúmulo, pelo próprio conselho científico do Instituto de Avaliação Educativa (Iave), o organismo que a concebeu. Este considerou que PACC não é “válida e fiável” no objectivo a que se propõe e tem como “propósito mais evidente” impedir o acesso à carreira docente. O PS, que inventou a prova, não chega ao ponto de a enterrar, mesmo sendo ela tão polémica e estando em campanha eleitoral. Em resposta à Revista 2 promete apenas suspender a sua realização e proceder “à reponderação dos seus fundamentos, objectivos e termos de referência”. Fosse ou não aquele o objectivo do ministro, o número de candidatos nos concursos para colocação de professores sem vínculo tem vindo a baixar desde que Crato chegou ao Governo. De mais de 40 mil caiu para menos de 27 mil, dos quais, este ano, 90% ficaram fora das escolas. Neste contexto, Nuno Crato lembra que fez ingressar nos quadros do MEC 4000 professores contratados; e a mais representativa organização sindical, a Federação Nacional de Professores, contrapõe que isso está longe de compensar a saída dos milhares que se aposentaram ou rescindiram nos últimos anos. E prevê que a situação dos que querem dar aulas na escola pública se agrave, devido à forma como Crato “escancarou as portas ao ensino privado”. “As alterações foram de tal forma ambiciosas que nem os privados a imaginariam possível”, observa também Adelino Calado, director do agrupamento de escolas de Carcavelos, em Cascais. Refere-se à aprovação do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo que na altura a associação do sector saudou como o momento “que antecede o início de uma nova era”. Ficaram consagradas as condições para financiar directamente as famílias, que poderão escolher entre o público e o privado; o financiamento de turmas do ensino particular deixou de ter como condição a ausência de oferta pública na proximidade dos colégios; e, no que respeita à liberdade de gestão do currículo, por exemplo, os estabelecimentos privados passaram a estar nas mesmas condições que as escolas públicas com contrato de autonomia. É uma das “jóias da coroa” do mandato de Nuno Crato. O ministro decidiu imprimir a sua marca também no campo do ensino profissional, criando os chamados “cursos vocacionais”, para onde podem ser direccionados alunos a partir dos 13 anos, se por essa altura já tiverem chumbado duas vezes no mesmo ciclo de escolaridade. Tem como modelo o ensino dual alemão, que articula a componente pedagógica com uma forte formação em contexto de trabalho (nas empresas). Este sistema passou a estar presente nas escolas públicas, a partir do ano lectivo 2012-2013, através de uma experiência-piloto que envolveu 13 escolas do ensino básico (do 7. º, 8. º e 9. º anos) e 280 alunos. Em 2014-2015 já frequentavam estes cursos cerca de 25 mil alunos, dos quais 1910 do ensino secundário. Segundo o Ministério da Educação e Ciência (MEC), a oferta neste nível de escolaridade vai triplicar este ano lectivo. O Governo anunciou há dois anos que queria ter 200 mil alunos nas vias profissionalizantes em 2020. Em 2013-14 eram cerca de 162 mil, dos quais a maioria estavam inscritos nos cursos profissionais existentes nas secundárias públicas. O peso da componente de formação prática nos cursos profissionais, cuja duração é de três anos, é de cerca de 50%, enquanto nos vocacionais, que duram dois anos, se pretende que chegue aos 70%, estando envolvidas no projecto, segundo o MEC, cerca de 5000 empresas. Mas na prática, adianta o director do agrupamento de escolas de Carcavelos, Adelino Calado, ”a maioria dos cursos vocacionais são desenvolvidos dentro das escolas devido às dificuldades do tecido empresarial português [para absorver os alunos], matando assim à partida o objectivo a que se propunham inicialmente”: o de propiciar uma melhor integração no mercado de trabalho. Já o MEC diz que “esta oferta tem contribuído para a redução do abandono escolar, para o desenvolvimento de novos conhecimentos e capacidades e para uma melhor preparação dos alunos, tendo em vista a sua integração no mercado de trabalho ou o prosseguimento de estudos”. O ensino vocacional tem vindo a substituir os chamados “Cursos de Educação e Formação” (CEF), criados em 2004 e também destinados a alunos com insucesso escolar, mas cuja frequência só era permitida a partir dos 15 anos. É uma das diferenças assinaladas pela socióloga Maria Álvares, segundo a qual a antecipação da idade de escolha do percurso vocacional para os 13 anos está “em clara contradição com os princípios instituídos na Lei de Bases do Sistema Educativo e em contraciclo com a tendência seguida um pouco por toda a União Europeia”, de atrasar a entrada dos estudantes nos percursos vocacionais. Por outro lado, “não garantem reais possibilidades de retorno à frequência das vias regulares no ensino secundário, dada a reduzida carga horária das disciplinas alvo de exame nacional”, acrescenta a investigadora do ISCTE. Os alunos que concluem os cursos vocacionais podem passar para o secundário sem realizarem os exames nacionais do 9. º ano, se optarem por prosseguir nesta oferta ou escolherem um curso profissional. Mas para reintegrarem o ensino regular, mais vocacionado para a continuação de estudos no superior, já são obrigados a realizar as provas finais de Português e Matemática. Maria Álvares lembra, a este respeito, que os antigos CEF que conferiam equivalência ao 9. º tinham uma carga horária de 2109 horas/ano, ocupando o Português e a Matemática mais de 300 horas. Já nos novos cursos vocacionais deste nível, que podem ser completados num prazo de um ou dois anos, a carga horária global baixou para 1100 horas, das quais apenas 220 são ocupadas pela leccionação de Português e Matemática. Segundo esta socióloga, a estratégia do actual Governo parece ser assim “a de estimular a permanência na escola de alunos em situação de insucesso escolar através da criação de uma oferta educativa de menor qualidade e estatuto social que não garante a equidade no final do ensino básico e a igualdade no acesso ao ensino secundário”. O investigador da Universidade do Minho José Pacheco lembra, por seu lado, que a meta da União Europeia é a de que 50% dos alunos frequentem o ensino profissional. “Em Portugal, actualmente, esta percentagem é de 42% e aumentá-la significa caminhar no sentido da convergência europeia”, constata, para acrescentar que, “porém, é fundamental que o ensino profissional esteja adaptado à realidade portuguesa e que os cursos correspondam a efectivas necessidades”. “Além disso, é urgente que o ensino profissional seja para todos e não, por norma, para os que têm insucesso escolar”, defende. Maria Álvares alerta ainda que, “à medida que este tipo de ofertas for sendo conotado como ofertas de segunda, vai ser crescentemente difícil convencer alunos e famílias a escolher essas vias e empregadores a contratar quem delas sair”. Tudo razões que a levam a considerar como “bastante duvidoso que estes cursos possam contribuir para a redução da taxa de abandono escolar a médio e longo prazo, embora possam ter efeitos de curto prazo”, como sucedeu nos primeiros anos desta experiência. Ramiro Marques, professor do ensino superior, que integrou o grupo de trabalho nomeado pelo MEC para acompanhar o lançamento dos cursos vocacionais, aplaude a iniciativa. Defende que a extensão do ensino vocacional e profissional “vai aproximar a cultura das escolas da cultura das empresas e obrigar os professores das áreas técnicas e vocacionais a um processo contínuo de actualização de saberes e competências”. Está, aliás, convicto, de que, “no futuro, as escolas que não forem capazes de se aproximar das empresas, tanto ao nível da construção curricular como na realização de estágios profissionais, irão desaparecer”. Com vista a ajustar a oferta de cursos profissionais às necessidades do mercado de trabalho, a Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional inquiriu recentemente 1630 empresas nacionais. Resultado: as qualificações que estas disseram mais procurar são as de empregado de comércio e de restaurante. O gigantismo do número torna-o difícil de compreender: 1, 73 mil milhões de euros. Eis a soma do dinheiro que a Educação perdeu ao longo dos últimos quatro anos. Depois percebe-se como se chega aqui: o sistema educativo tem hoje menos custos, porque tem menos professores, menos funcionários e também menos estabelecimentos de ensino. Fruto dos cortes, as escolas foram forçadas a subcontratar alguns serviços e lançar estratégias apertadas de controlo de despesa em aspectos tão quotidianos como os gastos com energia. Não será preciso esperar pelos próximos anos para perceber os impactos: os efeitos negativos já se sentem na qualidade do sistema educativo, alertam os especialistas ouvidos pela Revista 2. A política de corte no financiamento público do ensino básico e secundário “está a ter, já hoje, consequências muito negativas e duradouras na qualidade do desempenho educativo global”, aponta Jorge Martins, do Centro de Investigação e Intervenção Educativas. Elisa Alves, investigadora no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE e que tem trabalhos publicados sobre financiamento público da Educação, antecipa que há consequências “capazes de se estender além do curto prazo”. Em tempos de austeridade, os cortes anunciados a cada novo Orçamento do Estado (OE) não foram surpresa para ninguém. A Educação foi, porém, a área de intervenção do Estado mais afectada ao longo dos últimos quatro anos, perdendo 23, 9% da verba disponível em relação a 2010. No último OE apresentado pelo executivo liderado por José Sócrates estavam inscritos 7, 28 mil milhões de euros para o ensino básico e secundário, no OE de 2015, conhecido há pouco menos de um ano, a verba destinada ao sector tinha baixado para 5, 54 mil milhões. Para justificar este corte no financiamento público do sector não bastará apontar as implicações da ajuda externa. O memorando de entendimento com a troika, que vigorou nos primeiros três anos de mandato, previa uma redução de gastos na Educação de 370 milhões de euros para o conjunto dos dois primeiros anos de execução. Todavia, logo no primeiro Orçamento do Estado do actual executivo, esse impacto foi ultrapassado — menos 404 milhões de euros no total. Esse esforço atingiu três vezes mais do que o previsto durante o período de aplicação do programa de ajustamento e prolongou-se no primeiro OE pós-troika. Onde se sentem já os resultados do menor volume de dinheiro canalizado para a Educação? “Os cortes, conjuntamente com factores como a diminuição do número de alunos, parecem contribuir para uma certa retracção de alguns indicadores de desempenho, como as taxas de escolarização e de transição”, responde Elisa Alves. A opinião de Jorge Martins vai no mesmo sentido: piores resultados escolares, saída de milhares de professores do activo, proliferação dos mega-agrupamentos e aumento de horas de trabalho burocrático dos professores. O especialista do Centro de Investigação e Intervenção Educativas defende também que os problemas como os que envolveram a bolsa de contratação de professores e colocação de docentes, no início do ano lectivo passado, provocando um autêntico caos nas primeiras semanas de aulas, são motivados pela perda de competências na estrutura do Ministério da Educação. A “redução drástica” no número de funcionários fez com que o “aparelho técnico-administrativo do ministério” perdesse competências. “A qualidade do serviço tem caído brutalmente”, avalia Martins. Os dois especialistas não acreditam que o cenário de desinvestimento no sector venha a inverter-se com um novo governo. A “degradação parece estar para durar”, considera Jorge Martins. Elisa Alves confirma a ideia: “Não parece possível que nos próximos anos se consiga regressar aos níveis de financiamento que assistimos na primeira década deste novo milénio. ”O programa de governo aprovado no início do mandato não podia ser mais claro: a prioridade do novo executivo para o ensino superior passava pela “racionalização da rede de instituições”. Numa das primeiras intervenções públicas nas funções, o então secretário de Estado do Ensino Superior, João Queiró, defendia que a crise tornava esse debate “um pouco mais urgente”. No entanto, quatro anos volvidos, pouco ou nada mudou nesta matéria, deixando pelo caminho aquele que devia ter sido o principal contributo da equipa de Nuno Crato para o sector. “Foi uma oportunidade perdida”, sintetiza Daniel Freitas, presidente da Federação Académica do Porto, que lamenta que “mais uma vez” não tenha sido possível reorganizar a rede de ensino superior. A “inacção política” deveu-se à “inexistência dum ministério dedicado ao ensino superior e ciência”, acredita o director do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior, Pedro Teixeira: “Até hoje não sabemos muito bem o que pensa o ministro sobre o sistema de ensino superior e ciência. ”A “ausência” de Nuno Crato do ensino superior tornou central a figura do secretário de Estado. As coisas não correram, todavia, da melhor forma. Queiró, que começou o mandato, saiu aquando da remodelação governamental de Julho de 2013, sendo substituído por José Ferreira Gomes. O novo titular da pasta teve de gastar algum tempo a conhecer os dossiers que tinha pela frente e, em algumas matérias, houve mesmo uma inversão das ideias que estavam a ser defendidas, como no caso do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, cuja revisão também devia ter sido concluída durante este mandato. O primeiro titular da pasta advogava que as universidades não deveriam ser consideradas fundações — uma questão semântica importante, numa altura em que o Governo fazia um esforço para reduzir as fundações que recebiam subvenções públicas. Mas o modelo acabou reabilitado na fase final do mandato. O actual secretário de Estado teve o mérito de dar “algum dinamismo à segunda metade do mandato”, valoriza Pedro Teixeira. Desde 2013, foram criados os novos Cursos Técnicos Superiores Profissionais e programas como o Retomar (para fazer regressar aos estudos alunos que tinham abandonado o curso) e Mais Superior (uma bolsa para quem entre numa instituição do interior do país). Já a reorganização do sector, apesar de ter tido avanços, acabou por não sair do papel. A “culpa” deve ser repartida pela tutela, a quem faltou “coragem governativa”, aponta Daniel Freitas da FAP, e pelas instituições que se “escudaram nos pressupostos de autonomia” para não fazer mudanças. Já Teixeira entende que faltaram as condições para um diálogo mais consequente entre o MEC e as universidades e politécnicos: “A relação política e institucional já era algo distante e foi-se degradando, nomeadamente pelas questões financeiras e por episódios como a avaliação da FCT. ” (Ver texto seguinte. )Na prática, as poucas mudanças que aconteceram na rede de ensino superior público nos últimos quatro anos foram fruto de movimentos das próprias universidades, como a fusão das universidades “Clássica” e Técnica de Lisboa — apresentado sempre como um caso particular, dada a “complementaridade” entre instituições — ou a criação de consórcios regionais entre as universidades do Norte e do centro. Em Maio do ano passado, o MEC ainda apresentou as novas linhas de orientação estratégica, mas não conseguiu regulamentar a figura dos consórcios entre instituições — que eram o principal instrumento de reorganização da rede, depois de abandonada a ideia de fusões. O novo mecanismo de financiamento, que devia introduzir os estímulos necessários para corrigir os desequilíbrios no sector, não ficou pronto a tempo de ser aplicado no ano lectivo 2014-2015, como então era anunciado, nem tão-pouco entrará em vigor no ano lectivo que está agora a começar. Fonte da coligação PSD-CDS justifica o sucedido com o facto de que a reorganização da rede de ensino superior “é de complexa concretização e atravessou governos”, mas deverá ser aplicada no próximo mandato, em caso de triunfo dos dois partidos que compõem o actual Governo. A premissa será a “especialização voluntária” das instituições de ensino superior “nos domínios do conhecimento e das tecnologias onde apresentam mais vantagens competitivas”. Já o PS conta com “a disponibilidade das universidades e politécnicos para proceder à reestruturação das respectivas redes e da oferta formativa à escala nacional e regional”, alterações que entende necessárias para “apostar na diversidade” da rede, de modo a levar mais estudantes para o ensino superior. As duas forças políticas concordam, porém, numa matéria: o financiamento de universidades e politécnicos deve assentar num quadro de estabilidade e previsibilidade, seguindo, de preferência, um modelo de financiamento plurianual. Críticas de alguns dos principais cientistas, protestos da geração mais jovem de investigadores, contestação das universidades e até impugnações em tribunal — o mandato de Nuno Crato foi marcado por um clima de contestação sem precedentes na ciência. A redução acentuada do número de bolsas de doutoramento e a avaliação dos centros de investigação pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) foram os principais ingredientes de uma legislatura polémica, fazendo até esquecer os problemas de financiamento aos quais o sector não ficou imune. Nuno Crato deixa “um legado de abandono e quebra do consenso que existia acerca da ciência”, avalia Carlos Fiolhais. O cientista e o ministro eram próximos até há quatro anos, mas este professor da Universidade de Coimbra acabou por tornar-se numa das principais vozes críticas da política do MEC. “Julgava que o conhecia e nem nos meus piores sonhos julguei que se pudesse passar o que se passou”, confessa à Revista 2. Na blogosfera e nos jornais, Fiolhais foi fazendo uma avaliação crítica ao longo do mandato. Quase no final do consulado de Crato, mantém uma visão feroz sobre a sua política científica: “Os sucessos dos investigadores que por vezes aparecem nas notícias são fruto do legado de Mariano Gago [que foi ministro da Ciência durante 16 anos, repartidos entre os governos de António Guterres e José Sócrates]. ” “Colheu-se, mas não se semeou. Pior: cortaram-se muitas árvores que davam bom fruto”, acrescenta. A proposta de Nuno Crato e da secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira, era apostar numa investigação “de excelência”, privilegiando os centros de investigação com maior capacidade instalada e condições de serem competitivos em termos internacionais. Mas cedo as críticas se começaram a tornar audíveis. Em 2013, alguns dos principais cientistas nacionais, como Sobrinho Simões ou Alexandre Quintanilha (hoje candidato independente pelas listas do PS), deixaram os primeiros avisos, apontando sobretudo o dedo ao desinvestimento no sector. Os laboratórios associados, por exemplo, sofreram cortes de 40% e a percentagem do PIB investida em I&D baixou de 1, 53%, em 2010, para 1, 36%, em 2013. As críticas ao parco financiamento acabaram, porém, por ficar para segundo plano face à dimensão do golpe sofrido pelo sistema científico nacional no ano seguinte. No início de 2014 eram conhecidos os resultados do concurso de bolsas individuais de doutoramento da FCT: dos 3416 candidatos, só 298 seriam financiados, o que correspondia a um corte de 40% face ao ano anterior. Nos dois concursos seguintes, o número de bolsas aumentou ligeiramente (foram atribuídas 399 este ano), mas manteve-se, ainda assim, muito aquém dos anos anteriores. O foco de tensão seguinte foi a avaliação dos centros de investigação, que eliminou os apoios públicos para praticamente metade dos laboratórios nacionais. De 322 avaliados, 154 não conseguiram ter nota suficiente para passar à segunda fase, em que se discutia o acesso à maior parte dos 71 milhões de euros de financiamento disponível. A contestação aumentou de tom quando veio a público o contrato entre a FCT e a European Science Foundation (ESF) — a entidade responsável pela avaliação — em que estava definido que só 50% das unidades poderiam passar à segunda fase. Os reitores chamaram-lhe “um falhanço pleno” e as críticas mantiveram-se até ao encerramento do processo, já neste ano, justificando mesmo que alguns centros de investigação tenham impugnado a avaliação em tribunal, apontando “erros grosseiros” a um processo em que a FCT mudou as regras, no seu decurso, pelo menos sete vezes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Carlos Fiolhais considera que esses dois processos vão ter consequências críticas num futuro próximo. Devido ao corte nas bolsas de doutoramento, “há uma geração de cientistas a quem foi negada uma oportunidade de continuar o seu trabalho e que vai fazer falta nos próximos anos”, acredita. Já a avaliação da FCT eliminou “unidades de investigação produtivas, que demoraram muitos anos a desenvolverem-se, e que não se conseguem recuperar facilmente”. O resultado destas políticas foi “um sistema científico mais pequeno e com uma enorme concentração de recursos num conjunto restrito de grupos de investigação”. O físico de Coimbra lamenta que alguns dos danos provocados por Nuno Crato na ciência sejam “irrecuperáveis”. Outros “podem demorar a serem corrigidos”. Em época eleitoral, o PS alinha com os críticos da política de Crato. “É fundamental recuperar a confiança no sistema de ciência e tecnologia, que ao longo dos últimos 25 anos conheceu um desenvolvimento assinalável, mas que foi interrompido em 2011”, defende fonte do partido. Apesar das críticas quase generalizadas feitas à política científica do actual Governo, a coligação Portugal à Frente defende que o próximo executivo “deverá prosseguir” a linha dos últimos anos “no sentido de potenciar uma maior competitividade internacional do sistema científico e tecnológico português”.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PSD
Casa da Música, Porto: O nosso ovni na cidade
Nestes dias de luzes a piscar, carrosséis barulhentos, sacos de compras e crianças de gorros a tentar deslizar em pistas de gelo, é para a Casa da Música que se olha para respirar fundo. (...)

Casa da Música, Porto: O nosso ovni na cidade
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nestes dias de luzes a piscar, carrosséis barulhentos, sacos de compras e crianças de gorros a tentar deslizar em pistas de gelo, é para a Casa da Música que se olha para respirar fundo.
TEXTO: Ela não tem nada que ver com nada. É senhora do seu nariz, solitária na sua estranheza, única num corpo que parece disforme, mas é, afinal, perfeito. Olha-se e pensa-se que lhe assenta como uma luva o slogan publicitário criado por Fernando Pessoa para uma bebida gaseificada: primeiro estranha-se, depois entranha-se. O Porto já não seria o mesmo sem a sua Casa da Música. É esquisita, torta, um paralelepípedo deselegante, um ovni na cidade, um pedaço de pedra pesado e cinzento enfiado no início de uma das avenidas nobres do Porto, a da Boavista. É isto e não é nada disto. É estranhamente cativante, elegante, leve como uma pluma na forma como assenta ali ao lado da rotunda da Boavista, uma moça tímida e ao mesmo tempo altiva, quando um pedaço da sua enorme massa acinzentada espreita entre prédios ou árvores. E lá dentro, senhores, lá dentro ela é muito mais do que isso. A Casa da Música desdobra-se em espaços únicos, com uma identidade muito própria. A simplicidade das salas de ensaio, com enormes espelhos e tectos altos, a elegância do restaurante, os acessos futuristas, a beleza da janela e balcões da Sala Suggia, a jovial esplanada, com os grandes azulejos a preto e branco. Eu, que nunca fiz uma visita guiada à casa — apesar de andar a dizer, há anos, que hei-de fazê-la —, tenho tido a sorte de a ir conhecendo aos pedaços, como espectadora ou em trabalho. E ela, o patinho feio mal-amado da Porto 2001 — Capital Europeia da Cultura, tornou-se, quase sem dar por isso, no mais consensual dos seus feitos. Quem critica hoje a sua existência, apesar da brutal derrapagem orçamental (dos 35 milhões previstos, ultrapassou os 111 milhões) e temporal (não foi inaugurada em 2001, mas apenas em 2005)?A cada espectáculo, a cada iniciativa do seu departamento educativo, a Casa da Música soube ir ganhando, serena, o afecto dos portuenses. Eles adoptaram o seu interior, enchendo-lhe as salas, e afeiçoaram-se ao seu exterior, com os jovens de skate a ocupar as rampas em torno do edifício. E, agora, quando o Natal se aproxima e a rotunda está transformada num parque de diversões colorido e barulhento, ela é o local para onde nos voltamos à procura de alguma normalidade. O garante de que, quando as festas passarem, tudo há-de voltar ao seu lugar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Dez anos depois da sua inauguração, 16 depois do início dos trabalhos preparatórios, não tenho dúvidas de que muitos portuenses se acorrentariam aos seus portões (se estes existissem) caso alguém sonhasse, sequer, em tirar-lhes a casa de espectáculos da Boavista. Mesmo que muitos nunca lá tivessem entrado. Porque a Casa da Música ganhou, facilmente, direito à expressão mais calorosa que um portuense pode ter com algo (ou até alguém): ela é nossa, carago!Agora que a cidade se transforma para receber as festas do final do ano, é bom ver que ela continua imutável, senhora do seu nariz, sem penduricalhos nem luzes extra, com as suas paredes limpas e janelas em sítios improváveis. Rem Koohlaas, o arquitecto holandês que a projectou, sabia, sem dúvida, o que fazia, mesmo quando quase todos desconfiavam do monstro que crescia ali na cidade, tão diferente de tudo o que o rodeava. Nestes dias de luzes a piscar, carrosséis barulhentos, pessoas carregadas de sacos de compras e crianças de gorros a tentar deslizar em pistas de gelo, é para a Casa da Música que olho para respirar fundo, enquanto tento atravessar a rotunda. E eu gosto da confusão do Natal, gosto mesmo. Mas todos temos de respirar fundo de vez em quando. Fechar os olhos e pensar que os sonhos podem ter outra dimensão. Não têm de ser todos feitos de cores e luzes. Tal como a Casa da Música, alguns podem ter uma capa monocromática e esconder cores e texturas inimagináveis a quem apenas raspa a superfície. E as músicas que se ouvem lá dentro, as músicas de que não falei mas que são a razão da existência da Casa da Música, podem ser verdadeiramente sublimes.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura corpo moça
Vamos dar arte?
O Natal aproxima-se. Invadimos as lojas de sempre para comprar os presentes de sempre. E que tal oferecer uma peça de arte pelo preço de um cachecol e um par de meias? (...)

Vamos dar arte?
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Natal aproxima-se. Invadimos as lojas de sempre para comprar os presentes de sempre. E que tal oferecer uma peça de arte pelo preço de um cachecol e um par de meias?
TEXTO: Certo dia, um italiano entrou no Gabinete. Ia jantar a casa de um amigo e queria levar-lhe um presente. Deu uma volta pelo espaço, uma loja que se parece com uma galeria, perto do Príncipe Real, em Lisboa. Viu todas as opções, aconselhou-se e acabou por se decidir por uma pequena gravura, 140 campos, de Pedro Falcão. Gastou 150 euros, um valor bastante acessível no mercado da arte. Igual ao que comprou, existem apenas 49 exemplares. Mas aqui existem opções ainda mais baratas. “O ranking de preços que praticamos é muito alargado e temos uma grande quantidade de ofertas”, diz Delfim Sardo, reputado curador que assume a direcção artística do projecto, que arrancou em Abril. “Neste momento, a peça mais barata custa 7, 5 euros e é do André Cepeda. É um disco de 45 rotações que tem uma fotografia do artista com uma gravação do som parasitário de lâmpadas eléctricas a acender. ”O Gabinete vende arte, é certo, mas não é uma galeria. É por esse motivo que alguns dos preços que pratica têm valores tão baixos — não vende peças únicas. Delfim Sardo explica: “O Gabinete é uma editora de múltiplos de arte, que tem um espaço de venda das suas edições e de outras. É uma loja, eu gosto desse lado muito informal de ser uma loja. ” Desde esculturas a fotografias, a gravuras, incluindo ainda livros de artista e peças em modelação 3D, qualquer tipo de obra de arte pode ser editada em múltiplos pelo Gabinete, sempre numa edição numerada e assinada. Até à data, o Gabinete já lançou cinco edições exclusivas. Inaugurou com uma edição de Jorge Molder — uma fotografia de um bailarino em platinotipia (processo raro de impressão do século XIX) sobre papel japonês, com uma tiragem de três exemplares. A partir daí, lançou edições exclusivas de nomes consagrados da arte contemporânea como Francisco Tropa, Fernanda Fragateiro, André Cepeda e Rui Toscano. Fora das suas edições exclusivas, o Gabinete tem também outras edições de artistas portugueses e estrangeiros, como Ângela Ferreira, João Louro, João Onofre, Julião Sarmento, Susanne Themlitz e On Kawara. Mas se são múltiplos e cada edição tem vários exemplares, o que dizer quanto à originalidade? Para quem se interroga, Delfim Sardo esclarece que as peças “são obras originais, em edição limitada. O artista, individualmente, autentica cada uma das peças, assinando-a e numerando-a. [O facto de serem peças em edições limitadas] não lhes retira a sua originalidade nem o seu valor como objecto artístico. Há clientes que fazem esse tipo de perguntas e nós explicamos-lhes isso”. A ideia para o projecto surgiu num jantar com dois amigos de longa data, o engenheiro João Carlos Loureiro e o museólogo Rui Abreu Dantas. “Há muito tempo que andava com esta ideia on the back of my mind, de abrir um pequeno espaço que fizesse edições de múltiplos de arte, porque estou convicto de que é fundamental no panorama artístico haver este tipo de oferta”, defende Delfim Sardo. E assim nasceu o Gabinete, que — não só pelo nome, mas pelo que vende — traz para a memória os históricos cabinet de curiosités (ou gabinetes de curiosidades, em português), salas precursoras dos museus que apareceram entre os séculos XVI e XVII pelas mãos da nobreza e onde se expunham diversos objectos raros, recolhidos durante as viagens que marcaram os Descobrimentos — desde espécies de fauna e flora, passando por, claro, obras de arte. A diferença é que este Gabinete dedica-se à arte contemporânea. O Gabinete assume-se, assim, como “uma ponte entre uma produção dos artistas que é um bocadinho invisível: grande parte dos artistas que fazem múltiplos guardam-nos em casa, porque não têm sítio para onde os levar”. Como explica Delfim, o espaço quer, também, contribuir para que “novas pessoas se interessem pelo coleccionismo artístico”. Pretende atrair portugueses, turistas que passam na zona e “pessoas que têm interesse por arte, querem comprar e não estão na fase de maturação de chegar às peças únicas, por motivos económicos ou porque estão no início do seu percurso de coleccionadores”. Mas no Gabinete também se encontram peças com um custo mais elevado — “fazendo a comparação com o mercado das jóias e dos relógios de marca, por exemplo, que estão na mesma faixa de valores de algumas obras que o Gabinete vende, percebe-se que este mercado tem um lado de muito mais exclusividade”, diz Delfim Sardo. Também no Carpe Diem Arte e Pesquisa, uma iniciativa que nasceu em 2009 pelas mãos de Lourenço Egreja, Paulo Reis e Rachel Korman, as edições de múltiplos assumem um papel de destaque. O projecto, que ocupa o Palácio Pombal (século XVIII), antiga residência do Marquês de Pombal na Rua de O Século, promove residências para artistas, que resultam em exposições. Da programação constam também masterclasses, conferências, conversas com artistas e concertos. “As edições aqui são um programa”, diz Lourenço Egreja, director artístico e curador sénior do projecto que integra o espaço expositivo, a loja, a cafetaria, o jardim e ainda uma sala de leitura. “Têm uma história engraçada: no final de 2009, íamos fazer uma exposição do Rodrigo Oliveira. O orçamento estava curto e então falámos com o artista e criámos uma edição [em formato de impressão a jacto de tinta de pigmento]. Fizemos alguns telefonemas, a edição vendeu-se toda e financiámos a exposição”, conta. E a partir daí, das exposições começaram a nascer edições. No Carpe Diem, cujo foco é a arte contemporânea, “o múltiplo é uma espécie de uma senha porque cada edição está ligada a uma exposição, que esteve numa determinada sala… há toda uma ligação”, diz o curador. Os múltiplos têm também outra importante função: ajudam ao financiamento do projecto, contribuindo para a sua sustentabilidade. Tal como Delfim Sardo, Lourenço Egreja incentiva: “Ofereçam arte, ofereçam arte — é o que eu digo. Há coisas bonitas, são de uma qualidade razoável e estão a ajudar o projecto, que é uma associação sem fins lucrativos. ” E porque é Natal, a loja do Carpe Diem está a fazer uma campanha especial: até 19 de Dezembro, as edições estão à venda por 150 euros — a moldura é oferta. Ao contrário do Gabinete, e salvo algumas excepções, no Carpe Diem as edições têm um preço único. Lourenço Egreja explica porquê: “Os artistas são todos importantes e a ideia é que participem todos na sustentabilidade do projecto. ” Apesar de não haver uma rigidez quanto à tipologia, “90% dos múltiplos do Carpe Diem são impressões a jacto de tinta de pigmento (técnica em que a tinta é injectada no papel)”, diz. Algumas das edições são também serigrafias, desenhos e gravuras. O projecto conta já com 120 edições, de artistas como os portugueses José Pedro Croft, Gabriela Albergaria, Pedro Calapez, Daniel Blaufuks, Maria Condado, David Oliveira, ou o brasileiro Bruno Vilela, o britânico Tim Etchells, o italiano Giovanni de Lazzari ou a belga Jeanine Cohen. A maioria das edições tem uma tiragem de 30 exemplares e cada exemplar é numerado e acompanhado por um certificado de autenticidade assinado pelo artista. Lourenço Egreja defende que, apesar de serem múltiplos, as obras não deixam de ter valor. E relata um episódio para o provar: “Em 2014, vi uma pequena gravura de Matisse, o número 5 numa série de 6, na Marlborough Gallery, em Madrid, a 380 mil euros. Fui perguntar porque é que era tão cara, e responderam-me que o era por ser de Matisse, por ser o número 5 numa edição de 6 e porque a galeria não sabia a proveniência dos outros exemplares. ”Referindo-se às edições do Carpe Diem, Lourenço acredita que “num espaço de dez anos, numa edição de 30, alguns [exemplares] perdem-se. Tendencialmente, é assim que vai acontecer. Portanto, ao fim de dez anos, é óbvio que o valor aumenta, porque é óbvio que já não há os 30 exemplares”. O Carpe Diem controla o primeiro mercado: tem uma base de dados com a identificação das pessoas que compraram as 30 edições. A partir daí, os proprietários podem oferecer ou vender, e acaba por se perder o rasto ao exemplar — “isso é a vida das obras de arte, elas vão por aí”, advoga Lourenço. Para quem tem um orçamento mais desafogado e procura peças únicas, Lourenço e Delfim aconselham uma ida às galerias. “O múltiplo não é uma pequena coisa marginal. ” Quem o diz é Delfim Sardo. “O múltiplo ocupa um lugar muito importante nos circuitos da arte. Têm sido nossos clientes artistas, que vêm comprar obras de outros artistas”, explica. “[Isto prova que] a valorização do múltiplo já é feita no interior do universo artístico. Corresponde a uma tipologia completamente histórica da história de arte. ”Lourenço Egreja especifica — “Toda a gente faz impressões. Andy Warhol fazia serigrafias a torto e a direito. Rodin, nas suas esculturas, também fazia edições. Não há ninguém neste mundo que não faça edições. ” O curador lembra que “vivemos num mundo de reprodutibilidade, que não é de agora. Há uma história de arte toda para trás, desde as gravuras”. E insiste que o facto de serem edições limitadas a 30 exemplares é um factor decisivo para quem compra. “O cliente sabe o que está a comprar”, afirma. Apesar de em Portugal as edições de arte não estarem particularmente generalizadas entre o público, os dois curadores lembram que, pela Europa, os múltiplos de arte são uma realidade instituída. “Em Espanha há uma tradição de gravura enorme, em França há um coleccionismo de múltiplos de arte completamente estabelecido, Inglaterra tem os melhores impressores de gravura do mundo”, diz Delfim Sardo. O mercado da arte é feito de valores elevados, sim. Mas não só. Num tempo em que a Rua da Picaria, apesar da debilidade do negócio, ainda era a rua dos móveis do Porto, nascia no n. º 84 uma galeria de desenho e ilustração. Baptizaram-na Dama Aflita, o nome da associação cultural que a promovia, expressão no conceito narrativo damsel in distress, isto é, donzela em perigo. Um aportuguesamento cómico que tanto fazia rir os padrinhos, Júlio Dolbeth, Rui Vitorino Santos e Lígia Guedes, como os vizinhos lojistas, marceneiros e carpinteiros, aqueles que, meio a sério, meio a brincar, lá iam trocando as voltas à nomeada. “A galeria Dama Antiga?! É já ali acima!”Foi há sete anos, não há tantas primaveras assim, mas hoje a Rua da Picaria, bem no centro da movida portuense, está diferente. Abundam os bares e restaurantes, escasseiam as madeiras e lixas. No cume, num espaço partilhado com a loja de música Matéria Prima, mantém-se a Dama Aflita, quiçá o rosto inicial desta renovação. Os vidros com desenhos denunciam, e anunciam, o que se expõe depois da porta, na pequena sala de 16m2, onde há uma única mesa ao centro repleta de fanzines e livros das editoras Planeta Tangerina, Pato Lógico e Orfeu Mini. Nas paredes brancas pode estar muita coisa. No currículo da galeria constam nomes como Alice Geirinhas, José Feitor, André da Loba, Craig Atkinson, Marta Monteiro, Catarina Sobral, Filipe Abranches, Luis Urculo, Jack Teagle, Maria Imaginário e Luís Buchinho (sim, o estilista expôs ilustração, desenhos e croquis), mas também jovens artistas como Joana Estrela e Rudolfo, cuja exposição a solo terminou no dia 12. Trabalhos destes e de muitos outros autores (cerca de 70) estão à venda lá dentro e na loja online, com preços que começam nos 20 euros e terminam nos 500 euros. O valor médio de trabalhos originais, no entanto, ronda os 100 euros, o que reflecte uma das preocupações dos galeristas. “Esse também é o nosso papel como curadores”, diz Rui Vitorino Santos, que, a essa actividade, soma a de professor, artista e ilustrador — é dele a próxima exposição da galeria, Utz, com inauguração marcada para 19 de Dezembro. “Gostaríamos imenso de ter cá certos autores, mas não temos público para eles. Porque não há propriamente coleccionadores, não há aquela ideia de adquirir porque a obra vai valorizar. ” Aqui, a compra, diz, “é quase um exercício de empatia”. “Em vez de umas calças, vou comprar este desenho”, completa, entre risos, Júlio Dolbeth, igualmente curador, artista, ilustrador e professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. São mentes cúmplices, as deles. Lígia Guedes afastou-se entretanto do projecto, por isso são eles os “curadores, pedreiros, contabilistas e marchands”, nas palavras de Rui Vitorino Santos. E é desta sinergia pessoal que resulta a linha “ecléctica” da Dama Aflita, tanto marginal como consensual, mas sempre, descreve Júlio Dolbeth, “contemporânea”. Em 2008, recorda o curador, fundaram a galeria com o intuito de “dar um destaque à ilustração em espaço de exposição” para o público em geral. Criar um white cube para “tornar visível” uma área que a maioria das pessoas associava tradicionalmente ao sector editorial e que, realça Vitorino Santos, era vista no meio académico como “quase desprestigiante”: “Aquela coisa que ficava no limbo: é artes plásticas, é design? O trabalho é mais barato, demasiado iconográfico, figurativo…”Hoje, sete anos depois, não é só a Picaria que está diferente. A ilustração também. “Há menos preconceito”, na academia e não só, até porque há uma nova geração a dar cartas. E a verdade é que “está um bocado na moda”, no mundo e no Porto, onde existem vários espaços que lhe são dedicados. Eles não são “os pais das galerias de ilustração”, mas talvez tenham alguma responsabilidade na matéria. Pelo menos por cá, admite Dolbeth. “Acho que com falta de humildade posso dizer que de certa maneira abrimos portas para possibilidades. ”Uma barraquinha de madeira de 4m2. Bastou essa exígua e diminuta área para Ema Sara Ribeiro, formada em Escultura e Fotografia, abraçar um universo a que chegou “por acaso”: a ilustração. Com os anos, a Ó! Galeria aumentou em espaço e artistas. Fez as malas umas quantas vezes, piscou o olho a outros negócios e, em Novembro, até se aventurou em novas paisagens, ao ocupar o n. º 7 da Rua de São Cristóvão, na Mouraria, com uma pop-up store, que está de portas abertas até Janeiro (pelo menos) para testar o mercado lisboeta. A verdade é que a Ó! Galeria nasceu mesmo numa barraquinha que vendia ilustração e objectos de autor. O ano é 2009 e estamos em pleno Centro Comercial Bombarda, na “rua das galerias” do Porto, altura em que é lançado o projecto Bidonville com vários quiosques baratos disponíveis para aluguer. Na altura, Ema até já tinha uma outra galeria no mesmo centro, a Lab65, dedicada à fotografia. Arte diferente, espírito empresarial semelhante: “A Lab. 65 era uma galeria de fotografia não convencional. Eu alterei o projecto para que toda a gente conseguisse comprar fotografia. Massifiquei a produção para ter preços dos 30 aos 300 euros”, recorda a galerista, hoje com 42 anos. Virgílio Ferreira e Inês d’Orey eram apenas dois dos autores em exposição. O que aconteceu? “A fotografia não vende. ”Ora, a Ó! em formato galeria de ilustração “pura e dura” nasceu, qual fénix, das cinzas da Lab. 65. Com os anos, foi crescendo até que em Agosto de 2013 assentou arraiais na morada actual, o n. º 61 da Rua Miguel Bombarda, onde tem 80m2 para se espraiar. Se há uma parede à esquerda com “trabalhos até ao tecto”, há outra, em posição oposta, onde o profusão de branco deixa respirar a exposição em destaque no mês. No centro, quatro lâmpadas retro q. b. iluminam uma mesa repleta de livros e fanzines, área editorial onde a Ó! também se estreou recentemente. À entrada, há um expositor com merchandising dos autores, de T-shirts a totebags, e as receitas ilustradas da Nham Nham, colecção de artigos de cozinha, lançada em 2014 por Ema e pela ilustradora Tina Siuda. Há muita cor, muita coisa para ver, muita coisa para mexer e remexer. “Aqui não é o white cube de todo, é um mundo à parte em que se pode viajar nas paredes”, enfatiza Ema. É uma forma de tornar o “espaço mais acolhedor” e “menos galeria convencional”, reforçando também o pendor “vincadamente comercial” do projecto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os preços começam nos dez euros com as edições numeradas em risografia, uma “alternativa criada para quem está a começar a adquirir ilustração e não tem dinheiro”. Em média, as obras originais oscilam entre os 50 e os 150 euros. Os trabalhos mais caros geralmente rondam os 300 euros, embora exista um ou outro que ultrapassa estes valores. Entre os espaços físicos e a loja online, a Ó! Galeria expõe o trabalho de cerca de 70 ilustradores, entre eles Mariana, A Miserável (“Crescemos ao mesmo tempo”), Tina Siuda (é possível que a encontrem por estes dias ao balcão da galeria do Porto), os vizinhos da Dama Aflita, Júlio Dolbeth e Rui Vitorino Santos, e ainda Mariana Rio, Tamara Alves, Ivo Hoogveld, Lara Luís, Paula Bonet, Mariana Herreros e Yara Kono. Alguns deles, aliás, integram a actual exposição no Porto, a colectiva especial de Natal, Peep Show. Para muitos jovens ilustradores portugueses, a Ó! foi o seu primeiro palco. E continuam por aí “demasiados ilustradores com trabalhos incríveis que precisam de ser vistos”. Ema está atenta, apesar de hoje tentar ter “algumas certezas” antes de acolher novos autores, até por uma questão de “credibilidade”. Para assegurar a quem compra que, “para além de um objecto bonito e decorativo, está a fazer um investimento”. Porque comprar ilustração também é isso: “É uma maneira diferente e original de adquirir peças de arte. Em vez de cópias massificadas, podem ter peças com séries limitadas ou até mesmo originais. E os preços não são assim tão diferentes. ”
REFERÊNCIAS:
Correr é uma droga boa
O que passa pela cabeça de um corredor? Porque é que uma actividade que pode ser estafante também vicia? Vanessa Fernandes, 29 anos, vice-campeã olímpica de triatlo em Pequim 2008, responde. “Sem nos apercebermos, temos um tempinho nosso a respirar vida”. (...)

Correr é uma droga boa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.7
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que passa pela cabeça de um corredor? Porque é que uma actividade que pode ser estafante também vicia? Vanessa Fernandes, 29 anos, vice-campeã olímpica de triatlo em Pequim 2008, responde. “Sem nos apercebermos, temos um tempinho nosso a respirar vida”.
TEXTO: Quem corre por gosto também se cansa. Ao fim de uma hora, Vanessa Fernandes não parece estar fatigada mas o corpo da atleta dá sinais de ter estado a trabalhar: suada, tira a t-shirt, fica com os calções e o top. Vanessa Fernandes até pode estar cansada, mas este é um cansaço que também traz prazer. — Dá-me boas sensações. Durante a corrida é quando tenho mais paz de espírito. A cabeça está desanuviada. [Correr] faz bem ao meu corpo. Não me vejo a não correr. Aos 29 anos, a vice-campeã olímpica de triatlo em Pequim 2008 podia estar a descrever um vício. Porque correr vicia. Porque quando não corre parece que “há um desequilíbrio”, a sensação de que falta qualquer coisa. Então o corpo reage, ordena: vai correr. É a ordem para a prática de desporto, porque ao fazê-lo liberta-se endorfina, a hormona “do prazer”. — Acho que [essa sensação de vício] tem muito a ver com os resultados no nosso corpo quando corremos: vemos os músculos mais tonificados, temos mais energia, mais descompressão. Até o próprio organismo se regula mais facilmente. E, sem querer, a nossa alimentação começa a ficar mais saudável. O que passa pela cabeça de um corredor que pega no seu corpo e se atira em direcção a um lugar que muitas vezes não sabe qual é? Pensa, reflecte, nada disso?— É o momento em que estou mais zen. Vou ali tão na minha… Não há contas para pagar. É aquele momento que é só para mim, não existe justificação para me preocupar com o que quer que seja. Vou a correr e penso: “Fogo, aqui ninguém me chateia. ” Durante uma hora, que pode até estar a custar, podem vir sonhos, mas é aquele momento que é só para mim. Vou focada no cansaço, na respiração, na maneira de correr… Só isso acaba por mexer na cabeça. Sem me aperceber, tenho um tempinho meu a respirar vida. Cuidado, porque este é um vício bom, mas é um vício que “pode destruir o nosso corpo”, há que fazer “a corrida de maneira saudável”, é preciso saber de que maneira corremos. E é preciso ouvir o corpo quando ele quer descansar, parar. — Às vezes, a corrida sabe a pouco. Mas às vezes temos de ficar por ali: soube a pouco hoje, que é para amanhã conseguirmos fazer novamente. Muita malta quando começa a fazer maratonas pensa que tem de correr todos os dias hora e meia, depois aleija-se, queixa-se. Vanessa Fernandes é campeã olímpica mas, na realidade, nunca fez nenhuma maratona na vida. Nunca fez, e se fizesse seria “pela competitividade”. Esse é o seu espírito, explica, sentada no terraço do Hotel Ozadi, em Tavira, um par de horas depois de ter estado a correr no meio do Parque da Ria Formosa, com as salinas em fundo e a “guiar” um grupo de corredores amadores pelo asfalto. — Eu se calhar faria a maratona de maneira mais renhida, de competição, já por tempo, já por lugar. Vanessa Fernandes é uma das atletas associadas ao projecto Run4Excellence, de Paulo Colaço, professor da Faculdade de Desporto da Faculdade do Porto e treinador de corrida. No início de Junho, ela e dois atletas ligados ao projecto, Licínio Pimentel (vice-campeão nacional de cross) e José Moreira (maratonista do Benfica), estiveram no Hotel Ozadi a lançar o programa de corrida para hotéis da Run4Excellence — que agora tem treinos personalizados de vários tipos (postura, prevenção de lesões, fortalecimentos, etc. , individuais ou em grupo) ou Training Camps, com sessões de três dias de treino para qualquer nível. — Tenho tido experiências fantásticas com as pessoas. Se elas gostam de fazer isto, o meu contributo é dar o máximo que puder nesse sentido, comenta sobre a sua participação no Run4Excellence. O Run4Excellence é antes de mais um projecto sem fins lucrativos. Com sede no Porto, onde oferece treinos personalizados, tem também um website onde se pode consultar, de graça, vários tipos de exercícios importantes para qualquer corredor. São exercícios além de corrida, justamente porque correr só não chega. Duas vezes campeã do mundo de triatlo, em 2007 e 2008, várias vezes campeã europeia e campeã do mundo de duatlo em 2008, a atleta comenta que admira o corredor que não compete. Admira quem corre por correr, apenas pelo gozo, apenas para “estar bem”, com o objectivo não de ficar em primeiro ou segundo lugar, “mas de usufruir da distância da maratona”. — Para essas pessoas, terminar é a meta principal. Isso é espectacular, ver o brio que têm em terminar uma maratona ou meia maratona. Enquanto nós [atletas de competição] terminamos e muitas vezes pensamos que devia ter sido melhor. A verdade é que o corpo se habitua a ter uma actividade e isso, como um botão, precisa de ser activado. Torna-se um hábito, como outros. — Chegar a casa e sentar no sofá é um vício, mas é uma droga má, comenta. Chegar a casa e ir correr é um vício, mas é uma droga boa. Se toda a gente conseguisse passar para esse lado, principalmente as mulheres… A partir de certa idade, devemos ter cada vez mais cuidado. O nosso metabolismo vai desacelerando, vamos ganhando peso, e se continuarmos com a corrida acabamos sempre por andar com o metabolismo mais depressa e sentimo-nos melhor. O mais curioso é que, quando se começa a correr, não se gosta. Cansa. Custa. Dá dores. Parece que o tempo não passa. Parece que o corpo vai ceder. Até para os corredores, calçar os ténis às vezes demora. — Porque custa! É uma coisa exigente e, até se encontrar o próprio ritmo, é preciso ter muita calma. É como tudo na vida, o iniciar de qualquer coisa é complicado — uma pessoa tem é de se atirar [para as coisas]. E, claro, tentar informar-se [para receber] os melhores conselhos. Há pessoas que, a partir de certa altura, começam a desmotivar porque precisam de coisas novas ou de reforço muscular ou de ficar com mais força. Embora a ideia de pegar nuns ténis, descarregar no telemóvel uma aplicação de corrida e sair porta fora seja apelativa, a verdade é que não fazer treinos acompanhados por técnicos pode trazer vários riscos. E riscos que surgem da falsa ideia, por quem começa a correr, de que “fazer mais é melhor” — e exagera. Por isso é que aparecem depois “lesões, a fadiga, a desmotivação”. Da sua casa, na praia da Aguda, em Vila Nova de Gaia, Vanessa Fernandes vê cada vez mais gente a correr. Acha que há maior consciência dos efeitos da corrida a longo prazo. Dá-lhe gozo que assim seja. Dá-lhe também gozo que o “preconceito do desporto” esteja a cair. E dá-lhe ainda gozo ver a “fibra” das mulheres na corrida. — A mulher demorou mais tempo a abrir-se para a corrida; a primeira vez que uma mulher entrou numa maratona foi quase “corrida” [Kathrine Switzer, em 1967]. Agora vêem-se mais mulheres a correr. Muitas vezes são elas a puxar o marido e os filhos. A ela puxava-o o pai, o ciclista Venceslau Fernandes. O que ela sofria, conta a rir. — Coitadinha de mim. Às vezes queria ficar sentada no sofá e o meu pai: “Ó Vanessa vamos correr um bocadinho. ” Eu com uma torrada na mão, quentinha do forno. . . Depois a minha competição era com o meu pai. Ia com a corda na garganta, mas no fim dava tudo para ganhar. O meu pai sempre me tentou incutir isso. Quando somos novos, somos preguiçosos e eu não fugi à regra. A motivação era para ganhar, como sempre, “até na escola”. Ganhar até “uma régua”. — Eu era demais. Deitava tudo ao chão se perdesse. Tinha muito mau perder. Fui aprendendo, mas o bicho de querer ganhar continua lá sempre, de querer ser melhor, de querer fazer melhor. Não há hipótese. É o que me move muito. Mas isso é em tudo o que esteja a fazer: um pão, um bolo. Aquilo tem de sair bem. Quando não sai, irrito-me pelas horas do dia. Vanessa Fernandes corre em direcção a quê?— Corro em direcção à minha vida. Corro a tentar, na minha vida, fazer muito mais do que simplesmente correr. Usufruindo do privilégio que tenho que é conseguir correr. Mas sem querer andar a correr. Tudo o que tenho feito tem sido dia a dia. E, consoante o que vou correndo, essa corrida vai-me guiar a algo que talvez um dia possa dizer que vai ser o meu objectivo — ri, com o trocadilho das suas próprias palavras. — Correr não é fugir. Correr é enfrentar. A correr enfrentas-te a ti próprio. Ténis para que te queroQuando se começa a correr, a grande aposta do equipamento deve ser nos ténis, simplesmente porque o embate do corpo com o solo em cada passada é tão forte que os pés precisam de uma protecção eficaz. Uns bons ténis fazem, de facto, toda a diferença — durante e depois da corrida. “Tudo o que condiciona as forças aplicadas no solo poderá provocar consequências positivas ou negativas na corrida”, diz Paulo Colaço, fundador da Run4excellence, treinador e professor na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. As marcas desdobraram-se a criar vários modelos, inclusivamente a “vender” a ideia de que para cada tipo de passada (pronadora, neutra ou supinadora) corresponde um tipo de ténis, mas Paulo Colaço explica: “Sugerimos sempre a adequação da sapatilha a cada corredor de acordo com diferentes parâmetros técnicos, morfológicos e até historial de lesões que cada um possa ter. As questões da escolha de calçado para corredores com apoios com maior pronação ou supinação é de tudo o que menos nos preocupa. As preocupações são muito mais técnicas e suportam-se nas forças aplicadas no solo e nas alterações que pretendemos que sejam construídas na sua corrida. Por isso a opção deve passar por consultar o seu técnico, até porque o modelo de uma determinada marca pode ser uma boa opção para um praticante e péssima para outro. ”Experimentámos duas marcas de ténis topo de gama — uma terceira marca, à última hora, não disponibilizou as sapatilhas para teste — com passada neutra, em duas corridas com a mesma duração. No caso da Adidas, os Ultraboost, sem costuras, dão uma sensação de adaptação imediata ao pé quando se calça, como uma luva — na corrida, o conforto do amortecimento do boost faz com que quase não sintamos o embate no chão. Se há sapatilhas que dão a sensação de leveza, são estas. Já os Nike Air Zoom Elite 8 recorrem às tecnologias Zoom Air e à espuma Lunarlon. Neste caso, a vantagem de ter uns ténis com costura foi a segurança do passo — a sensação de estabilidade e firmeza em cada passada. Pedimos às marcas um bilhete de identidade dos ténis. Nike Air Zoom Elite 130€Os Nike Air Zoom Elite 8 são vendidos como o modelo mais leve da família Zoom, com uma sola que combina as tecnologias Zoom Air e Lunarlon, para um amortecimento suave. Cada unidade Nike Zoom Air é preenchida com pequenas fibras que limitam a expansão da camada de ar presente na sola quando esta é pisada. Isto faz com que, segundo a marca, esta camada volte à sua forma original mais rapidamente, criando amortecimento responsivoAdidas Ultra Boost 180€Os Adidas Ultra Boost são o primeiro modelo de corrida com sola 100% boost, que oferece um amortecimento reactivo. Foram desenvolvidos durante dois anos e para tal a Adidas teve por base estudos antropomórficos e o sistema Aramis, utilizado pela Nasa, Boeing e Audi para medir provas de choque, análises de vibração e estudos de durabilidade. Como o pé pode expandir até pelo menos 10mm ao longo da passada, é usado Primeknit no topo. Quando o pé está restringido, a sua expansão pode causar incómodo, fricção e bolhas e Primeknit é um material com um toque suave, bastante elástico e respirável. A marca destaca a borracha continental, pois a transferência dos compostos dos pneus para o calçado de corrida pode ajudar a melhorar a performance dos atletas
REFERÊNCIAS: